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 · 3 Segunda Parte – A Segunda Geração – Entrevistas 79 Maria Verônica dos Santos (Madia) 80 Virgínia Verônica da Silva 92 Maria da Conceição Siqueira Oliveira

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ANTONIO JORGE SIQUEIRA

SERTÃO SEM FRONTEIRAS

Memórias de uma Família Sertaneja

Revisão

Gilvandro Paiva

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INDICE DE MATERIAS

Apresentação 04

Prefácio 08

Posfácio 12

Primeira Parte – Migrantes de nós mesmos 17

José e Verônica... 19

Os atalhos das lembranças... 21

A caminho da Matarina... 24

Moradores do alheio... 27

À procura de Santa Luzia... 34

A educação faz sempre a diferença... 40

Do que o amor não é capaz!... 46

Uma família em diáspora... 53

Nor(destinos) e Su(destinos)... 58

“Ninguém se perde de volta à casa paterna”... 63

A hora e a vez da Terceira Geração... 66

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Segunda Parte – A Segunda Geração – Entrevistas 79

Maria Verônica dos Santos (Madia) 80

Virgínia Verônica da Silva 92

Maria da Conceição Siqueira Oliveira 119

Anísio Jorge de Siqueira 132

Antonio Jorge de Siqueira 147

Elias Jorge de Siqueira 195

Valdeci Jorge de Siqueira 205

Doralice Alexandre de Siqueira (Dora) 214

Edite Guilherme de Siqueira 228

Enedina Maria de Siqueira 240

Rejane Cavalcante de Siqueira 255

Terceira Parte – Parentes e Amigos da Matarina e da Santa Luzia 260

Terezinha Matos 261

Inácia Matos 265

Maria Aparecida e Genival Matos 268

Severino Anastácio da Silva 272

Francisca Ananias 273

Eugênio Nunes 278

Manoel Porfírio (Neco) 280

Zacarias Neves 284

Louro Caboclo 290

Pedro Nunes Filho 307

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Quarta Parte – Entrevistas da Terceira Geração 316

Maria Irene dos Santos 318

Maria das Graças Siqueira 351

Sílvio Roberto Siqueira 365

José Guilherme dos Santos Filho (Jacaré) 375

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APRESENTAÇÃO

Este é um trabalho que se inspira numa cultura de saudade, uma particularidade

da memória, de caráter um tanto quanto transcendental, e que nos foi legada pelos abis-

mos da alma lusitana. Decerto, uma maneira insólita essa de revisitar o passado palmi-

lhando-se as difíceis trilhas das saudades. É bem possível que as pessoas comuns não

atinem para o que seja “memória”, mais ainda no sentido de algo que tem a ver com o

passado, como é o nosso caso. No entanto, ao se evocar a “saudade”, fica mais fácil se

estabelecer uma relação com as vivências pretéritas fortemente marcadas nos desdo-

bramentos da alma e nas fímbrias do coração. Fernando Pessoa entenderia bem o que

significa estarmos falando, aqui, de saudade. É frequente o ser humano sentir-se assal-

tado pela tentação do esquecimento; daí que a memória se institui como antídoto do

esquecimento. Lembrar para não esquecer. Mas, lembrar é uma coisa boa, como a sau-

dade; tão boa que, dizem, “recordar é viver”. Porque lembrar é, também, esquecer. Co-

mo enfatiza Ecléa Bosi, frequentemente lembrar nem sempre é reviver, mas refazer,

repensar e reconstruir com imagens e ideias do tempo presente, as experiências do nosso

passado. E isto é viver plenamente.

Já se disse, não sei se é uma máxima, que infeliz é aquele cujo passado condena.

No caso deste livro, que trata da memória de uma família sertaneja, como tantas outras

famílias do sertão nordestino, o seu passado a redime, em vez de constrangê-la. Assim é

que, nas suas saudades revisitadas, cada um dessa família se vê por inteiro no passado

de suas memórias, representadas agora no presente. Até porque essa vivência de lutas,

de sonhos, de sofrimentos, de privações e de conquistas é a saga de muitas crianças,

jovens, mulheres e homens em grande parte das famílias brasileiras, em todas as regiões

do Brasil, e não apenas nas famílias do sertão da caatinga nordestina, como é o caso dos

Siqueira.

Este livro trata da memória de uma família de agricultores, constituída de onze

filhos, que, na década de trinta trabalhou, inicialmente, como meeira na Fazenda Ampa-

ro, migrando depois para a Fazenda Matarina, ambas no Cariri paraibano. Na década de

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quarenta, migrariam para o Moxotó pernambucano para, finalmente, na altura dos anos

cinquenta, novamente migrarem, dessa vez para o Sudeste e, de lá, para o Sul do Brasil.

O livro está estruturado em quatro partes. A primeira é um ensaio intitulado “Migrante

de Nós Mesmos”, onde se reconstrói a trajetória de vivências e lutas da família em torno

do trabalho agrícola e da autonomia financeira da família. Focaliza a “diáspora” da fa-

mília Jorge Siqueira migrando do Nordeste em direção ao Sudeste do Brasil. Trata, i-

gualmente, de entender como a família, naquela dispersão, reconstrói, ressignifica e

consolida a sua unidade como grupo e como família. Do mesmo modo, busca compre-

ender como, na passagem da segunda para a terceira geração, prevalecem valores, con-

dutas e sentimentos muito característicos dos traços transmitidos pelo pai, José Jorge, e

pela mãe, Verônica. A segunda parte contém, inicialmente, as transcrições de entrevis-

tas dos familiares da segunda geração, vivos. São sete pessoas, quatro homens e três

mulheres. De uma prole inicial de onze filhos – sete homens e quatro mulheres -, quatro

desses são atualmente falecidos. Em seguida, foram transcritas as entrevistas dos famili-

ares da segunda geração, incluindo cunhados e cunhadas. Uma delas não se interessou

em atender o convite para ser entrevistada. A terceira parte é constituída por textos –

uma série de depoimentos -, que se originaram de entrevistas feitas com alguns familia-

res do terceiro grau, amigos e contemporâneos do casal José e Verônica, bem como de

mais alguns membros da família, seja na Matarina (PB), seja na Santa Luzia (PE). Na

quarta parte, finalmente, temos as entrevistas dos familiares da terceira geração, os

sobrinhos. No caso do falecimento de um casal da segunda geração – caso de Flora e

Zeca, Manoel e Anísia -, entrevistou-se o filho(a) mais velho(a). Todas as entrevistas

foram filmadas; os entrevistados, por sua vez, responderam a uma lista de questões que

lhes foram submetidas. As imagens fílmicas foram utilizadas na confecção de um DVD,

onde, além das entrevistas, buscamos imagens dos lugares da memória, utilizando-se

principalmente do acervo de fotos da família. Todo o material será preservado para um

futuro banco de memória da família. Importa esclarecer que as entrevistas foram trans-

critas mantendo-se absoluta fidelidade às falas dos entrevistados. Eliminou-se apenas os

vícios de locução assegurando-se estrita fidelidade ao sentido de cada uma dessas falas.

Por se tratar de um trabalho focado na memória familiar, todos os entrevistados dispen-

saram ulteriores consulta e aprovação ao texto resultante de suas falas, que continua

disponível para consultas, a qualquer tempo e solicitação.

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Agora, perguntamos o que mantém, nos dias de hoje, a identidade familiar da

família Jorge Siqueira? Não resta dúvida que são os marcos de um passado muito mar-

cante em sua história. Esse tempo pretérito dá sentido ao tempo presente e contemporâ-

neo da família. Com um olhar atento nos depoimentos das pessoas, podemos, então,

falar de uma memória familiar que dá gosto ser lembrada e ser revisitada por cada um

dos membros da família. Consequentemente, para a família Siqueira faz sentido envidar

esforços, fazendo com que essas histórias sejam preservadas no tempo e não apenas

episodicamente lembradas. O conjunto das entrevistas, aqui transcritas, perpassa o saldo

positivo de um particular sabor de memória. Algo assim como o passado que, ao ser

evocado, tem o gosto do presente e, igualmente, um sabor de futuro, como o entende

Koselleck... No transcurso deste trabalho em que estivemos envolvidos com a narrativa

da memória familiar, o que mais sobressaiu foi o entusiasmo das gerações mais novas

da família buscando entender o passado dos seus familiares. No rastro dessa saudável

busca e curiosidade, pressente-se a imensa satisfação de todos eles, sentindo-se vitorio-

sos na ascendência dos seus familiares. É o caso da fala de Cláudio Santos, da quarta

geração, num dos momentos em que realizava a entrevista juntamente com outros so-

brinhos, alguns deles da terceira geração. Na ocasião, Cláudio pede a palavra para enfa-

tizar que essa ideia de resgatar a memória da família nasceu no dia do sepultamento da

vovó Verônica, em São Paulo. Nas suas palavras: “Após o sepultamento dela, nós da

família, viemos aqui para o quintal da casa do pai e organizamos um churrasco. Sen-

tamos junto com o Antônio, o Anísio, o Toinho e o Hélio, que também estava com a

gente”. Continua Cláudio: “Eu tenho uma pasta, onde guardo toda a documentação da

família, e aí não inclui apenas a família dos Guilherme, com os bodoques que eu recebi

do Zé Guilherme e a planta da casa”. A pasta organizada por Cláudio nos é mostrada e,

nela, está escrito: “Lampejos da Memória”. E, continua ele: “Quando acontece de al-

guém falecer, anoto a data, a filiação... Tudo isso porque as pessoas vão partindo, e

essa linda história da migração, das dificuldades, serve de lição e de lembranças para

que não haja esquecimento dessa bela luta da família. A família sempre se mostrou

interessada, porque batalhou muito. O depoimento que o senhor [referindo-se à minha

pessoa] nos deu aqui é muito interessante. É preciso sonhar? É! Mas é preciso batalhar

para conseguir as coisas, como o senhor falou. Até para se conseguir realizar metade

desses sonhos é preciso trabalhar muito e enfrentar muitas adversidades. São as en-

chentes na casa, são outras inúmeras dificuldades. Muitas vezes as pessoas passam por

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esses problemas e acham que somente a vida delas é cheia deles. Não! Olhe para trás e

verá que teve muita gente que sofreu o dobro de você. Aquele agradecimento que o se-

nhor fez a Zefinha Araújo, com aqueles reflexos na vida de todos os irmãos, assim como

seu exemplo de vida como professor e como estudante, isso refletiu em nós, em nossa

educação e certamente refletirá também na educação dos nossos filhos. Porque o tio

Antônio sempre foi um exemplo e, assim como a Zefinha Araújo está para vocês, da

segunda geração, o tio Antônio está para nós da terceira. O estudo e o exemplo se re-

fletem na vida inteira. Este trabalho é um marco de lutas por parte de pessoas que en-

frentaram uma vida de luta, como a vó Madia, que é um exemplo de vida e sempre bem-

humorada. Ela tem todos os motivos do mundo para ser uma pessoa mal-humorada e,

no entanto, é sempre aquela alegria e disponibilidade. Tem gente que tem tudo e não

consegue ser feliz”. O reconhecimento da importância de um trabalho como esse, mate-

rializado agora nas páginas deste livro, é sumamente reconfortante, especialmente

quando ele brota generosamente das novas gerações da família.

O presente livro contempla, portanto, uma viagem ao passado, que se traveste

dos adereços da saudade. Foi concebido como um testemunho vivo que fala de nossas

lembranças, de nossas vivências, de nossas frustrações e de nossas vitórias também.

Seria imprudência, talvez, dizer que as histórias que aqui são narradas já se tornaram

épicas e “inesquecíveis” para a parentela. Afinal, elas têm muito da lembrança dos difí-

ceis começos, é certo. No entanto – e mais que isso -, elas têm tudo a ver com aquilo

que o coração e a alma de cada um das gerações da família agrega às suas melhores

recordações. Numa palavra, uma saudosa memória. Será que as saudades morrem em

cada um de nós enquanto vivemos? E a memória, sobreviverá ela à morte inevitável?

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PREFÁCIO

Perseguidores de sonhos

Pedro Nunes Filho

Advogado tributarista e escritor

Padre Bartolomeu, formado no Seminário de Olinda, um dia resolveu apossar-se

de uma vasta sesmaria, que dizia pertencer a seu pai, Custódio Alves Martins, desde

1696. Com esse intento, no dia 3 de dezembro de 1740, descobriu uma localidade apra-

zível a que deu o nome de Riacho do Amparo. Ali fundou um curral de gado que se

transformou em fazenda, depois, numa povoação, mais tarde, em cidade.

Nas terras daquela antiga sesmaria do Amparo, duzentos anos depois da incursão

do português Custódio, no dia 8 de julho de 1898, veio à luz do mundo uma criança do

sexo masculino, a quem os pais, João e Cândida, chamaram de José. Levado à pia ba-

tismal, o vigário da paróquia de São João do Cariri batizou a criança e, em seguida, ano-

tou no Livro de Batistério o nome de José Jorge de Siqueira.

Como em toda família numerosa, na extensa parentela dos Siqueira, havia rami-

ficações compostas de pessoas pobres, remediadas e abastadas. Numa época em que as

riquezas se concentravam no campo, sendo os núcleos urbanos lugares pouco habitados

e sem expressão econômica alguma, terra era um bem maior. Todos queriam possuir

nem que fosse uma nesga para sair da condição de trabalhador alugado e adquirir o sta-

tus de proprietário. O menino José Jorge de Siqueira nasceu desafortunado. Não herdou

terras! Quando cresceu, o destino quis que conhecesse Verônica Feliciano, natural da

povoação da Prata, com quem veio a se casar. Bastante jovens, os dois foram construir

seu ninho na Fazenda Matarina, pertencente a Cícero Nunes de Farias, de quem se fez

meeiro na produção de algodão, o ouro branco que enriquecia os proprietários de terra e

rápido remediava seus moradores. Sério, trabalhador e honesto, José conquistou a con-

fiança do patrão que o incentivou a comprar uma propriedade, pequena que fosse. Na-

quela época, os meeiros de algodão formavam uma sementeira de futuros proprietários

rurais e produtores daquele valioso bem de exportação que tanta riqueza trouxe para o

semi-árido nordestino.

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Depois de amealhar algumas economias nas terras paraibanas da Matarina, o

intrépido José Jorge comprou o sítio Santa Luzia, nas águas do Moxotó, para onde se

mudou com a família. Valente diante dos desafios da vida, dotado de grande tenacidade

e agora lavrando terras próprias, com os lucros de cada safra, aos poucos, foi expandin-

do sua pequena propriedade. Em anos sucessivos, comprou mais quatro sítios contíguos

ao seu. Para os padrões da época, ainda era um pequeno proprietário. Mas seus 600 hec-

tares foram suficientes para tirá-lo da “dependência para a autonomia” e manter a famí-

lia num padrão de vida relativamente confortável, ajudado pela mulher, filhos e filhas,

todos habituados aos pesados labores da agricultura braçal.

Com o passar dos anos, os filhos estavam todos crescidos e a mãe (toda mãe

sofredora é sábia) percebeu que o futuro de sua prole não estava mais ali. Deus iluminou

sua mente e Santa Luzia abriu-lhe os olhos para enxergar no Sudeste a possibilidade de

um futuro melhor para todos. Verônica não hesitou em aconselhá-los a seguir outros

caminhos. De um em um, de dois em dois, de três em três, os filhos foram partindo,

deixando a pequena Santa Luzia mergulhada em silêncio e saudade. Despejados na Es-

tação da Luz, em São Paulo, solidários entre si, ajudaram-se uns aos outros, mas cada

um teve que percorrer seu itinerário de buscas e “garimpar empregos, qualificação,

rompendo um determinismo cultural e atávico do amor incondicional que o sertanejo

tem por seu torrão natal.” Mantendo a tradição de honradez e trabalho herdados dos

pais, lá se fixaram para sempre e progrediram, graças à tenacidade e à têmpera que o

patriarca, disciplinador rigoroso, havia imprimido com ferro e fogo na alma de cada um

de seus filhos migrantes.

De repente chega-me às mãos para eu prefaciar as memórias de Antônio, irmãos

e irmãs, com o título SERTÕES SEM FRONTEIRAS, que poderia também se chamar

Perseguidores de Sonhos, Almas Guerreiras, Histórias de Buscas, ou simplesmente

José e Verônica. São muitos os títulos que poderiam ser extraídos das falas dos próprios

personagens que povoam, dão vida, emoção e conteúdo a esse conjunto de folhas bran-

cas, salpicadas de dores, sofrimentos, saudades e, ao mesmo tempo, de fé, alegria, reali-

zação pessoal e felicidade. Tamanha resiliência é prova de que crianças nascidas em

ambientes adversos tornam-se adultos de almas inquebrantáveis, que tendem a superar

todos os percalços sofridos e, quando não chegam a ocupar posições de grande destaque

na vida, mesmo em anonimato humilde, tornam-se pessoas equilibradas e muito felizes.

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Estivessem vivos, José e Verônica iriam cobrir-se de lágrimas pela incontida

alegria e felicidade de verem tão bem retratada por seu filho Antônio, o Segundo — que

o primeiro morreu ainda anjinho — a epopéia e sucesso de seus filhos e filhas, mais que

migrantes da terra, migrantes de si mesmos. Sim! Largar tudo e partir para terras distan-

tes, lugares de costumes estranhos e gente desconhecida, exigia grande esforço. Migrar

de si mesmos era um ato heróico. Significava deixar o aconchego da casa paterna, o

sabor das comidas feitas em panelas de barro, as veredas por onde encurtavam os per-

cursos, as sombras onde se abrigavam do sol, as redes onde dormiam e a água da ca-

cimba cavada no leito do riacho seco e esfriada em pote de barro.

O autor, Jorge Siqueira, nasceu em 1942, numa casinha de taipa, com traseira

virada para a Serra da Matarina, lá onde a mãe e as irmãs iam bem cedinho lavar roupas

no Tanque da Ventania. A casa tinha os olhos voltados para a Serra Preta, pontilhada de

esculturas de pedras e tanques que, até hoje, guardam preguiças-gigantes fossilizadas,

encobertas pela erosão eólica milenar.

Além dos fortes depoimentos de seus irmãos e irmãs, todos dotados de almas

guerreiras, me impressiona muito a trajetória do menino Jorge. Nascido dentro de um

teatro de serras, no meio das quais a criatura “busca entrada onde não existe porta e ten-

ta saída por onde só existe entrada”, Jorge fez-se garoto alado e conseguiu sair dos pa-

redões que o aprisionavam. Estudou, ilustrou-se, aprendeu as línguas clássicas e foi con-

templar os esplendores do Velho Mundo. Mesmo voando alto, suas asas não derreteram,

porque não eram feitas de cera nem de penas, como as de Ícaro, o filho de Dédalo, per-

sonagem emblemático da mitologia grega. As asas do garoto Jorge, feitas de sonho e de

esperança, foram tecidas com o afeto da mãe e untadas com os rigores do pai. Por isso,

mantiveram-se intactas. “Mais que uma simples migração do passado”, Jorge fez mes-

mo foi “uma fantástica viagem em busca do futuro.” Depois de cursar Filosofia, estudou

quatro anos de Teologia na Suíça, graduou-se em Sociologia na Sorbonne e nunca es-

queceu seus pagos, porque ser sertanejo é um estilo de vida interior que se mantém vivo

onde quer que a pessoa esteja ou more.

O texto de Jorge, escrito em linguagem primorosa, pleno de sabedoria, é com-

plementado pelos depoimentos realistas e emocionantes de seus irmãos e irmãs. Ao or-

ganizar este livro, o autor procurou sair do lugar comum. Fugiu dos roteiros genealógi-

cos que cansam e pouco contribuem, despidos que são de elementos culturais. Mais que

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depoimentos de pessoas simples, este livro possui rico conteúdo sociológico nas entreli-

nhas das falas dos depoentes, pessoas valorosas, que migraram sem perder a essência.

Impressionado com o realismo dos depoimentos, quase mudo, algumas vezes

parei para refletir sobre a têmpera e a força moral dessa família de migrantes. Além dis-

so, ao longo das falas, uma após outra, vão renascendo pessoas antigas, atores da histó-

ria local que iam e vinham nas veredas e caminhos que cortavam em pedacinhos meu

pequeno mundo de criança. Reencontrei-me com um negro velho chamado Brasil. Pre-

to, alto, magro, filho de escravos, trabalhador incansável, deixou um pomar de fruteiras

na várzea da Barra, lugar onde morava numa casa de taipa arrumada e sempre limpa.

Para ele, natureza e vida confundiam-se. Com a demarcação das terras herdadas por

Cícero e Pedro Nunes, Brasil juntou os poucos bens que possuía e, sem reclamar ne-

nhum direito pelas benfeitorias deixadas, partiu de mãos vazias, para onde não sei...

Talvez para sua última morada, já que era pessoa muita idosa, pouco remediada e des-

provida de qualquer reserva que pudesse garantir-lhe a sobrevivência fora daquele para-

íso ecológico que construiu para viver, como se dele nunca houvesse de ser arrancado.

Além de Brasil, encontrei-me com os Ananias, os Prata, os Porfírio e os Matos, cujos

descendentes, da mesma forma que os Siqueira, mantêm a tradição de dignidade e hon-

radez dos pais e avós.

Lendo este livro, fiz trajetória de viajante e mais uma vez convenci-me que ape-

nas passamos de passagem por esses esquisitos sertões, onde a vida é breve, mas dura o

suficiente para ensinar as pessoas os caminhos da retidão, da fé e o mais profundo amor

à família e à terra.

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POSFÁCIO

Claudio Roberto dos Santos

Trineto de Filomena Antônia de Jesus (Mena) e José Feliciano dos Santos,

bisneto de José Jorge de Siqueira e Verônica Filomena de Siqueira;

neto de Maria Verônica dos Santos e José Guilherme dos Santos.

Filho de Givaldo Guilherme dos Santos e Maria Teresa da Silva Santos;

pai de Giovanna Mateus Santos, tataraneta de Mena.

Advogado e Sonhador.

Inicio esta singela contribuição vendo realizar-se, por meio da obra representada

neste livro, um antigo sonho pessoal. Desde a mais tenra idade gostava de ouvir as his-

tórias da família, suas lutas, superações e tristezas. Nunca vi essas pessoas perderem a

grande alegria de viver. Em mim, a recordação mais remota data do final da década de

80, quando então ouvia as histórias que meus avós, tios-avós e bisavós contavam. Já

naquele momento, eu guardava comigo um vivo interesse de anotar e guardar em uma

pasta algumas dessas histórias e relatos de memória.

Orgulho-me de meus antepassados porque, a despeito de eles serem pessoas nas-

cidas em berço humilde, isso não foi impedimento para serem forjados numa têmpera de

muita fé, seriedade, retidão, honestidade, solidariedade e união. São pessoas afeitas ao

trabalho, de exemplar resistência física e de cultivada educação moral, além de muito

perseverantes diante de todas as vicissitudes que se apresentaram em suas vidas, man-

tendo a fundamental virtude de jamais terem perdido o espírito alegre e festeiro que lhes

caracteriza.

Dissertar sobre a Família Siqueira, cuja história, hoje, é entrelaçada de vínculos

afetivos com várias outras famílias – e duas delas, Guilherme e Torres, me são particu-

larmente caras -, leva-me a afirmar que a dimensão desse legado afetivo me daria o di-

reito de nomeá-la, sem nenhum exagero, “Os Titãs do Sertão”. Na mitologia grega, sa-

bemos, os Titãs formavam uma família de gigantes, filhos do Céu (Uranos) e da Terra

(Gaia) e se distinguiam pelo ânimo guerreiro implacável. A comparação da família com

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essas divindades é pertinente, se aferida a magnitude dos desafios enfrentados e supera-

dos por esses gigantes no período que vai do inicio da década de 30 até o final do século

XX.

Se tivesse que falar dos meus antepassados, sintetizando sua história a um desco-

nhecido - se isso fosse possível, repito -, utilizaria como introdução a composição de

Geraldo Vandré, “Disparada”, disponibilizando o texto na sequência seguinte: “Prepa-

re o seu coração,// Pras coisas que eu vou contar,// Eu venho lá do sertão,// Eu venho

lá do sertão,// Eu venho lá do sertão,// E posso não lhe agradar...”. Em seguida, eu

faria uso da composição “Asa Branca”, de H. Teixeira e Luiz Gonzaga, e, por fim, lan-

çaria mão dos versos da música “A Triste Partida”, de Patativa do Assaré, magistral-

mente interpretada, também, por Luiz Gonzaga. O conjunto dessas composições traduz

com maestria as vicissitudes e os sofrimentos do êxodo nordestino para outras regiões.

Com a expansão da industrialização do País, no final da década de 1950, a migração

nordestina para a Região Sudeste, em especial ao Estado de São Paulo, tornou-a uma

terra de oportunidades para se fugir do flagelo da seca. O rádio era, na época, o meio de

comunicação mais difundido entre os brasileiros. Ele muito colaborou para a fama da

capital paulistana, devido ao grande sucesso da música “São Paulo da Garoa”, interpre-

tada pela dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho. Alguns imigrantes não se adaptavam

à vida urbana e ao trabalho nas indústrias; migravam para as plantações de café, na regi-

ão Noroeste do Estado do Paraná. No entanto, o clima frio e as grandes geadas que asso-

laram as colheitas no inicio dos anos 60 e a queda na cotação da saca de café tornaram

aquela região pouco atrativa à migração nordestina.

A relevância deste livro está no levantamento das histórias familiares, de difícil e

complicada elaboração, mas de grande satisfação quando, finalmente, começam a apa-

recer os primeiros resultados. Está em andamento um trabalho visando à ordenação de

nomes, o salvamento de dados contidos em velhos manuscritos, em fotos amareladas

pelo tempo, em documentos oficiais ligados à família e, principalmente, a preservação

das informações orais. É, portanto, a reconstrução de um passado destinada à identifica-

ção e preservação dos troncos familiares.

Afinal, como seres humanos pensantes não temos como prescindir de nossas me-

mórias e de nossos sonhos. Muitas vezes, ignorar fatos de nosso passado e de nossas

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origens pode nos trazer certas inquietações. O homem sábio é aquele que aprende com

as experiências de seus semelhantes, para que possa reproduzir as que tiveram êxito,

evitando incidir nos mesmos erros e equívocos do passado.

Nesse diapasão, o grande valor desta obra é demonstrar como atitudes que toma-

mos em nossas vidas e na vida de nossos filhos reverberam, no tempo e no espaço, co-

mo uma pedra atirada na água, cujo reflexo da onda se propaga muito além do ponto

onde ela caiu. Um desses exemplos foi a atitude do casal José e Verônica Siqueira em

contratar a professora Zefinha Araújo para alfabetizar seus filhos e filhas, numa época

em que mulher não tinha quase nenhum direito. Isso é verdade, na medida em que na

mentalidade da época era desnecessária a alfabetização das mulheres, vez que eram cri-

adas para casar, ter filhos e cuidar da casa. Pela atitude à frente de seu tempo, ficam

consignadas, aqui, nossas homenagens a esse casal, pois, graças a essa atitude - como o

reflexo da pedra jogada na água -, essa valorização pela educação refletiu em seus fi-

lhos. Temos aqui o bom exemplo do autor desta obra, que conseguiu ir muito além do

impensável, considerando sua origem. E se tornou inspiração e referência na educação e

nos estudos para toda a família, influenciando exemplarmente na mentalidade dos netos,

bisnetos e trinetos de Zé Jorge e Verônica.

Esta obra apresenta também uma linda e verdadeira história de amor, cujos prota-

gonistas foram José Batista Torres (Zeca) e Florisa Verônica Tôrres (Flora). Além de

terem sido os facilitadores da diáspora, exerceram um papel preponderante, ora como

suporte, ora como auxilio indispensável nos tempos da migração da família para São

Paulo. Pela linda história de amor e pela generosidade deste casal, já falecido, ficam

também registradas aqui nossas eternas homenagens.

A lição que a história da família nos deixa é que, assim como os acertos, os erros

também se repetem. Lembrar e apontar esses fatos faz com que o objetivo desse apon-

tamento seja, sobretudo, didático de tal modo que os erros não se repitam. Jamais para

julgar quem quer que seja, como a censura que José Jorge fez ao casamento de Flora e

Zeca. A memória familiar mostra, pois, como essa atitude se refletiu de maneira mar-

cante quando do enlace da filha Irene Batista com seu primo José Guilherme dos Santos

Filho. E, novamente, terá seu reflexo na filha desse casal. Patrícia dos Santos casaria,

muitos anos depois, em circunstâncias semelhantes. Que tais reverberações sirvam de

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exemplo e de reflexão para que esse ciclo de desilusão seja definitivamente interrompi-

do e não atinja a quarta geração. Ressalto que, nos dias de hoje, os valores da sociedade,

assim como os valores familiares, pessoais, religiosos e as necessidades pessoais, trans-

formaram-se radicalmente em relação àqueles da época em que a Família Siqueira vi-

venciou. Por isso mesmo, esta obra tem sua relevância e seu valor histórico.

Falar da Família Siqueira é evocar várias lembranças que não posso deixar de

mencionar. A casa da Matarina, na fazenda de Cícero Nunes; a Fazenda Santa Luzia e,

nela, o Sítio Riacho Queimado; a Serra do Jabitacá, o queijo de coalho, a pamonha e o

café torrado com rapadura. Inúmeras outras coisas, como pescar lambari com alfinete de

costura para vender na feira, dia de sábado, em Sertânia; os cachimbos abastecidos com

fumo de corda, alçapão para caçar nhambu, ave de arribaçã, preá, calango, bodoque

feito de sipaúba,1 plantio e colheita do algodão e milho; roça de feijão de corda, colher

folhas na época da seca para alimentar o gado leiteiro; rapadura, xerém de milho, fruta

de palma, fruta-do-conde, manga, umbu, canto do inhambu; engordar tatu dentro um

tambor e comer buchada de bode; caçadas de raposa, feitas por Manoel e caçadas de

tatu, do José Barbeiro; forró pé-de-serra e colocar fogo no roçado; o açude do Estado, os

barreiros, as cacimbas, as cisternas, respingar tiro de cartucheira no companheiro de

caçada, por engano; as piadas e causos de Manoel, o rádio de pilha de Zé Jorge presen-

teado por Zeca; a rabeca de José Guilherme, pai; as colchas de retalhos, as festas juni-

nas, os carrinhos feitos de pedaços de pau, as bonecas feitas de palha de milho, as casas

de telhas sem forro, as cortinas de tecido separando os cômodos, ao invés de portas in-

ternas; as cadeiras de balanço na varanda, o vento frio das noites juninas do sertão, as

caçadas de estilingue, o tanger do gado, o pastorear das cabras e carneiros; a paisagem

seca, a miséria absoluta do povoado de Pernambuquinho contrastando com a esperança

e a alegria de viver dos sertanejos; viajar de pau-de-arara, de Pernambuco a São Paulo,

em 17 dias; o flagelo do alto índice de mortalidade infantil, a memória da perda de vá-

rios filhos na infância; residir em um barraco, na chegada a São Paulo, na Vila Carioca2;

garoa diária, fina e gelada, de São Paulo; ruas de barro, sem água encanada; casas abas-

1 Instrumento de caça indígena, que consiste em um arco de madeira, usado não para

atirar flechas, e sim seixos ou esferas de barro cozido.

2 No bairro do Ipiranga, é a região de várzea dos córregos Moinho Velho e Mooca, ambos aflu-

entes do Rio Tamanduateí.

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tecidas por poços caseiros, furados nos quintais das casas; os primeiros lotes da Vila

Ema, de Lençóis Paulista, de Sapopemba e do Parque Bristol. O vocabulário da época:

“gota serena”; “cabra da peste”; “não sou cabrito para comer mato(verdura)”; “tá cá

bixiga”; tô aperreado”; “ fulano é muito arengueiro”... Esta compilação assegura que a

memória remota da Família Siqueira não estará mais dispersa nas lápides tumulares, em

igrejas, cartórios e cemitérios; nem a memória oral poderá mais sofrer modificações

com o decorrer do tempo, algo que seria visto até mesmo como natural, pelo distancia-

mento dos fatos. Esta obra tem a finalidade de resgatar tais memórias, algumas ressur-

gidas nas entrevistas, outras ordenadas no decorrer do tempo, outras tantas concatenadas

até mesmo no simples manuseio de velhas fotografias. Com certeza elas passam a pul-

sar nas veias das recordações, fazendo lembrar os dias idos e vividos de antepassados,

formadores dos seus troncos familiares, que, em registros, não mais poderão permanecer

“mortos”, mas sim como memória viva e exemplar.

Cabe ressaltar que, atualmente, há noticias de parentes - consanguíneos ou não - e

descendentes dispersos pela Paraíba, Pernambuco, São Paulo, Paraná e Mato Grosso do

Sul. Aos antepassados, nossas eternas homenagens pelo sacrifício pessoal despendido e

pelo trabalho árduo que realizaram para que nós, os descendentes, pudéssemos, atual-

mente, colher os frutos de todo esse esforço. Não fora isso, talvez eu mesmo poderia

estar neste momento em algum lugar do sertão pernambucano carregando lata d´água na

cabeça e sofrendo as agruras da seca. Conclamo os descendentes para que não parem de

sonhar, pois esta história familiar não termina aqui. Lembro que uma das últimas frases

de meu saudoso pai foi que “a vida vale a pena ser vivida, principalmente se seguirmos

as lições de nossos antepassados, enfrentando-a com seriedade, retidão, honestidade,

solidariedade, união e muito trabalho”. Essas lições de educação, moral, fé e perseve-

rança deverão ser cultivadas, sobretudo como valores familiares, sem nunca perder de

vista a alegria de viver!!!

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PRIMEIRA PARTE

OOOOOOO

MIGRANTES DE NÓS MESMOS3

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas,

que já tem a forma do nosso corpo,

e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares.

É o tempo da travessia: e se não ousarmos fazê-la,

teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.

(Citação apocrifamente atribuída ao poeta Fernando Pessoa)

3 Antonio Jorge Siqueira – Ofereço o capítulo inicial deste livro à memória de meu pai, José Jorge,

minha mãe, Verônica e de minha esposa Edilnete; de minha irmã, Flora, e dos manos, Manoel, José e

Severino, cujas ausências significam um modo especial de estar presente e me inspiram permanentes

lembranças... A meus sobrinhos e sobrinhas, Zé Preto, Chico de Assis, Givaldo, Jacaré e Marlene, as

ternas saudades que, em mim, gostaria fossem apenas ternura.

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Residência do casal José e Verônica, na Fazenda Matarina, onde nasceram nove dos

onze filhos da Família Siqueira. A casa foi destruída pelos atuais proprietários da Ma-

tarina. (Foto do ano de 1973, pertencente ao acervo da família)

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JOSÉ E VERÔNICA...

O carro em que viajava do Recife para Sertânia, via Campina Grande, teve que

frear muito forte por conta de uma lombada mal sinalizada, na BR 412. Era a única en-

trada da cidade paraibana, denominada São João do Cariri. Nesse momento eu descobri

que o nome daquela localidade não me era estranho. E a memória de meu pai e de meu

avô me veio de modo inopinado e fulgurante. Eu sabia que aquela localidade e região

tinham a ver com histórias que nos foram contadas desde meninos. E aquilo tinha tudo

a ver com certo legado de memória em que, nela, os familiares se vêem como numa

fotografia de corpo inteiro. Mesmo que sobrevivesse como mero vestígio do passado.

No dizer de Koselleck, “Quando o historiador mergulha no passado, ultrapassando

suas próprias vivências e recordações, conduzido por perguntas, mas também por dese-

jos, esperanças e inquietudes, ele se confronta primeiramente com vestígios, que se

conservaram até hoje, e que em maior ou menor número chegaram até nós”.4 Vamos

nos deter nos personagens protagonistas dessa memória familiar.

Na localidade de Amparo – não sei se era fazenda ou um lugarejo rural - José

Jorge de Siqueira nasceu no dia oito de julho de 1898, e foi registrado no município de

São João do Cariri, sul do Estado da Paraíba. O nome desta cidade já demonstra que ela

está localizada na região do Cariri paraibano, também chamada de Cariri Velho, que,

nos dias de hoje, congrega 31 municípios no sul oriental da Paraíba. Uma região muito

característica do semiárido nordestino, onde predominam, além da caatinga sertaneja,

uma inconfundível paisagem com planícies e discretas ondulações de serras. São João

do Cariri é o berço de um dos lugares da memória de nossa família. Ao passar ali, fui

tomado de certa emoção, a emoção de quem revolve o passado, que, dizem, é uma via-

gem sem volta. Lembrando Ricoeur, aquele sentimento dos “tempos da memória” me

impactava5. Os pais de José foram João Jorge de Siqueira e Cândida Maria dos Praze-

4 Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos - Rio de

Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, p. 305.

5 “No que concerne, particularmente ao tempo da memória, o ‘outrora’ do passado rememorado inscreve-

se, doravante, no interior do ‘antes que’ do passado datado; simetricamente, o ‘mais tarde’ da espera

torna-se o ‘no momento em que’, marcando a coincidência de um acontecimento esperado com a grade

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res, que veio a falecer antes do meu avô João Jorge, e por isso eu não a conheci. Mas

cheguei a conhecer de perto o meu avô João Jorge.

Abrindo-se o mapa do Estado da Paraíba, observa-se que São João do Cariri lo-

caliza-se na microrregião do Cariri Oriental, ocupando uma área de 702 km2, na conflu-

ência da BR 412 e das PB 148 e 216. Além de São João do Cariri, outras cidades na

região se destacam: Sumé, Monteiro, Serra Branca, Taperoá e Cabaceiras, que, juntas,

perfazem uma população de 160 mil pessoas. Durante o ano, predomina a baixa ocor-

rência de chuvas na região, e a luz solar é superior a duas mil e oitocentas horas anuais.

Bota calor nisso!

A família João Jorge de Siqueira viveu de atividades agrícolas de sobrevivência,

cuja característica é de pouca fartura, vivendo-se do que os roçados produzem em anos

que se alternam entre chuvosos, medianamente invernosos e outros simplesmente secos.

Além da agricultura de subsistência, o cultivo do algodão foi marcante, já no século

XIX, bem como a predominância da pecuária bovina e caprina. Nos anos de seca, ape-

lava-se para as frentes de trabalho, geralmente patrocinadas pelos governos do Estado e

federal, em parceria com os municípios.

Foi num desses anos de seca que o garoto José Jorge, com 12 anos de idade, na

busca de emprego temporário, foi parar em uma dessas frentes de trabalho, no Estado do

Rio Grande do Norte, na cidade de Equador, juntamente com dois outros irmãos, Pedro

das datas por vir”. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento – Campinas, SP: Editora da

UNICAMP, 2007. p. 164.

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e Terto, além de outros rapazes de sua idade e conterrâneos do Cariri paraibano, con-

forme relata um dos amigos de juventude, Severino Anastácio.

A família João Jorge de Siqueira, no final do século XIX, vai fixar residência no

distrito da Prata, que, juntamente com outros distritos daquela época, como Boi Velho,

São Tomé, São João do Tigre, Camalaú e São Sebastião do Umbuzeiro, se integrava no

município agora mais importante da região, Alagoa do Monteiro. Hoje, esses distritos se

emanciparam e, com o passar do tempo, se tornaram cidades independentes e progres-

sistas do Cariri paraibano.

Na Prata, José Jorge travou conhecimento com a família José Feliciano e foi aí

que ele conheceu Verônica, filha mais nova de José Feliciano e de sua esposa, Filomena

de Jesus. Verônica era a filha caçula da família José Feliciano, de doze filhos, sendo

quatro mulheres e oito homens. Além de Verônica, existiam: Maria Paulino, a mais ve-

lha, que morava na localidade de São Francisco; Júlia, que morou no Caxingó, e Josefi-

na, que chegou a morar no Mugiqui e, depois, na vila da Prata. Os homens, sem ordem

de nascimento, foram: Feliciano, Manoel, Umbelino, Antônio, Luís, Marcelino, Joa-

quim e Moisés.

Quando José e Verônica constituíram família, a convivência dos filhos e filhas

com os avós maternos e paternos ficou praticamente reduzida ao avô paterno João Jorge

– chamado por nós de “Tí João” - e à avó materna, Filomena de Jesus – a quem sim-

plesmente chamávamos de “Mena” -, posto que ambos terminariam os seus dias viven-

do em nossa casa, na Santa Luzia, em Sertânia. Apenas os irmãos mais velhos, nascidos

na Paraíba, em Matarina, tiveram uma convivência mais aproximada com o avô mater-

no, chamado por meus irmãos de “Padim Veio”, e a avó paterna, “Tia Candinha”. Inte-

ressante como os netos, em nossa família, subvertem a terminologia da árvore genealó-

gica, passando a denominar os avós, ora como “tios”, como aconteceu com nossos avós

paternos, ora como “padrinho”, no caso de nosso avô materno.

Os atalhos da lembrança...

Saindo de São João do Cariri na direção de Monteiro, naquele dia alcancei logo

a seguir as cidades de Serra Branca e Sumé. Já antes mesmo de Sumé, o Cariri muda a

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paisagem. Os imensos descampados que se perdem do alcance da vista são substituídos

por indícios da Borborema, que salpica a paisagem com lindas formas geométricas de

pedras, umas atrás das outras. A localidade de Sumé, por exemplo, se esconde por trás

de uma grande montanha de serrotes. E, depois dela, a flora transmuda-se e passa-se a

viajar numa planície cheia de baixios muito aptos para a pecuária e para a agricultura.

Decidi adiar minha chegada em Sertânia para o dia seguinte e seguir até à cidade

de Prata, onde meus pais viveram e eu mesmo havia nascido, juntamente com a maior

parte dos meus irmãos. Teria que entrevistar umas velhas primas para cruzar nossas

lembranças e recordações. Estava ansioso porque ali estariam não apenas as raízes de

uma memória familiar, mas, especialmente, a memória de minha família. No meio de

uma longa reta no asfalto da BR 412, uma placa sinaliza a estrada asfaltada para onde

eu me dirigia buscando revisitar os lugares da memória. Estava contente e muito feliz de

voltar aos meus lugares da memória. Queria fazer deles todos os registros fotográficos e

filmográficos possíveis. Entretanto, o registro mais importante era ver e rever os lugares

com os meus próprios olhos6. Prata é um lugar emblemático para nossa memória famili-

ar. Em sua obra magistral, Ecléa Bosi afirma a propósito da memória, que “sempre fica”

aquilo que significa. E, segundo ela, fica não do mesmo modo: às vezes quase intacto,

outras profundamente alterado7.

Chegou-me a ideia de desistir de entrar na Prata por aquele caminho de asfalto.

Afinal, ele é um atalho muito recente. Decidi seguir em frente, na direção de Monteiro e

chegar a Prata por outro caminho mais antigo. Explico-me: saindo de Monteiro, na altu-

ra do quilômetro quinze da BR 412, na direção de Campina Grande, há a entrada de

uma variante, que é a velha estrada de barro que dava acesso a Prata e às fazendas tradi-

cionais daquela redondeza, antes do novo acesso asfaltado. Eu aprendi que a memória

tem diversos caminhos e, quando se está em pleno sertão, eles surgem onde a gente me-

nos espera, como diria Guimarães Rosa.

6 De minha parte, um voluntarismo inconsequente, com certeza, pois, como nos ensinou W. Benjamin, “A

verdadeira imagem do passado perpassa veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja

irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”. Cf. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 224.

7 Cf. BOSI, E. Memória e sociedade – lembranças de velhos. p. 88 et passim.

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Meus avós nasceram, se criaram e constituíram suas famílias nas circunvizi-

nhanças da localidade de Prata, que, como os demais lugarejos da região, era naqueles

tempos, e é ainda hoje, uma povoação típica do sertão paraibano do Cariri. Persiste uma

história marcada pelos tradicionais nomes de famílias de grandes proprietários, cujas

fazendas com suas casas-grandes ainda continuam demarcando o entorno da paisagem

na região. É longa a lista dessas fazendas naquele Cariri, que vai da Prata a Monteiro e,

dentre elas, podemos citar: Riachão, Jatobá, Boa Vista dos Nunes, Firmeza, Carnaúba,

Areal, Santa Catarina, Matarina, Mugiqui, Santana, Serrote Agudo, Paraguai, Formi-

gueira, Carrapateira, Amparo, Camaleão, Olho d’Água do Cunha, São Paulo dos Dan-

tas, Mocó, Almas, Caxingó etc. E, além dessas fazendas, existe uma muito organizada,

que merece ser visitada: Fazenda Feijão, de Sizenando Rafael. Nela se destaca uma ca-

pela, com pinturas do artista plástico da região de nome Miguel Guilherme, que, além

dela, pintou os afrescos das igrejas do Sagrado Coração, de Sertânia, e de Nossa Senho-

ra das Dores, de Monteiro. Falar dessas fazendas é lembrar, inclusive, a importância das

famílias na configuração social, econômica e política da memória histórica local. Como

já informei, Prata, na época dos meus avós, era apenas um distrito de Monteiro.

A história de Monteiro e de todo o Cariri é essencialmente ligada ao gado, onde,

no século XVIII, Custódio Alves Martins e João Pereira de Melo estabeleceram um cur-

ral cuja localização evoluiria, mais tarde, para a denominação de Alagoa do Monteiro.

Esse nome está vinculado historicamente ao fazendeiro Manuel Monteiro do Nascimen-

to, proprietário da Fazenda Lagoa do Periperi, que dela desmembrou meia légua de terra

para erigir a capela em homenagem a Nossa Senhora das Dores. Isso aconteceu no iní-

cio do século XIX.8

O cenário dessas memórias, assim como de nossa recordação familiar, é, portan-

to, o sertão nordestino e paraibano, ensolarado, abrasado pelo calor dos trópicos e varri-

do pelos ventos que sopram da Borborema. Fazendeiros, almocreves, tangerinos de re-

banhos, pequenos sitiantes, arrendatários, moradores de aluguel, é entre eles que se lo-

8 Para informações mais completas sugiro os trabalhos de Pedro Nunes Filho, Guerreiro Togado: fatos

históricos de Alagoa do Monteiro, Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997, especialmente as infor-

mações contidas na p. 61. Igualmente, do autor, o livro mais recente, Cariris Velhos: passando de passa-

gem. Recife: Liber, 2008.

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calizam as famílias Siqueira e Feliciano. Foram moradores de algumas dessas fazendas

e sobreviventes do duro trabalho braçal, anos a fio.

A caminho da Matarina...

Naquele dia, eu terminei finalmente chegando à cidade da Prata, já de noitinha.

Não pelo acesso asfaltado que liga a perimetral à cidadezinha, conforme já informei.

Percorri, sim, um caminho ondulado, tortuoso, poeirento, ladeado de cercas de arame

farpado e salpicado de pequenas casas de porta e janela. Voltava a trilhar o velho cami-

nho que foi a variante dos tempos passados, ligando Monteiro com o vilarejo da Prata.

O caminho que meu pai percorreu tantas vezes em lombo de burro nas suas idas e vin-

das a Monteiro e Sumé para vender fumo nos dias de feira dessas povoações. Naquela

época, não havia automóvel, e homens e mulheres se deslocavam a cavalo. As mulheres

usavam “sião”, nomenclatura que sequer existe no Dicionário Huaiss, mas que existia

na língua do povo. Era uma sela especial que facilitava às mulheres montar e andar a

cavalo, permitindo-lhes cavalgar confortavelmente, em vez de ficarem escanchadas no

lombo do animal. Minha mãe fazia uso desse tipo de sela quando ia para Monteiro.

O sol daquele dia era escaldante. No horizonte, pouco a pouco o desenho da pai-

sagem é tomado de uma rara beleza. Serras aparecem ao longe; serrotes, mais próximos.

O caminho é ladeado de pedras polidas pelo tempo, que lhes deu formas delicadas como

se fossem esculpidas pela mão do homem. Algumas parecem que desafiam a força da

gravidade. Eu estava percorrendo com redobrada emoção um caminho que havia percor-

rido, poucos anos atrás, em companhia de um amigo da região, morador do Recife, que

eu conhecera não fazia muito tempo. Mas já se tornara uma pessoa de sólida amizade,

Pedro Nunes. Da família Nunes, em cuja fazenda – a Matarina - meu pai foi trabalhador,

na época em que Cícero Nunes, o proprietário, era vivo. Nos idos de 1997, Pedro me

havia conduzido àquelas paragens da infância de família que eu não via há mais de qua-

renta anos9. Naquele momento, eu ficara maravilhado com o reencontro dos lugares da

9 Para este tema do olhar – o olho como marca da enunciação –, consultar a brilhante contribuição de

Hartog. Cf. HARTOG, François. Le Miroir d’Hérodote: essai sur la représentation de l’autre – Paris:

Galimard, 2001., especialmente o capítulo 2: “L’oeil et l’oreille”, p. 395-459.

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lembrança. Agora, eu estava sozinho e, metro por metro, avançava nos lugares que antes

só me vinham pelas asas da lembrança. Um tipo de lembrança que alegra e faz doer.

Valendo-me de Ecléa Bosi, reportando-me a este pretérito de lembranças, cabe dizer

que “quando o sujeito os evoca, não vem o reforço, o apoio contínuo dos outros: é co-

mo se ele estivesse sonhando ou imaginando.”10

Essa viagem e esses atalhos, na verdade, me propiciariam visitar lugares especi-

ais de minhas memórias de família, onde certamente Prata era o mais importante deles.

Essas memórias se entrecruzavam com outras memórias, como a das tradicionais famí-

lias fazendeiras: Santa Cruz, Dantas, Nunes, etc. Aquela estrada sinuosa também me

proporcionava um cruzamento de memórias e uma bifurcação de recordações, como as

da Fazenda Santa Catarina, por exemplo. Nela viveram vários tios meus, filhos de José

Feliciano e Filomena, cujos nomes já enumerei. Nessa estrada da Prata, vinha, logo em

seguida, a Fazenda Matarina, da família Nunes, onde meus pais, a partir dos anos vinte

do século passado, iniciaram sua vida de casados e nos trouxeram ao mundo. Nessa

mesma estrada, antes da Fazenda Matarina, antes também da Prata, junto a um frondoso

pé de mulungu que ainda hoje existe lá, está o lugar da nossa antiga casa de taipa, marco

seminal da nossa memória familiar. Destruída que foi a velha casa, dela só restam al-

guns tijolos e bolos de barro petrificados pelo tempo. E, comigo, guardo uma fotografia

em preto e branco que foi tirada há quarenta anos atrás, nos idos dos anos setenta. Uma

verdadeira relíquia.

Como disse antes, não tinha ali ninguém com quem falar; a não ser com os fia-

pos de minhas lembranças, especialmente de meu pai, de minha mãe e de meus irmãos

mais velhos. Naquele momento fiquei ruminando com minha solidão que a memória

pode até ser um coletivo de recordações, mas ela se opera através da interioridade da

alma de cada sujeito. Contada, narrada, ela se torna a representação de um sujeito ape-

nas.11

Confesso que tergiversei nessa viagem ao íntimo da alma, experiência impar de

que fala Santo Agostinho nas suas Confissões. E esse era um desafio que me levaria à

Matarina, lugar privilegiado das recordações de minha família, repito. E recordar é mui-

10

BOSI, E., Memória e sociedade, p. 67.

11 Pergunta axial: “qual a forma predominante de memória de um dado indivíduo? O único modo correto

de sabê-lo é levar o sujeito a fazer sua autobiografia. A narração da própria vida é o testemunho mais

eloquente dos modos que a pessoa tem de lembrar”. BOSI, E., Memória e sociedade, p. 68.

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to mais do que viver, sobretudo quando se torna uma viagem para o recôndito da alma

humana.

O diálogo da memória com o presente de nossas vidas nos induz a tirar lições

que são fundamentais. Uma delas, que a História aliás nos ensina, é que ninguém revisi-

ta do mesmo modo os lugares da memória. Isso também me aconteceu naquela ocasião.

Diferentemente daquele passeio feito na companhia de Pedro, agora eu vagava na minha

solidão e duvidava que estivesse sozinho quando evocava a figura do meu pai, de minha

mãe e de meus irmãos. Principalmente, quando me vinham à memória todas as histórias

que foram contadas pelos mais velhos em torno dos lugares: da casa, do açude, do ar-

mazém de alvenaria, do terreiro, da cozinha de taipa, da Serra da Matarina, da Serra

Preta e dos Tanques da Viúva. Ou sobre as pessoas do círculo de amizade mais próxi-

mo: o negro Brasil, Antônio Terêncio, José Porfírio, Ageu, Fortunato Prata, Severino

Belo, Severino Bananeiras, Josefa Vitorina, Antônio Nicolau. Acho que o mesmo acon-

teceu com todos os demais quando foram entrevistados e deixarem falar a voz de sua

alma, reverberando suas turvas e, às vezes, vivas recordações. Havia reminiscências em

torno do que se havia experienciado na vida, em seu dia-a-dia; e também se falava dos

sonhos de infância, que se transmudariam depois em projetos de vida12

.

A Matarina é um caminho sem volta, aquele mesmo que Pedro Nunes me fez tri-

lhar um dia, por instantes. Para a família Siqueira, esse lugar se tornou uma permanente

representação do passado na narrativa de cada um de nós da família. Os atalhos das nos-

sas lembranças passam por ali. A perenidade representacional dessas memórias faria

com que a Matarina dos Nunes se transformasse ad aeternum, na posterior Santa Luzia,

dos Siqueira; na Vila Carioca, da Flora e do Zeca; na Vila Ema, do Anísio, da Enedina,

de Zé Guilherme, da Madia, do Severino, do Elias e do José Barbeiro; e, por fim, na

Paranaguá, da Flora, do Zeca, do Zé Guilherme, da Madia, de Jacaré e de Irene; no Ma-

to Grosso do Sul, do Anísio e de Madia, novamente. Lugares marcantes e sempre semi-

nais para a nossa memória. Uma vereda caleidoscópica, em permanente movimento,

com turbilhões de formas e formatos, em infinitude de espaços e eternidade de tempos,

que nos transformam a todos e cada um em fugazes e efêmeros migrantes de nós mes-

12 Koselleck, ao tratar da importância e significado dos dois conceitos axiais para a consideração do tem-

po histórico afirma que “Todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas expecta-

tivas das pessoas que atuam ou que sofrem”. KOSELLECH, R. op. cit. 2006. p. 306. [grifos meus]

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mos. Não posso, aqui, esquecer Guimarães Rosa que ao escrever Grande Sertão: Vere-

das concebeu o Sertão como miríade de lugares. Desse modo ele induzia o leitor, o

tempo todo, a trilhar atalhos, veredas e novos caminhos plenos de subjetividade. Quem

tem familiaridade com o Sertão sabe que as trilhas, os atalhos e as veredas, inopinada-

mente, podem nos oferecer grandes surpresas. E logo voltarei a falar de uma delas, que

me aconteceu naquele mesmo dia.

Moradores do alheio...

Afinal, naquela viagem, terminei chegando à cidade de Prata, à tardinha, e fui

bem recebido pelas minhas primas, que não se negaram a falar delas e de nós. Iniciamos

evocando as recordações acerca do casal José Jorge e Verônica Filomena. O ano de ca-

samento deles foi 1925 e, segundo elas, a partir dessa união matrimonial, a memória

histórica das famílias Siqueira e Feliciano gravitaria em torno das circunvizinhanças do

distrito da Prata – Matarina - e, por extensão, da cidade de Sumé e Monteiro.

Embrenhamo-nos - eu e elas - nas trilhas de nossa memória familiar. Logo que

casou, José Jorge foi morar na Fazenda Amparo, de propriedade de Franco Dantas. Nes-

se período, a região passou por relativa prosperidade, por conta da cultura do algodão,

que, por motivo da queda na produção americana, foi beneficiada pelos incentivos in-

gleses para suprir suas demandas. Parte dessa produção algodoeira era exportada para a

Inglaterra, tendo como entreposto Campina Grande. Outra parte atendia ao consumo

interno, e Recife tornou-se um polo beneficiador da fibra por intermédio de uma de suas

grandes fábricas: a Fiação e Tecidos de Pernambuco, depois conhecida por Fábrica da

Torre.13

O algodão se tornaria o “ouro branco” dos sertões nordestinos.

Nem a família de José Jorge e tampouco a de Verônica Filomena eram proprietá-

rias de terras. Em virtude disso, inicialmente, o casal teve que buscar na boa vontade de

fazendeiros a oportunidade para trabalhar, sustentar a família e viver como arrendatá-

13 Cf. Pedro Nunes Filho, Guerreiro Togado, op. cit.

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rios. Depois de mais de um ano como casados, deixam essa fazenda Amparo, do Dr.

Dantas, e empreendem uma primeira migração para as vizinhanças de Prata, ocasião em

que José Jorge passa a ser morador da Fazenda Matarina, de propriedade de Cícero Nu-

nes, casado com uma senhora a quem chamavam de dona Isabel. Meu pai sempre falou

bem de Cícero Nunes, um patrão justo e generoso. Segundo nos contava, êle o incenti-

vou muito a lutar para adquirir o seu próprio pedaço de terra, onde trabalharia para si

próprio. Meu pai segurou essa possibilidade e, ao final dos anos quarenta, já era dono de

uma nesga de terra em Pernambuco. Cícero Nunes era, portanto, um proprietário dife-

rente dos demais daquele Cariri. A aquisição em Pernambuco do Sítio Santa Luzia por

José Jorge, como veremos adiante, iniciará a sequência de uma longa trajetória de mi-

grações da família Siqueira no sentido de garimpar melhorias de vida.

No Cariri paraibano, de maneira geral, a relação entre arrendatários, moradores e

trabalhadores avulsos das fazendas sertanejas com os seus donos não era nada fácil. Na

maioria das vezes era uma convivência difícil, onde imperava a prepotência do mando

desses fazendeiros, chefes políticos e atrabiliários coronéis que se valiam da tradição

familiar para dar continuidade ao seu poderio. Meu pai nos contava, por exemplo, quão

atrabiliário era o Dr. Franco Dantas na sua relação com os seus dependentes. Felizmen-

te, nem todos os proprietários eram assim. Foi o caso do Cícero Nunes, onde José Jorge

e Verônica viveriam os primeiros anos da vida de casados. O jovem casal, no ano de

1927, passa a morar nos cômodos de uma tosca casa de taipa - o que era comum naque-

les tempos –, situada nos fundos da Fazenda Matarina, dos Nunes, próxima das vazantes

do açude da propriedade, no sopé da bela serra da Matarina recoberta de pedras, à mar-

gem da estrada que vinha de Monteiro, meio caminho entre a Santa Catarina e a vila da

Prata.

Morando na Matarina, na fazenda de Cícero Nunes, José Jorge e Verônica prati-

camente consolidaram o tamanho da família. Com efeito, na Fazenda Amparo nascia

apenas a filha mais velha da família, Maria Verônica, que acompanhou os pais na sua

mudança para Matarina. Dos onze filhos restantes, nove deles nascerão na Matarina, a

saber: Florisa, Manoel, Virgínia, José Jorge Filho, Maria da Conceição, Severino, Aní-

sio, Antônio – que veio a falecer aos dois anos – e, novamente, outro filho chamado

Antônio, que escreve estas linhas. Dois outros filhos – Elias e Valdeci – nasceriam em

Pernambuco. José Jorge, como paraibano nato, sempre demonstrou orgulho dessa sua

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paraibanidade. Tanto que, quando queria reclamar de malfeitos eventualmente pratica-

dos por um dos dois filhos pernambucanos, dizia sempre: “Você, por último, é filho do

Moxotó!”. Esse sentimento paraibano de pertença identitária se manteve durante toda a

vida e passou para todos nós da família.

Foi, portanto, ali, na Matarina, que a família Siqueira forjou as bases de sua es-

trutura familiar, construindo amizades sólidas, consolidando laços de parentesco e re-

forçando as estratégias na busca de uma autonomia patrimonial e financeira. Essa última

empreitada, como já assinalei, não teria sido possível se atingir não fora a generosidade

de Cícero Nunes, proprietário da Fazenda Matarina. Facilitou-lhe a venda do algodão,

com a qual José Jorge adquiriria uma gleba de terra no município de Alagoa de Baixo,

que depois se chamaria Sertânia, região do Moxotó pernambucano.

Os depoimentos da família que integram o presente livro, tanto da segunda,

quanto da terceira geração, estão muito marcados pela periodização, que separa, inici-

almente, a casa da Matarina (PB), daquela de Santa Luzia (PE), e, finalmente, no Sudes-

te, as cidades de São Paulo (SP), Três Lagoas (MS) e Paranaguá (PR) como destinos de

migração da família. Os dois períodos iniciais (PB + PE) são percebidos pelos familia-

res como algo do passado, ao passo que o presente é assumido como tal, nas vivências e

experiências de vida em São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul. Sobre essas periodi-

zações no trabalho da historiografia, de acordo com M. de Certeau, “inicialmente a his-

toriografia separa seu presente de um passado. Porém, repete sempre o gesto de divi-

dir”.14

Isso ressalta a importância de uma memória sedimentada como marco seminal

para o presente, passado e futuro da família.

Antes de trabalhar o marco inicial dessa periodização da memória familiar,

mormente quando a família se torna proprietária do seu quinhão, cabe ainda prospectar

as lembranças do difícil começo desses dias, na Matarina. Até porque esses dias foram

marcantes e decisivos para a memória familiar dos Siqueira tanto na Paraíba quanto em

Pernambuco, como veremos. O regime de trabalho vigente entre os moradores e o pro- 14 “Assim sendo, sua cronologia se compõe de ‘períodos’ (por exemplo, Idade Média, História Moderna,

História contemporânea) entre os quais se indica sempre a decisão de ser outro ou de não ser mais o que

havia sido até então (o Renascimento, a Revolução). Por sua vez cada tempo ‘novo’ deu lugar a um dis-

curso que considera ‘morto’ aquilo que o precedeu, recebendo um ‘passado’ já marcado pelas rupturas

anteriores”. Cf. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. – 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense Univer-

sitária, 2002, p. 15.

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prietário da Matarina - caso de José Jorge e Cícero Nunes – permitia que o agregado

arrendasse as terras para o cultivo de uma agricultura de sobrevivência e sazonal e o

criatório de algumas poucas cabeças de gado para o suprimento de leite da casa. O re-

gime de arrendamento permitia, também, que o arrendatário vendesse os cereais e, tam-

bém, o algodão, este último de muita valia na época. José Jorge e Verônica tinham a

moradia localizada nas proximidades das terras vazantes do açude da Fazenda Matarina,

o que lhes permitia plantar e colher todo tipo de verduras e hortaliças, mesmo em épo-

cas de estiagens e secas prolongadas. Isso também permitia à família comida abundante

e mesa farta, durante o ano inteiro. Não há registro de que a família tenha passado por

apuros quanto à sua alimentação e sobrevivência. Tudo o que se produzia durante o ano

servia para o sustento da família e pouca coisa sobrava para venda das colheitas ao pro-

prietário, ou nas feiras da Prata.

A vila da Prata era o lugar mais próximo da Matarina e era sempre lá onde se fa-

zia a feira semanal e se abastecia dos mantimentos necessários à casa. Mesmo em al-

guns anos de secas prolongadas, como em 1932, o sustento da família não esteve a peri-

go e, por conta disso, segundo relato dos filhos mais velhos, Verônica não precisou lan-

çar mão de alternativas radicais para o mínimo necessário à alimentação da família. De

maneira geral, no período em que viveu na Matarina, o casal José e Verônica tinha o

suficiente para a sobrevivência. Mas, como éramos pobres, a vida não seria tão fácil,

levando em consideração os magros recursos financeiros de que se dispunha para educar

os filhos, vesti-los e garantir-lhes condições dignas de saúde e sobrevivência. Nesse

período de estada na Matarina, durante uns três ou quatro anos, José Jorge teve de nego-

ciar fumo na feira da Prata, em sociedade com o seu grande amigo e compadre José

Porfírio, para garantir uma renda sobressalente. As filhas mais velhas também tentariam

o fabrico artesanal de vasilhame de barro para um comércio incipiente que acudisse a

renda familiar, o que, no entanto, não prosperou.

Esse período de vida da família15

é caracterizado por uma memória onde os de-

poimentos das pessoas expõem a experiência de dureza da vida no seu dia-a-dia, a in-

15 O depoimento das pessoas, tanto da segunda quanto da terceira geração, está muito marcado por uma

periodização que separa, inicialmente, a casa da Matarina (PB), da Santa Luzia (PE) e, finalmente, no

Sudeste, as cidades de São Paulo (SP) e Paranaguá (PR). Os dois períodos (PB + PE) são percebidos

como algo do passado, ao passo que o presente se assume como tal nas vivências e experiências de vida

em São Paulo.

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cansável luta pela sobrevivência e a tenacidade na busca de alternativas, sobretudo ali-

mentares, no sentido de garantir o sustento da família. Não se permitiam luxos no uso

de roupas, calçados, adornos, utensílios domésticos, etc. Comumente, o almoço e os

lanches eram levados por Verônica ou os filhos mais crescidos para os próprios roçados,

locais de trabalhos na agricultura. O xerém de milho, o cuscuz, o feijão de corda e a

farinha de milho eram a base alimentar. As roças de milho, feijão e algodão eram ge-

ralmente longe da casa da Matarina. Os locais revezados para o gado leiteiro e os ani-

mais de tração ficavam a uma boa distância da sede principal da Fazenda Matarina. Os

depoimentos dos familiares mais velhos falam muito da Serra Preta como um desses

sítios utilizados por José Jorge, onde cultivava aproximadamente de três a quatro qua-

dros de terra agricultável, uma paragem erma, distante e de difícil acesso. Por isso

mesmo, um local muito apropriado para caças, especialmente de mocós, bastante apre-

ciada na região, naqueles tempos. O suprimento de água para a casa era feito diariamen-

te e de maneira muito precária, fazendo-se uso de vasilhames de barro e latas de quero-

sene vazias que eram transportados na cabeça, em cima de rodilhas de pano. Essa água

para consumo da casa era buscada no açude da fazenda, a uma boa distância da casa de

moradia da família e era de boa qualidade. Quais as lembranças que dão conta das rela-

ções interpessoais no seio da família?

Nos depoimentos fica claro que esse dia-a-dia da família, na Matarina, e depois

em Santa Luzia, foi marcante para consolidar uma vida austera, onde imperava o olhar

vigilante e igualmente severo dos pais, principalmente do pai. A divisão doméstica da

família nas tarefas da casa e da agricultura era relativamente simplificada pelo que cabia

às mulheres e aos homens, às meninas e aos meninos, aos adultos e às crianças. Mas

todos nós da casa, de todas as idades, vivíamos em função de suprir a mão-de-obra ne-

cessária à lida doméstica, o cuidado com o gado e a labuta do roçado. O tamanho da

família estava em função da obrigação de o casal ter filhos e da necessidade em dispor

de braços suficientes para essas tarefas da vida doméstica. Como a agricultura sertaneja

tem épocas sazonais de colheitas, com tempo limitado para tanto, era muito comum às

mulheres realizar tarefas típicas nos roçados que, normalmente, eram reservadas aos

homens, tais como: colher milho e feijão, catar algodão, etc. Aos meninos cabia tanger o

gado para os revezamentos, levar e trazê-lo para beber e tirar o leite e ele também ajudar

na limpeza do mato para crescimento da lavoura, manejando a enxada. E, por fim, traba-

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lhar na colheita de algodão, de milho e de feijão, ajudar, de igual modo, no descaroça-

mento do milho e do feijão, realizar as tarefas pesadas da casa no preparo da alimenta-

ção: ralar milho para suprimento da farinha, do cuscuz e do xerém, todos os dias, e pro-

ver a cozinha da lenha suficiente para cozimento dos alimentos. As mulheres se encar-

regavam de preparar a comida, lavar e passar a roupa, varrer e limpar a casa, os terrei-

ros, lavar pratos e panelas, costurar, remendar peças de pano, pregar botões e cerzir ca-

sas. Também elas dividiam tarefas com os homens, dependendo da urgência e necessi-

dade, tais como: buscar água para a casa, colher e transportar os lucros dos roçados.

Tanto na Matarina, da Paraíba, quanto, futuramente, na Santa Luzia, em Per-

nambuco, a maior parte do tempo disponível da família era para uma labuta diária no

amaino da casa. Não existia tempo livre para o lúdico. A rotina de tarefas tomava todas

as horas do dia e só se parava para almoçar, jantar e dormir. E, nalguns períodos do ano,

na Matarina, deixava-se o trabalho da casa e do roçado para frequentar a escola de mes-

tre Gonçalo e de Antônia Ananias, por algumas horas e de modo muito irregular. O la-

zer para as meninas e moças era praticado a contrapelo da azáfama semanal do trabalho

e se confundia com as meras relações de vizinhança. Caçar e pescar, para os meninos e

rapazes, eram tarefas que se situavam a meio caminho do uso produtivo do tempo e de

um fugaz exercício prazeroso, associado ao tempo livre. Outras formas de ludicidades,

como jogos de bola, de cartas, ou mesmo práticas esportivas em geral não foram viven-

ciadas pelos garotos da família. Eram, aliás, muito pouco toleradas por nosso pai. Era

até mesmo difícil debutar nas artimanhas da caça, no uso e manuseio das armas. Engaio-

lar passarinhos, por exemplo, era considerado por José Jorge como o suprassumo da

vadiagem. Ele não tolerava ver pessoas com uma gaiola na mão, transportando passari-

nhos aprisionados, estrada acima e estrada a baixo. “Essa gente não tem o que fazer”,

dizia ele. Já sinalizamos que as estradas têm surpresas...

Quais representações essas lembranças pretéritas trazem na caracterização das

relações interpessoais da família? O que, aqui, se esboça como representação de um

passado, é a importância que o próprio trabalho assumia na vida das pessoas, como va-

lor propugnado pela representação máxima da autoridade familiar. Naquele momento, o

trabalho tornava a vida, no sertão, uma dureza estafante, antes mesmo de se tornar a

referência cultural por excelência, como veremos logo adiante. Nenhuma novidade nis-

so, pois que o historiador, aqui, se propõe à dura tarefa representacional, viajando ao

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passado que, como diria W. Benjamin, não se deixa facilmente perceber. Ou, como dirá

M. Certeau, “a historiografia tende a provar que o lugar onde ela se produz é capaz de

compreender o passado...”16

. No entanto, transitando nesses labirintos da memória, es-

tamos bem cônscios de que visitamos o passado de nossa família no tempo presente de

nossas vidas. Se assim é, nunca esse passado será o mesmo em sua inteireza. Mas nem

por isso deixará de ser representado. A família, agora, partia em busca de sua autonomia

nas ribeiras do Moxotó pernambucano. E, doravante, a Matarina se tornará uma referên-

cia na memória da família Siqueira...

Casal José e Verônica Siqueira em foto datada de março de 1970, na Fa-

zenda Santa Luzia -–(Sertânia) - PE

À procura de Santa Luzia...

16 “... estranho procedimento, que apresenta a morte, corte sempre repetido no discurso, e que nega a

perda, fingindo no presente o privilégio de recapitular o passado num saber. Trabalho de morte e contra a

morte”. CERTEAU, M. op. cit., p. 17

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Eu falava das surpresas com que nos deparamos quando adentramos os cami-

nhos e atalhos do sertão. Naquele dia da minha viagem à Prata, passando por Santa Ca-

tarina e Matarina, antes mesmo de entrar no meu carro, após uma rápida parada para

tirar fotos e fazer filmagens do exato lugar de nossa primeira choupana de taipa, deparei

com um jovem vaqueiro que andava cambaleante pela estrada que vinha da Prata em

direção à Matarina, no sentido contrário ao trajeto que eu estava fazendo. Vestido de

gibão de couro com os adereços de vaqueiro, embriagado de cachaça, resmungou à mi-

nha saudação dizendo que a égua de sua montaria tinha-o abandonado. Fiquei sem en-

tender nada. Afinal, era a primeira vez que eu via um vaqueiro naquela situação, a pé,

estrada afora, perguntando pelo seu cavalo de montaria. De qualquer maneira, daquele

fato inusitado não consegui me esquecer durante meses e meses. Eu também estava nu-

ma estrada que me levaria a algum lugar e no qual eu identificava a memória das mi-

nhas origens familiares. Não muito diferente daquele vaqueiro, talvez, caminhando

meio a esmo e migrando pelos atalhos da lembrança para distantes lugares de uma vaga

memória. A surpresa do encontro com o vaqueiro fotografava então um instante de mi-

nha tergiversação. “Na sua forma mais elementar, escrever é construir uma frase, per-

correndo um lugar supostamente em branco, a página. Mas a atividade que re-começa

a partir de um tempo novo separado dos antigos, e que se encarrega da construção de

uma razão neste presente, não é ela a historiografia?”17

No branco da página das lem-

branças inscreve-se o novo momento da família, em Pernambuco. A Matarina parece

página virada. Apenas parece.

Em Santa Luzia de Alagoa de Baixo, o futuro da minha família se construiria

com a mesma persistência do pesado trabalho e a busca da autonomia patrimonial. Esse

fora o legado de nossa experiência de vida. Era preciso trabalhar duro para garantir um

futuro mais promissor. José Jorge e Verônica se mostraram tenazes perseguidores des-

ses sonhos de dias melhores. Toda a família Siqueira se empenhou com denodo na bus-

ca desse objetivo. Neste sentido, portanto, cabe dizer que no interior da família havia

uma classificação assumida com certa naturalidade pelos seus membros, segundo a qual

alguns membros da família eram bons trabalhadores, e outros, preguiçosos disfarçados.

E isso valia tanto para os meninos quanto para as meninas, já desde pequenos. Mas, o

que era pior é que se valorizava o caráter supostamente “diligente e laborioso” de alguns

17 CERTEAU, M. id. Ib.

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e censurava-se aquele supostamente “indolente” de outros. José Jorge, já no final da

vida, em Pernambuco, referindo-se a um dos filhos que conseguira se formar, dizia:

“fulano não deu pra nada na vida; só deu mesmo para o estudo”. Era o meu caso. Ro-

land Barthes, referindo-se ao “acontecido da história”, nos relatos da linguagem intimis-

ta, entende que os discursos das crônicas de memórias se articulam em torno de um real,

que parece ter-se perdido. No entanto, esses mesmos discursos, também, reintroduzem a

realidade que se exilou da linguagem como autênticas relíquias da memória e das recor-

dações.

Na Paraíba, seguindo à risca os conselhos do patrão fazendeiro da Matarina, José

Jorge lançou-se ao trabalho nos seus roçados de milho e de algodão com o objetivo de

amealhar um lucro que lhe garantisse a compra de uma gleba de terra no Moxotó per-

nambucano, bem próximo da divisa do Estado de Pernambuco com a Paraíba. José Jor-

ge terminou comprando uma pequena propriedade, na localidade denominada Santa

Luzia, que distava apenas seis quilômetros de Alagoa de Baixo, e viria a se chamar Ser-

tânia. Isso aconteceu no período que vai de 1936 a 1937. Terra boa para a agricultura, a

propriedade possuía grande área de baixios banhados pelas nascentes do rio Moxotó.

Próxima da divisa com a Paraíba, ela era cortada pela estrada de rodagem que ligava

Petrolândia, nas margens do São Francisco, na divisa com a Bahia, com a cidade de

Campina Grande, na Paraíba. Na margem da estrada de rodagem, que viria no futuro a

ser a BR-110, situava-se a nossa nova casa de moradia. Era uma antiga e precária casa

de taipa, muito semelhante à da Matarina.

Nesse Sítio denominado Santa Luzia, José Jorge adquire, aos três de fevereiro de

1937, a primeira parcela de terra de um senhor conhecido pelo nome “Bila”, que corres-

ponde a Sebastião Pereira Leal. Em seguida, em janeiro do ano seguinte, adquire a gleba

vizinha, de propriedade de Maximiano Frazão, conforme consta nas Escrituras Públicas

lavradas no Cartório do 2º Ofício, de Sertânia. No ano de 1942, negocia com o velho

Raimundo Traquinada, casado com Josefa, um pequeno pedaço de terra na localidade

do Riacho Queimado, nos limites da propriedade do vizinho João Felipe. Nós da família

crescemos ouvindo muitas histórias fantasiosas de que o velho Maximiano Frazão teria

enterrado no terreiro de sua casa botijas cheias de dinheiro. Igualmente, outras histórias

contavam que o marido de Josefa Traquinada, o velho Raimundo, comia com toda natu-

ralidade carne de animais mortos por picada de cobra e por diversas outras causas. No

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terreno adquirido a Bila já existia uma casa de taipa que acolheu por longos anos a nos-

sa família. Também nos foi contado a história de que, ali mesmo na porta da casa, fora

assassinado uma pessoa por desavenças amorosas. Eu mesmo cheguei a conhecer a viú-

va Josefa Traquinada e, realmente, era uma pessoa muito esquisita. Após meu pai com-

prar a gleba de terra do casal, foi dado permissão para que eles continuassem morando

na sua tosca casinha, no Riacho Queimado, até os últimos dias de sua vida, o que, de

fato, aconteceu. Todos nós da família nos divertíamos bastante com as excentricidades

da velha Josefa Traquinada, dona de um temperamento irascível e muito pouco sociável.

Com o remembramento dessas três glebas José Jorge passou a dispor de sufici-

ente terra para trabalhar a agricultura e impulsionar um criatório incipiente de gado,

cabras e ovelhas. Quase dez anos depois, adquiríamos em agosto de 1951, uma quarta

propriedade de nossa vizinhança: as terras de José Bernardo. Uma bela aquisição, pois

que nessa gleba havia água permanente e, mais que isso, era um excelente terreno de

várzeas agricultáveis. No final do ano de 1959, terminamos comprando uma última par-

cela, que seria incorporada à nossa propriedade, dando-lhe o formato atual. Tratava-se

de outro terreno vizinho às nossas terras, cujo proprietário era o senhor Francisco Félix.

Esse terreno, nos idos dos anos trinta do século passado, fora propriedade de Epami-

nondas Moraes, comerciante de Sertânia, que ganhou muito dinheiro explorando a ma-

deira de lei daquelas cercanias sertanejas para vender à Greet Western na implantação

da ferrovia que demandava o interior de Pernambuco. Praticamente fechamos a proprie-

dade, restando nela, até hoje, apenas o miolo de terras que sempre pertenceu aos Neves,

nossos vizinhos de primeira hora.18

Nunca a família Neves foi pressionada para negoci-

ar a sua gleba, verdadeiro enclave no formato de nossa propriedade. O velho “Caria”

[Zacarias], hoje, é o emblema vivo dessa vizinhança de benquerença.

O trabalho da família em Santa Luzia, agora capitaneado por José Jorge e dona

Verônica, redobrou em ritmo e intensidade. Ele, em Alagoa de Baixo, encaminhando os

18

Com o falecimento de Zé Jorge, em julho de 1972, Verônica fez o Inventário e partilha dos bens da

família, tendo doado a cada filho a sua parte. Naquela ocasião, com o remembramento dos cinco terrenos

adquiridos no transcurso que vai de 1937 a 1960, a propriedade foi cadastrada no INCRA com a área

retificada para um total de 600 hectares. Na ocasião não se verificou nenhuma contestação da parte dos

herdeiros, o que demonstra uma família unida em torno do pai e da mãe. Zé Jorge foi vitimado de um

câncer intestinal que teve efeito devastador na sua saúde, vindo a falecer menos de seis meses após o

diagnóstico conclusivo. Fez questão de morrer em casa, cercado do carinho da esposa, Verônica, e dos

filhos que se deslocaram do Sudeste para dele se despedirem.

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serviços nas propriedades recentemente adquiridas; ela, cuidando do encaminhamento

das tarefas familiares e dos serviços de sempre, nos roçados, lá na Matarina. E a memó-

ria que ficou dessa gestão substitutiva de Verônica, na Matarina, é marcada por sua im-

pecável eficiência no desempenho das novas funções. José Jorge, na sua ausência, des-

cobrira uma companheira decidida e muito eficiente. Enquanto ele cuidava dos traba-

lhadores na sua nova posse, Verônica, sozinha, durante meses, providenciava a mudan-

ça da família para o quinhão de sua plena propriedade, o que aconteceu em dezembro de

1944. A família deixava de ser dependente de patrões e fazendeiros e passava a ser dona

dos seus haveres. Migrava-se da dependência para a autonomia. Mais do que a simples

migração de um passado, foi uma fantástica viagem em busca do futuro. A família Si-

queira empreendia, portanto, uma viagem rumo à sua autossuficiência patrimonial, fa-

zendo valer o suor do seu denodado trabalho. Até que, novamente, os horizontes dessa

realização se tornassem limitados e voltassem a se ampliar, como inicialmente foi o

trajeto da Matarina para Santa Luzia e como prazerosa foi a viagem do Cariri paraibano

para o Moxotó pernambucano19

. Retornemos aos primeiros anos da chegada da família

ao Sítio Santa Luzia.

A cultura da vida em família, em Santa Luzia, seguiria os parâmetros da cultura

familiar nordestina e sertaneja daqueles tempos. Nesse aspecto, pouca coisa mudaria da

Matarina para Pernambuco. Avaliando, hoje, na distancia do tempo, os da segunda ge-

ração apontam que entre pais e filhos havia uma enorme distância afetiva. Mais ainda

em se tratando do pai, Zé Jorge, com relação aos filhos do que mesmo às filhas. No caso

dessa relação em questão, a mãe, Verônica, sempre foi mais afetiva e acessível aos fi-

lhos e filhas. Por conta disso, também, a imagem que nós, os filhos e filhas, guardaría-

mos do pai, foi indiscutivelmente marcada pela rudeza, pela severidade, pela dureza e,

não raro, por uma excessiva brutalidade no trato com os familiares, especialmente os

filhos homens. Essa é uma memória que perpassa os depoimentos de todos os filhos e

filhas, dos mais velhos aos mais jovens, e até dos netos e bisnetos que o conheceram.

Destaque para Verônica, que é vista como a grande provedora da casa. Aquela que cul-

tivava um toque afetivo na relação com os filhos, sobretudo em horas de descontração.

No romance familiar, ela distribuía afetos com generosidade e discrição sem, no entan-

19 “É o vestígio dos atos que modificam uma ordem recebida e uma visão social”. CERTEAU, M. op. cit.,

p. 81 [grifos do autor]

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to, conseguir esconder sua predileção pelo filho mais velho, Manoel. De igual modo

José Jorge também agia com a filha Florisa, ou Flora, como era chamada pelos irmãos.

Resumindo: José Jorge mandava na família. Verônica conciliava, mas também

discordava dele. José Jorge não conciliava, cedia; e quando assim agia, era a contragos-

to. José Jorge era carrancudo e cultivava carrancismo. Verônica era leve e transpirava

maternidade. José Jorge era um pai que impunha respeito, medo e timidez. Por sua vez,

Verônica não se impunha, mas conquistava confiança. Interessante é que, muito tempo

depois, o traço dessa imagem paterna de Zé Jorge em todas as falas e depoimento dos

filhos tem um reverso de admiração e de profunda tolerância da parte de todos os fami-

liares de todas as gerações. Sobretudo dos mais jovens. Sempre viram no pai, no avô e

bisavô a coerência, a retidão moral e uma intrépida dedicação à família, colocando-a

acima de tudo. Já Verônica é vista como o baluarte da família, a grande mãe, a mãe su-

ficientemente boa20

. Uma mulher decidida e pragmática. José Jorge é a representação da

lei, associada à retidão moral. A imagem de Verônica é marcante na cena e no romance

familiar. Essa memória da imagem parental é algo que passou de filho para netos e bis-

netos.

Pouco ou nada na vida mudaria para a família que, agora, morava em Pernambu-

co, salvo a satisfação de trabalhar no que era de sua propriedade e poder amealhar mais

recursos provenientes do rendimento da agricultura e da pecuária incipientes. As condi-

ções de trabalho na propriedade de Santa Luzia ficavam mais fáceis. O que mais fez

diferença com relação à Paraíba foi a tepidez da água de cacimba do Moxotó, de gosto

acentuadamente salobro. A água que se consumia em Matarina era de melhor qualidade,

comparando-se com a salinidade do rio Moxotó, em Pernambuco. Isso gerou uma difi-

culdade muito grande, inicialmente. A água, apesar de abundante, era pesada não apenas

para beber e cozinhar; mas, sobretudo, para lavagem de roupa.

Outra novidade, nesses novos tempos da autonomia patrimonial, era dispor de

mão-de-obra suficiente para os pesados serviços da lavoura, a cada ano que passava.

José Jorge passou a contratar trabalhadores, garantindo-lhes salário, alimentação, roupa

lavada e engomada. Para muitos, foi disponibilizada até mesmo moradia. A família pas-

20

“A figura materna é alvo de uma apreensão de traços espirituais, não físicos, também, como acontece

com a figura materna”. Cf. BOSI, E., Memória e sociedade. p. 428.

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sou a contar com mais de dez agregados, a quem se dava toda atenção, incluindo ali-

mentação. O trabalho da casa com esses trabalhadores mais que triplicou, implicando

comida, roupa lavada e engomada. Isso terminou sendo fonte de muitos aborrecimentos

para a família, e Verônica teve que ser dura em alguns momentos. O mesmo aconteceu

com as filhas, a quem incumbia pesadas tarefas para além daquela da família.

Da Matarina, José e Verônica trouxeram nove filhos. A filha mais velha, Maria,

no ano seguinte à chegada em Sertânia, casar-se-ia com José Guilherme, cuja família –

mãe e irmãos - nos acompanhou na vinda para Alagoa de Baixo e passou a morar em

nossa propriedade. José Guilherme terminaria sendo a pessoa de maior confiança de

meu pai e, logo após o casamento, passou a morar no lugar denominado na propriedade

como Riacho Queimado, terra essa que meu pai havia adquirido de uma senhora - Jose-

fa Traquinada -, após a sua chegada a Santa Luzia. Após mudar para Alagoa de Baixo,

veio o nascimento dos dois últimos filhos da família Siqueira: Elias, nascido em abril de

1945, e o caçula, Valdeci, em janeiro de 1947.

Entre os Siqueira aquele problema do relacionamento opaco entre os pais e os fi-

lhos e, de certa maneira, entre os próprios irmãos pode ser aquilatado pelo tabu que cer-

tos assuntos representava, no seio da família, no dia-a-dia de sua convivência, especial-

mente na relação dos pais com os filhos e entre os irmãos. É o caso dos assuntos rela-

cionados ao namoro, ao sexo e à gravidez, numa família como a nossa com tantos fi-

lhos. Dispomos de alguns relatos minudentes sobre esses assuntos, especialmente no

que concernia às moças, e que são altamente reveladores da prevalência de uma cultura

sertaneja fechada para a afetividade, para o desenvolvimento do corpo, para a sexuali-

dade, o namoro, o lúdico e os prazeres da vida em geral. Sobre esses assuntos, nem nós,

os filhos, conversávamos com nosso pai e muito menos as filhas com a mãe. Ora, leve-

se em consideração que a frequência à escola e a oportunidade de nela aprender lições

que o cotidiano da casa não repassava aos filhos era de uma tremenda precariedade,

mormente para quem morava na zona rural das municipalidades. É nesse exato momen-

to que entra na memória familiar dos Siqueira, em Santa Luzia, o diferencial da Escola

de uma professora como Zefinha Araújo.

A educação sempre faz a diferença...

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Acho que vale a pena uma imersão na memória como esta que estamos fazendo

nos tempos pretéritos das lembranças, mesmo correndo o risco de atropelar a cronologia

dos acontecimentos. É verdade, como já se assinalou, que nenhuma narrativa, nenhuma

recordação, nenhuma lembrança devolve o passado por inteiro. Como diria Ecléa Bosi,

de nossas recordações somos mera testemunha que, às vezes, não crê em seus próprios

olhos e, por isso, apela constantemente ao outro para que confirme a nossa visão.21

Nes-

sa viagem do presente ao passado, meio cambaleantes, nós apenas trilhamos atalhos,

posto que nunca seremos detentores do seguro caminho que nos leva à totalidade dos

fatos pretéritos da história. Vale lembrar, igualmente, que o tempo passado tem suas

artimanhas, como dirá M. Certeau. Para ele “o discurso se situa fora da experiência que

lhe confere crédito; ele se dissocia do tempo que passa, esquece o escoamento dos tra-

balhos e dos dias, para fornecer ‘modelos’ no quadro ‘fictício’ do tempo passado.”22

Fica a questão: seria possível já vislumbrar algumas constantes de semelhante trajetória

familiar? É a indagação que me coloco nesta altura de uma viagem no tempo, em busca

da memória identitária de nossa família sertaneja. Volto à cena daquele vaqueiro nas

veredas da Matarina, cambaleante de embriaguês, à procura de sua montaria...

Muitos meses após deparar com a situação inusitada daquele vaqueiro paraibano,

sentado diante do meu computador e tentando colocar em ordem as desordens de mi-

nhas recordações, vislumbrei melhor o que significava meu desapontamento quando do

encontro com aquela figura estranha e singular de um vaqueiro a pé cambaleando pelas

veredas do sertão à procura do seu cavalo. Como já antecipei, senti-me como o próprio

vaqueiro, perdido nos labirintos dessa vasta memória familiar, buscando entradas onde

não existem portas e tentando saídas por onde só existem entradas. A este respeito, Oc-

tavio Paz dirá que “não existem portas, e sim espelhos”. É o que me acontece agora

quando me sinto instado a dissecar algumas lembranças minhas, dos meus irmãos e dos

familiares acerca das figuras humanas marcantes de nossa vida. E esse reconhecimento

vem a propósito da Escola de Zefinha Araújo, em Santa Luzia. Através dela, meus pais

ofereceram à família o que de melhor eles nos poderiam legar, a saber, a oportunidade

da educação escolar e da instrução.

21

Cf. BOSI, E., Memória e sociedade, p. 406.

22 CERTEAU, M. op. cit. p. 95.

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Já disse que José Jorge, certamente, foi um pai que mantinha um duro relacio-

namento com os filhos, a despeito de ser bastante afável com os estranhos da casa e à

casa. Mas todos nós reconhecemos que, à sua maneira de ser, ele buscou ser um pai

exemplar para os filhos no que diz respeito à moralidade de costumes, à seriedade nos

negócios e no respeito com as pessoas. Um homem rude, às vezes bruto e turrão; mas

que sempre esteve buscando o melhor para os seus. Juntamente com minha mãe, ofere-

ceu e repartiu o que de melhor podia oferecer e legar aos filhos, a saber, o respeito aos

outros, a educação doméstica e a importância do trabalho. Decerto que isso não foi obra

do acaso. Ao contrário, insere-se no contexto de sua experiência pessoal e história de

vida, como veremos.

Logo que casou, José Jorge desenvolveu um esforço enorme para se autoalfabe-

tizar, contando, para isso, com uma pequena ajuda de um parente distante, Manoel Ana-

nias. À noite, após os pesados dias de trabalho na roça, ele lançava mão da carta de A-

B-C de Laudelino Rocha e exercitava pacientemente o desenho de cada letra, a compo-

sição das sílabas e a formação das palavras. Depois de muito esforço, terminou lendo

com relativa facilidade e possuía uma vistosa caligrafia. Lia os folhetos de cordel, de

João Mathias de Athayde, que proliferavam na época. Gostava muito de ler a Bíblia. Já

Verônica era uma mulher analfabeta e mal desenhava o seu nome. Foi uma esposa que,

durante a vida toda, buscou viver de acordo com o marido, mesmo sem demonstrar-lhe

subserviência. Na família, era ela quem pensava antes de executar as coisas. E sempre

foi ela que mais preocupação demonstrou com relação ao futuro dos filhos na família.

Como as mulheres sertanejas de sua época, viveu para se casar, ter filhos, alimentá-los,

cuidar da casa e ser fiel ao marido. Era de temperamento amável, como já disse, e tenta-

va se contrapor ao temperamento turrão e carrancudo do marido. Mas não teve o direito

de frequentar uma escola ou mesmo de se autoalfabetizar como o marido.

Nós, os filhos, tivemos escola, sim. Era de esperar que a escola nos desse um

pouco dos conteúdos educacionais que nos faltavam em casa. Nesse aspecto ela foi uma

escola importante para a educação da família. E também a professora era competente.

Apesar de muito sisuda e muito fria no relacionamento com os alunos e com as pessoas

de sua convivialidade, Zefinha Araújo foi nossa professora e nossa Mona Lisa. O nosso

irmão mais velho, Manoel, logo cedo, desistiu de frequentar a escola. Morreu analfabe-

to. E isso meu pai nunca aceitou. Foi também um mau exemplo para outro irmão, José,

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que também permaneceu semianalfabeto até falecer. Possivelmente a rudeza de José

Jorge cobrando-lhes aproveitamento na escola tenha sido responsável por tal decisão

dos filhos mais velhos da família. A escola de Zefinha Araújo foi um marco na nossa

memória familiar.

Em Santa Luzia, ao final dos anos quarenta e início dos cinquenta, José Jorge

decide contratar uma professora leiga, de Alagoa de Baixo, Josefa Araújo, também co-

nhecida como Zefinha. Era uma mulher severa e reservada no trato. Raramente ria. Mas

era dotada de muita competência e de muita disciplina no exercício da docência. A fa-

mília Siqueira custeou a escola da Santa Luzia às suas próprias expensas. Dona Zefinha

vinha de Sertânia para Santa Luzia, toda segunda-feira, a pé, vencendo a distância de

seis quilômetros que separavam o sítio, da cidade de Sertânia. Ficava hospedada na nos-

sa casa, onde dormia e se alimentava. Para ela reservava-se o melhor quarto, a melhor

comida e o melhor tratamento. Um relacionamento diferenciadamente respeitoso. A

escola era frequentada pelos familiares e dependentes de José Jorge bem como pelas

demais crianças da redondeza, sem custo algum para quem quer que fosse. Nos últimos

anos de existência dessa escola, houve a colaboração pecuniária da Paróquia de Sertâ-

nia, mediante os bons ofícios do seu vigário, monsenhor Urbano de Carvalho. Só isso.

Durante mais de dez anos ela funcionou graças à perseverança e determinação do velho

José Jorge. Nisso aí ele foi um pai que fez a diferença, é bom que se diga.

A escola de Zefinha Araújo também fez a diferença nas nossas vidas porque, a-

pesar de não ter o apoio oficial, enquanto escola particular, foi uma autêntica promotora

de instrução e civilidade. Na escola de dona Zefinha, estudou a maioria dos filhos me-

nores da nossa família: Conceição, Severino, Anísio e Antônio. Dela não participaram

os filhos mais velhos: Maria, Madia, José, Virgínia, Florisa e Manoel. É que alguns de-

les já tinham sido escolarizados na Paraíba, na escola do mestre Gonçalo e de Antônia

Ananias. Os dois mais novos nascidos em Pernambuco, Elias e Valdeci, frequentaram a

escola pública em Sertânia, quando não mais existia a escola de Zefinha Araújo, na San-

ta Luzia. Os conteúdos de conhecimentos que eram repassados por ela eram, antes de

tudo, de natureza religiosa e de conhecimentos gerais: pontos doutrinários do catecismo

católico, bem como noções de higiene pessoal. Anualmente, os alunos eram preparados

para a primeira comunhão, que geralmente acontecia no dia 8 de dezembro, festa de

Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade. Esse era um grande acontecimento

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em nossas vidas de meninos e meninas. Em seguida, vinham rudimentos de matemática

– as quatro operações –, de gramática e de leitura. A professora fazia o “ditado” para

treinamento da escrita e também avaliava os conhecimentos por meio dos famigerados

“argumentos”, ocasião em que se fazia uso da palmatória para castigo de quem não a-

certasse as perguntas que eram feitas pela professora. A disciplina era mantida a ferro e

fogo e, além da palmatória, existia também uma régua de madeira, que era comumente

utilizada na repreensão e no castigo físico aos alunos recalcitrantes e malcomportados.

Frequentava a escola de dona Zefinha a maioria das crianças das redondezas da Santa

Luzia, algo em torno de 30 a quarenta alunos. O dia 7 de setembro era o grande dia de

festa para a escola. Havia declamação de poesias e principalmente, o inesquecível “que-

bra-panela”. Nele, a garotada e os adultos desfilavam, um a um, com o rosto vendado,

terreiro afora, em frente à escola, tentando quebrar com uma paulada a panela toda en-

feitada de papéis crepom e recheada de confeitos. Ela ficava dependurada numa corda

que ia de um lado a outro do terreiro. Era um grande dia de alegria para a meninada.

Isso quebrava a rotina de trabalho no roçado e do tanger do gado para os pastos e para a

bebida. Como em toda escola, havia alguns alunos que apresentavam muita dificuldade

no aprendizado e outros nem tanto. De maneira geral, era um momento muito importan-

te para a meninada brincar, na hora do recreio e, até mesmo exercitar muitas trelas ca-

racterísticas da idade de criança.

José Jorge estimulou muito os filhos a se aperfeiçoarem na educação escolar.

Sempre foi um entusiasta da instrução e, particularmente, da boa leitura e da caligrafia

caprichadas. Na instrução via a chave do futuro de todos e de cada um dos filhos. Repe-

tia-nos que um homem analfabeto equivalia a um homem cego. Dotado de aguda sensi-

bilidade e grande interesse para com a educação dos filhos, essa grandeza de sentimento

contrastava, como já assinalamos, com a rigidez e aspereza no seu modo de se relacio-

nar conosco, especialmente quando se tratava da aplicação de castigos. José Jorge tinha

um método demasiadamente autoritário e severo de castigar os filhos e não necessitava

de muitas trelas para aplicar-lhes desmedidas surras, pancadarias, bolos de palmatória

etc. Numa dessas surras em um dos meus irmãos, que me ficou na memória pela bruta-

lidade com que o castigava, presenciei minha mãe se intrometer e gritar com ele, dizen-

do que castigar era uma coisa e matar o filho era outra bem diferente. E tenho a impres-

são que, a despeito de tudo, meu pai ouvia muito minha mãe. Até à idade de cinco anos,

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não vi meu pai bater em nenhum de nós. Pelo contrário, tinha gestos de afetividade com

os pequenos, colocando-os no colo, mordiscando-lhes a orelha, prendendo-os com o

dedão do pé, apertando-lhes o peito, como se estivesse a tocar uma concertina. Mas, a

partir de sete anos e até a idade adulta, meninos e meninas – sobretudo eles –, todos

sofriam com a sua brutalidade excessiva no ato de castigar e corrigir os filhos. Tinha o

hábito de nos avisar três vezes, antes de castigar. Eram as surras anunciadas. Todos os

filhos se referem à memória familiar onde, por conta disso, faltava uma boa e saudável

relação entre o pai e os filhos. José Jorge, sobretudo, não conversava amavelmente com

os filhos. Lamentava-se mais que conversava. Havia conselhos para a vida, mas rispidez

no trato. Não se tinha a orientação para certas fazes da vida como sexualidade adoles-

cente e adulta, desenvolvimento do corpo, vida afetiva, namoro, casamento etc. Claro

que estas são características de uma cultura familiar sertaneja, e não há como ignorar

que na nossa família também isso não seria diferente. Isso, no entanto, tinha um impacto

marcante mais para as moças do que para os rapazes. O sangramento das primeiras re-

gras, por exemplo, era uma verdadeira tragédia para o despreparo das meninas com re-

lação à sua condição feminina. Mais ainda com relação a cortejar e namorar rapazes.

Imperava o moralismo e a dissimulação do fingimento ou até mesmo da hipocrisia na

medida em que todos, rapazes e moças, terminariam namorando, casando e procriando

filhos. E muitos, por sinal. Que o digam Zé Jorge e a própria dona Verônica. Esse fe-

chamento ao diálogo e à relação afetiva no universo familiar da família Siqueira deixou

as suas sequelas em cada um dos irmãos. Todos, uma vez casados, com raras exceções,

buscaram no relacionamento com suas esposas e os seus filhos agir de modo diferente

da educação que tiveram na infância e que receberam em casa. Apesar das críticas, tem-

se muito respeito e carinho com a figura do nosso pai e da nossa mãe.

Os rudimentos de uma educação elementar recebida na escola de Dona Zefinha

produziriam frutos. Era de se esperar que alguns de nós cultivássemos o gosto e o inte-

resse pelos estudos. Foi o meu caso, o único na família, que decidiu buscar os caminhos

do aprimoramento da instrução, saindo da trilha ocupacional da roça, buscando palmi-

lhar novos caminhos, desenvolvendo novas experiências e novas expectativas de futuro.

Aos doze anos de idade, eu decidi continuar meus estudos no Seminário Diocesano de

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Pesqueira, aí entrando no dia 7 de março de 195423

. Pretendia, naqueles tempos, orde-

nar-me padre católico. Zé Jorge e Verônica acederam ao desejo do garoto que tinha me-

nos de doze anos de idade. Fizeram o que estava ao seu alcance para garantir-me o en-

xoval, já que o ensino no seminário era gratuito. E o fizeram com certa dificuldade, mas

com enorme felicidade e satisfação por ver o filho trilhar um caminho diferente daquele

da roça. Nenhum outro irmão, na minha idade, se aventuraria a isso, nem a sair da Santa

Luzia, muito menos para estudar.

Casa sede de propriedade da Família Jorge Siqueira, em Santa Luzia (Sertânia – PE), que

continua em mãos da família até hoje. (Foto da década de sessenta, pertencente ao acervo da família)

23Antônio T. Montenegro fez um levantamento exaustivo da história de vida e memórias do bispo de

Cratéus, Dom Antônio Fragoso, filho de agricultores pobres da Paraíba, e que viu no seminário a oportu-

nidade de uma educação aprimorada, “como muitas crianças e adolescentes nordestinos”, conforme res-

salta o pesquisador. Cf. MONTENEGRO, Antonio Torres. “Arquiteto da memória: nas trilhas dos sertões

de Crateús”, in GOMES, Angela de Castro – Escrita de Si, Escrita da História, Rio de Janeiro: Editora da

FGV, 2004.

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Do que o amor não é capaz?...

Pensando naquele vaqueiro paraibano entendo que, montado ou a pé, ele conti-

nuará trilhando as veredas da caatinga, sempre à procura e buscando incansavelmente

sua prenda perdida. Até porque, uma rês presa no curral não necessita do vaqueiro. O

boi perdido define o essencial do ser vaqueiro. Koselleck tem razão quando fala da im-

portância do futuro onde residem as substancialidades de nossas utopias, saturadas de

nossas experiências do presente. “Navegar é preciso”... A vida em Santa Luzia tinha o

seu ritmo de normalidade naqueles anos iniciais de década de cinquenta. Mas agora já

havia nuvens carregadas no céu da família. Já se havia passado mais de dez anos de

nossa migração da Paraíba para Pernambuco. As filhas e os filhos mais velhos agora

eram adultos bem vividos. Como Madia, que já havia casado, os demais rapazes e mo-

ças da família em idade adulta faziam a corte buscando encontrar futuras esposas e ma-

ridos. Já não eram implumes para alçar voo do ninho referencial da família onde impe-

rava a vontade absoluta de Zé Jorge em busca de outras paragens para expandir a famí-

lia. A família Siqueira passa pelo seu primeiro sobressalto.

São cinco horas da tarde de um dia de muito calor, ali em Santa Luzia. José Jor-

ge tinha saído lá pelas três horas da tarde para ver umas ovelhas no cercado próximo à

casa que foi da velha Josefa Traquinada. Manoel tinha ido cortar uns pés de aveloz que

estavam sombreando o caminho que levava o gado para os pastos do roçado, lá na serra

do fio de telégrafo, próximo do Riacho Queimado. Anísio e Severino tinham saído de-

pois do almoço para catar algodão na várzea próxima ao Juazeiro do Carro. José tinha

ido para Monteiro tirar uns documentos para a sua carteira de identidade. Verônica, co-

mo fazia todos os dias, cuidava de tanger as galinhas para o poleiro e separar os pintos

mais novos dos mais velhos para que não dormissem ao relento. Conceição engomava

umas calças brancas do trabalhador que tinha o nome de Luís Pituta. Elias, Valdeci e eu

providenciávamos palma para o chiqueiro dos porcos, que têm o hábito de comer muito,

inclusive de noite. Virgínia trabalhava em Sertânia, na loja de tecidos do irmão de Ene-

dina, Severino Caminhão. A casa estava praticamente vazia.

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Na nossa casa, Duda, irmão de Zé Guilherme e de Edite, vai até à janela da sala

da frente, que era a única que estava fechada naquelas horas. Tira-lhe a taramela, escan-

cara e se debruça para fora, olhando em direção ao poente, de onde se avistava a roda-

gem de barro por onde escoava o trânsito que vinha de Sertânia e seguia em direção a

Monteiro, na Paraíba. Só ele sabe de um segredo, àquela altura dos acontecimentos. E

ele sabe que alguma coisa ligada àquele segredo está prestes a acontecer. Depois de

alguns minutos, ele percebe o barulho de um carro de passeio que vem de Sertânia, des-

ce pela rodagem, aproxima-se da Santa Luzia e - detalhe curioso! - o carro acende e

apaga os faróis várias vezes. É o pleno por-do-sol e as luzes daqueles faróis se confun-

dem com os últimos raios no zênite sertanejo daquela tarde. Duda tinha certeza de que

aquilo era a senha para o segredo que estava prestes a deixar de ser segredo. E não deu

outra. O carro se aproxima da casa, diminui a velocidade, depois acelera e, de repente,

some no silêncio das paragens do lusco-fusco da noite cadente do Moxotó pernambuca-

no. Duda vai até o armazém, vizinho à casa, pega uma maleta, envolve-a num saco de

algodão vazio e sai disfarçado em direção à estrada de rodagem. Zeca estava sinalizando

para Flora que viera buscá-la. Logo em seguida, o carro retorna, para e, em meio minu-

to, alguém entra nele, que dá partida em direção de Sertânia, retornando. Alguns minu-

tos depois, Verônica procura falar com Flora...

- “Ô ‘Fuloriza’, vem esquentar o xerém pra botar o jantar na mesa!”

Flora, obviamente, não responde porque não está em casa. De novo, Verônica

insiste:

- “Onde é que está ‘Fulorisa’ que demora tanto?”

Volta a insistir:

- “Vocês viram a Fuloriza?”

Ninguém viu, ninguém sabe a não ser Duda, irmão de Edite, mas Floriza fugiu.

Flora, como nós a chamávamos na intimidade, fugiu pra casar com Zéca. Zeca “roubou”

Flora e foi morar com ela em São Paulo. Há uma explicação para esse roubo ousado, me

parece. Pedida em casamento por um pretendente conhecido da família, José Batista

Torres, havia alguns anos, Zé Jorge negou-se entregar a sua filha para Zeca, como nós o

chamávamos. E assim o fez porque simplesmente não gostava do pretendente, antigo

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trabalhador braçal da Santa Luzia, desde o início dos anos ciquenta. Zeca não desistiu.

Logo depois de ser preterido, viajou para São Paulo e em seguida conseguiu se empre-

gar. Passados dois anos, tratou de dar o bote naquela que era o seu grande amor e a filha

predileta do velho Zé Jorge...

Eram os primeiros anos da década de cinquenta. O mundo veio abaixo na Santa

Luzia daquela noite... Naquele momento, eu deveria ter uns dez anos de idade. Mas,

lembro bem que foi a primeira vez que vi o meu pai ser “desacatado” em suas vontades.

E não foi uma coisa fácil para o seu modo de ser que, já dissemos, era turrão e inflexí-

vel. No entanto, o que mais lhe doía naquele acontecimento, era porque se tratava da

Flora, a filha mais querida dele. Não precisava muita perspicácia de nossa parte para

perceber que ele tinha por ela uma predileção especial, como dona Verônica tinha a

predileção dela pelo irmão Manoel. Fazer o quê? Parece que esse “romance familiar”

acontece em todas as famílias... O fato é que nós todos, os irmãos, ficamos desorienta-

dos pelo acontecido.

Nas horas que se seguiram ao quiproquó, meu pai tratou de convencer o vigário

de Sertânia, seu conhecido e amigo monsenhor Urbano Carvalho, a não celebrar o ca-

samento. Era o pedido de um pai ofendido. O vigário fingiu que ouviu, mas terminou

informando que o bispo Dom Adelmo Machado, naquele momento, estava na desobriga

da paróquia e, na qualidade de bispo da diocese, tinha jurisdição para administrar qual-

quer sacramento, inclusive o matrimônio, onde e quando quisesse. Zé Jorge deu meia

volta e, contra a sua vontade, Flora casaria no dia seguinte, na cidade de Arcoverde. Zé

Jorge perdeu a parada para o nosso Zeca, que mandara correr os proclamas em outra

jurisdição paroquial. Verônica e Zé Jorge resolveram esquecer que tiveram uma filha

chamada Floriza, e que agora assinava o nome Batista Torres, em vez de Verônica de

Siqueira. Mas, esquecer até quando? É a pergunta que não cala...

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Primeira foto do casal Florisa (Flora) e José Batista (Zeca), após sua chegada à capital

paulista

No transcurso daqueles anos, vivia-se um período marcado por longas e prolon-

gadas estiagens nos sertões do Nordeste. Nessa década, em especial, tivemos três anos

praticamente ininterruptos de estiagem: 1951, 1952 e 1953. A família Siqueira, no en-

tanto, já havia consolidado o incremento da propriedade de Santa Luzia, adquirindo por

compra algumas terras vizinhas e fazendo benfeitorias em novas áreas agricultáveis.

Garantia-se, apesar das secas, a pastagem para o gado de leite e o rebanho de ovelhas. A

base da produção anual ainda era palma, milho, feijão e o cultivo do algodão. Os cereais

colhidos no meio do ano eram envazados em grandes tonéis de zinco, guardados no

armazém e, desse modo, não apenas garantiam o consumo doméstico como eram co-

mercializados nos bons momentos em que tinham melhor valor de mercado. O algodão,

por seu turno, tinha que ser ensacado e vendido de imediato para não perder peso. E era

a cultura com que ele saldava suas dívidas que se acumulavam no decorrer do ano, es-

pecialmente nos meses de seca. Não foram muito raras as ocasiões em que José Jorge

vendeu a safra de algodão, utilizando todo o lucro para saldar dívidas contraídas, sem

lhe sobrar absolutamente nada. A fibra do algodão beneficiado era vendida aos grandes

compradores da praça algodoeira de Sertânia, que eram: Boxwel, Feliciano Morais,

Francisco Pinheiro, Raul Guimarães, Anderson Clayton e SANBRA, além de outros

compradores menores da terra.

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A memória da família é unânime em afirmar que aquele momento fora particu-

larmente um dos mais difíceis para a família, a despeito de ela já poder ser classificada

como “remediada”, em termos de bens, situação bem diferente daquela da Matarina.

Mas havia novas dificuldades porque além das estiagens prolongadas, o algodão agora

sofria com o assédio das pragas e a fibra da variedade de algodão “mocó” começava a

declinar em sua aceitação de mercado. Não que a família chegasse a passar fome ou

necessidades alimentares. É que sempre se teve o leite, os derivados do milho e o feijão

de corda para garantia da mesa, além de uma parca mistura de carne, ovos e derivados

do leite. Mas era um período difícil no sentido de se garantir o suprimento alimentar

para uma casa cheia: onze filhos, dez trabalhadores e agregados diversos. Foi nesse pe-

ríodo que Verônica se afirmou como a grande provedora. Todos os estranhos à família,

falando daqueles tempos difíceis, ressaltam a generosidade dela, nunca negando um

prato de comida para muitos filhos dos agregados e moradores que não tinham uma me-

sa farta. A dieta que mais nos faz lembrar as “penúrias” desses tempos difíceis das se-

cas, no período, é o feijão de corda, com farinha de milho, ou mesmo o xerém, cozido

com água e sal. Até ovo era luxo. Com o toucinho do porco se fazia milagres... Na hora

da mesa, José Jorge exigia que todos estivessem presentes. Verônica costumava dizer

que “comida repartida não rende”. E, na hora das refeições, era ela mesma quem distri-

buía a “mistura” de carne nos pratos de cada comensal. Aqui e ali privilegiava um filho

em detrimento dos outros, com um melhor ou maior pedaço de carne. Quanto aos crité-

rios dessa distribuição ela nunca se sentiu instada a torná-los público. Manoel, que, ape-

sar de casado, praticamente vivia o tempo todo em casa dos pais, quando das refeições

escondia os pedaços de mistura dentro do próprio prato, tentando mostrar que o mesmo

estava vazio, e isso irritava, e muito, dona Verônica. Além da família restrita, dos mora-

dores e dos trabalhadores agregados, aumentava a parentela. Madia, que havia casado

com José Guilherme, e que morava no Riacho Queimado da Santa Luzia, tinha contri-

buído com seis netos, que muito dependiam da provisão e dos cuidados de Verônica e

de José Jorge, repartindo com eles o que tinham e podiam. Zé Guilherme saíra da antiga

casa de taipa e, com a ajuda de José Jorge, levantou uma nova casa de alvenaria, bem

mais ampla e confortável. Manoel, casado com Anísia Florindo, tinha quatro filhos.

Morou inicialmente numa casa vizinha à nossa primeira casa da Santa Luzia. Tempos

depois, com a compra das propriedades vizinhas de José Bernardo e de Francisco Félix,

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ele passou a morar na casa grande dos Félix. Passava o dia todo conosco e, apenas à

noite, ia dormir com sua família.

Nesse mesmo período, e pela primeira vez, a família Siqueira descobriu que a

agricultura familiar não era suficiente para fazer face às demandas da vida doméstica,

somadas às outras necessidades, como vestuário, saúde, custeio dos estudos, etc. Verô-

nica, que até então contara com ajuda da Flora, tinha uma boa prática de costura de rou-

pa para a família e decide costurar de “carregação”, como se dizia na época. Recebiam o

tecido para calça e camisa, em consignação; cortavam, costuravam e entregavam a rou-

pa pronta e engomada. Costuravam de vinte a trinta peças por semana. Ao final da se-

mana, levavam a Sertânia para serem entregues ao vendedor. E esse trabalho era feito

apenas com uma máquina de costura manual. Foi esse mesmo trabalho que permitiu um

ganho extra, possibilitando à família alternativas de renda para enfrentar as demandas

crescentes.

Talvez pela mágoa, não curada, do casamento extemporâneo da Flora, foi, i-

gualmente, nesse período que os rapazes e moças da família mais enfrentaram a cultura

de resistência de José Jorge, privando-os das atividades de lazer, de saída à cidade, de

festas e pequenos bailes na vizinhança e até da frequência à missa dominical. Sair de

casa para qualquer lugar ou finalidade tinha que ter a permissão do patriarca. Verônica,

porém, nesse mister, revelava-se muito mais flexível e até algumas vezes cúmplice das

filhas. Para os rapazes, o problema maior não era sair de casa, e sim chegar de volta, nas

caladas da noite. José Jorge nutria uma empedernida má vontade com essas frivolidades

lúdicas dos filhos. Das filhas, nem falar. Quando elas pediam permissão para ir à missa

aos domingos, ele via aí uma duplicidade de intenções. E resistia, a despeito das contra-

riedades de Verônica. Os bailes mais frequentados - quando permitidos – eram na casa

do Tio Umbelino, irmão de minha mãe, bem próximo à nossa casa. Foi lá que se inicia-

ram também os namoricos dos filhos e das filhas com moças e rapazes da vizinhança e

até mesmo trabalhadores da casa, como foi o caso de Zeca com quem a Flora terminaria

casando. Que reboliço, repito!

É bem verdade que, lá pelo final dos anos quarenta, e início dos cinquenta do sé-

culo passado, a situação financeira da família evoluiu positivamente, superando as ad-

versidades dos tempos anteriores da Matarina. Isso permitiu uma pequena folga finan-

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ceira, que passou a ser aplicada na compra de terras vizinhas – caso de Zé Bernardo e

Francisco Félix – e, especialmente, na construção de uma mais confortável casa de al-

venaria, em local não muito distante da primeira casa de morada. Nessa nova residência

a família viveu a maior parte dos anos e, nela também, José Jorge viveu os seus últimos

dias de vida quando, no ano de 1972, faleceu, aos 74 anos de idade. Era uma casa com

ampla sala (“de fora”), arejada, com cinco janelas, voltada para o poente; dois quartos

de dormir, outra grande sala (“de dentro”), com duas janelas, onde se faziam as refei-

ções. Toda ela rebocada com argamassa à base de cal. Um pequeno corredor levava à

cozinha, ampla, com fogão de lenha e chaminé; um pequeno quarto que servia de des-

pensa; fechado, só tinha uma porta, que Verônica fechava a chave e guardava no bolso,

garantindo draconianamente o suprimento da família. Interessante é que os quartos de

dormida – dos pais e das moças – não tinham janelas para fora, apenas uma porta de

entrada. O piso era de tijoleira artesanal. O telhado era de madeira tirada da propriedade

e coberta com telhas canal. Ao lado da casa, José Jorge construiu um imenso armazém

para guardar os mantimentos. Posteriormente, construiu mais um pequeno armazém,

com piso cimentado, telhado reforçado para, segundo ele, valer-lhe de refúgio quando

em noites de chuvas movidas a relâmpago e trovões, coisa de que ela tinha muito medo,

argumentando que “a natureza tinha muitos caprichos”. Dois anos após levantar a nova

casa, teve a brilhante ideia de construir uma cisterna para armazenar água doce, com

capacidade para 150.000 litros captados com imensa facilidade no telhado da casa. Des-

de que foi feita essa cisterna, nunca faltou água doce para suprimento da casa, inclusive

para os banhos de canecos, nos finais de semana.

Apesar das dificuldades, esse padrão de vida descrito acima garantia à família

viver de modo “remediado”, meio estágio entre pobreza e riqueza; jamais miséria e pri-

vações. Mas, José Jorge e, sobretudo, Verônica, viam ameaçado o futuro dos filhos.

Viam o Nordeste minguando em possibilidades de oferecer aos filhos um padrão de

vida menos suado do que o do sertão de Santa Luzia. O êxodo do Nordeste se fazia mais

intenso, a cada ano. São Paulo era uma miragem nesse deserto nordestino. Verônica não

teve dúvidas, apontou em direção do Sudeste e disse que aquela era a hora de cada um

procurar seus novos meios de vida. A experiência estava sendo posta à prova pelas no-

vas expectativas de futuro. Mais uma vez, na história da família, o futuro mudava de

cores e reluzia nas sombras do presente. Verônica percebeu e expressou isso muito bem.

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Uma família em diáspora...

Lentamente, José Jorge vê os filhos migrarem para São Paulo em busca de um futuro

mais promissor que o da Santa Luzia

Ao final dos anos cinquenta, São Paulo crescia a olhos vistos e virou a locomoti-

va do Brasil. “São Paulo não pode parar”, era o lema da embriaguez do crescimento

acelerado da metrópole sudestina. Não apenas São Paulo, mas, em menor escala, o Rio

de Janeiro. O êxodo de braços do Nordeste, servindo como mão-de-obra em São Paulo e

em Brasília tornou-se algo que, dificilmente, seguraria os jovens em seu lugar de ori-

gem. E, como já assinalamos, em Santa Luzia, Verônica, - mais uma vez Verônica –

bradou alto e em bom som que o futuro não estava mais ali, em Sertânia; com certeza,

estava fora, não sabia ao certo onde. Afinal, até “Fulorisa”, a filha querida, havia se

mandado de casa para São Paulo, onde o marido Zeca ganhava bem a vida com ela.

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Começa o ano de 1956 no Moxotó pernambucano, um ano de seca, também, em

Santa Luzia. O espectro das estiagens prolongadas minava a coragem das pessoas para o

trabalho. Trabalhar na lavoura, no Nordeste, era remar contra a maré do futuro. Por isso

mesmo, Verônica exortara que os filhos saíssem à procura de dias melhores e esqueces-

sem a labuta na lavoura sertaneja. Quem decidisse viajar para São Paulo e outros luga-

res teria a sua bênção e o seu incentivo. José Jorge era mais precavido, mas mesmo as-

sim concordava com a esposa. Naqueles anos, em Santa Luzia, já era comum os filhos

mais velhos, especialmente aqueles mais dedicados ao trabalho, botarem os seus roça-

dos com o objetivo de buscar uma autonomia de renda, preparando-se para um casa-

mento ou outros sonhos da idade. Anísio foi um deles e, naquele ano de 1956, botou

uma roça de seis quadros de terra; por conta da seca perdeu tudo, não lucrou nada. Esse

fato foi decisivo para dar razão à mãe, Verônica, e ele resolveu migrar para São Paulo,

seguindo os seus conselhos. Juntamente com ele, viajaram também o irmão José e a

mana Virgínia, ambos mais velhos que o próprio Anísio. Foi dado a largada para uma

diáspora da família. Uma viagem sem retorno, diga-se de passagem. A duras penas a-

prendíamos que migrar do Nordeste para o Sudeste, do sertão para a cidade, significava

que cada um era migrante de si mesmo em busca de turvos sonhos de dias melhores,

mas sempre sonhos.

Essa característica de migrar em busca do futuro mais promissor para cada um

passou a ser o novo momento da história e da memória familiar dos Siqueira. Eu mesmo

fui o primeiro a deixar o ninho familiar, em 1954, buscando o meu futuro nas conquistas

do aprimoramento educacional acalentando o desejo de me tornar padre. Os demais

irmãos que migrariam para o Sudeste buscavam também a melhoria do seu futuro, ga-

rimpando empregos, novas ocupações e especialmente a qualificação técnica de que

precisavam em substituição às tarefas da roça sertaneja. Precisava-se, sobretudo, de

muita coragem, arrojo e determinação para conquistar o horizonte desse futuro, mal

desenhado no seu formato, porém muito desejado nos seus desdobramentos e virtuali-

dades.

Evidente que em São Paulo já existiam muitos imigrantes nordestinos, entre eles

a figura guerreira da Flora, que teve a coragem de contrariar o velho Zé Jorge para obe-

decer as razões do coração. Coragem de afrontar o carrancismo do pai e, ainda mais

coragem, quando escolheu viver no Sudeste, antes de qualquer pessoa da família, antes

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mesmo de qualquer um dos irmãos. Flora e seu marido, Zeca, seriam o grande suporte e

o decisivo apoio que incentivariam os irmãos a migrarem e se juntarem a ela para deli-

near um futuro mais promissor do que o dia-a-dia de Santa Luzia do Moxotó pernambu-

cano. A acolhida e a ajuda que o casal deu à família nesse momento é algo crucialmente

decisivo e muito enraizado nas recordações e memórias de todos da família que tenham

viajado para S. Paulo. Fugindo com Zeca para se casar contra a vontade dos pais, Flora

foi para São Paulo, onde Zeca já trabalhava. Passaram a morar na Vila Carioca, num

precário barraco de madeira, na Rua Brás de Pina. O casal, naqueles anos seguintes,

abriu as portas do barraco e do coração sertanejo para acolher a família Siqueira, que, a

partir daqueles anos, protagonizaria um novo ciclo de migração, rompendo com um

determinismo cultural e atávico do amor incondicional que o sertanejo tem com o seu

torrão natal. A partir daquele instante, a família Jorge Siqueira deixava claro que o amor

à terra não é um elemento insuperável e impeditivo para se perseguir um futuro melhor

e instituir uma história de buscas.

Não se tratava apenas de mais uma viagem para outros mundos novos e desafia-

dores. Era uma viagem penosa o trajeto que separava o Nordeste da cidade de São Pau-

lo. Uma longa viagem, que demorava mais de dez dias. Com estradas precárias, como a

Rio-Bahia, cheia de buracos, lama e precipícios que colocavam em risco a vida dos que

nela se aventuravam, mesmo que se viajasse de ônibus, como foi o caso de Anísio e dos

demais irmãos. A maioria dos nordestinos viajava de caminhão, e foi nessa época e nes-

sas condições que proliferou a figura maldita do pau-de-arara, de triste memória. Cabe

frisar que todos os familiares de Jorge Siqueira, parentes ou aderentes, falaram com

muita clareza em seus depoimentos quão precárias e sofridas foram todas as viagens de

deslocamento do interior do Nordeste para a cidade de São Paulo. Esse é, talvez, o traço

mais marcante de todos os depoimentos colhidos.

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Na memória da família, no entanto, nenhuma das viagens para São Paulo teve o

sofrimento e a gravidade daquela que a mana Madia fez com os seus seis filhos, em

1959, viajando de Sertânia para São Paulo e, daí, para o Paraná, a fim de juntar-se a Zé

Guilherme. A viagem dela, com sete filhos, em cima de um pau-de-arara, tem todas as

características de uma quase tragédia, ou, dadas às circunstancias da própria viagem,

uma tragédia anunciada. O caminhão que levava as famílias, entre elas Madia com os

filhos, abandona os migrantes ao seu próprio destino ainda em Salgueiro, Pernambuco.

A polícia precisou intervir, obrigando os donos do caminhão a retomar a viagem. No-

vamente, em Vitória da Conquista, Bahia, o caminhão some e deixa as famílias à mín-

gua, sofrendo fome, enfrentando doenças e completamente desassistida. Conseguiram

ser levados até Governador Valadares, Minas Gerais, e lá Madia e umas amigas de via-

gem juntaram os seus esforços e trocados e pagaram um caminhão da Fabrica Nacional

de Motores – os populares “fenemês” da década de cinquenta – que os deixaria em São

Paulo. Em Tucano, por pouco um dos filhos de Madia, Osvaldo não morreria de uma

queda em que sumiu numa boca de lobo da sarjeta pública. O caminhão “fenemê” que

os leva a São Paulo, finalmente, despeja os migrantes na Estação da Luz, como mendi-

gos entregues aos cuidados públicos e como maltrapilhos da caridade cristã. As crian-

ças, em sua maioria, estavam doentes, algumas em fase terminal, por conta de diarreias.

Foi o caso de um dos filhos de Madia, Erasmo, que foi salvo graças à caridade de uma

cafetina da Rua da Aurora, que orientou-a a levar a criança para os cuidados da Santa

Casa de São Paulo. A memória que a própria Madia narra dessa trágica aventura chega a

ser comovente. Juntaram os tostões que restavam e foram amontoados numa pensão

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infecta do bairro paulistano da Luz. A saga da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da

Silva para São Paulo e o protagonismo de sua intrépida mãe, dona Lindu, não é única no

heroísmo dos seus sofrimentos nem a última nos seus significados e desdobramentos, na

memória dos nordestinos. A história da viagem de Madia que o diga.

A despeito dessa tragédia, a viagem dela com os filhos para o Paraná seria tam-

bém mais uma das viagens dos filhos e filhas da família Siqueira, que empreenderiam

uma diáspora rumo aos incertos horizontes do futuro, obedecendo aos conselhos de Ve-

rônica. Difíceis decisões aquelas de sair de casa. Todos, absolutamente todos os filhos e

filhas, migraram na busca desses horizontes futurosos. Óbvio quem nem todos saíram

de uma vez, deixando os velhos sozinhos. Mas a Santa Luzia lentamente foi se esvazi-

ando.

A primeira a deixar o seio da família, como vimos, foi Flora, contra a vontade

dos pais, fugindo para São Paulo e para casar; isso nos idos de 1952. Em seguida, fui eu,

que saí de casa para o seminário de Pesqueira, em 1954, onde concluiria o primário e

depois o ginasial. Em seguida, viajaria para o seminário de João Pessoa, em 1958, onde

deveria cursar o curso clássico, após o que peguei o caminho para o Seminário de Via-

mão, na grande Porto Alegre, no ano de 1962, a fim de cursar filosofia e, em 1964, via-

jaria para a Europa, Fribourg, na Suíça, concluindo os estudos de teologia para então me

ordenar padre; o que não aconteceu. Terminei desistindo da ordenação, para frustração

dos pais, e fui estudar na França, em Paris, nas cinzas de maio de 1968, retornando ao

Brasil somente no início dos anos setenta. Em 1957, reiteramos, foi a vez de Anísio, de

Virgínia e de José, que arrumaram os trapos e seguiram em direção a São Paulo, aten-

dendo aos apelos de Flora e Zeca, que, uma vez mais, os acolheria não apenas como

irmãos, mas como filhos, em sua casa. Flora, entre os irmãos, em questão de tempera-

mento, foi aquela que mais se assemelhou ao nosso pai: na determinação, no pavio cur-

to, na rigidez, na retidão de caráter e no senso de justiça.

Nor(destinos) e Su(destinos)...

Pretendo falar da cidade de São Paulo – na verdade, a sua periferia - focada na

ótica da família nordestina e sertaneja, caso de minha família. E, para ser fiel e coerente,

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também com as falas dos familiares entrevistados. São Paulo passaria a ter a reverbera-

ção de um ambiente de parentela muito peculiar à tradição e cultura da família Siqueira

e, igualmente, do sertão nordestino, caracteristicamente rural. Após a chegada a São

Paulo, de Anísio, José e Virgínia, seguiram-se as viagens de Severino, Manoel, Concei-

ção e, por fim, de Elias e de Valdeci. Em São Paulo, Manoel demora pouco tempo e,

antes mesmo dos anos sessenta, ele volta para o Nordeste. Foi dos únicos que não se

adaptaram à cidade e ao sistema fabril de São Paulo. No intervalo de 1968 a 1969, Aní-

sio e Severino, já casados, retornam com a família para Santa Luzia, pensando reviver

parte do que foi a experiência de vida, anteriormente à ida para São Paulo. Foi um perí-

odo de longas e intermináveis dificuldades e, novamente, a liderança de Flora se impôs

e reconduziu os dois para o lugar de onde não deviam ter saído, segundo ela. Ela sempre

repetia que, voltar ao Nordeste para rever as pessoas e matar saudades da terra era uma

coisa; voltar para ficar era outra bem diferente, o que ela jamais faria na vida, como de

fato não o fez. A Madia, entretempo, foi se encontrar com José Guilherme, no Paraná, e

passou de passagem por São Paulo, conforme narramos em sua sofrida aventura. A

família Siqueira mergulharia agora nas vivências urbanas de uma megalópole que ape-

nas lhes sorria com oportunidades de emprego e direitos trabalhistas inerentes ao mundo

da fábrica.

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Reunião das Famílias Jorge Siqueira e Batista Torres que, sob liderança de Flora e Zéca,

migraram para São Paulo, na década de cinquenta. Foto em frente ao barraco-residência

do casal, na Rua Brás de Pina, na Vila Carioca. (Foto do acervo das famílias)

Uma vez estabelecida em São Paulo, a segunda geração da família Siqueira, - no

caso, os filhos -, fixou algumas prioridades de objetivos, nesse clima de diáspora serta-

neja e familiar, do campo para a cidade, do Nordeste para o Sudeste. Começaria apon-

tando a primeira dessas prioridades. Ouvindo os depoimentos, percebe-se que a grande

adversidade com que os familiares se defrontariam na chegada a São Paulo consistiu

numa lenta e difícil adaptação com a cidade grande, especialmente uma metrópole com

o clima adverso como o de São Paulo: frio e garoa, nos meses de inverno; calor sufo-

cante, na época de verão. Morando na periferia paulistana - Vila Carioca - em condições

precárias, os da família estariam mal apetrechados para o rigor dos meses de inverno de

São Paulo, pelo menos no início, logo ao chegarem ao Sudeste. O próprio fato de vive-

rem nas vilas e subúrbios de São Paulo - Vila Carioca, Vila Ema, Sapopemba, Vila Car-

rão -, dificultava a adaptação à cidade, na medida em que grande parte de sua população

era migrante do Nordeste, especialmente da Bahia e de Minas Gerais. A cidade que os

acolhia, portanto, não era a São Paulo, paulistana. As amizades e interações que se efe-

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tivavam no dia-a-dia ainda referiam-se a persistente reverberação de uma cultura nor-

destina, bem distinta da cultura paulista e sudestina. Mais ainda no caso da família Si-

queira, que, sob a liderança de Flora e Zeca, se mantinha como um clã, muito unida en-

tre si, relativamente fechada e pouco preparada para uma mudança de visão e percepção

de mundo diferente daquele do sertão nordestino. Saíram do Nordeste, mas nele ainda

continuavam. Para além do padrão cultural-comportamental, isso também se refletia no

padrão alimentar da família que, vivendo em São Paulo, abastecendo-se nas feiras da

capital, alimentavam-se quase do mesmo modo que no Nordeste pernambucano. O

mesmo acontecia com os oriundos da Bahia, de Minas, do Ceará etc.

A segunda dificuldade com que os migrantes nordestinos de Santa Luzia se de-

frontavam era a batalha do emprego. Para uma população migrante, habituada e habili-

tada no dia-a-dia do trabalho na agricultura sertaneja e no manejo de uma pecuária inci-

piente, assumir o emprego numa fábrica nunca foi uma fácil tarefa. Dada a abundância

de oferta de emprego naquela época, a maioria dos irmãos assumiu postos de trabalhos

com maquinaria industrial, sem a menor capacitação profissional. No entanto, os salá-

rios eram compensadores, mormente para quem nunca fora assalariado, como era o caso

dos nossos sertanejos. A maioria dos irmãos buscou a formação profissional, frequen-

tando à noite e com muitas dificuldades as escolas do SENAI. E, apesar disso, o mi-

grante nordestino sempre deu prova de uma grande capacidade de aprendizado e adap-

tação em novas funções no mundo do trabalho. Tivemos na nossa família plainadores

mecânicos, frezadores, soldadores e outras profissões de relativa complexidade técnica

para as tecnologias daquela época. O mundo da fábrica tem suas enormes diferenças

com relação ao mundo da roça. Um abismo de cultura, de competências e novas deman-

das os separa. A distância das fábricas, as difíceis condições de trabalho e a precarieda-

de nos transportes da capital paulistana eram adversidades que deveriam também ser

suplantadas, após a batalha do emprego. De qualquer modo, o grande sonho de cada um

dos membros da família que migraram do sertão para São Paulo era ter um emprego e

receber o primeiro salário. Na memória de cada um dos da segunda geração, o item em-

prego e salário é visto como o farol sinalizador de um mundo novo, com novas perspec-

tivas de vida. Essa realidade concreta do emprego passava agora uma esponja nas ad-

versidades da vida em Santa Luzia, nas lembranças dos percalços da viagem para São

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Paulo e na inclemência fustigante da garoa paulistana. O sertão pernambucano agora

passaria a ser uma grande e renitente saudade.

Um terceiro objetivo prioritário da família, na cidade grande, passa a ser a luta

pela aquisição da moradia - a casa -, cuja centralidade é sublinhada nos depoimentos

dados pelos membros de toda a família Siqueira. Essa conquista da moradia começava

pela aquisição de um lote de terreno, o primeiro degrau nessa escala de prioridades. São

Paulo crescia a olhos vistos. E os loteamentos disponíveis e ao alcance das possibilida-

des financeiras da população de baixa renda, em sua maior parte, se localizavam na pe-

riferia da cidade. Nessa época, proliferavam as inúmeras vilas que hoje povoam a zona

leste e norte de São Paulo. Para além da Vila Prudente, localizavam-se os loteamentos

da Vila Ema, Vila Diva, Parque São Lucas, Vila Alpina etc. Fato emblemático dos laços

de parentesco, a família Siqueira, quase toda, comprou terreno na Vila Ema, até mesmo

os sobrinhos. E a Vila Ema mais parecia um pedaço do Nordeste do que mesmo um

bairro da capital paulistana, coisa muito comum numa cidade como São Paulo. Adquiri-

dos os lotes, agora se impunha levantar as casas. E a família, muito unida e solidária,

passou a fazer semanalmente mutirões de construção: alguns como chefes de obras,

outros como simples pedreiros e a grande maioria como ajudante de construção. Levan-

taram mais de dez casas. Cada mutirão era um domingo de festa bem nordestina, com

muita comida e bom humor. A precariedade de infraestrutura daquelas vilas, nos pri-

mórdios de seu surgimento, era algo de doer no coração. Terrenos demasiadamente pe-

quenos e estreitos. Casas coladas umas às outras e sem recuo para a rua. Inexistência de

rede de esgoto e de captação de águas pluviais. Tudo isso tornava as ruas dessas vilas

um imenso atoleiro de lama constituída de um barro vermelho que tingia os sapatos e a

roupa. Tudo era comercializado em quitandas improvisadas. No decorrer da década de

1960, o que imperou na periferia da zona leste de São Paulo foi essa precariedade lega-

da por sucessivas administrações que não planejaram o crescimento e a expansão da

metrópole. Nesse caso, os Siqueira foram protagonistas de um pioneirismo na luta pelo

chão e pela construção da sua moradia em São Paulo, uma comprovação de que, mesmo

em condições adversas, a família não perdeu sua coesão e pertença identitárias. A luta

por empregos duráveis e dignos tinha a contraface da moeda: levantar a casa como um

importante marco patrimonial. Emprego, família e moradia, esse foi o trinômio da famí-

lia sertaneja em sua nova forma de dispersão e busca de sobrevivência longe dos parâ-

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metros do solo sertanejo e nordestino. Entretanto, no caso de nossa família,uma terceira

geração já estava a caminho, e a migração de Santa Luzia, do Nordeste, se consumava e

se consolidava como diáspora sem, no entanto, perder a identidade familiar, sertaneja e

nordestina.

Vem, agora, um quarto e último objetivo nas aspirações dos sertanejos de Santa

Luzia, na “terra da garoa”. Vivendo em São Paulo, onde o dinheiro corria solto, os ser-

tanejos nordestinos vivenciavam o ritmo veloz da modernidade urbana da sociedade

capitalista de consumo. São Paulo da “garoa” se desenhava com um novo horizonte na

estabilidade dos empregos, já vimos. Tudo isso era um contraponto à vida sofrida do

Nordeste. Com todos esses ingredientes, outro objetivo importante passava então a in-

fluir nos corações e mentes dos filhos e filhas de Seu Zé Jorge e de dona Verônica. Era

casar com uma moça – de preferência nordestina – e constituir família. Creio não ser

exagero declarar que todos os irmãos homens da família Jorge Siqueira casaram com

moças oriundas do Nordeste. Somente a mana Virgínia é que foi exceção a essa regra,

desposando Aldir, um carioca radicado em São Paulo, operário de fábrica. E essa endo-

gamia regional e sertaneja perdura ainda hoje nos familiares da terceira geração de São

Paulo. Um claro sinal de que os laços culturais sobrevivem com grande força e que a

parentela sertaneja é uma instituição forte como cultura que não se deixa moldar facil-

mente no tempo e no espaço. Não esqueçamos que Zé Jorge e Verônica tinham rifado a

filha Florisa do convívio familiar. Na família, haveria novos desdobramentos em cima

daquelas feridas ou mesmo dessas cicatrizes. Estava aberto o caminho da reconciliação,

onde o tempo, como se diz, talvez tenha atuado como “senhor da razão”.

“Ninguém se perde, de volta à casa paterna"24...

24

Frase atribuída a José Américo de Almeida, renomado escritor paraibano e ator político de relevante

atuação nos desdobramentos políticos da Revolução de 30, no Nordeste.

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Chega o mês de dezembro do ano de 1959, em Santa Luzia, um dia de sábado.

Fim de ano no sertão do Nordeste é sempre um tempo de festas, usando-se dos parcos

lucros da venda dos cereais e principalmente do algodão. Época de sol escaldante, que,

de tão quente, provoca as primeiras trovoadas. Mas, há quanto tempo já não se tinha

notícia de trovoadas no Moxotó, no mês de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de

Sertânia?! Logo de manhã, o velho Zé Jorge veste o seu terno de linho branco, põe na

cabeça o seu infalível chapéu de massa, marca Prada. Toma um transporte e segue para

a cidade a fim de encontrar alguns velhos amigos, prosear, falar dos políticos, queixar-

se das prolongadas faltas de inverno... Lá chegando, não é difícil encontrar Caboclo

Lulu, Mundico, Seu Pule, Morais e o compadre Zé Antônio, todos habituados a bebe-

rem juntos uma cerveja Antarctica, geladinha, geladinha... O pai beber com os filhos é

falta de respeito, opinava Zé Jorge, do mesmo modo que o filho fumar na vista do pai é

falta de vergonha. Beber e fumar com os de fora, não.

As obrigações da feira, deixasse que Verônica tomaria conta delas, e muito

bem. Havia até uns dinheiros pra receber de uns comerciantes de carne que lhe compra-

ram dois carneiros medianamente gordos. Zé Jorge jamais gostou de negociar com mar-

chantes. Roubam no peso, no preço e choram na hora do pagamento, queixava-se. Ve-

rônica é quem sabia muito bem lidar e encarar aquela corja. Não pagou, ela leva a carne

e fica pago. Está certa ela! Só à tardinha ela voltaria para o sítio. Tinha ainda umas co-

madres para visitar.

O tempo passou rapidamente, e Zé Jorge se deu conta de que já eram quatro ho-

ras da tarde. Tinha bebido sem almoçar. Não estava bêbado, apenas um pouco “mela-

do”. Em casa estavam Antônio, o seminarista, que viera passar férias de fim de ano,

assim como Elias e Valdeci. De repente, o silêncio do casarão de Santa Luzia é quebra-

do com o barulho do motor Mercedes Benz de um ônibus que fazia a linha de São Paulo

a Campina Grande e que estaciona no terreiro da casa. De dentro, sai sorridente Irene,

filha da Flora, na época apenas uma garotinha sapeca de uns nove anos idade. Em se-

guida, Anísio, bastante tenso, bem-vestido e acompanhado de Flora e de Zeca. Não sa-

biam que Zé Jorge estava em Sertânia, muito menos tomando uma cervejinha. Flora e

Zeca logo entram no clima de quem volta à casa paterna: apreensivos, mas felizes. Nada

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tinham do que se penitenciar, a não ser ter causado tanto desgosto aos pais. Mas ela só

casaria com quem ela quisesse como de fato casou. E não tinha arrependimento.

Quatro e meia da tarde. O sol começava já a declinar no céu sertanejo de sábado

daquele mês de dezembro. Na rodagem um carro de passeio, modelo Mercury, de cor

preta, para, e Zé Jorge logo se despede do velho e conhecido motorista Severino Henri-

que. Anísio vai ao seu encontro, e o velho demonstra toda a felicidade de pai que não

via o filho há anos. Inicia-se uma longa caminhada, num curto caminho que ia da mar-

gem da rodovia até o terreiro da casa.

- Pai, tenho a alegria de lhe comunicar que vim para casar com Enedina.

- Muito bem, Anísio, tem a minha bênção e esteja certo de que receberei os ami-

gos na nossa casa.

- Mas, é o seguinte, pai, convidei Flora e Zeca para serem meus padrinhos de ca-

samento. Eles vieram, estão aí e eu gostaria que o Senhor os recebesse, selando a paz na

família...

Zé Jorge baixou a cabeça, escondendo o rosto sob o chapéu de massa cinza escu-

ro. Respirou fundo. Mas não teve tempo de altercar com o filho.

- Pai, é hora de acabar com essa inimizade. Zeca e Flora não merecem isso de

sua parte nem da de mãe. É hora de celebrar a paz, faz tanto tempo que isso aconteceu!

E eu lhe sou franco: se o senhor não receber Flora e Zeca, eu não caso, vou embora e

não volto mais aqui.

Mais uma vez, fugindo ao seu estilo autoritário, inflexível e durão, Zé Jorge bai-

xa a cabeça; pensa, pensa e, de repente, começa a chorar um choro copioso. Eram, tal-

vez, as lágrimas e o choro que ficaram engasgados desde que a filha predileta se fora.

Foi a primeira vez que a gente viu nosso pai chorar. Eu lembrei a sua tristeza

quando do casamento estapafúrdio da Flora. Agora, uma coisa se ligava à outra. Mas,

tudo tem seu tempo, canta o Eclesiastes. Anísio ficou em silêncio esperando a resposta

do velho.

- É, diz ele, quem não perdoa neste mundo não merece ser perdoado no outro!

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Ao dizer isso, saiu dali e foi se agachar na parte traseira da cisterna da casa, que

ele construíra há vinte anos. E então chorou, chorou todas as mágoas e derramou todas

as suas lágrimas de mais de quinze anos, desde que Flora se fora. Uma hora depois, vol-

ta até à sala, dá um abraço em Flora e outro em Zeca, em silêncio. Olha longamente

para sua neta, Irene. Aquele silêncio falava tudo. Sua face se iluminou de alegria, e a

casa ficou em festa, que só fez aumentar com a chegada de Verônica da cidade, ela que

nunca deixou de querer bem a sua filha e a seu genro. A festa do casamento começava

ali naquele gesto de paz e de perdão. A família Siqueira se recompunha de uma ferida

de mais de quinze anos. E Zeca passou a ser um genro muito querido por José e Verôni-

ca. A estima pela filha Flora cresceu. Anísio e Enedina casaram. Foi uma grande festa.

Depois de casados, voltaram para o dia-a-dia de São Paulo, que esperava os migrantes

da família Siqueira para mais uma tarefa que eles mesmos se impuseram: lutar, a partir

dali, por uma moradia decente.

Podemos, portanto, inferir algumas considerações tiradas desse conjunto de prio-

ridades que os familiares se impuseram no espaço adverso da cidade grande, e que lhes

marcou fortemente sua experiência de vida. Olhando a trajetória dessas experiências de

vida e do cotidiano, no interior da família Siqueira, em suas novas interações e relações

sociais urbanas e, sobretudo, fabris, podemos constatar algo emblemático. Ao migrar

para um ambiente urbano, a família desenvolve uma prática cotidiana saturada daquelas

experiências anteriores, que, podemos enumerar: fortes laços de pertença identitária;

submissão continuada ao controle familiar exercido por alguns dos irmãos; laços de

solidariedade plasmados na afinidade familiar, como um irmão socorrer um irmão nas

necessidades do outro; liderança tacitamente aceita de um dos membros da família, em

continuidade ao mando do “pater familias”. Essas características me parecem de grande

evidência. Trabalhando a lembrança de velhos, Ecléa Bosi já se havia perguntado: “De

onde vem, ao grupo familiar, tal força de coesão?” E ela responde: “Em nenhum outro

espaço social o lugar do indivíduo é tão fortemente destinado. Um homem pode mudar

de país; se brasileiro, naturalizar-se finlandês; se leigo, pode tornar-se padre; se sol-

teiro, tornar-se casado; se filho, tornar-se pai; se patrão, tornar-se criado. Mas o vín-

culo que o ata à sua família é irreversível; será sempre filho da Antônia, o João do

Pedro, o ‘meu Francisco’ para a mãe”.25

Voltando à família Siqueira, já agora em São

25

BOSI, E., Memória e sociedade, p. 425.

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Paulo, o que move essas pessoas é o desejo de um futuro mais promissor que o de hoje,

onde se joga as fichas no futuro e se olha para o horizonte distante, em vez de olhar a-

penas para trás. O futuro estaria no “hoje” de cada um daqueles momentos. Algo que, a

meu ver, corresponde ao conceito de Koselleck sobre “expectativa” enquanto “esperan-

ça e medo, desejo e vontade”26

. Significa, pois, que as expectativas quanto ao futuro são

fortemente moldadas pela experiência e que, pouco ou nada, nessas novas relações, têm

de “modernidade”, no sentido de uma nova postura familiar e pessoal, substitutiva de

um padrão cultural anterior. Nas palavras do autor, “Nossa tese dizia que, na moderni-

dade, a diferença entre experiência e expectativa não para de crescer, ou melhor, que a

modernidade só pôde ser concebida como um novo tempo depois que as expectativas se

distanciaram de todas as experiências anteriores”.27

Essa constatação poderá ser me-

lhor analisada nos desdobramentos da memória dos familiares, em sua nova e subse-

quente geração. É o que buscaremos na progressão das falas recolhidas em nossa pes-

quisa.

A Hora e a Vez da Terceira Geração...

O bilhete de Irene para Jacaré tinha apenas uma frase: “Graças a Deus, Zé, des-

ceu!”

Zeca estava trabalhando numa fábrica que produzia correntes, no bairro paulis-

tano do Brás. Era uma terça-feira, e minha irmã Flora, sozinha em casa, lavava a roupa

no tanque, naquela manhã esbaforida do calor paulistano do mês de fevereiro. Um calor

sufocante, pior que o do Nordeste, no verão. Ela separa cuidadosamente as roupas de

cor das peças brancas, com o cuidado de não manchá-las. Molha no tanque peça por

peça, antes de ensaboá-las. Uma delas, a blusa vermelha da filha Irene, de 15 anos de

idade, tem algo diferente no bolso: um pedaço de papel, dobrado em quatro partes. Flo-

ra abre e vê que era um bilhete com a assinatura de Irene. Foi aí que a mãe se deu conta

26 Nas suas palavras, “Algo semelhante se pode dizer da expectativa: também ela é ao mesmo tempo

ligada à pessoa e ao interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para

o ainda não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto”. KOSELLECK, R. Op. cit,

p. 310.

27 KOSELLECK, Reinhardt. Id. p. 322. [Os grifos são nossos]

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de que a filha tinha avançado o sinal no namoro com o primo José Guilherme Filho,

apelidado na família por “Jacaré”. O garoto não tinha mais do que 17 anos de idade,

enquanto ela, 15. Flora não acreditou no que viu e no que acabava de ler.

Irene não se encontrava em casa naquele momento, tinha ido à casa da tia Madi-

a, mãe de Jacaré. Dona Flor, a mãe, naquele exato momento, encarnou o espírito do pai,

o opinioso Zé Jorge, que não alisava a cabeça de ninguém nas horas de contrariedade.

Irene não sabia, também, o que lhe esperava na volta para a casa, lá pelas cinco

horas da tarde... Como disse, era a terça-feira de um mês de fevereiro. Esse ano de 1971

era a época dos anos de chumbo da ditadura militar. O Brasil da ditadura, sob o governo

de Garrastazu Médici, “bombava” na produtividade industrial. São Paulo virara uma

megalópole. Não faltava trabalho na indústria e nos serviços. A grande cidade já se con-

solidara para a família como o lugar de garantia do futuro. O Nordeste, Sertânia, Santa

Luzia, eram lugares das saudades, das lembranças de um tempo pretérito de memórias

sofridas, mas gostosas na evocação delas. O doce e acre sabor das recordações.

A família de Zé Jorge e dona Verônica, praticamente toda, se encontrava em São

Paulo. Anísio e Enedina, como também Severino e Erotides foram recambiados por

Flora para São Paulo, em 1970, depois de uma desastrada tentativa de se fixar no Nor-

deste. Tinha-se agora a certeza de que Santa Luzia não serviria mais para viver nem

morar, e sim para se visitar. Em Pernambuco, restava apenas Manoel, que vivia com os

velhos em Santa Luzia. E, além dele, eu mesmo que estava começando a vida no Recife,

após minha chegada da Europa no início do ano anterior. Os demais nove filhos – cinco

homens e quatro mulheres – se encontravam todos em São Paulo. Dois ainda solteiros,

Elias e Valdeci.

Os sobrinhos mais velhos da família - a terceira geração - eram Irene, de Flora e

Zeca, cujo irmão era Edson. Antes de eles nascerem, vieram os filhos de Madia e de Zé

Guilherme, lá em Santa Luzia: Maria, Givaldo, Jacaré, Toinho, Osvaldo, Geni e os de-

mais. Agora estavam todos em São Paulo, na Vila Ema. José e Edite tinham a filha mais

velha, Ezenilda, com a idade de 15 anos, que fazia pernas com a Irene; o garoto Zenildo

e a filha mais nova, Aparecida. Severino e Erotides tinham quatro filhos, cujo mais ve-

lho era Sílvio, um garoto da idade da filha mais velha do Anísio e da Enedina, Célia, e

de Edson, da Flora. Além do Sílvio, Severino tinha Sônia, Silvestre e Edilson. Anísio

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tinha Hélio e Daniel. A Virginia, casada com Aldir, tinha duas filhas pequenas: Débora

e Rosângela. Conceição, casada com Laurindo, já tinha duas filhas: Marli e Marlene e

mais outras duas chegariam. Os filhos mais velhos de Manoel e de Anísia, que continu-

avam em Santa Luzia, eram José Carlos - carinhosamente chamado de Zé Preto, que não

tinha nada de preto –, Reginaldo, Maria das Graças, Marlene, Margarida, Francisco,

Fátima e o caçula, Edinaldo, que nascera naquele ano de 1970. Essa era a terceira gera-

ção da família Siqueira.

O que acontecia de novo, nesse cenário da São Paulo da década de setenta, com

relação à família é que ela, lentamente, perdia contacto com a mundividência do sertão

nordestino. Com a terceira geração, Santa Luzia passa a ser apenas uma doce lembrança

das conversas dos da segunda geração. Reduzia-se lentamente a uma memória de “ouvir

dizer”. Mas, apesar disso, uma lembrança muito cara especialmente para os dessa tercei-

ra geração. Por que isso?

Duas variáveis importantes se delineiam na consolidação dessa memória nordes-

tina e sertaneja de Santa Luzia, em São Paulo. Em primeiro lugar, os da segunda gera-

ção souberam transmitir aos filhos e sobrinhos o essencial das vivências do Nordeste,

que, a despeito das agruras e dificuldades, continuava sendo o lugar das origens, o co-

meço de muitas coisas, inclusive da coragem para buscar a vida nova que levavam dis-

tante do torrão natal. O sertão se tornou, então, um palco de recordações e lembranças

que eram evocadas constantemente na relação entre pais e filhos, a maioria deles natural

do Sudeste. A memória, nesse caso, se consolida como identidade, na qual as pessoas se

veem e da qual não se envergonham. Essa é uma variável explicativa da pertinência e da

persistência da memória familiar e sertaneja. Em segundo lugar, cabe analisar, igual-

mente, que os laços parentais dos Siqueira, mesmo se redefinindo e se ressignificando,

seja na distância, seja no tempo e na nova cultura urbana, no trabalho ou no lazer, eles

se mantiveram suficientemente preservados e emblemáticos para a coesão dos laços de

parentesco e a manutenção dos laços da cultura e da consanguinidade. Isso equivale

dizer que alguns deram continuidade ao papel aglutinador, legitimador e disciplinador

dos pais, Zé Jorge e Verônica. Tanto isso é verdade que, para os da terceira geração, a

imagem marcante de cada um deles no seu modo de ver e falar é sublimar a pessoa de

Zé Jorge – o emblema patriarcal - como reserva e esteio moral da família e a de Verôni-

ca como a provedora de alegria, carinho e afetividade suficientemente boa. Essa foi uma

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imagem seminal que os da terceira geração assimilaram dos avós. E, com certeza, Flora

e os demais da família contribuíram para essa modelagem de memória. Os laços de fa-

mília, mesmo redefinidos e ressignificados, continuariam fundantes na postura compor-

tamental e interativa, como laços familiares marcantes e identitários da família Siqueira,

num cenário bastante urbano como a capital paulista.

Volto a Irene e Jacaré para enfatizar que eles foram envolvidos nas malhas desse

clânico controle familiar marcado pela moralidade da família e, particularmente, pela

rigidez da mãe. Digo da mãe porque, durante toda essa confusão, o pai, Zeca, nunca

deixou de lamentar a situação, mantendo, no entanto, uma postura de afeto e compreen-

são com a filha, diferentemente da mãe. E isso foi filtrado e bem enfatizado pela filha

em seu relato de memória.

Lá pelas cinco da tarde, está ela de volta da casa da tia Madia e encontra Flora

com a cara amarrada. Mostrando-lhe o bilhete que encontrara nas suas roupas, pergun-

tou-lhe a mãe o que significava aquilo. Antes que a filha respondesse alguma coisa, a

mãe logo lhe adiantou que aquilo era a prova suficiente e inconteste de uma sem-

vergonhice sem tamanho, da parte dela e do “cachorro” do seu primo. Não esperava

nunca que a filha tivesse semelhante atitude, traindo-a e ao pai, eles que lhe propicia-

vam tudo na vida. E avisava que já estava decido que ela deveria casar para reparar ta-

manha falta de vergonha na cara, desmerecendo os pais e toda a família. Ficasse Irene

certa de que, com a chegada do pai do trabalho, iriam marcar a data do casamento e lhe

garantia que não ia perder tempo em fazer isso. Pouco se interessou em ouvir o que a

filha tinha a dizer. Já bastava tamanha safadeza...

No dia 30 de outubro de 2009, trinta e nove anos depois, em São Paulo, na Vila

Ema, na longa entrevista que tivemos com Irene e Jacaré –, vinte e oito dias antes do

trágico falecimento dele, em Paranaguá –, foi possível ouvir a versão dos dois sobre

esse affair familiar que os envolveu, cheio de desencontros e também de ressentimentos

pela rigidez da mãe; traço, aliás, característico da família Siqueira. Mesmo tendo sido

entrevistados em separado, a versão dos dois é absolutamente coincidente quanto às

origens e às consequência dos fatos que precipitaram o seu namoro e abreviaram o seu

casamento.

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Naqueles idos do início dos anos setenta, entre os moradores das vilas periféricas

da cidade de São Paulo, como Vila Diva, Vila Adelina, Vila Ema etc., predominava a

juventude. Jacaré e Irene, por sua vez, se comportavam como os jovens de sua idade,

principalmente em função da cultura e da proveniência de suas famílias. Frequentavam

a escola, onde já se iniciavam numa educação sexual rudimentar. A escola abria espaço

para se falar do corpo, do seu desenvolvimento diferenciado para meninos e meninas. A

própria Irene confessa que já estava suficientemente informada sobre a chegada da

menstruação e o que ela implicava para a sua condição de menina-moça. Tanto que ela

desejava muito que esse momento chegasse na sua vida. Confirma que mesmo a mens-

truação, e daí em diante, nunca foi algo doloroso para ela e nunca lhe causou qualquer

tipo de transtornos, tão comuns às moças nesses momentos. Jacaré, recém-chegado do

Paraná, frequentava também a escola, à noite, e até se empolgava com o seu progresso

escolar. Trabalhava durante o dia. Ambos curtiam as músicas da época, marcadas pelos

sucessos de Roberto Carlos, da Jovem Guarda, dos festivais de San Remo e da TV Re-

cord. Os jovens eram cabeludos e se vestiam com calças boca de sino, também chama-

das de estilo San Remo. Essa moda ele sequer chegou a adotar porque não tinha condi-

ções financeiras. Na sua condição, com as namoradinhas, frequentava os “bailinhos de

fundo de garagem”, muito praticados naquela época, nos mesmos bairros onde mora-

vam. Os dois não tinham condições de frequentar as boates da cidade. E, com a idade da

época, entre quinze e dezessete anos, já se arriscavam a alguns beijos mais prolongados,

em lugar de simples beijinhos. Já se permitiam afagos e toques, no embalo do calor da

idade. Irene foi uma das namoradas de Jacaré, do mesmo modo que Jacaré também foi

um dos namorados de Irene. Ela era mais vidrada nele, o primo. Ele não tinha tantas

simpatias por ela. Mas o amor apaixonado desfez essas distâncias e os aproximou. E os

dois se encontraram e se gostaram. Logo cedo, Flora começou a se intrometer no rela-

cionamento da filha com o primo. Dizia-lhe que não gostava daquele namoro porque

José (Jacaré) era feio, beiçola, cabeçudo e um grande preguiçoso. Irene pouco ligou para

as opiniões da mãe. Afinal, o namorado era dela, feio ou bonito. O relacionamento amo-

roso dos dois evoluía no tempo e nas circunstâncias descritas. Como os traços afetivos

entre as pessoas, também o namoro dos jovens comporta certas cumplicidades na inti-

midade dos namorados. Foi o que terminou acontecendo com os jovens namorados.

Mas, segundo eles, nada além de beijos e “amassos”, decerto alguns mais intensos do

que outros. E jamais uma relação sexual, seja ela completa ou incompleta. O fato é que

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Irene, naquele mês de fevereiro, teve atraso de dias na sua menstruação. Em razão da

desinformação e de preconceitos dos dois, o fato é que a luz amarela se acendeu na rela-

ção do jovem casal de primos. Depois de alguns dias de ansiosa espera, Irene mandava

um bilhete para Jacaré, que infelizmente não chegou a receber e muito menos ler. Dona

Flor foi lavar roupa exatamente naquele dia em que a namorada esqueceu no bolso de

sua blusa uma simples prova ou, talvez, uma de suas maiores provas de amor para com

seu namorado. Ela interceptou a mensagem e isso provocou ruídos, como veremos mais

adiante.

A família Siqueira, em São Paulo, desde o início da chegada dos primeiros da

família vindos do Nordeste, exercitou grande empenho em ajudar todos os irmãos e so-

brinhos que chegavam de lá “sem eira nem beira”. Assim fizeram Flora e Zeca, aco-

lhendo em sua humilde casa Anísio, Severino, Manoel, José, Virgínia... Evidentemente,

nem todos aportaram na capital paulista de uma só vez. Mas todos tiveram o apoio ne-

cessário para se lançar na vida. Flora exerceu um papel protagonístico de mãe, e Zeca,

de um pai; pai amoroso, diga-se, a bem da verdade. Depois, foi a casa de Anísio que

acolheu irmãos e sobrinhos. Mais tarde, foi a casa de Virgínia, dando guarida aos ir-

mãos Elias e Valdeci. Madia e Zé Guilherme, literalmente, “adotaram” Reginaldo, filho

do Manoel, que veio de Santa Luzia, garotinho ainda e que saiu da casa dela rapaz feito,

escolarizado e profissionalizado. Flora, mais tarde, novamente acolheria três filhas de

Manoel, do mesmo modo que “adotara” Givaldo, da Madia, no começo, a quem consi-

deravam como filho; ele também sempre os tratou como pais, até o final da vida deles.

Os filhos de Manoel acolhem os irmãos, Francisco e Edinaldo. José e Edite trazem a

sogra e mãe, dona Maria Guilherme, para dentro da sua casa, onde ela viveu seus últi-

mos dias. A família, portanto, naquele clima de diáspora, se aglutinou e reforçou a sua

pertença parentesca. Abriam a porta da casa aos que chegavam, ensinavam o caminho

da escola aos mais jovens e, para os recém-chegados, batiam na porta das fábricas na

busca de um primeiro emprego. Cotizavam-se no pagamento de um ou outro lote de

terreno e faziam mutirão para levantar as casas. Sempre se juntavam, ao final do ano, na

felicidade de pegar a estrada rumo a Pernambuco para matar as saudades e abraçar Zé

Jorge e dona Verônica, enquanto vida os dois tiveram. José Jorge faleceu em julho de

1972, em Santa Luzia, após a visita de todos os filhos que estavam em São Paulo. Verô-

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nica só veio a expirar em 2004, em São Paulo. Fechou os olhos no mesmo lugar para

onde desejou que os filhos migrassem, como de fato aconteceu.

A vida de cada um de nós nem sempre segue as trilhas que os outros nos traça-

ram; no entanto, essas sinalizações conseguem balizar em muito as veredas da existên-

cia. Jacaré e Irene casaram no dia 12 de junho de 1971, conforme “exigiu” a parentela.

Após determinar o casamento da filha, Flora e Zeca convocam os irmãos Anísio, Elias,

Valdeci, Virgínia e Madia para uma reunião de família, onde puseram os noivos diante

da parede. Segundo Irene, os tios pegaram pesado. Os dois negaram qualquer intercurso

sexual entre eles. Em vão. Tiveram que casar, para alegria de Irene, pois esse já era seu

sonho e desejo. Mas os dois não tinham a menor condição financeira de manter uma

casa. Iniciaram a vida com a cara e a coragem, sem mesmo ter na cozinha um botijão de

gás para fazer a comida. No dia seguinte à noite de núpcias, Irene exibe para a mãe a

mancha de sangue nos lençóis brancos da sua virgindade de menina-moça. Queria pro-

var-lhe que não mentiram.

Dois anos depois, o jovem casal tem a primeira filha, Patrícia; quatro anos após,

vem Fábio, o segundo filho. Segundo seus relatos de memória, os primeiros anos de

casamento foram extremamente difíceis para os dois. Jacaré teve que parar os estudos,

voltando a trabalhar em fábrica, fazendo longos períodos de horas extras, geralmente à

noite. Irene conseguiu emprego de doméstica e, alguns anos mais tarde, os dois inicia-

ram uma sociedade de corte e costura com dona Flor. Por razões de incompatibilidade

de gênio, logo se desfez a sociedade, e o casal, por conta própria, levou adiante o seu

próprio negócio, o que lhes melhorou em muito a situação financeira. Mas continuaram

morando com Flora e Zeca na mesma casa e no mesmo bairro.

Essa longa incursão na trajetória de vida e de recordações da família Siqueira, de

um lado formula as dimensões de um passado e também de um futuro como algo interi-

orizado, percebido e narrado pelas duas gerações. Mas, por outro lado, aponta, sobretu-

do, para uma categoria conceitual do cotidiano desse tempo histórico, tal qual foi for-

mulada por Koselleck, que nos chama a atenção para o seguinte: “Quem busca encon-

trar o cotidiano do tempo histórico deve contemplar as rugas no rosto de um homem,

ou então as cicatrizes nas quais se delineiam as marcas de um destino já vivido. Ou

ainda, deve evocar na memória a presença, lado a lado, de prédios em ruínas e cons-

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truções recentes, vislumbrando assim a notável transformação de estilo que empresta

uma profunda dimensão temporal a uma simples fileira de casas”.28

O tempo é desgas-

tador da memória e, sabemos, tal desgaste induz ao esquecimento, que pode ser um si-

nônimo de morte. A família Siqueira, nas recordações do seu cotidiano, em diferentes

lugares e espaços que vão do Nordeste ao Sudeste, dos confins do sertão brabo ao espa-

ço urbanizado da metrópole - nesses lugares, repetimos - os seus familiares revisitam

em suas lembranças as diferentes memórias dos espaços de sua experiência, e isso tem

tudo a ver com as perspectivas de futuro das velhas e novas gerações. Koselleck, portan-

to, enfatiza a importância desses paradigmas conceituais no entendimento do que ele

denomina de “cotidiano do tempo histórico”. Nas suas palavras, “por fim, que contem-

ple a sucessão das gerações dentro da própria família, assim como no mundo do traba-

lho, lugares nos quais se dá a justaposição de diferentes espaços da experiência e o

entrelaçamento de distintas perspectivas de futuro, ao lado de conflitos ainda em ger-

me”.29

Outro aspecto a ser reforçado, lendo atentamente as falas e auscultando as recor-

dações dos familiares de segunda e terceira geração da família, é que existem diferentes

tempos com distintas durações entre uma e outra gerações. Um tempo mais lento para

uns, mais longo para outros; em nosso caso, um tempo menos sincopado quando se trata

das recordações ligadas aos lugares da Matarina e da Santa Luzia do Nordeste. Já no

caso do Sudeste, especialmente para os da terceira geração, o mundo do trabalho, do

ritmo da fábrica, da impessoalidade da empresa e do estresse da cultura urbana, o tempo

aí está imbricado na formatação industrial e técnica e, neste sentido, parece ser marcado,

como disse Koselleck, referindo-se à “experiência” e ao “futuro”, por “períodos de tem-

po cada vez mais breves para que [cada um] possa assimilar novas experiências, adap-

tando-se assim a alterações que se dão de maneira cada vez mais rápida”30

.

A diáspora da família Siqueira, novamente, irá passar por um novo processo de

resignificação em sua trajetória histórica que merece uma reflexão. A partir da metade

dos anos oitenta, os mais velhos, que até então tinham vivenciado a longa experiência

28 KOSELLECK, Reinhart. Op. cit., p. 14.

29 Id. Ib.

30 KOSELLECK, Reinhart. Op. cit. p. 16.

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de vida na cidade grande e no mundo do trabalho, redefinem um novo percurso, que os

levará a migrar para novos lugares, fugindo daquela experiência de vida da diáspora do

sertão nordestino em direção ao Sudeste. Flora e Zeca, os pais da Irene, decidem fixar

residência no Paraná; em Paranaguá, mais precisamente. Zeca, agora, estava na condi-

ção de aposentado e isso, certamente, pesou na sua decisão de sair de São Paulo, ele que

fora o pioneiro dessa experiência marcante de migrar para o Sudeste, ainda nos anos

cinquenta. É bem verdade que em Paranaguá viviam, há décadas, vários dos irmãos e

irmãs de Zeca, a maioria deles trabalhando no ramo da industrialização do pão. Zeca,

portanto, estava buscando uma nova experiência de vida para o seu tempo de aposenta-

do do trabalho. Sua decisão de sair de São Paulo logo será seguida, também, por outros

da família como Madia e Zé Guilherme. Para todos eles, tratava-se ainda de viver no-

vas experiências, seguindo as aspirações de um futuro também diferente. Estamos, por-

tanto, reinaugurando um novo ciclo de vivências, que será determinante para definição

de novas expectativas de futuro. Algo emblemático se desenhava nessa nova busca e

nesse novo formato de experiência familiar, qual seja recuperar algumas vivências do

tempo pretérito (da Matarina e da Santa Luzia) tanto quanto fosse possível. Vejamos

como se operou a suposta ressignificação daquela diáspora inicial.

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1979 - Casal Jacaré e Irene com a filha Patrícia e o filho Fábio (foto do acervo familiar)

Alguns anos após, o casal Irene e Jacaré decidiu acompanhar Zeca e Flora na sua

mudança para o Paraná e, na cidade de Paranaguá, iniciam a vida trabalhando no fabrico

de pães, juntamente com Edson, seu primo. Mais tarde envidam esforços com vistas a

levar Madia e Zé Guilherme a morarem com eles, em Paranaguá. Passaram anos difíceis

com a crise sazonal do Porto de Paranaguá, o que incidia na comercialização do pão.

Continuariam convivendo com grandes saudades que perpetuavam duas recordações:

Santa Luzia, de Pernambuco, e São Paulo, de São Paulo. A família Torres - Siqueira

continuaria muito unida, a despeito da distância do espaço entre São Paulo e Paranaguá.

Anísio, tão logo conseguiu a sua aposentadoria, decidiu com enorme força de

vontade e determinação sair definitivamente de São Paulo em direção ao Mato Grosso

do Sul. Naquele tempo ainda era apenas o Sul de Mato Grosso, não longe da fronteira

com o Estado de São Paulo. Passou a morar em Arapuá, um distrito de Três Lagoas.

Havia adquirido, a duras penas, uma pequena área de terra onde apenas existia um casa

em ruínas e bastante pasto para gado de corte e de leite. E, além disso, muita caça e

muita pesca. Anísio convenceu a Enedina, sua esposa, a morarem juntos, sem os três

filhos, nas paragens distantes do Sudoeste brasileiro.

A conclusão que podemos inferir dessa nova experiência e expectativa de vida

da família é que, primeiramente, como já sugerimos, iniciava-se um novo ciclo de mi-

gração e, em consequência disso, verificava-se a retomada da diáspora familiar iniciada

no Nordeste da Santa Luzia. Só que, agora, um sentido novo movia as aspirações de

vida e, portanto, novos objetivos passavam a serem perseguidos e entre eles a busca da

qualidade de vida. Em segundo lugar, povoavam as aspirações de vida desses familiares

o desejo de fugir ao anonimato, ao estresse da cidade grande e à fadiga física e mental

do mundo da fábrica. Um sonho e uma expectativa de vida nem tão desconhecidos de-

les, na medida em que aquelas experiências sertanejas de Santa Luzia e da Matarina lhes

foram marcantes em uma fase também decisiva de suas vidas. Viver no mato, criar bois,

vacas, cabras, caçar, pescar, plantar e colher, isso tudo foi uma experiência fundante,

que, certamente, não teria sido apagada das recônditas lembranças de cada uma das pes-

soas da família. Afinal, era exatamente isso o que Anísio buscava no seu “exílio” mato-

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grossense. A megalópole, com os seus transtornos da vida, da moradia, da violência

urbana etc., teria o seu antídoto na cidade pacata do interior; na nova dimensão da mo-

radia urbana, com seus imensos quintais, onde era possível plantar e colher em peque-

nas quantidades que dispensam as grandes roças. Assim é que Flora, Zeca e os familia-

res vivenciaram, em Paranaguá, as vantagens que haviam perdido na cidade grande. O

comércio, aí, podia ser praticado em novas dimensões sociais e interacionais, onde to-

dos conhecem todos. Com certeza, nessa diáspora ressignificada, buscava-se recriar as

condições de vida e as experiências anteriormente praticadas na Matarina e na Santa

Luzia. E que foram preteridas na cidade grande e no dia-a-dia do mundo da fábrica. O

sertão, portanto, poderia ser vivido e praticado em qualquer lugar do Brasil, na medida

em que “ele está e sempre esteve nas pessoas”, como nos ensina magistralmente Guima-

rães Rosa. As experiências de vida da família Siqueira demonstram que as sucessivas

gerações fazem o novo, incorporam o novo, vivenciam o novo. Novidades essas cujo

significado é traduzido e apropriado pelo universo de expectativas das pessoas de cada

geração. É o horizonte de desejos, tão bem definidor dos tempos da história, como nos

mostra Koselleck. No entanto, as experiências vivenciadas não deixam de ser marcantes

e decisivas, plasmando o tempo passado das recordações e da história da família. As

dispersões – diásporas – da família não conseguem apagar o legado dessas vivências

como práticas, como valores, cultura e, sobretudo, como pertencimento identitário, de-

finidor dos fortes laços da parentela, como se vê nas falas dos entrevistados. Esses “tó-

poi”, essas dimensões de “novo” e “velho”, que acabamos de ressaltar, não nos autori-

zam a dizer que a História se repete porque, sabe-se, a vida, além do seu dinamismo, é

uma eterna caixa de surpresas...

Em Paranaguá, Patrícia e o Fábio, filhos de Irene e Jacaré, cresciam em idade e

sabedoria. Fábio como adolescente, ela como mocinha; ambos jovens, inexperientes.

Uma boa relação entre eles e os pais, apesar da impaciência dos mesmos com os arrou-

bos da juventude dos filhos. Jacaré e Irene são tributários de uma tradição familiar dos

Siqueira ancorada em fortes valores morais e que se retemperou através dos Guilherme

e dos Torres. Nunca negaram ter muita afinidade com o pertencimento “clânico” dos

Siqueira. Afinal, ela, Irene, era filha de Florisa, e ele, Jacaré, era filho de Maria Verôni-

ca. As suas experiências de vida são marcadas emblematicamente pela rigidez moral e

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pelos traços “clânicos” dessa parentela sertaneja, especialmente quando ela se sente

acuada ou mesmo desafiada...

- “Infelizmente, a gente fez com ela a mesma cagada que fizeram com a Irene e

comigo!”. Essa foi a resposta que Jacaré nos deu durante a sua última entrevista, quando

perguntamos pelo conturbado casamento da sua filha Patrícia com o namorado Elói, um

capixaba que a filha conheceu em Paranaguá. Como acontecera com a Flora, agora se

repetia com a Irene que, também, soube através de um bilhete, que a filha tinha engravi-

dado. Aquele era, sim, um bilhete que a Patrícia deixara cair em algum lugar, informan-

do para o namorado que tinha ido ao médico, naquela manhã, e que recebera dele a con-

firmação que estava grávida.

Virando-se para Flora, após ter lido aquele bilhete, a Irene diz:

- “É, mãe, a história se repete!”.

Como no caso da sua mãe, a Patrícia, também, tinha muita vontade de casar. Ja-

caré e Irene decretaram, então, que a filha teria que casar. E repetiram para Patrícia o

mesmo discurso que Flora e Zeca tinham feito para os dois...

Bem, estamos falando, nesta altura, de Patrícia, filha de Irene e de Jacaré, quarta

geração da família Siqueira. Mesmo admitindo que a Patrícia tenha direito à sua versão,

como Irene e Jacaré tiveram a sua, não me proponho realizar esta tarefa. Passo a palavra

aos da terceira geração para que eles continuem narrando a memória da família Siquei-

ra, fazendo com que essa história não caia nos desvãos do esquecimento.

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SEGUNDA PARTE

ooooooo

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Entrevistas da Segunda Geração

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Maria Verônica dos Santos31

Antônio – Madia, o que você mais lembra da sua infância, lá na Matarina?

Madia – Eu lembro a companhia com os meus pais, com os meus irmãos, com os meus

vizinhos – José Porfírio, Fortunato Prata, Antônio Terêncio com a família, Severino

Belo, Josefa Vitorino, Antônio Nicolau com toda família e Severino Bananeiras. Esses

aí eram os vizinhos mais próximos. Lembro bem de todos. Éramos amigos e nunca t i-

31

Madia, assim chamada pelos da família, é viúva de José Guilherme dos Santos (apelidado de Zé Guilé).

Nasceu no dia 26 de maio de 1926. Esta entrevista foi concedida no dia 26 de dezembro de 2008, na loca-

lidade de Arapuá, Três Lagoas (MS), onde atualmente mora a Madia com sua filha mais velha, Maria

(apelidada carinhosamente de Guirra). A foto foi tirada em maio de 2006, na festa dos seus oitenta anos.

Madia veio a falecer no ano de 2011, tendo estado presente no lançamento deste livro.

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vemos aborrecimento entre nós. Cheguei lá na Matarina com dois anos de idade e saí

com dezoito anos. Depois de casar, com a mudança de pai, fomos também morar em

Sertânia, onde vivi quinze anos e depois vim embora com a família aqui para o Sul do

país. Hoje, estou viúva e tenho nove filhos; aliás, eram nove, porque hoje tenho só oito.

O mais velho dos homens, que era Givaldo, Deus levou. Então, estou feliz com os meus

filhos, vivo também aqui em Mato Grosso do Sul, perto do meu irmão, e me sinto muito

contente e me considero realizada. Às vezes, tenho saudades, mas vivo alegre, graças a

Deus. Estou satisfeita com a minha convivência com todos. É isso o que eu tenho a di-

zer até o momento.

Antônio - Você falou de todas essas pessoas com as quais você conviveu na Matari-

na, onde você passou 12 anos. Como era o dia-a-dia de sua infância e de sua juven-

tude?

Madia – Relativo a esse tempo de 12 anos, quando era criança, eu vivia em casa, aju-

dando mãe no dia-a-dia. Depois que fomos crescendo, a gente trabalhava em casa e tra-

balhava também no roçado. Nossa vida e nossa convivência eram muito pacatas. Não

passeávamos muito, era uma vida de luta. Depois de casar, continuei morando no sítio.

Casei com José Guilherme, que conheci lá em Matarina no ano de 1941. A família dele

veio de mudança para Matarina, e a gente não se conhecia. Ele era noivo de uma prima

minha. Quando foi em 1942, nós começamos a namorar e logo ficamos noivos e casa-

mos no ano de 1945. Depois de morar 15 anos em Pernambuco, em 1958 viemos para o

Sul, onde estamos completando cinquenta anos de mudança. Até hoje, sempre morei

aqui e não tenho planos de sair daqui do Sudeste do país.

Antônio – Dos seus dois aos dezesseis anos de idade, nossa família morou na Mata-

rina. Aí nasceu a maioria dos nossos irmãos e irmãs. Você pode falar deles e como

era a relação sua com eles.

Madia – Nós brincávamos entre nós. Aliás, você sabe que pai não admitia de modo

algum brigas ente nós; por conta disso, havia uma união muito grande entre nós e brin-

cávamos muito. Vou falar a idade e o nascimento deles por ordem. Eu era a mais velha,

nascida em 26 de maio de 1926. A Florisa (a gente chamava de Flora) era mais nova do

que eu dois anos. Nasceu no dia 25 de abril de 1928. O terceiro foi Manoel, que nasceu

no ano de 1929 e não lembro o dia nem o mês de nascimento dele. Em quarto lugar vem

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Virgínia, que nasceu no ano de 1931, no mês de abril, se não estou enganada. O quinto

irmão foi José, que nasceu no ano de 1933, no mês de maio e, igualmente, não lembro a

data de nascimento. Depois de José, nasceu a Conceição, no dia oito de dezembro de

1934. Depois veio Severino, nascido no ano de 1936, no dia dois de abril. Depois do

Severino vem o Anísio, que nasceu no dia oito de maio de 1938. Agora vem você, que

nasceu no dia quatro de março de 1942. O Elias é o décimo irmão e nasceu no dia 25 de

abril de 1945. Finalmente, veio o Valdeci, o caçula, no dia 20 de janeiro de 1947. Aí

termina a enumeração da idade dos manos e das manas.

Antônio – Madia, a gente estava falando dos irmãos. Você, por acaso, lembra de

algum fato ou acontecimento marcante ligado aos irmãos mais velhos?

Madia – Não, Antônio! Não lembro algum acontecimento assim marcante entre nós.

Não lembro. Creio que isso se deve ao fato de não ter acontecido coisas nem interessan-

tes nem desordens maiores. A gente vivia brincando, depois íamos trabalhar; também

íamos para a Escola. O primeiro professor que nos ensinou a carta de ABC foi pai, que

nos ensinou direitinho o que ele sabia. A segunda professora foi tua madrinha, Antônia

Ananias; e o terceiro foi mestre Gonçalo, tio de nossa cunhada Enedina. Eu lembro bem

que só frequentei quarenta dias da escola dele, pelo fato de ter adoecido de inflamação

numa das pernas. Mas recordo que foi uma experiência tão boa aquela da escola dele,

porque ele explicava tudo direitinho... Mas tive que deixar a escola para me tratar. Já as

meninas e os outros irmãos, sim, frequentaram os cinco meses em que ele foi professor

da escola. Foi bom. Depois, por causa de alguns problemas, ele teve que deixar a escola.

Das presepadas dos irmãos, ouvi falar de uma em que Manoel e Flora resolveram voar

como os passarinhos. Mas não sei contar em detalhes. Só sei dizer que o Manoel caiu e

se ralou todo (risos).

Antônio - A mana Flora, hoje falecida, contava o seguinte: ela e o Manoel se encan-

taram com o voo dos passarinhos. Para imitá-los nessa façanha, costuraram umas

asas com palha de coqueiro e teriam subido numa serra próxima, no tanque da

viúva, e de lá saltaram no abismo serra abaixo, resultando em ferimentos, princi-

palmente no rosto do Manoel.

Madia - Desse período, lembro que tive de passar mais de dois meses na vila da Prata

para tratar daquela enfermidade na minha perna. Sei que isso foi em 1941 e, possivel-

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mente, deve ter sido nessa minha ausência que os dois aprontaram essa aventura. Aliás,

o Manoel e a Flora eram chegados a fazer muitas trelas. Uma vez decidiram juntar raí-

zes de uma planta, que se chamava malva, para fazer pólvora para vender. Mas não deu

certo essa experiência. De outra vez, a Flora mandou Manoel comprar um pouco de

açúcar para fazerem um doce. Aconteceu que o doce não deu o ponto e tiveram que

amargar prejuízo. Isto tudo foi armação dos dois, mas sem dar certo. Disso eu lembro

muito bem.

Antônio - Como é que as moças e os rapazes de sua idade se divertiam naquele

tempo...

Madia – Ah, isso aí era nada fácil. Pai tinha muitos ciúmes em deixar a gente sair. Só

tinha uma comadre nossa em quem ele tinha confiança pra deixar sair, ou então com

mãe. Por isso mesmo, não gozei nada da minha vida de solteira. Vivia muito presa e não

tinha liberdade. Pai não confiava em nós, era ciumento e por isso não gozei nada da vida

de solteira. Mas, tá bom! Casei com 18 anos e não me arrependo também disso.

Antônio – Como é que você conheceu Zé Guilherme?

Madia – Ele veio morar lá na Matarina, vindo de Sumé, lá do sítio Bananeiras. O pai

dele tinha comprado uma casa, na Matarina, e foi aí que a gente se conheceu e começou

a se gostar. Foi com Letícia, de tia Júlia, que ele chegou a namorar antes de mim.

Antônio – Você não teve nenhum namorado antes de conhecer Zé Guilherme?

Madia – Tinha uns namorinhos simples... Tinha um moreno, filho de Joaquim Cabral,

que eu gostava muito dele. Mas mãe era muito racista, e aí já começou a dizer que eu

gostava de namorar aquele “moleque” filho de Joaquim Cabral... Eu gostava muito do

garotinho; era Antônio o nome dele. Também logo, logo, eu desisti dele. Tinha o Ageu,

que era louco para namorar comigo; mas eu gostava dele só como amigo. Mas pra na-

moro eu não gostava não. Ageu era muito bonzinho, era afilhado de pai, uma pessoa boa

e que gostava muito da gente. Mas, eu não gostava muito dele não, muito menos para

namorar. E foi assim. O primeiro namorado firme foi o José. Só, no momento, é o de

que eu lembro...

Antônio – Fale do seu relacionamento com mãe e com pai.

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Madia – Sobre namoro, os dois não tinham discordância. O que pai gostava ou discor-

dava mãe aceitava também. Mãe era muito certa, só queria o bem de nós todos. Sempre

nos aconselhava a cumprir com os deveres, a fazer o que pai queria. Com pai, o que eu

queria falar eu falava, e ele sempre obedecia à gente naquilo que a gente queria como

certo. Você sabe que pai não gostava de nada errado. Então, o que ele pedia pra nós não

fazer a gente não fazia. Por exemplo: andar pelas casas dos outros, andar com certas

pessoas em quem ele não confiava. Ele sempre dizia que a gente devia fazer-se acom-

panhar de pessoas melhores do que a gente. Então, a gente já tinha ciência do que ele

gostava e não gostava, e assim buscava agir. Tenho impressão que ele era mais tolerante

com nós mulheres. Ele implicava, e era mais duro, sobretudo com Manoel. Mas ele era

meio traquina também. Virgínia era que tinha umas respostinhas, e ele exortava que ela

parasse com aquele jeito; senão ele teria que cortar dela a ponta da língua... Mas era só

disso que ele reclamava dela: “Virgínia, tu paras com essas respostas!” (risos).

Antônio – Como é que foi tomada a decisão da família de morar em Pernambuco?

Madia – Pai comprou um terreninho em Santa Luzia, parece-me que no ano de 1936,

não lembro bem. Então, ele ficou dividido, trabalhando na Paraíba e em Pernambuco.

Ficava mesmo mais tempo em Pernambuco do que na Paraíba. Mãe é que cuidava das

coisas na Matarina. Quando ele decidiu pela mudança, que aconteceu em dezembro de

1944, ele veio na frente com a mudança e mãe ficou comigo, a Virgínia e os menores,

na Paraíba. Em dezembro, nós viemos para Sertânia, naquele tempo Alagoa de Baixo.

Lembro que eu vim primeiro do que mãe com a mudança, no caminhão de um motorista

que era conhecido da gente. Depois que mãe terminou de arrumar as coisas por lá, ela

veio com comadre Maria (mãe de Zé Guilherme). Você era pequeno, estava com dois

anos. Comadre Maria contava uma história que você, na saída, viu uma mulher já de

idade, meio feia e começou a rir com a boca da mulher, mostrando para mãe, que ria

muito também... E comadre Maria confirmou que ela realmente tinha a boca muito

grande. E você chamava a atenção de mãe rindo dela...

Antônio – Como é que foram os primeiros anos em Pernambuco?

Madia - A mesma vida que nós levávamos quando se morava lá na Matarina. Era o

trabalho da roça e o detalhe da água, que era muito ruim (salobra). Mãe tinha muita rai-

va da água de Santa Luzia, especialmente na hora de lavar roupa. Lutava-se com traba-

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lhadores, apesar de pai demonstrar intenções de não depender tanto de mão-de-obra fora

da família. Mas tinha uns trabalhadores antigos, de mais de dez anos de morada, que

davam um enorme trabalho e custo para a casa, com comida, roupa lavada e engoma-

da... O trabalho de muitos desses não rendia nada. Mãe decidiu, com pai, mandar embo-

ra a maioria deles e adotar outra modalidade de trabalho, como a empreitada, por exem-

plo. Mãe, aos poucos, foi tomando decisões no lugar de pai com relação a trabalhos e

empreitadas porque era preciso ter muita firmeza, e pai já não aguentava mais isso.

Antônio – Você constituiu família em Pernambuco e no Paraná...

Madia – Em Pernambuco, vivi quinze anos do meu casamento com Zé Guilherme. Foi

lá que eu tive sete filhos. A Maria foi a primeira que nasceu. O segundo foi Givaldo. O

terceiro foi José e a quarta foi uma menina, Verônica, que logo morreu. Ai então nasceu

o Antônio, depois o Osvaldo e uma menina – Geni –, que também morreu; depois veio a

atual Geni, e o último nascido lá, foi Erasmo. Saí com ele para São Paulo com um ano e

seis meses e os outros restantes. Vindo para o Paraná, em Pérola, eu tive uma menina,

que nasceu morta; depois, veio o Reginaldo; em seguida, o Inaldo; e, na última gravi-

dez, eu tive um aborto. Aí encerrou.

Antônio – Você poderia contar como foi essa viagem sua com as crianças para o

Sul?

Madia – Foi complicada, porque eu vim para o Sul sem a ordem de José Guilherme.

Escrevi uma carta pra ele avisando que vinha. Um senhor que tinha vindo com ele me

contou como era o Paraná e falou também de São Paulo. José Guilherme tinha me escri-

to uma carta quando eu ainda não tinha comunicado a ele que viajaria. Nessa carta, ele

dizia que tinha passado pelo Paraná e que depois iria comprar um terreno, em São Pau-

lo, para nós morar. Já faziam quase uns seis meses que ele tinha vindo. Esse senhor que

viajara com ele para o Paraná me informou que o lugar era muito bom, tinha lucro duas

vezes no ano; dava de tudo, muito algodão, que naquele tempo era uma riqueza no Pa-

raná. Aí eu pedi a mãe, dizendo: “Mãe, eu vou embora para onde está José”. Eu queria

aproveitar a vinda de um conhecido nosso, José de Melo, que ia voltar com a família

para o Paraná. Aí ela disse: “Vá, minha filha, aqui vocês não têm resultado de nada. O

que é de vocês, nós tomamos conta”. A gente tinha um gadinho, umas ovelhas. Eu ven-

di só o que José deixou, porque ele dizia que só saía de casa quando pensasse que não

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estava faltando nada, poderia durar até um ano. Eu então vendi uns borregos e uma vaca

que ele tinha deixado pra vender... Você devia conhecer, era aquela vaca pequenininha

que pai tinha dado aos meninos. Eu sei que vendi um bocado de coisas que davam pra

eu viajar. Acontece que o velho Zé de Melo era um velho muito simplório. Não conhe-

cia bem das coisas e já estava debilitado. Iludiu-se com os contratantes do transporte,

que prometiam nos levar num pau-de-arara até o Paraná; uma viagem que deveria du-

rar dez dias. Nessa época pai estava em Paulo Afonso e, quando ele chegou, eu contei a

ele. Ele pensou assim um pouco e depois disse: “Eu só deixo você ir porque você va i

para onde está o seu marido. Mas você vai ver o que é sofrimento. Pense bem no que é

você sair num pau-de-arara com sete filhos”. Apesar de que as pessoas eram, na maiori-

a, conhecidos, como Liro, que morava com a gente lá em Sertânia. De fato, foi verdade,

a gente sofreu muito. Acertamos a viagem e viemos. Na véspera da viagem, que seria no

dia 13 de setembro, o Anísio escreve uma carta a pai pedindo para não me deixar viajar.

Antes, eu li aquela carta, e tive vontade de não mostrar a ele. Aí eu disse, “Eu não vou

mentir”. Já tinha vendido as coisas. Tio Umbelino era um dos que davam a maior força:

“Vá embora para onde está o seu marido”, dizia ele... Eu ainda cheguei a desistir quan-

do fui conversar com o velho confirmando que vinha. O velho ainda me aconselhou a

não vir e escrever uma carta a Zé Guilherme. Ele mesmo confessou que não gostou da

história da gente comprar um terreno e vir morar em São Paulo. “A senhora não vá,

não”, disse ele. Eu, então, saí da casa do velho, lá em Sertânia, desiludida; certa de que

não iria mais viajar. Depois disso tudo, fui falar para o tio Umbelino a minha decisão, e

ele voltou a insistir: “Vá embora para junto do seu marido, deixe de se iludir com a

conversa dos outros”... Aí eu decidi, nessa hora, vender os meus mantimentos. Vendi

milho, vendi feijão; apurei naquele tempo oito contos. Aí, com o dinheiro que era da

vaca (rindo), comprei roupa de homem para vender; comprei rede, porque diziam que

aqui isso tudo era muito caro. Empatei tudo na viagem. Eu sei, meu filho, que arruma-

mos tudo pra vir embora. Quando chegamos em Salgueiro (PE), no primeiro dia que

saímos de Sertânia, ficamos cinco dias parados, somente gastando, meu filho. Gastando

todo o dinheiro que trazia, e eles, enquanto isso, foram para o Ceará buscar outro boca-

do de gente. E ficaram farreando. Eram dois rapazes do Rio de Janeiro que eram donos

do caminhão e um tal de Valdeci, que era um testa-de-ferro do empreiteiro da viagem,

lá de Arcoverde. Ao cabo de cinco dias, nós retomamos a estrada. Ao chegarmos em

Feira de Santana (BA), ele largou o pessoal lá e fugiu de volta com o caminhão. Os pas-

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sageiros homens, que vinham, foram até a Polícia, deram parte deles, que logo foram

encontrados em Serrinha (BA). Uns caras bem forçudos da Polícia deram-lhes uma pisa

da boa e os obrigaram a voltar e levar adiante o pessoal. Dessa feita eles nos levaram até

Governador Valadares (MG). Ali, de novo, eles deixaram o pessoal. Quem tinha dinhei-

ro viajou sozinho, e quem não tinha ficou. Nós também ficamos. De nós, só quem tinha

um resto de dinheiro era eu e Celeste, que era a esposa de Leonel e que estava com José

Guilherme no Paraná. Aí nós ficamos durante uns cinco dias sem meio de transporte

nenhum que nos trouxesse ao Sul. Eu falei então pra Celeste que nós teríamos de conse-

guir um resto de dinheiro, senão a gente não chegaria em São Paulo. Ela, apesar de mui-

to segura, arrumou o dinheiro suficiente para a gente chegar em São Paulo. Chegando

em São Paulo, Anísio tomou conta. José de Melo tinha pedido emprestado a Flora um

dinheiro para vir embora para o Norte; a quantia era seis mil cruzeiros, naquela época.

Flora disse que não dispunha daquela quantia e ia ver o que poderia fazer. O Severino ia

vender a camionete dele no dia seguinte. Foi quando, na noite do dia seguinte, ela foi lá

com o Severino e trouxeram a minha família da pensão em que estávamos alojados para

a casa dela. Nessa ocasião o Erasmo quase morreu. Naquele dia foi que eu senti e vi de

perto, meu filho, o que pai tinha dito, que seria muito sofrimento aquela viagem. Foi

sofrimento naquele dia; eu vendo que meu filho ia morrer... Tinha um remédio, Antô-

nio, chamado Aeromicina; esse remédio já saiu de linha -, era como se fosse um Toddy,

ele até cheirava a Toddy... Eu fui à farmácia comprar aquele remédio e, como estava

sem dinheiro, pedi ao farmacêutico. Nesse instante, chega uma senhora forte, de cor,

que disse para mim: “Devolva este remédio ao homem e vamos com seu filho para a

Santa Casa, que você não gasta nada, e o seu filho vai sarar”. Tinha também comadre

Antônia, que era mulher do Terto e que estava com uma menina nas mesmas condições

do Erasmo. Eu perguntei para essa senhora se era longe; ela disse que era perto e dava

para ir a pé. Eu pedi a ela para passar na pensão e, chegando lá, comadre Antônia não

quis ir. Ela é dessas coitadas que, se o marido não estiver por perto, não decide nada. Eu

falei, vamos comadre Antônia, a mulher aqui está dizendo que o hospital ali é bom... Aí

eu fui com ela; chegando lá, ele foi internado e, no outro dia, eu vi que o que Erasmo

estava sentindo era resultado de uma epidemia de diarreia e de desidratação que acome-

tia a maioria das crianças. Vi lá crianças fortes e nutridas internadas do mesmo mal que

ele. Enquanto isso, estávamos na pensão sem a menor condição de pagar. Foi quando lá

chegaram a Flora e o Severino. Maria e Givaldo estavam na porta da pensão e viram

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quando passaram Flora e Severino. Então gritaram: “padrinho Severino!” Severino era

padrinho dele de crisma. Logo a Flora e o Severino “salivaram” os dois para que não

falassem em “padrinhos” e “tios”, porque, como estranhos, seria mais fácil de tornar as

dívidas mais baratas. (ri...). A minha dormida, a janta e o almoço custaram setecentos

cruzeiros, lembro bem. Foi Manoel que tirou essa conta. A Flora então levou a tropa e,

quando eu cheguei, estava aquele maior silêncio. Eu disse: “parece que viajaram”. Que

nada! Eles continuavam tudo lá naquela pensão. É então o momento em que chega o

Anísio e me diz: “Vai tu agora para o Paraná sem a ordem de Zé Guilherme!” Eu disse:

“Eu não vou porque não tenho dinheiro, se tivesse eu iria”... Ele era solteiro nessa época

e estava vestido num terno azul, parecia um doutor. Aí ele tomou conta dos outros que

não eram da minha família; levou todo mundo para a Imigração. Eu fiquei no Hospital

da Santa Casa durante três dias e, depois, o Erasmo teve alta. Como eu tinha o endereço

da Flora, peguei um táxi e fui pra lá. Com uns dois dias depois José chegou e aí nós

ficamos uma semana com os irmãos em São Paulo e depois fomos para o Paraná. A

partir daí, tudo deu certo. Ficamos seis anos trabalhando lá. Hoje, nós temos a nossa

casinha em São Paulo, que foi tirada de lá, e eu estou contente. Meus filhos aprenderam

uma profissão que dá pra eles viverem; cada um tem seu ranchinho e, assim, criei minha

família e estou satisfeita com o que Deus fez. Devo muito favor a Zé de Melo, que foi

quem botou na minha cabeça para eu vir. Outro dia eu estava conversando com Givaldo,

que, se não fosse Zé de Melo, a gente não teria vindo para cá. Ele disse: “Não mãe, eu

não ia ficar lá”. Mas José veio e ele gostou mais de São Paulo. Ele veio porque não gos-

tava do Paraná. Mas o Paraná foi gostoso. O problema era que nossa chacrinha era pe-

quena, e a família, grande. O que se lucrava tinha que vender, e assim não podia prospe-

rar. Naquela época, Antônio, quem podia comprar gado comprava e podia ficar bem. A

terra dava de tudo, era sadia, era uma beleza. E é assim, meu filho...

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Após curta temporada no Paraná, a família Guilherme (Madia e Zé Guilherme) voltam de

vez para São Paulo. (foto do acervo de família)

Antônio – Madia, depois do relato dessa grande aventura eu pergunto: qual foi a

sua maior alegria e, já adianto também, qual foi a maior tristeza?

Madia – (pensa longamente) A tristeza maior que eu tive foi quando pai morreu.

(Muito emocionada) Nunca tinha sofrido tanta tristeza assim, meu filho. Mas sou mui-

to franca a lhe falar: sou conformada com o que Deus fez por mim. Não tenho tristeza

para contar. Realmente não tenho. Alegria, sim. Viver com minha família. Tenho muita

alegria de viver com todos, graças a Deus. Então, eu vivo contente. Estou realizada na

minha vida. Não tenho mágoas a lamentar. Gosto de todos os meus irmãos e de todos os

meus parentes. O que eu quero para um quero pra todos. Não tenho tristeza não.

Antônio – Fale de uma lembrança importante que você tenha de pai e de mãe...

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Madia – A lembrança de mãe é quando ela ficou internada em Pesqueira e, depois de

quatro meses, voltou para casa boa e com saúde, até o momento em que ela morreu.

Morreu com idade avançada, aos noventa e seis anos. E de pai, igualmente, quando ele

ficou curado daquela doença forte, que precisou ir para o Recife se tratar. Foi a maior

alegria quando eu o vi voltar completamente sarado daquela doença. São esses dois

momentos ligados à saúde deles dois que julgo importantes. No mais, o que eu pedi a

Deus ele fez para mim. Tinha muito medo de ver mãe morrer, pai casar novamente, e eu

vir a ser criada por uma madrasta. Então o vi morrer antes dela, com setenta e quatro

anos, e ela com noventa e seis. Mas nós sabemos que não vivemos aqui para sempre e

temos um dia que ir embora e então eu me sinto realizada, como já falei. Vou fazer oi-

tenta e três anos

Antônio - Então vai ter uma festa!

Madia - Não tenho mais tanta alegria para festas, não.

Antônio – Pelo menos uma festinha?

Madia - Só uma festinha, uma coisinha, porque não tenho mais tanta disposição. Você

vê que foram embora as pessoas mais “chegadonas”, vamos falar assim. Pai, mãe, meu

filho. Dói-me muito a ausência do Givaldo. É doído, Antônio! (chora). Você só tem

um, meu filho, e Deus te abençoe que teu filho viva bem. Mas quando a gente perde um

filho, é doído, Antônio! Mas, o que vamos fazer? Temos que ter paciência, meu filho.

Uma das coisas que eu não tenho coragem é ver descer à sepultura alguém da minha

família. Nunca quis assistir. O primeiro que eu vi morrer foi pai, a Flora teve coragem

de acompanhá-lo à sepultura, eu não. O mesmo aconteceu com Severino e com José.

Não tive coragem. E não vou não. Até aquela última despedida não gosto de fazer, não

tenho coragem, meu filho.

Antônio – Você acha que o presente é melhor do que o passado que você viveu?

Madia – O presente (hoje) está melhor do que o passado. As condições são melhores,

em tudo por tudo. O passado era muito pequenininho pra nós. Você sabe que o alimento

nunca faltou na nossa modesta casinha. Mas era algo assim muito sofrido. Tinha-se que

trabalhar em anos ruins, outros bons. E a gente via o esforço de nosso pai, que sempre

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lutou. Hoje está folgado. Está tudo mais fácil. No caso dos meus filhos, vejo que ricos

não são, mas têm ao menos o bocado para comer. Acho que o presente está mais fácil.

Antônio – E o Nordeste, ainda quer voltar lá?

Madia – A passeio, sim! Se eu não adoecer, eu tenho vontade de ir lá. A gente fica mui-

to triste porque hoje, lá, da nossa família, somente tem Valdeci. E a gente chegando

naquele cantinho, sem ver os entes queridos que você sabe que não voltam mais, não é

nada fácil. Mas, se aparecer uma oportunidade, como o Osvaldo fala de me levar, eu

estando boa, tenho intenção de ir. Se Deus quiser, estando boa de saúde... Eu estou bem

de saúde, minha pressão está controlada, me sinto bem. Apenas o corpo não é mais a-

quele, não tenho mais aquela força. Ao descer do carro do Hélio, ontem à noite, foi pre-

ciso o Daniel me ajudar (risos). Não deu mais, as pernas não têm mais aquela força e a

camionete dele é alta... (ri muito). Na do Anísio até que eu me viro bem, tem um jeiti-

nho... Mas a do Hélio já é moderna, muito moderna, sabe? Precisa de uma ajudinha. O

Daniel foi me ajudar (rindo muito), pegou aqui assim e começou fazendo cócegas - eu

tenho uma cócega medonha -; dei pra rir e disse a ele: vamos parar e procurar outro

meio (rindo).

Antônio – Madia, que mensagem você deixa para os filhos, netos, bisnetos e sobri-

nhos, essa garotada nova da nossa grande família?

Madia – Eu peço, primeiramente, a Deus que lhes dê muita felicidade. Que eles cres-

çam felizes; eles com seus pais, todos eles, dos pequenininhos aos grandes (pede um

lenço para enxugar os olhos). Que eles obedeçam aos seus pais, seguindo o caminho

certo e fazendo o gosto dos pais. Dirijo-me às minhas netas, que já estão ficando moci-

nhas e outras que já estão moças formadas, que elas vejam e pensem bem com quem

elas vão se casar. Porque não é bom casar com uma pessoa com quem não se tem ami-

zade; casando só por casar. Não façam isso, não. Tem que ver se gostam um do outro

para fazerem um lar feliz, sem tristeza e sofrimento. É a mensagem que eu deixo para

todos eles.

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Virgínia Verônica da Silva32

Antônio – Virgínia, o que você lembra de sua infância, na Fazenda Matarina, na

Paraíba?

32 Casada com Aldir Silva, nasceu no dia 13 de abril de 1931. Tem duas filhas: Débora e Rosângela. A

presente entrevista foi feita no Recife, aos 11 de junho de 2009, na residência de Antônio Jorge Siqueira.

Desde a década de cinquenta do século findo que Virgínia mora em São Paulo. Só retorna ao Nordeste

para passeios.

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Virgínia - Ah, Antônio, eu lembro que a gente convivia com os filhos de comadre Qui-

téria Prata e meus os irmãos que eram Madia, Flora, Manoel José, Conceição, Severino,

Anísio e você, que o era menor. Lembro de Margarida Cabral e Terezinha Cabral. Os

mais aproximados da gente e que a gente gostava mesmo eram da família de mãe. Tam-

bém recordo de comadre Quitéria Prata; a gente ia passear com ela e aí a gente buscava

arrumar namorado. Eu namorava Ageu, a Flora, Antônio Cabral, e a Madia, Zé Gui-

lherme. Nós íamos às festas na Prata, ou então em Monteiro. A gente não tinha dinheiro

e para o lanche nós comprávamos um “taco” de pão, pão doce [rindo...]. A gente saía

comendo por dentro dos matos, pois Monteiro era muito longe e as distâncias chama-

vam-se léguas. Então, a gente comia os pães lá no escuro. Nós saíamos daqueles matos

e passávamos a noite nas festas, para cima e para baixo; sem ter dinheiro para nada, sem

poder ao menos comprar uma xícara de café... Quando era de madrugadinha, a gente

vinha embora para casa, a pé. Chegava todo mundo cansado. A gente dava uma deitadi-

nha, e logo cedo mãe dizia: “Acorda, vão buscar água!”. Ah! Quantos potes de água eu

quebrava. Caía pra trás, sem a coluna aguentar; é por isso que eu hoje tenho a coluna

avariada [rindo muito!]. Quando já estava mais crescidinha, pegava a lata d’água e

colocava numa barreira para puxar para a rodilha que estava na cabeça. Chamávamos

“rodia” (rodilha): um pano bem dobrado que se colocava na cabeça para amortecer o

peso das vasilhas. Aquilo caía e prejudicava a coluna da gente.

Antônio – Você falou em namoros. Conte como eram esses namoros de vocês...

Virgínia – Os namorados? Eles não podiam nem chegar perto, porque não podiam

mesmo. Do contrário, mãe dizia que a “honra descia de perna abaixo” [rindo muito!].

É, caía de perna abaixo. Não podia, não podia chegar perto. Receber um beijo? Isso era

a coisa mais feia do mundo. Era coisa de “puta”. Hoje não, hoje é tudo moderno. Na-

quele tempo, quando se começava a namorar, o rapaz tinha que ficar distante uns três ou

quatro metros. Ele ficava lá, e a gente ficava sentada, de longe. Não se tinha assunto

não, não se falava nada, era tudo bobeira... Quanto às festas e às diversões, pai não dei-

xava a gente frequentar, para evitar que se arrumasse namorado. Pai não deixava. A

nossa vida era essa. Agora, quando chegava a segunda-feira, vinham homens de todos

os lados, e nós íamos para o roçado com todos eles plantar milho, apanhar algodão, a-

panhar feijão, quebrar milho, pegar aqueles lençóis cheios de milho, de feijão, de me-

lancia, de jerimum; amarrava e botava na cabeça aqueles lençóis, atravessava três a qua-

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tro “passadores” (passagens por sobre as cercas de madeira). Essa foi a nossa infância.

Convivência com as nossas primas por parte de mãe? Era difícil, porque elas moravam

longe, no sítio chamado de São Francisco. Era tudo mato, e a gente pouco se via e não

tínhamos tanta amizade. Além do mais, pai não deixava a gente sair, tinha muito ciúme

da gente.

Antônio – E a escola?

Virgínia – A escola, a gente frequentava. Nós íamos para a escola e geralmente tínha-

mos que levantar em torno de duas horas da madrugada. Eu, Flora, Manoel e José, ía-

mos buscar capim, lá num lugar chamado “Coqueiro”. Cheio de cobra, de escamas de

cobra, e a gente pisava em cima delas. Deus é tão bom que nunca a gente ficou doente,

apenas com os pés cheios de espinhos. Nós íamos buscar capim para dar comer às va-

cas. Quando se chegava em casa, o lanche era cuscuz com bem pouquinho leite. O leite

era para dar a um bocado de moleques lá de Santa Catarina; isso era ordem de mãe. Cla-

ro, o leite era pouco. O lanche da gente era aquele cuscuz seco. No almoço, muitas ve-

zes não tínhamos leite para comer com o “xerém” de milho e feijão, que era “feijão de

corda”. Às vezes, o feijão estava tão bichado que quando se botava na panela para fer-

ver, era um caroço em cima e outro embaixo, no fundo da panela, a maioria podre. Vol-

tando ao assunto da escola, minha primeira professora foi a Antônia Ananias, tua ma-

drinha. Depois de Antônia, foi mestre Gonçalo. Lembro que ele era da família da mãe

de Enedina. Era um professor maravilhoso. Ele sofria de paralisia; era paralítico das

pernas. Diziam que ele havia quebrado uma garrafa de querosene nas pernas e, por con-

ta disso, teria ficado paralítico. Ele era professor da gente, um bom professor. Isso tudo

foi em Matarina. Depois, a gente estudou também com Manoel Clementino. A minha

leitura, até hoje, infelizmente, é esta: eu falo errado, escrevo errado e leio errado. Por

quê? Naquele tempo, os nossos professores que ensinavam nos sítios não corrigiam os

erros dos alunos. Então, eles eram isso aí. O meu estudo foi esse. Quando pequena, meu

sonho era ser balconista de loja. Depois de adulta, realmente eu comecei a trabalhar na

loja de Severino Caminhão, irmão falecido da Enedina. Isso foi inicialmente em Sertâ-

nia e, depois, em São Paulo.

Antônio – Continuando essas lembranças da sua infância, fale agora de seu rela-

cionamento com os irmãos: Madia, Flora, Manoel, Conceição, José...

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Virgínia – Ah, o negócio era brabo. A gente brigava muito, principalmente com a Ma-

dia. Pai tinha um rebanho de gado e, à noite, as vacas eram todas soltas no curral e fazi-

am cocô no terreiro de casa, cheio de terra. A Flora e a Madia tinham de varrer aquelas

tuias de merda e me chamavam pra varrer também. Eu não ia e, por isso, me chamavam

de preguiçosa. Diziam que eu era podre de preguiça. E, também por isso, eu apanhava

[rindo!] e apanhava muito. A Madia puxava os meus cabelos e eu caía no choro, chora-

va muito. Por isso mesmo, eu chamava Madia de “gota serena” [rindo muito!]. Na

maioria das vezes, eu dizia: “Não vou, não vou apanhar! E você, dane-se, sua gota”! A

Madia batia, eu chorava era muito, e mãe sempre dizia pra Madia: “bem feito!” Voltan-

do ao assunto, aconteceu de mãe ter juntado alguns panos velhos e fez alguma coisa

assim como uns sacos velhos, dizendo que eram travesseiros. Ela então mandou que eu

fosse catar capim para encher os tais travesseiros. Eu não sabia para que servia aquilo.

Danei-me a juntar tudo o que tinha pelo terreiro: chinelo velho, tudo, uns podres e ou-

tros velhos. Juntava pedra, pedaços de tijolo, enchi aquele saco e, chegando junto dela,

disse: “Tá aqui, mãe, o que a senhora pediu para os travesseiros”... [ri muito!]. Era as-

sim a nossa infância.

Antônio – Quem era o mais bagunceiro dos irmãos?

Virgínia – O mais bagunceiro era o Manoel. Ele ia “roubar” melancia lá no roçado de

Antônio Terêncio, e pai tinha muita raiva disso. Ele se juntava com um colega dele

chamado Agostinho e ia comer as melancias dos roçados dos vizinhos. Pegava uma fa-

ca, furava o fundo das melancias do roçado de Antônio Terêncio e ia embora. O roçado

de Antônio Terêncio ficava num caminho que levava para a vazante do açude, e ele fa-

zia um caminho cortando as palmas miúdas. Nesse caminho, tinha muitas cobras, ai

meu Deus! Nessa vazante, a gente plantava tomate, feijão e milho. Aconteceu de apare-

cer até oito ou sete pés de milho e feijão nas covas, e pai logo, logo achou que era eu,

porque plantava as covas com preguiça. Num desses dias, tivemos que fazer uma re-

planta que consistia em replantar as covas que falhavam na germinação das sementes.

Lá, pai encontrou muitas pedras e então me acusou de ter feito aquilo, dizendo que eu

era “cu de preguiça”. Mas não era eu que fazia aquilo, porque eu plantava direito e sabia

muito bem contar os caroços. Numa dessas replantas, pra me vingar das acusações dele,

eu disse: “se pedra nasce, agora eu vou plantar pedra”. Porque, se eu planto milho e pai

diz que nasce pedra, agora vai ser pedra mesmo. E assim fiz, era pedra carreira acima, e

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pedra, carreira abaixo, e tome pedra. Era isso, afinal eu já tinha preguiça, e ele me cha-

mava “cu de preguiça”... O Manoel também era preguiçoso e safado. A Flora é que era

trabalhadora. Pegava a enxada e ia mesmo ao trabalho. “Tadinha da Flora!”, ela traba-

lhava muito. Tudo o que ela fazia era bem feito e ela tinha muita coragem. Manoel era

quem fazia parelha com ela, diziam que eu era “cu de preguiça”, mas também eu nem

ligava. Quando ia limpar mato, eu chegava junto a umas touceiras de café brabo - uma

erva resistente e dura e de uma folha bem verde -, danava a enxada naquelas touceiras e

logo elas desacunhavam. O Manoel ia acunhar a enxada e, enquanto ele acunhava, eu

ficava sentada, descansando, veja só! Minha infância foi essa. Eu sempre reneguei o

roçado. Nunca tive coragem de trabalhar na roça. Eu ia apanhar algodão com a Flora -

ela era danada de rápida em apanhar algodão –, e tinha uns buracos no roçado. Eu olha-

va para aquele sol quente e ali mesmo dormia. A Flora continuava trabalhando e, bem

mais tarde, ela dizia: “Virgínia, Virgínia, acorda!” Quando eu acordava não tinha um

capucho de algodão dentro do saco, que nós chamávamos “seio de algodão”. Eu era

assim.

Antônio – Vocês, meninas, na puberdade e adolescência, conversavam com mãe

sobre o desenvolvimento do corpo...

Virgínia – Não! Era feio! Ave Maria, era a coisa mais feia do mundo. Os nenês, nossos

irmãos recém-nascidos, a gente só sabia que mãe ia ter quando escutava o choro, no

momento do parto assistido pela parteira. Mãe passava de dois a três dias sofrendo e,

naquele tempo, não se contava com a assistência dos médicos, porque não existia isso.

Tudo era assistido pela parteira e mãe sofria muito. Quando a gente via mãe fazendo

aqueles chapeuzinhos com rendas, aquelas roupinhas, nós já sabíamos que ela esperava

nenê. As fraldas, sabe o que eram? Eram bandas de saia de mãe e da gente. Por ali, nós

ficávamos sabendo que ela ia ganhar nenê. E nós tínhamos muita alegria, porque sabía-

mos que ia nascer mais um irmão ou irmãzinha. Quanto ao conforto da gente, é isso que

eu te falei. Era pouco. Lá, na Paraíba, a gente ia apanhar algodão na roça: eu, Flora,

Manoel, José e mãe ia levar o lanche da gente. Sabe o que era? Era milho torrado e não

era com aquela pipoca bonita; era aquele milho torrado dentro da cinza, em panela de

barro. Com aquilo, o caroço de milho não crescia não [rindo muito!]. E a gente comia

assim mesmo. Pai era uma pessoa que gostava muito de plantar tomate e batata. Nós

íamos arrancar batata com os trabalhadores, e eu gostava muito de comer batata crua.

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Eu tinha uns dentes bonitos, mas dizem que o leite da batata era muito ruim para os den-

tes. Eu ficava com os lábios, - nós chamávamos de “beiço” - todos grudentos [ri mui-

to!].

Antônio – Voltando àquele assunto da puberdade das meninas. Vocês não conver-

savam com mãe, mas conversavam entre vocês, amigas e irmãs?

Virgínia – A menstruação era chamada de “Chico” [ri muito!]. E lembro que a primei-

ra vez que chegou a minha menstruação, eu tinha ido fazer xixi lá pelos matos, e quando

menos me dei conta, estava toda ensanguentada. Então, eu pensei que tinha me furado

em algum toco de madeira, um toco de marmeleiro [ri muito]. Perto, tinha um barreiro

cheio d’água. Manoel era quem fazia esses barreiros. Eu, então, entrei barreiro adentro,

tomei banho e quanto mais eu tomava banho, mais escorria aquele sangue. Por conta

disso, cheguei em casa toda desconfiada, dizendo comigo mesma: “Mas meu Deus, o

que é isso?” A Flora já tinha visto a minha calcinha manchada de sangue, coisa que eu

ainda nem tinha notado. Ela falou pra mim: “Eita, o Chico veio”. Eu fiquei braba e cho-

rei foi muito. Fiquei muito triste e com vergonha. A nossa infância foi assim... E você

sabe Antônio, apesar de tudo isso, a gente era feliz e não sabia.

Antônio – Dessa época da infância, qual a imagem que você guarda de nosso pai?

Como é ele na sua lembrança?

Virgínia – Pai era uma pessoa muito seca e não tinha carinho nenhum com a gente.

Caso acontecesse da gente fazer uma coisa errada, pai batia e batia muito, principalmen-

te no Manoel. Mais nos meninos do que nas meninas. Um dia, ele juntou a mim e Flora

para nos bater; mas não mais era época de bater na gente. Ele veio nos bater por conta

de cigarro que eu me habituava a fumar. Mãe pedia para eu fazer cigarros de palha para

ela, e eu estava me habituando a fumar. Numa dessas ocasiões, eu percebi um cachimbo

de barro e resolvi fumar. Terminei ficando tonta, rapaz! Ensinaram-me que lama de

fundo de pote era bom para tonteira de fumo e eu fui experimentar daquela gosma. Ao

retirar o pote, embaixo havia uma cobra enroscada. Era uma malha de cascavel e quase

que ela me morde. Mas ela não me mordeu, porque Deus foi grande. Eu cheirei aquele

barro e dormi. Pai chegou e eu dei logo uma carreira para o quarto dele, e ele me pegou

para bater. Quando ele me pegou, de medo eu já tinha feito xixi na roupa; porque ele era

muito estúpido, muito bruto. Mesmo assim, ele bateu em mim, dando-me três golpes de

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palmatória em cada uma das mãos. Aquilo foi uma das maiores dores que eu senti. Os

castigos dele eram assim, muito duros. Ele não era um pai calmo e educado. Pai não

sabia dar uma educação de carinho para a gente. Mãe era também um pouco grossa. Ela

não queria que a gente namorasse. Mas era uma pessoa muito inteligente. Não foi à es-

cola e não aprendeu a ler, porque o pai dela dizia que ela não precisava saber ler e es-

crever para não mandar bilhetes para os namorados. Por isso mesmo, mãe nunca apren-

deu a ler, mas era muito inteligente. Ela nos dava bons conselhos, cuidava da gente e até

chegava a nos dar carinho. Com ela, a gente conseguia brincar, rir, gracejar; ela era ca-

rinhosa, ao contrário de pai, que nunca nos passava carinho. Ele exigia que nós traba-

lhássemos na roça como os homens trabalhavam. Como eu já disse, não nasci para tra-

balhar na roça. Eu ia porque era obrigada. Nós sofremos muito na infância, e mesmo

assim, no fundo, no fundo, com os meus setenta e oito anos de hoje, eu tenho muitas

saudades do passado, muitas recordações dos tempos em que vivemos juntos com os

irmãos...

Antônio – Dando continuidade a essas lembranças da infância, você recorda das

amizades de nossos pais e de vocês, ali na Matarina?

Virgínia – José Porfírio era um grande amigo nosso; Também Cícero Nunes, que era o

dono da propriedade Matarina. Cícero Nunes era uma pessoa maravilhosa e de um cora-

ção muito bom. Ele tinha muita cabeça de gado. Cada ano em que mãe ganhava um fi-

lho – e os nossos irmãos nasciam de dois em dois anos -, ele nos dava uma vaca para

garantir o leite para aquela criança. Ele tinha um bom coração. Somente depois que pai

fazia a colheita do algodão é que ele botava o gado dentro da roça. Ele nunca foi um

patrão ruim, mas pai não gostava muito dele. Mas eu, ainda como criança, já sentia que

Cícero Nunes era uma pessoa maravilhosa. É tanto que a gente saiu da propriedade dele

e foi morar em Santa Luzia - Sertânia -, Estado de Pernambuco. Significa dizer que a

gente saiu da terra dele, de Cícero Nunes, para o que era da gente. Não foi, portanto, um

patrão ruim, porque pai trabalhou muito e com o dinheirinho que juntou lá deu para

comprar alguns pedaços de terra. Eram pequenas as terras que, no início, pai comprou

em Pernambuco. Juntando as compras de um e outro, a gente conseguiu fazer a proprie-

dade de Santa Luzia.

Antônio – Você falou em Zé Porfírio, Cícero Nunes... Que outras pessoas mais?

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Virgínia – Tinha os Ananias. Manoel Ananias era primo de pai. Tio Ananias era o pai

de Manoel. Depois, tinha comadre Antônia, que foi nossa professora, Laura e Francisca.

Era uma família chegada a nós, porque eram primos de pai. Inclusive os irmãos de mãe,

nossos tios. Tio Feliciano, Tio Umbelino, - que grande tio era ele, deve estar no céu!

Tinha titio Moisés, tio Joaquim, - que era uma pessoa maravilhosa, e eu queria muito

bem a ele; titio Manoel, titio José e titio Antônio. As mulheres: titia Júlia, titia Maria...

(que mãe chamava de “Maria penca verde”, porque ela era muito somítica. O marido

dela fazia rapadura, e ela às vezes levava lá pra nossa casa e nós comíamos. Eram umas

rapaduras velhas, pretas...). Titia Júlia era uma pessoa maravilhosa. A gente queria mui-

to bem a tia Júlia, que era a mãe de Firmo Batista, o poeta cantador. Além de Firmo,

tinha João e Dezinho. Esse era doido, doido. Ah rapaz! Tem a história de Brasil, o negro

velho Brasil. Ele era da Paraíba; que pessoa linda! Todos os dias, às cinco horas da ma-

nhã, Madia ia atrás de Brasil, na casa de comadre Lia, que era também muito amiga da

gente; ela era mulher de Severino Belo. Ia atrás dele para levar galão d’água lá pra casa

e ralar o milho. Ele era doido por Madia; e quando ela bulia com ele, ele dizia: “Mari-

quinha, isso é lá conversa! Isso é hora de uma mulher vir atrás de homem! Você aí nos

roçados, nas cacimbas, vá embora pra casa Mariquinha. Isso é feio!” [ri muito!]. E Ma-

dia o chamava pra ralar o milho, e era assim. Nós queríamos muito bem a Brasil. Ele já

morreu. Contavam-nos que os pais dele tinham sido escravos, no tempo antigo. Era bem

preto. Uma pessoa de grande respeito. É, tinha também os filhos de tia Josefina: Terezi-

nha, Inácia, Manoel e Maria. Moravam em São Francisco, pertinho da família da Enedi-

na que tinha como mãe, Margarida e Zé Caminhão, como pai. Também lembro muito

dos pais de mãe, nossos avós maternos: Mena (Filomena) e Padim (padrinho) Velho.

Lembro que lá, na Paraíba, e até mesmo aqui, em Pernambuco, eu e Flora, a gente ia

apanhar algodão e eles iam conosco. Nós ficávamos debaixo daquele juazeiro com a-

quele monte de algodão. Padim Velho contava pra nós, falando assim: “Quando chegas-

se a era de sessenta, pai ia desconhecer filho e filho ia desconhecer pai. E haveria muitas

cabeças e poucos rastros”. Era assim que ele falava pra gente. Ele era muito bonzinho

com Mena e não era ciumento.

Antônio – Vamos fechar essa etapa da Paraíba e abrir outra, que é a da mudança e

a permanência em Santa Luzia, no Moxotó pernambucano. Você lembra alguma

coisa dessa mudança?

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Virgínia – Claro que sim! Foi em janeiro de 1945. Em 1945, foi também o ano em que

Elias nasceu. A vida que a gente passou a viver em Santa Luzia era a mesma da Paraíba:

a gente sempre trabalhando na roça. A mudança dos pertences, eu acho que foi num

caminhão. Os móveis, rapaz! [rindo muito!] A cama de mãe, era de corda. Não, era de

couro; só não sei se era de vaca ou de boi. Era um couro estampado. Parecia a zabumba

do diabo. A gente batia e dizia que era a zabumba, e mãe se danava com a gente: eu,

Flora e o Manoel [rindo muito]. Ah, rapaz! Eu esqueci uma passagem. Por falar em

cama, na Paraíba eu dormia numa rede que só tinha uma banda. Sabe o que é a banda de

uma rede, não? A corda era amarrada numa vara de marmeleiro. Eu dormia com o Aní-

sio. Ele era pequenininho, e era eu quem cuidava do Anísio; dava banho nele, dava co-

mida, praticamente ele dormia nos meus braços. Quando foi uma noite, eu caí no chão,

despenquei da rede [ri muito!]. Caímos os dois. O Anísio chorou foi muito, e eu ficava

com muita dó dele. Isso aconteceu quando ele era pequenininho. Depois, a gente passou

a ter uma cama; isso já era mais moderno, era de corda, aliás, de corda, não! Era de las-

tro. Lastro eram tábuas que, de noite, batiam mais que uma zabumba, rapaz. Era tábua

velha pra lá, tábua velha pra cá, inclusive aquilo empenava tudo com o calor. Eu era

vaidosa, era moleca, mas já era vaidosa; como meu cabelo era comprido, ele enchia de

piolhos e lêndeas. Aquilo coçava muito durante a noite e precisava ver o quanto inco-

modava. E pai não consentia que nem eu, nem Flora, nem Madia, nem mãe cortássemos

os cabelos. Tinham que ficar longos. Eu, então, cortava papel e enrolava os cabelos na-

queles papéis. E a Madia e a Flora, muito sem-vergonhas, à noite, pegavam um candeei-

ro velho com querosene e um pavio de algodão dentro dele; acendiam o fogo e, devaga-

rinho, tiravam os papéis do meu cabelo. Quando eu acordava chamava-as de “gota sere-

na” e muitos outros nomes. Eu tinha uns cabelos lisos e queria que eles ficassem cache-

ados. Eu já era vaidosa mesmo.

Antônio – Virgínia, parece que você e Flora tentaram ser fabricantes e comercian-

tes de louça de barro, lá na Matarina, é verdade?

Virgínia – Foi. Isso foi lá, na Matarina. A gente começou isso lá na Paraíba, onde a-

prendemos a fazer louça de barro com comadre Lia e comadre Dina. Dina era uma moça

do Agreste, e Lia era a esposa de Severino Belo, que ela chamava de “doutor”, porque

ela não queria que a gente fizesse barulho. E quando ele se aproximava ela dizia: “Lá

vem o doutor!”. Nós ríamos e nos divertíamos com aquilo. Dona Lia morria de medo

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do Severino Belo, mesmo ele não sendo brabo com ela. E nós, então, começamos a fa-

zer louça para vender. A Flora era caprichosa, eu não. Eu não sabia fazer direito, e cada

fundo de panela, de pote e de alguidar que eu fazia ficava com uma espessura muito

grossa e quando ia queimar no forno, rachava e quebrava tudo. Manoel e pai riam muito

dessa nossa fabricação, e eu ficava louca e chorava muito. Ia lá, no tabuleiro dos matos

e quebrava a maior parte de minha fabricação. Tinha um senhor idoso que era compadre

de Zé Guilherme - eu esqueci o nome dele –, ele comprou oito contos de réis de panelas

e não pagou, rapaz! Nessa ocasião, eu peguei uma briga danada com Luzia e o marido

dela, que não lembro o nome agora. A Madia deve lembrar. Eu fiquei doida da vida

porque lutei tanto fazendo aquelas panelas velhas de barro e aparece alguém e leva tudo

de graça, sem nunca me pagar. Era assim o nosso comércio, não entrava dinheiro não.

Eu, mais a Flora, já em Pernambuco, a gente ia catar mamona, enchia os terreiros de

mamona para secar e depois vender. Só assim a gente pegava algum dinheirinho para

comprar um sabonete, uma caixa de pó, comprar algum perfume... Sabe como era o

nome do perfume que a gente comprava? Era “Dirce” [ri muito]. Era um tipo de óleo

velho, fedorento, mas aquilo pra nós era o melhor perfume do mundo. O sabonete era

sabão da terra para o banho. Um dia, eu fiz uma decoada. Sabe o que era decoada? Era a

cinza que a gente colocava com água dentro de uma bacia e deixava decantar. Pegava

aquela água decantada no fundo da bacia e com ela lavava roupa. Era uma química mui-

to forte. E, um dia desses, eu sem saber, juntei tudo e fui lavar o cabelo e tomar um ba-

nho. Olha, não prestou nada, o cabelo ficou durinho. Madia via aquilo com mãe e as

duas ficavam doidas de dar risadas. Era assim a nossa infância.

Antônio – E os primeiros anos em Pernambuco mudaram alguma coisa em relação

com a Paraíba?

Virgínia – Mudaram, porque a gente estava crescendo, a gente já ia à missa, a gente

tinha muitos afilhados, mais que mesmo na Paraíba. Íamos assistir à procissão eu, Flora,

Madia – que logo casou, já no ano de 1945. Não sei dizer se a Madia casou em casa ou

em Sertânia... O vestido dela era branco, era lindo; foi muito bem feito o vestido da

Madia. Mas não sei dizer onde ela casou. A gente ia para Sertânia a pé, sempre a pé,

seis quilômetros a pé, ida e volta, o que somava doze quilômetros. Nós trabalhávamos o

ano inteiro para comprar três vestidos, um para a festa de Nossa Senhora da Conceição e

os outros dois para as festas de Natal e Ano Novo. O nosso dia-a-dia com as obrigações

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de casa e do roçado era muito duro. Tínhamos, por exemplo, que lavar a roupa da famí-

lia e dos demais trabalhadores. E é aqui que entra a história de um deles, chamado Luís

Pituta. “Ah cachorro da mulesta”! Coitado, já morreu o bichinho! Como eu dizia, a gen-

te não tinha direito a uma caixa de pó. E, além dos onze irmãos e da família, tinha sete

trabalhadores para quem tínhamos que lavar, passar e fazer a comida. Mãe ficava lou-

ca... E tinha um tal de Alcides, com quem eu um dia quebrei um pau danado. Começou

pelo Luís Pituta... E tinha também Sebastião, que nem conseguia enxergar direito. Du-

rante a semana a gente passava o tempo todo trabalhando com eles. Sebastião doido

para namorar comigo e Flora. Quando era no domingo, na hora em que a gente tava na

mesa com ele tomando café, ele botava os braços escorados na mesa e ficava olhando

com um olho bem comprido para mim e Flora. Aqueles olhos “bonitos”, doido para

namorar. Ai eu chegava assim junto da Flora e dizia: “Home, vai cheirar teu... Quem

quer namorar com uma desgraça dessas...? O diabo passa a semana trabalhando junto,

no roçado, e no domingo fica se enxerindo pra gente”. Nessas horas, eu a Flora ríamos

de não aguentar. Quando foi num domingo, Manoel chegou lá em casa. Ele era muito

sem-vergonha e só vivia lá em casa. Casou, mas só vivia lá em casa e sempre ele estava

no meio dessas histórias. Naquele tempo, os homens usavam vestir umas calças de linho

branco, bem clarinho. O Luís Pituta, com toda essa trabalheira, nunca foi capaz de nos

dar uma caixa de pó ou um sabonete sequer. Na sexta e no sábado, eram dias da gente

lavar aquele monte de roupa. Botava aquela trouxa de roupa na cabeça e íamos procurar

água boa de lavar roupa, cedida pelo nosso vizinho Sinésio, no Rodeador. Sinésio era

uma pessoa muito boa, juntamente com Paisinho Remígio, nossos vizinhos. Inclusive,

Antônio, lembro que você era meu amigão e que era quem sempre levava o almoço para

mim lá nos tanques de José Antônio, lembra? O almoço que mãe preparava era na base

de xerém com leite e um pedacinho de carne. Algumas vezes um pouco de cuscuz. Ela

misturava tudo e mandava você levar lá para eu almoçar. Eu lavava a roupa daqueles

trabalhadores, inclusive as cuecas velhas encardidas de Sebastião. Ele mijava naquelas

cuecas velhas, e elas ficavam encardidas. Um dia, eu fui lavar a roupa na barragem de

Paisinho e lá estavam aquelas calças e cuecas nojentas de Sebastião. Eu não tive dúvida:

joguei aquelas calças na lama, mijei em cima e botei no arame para enxugar. Nisso,

chegando em casa, eu chamei Manoel e contei tudo pra ele. Manoel estava em todas e

sabia de tudo. Foi a pior viagem essa de contar pra ele. Aquele “cachorro da gota” ria

que chorava. Quando ele encontrou Sebastião, foi logo dizendo: “Sebastião, vem ver a

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tua calça como é que está! Vem ver!” Estava toda preta. Ele, Sebastião, ficou louco da

vida. Manoel, então, disse: “foi Vrigina” - ele me chamava assim. Diz ele pra mim:

“Conta a verdade, tu mijaste ou não na calça de Sebastião?” Eu respondi: “Foi isso

mesmo!” Aí passou o tempo e, claro, ele ficou mordido. Voltando à história de Pituta,

num daqueles domingos eu já estava queimada de raiva quando apareceu Luíz Pituta,

que era bem baixinho. E me disse: “Virgínia, eu quero hoje minha roupa passada”. Os

ferros de engomar daquela época eram na base da brasa viva e esquentavam demais o

fundo, queimando muitas vezes a mão da gente. Era um sofrimento engomar roupa com

aquela desgraça, rapaz! Eu então comecei passando a roupa dele. Joguei pra lá, empur-

rei pra cá e disse comigo mesma: “Cachorro da gota, hoje você me paga”! Ele, então,

foi vestir a roupa e me disse: “Ô Virgínia, vem cá! Essa calça está muito malpassada”.

Eu, então, disse: “Vá pro inferno, seu cachorro da mulesta, seu gota serena... Você nun-

ca me deu nada, e eu aí, durante a semana toda, lavando e passando roupa pra você, e

você ainda reclama de roupa malpassada! Vai pedir à p... que te pariu pra passar a tua

roupa, infeliz!” E, nisso, rapaz, ele foi embora lá de casa. Eu então disse: “O negócio

agora aqui é meu, não é mais nem de pai, nem de mãe”. Era trabalho demais, Antônio!

Alcides, ia esquecendo também do Alcides, Antônio! Alcides era um dos nossos traba-

lhadores e tinha uma namorada lá num sítio daqueles, na Queimada do Milho. Ele tinha

uma irmã que morava em Sertânia e, apesar disso, a roupa dele era eu que lavava e pas-

sava. Depois eu quebrei o pau e terminei não lavando mais a roupa dele. Ele chegou

numa segunda-feira e neste dia não tinha lenha nem carvão algum para a gente cozinhar.

Aí eu juntei lá uma “maravalha”, que eram uns pedaços de lenha tirada da cerca, sei lá,

a fim de cozinhar o xerém. Pai e mãe tinham ido para a roça junto com os trabalhadores.

Eles chegavam cedo para almoçar e, por volta das dez horas, todos já estavam em casa

esperando o almoço. Onze horas era o máximo. O Alcides chegou cedo do trabalho da

roça dele, onde colhia milho, jerimum, melancia etc. Ele levava tudo para a cidade. E eu

fazendo comida prá ele em nossa casa! Lavar roupa, não, que eu já tinha brigado com

ele. Quando ele chegou, eu pus a comida para ele, e ele me falou que o xerém estava cru

[ri!]. Perguntei a ele: “O xerém ta cru, Alcides?” Ele disse que estava. Aí eu disse: “Vai

comer xerém cozido no inferno, na casa do diabo, eu vou contar pra pai quando ele che-

gar aqui”. Aí ele disse: “Não! Pelo amor de Deus, não faça isso não”! Aí eu disse: “Tu

vais ver”! Ele saiu dali e foi para o armazém velho, que era onde ele dormia. Foi quando

pai chegou e eu servi o xerém para ele e os demais e falei a ele, contando o acontecido.

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Pai disse “espere aí”. E pedi a ele para não falar coisas demais, porque eu já havia re-

clamado tudo a ele. Pai, então, disse que ele podia catar tudo o que ele tinha lucrado na

roça e “desse no pé”, mandando-o embora. Foi, mandou-o embora.

Antonio – Virgínia, não sei se você lembra que eu fui o último dos irmãos a nascer

na Paraíba, em 1942. Antes de mim, houve um irmão que faleceu e tinha o nome

também de Antônio, não?

Virgínia – Lembro. Os padrinhos dele eram Antônia e Manoel Ananias. Ele tinha nove

meses, e eu lembro bem, ele era bem bonitinho, bem branquinho. Mãe cozinhava batata,

e quando elas estavam cozidas ela botava aquelas batatinhas numa bacia. Ele saia se

arrastando e ia comendo aquelas batatinhas. Depois, apareceu nele uma doença chama-

da “crupe”, que os médicos ainda não sabiam curar. E também não tinha médico para

tratar, tinha apenas um enfermeiro, chamado Alcelino, que morava na Prata. Mas não se

tinha médico que tratasse os doentes naqueles sítios, naquelas fazendas, não existia

mesmo. Aquela doença o atacou, ele morreu, morreu sem poder respirar. Morreu muito

rápido, infelizmente. Ele era a coisa mais linda. Foi um desgosto muito grande que a

gente passou. Depois da morte, mãe chorava muito por ele. Quando foi uma noite, ela

sonhou com ele todo molhadinho. Naquele tempo, quando as crianças morriam eram

sepultadas num caixãozinho cheio de papel verde, branco, rosa e vermelho, todo enfei-

tadinho. Mãe sonhava que naquela tarde estava chovendo muito, e ela, saindo assim

pelo canto da casa, onde tinha um pé de mulungu, o encontrava chorando. Aí ela per-

guntou: “Porque meu filho está chorando?” Ele, então, respondia: “Estou chorando por-

que mãe vive chorando muito por mim. Por isso mesmo, eu estou todo molhadinho”.

Nessa hora, mãe acordou muito aflita, chorando muito. A partir dali, ela jurou a Deus

que não ia chorar mais por aquele menino e não mais chorou. Logo após a morte dele,

mãe ficou grávida de você, Antônio. E, quando você nasceu, ela tomou os mesmos pa-

drinhos. O motivo foi que ela gostava muito deles e ela ficou muito triste que o filho

tivesse morrido. Por isso, tomou os mesmos padrinhos. E eu sei que ela não se arrepen-

deu, porque em seguida você veio. De todos os nossos irmãos, você sempre foi muito

inteligente, usou muito sua cabeça. E Deus lhe deu essa inteligência, e você hoje é feliz.

Você, quando era pequeno, queria ser padre. Isso para todos nós, principalmente pai e

mãe, era a maior felicidade. A primeira professora sua foi Zefinha Çula, filha de mestre

Çula, uma família de Sertânia; ele foi o mestre de obra de nossa cisterna, que ainda hoje

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existe. Com um mês de escola, D. Zefinha falou pra pai que você era muito inteligente e

que já imitava a caligrafia da professora. Lembra? [eu respondo que não!]. Depois,

você botou na cabeça que queria ser padre. Você lembra de uma vez que nós fizemos

uma viagem por aquelas cidades ali do Agreste de Pernambuco - Pedra e Alagoinha-,

arrecadando dinheiro para suas despesas no seminário?33

Houve a festa da padroeira da

cidade de Pedra, onde pertinho, num sítio, morava o Tio Pedro, irmão de pai. Oh, que

tio querido e estimado! Eu queria muito bem a ele. Você foi comigo e como eu nunca

tive vergonha de certas coisas, eu via que você ficava muito tímido, mas eu nem ligava

para aquilo. Para mim, eu estava realizando um sonho, estava sonhando muito alto. Eu

disse: “vou pedir esmola dentro de Pesqueira para eu doar esse dinheiro para o Antô-

nio”. Naquele tempo, você ainda não usava batina, não queria ir de forma nenhuma, mas

rendeu um pouco de dinheiro.

Antônio – Vamos voltar a Sertânia, ao Sítio Santa Luzia. Durante muitos anos, pai

manteve às nossas custas a professora D. Zefinha Araújo, que ensinava na propri-

edade a todos os alunos da vizinhança. Você lembra esse passado?

Virgínia – Lembro, ela chamava Anísio de “cara lisa”. Ela vivia lá em casa. Passava

toda a semana e, na sexta-feira, ia de volta para Sertânia. Ela era uma boa professora e

falava que você, Antônio, era uma pessoa muito inteligente. Morreu quase toda essa

família.

Antônio – Virgínia, nessa época, com as proibições de pai para ir a Sertânia, tio

Umbelino era o grande quebrador de galho de vocês, com festinhas e danças de

viola, não?!

Virgínia – Ah, eu vou contar! Ele tocava viola, e nós organizávamos o baile. Isso para

pai era uma coisa do outro mundo. Mãe nem ligava. Lembro bem que tinha uma cerca

que passava bem em frente de nossa casa, lembra? Eu e Flora, a gente ficava em cima

33 Eu respondo a Virgínia que lembro e, já naquela época, achei aquilo uma coisa horrorosa. Sentia muita

vergonha de andar pedindo dinheiro nas feiras daquelas cidades do interior. Inclusive, o reitor do Seminá-

rio, naquele tempo, monsenhor Augusto Carvalho, ficou sabendo daquilo e, na volta das minhas férias,

perguntou se fora eu mesmo que estava pedindo esmolas pelas cidades. Eu me fiz de desentendido, fin-

gindo que não sabia de nada. Foi melhor do que negar categoricamente. Mas jurei comigo que não faria

mais aquilo. E, tem mais: fui porque me obrigaram: pai, mãe e Dona Virgínia, minha entrevistada. Que

fique este registro para a memória da família!

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da cerca e pai ia dormir e mãe é que ficava acordada. Por conta dessa situação, a gente

começava a dar risadas. Numa dessas noites, pai acorda e pergunta: “Oh Verônica,

quem diabo é que está dando tanta risada?!” Mãe, então, dizia “Sei lá, José!”. Tu lem-

bras? Acontece que nós estávamos esperando pai dormir para pular a cerca e ir para o

baile na casa de tio Umbelino. Quem eram as damas e os cavalheiros, também? As da-

mas eram: eu, Conceição, a Flora, Isabel, de tio Umbelino, e Edite Guilherme. Às vezes

Celina, esposa de tio Umbelino, e Miúda, mulher de João Garcês. Os cavalheiros eram:

José, meu irmão, lembra? O Manoel, Duda Guilherme e Carlos, de Maria Gomes, espo-

sa de João Manoel. Esses eram os cavalheiros. E pai, um dia, teve uma discussão com

tio Umbelino, dizendo que ele estava inventando um cabaré na casa dele [ri muito!]. E

mãe, sempre tentando livrar a situação da gente, dizia: “Que cabaré que nada, José!” Ela

sabia que aquilo era uma brincadeira sadia, na casa do irmão dela, além do que ele era

uma pessoa maravilhosa. Tenho muita saudade do meu Umbelino! Aquilo era um passa-

tempo que fazíamos no fim de semana, e era muito gostoso. Lembro que ele tocava to-

das as músicas de Luiz Gonzaga, principalmente “Asa Branca”. Não tinha comida nem

bebida, porque a gente já ia pro baile “comido” [dá risada!]. Esses são os fatos de nos-

sa vida de infância.

Antonio – E os namorados de vocês em Pernambuco?

Virgínia – [rindo muito]. A Flora teve um namorado da Queimada do Milho, chamado

Leonel. Ela namorava e queria casar com Zeca, mas pai não aprovou o namoro dela

com Zeca. Para tapiar essa proibição do namoro com Zeca, ela consentiu em oficializar

o casamento com Leonel. Já de alianças, ela pegou um dia a aliança e jogou dentro do

barreiro. A Isabel, do tio Umbelino, então, disse: “Você é louca, Flora? Como é que

você vai achar essa aliança dentro do barreiro?” Ela queria era se livrar daquele com-

promisso. Um dia de domingo, a gente ia para a missa em Sertânia, e ele vinha com um

feixe de capim bem grande que escondia toda a cabeça. Nessa hora, a Flora olhou assim

e disse: “Espia como vem aquela gota serena... eu vou lá casar com aquele caipira da

peste, coisa nenhuma!” Você nem imagina o feixe de palha de milho que só tinha tama-

nho. A Flora via aquilo e não se aguentava. Ele nem assistia à missa. Arrumava-se todo,

nós já estávamos na missa, e ele chegava com um quilo de balas, que também chama-

vam de “confeito”. Eu chupava todas as balas. Eu chupava balas, de Sertânia até o nosso

sítio. No final, ela desmanchou o namoro com Leonel e ficou namorando escondido o

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Zeca. E foi a felicidade dela, porque ela gostava muito do Zeca e o Zeca também gosta-

va muito dela. Já a Madia namorou e casou com o Zé Guilherme e foi morar lá no Ria-

cho Queimado. A lua-de-mel dela foi lá no Riacho Queimado, dentro de uma rede de

varanda. Logo em seguida, Zé Guilherme fez uma cama confortável, de corda! Não ti-

nha colchão não! Era na corda. Ela teve os filhos, filhos maravilhosos; muitos filhos

teve a Madia. Eu acho que sofreram muito também. Depois, eu já estava em São Paulo e

foi quando eles mudaram para o Paraná. Novamente foi muito sofrimento quando a

Madia foi para o Paraná.

Antônio – Em Sertânia, nós tínhamos uma grande vizinhança. Entre eles, a velha

Josefa Traquinada, os Neves, Zacarias... Você lembra desses vizinhos?

Virgínia – E como lembro, rapaz! Caria... (Zacarias) é um deles... Pai tinha um roçado

que fazia divisa com a terra dos Neves. Perto da divisa, tinha um bom umbuzeiro. Eu

gostava muito de catar os umbus desse umbuzeiro. Um dia, eu chego ao umbuzeiro, e

advinha quem estava passando a cerca, já tendo catado todos os umbus? Caria! [rindo

muito!], Mas eu dei-lhe aquela “botada”: “Logo você, abrindo a cerca de pai; eu vou

contar pra ele”. Ele ficou louco: “Não faça isso! Pelo amor de Deus, não vá avisar isso

pra seu Zé Jorge”. Eu ficava danada quando ele catava os umbus antes de mim. Eu di-

zia: “Eu vou falar pra pai, danado!”. Os nossos vizinhos eram, portanto, José das Neves,

o Sebastião, irmão dele, João Manoel, que era o marido de Maria Gomes... Eu sempre

gostei muito de chupar umbu. Um dia, num daqueles pés de umbu perto de casa, fui

catar umbu e subi para pegar os umbus, bem no alto do olho do umbuzeiro. Quando

cheguei lá em cima, lá estava uma cobra chamada ”cobra-de-cipó”. A carreira foi muito

grande. Já pensou o sacrifício de subir um umbuzeiro, que tem aqueles espinhos, e, che-

gando ao topo, a gente dá de cara com uma cobra?

Antônio – E durante esse tempo, você teve alguns namorados ou alguns pretenden-

tes, além de Sebastião?

Virgínia – Tive, tive alguns namorados. Num dia de sexta-feira da Paixão, eu namorei o

Zeca, antes do namora da Flora. Com oito dias depois, eu marquei pra me encontrar

com ele. Nesse dia, ele acordou bem cedinho, tomou banho, se arrumou e foi pra cidade.

Nesse dia, eu não fui, e ele ficou doido. O que aconteceu? Tudo é prometido por Deus,

porque quem casou com Zeca foi a Flora. Eu tive outros namorados [pensando...]. Eu

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tive um namorado que morava lá junto da família da Dora do Elias. Não lembro o nome

do lugar... Era um namorado de lá. Mas ele não podia ficar perto de mim. A gente prati-

camente não tinha ocasião de namorar coisa nenhuma. Aí eu namorei o irmão de Zefi-

nha Çula, mas somente depois eu tive o grande amor de minha vida: Manoel, de José

Antônio, teu padrinho. Amei loucamente o Manoel. Amei, mas não fui amada. E você

mesmo foi um grande amigo meu nesse caso, nunca ficou contra o nosso namoro. O

Severino é que era contra esse namoro, por ciúme. Você, não. Não deu certo com Ma-

noel porque Deus não quis. Ele me prezava muito, mas também não ia além disso. Na-

quele tempo de namoro indeciso, eu trabalhava em Sertânia e, quando viajei com Anísio

para São Paulo para dar um rumo na minha vida, o Manoel, faltando dois dias para a

minha viagem, foi embora de Sertânia para Lajedo e de lá para Caruaru, onde comprou

um caminhão. Foram cinco anos de ilusão. E nunca mais veio morar em Sertânia. Ter-

minou casando com a Iva, filha de Caboclo Lulu.

Antônio – Vou pedir para você contar em miúdos a história do “roubo” da Flora

pelo Zeca para casamento.

Virgínia – [rindo muito!]. Pai tinha proibido o casamento da Flora com o Zeca. Ele

viajou para São Paulo; passou lá, acho que um ano e meio e, depois disso, com o apoio

da Naninha, irmã dele, num dia de domingo, cedinho da noite, veio num carro para le-

var Flora. A Flora, avistando o carro, saiu de casa e o Duda Guilherme que estava con-

versando com ela na janela viu tudo e ficou disfarçando a saída dela. Quando eu che-

guei, perguntei pra ele: “Cadê a Flora”? Ele disse: “Não sei!”. Mais tarde, nós soubemos

que o Zeca tinha levado a Flora para casar. A partir daí, pai sentiu muito e, juntamente

com mãe, ficou louco da vida...

Antônio – Flora nunca lhe havia falado sobre esse assunto?

Virgínia – Não. Quando o Zeca estava em S. Paulo, eu recebia carta de uma pessoa

intermediária entre ele e a Flora, uma mulher de Sertânia. Certo dia, eu fui passando, e

ela me perguntou: “Você é irmã da Flora?” Eu respondi que sim. Aí ela me disse: “Eu

tenho aqui uma carta de José Batista, namorado dela”. Eu peguei a carta e guardei co-

migo. Eu guardava comigo certa mágoa da Flora. Veio do seguinte. Naquele tempo em

que eu lavava roupa, com todo aquele sacrifício e naquelas condições, não era possível

fazer o serviço de lavagem e engomado da melhor qualidade. Muitas vezes, faltava sa-

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bão e com pouco sabão não havia condições de deixar aquela roupa em perfeito estado.

O serviço não era perfeito. Um dia, a Flora pegou uma daquelas peças de roupa e veio

reclamar de mim que o serviço estava malfeito ou feito pela metade. Eu respondi pra ela

que, se ela quisesse uma roupa bem lavada e com perfeição, que ela mesma fosse lavar.

Ela não gostou e me deu um tapa na cara. Mãe perguntou a ela por que ela havia feito

aquilo comigo. Ela simplesmente disse que eu era malcriada. Eu fiquei muito magoada

com aquilo. Na hora em que aquela mulher me entregou aquela carta, me veio a lem-

brança do que Flora tinha feito comigo. Eu, então, abri a carta, li e contei tudo pra mãe.

A Flora ficou muito braba e já avisou ao Zeca para não entregar correspondência àquela

senhora e resolveu ir embora morar em Sertânia, na casa de Chiquinha Bernardo, mu-

lher de Antônio Jerônimo, de cujo filho eu era madrinha. A partir daí, mãe passou a

saber que Flora estava namorando. Terminou ela voltando para casa, mas o ambiente já

estava muito pesado. Logo depois, foi quando ela fugiu, e foi a felicidade dela e dele.

Foram muitos anos de mágoas tanto da parte de pai quanto de mãe. Pai, simplesmente,

passou a nem sequer falar o nome dela. Acontece que mãe adoeceu, e eu tive que vir de

São Paulo para dar uma assistência a ela. Levei-a para o Recife e fomos acolhidos por

Zezinho Gomes de Sá, que era deputado e era dono daquela Fazenda São Francisco,

onde depois Caboclo Lulu passou a morar. Que homem de bem era o Zezinho! Grande

homem, casa cheia. Que Deus o tenha em bom lugar. Pessoa maravilhosa. Deu-nos todo

apoio no Recife. Eu, então, levei mãe para se tratar em São Paulo e, lá chegando, levei-a

para a casa de Flora e Zeca, onde ela encontrou todas as portas abertas e foi recebida

com carinho e toda alegria do mundo pelos dois. Pai soube disso tudo, soube que eu ia

levá-la para São Paulo, ficou calado e consentiu. Fui eu que fiz as pazes entre elas duas:

mãe e Flora. Lá, em São Paulo, ela foi operada, e o médico tratou muito bem dela, que

voltou para o Nordeste com muita saúde. Anos depois, Zeca voltou para Sertânia, jun-

tamente com Flora, para o casamento de Enedina, e foram muito bem recebidos na casa

dos meus pais. E, de lá para cá, todos os anos Flora vinha a Pernambuco, com o Zeca,

Severino e a Irene, que, sendo paulista, acho que é mais pernambucana que mesmo pau-

lista.

Antônio – Voltando no tempo, fale sobre a sua motivação de viajar em definitivo

para São Paulo. Foi desilusão de amor? Ou outra coisa?

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Virgínia – Não foi desilusão de amor. Acontece que naquela época, quando eu pegava

qualquer pedaço de jornal, eles se referiam a São Paulo como “a grande capital do Bra-

sil”. Eu, mesmo sendo uma pessoa que nunca teve estudo, tinha certeza de que, uma vez

chegando a São Paulo, teria grandes oportunidades para melhorar a minha vida. Eu iria

ser alguém na minha vida. Eu afirmo que eu tenho hoje muito prazer em minha vida.

Digo que aprendi muita coisa boa em São Paulo. Viajei com o Anísio pela primeira vez

e, hoje, com setenta e oito anos de idade, ainda aprendo boas coisas em minha vida. Ao

chegar a São Paulo, ficamos na Vila Carioca, numa casinha bastante humilde, mas casa

cheia. Lá encontrei o Zeca, pessoa maravilhosa, juntamente com a Flora, que foi uma

pessoa que lutou muito na vida. O coração muito grande. Você sabe bem que a Flora

acolheu todos da nossa família. Onde ela estiver com o Zeca, Deus dê o reino da felici-

dade para os dois. Comecei trabalhando na venda de cortes de pano, juntamente com a

Naninha, a irmã do Zeca. Mas o que eu queria mesmo era comércio e me decidi traba-

lhar na cidade. Lembro bem que ao chegar à Avenida da Liberdade, vendo tantos carros

passando, não sabia qual era a cor do farol que me dava direito de atravessar a avenida.

Eu disse comigo: “Isso eu tenho que aprender”. E logo aprendi que o verde dava ao pe-

destre a condição de atravessar sem medo. Naquela mesma avenida complicada, encon-

trei o meu primeiro emprego, nas “Casas Morais”. Era uma firma de filhos de espa-

nhóis, e aí eu aprendi a trabalhar com tecidos. Foi aí mesmo que você, quando ia estudar

em Viamão, no Rio Grande do Sul, preparando-se para o frio do Sul, ganhou de presen-

te meu um cobertor que era o melhor da loja e chamava-se “Cobertor Tognato”, lembra?

Dali, eu mudei de loja, fui para a do irmão dele, que ficava na Rua do Arouche. Lembra

daquela cantora chamada Edite Veiga? Ela era nossa freguesa. Depois voltei a trabalhar

na Praça João Mendes, no centro de São Paulo, bem pertinho do Fórum de Justiça, que

ainda hoje existe. Pertinho também da Catedral da Sé, da Rua Direita. Na loja de Seu

Morais, o meu apelido era Calculé. Eu tinha uma técnica toda especial de chamar os

fregueses. Ia ao outro lado da rua buscar os fregueses, e eu era quem mais vendia. Cheio

de títulos para pagar no banco, muitas vezes o patrão apelava para eu ir buscar fregueses

defronte, pois havia muita dívida na loja dele. No final do ano, ele dava para cada em-

pregado um corte de pano. A mim, ele chamava à parte e me dava dois cortes para ves-

tido e um enxoval. Na loja do Bom Retiro, eu tinha muitos fregueses do Rio de Janeiro,

do interior de São Paulo e do Paraná. Esses do Paraná compravam muitas colchas de

pele de coelho. Tinha um freguês da Bolívia que fazia compras com a gente para vender

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na Bolívia. Certa vez, ele me deu uma cantada, perguntando se eu não queria casar com

ele e ir morar na Bolívia. Eu disse logo que não. Tinha também um freguês de Vacaria,

no Rio Grande do Sul. Era uma pessoa muito fina, dono de caminhões que trafegavam

de Vacaria ao Rio de Janeiro. Um dia, ele chegou à loja com dois sapatos, ou botas,

diferentes, uma em cada pé; uma roupa amarrotada de barro da viagem e uma bolsa sur-

rada de lado. Ele entrou e, quando chegou na vez dele, as balconistas não o atenderam

bem. Eu cheguei junto dele e me dispus a atendê-lo. Ele ficou muito contente e me dis-

se: “Mostre-me a Valisère”. Naquela época, a Valisère fabricava muita coisa para os

homens - a camisa de nylon “volta ao mundo” - por exemplo. Além disso, muitas peças

íntimas para a mulher, jogos de camisola, lindos, lindos! Aí descobri que ele era um

grande freguês. Comprava caixas e caixas de mercadorias finas e caras. Cada vez que

ele vinha, trazia litros e litros de vinho para mim, de presente. Ficou sendo meu freguês.

Antônio – Na época em que eu estava saindo do Rio Grande do Sul para estudar

na Suíça, você me levou para almoçar no convento de umas freiras. Naquela época,

você queria ser freira?

Virgínia – Isso aí era quando eu trabalhava na Rua do Arouche. Olhe, eu sou católica,

apostólica e romana. Mas a gente ainda vê muita coisa errada dentro da Igreja. Eu traba-

lhava no centro de São Paulo, e a Flora, morava na Vila Carioca. E ficava muito longe

para eu ir e voltar do trabalho de ônibus. Aí eu decidi morar num pensionato de freira. A

chefa do pensionato era irmã Ema, você lembra, aquela que lhe recebeu pro almoço e

lhe tratou muito bem, lembra? Pois bem, tinha lá uma empregada chamada Rute. Ela era

até de Caruaru, uma morena. A irmã mandava que ela colocasse numa marmita, às cin-

co horas da tarde, feijão, arroz e pé de galinha. E couve. Até hoje, eu não suporto o fe-

dor de couve [ri]. Ora, eu chegava da loja lá pelas 9:00 e às vezes 9:30 da noite e esta

comida já estava na mesa desde as cinco horas. Numa dessas noites, eu não aguentei

aquilo e virei o prato com o fundo para cima e a comida para baixo. Não foi pecado,

porque eu não joguei no chão. No dia seguinte, ih rapaz! A Rute, que era a copeira, nem

sequer aguentava olhar na minha cara. Aí chegou a irmã Ema e eu disse: “Irmã, eu che-

go aqui às nove da noite, e essa comida está aqui desde as cinco da tarde? Pode uma

coisa dessas?” Eu sofri ali. Muitas vezes fui dormir com fome, porque não aguentava a

comida daquelas freiras. Eu venci tudo aquilo. Depois, terminei saindo de lá para outro

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canto. Agradeço muito a Deus a saúde que eu tenho e a coragem que Deus me deu. E

também aquela educação que pai e mãe deram para nós, os filhos.

Antônio – Pois é, eu fui estudar na Europa, em outubro de 1964 e tempos depois

você conheceu o Aldir. Como foi isso?

Virgínia – Ah rapaz! Eu fui apresentada a ele; aliás, me apresentaram. Virgem, será que

esta história não vai chegar ao bico dele? Foi o Paraíba, colega dele, que me apresentou

e, no primeiro dia do nosso encontro, fomos visitar Nossa Senhora Aparecida. Saímos

para a viagem. Ele levou um frango assado. Em Sertânia, frango é outra coisa, o nome é

galeto. Mas em São Paulo é frango mesmo! A primeira coisa que ele perguntou para

mim foi se eu sabia cuidar de casa e fazer a comida. Eu respondi que sabia, e muito

bem. Aí saí dando exemplo de como eu fazia: “Quando eu vou lavar a casa, eu pego a

água suja e jogo em cima das paredes com sabão, com cândida e com tudo. A comida eu

queimo tudo. Lavando os móveis, eu molho tudo. Eu aprendi assim, e faço assim”. E

por que respondi assim? Porque isso não é pergunta que o namorado faça pela primeira

vez, querendo conquistar uma namorada. O cara sai logo com uma conversa dessa.[ri

muito!]. Você sabe, Antônio, toda a vida eu fui pobre, mas sempre gostei de uma coisi-

nha diferente. O sonho de minha vida, Antônio, era casar com um rapaz alto, moreno,

todo social. A Madia se lembra disso e ri que não se aguenta. Eu e o Aldir namoramos

um ano e meio. Ele toda a vida foi daquele jeito. Um sábado, quando eu morava com

Edite, na Vila Ema, eu o esperava chegar, e ela tinha preparado uma bacia para dar ba-

nho no Zenildo. Ele chegou e se jogou dentro da bacia, com terno e tudo, molhando-se

todinho... Quando casamos, passei mais de um ano para engravidar. Vou falar uma coi-

sa pra você: a gente amar sem ser amado é uma perda de tempo. Naquele tempo, uma

moça para ser mãe, ela tinha que casar. Se ela aprontasse, ela não teria valor, ela torna-

va-se a pior prostituta, e você sabe que isso caía logo nos ouvidos do mundo. Pai nos

passou isso. Sempre existiu em mim esse temor que a gente tinha por ele. O meu sonho

era casar e ter uma filha, e essa filha já tinha um nome: Débora Verônica. Eu nunca fui

amada por ninguém. Mas eu amava. Amei muito um filho de Caboclo Teixeira, Zé Tei-

xeira, o pai de Daniel. Amei muito também aquele rapaz. E eu me casei para ter uma

filha e se eu não tivesse uma filha eu morreria de desgosto. Eu queria bem a ele, mas

amor, amor, nunca existiu. Sofri muito pela minha casa, trabalhei muito nas feiras, nas

festas no interior de São Paulo, Minas, Mato Grosso... Eu tive duas filhas maravilhosas

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e, portanto, realizei meu sonho: Débora Verônica e Rosângela. Eu sou feliz. Se eu me

relaciono bem com elas? Sim, sim! Rosângela tem um geniozinho meio forte, mas... [aí

eu digo que puxou a ela; ao que ela responde: pode ser!]. A Débora é muito meiga.

Antônio – Você foi uma lutadora em São Paulo. Trabalhou como comerciária e

depois como marreteira, nas feiras livres...

Virgínia – Ah, rapaz! Arrumei muito dinheiro. Fiz a minha casa. Mas era difícil enfren-

tar aqueles fiscais da prefeitura de São Paulo. Aquele Paulo Maluf, aquilo é um sem-

vergonha, ladrão, safado. Jogava comandos fortes nas feiras. Arranjou até um doutorzi-

nho, rapaz! Todo vestido de branco e jogou na feira. Um dia eu vendia na feira da Vila

Industrial, e esse doutorzinho chegou e me perguntou: “O que é isto aqui?” Eu falei:

“São panos, doutor!” E ele perguntou: “De quem são?” Eu disse: “São meus”. Aí ele

perguntou de novo: “Por que você trabalha nas feiras, você não sabe que é proibido?”

Aí eu respondi pra ele: “Proibido é roubar. Eu estou trabalhando honestamente para

ganhar o meu pão. Os feirantes aqui todos são amigos da gente. Se tem alguém aqui que

não goste que se venda roupa, no entanto, o mundo é grande e o sol nasceu para todos.

Com a idade que eu tenho, não vou conseguir emprego. É melhor eu estar honestamente

trabalhando aqui do que estar roubando”. Isso aí tudo foi armado por Paulo Maluf, a-

quele sem-vergonha e safado.

Antônio – Durante esses anos todos que você “marretou” em São Paulo. O que vo-

cê vendia e onde você se abastecia de mercadorias?

Virgínia – Eu trabalhei durante uns vinte e três anos. Eu comprava coisa boa, mas ga-

nhava pouca coisa. Mas com aquele pouco que ganhava, fui feliz, graças a Deus. Eu

vendia coisa boa, vendia “Duloren”, “Triumph”, “Hope” e muitos jogos de camisola de

uma fábrica que, quando eu comecei a vender, era a Fábrica “Dois Maninhos”. Inclusi-

ve, eu dei a Edilnete um desses jogos de camisola, você lembra? Um dia, quando vocês

estavam em São Paulo, vocês foram almoçar lá em casa. Eu peguei uma caixa, fiz uma

embalagem e disse pra ela: “Dil, quando você for para o interior, ou mesmo quando

estiver fazendo muito calor no Recife, use esta camisola e lembre-se de mim”. Aí, ela

disse: “Jorge, olha o que a Virgínia me deu de presente!”, lembra? Essas mercadorias eu

comprava na Silva Teles e na maior parte daquelas ruas de São Paulo. Na Mendes Jú-

nior, na Concórdia, no Brás inteiro... O Brás era o lugar das pessoas procurarem coisas

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mais baratas. Tinha-se que ir no dia em que faziam promoções maravilhosas. Mas tinha

que ser no dia. Geralmente, eu comprava à vista e apenas em uma das lojas eu conse-

guia comprar em consignação. Que Deus o abençoe, era Gaio Brás. A mesma loja mu-

dou para o fim da Rua Oriente. Mas continua a mesma loja. Nas feiras, a gente tinha os

clientes que sempre compravam. Mas eu os cativava. Desfilava vestida em jogos de

camisola pelo meio das feiras. Você sabe que eu sempre fui popular. Toda vida, sou sua

irmã, e você não esqueça. Eu me vestia de camisola e as crianças diziam pras mães: “Oh

mãe, vamos à feira para a gente ver aquela doidinha, mãe!” [ri]. Os meus conterrâneos –

e olha que têm muitos deles em São Paulo –, ao passar por mim diziam: “Muito bem,

dona Maria, tem que ser assim! Se todos fizessem como a senhora faz, transmitindo

essa alegria toda, o mundo seria bem melhor!”. Tinha uma música linda de Roberto Car-

los, que já esqueci, muito linda por sinal. Eu cantava essa música, toda vestida de cami-

solas. O povo dava risadas. Mas não riam de maldade, não. Era pela minha alegria. Mui-

tos dos meus sobrinhos, inclusive o Valdeci, me ajudaram a marretar na feira. Eu vendia

também no Paraná, em Paranaguá. Foi numa dessas viagens para o Paraná que o Valde-

ci se acidentou. Ele era mocinho, tinha dezessete ou dezoito anos, e fomos ao Paraná.

Ele arranjou uma namorada em Morretes. Mas quem era louca para casar com ele era a

Fátima de comadre Naninha. Louca por ele. Ele gostava dela, mas não para casamento.

Alguns anos depois ele resolveu voltar para o Nordeste. Pai e mãe estavam sozinhos, e

ele veio dar uma ajuda a eles. Acho que ele chegou na hora certa porque, logo depois,

pai adoeceu de câncer e terminou morrendo, infelizmente. Você deve lembrar muito

bem disso.

Antônio – Anos depois chegam a São Paulo Conceição, Elias... Vocês em São Paulo

viviam do trabalho, e como é que se divertiam? Nos finais de semana ficavam sem-

pre na Vila Carioca ou saiam para conhecer um pouco da cidade de São Paulo?

Virgínia – Não tinha diversão nenhuma. A gente só viva mesmo para o trabalho. Não

tinha dinheiro suficiente para a gente passear. Quando muito, a gente ia ao Museu do

Ipiranga. Lembro que eu e a Conceição morávamos ali, na Vila Carioca, numa daquelas

travessinhas - Auriverde com a Lício de Miranda. Aí, numa tarde daquelas, ela falou

assim: “Virgínia, vamos visitar o museu para ver se a gente arruma um namorado”. Eu

disse pra ela: “Conceição, o que dois museus velhos vão buscar num museu?! No museu

não tem mais lugar!”. Nós riamos muito com essas conversas. A Conceição, em São

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Paulo, namorou só o Laurindo. Ela chegou a gostar muito de Valdemar, de Donana.

Mas a Enedina chegou mesmo a falar com a Conceição que aquele cara não era de ca-

samento não. Conceição é uma pessoa que até hoje consegue ser muito simples. É uma

pessoa muito humilde e não tem nada de orgulho. Muito sofredora. Conceição é uma

pessoa que sofreu muito e, até hoje, ela ainda sofre. Mas nunca largou a casinha dela

com as filhas. Perdeu o marido muito cedo e enfrentou uma barra muito pesada. Bem

pouco tempo atrás, a caçula dela teve um filho, e eu falei pra ela que aquilo não era nada

demais, dei conselho pr ela e lembrei que esse filho que estava vindo, talvez viesse a ser

a alegria dela. De fato, é um menino muito lindo.

Antônio – Você sabe que a viagem de Madia com os filhos para o Paraná foi prati-

camente uma tragédia. O que você lembra disso?

Virgínia – Eu acho que Madia se ocupou em buscar boas coisas para o futuro dos filhos

dela, e ela conseguiu. O Erasmo, durante um tempo, foi feliz com o casamento dele.

Não sei hoje. Com o passar do tempo, ficou a família pra lá e ele pra cá. Acho que isso

aí acontece com qualquer casal, em qualquer lugar. A viagem da Madia foi muito aci-

dentada, e ela sofreu muito com todos aqueles filhos pequenos. Imagine viajar em cima

de um caminhão, apenas coberto, mas era um caminhão. Quando eu fui pra São Paulo,

naquela época, fui de ônibus, que gastou quase seis dias com seis noites. Você imagine

uma mãe com tantos filhos, em cima de um pau-de-arara, sem ter dinheiro para alimen-

tar aqueles filhos. Mas Deus foi muito bom, e Ele vê tudo. Quando você desistiu de es-

tudar para padre, escreveu aquela carta, dizendo que estava desistindo de ser padre. Es-

tava bem perto de se ordenar e sabia que pai e mãe iam ficar muito tristes. Você deve

lembrar muito bem a carta que eu mandei pra você, onde eu dizia que para servir a Deus

você não era obrigado a ser padre. Você iria casar, construir o seu lar e, desse modo,

com sua esposa e com os seus filhos, já estava servindo a Deus. O homem pra servir a

Deus, não é obrigado a ser padre. Não foi assim que eu falei pra você?

Antônio – Virgínia, fale de seus sentimentos com relação à nossa família.

Virgínia – Nós somos uma família unida. Tudo bem, isso de família “limpa” não existe.

Mas também tem família que não tem um pingo de respeito, de consideração a um ir-

mão, uma irmã, um cunhado; é briga, é olho grande nas coisas que algumas pessoas

têm... Por exemplo, quando um compra um carro bonito, ou uma casa... A nossa família

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não é e nunca foi assim. Eu acho muito bonito quando a gente reúne todos. Para mim, a

coisa mais linda e mais importante é estar reunida com a minha família. Quando estou

reunida com minha família, não me importa de “falar bobeira”. Quem quiser reparar

pode reparar, não estou nem aí! Repito, a coisa mais importante é a minha família.

Antônio – Em São Paulo, você sempre recebe em sua casa...

Virgínia – “Magina”! Se eu pudesse, na minha vida, todo ano eu faria a maior festa,

reuniria toda a minha família. Meus sobrinhos são meus filhos. Eu brinco com meus

sobrinhos como se fossem meus filhos. Tenho por eles muito respeito e muito carinho;

seja criança, seja adulto, como o Erasmo. Ele é para mim uma pessoa muito fina. O

mesmo digo de Osvaldo. Claro, todo mundo tem seus defeitos, não existe pessoa sem

defeitos. Eu quero muito bem ao Osvaldo, ele ocupa-se muito da família. Eu gosto da

minha família. O que eu tenho a dizer da minha família é isso. É tanto que quando eu

estou junto da minha família eu tenho uma alegria tão grande, porque isso me deixa

feliz. Nessas horas, pouco me incomoda falar bobeira; quem me quiser olhar que olhe,

não estou ai... Isso não tem importância nenhuma: sou assim, sempre fui assim e assim

eu vou morrer. Sou feliz junto da minha família e, se eu pudesse, todo ano reuniria to-

dos em minha casa.

Antônio – E o sertão paraibano da Matarina...

Virgínia – Eu já falei pra você: nunca pense em sair de nossa terra. Eu sou da Paraíba e

considero tanto a Paraíba como Pernambuco uma coisa só. É uma terra muito gostosa, é

boa demais. Tanto que eu considero vocês e os amigos de vocês, meus conterrâneos,

como minha família. Eu gosto do sertão; o sertão é gostoso, Antônio. Com tudo nele

você se distrai, principalmente em cidades consideradas pequenas. Não falo das capitais,

das cidades grandes, porque a vida aí está demais...

Antônio – Pouco tempo atrás, você fez um passeio, matando as saudades ali pela

Matarina...

Virgínia – Puxa! Aquilo ali foi bom demais, ali eu realizei meus sonhos, foi bom de-

mais. Lá em cima, na serra, naquele “tanque da viúva”, quantas lembranças me vieram...

Lembrei muito de mãe e das surras que levei ali. Porque ela me pedia para ir buscar

água no tanque e eu não ia buscar... Em vez de buscar água, eu ia era chupar umbu, a-

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queles umbus velhos verdes, lá debaixo do umbuzeiro. Aquilo tudo azedo, embotava os

dentes. Levei muita surra. Quando mãe ia lavar roupa, levava o lanche para comer. Sabe

qual era o lanche, Antônio? Rapadura com farinha. Quando não tinha “farinha de roça”,

que era gostosa, então a gente comia com farinha de milho, ou mesmo o cuscuz com o

feijão de corda. Antônio, mãe sofreu muito, nossa mãezinha sofreu muito. Você, que já

fez o seu lar, foi feliz na vida, hoje você continua feliz por um lado, por outro... tudo

isso pertence a Deus. Vieram suas netinhas para dar alegria a você. O seu filho, é um

homem trabalhador, caprichoso, honesto. Que homem você tem! Quando os pais têm

seus filhos como homens de bem e que nunca fizeram vergonha, tem-se que agradecer

muito a Deus. Porque hoje em dia existem muitos pais que vivem na maior tristeza por

conta das drogas, do crime, do dinheiro, da vida fácil. Colocam em primeiro lugar o

dinheiro. A droga está comandando tudo. Por mais que o governo trabalhe para evitar,

para diminuir, eu não vejo resultado, para mim continua tudo a mesma coisa. Isso é

muito triste.

Antônio – Virgínia, você hoje tem a idade de setenta e oito anos. Qual é o maior

desejo de sua vida, quais são os seus sonhos?

Virgínia – Não tenho mais sonhos (se emociona). Meus sonhos estão todos realizados.

Melhor dizendo, eu gostaria de ver as minhas duas filhas casadas. Quando a gente chega

à idade que eu tenho, eu considero que os sonhos estão todos realizados.

Antônio – Sonhos realizados, sim. Os sonhos realizados nos deixam felizes, o que

significa dizer que eles se transformam em novos sonhos ou que eles nunca se aca-

bam. Você concorda?

Virgínia – É isso mesmo. Eu lembro que a união de minha família sempre foi um gran-

de sonho. Eu recordo que, certa vez, nós todos da família jantávamos na casa do Manu-

el. Eu estava junto da Edilnete e a vi levantar e dirigir umas palavras, dizendo que o que

ela mais admirava em nossa família era a união de nós todos. Você estava lá, lembra?

Eu acho que ainda não estou caducando não, apesar de a Rejane me dizer que eu estou

perto de caducar... Mas eu nunca esqueço as palavras que ela falou. Por isso que cada

vez mais eu digo: quando estou junto da minha família, eu me sinto muito feliz, como

sempre sonhei. No ano passado, em julho, quando estivemos na casa da Sandra, em Ser-

tânia, juntamente com aquele casal do Recife que Ricardo levou, com a família do Ri-

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somar... Eu admiro muito a família do Risomar, são pessoas muito educadas! Eu me

senti muito feliz. Gosto muito também do genro do Risomar, o marido da Vanessa, a-

quela que tem o laboratório em Sertânia. São pessoas que eu admiro muito. Eu, estando

com eles, os considero meus amigos. O Glauber, marido da Sandra, aquilo é um “do i-

do”. Eu o admiro demais. Aquilo é um “moleque” bom , eu o admiro demais, repito! Já

falei pra ele: eu ainda haverei de ver você na minha casa, em São Paulo. O pai dele é um

homem sério. A gente vê que ele é um homem da sociedade, o irmão dele também. A

mãe dele eu prezo muito também. Mas do Glauber, eu falo: você é meu filho. A Regina,

não é por eu estar na sua presença, ela é sua nora, eu acho que ela é uma menina muito

simples e muito humilde. Ela não olha certas coisas, é uma pessoa simples. É isso que

eu admiro nas pessoas. Esse rapaz com quem a Luciane está casando é uma boa pessoa.

Eu falei pra ele: gosto muito de você, Ramon, de sua simplicidade. Ele me chama de

“tia”. Gosto muito dele, é uma pessoa inteligente, muito direita. Inclusive, ele tomou o

“doidão”, filho do Rosalmo, para ser padrinho dele, o Sílvio. A Luciane merece, Antô-

nio. É uma menina tão simplesinha, com aquele jeito dela, ela merece. Eu soube que a

ex-mulher dele pôs o pé na barriga dele, dizendo: “Eu quero dinheiro”... Eu falei pro

Valdeci: “Você não tem que ficar triste nem se lamentar de nada, porque você teve sorte

com suas filhas”. Agora, infelizmente, Antônio, toda família tem altos e baixos. Não

tem essa de dizer “Ah! minha família é limpa!” Não tem isso não.

Antônio – Para finalizar esta entrevista, você gostaria ainda de dizer alguma coisa

que não tenha falado?

Virgínia – Quero falar. Eu, Virgínia, tua irmã, admiro demais a humildade e a simplici-

dade das pessoas. E digo de coração: se eu tivesse bastantes anos pela frente, eu gostaria

de dar sempre alegria, muita alegria e muitas palavras doces para minha família. Porque

eu admiro todos da minha família, todos os meus amigos. E agradeço a Deus o que eu

sou, e amo muito a Jesus Cristo, que, com Nossa Senhora Aparecida, me concedeu tan-

tas graças. Diante disso, eu só posso dizer: obrigada, meu Deus, obrigada, meu Deus!

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Maria da Conceição Siqueira Oliveira34

Antonio – Conceição, fale de sua infância na Matarina...

Conceição – Quando nós migramos da Matarina (PB) para Sertânia (PE), eu acho que

já tinha uns nove anos. De Matarina, eu não lembro muita coisa porque eu era muito

pequena. Lembro dos moços batendo milho, feijão, essas coisas todas, com o objetivo

da gente sair dali e vir para Pernambuco. Lembro que falavam para mim que se eu fosse

para a rua – que era a estrada de barro em frente à nossa casa – os “papa-figos” me leva-

riam. Os papa-figos eram uns homens que matavam as crianças para delas comer o fí-

gado e, desse modo, evitar a morte deles. Eu chorava muito, morrendo de medo dos

papa-figos. Eu ficava me divertindo vendo os homens baterem o milho e o feijão e, des-

se modo, esquecia de ir para a rua. Nós, então, viajamos para Santa Luzia. Mãe, muito

contente, foi para a casinha nossa, simplesinha, né? Mãe não gostou logo foi da água lá

de Santa Luzia, que era de sal puro, ao contrário da água da Paraíba, que era água doce

34 Nascida em 08 de dezembro de 1934, é viúva de Laurindo Vaz Oliveira. Mãe de Marli, Marlene, Már-

cia e Marta. Entrevista concedida no dia 11 de setembro de 2009, no Jardim Adutora, São Paulo.

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que a gente retirava dos tanques de pedra. Ou, então, do açude de Cícero Nunes, onde

nós plantávamos verdura, abóbora, batata... E guardava tudo isso no armazém. As bata-

tas, quando começavam a criar olhos para enramarem, aí é que elas ficavam doces. Mãe

vendia muita daquelas verduras. Recordo que, na Matarina, um dia, eu perdi a chave do

armazém, onde a gente guardava os cereais para vender. E toca mãe a procurar a chave

para abrir o armazém para vender aos clientes. E nada de encontrar a chave... Nessas

alturas, eu disse pra ela que tinha perdido a chave. Ela ficou braba e disse que pai iria

me bater, como de fato bateu mesmo. Pai me deu um empurrão que eu caí no chão e bati

o ouvido na parede, juntamente com a cabeça. Aí é que eu chorei de dor... Minha vida, a

vida da gente, foi assim. Depois, nós viemos para Pernambuco. A Madia casou, teve as

primeiras crianças dela. Eu ia muito ajudar a Madia. Fomos crescendo, crescendo, e eu

ficando mocinha. Compadre José Guilherme ia para a feira e trazia uns pãezinhos doces

que eu gostava muito. Nesse tempo, eu tinha uns oito ou nove anos. Botava maxixe no

fogo para comer com a farinha, que eu adorava. Lembro que a Maria do João Felipe, a

mãe do Paulo e do Zé, falava pra mim que eu iria ser uma boa dona de casa. Quando

alguém chegava lá, estava tudo limpinho. Pegava os potes e ia buscar água lá no rio,

lavava toda a roupa da Madia quando ela ganhava neném. As primeiras roupas era mãe

que lavava. A gente não ignorava aquilo. Eu achava que aquilo era coisa comum da

vida. Eu descia lá embaixo com o pote, pegava a lata, lavava todos os panos, estendia

tudo e voltava para a casa da Madia. Pegava a vassoura e varria todos os terreiros. A-

quele serviço para mim era uma beleza, eu me distraía muito. Ajudava a ela lavando os

cueirinhos do Givaldo, que mãe fazia tudo na máquina, não era? Aqueles paninhos de

chita. Do casamento da Madia com Zé Guilherme, eu lembro muito pouco. Sei que ela

casou, não sei se foi em casa... Não tenho muita lembrança. Madia saiu lá da Matarina

com dezoito anos, Antônio. Ela casou em Pernambuco. Então, fui ficando mocinha...

pegava melancia nos roçados, comia. Mãe recomendava que eu não comesse melancia

quente nos roçados, pois aquilo fazia mal aos meus olhos ou fazia adoecer. Eu dizia:

“Tá tudo bem, mãe!”. Aí é que eu comia e como doíam e ardiam os meus olhos! Eu

pegava, cortava e comia a melancia; em seguida, espremia o caldo dela nos meus olhos.

E aquilo me aliviava como sendo um milagre dado por Deus.

Antônio - Diga-me uma coisa, Conceição, como é que você se relacionava com as

outras irmãs mais velhas: Flora. Virgínia?...

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Conceição – Ah! A gente respeitava. Apesar disso, eu brigava com a Virgínia, porque a

Virgínia era demais. Com a Flora, não, eu respeitava muito. Tanto ela como a Madia.

Ela lavava roupa e costurava vestidinhos para mim. E mãe, quando adoeceu da meno-

pausa – e a gente não sabia nada do que era isso –, ia para o hospital se tratar e eu ficava

em casa com a Flora. Respeitava muito ela. A Virgínia era meio levada. Pegava os pa-

peiros e fazia uns mingauzinhos de fubá de milho sem lavar os papeiros. Mãe os pegava

e jogava lá nos fundos do quintal, nervosa. Ela era assim, meio grã-fina. Toda a vida,

ela gostou assim de andar meio asseada, sabe? Ela gostava de luxo, era meio vaidosa.

Eu não brigava com a Flora, não. A Virgínia era trabalhadeira apenas dentro de casa,

limpando, lavando. Mas para o roçado, Deus do céu, ela detestava. A Flora, também. A

Virgínia pegava pedra e misturava com o milho, nas covas de plantação. Cozinhava

mais ou menos. Não era muito o forte dela, não. Quem mais cozinhava era a Flora e

mãe. Com os meninos, nós não brigávamos porque a gente se queria muito bem. Pai

sempre sentenciava que se nós brigássemos entre nós, quando chegássemos em casa era

uma surra na certa. Ele batia mesmo. E ele avisava. Mas só a Virgínia é que era encren-

queira, e José que brigava por conta de um dinheirinho. Já o Severino era muito nervoso

e nós, só depois de certa idade, é que estamos vendo como são as pessoas. Manoel era

muito sem-vergonha. Era muito brincalhão com a Flora. Só vivia brincando com a gen-

te. Todos nós tínhamos muito amor a ele e, por isso, gostávamos muito dele. Tinha uma

história de um bode que foi inventada por Flora e Manoel. Conversando com Mena

(nossa vó materna), perguntamos se ela ainda queria casar. Ela concordou, dizendo que

casaria para juntar os ovos das galinhas. Manoel e Flora disseram a ela que o bode podia

ser o marido dela. E ele já estava amarrado para o casamento. O Anísio também gostava

de brincar com Mena. Dizia a ela que lhe tinha visto trepada nas galhas de um pé de

laranja que tinha lá em casa, tirando as laranjas para chupar. Ela ficava indignada com

aquela história inventada pelo Anísio. E dizia: “Você é besta, seu cabra safado! Cabra

sem-vergonha, deixe de ser mentiroso!” Eu queria muito bem a Mena; eu é quem dor-

mia com ela, dava banho nela... A Virgínia corria às léguas para não dormir nem cuidar

de Mena. Anos depois, mãe viu que ela estava doente e trouxe ela lá pra casa, deixando-

a numa casinha que tinha lá ao lado da nossa. Com a idade, era muito difícil lidar com

ela. Era grande o sacrifício para ela levantar e sair da cama... Eu lavava a roupa dela lá

no rio. Mas Deus foi muito bom, porque a levou na hora certa. Eu senti muito a morte

de Mena, mas acho que Deus foi bom com ela. Ela morreu num dia de segunda-feira,

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dia das almas. Ela era devota das almas. Antes dela morrer, ela abriu os olhos. Eu cha-

mei mãe para vê-la, dizendo que ela ia melhorar. Podia trazer o remédio para ela melho-

rar. Lembro que mãe trouxe um pouco de leite, ela tomou aquela porção, mas logo cus-

piu fora. Ela levantou a cabeça e se benzeu. Isso já eram seis horas da tarde (emociona-

se). Morreu como um passarinho. Eu senti muito a morte dela. Já do tio João (nosso avô

paterno), eu lembro muito. Ele ia lá pra casa. Quando ele chegava, mãe logo dizia: “Ho-

je é dia de tio João contar as histórias das bestas e da cachorra dele”. Ele era cego e pe-

dia pra mãe fazer um chá com as flores amarelas da catingueira. Gostava de despalhar

os paióis de milho... A esposa dele (nossa vó paterna) era chamada de tia Candinha

(Cândida). Tio João era muito bruto com ela. Quando brigavam, jogava espiga de milho

nela. Ele era muito nervoso e brabo. E pai puxou a ele e, por isso, era assim tão bruto

com a gente. Mas o tio João não admitia ver pai bater nos netos de maneira nenhuma.

Lembro que a última vez que pai me bateu eu tinha quinze anos, e ele me bateu porque

eu cortei os cabelos. Fiquei com os cabelos curtos, coisa que ele não admitia nas mulhe-

res da família. Mas pai era demais. Eu me lembro de uma vez que ele deu uma surra de

palmatória nas mãos do Elias. Foi por conta de uma história de umas goiabas no terreno

vizinho, de Chico Félix. O velho acusou Elias de comer as goiabas dele e mandou um

bilhete para pai, denunciando o Elias. Eu tinha ido a Sertânia, mas soube que pai tran-

cou Elias num quarto para ninguém socorrê-lo e deu-lhe tanto nas mãos que eu, depois,

tive de levar Elias a Sertânia, ao médico, porque as mãos dele ficaram sangrando. E mãe

não pôde socorrer o “Terinha” (é assim que a Conceição chama Elias) porque ele se

fechou no quarto. E quando cheguei em Sertânia, tive vergonha de dizer que tinha sido

por conta de uma surra de meu pai. Eu era filha e não tinha esse coração de entregar um

pai aos desconhecidos. Quando perguntaram a causa, eu me esquivei, inventando umas

mentiras... Ele bateu tanto que virou um calo de sangue. Manoel também apanhou mui-

to. Mãe dava banho nele e em José com água de sal e vinagre. Ele também batia nos

meninos com aquelas cordas feitas de couro de vaca cru. Já mãe nunca nos bateu.

Quando muito, ela nos dava uns “cocorotes” (cascudos, pancadas na cabeça com o nó

dos dedos) e nem mágoa nos causava. Era generosa, trazia de tudo para nós. O meu pai

era demais. Ele nunca sentava à mesa para ter um diálogo com a gente, né? Quando ela

veio a São Paulo fazer tratamento de saúde, eu fiquei lá, sozinha com pai. Que saudade

me dava dela... Pai sozinho, sentado lá na preguiçosa dele. Um dia, eu na porta ouvi o

barulho de um avião passar. Eu tive certeza que era ela. O avião aterrissou naquele

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campinho de aviação de Sertânia e, logo depois, eu vi mãe chegar na camionete de Se-

verino. Logo depois disso, chegou lá em casa seu Valdevino, nosso vizinho, que veio

conversar com pai. E pai, em vez de receber com alegria minha mãe, foi brigar com ela

por conta lá de uns problemas.

Antônio – Conceição, fale agora da escola nossa de D. Zefinha...

Conceição – Ah! Eu acho que eu era meio fraca de inteligência, sabe Antônio? Eu me

esforçava na matemática, em tudo. Máximo divisor comum, fração decimal, tudo...

Quando chegou a quinta série, aí “deu um branco”. Lembro da geografia, onde a gente

decorava os pontos cardeais, essas coisas todas. Mas os problemas de matemática eram

fogo. O Anísio era bom. Eu chorava, eu procurava inteligência, mas me achava fraca de

inteligência. Eu tinha vontade, mas não dava. O Severino era nervoso, e o Manoel e o

José, como as meninas, não iam mais para a escola com a gente. Você era inteligente

demais. Fazia casinhas de igreja, você era inteligente demais, Tita! (é assim que ela me

chama). Você nunca deu trabalho na escola, não. A Márcia é como você. E como eu

me lembro de Dona Zefinha, que era a nossa professora. Ela vinha da cidade, dormia lá

em casa, as amigas dela lá no sítio... Ela era uma pessoa muito inteligente. E o “argu-

mento” que existia na escola, santo Deus! O argumento incluía tudo: do alfabeto à tabu-

ada. Então, na mesa, todos juntos, ela perguntava a um uma letra ou o resultado de uma

soma. Se o menino não soubesse, perguntava ao outro. Se esse acertasse, teria que dar

um bolo de palmatória naquele que não soube. E assim por diante. A gente não tinha

informação nenhuma de umas tantas coisas. Menstruação, por exemplo. Não se tinha

informação nenhuma; isso não existia de conversar, se informar... Nada. Quem é que ia

ensinar? Mãe só conhecia um “O” porque era redondo – ela falava. Pai era uma fera.

Quem explicava alguma coisa? Falar como? E a vergonha que nós tínhamos... Deus me

livre! Pai não permitia que a gente fosse a uma festa. A gente se arrumava e tinha que

esperar umas às outras lá embaixo, naquele barreiro, pra pai não ver a gente. Nós tínha-

mos a maior cerimônia. Isso atrapalhou muito a vida e a educação da gente. Mãe costu-

rava as roupinhas das menstruações e nos entregava. Quando tinha cólicas, tomava

comprimidos de Cibalena e ia lá pra debaixo dos pés de juazeiro. Os namoros, quem

podia falar de namoro? (rindo muito).

Antônio – Mas todas vocês namoravam, não?

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Conceição – Uma vez eu arrumei um namorado, que era um moço filho de João Cabral.

O nome dele era Dionísio. Ele era louco para namorar comigo, e um dia eu o conheci.

Ele mandou um postal pra mim, eu nem respondi por que não tinha condições de namo-

rar. Desisti. Ele terminou indo embora para o Maranhão, São Luís. Acabou mesmo. Ti-

ve outro namorado também lá onde morava o tio Pedro, lá mo município de Pedra. Ele

trabalhava com algodão. Era um moreno, parecia índio, gostava de mim. Mas terminou

eu desgostando e não mais querendo. Quando eu estava para vir para São Paulo, apare-

ceu outro, que era separada da mulher, e nessas condições eu também não queria. Em

Paulo Afonso, eu conheci outro, que era sapateiro. Que sufoco para trazer esse rapaz,

que era bem alto, e me deu um sapato, que ele fez, de presente. Eu tinha vinte e cinco

anos e não tinha coragem de chamar esse rapaz pra casa, com medo de pai. De tudo

isso, eu não esqueci nada. A situação da gente naquele tempo era igual ao da novela

“Escrava Isaura”. Daquele jeito. Os namorados da Virgínia, eu não lembro não, porque

ela foi trabalhar cedo, em Sertânia. Quando ela era pequena, gostava do Ageu. Madia

também gostava do Ageu e do Antônio Cabral. No Norte mesmo, de namorado dela eu

só lembro de Manoel, de José Antônio. Esse foi forte. Os demais eram namoricos bes-

tas; pai não deixava, rapaz; como é que a gente podia estar procurando namorados? A

Flora, também, a mesma coisa. Terminou namorando o compadre Zeca. Ah, da Flora

lembro um que chegou a ser namorado oficial. Era um rapaz da Queimada do Milho, e o

nome dele era Leonel. Mas era tudo do mesmo jeito. O namoro de Zeca com Flora

(rindo muito) é um caso realmente interessante. Ele morava na Queimada do Milho,

perto de onde morava a Naninha e a Dona Balbina. Eles foram trabalhar lá conosco e

Flora, e eles se conheceram. Pai não queria, porque afinal Zeca era um trabalhador da

gente... E, além do mais, teve uma interferência de compadre Zé Guilherme, que era

uma pessoa que pai ouvia muito. Sei que pai proibiu, isto é, não deu a mão da filha em

casamento. Zeca veio pra São Paulo, passou uns tempos e terminou indo ao Norte para

roubar a namorada. Duda viu o carro acender e apagar os faróis. Ele já tinha combinado

com ela. Ela, então, se arrumou e... Ela tinha me dito assim por cima, e eu, com medo

de pai, me calei e me fiz de desentendida. Zeca fugiu com ela. Pai foi a Sertânia e pediu

ao vigário, monsenhor Urbano Carvalho, que não oficiasse o casamento. Mas ficou com

medo porque o bispo de Pesqueira estava fazendo uma visita à paróquia, e ele podia dar

a licença ou até fazer o casamento sem problema algum. O monsenhor Urbano argu-

mentou com pai se ele queria que a filha dele se prostituísse ou fosse apenas viver junta

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com um homem pelo resto da vida e sem a bênção de Deus. O bispo vinha pra Sertânia

e já se encontrava em Arcoverde. O Zeca correu pra casar em Arcoverde, com a ajuda

de Naninha. O bispo de Pesqueira, Dom Adelmo Machado, foi quem oficiou então o

casamento. A partir daí, mãe não queria mais ouvir falar em Flora, apesar dela não ter

feito nada de errado.

Antônio – Conceição, como eram e quais eram as diversões de vocês ali naquele

sítio?

Conceição – Cala a boca, ainda outro dia eu estava falando disso aí com a Virgínia.

Madia se divertia fazendo e vendendo docinhos na venda dela. A Edite chorando por

causa de José que vivia nas danças, e Virgínia se divertindo com a máquina de Tó, filho

de José Fortunato (rindo muito). O negócio foi o seguinte: a Virgínia fez xixi na má-

quina de Tó. Era uma máquina de moer milho. Ele a deixou lá em casa enquanto foi

para uma dança. E nós querendo sair e não tínhamos com quem deixar a tal máquina.

Quando Tó chegou, encontrou a máquina molhada. E disse: “Mas como isso é possível?

Aqui nem choveu nem tinha como molhar. Foi você, sua sem-vergonha, miserável!” A

gente morria de rir com esse tipo de diversão. A grande diversão era na casa de tio Um-

belino. Para pular a cerca, a gente colocava um tamborete, e tudo isso sem fazer barulho

para não acordar pai e mãe. E colocava uns panos no chão, que era para limpar os pés

daquele barro vermelho quando chegasse da dança... Muitas vezes, ele falou para o Ma-

noel e o José que eles soubessem que ele sabia que estavam levando as meninas para os

bailes. Eu terminei dizendo pra mãe que caso ela não me consentisse namorar eu ia em-

bora para São Paulo. Mas, por outro lado, reconheço que foi bom o que ele fez porque

nós nos habituamos a não fazer nada de errado. Nós tínhamos um eito de trabalhadores

lá em casa. Pra eles, a gente lavava roupa e fazia comida. Eram vinte trabalhadores. Pai

queria que a gente lavasse toda a roupa. Mãe, não. A Virgínia pegou uma briga danada

com um deles, chamado Sebastião. Mas terminamos não lavando mais as cuecas dele.

Antônio – E aí? Você veio mesmo para São Paulo para poder namorar? Conte sua

viagem de vinda para São Paulo.

Conceição – Eu senti muita saudade do Norte, de mãe, quando cheguei aqui em São

Paulo. Cheguei aqui na época da garoa: frio e chuva fina. Depois é que melhorou, né?

Eu viajei junto com Severino. Vim com Severino e com a Tida. Ele tinha ido lá para

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casar com ela. Veio comigo e com Zé Felipe também. Severino saiu daqui de São Paulo

para casar com Tida. Ela tinha por lá um namorado, mas terminou acabando o namoro

com ele para casar com o Severino. A minha vinda aconteceu depois que eu tive um

sonho. Também foi muito ajudada por Chico de Nina, padrinho de Valdeci, que “aman-

sou” pai no sentido dele dar a permissão para eu vir por solicitação de Flora. A viagem,

nossa Senhora, foi Deus quem nos ajudou. Viemos na camionete de Severino, num mês

de janeiro, com aquelas terríveis trovoadas que parecia que o mundo ia desabar sobre

nossas cabeças. Cada trovão naquelas serras de Minas Gerais... Parece que a Erotides

me deu uma oração, e eu rezei aquela oração para nos salvar daquele temporal. Nessa

camionete, vinham eu, Severino, Erotides, Menininha, irmã de Tida, e os dois filhos.

Ela veio encontrar com o marido. Chegava naquelas pensões, a gente tomava banho.

Mas algumas vezes vi o feijão da panela cheio de moscas. Nossa... Eu só comia pão

com banana. Chegando em São Paulo, fiquei na casa da Flora, do jeito que eu sonhei o

meu sonho. O sonho foi o seguinte: chegou lá no Norte uma cigana. E pai estava na

sala; ele detestava ciganos. Aí ela me pediu um copo dágua. Dei-lhe o copo dágua. Es-

tava montada num belo dum cavalo. Ela, então, leu a minha mão, onde viu que eu ia

casar porque eu era doida para casar com um alemão. Veja que ilusão. Adiante, na leitu-

ra, ela disse que eu ia fazer uma viagem. Eu disse a ela que essa era a minha vontade,

mas não a do meu pai. Ela disse que isso não importava e que eu iria fazer a minha via-

gem e lá eu me casaria. De noite, eu sonhei que trabalhava num laboratório e sonhei

também com a casa da Flora. No outro dia, chorei tudo o que podia chorar. Eu tinha

uma grande vontade de casar e tinha medo de ficar viúva. Mas as coisas que eu sonhei,

todas elas aconteceram comigo. E o meu primeiro emprego foi no Laboratório Fonseca.

Flora era muito nervosa, porque ela teve aqueles problemas lá no Norte, mas era uma

pessoa boa demais, demais.35

Ela acolhia a todos nós, e ninguém faria mais por nós o

35 Antonio - O que eu sei desse problema do “nervosismo” da Flora - que, aliás, foi confirmado

recentemente pela Virgínia – é que, na Matarina, certa vez, meu pai foi aplicar a dosagem de um

veneno conhecido como estriquinina com o objetivo de matar uns cachorros que lhe causavam

incômodos, à noite. Ou seja, como se diz popularmente, “preparar uma bola”. O vento a favor

fez Flora respirar um pouco do pó do citado veneno, que é facilmente absorvido pelas mucosas,

vias nasais e respiratórias. Ela adoeceu gravemente e, não fosse a intervenção de minha mãe,

que lhe administrou de imediato muitos litros de leite, ela teria morrido. A partir daí, a família

soube que ela ficou com acesso de crises nervosas nunca diagnosticadas corretamente, ao que eu

saiba.

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que ela e o compadre Zeca fizeram. Eu ficava nervosa, porque meu destino era traba-

lhar. Eu queria ter minha vida.

Antônio – Como é que você conheceu Laurindo aqui em São Paulo?

Conceição – Foi numa cantoria na casa da Flora. E, antes disso, eu o tinha visto na fei-

ra. Começamos a namorar e até falamos em casamento, mas ele disse que não estava

preparado ainda. Eu disse “tá bom!” Um dia, eu já estava entrando na Fontoura para

trabalhar, e ele sabia que era proveniente de uma boa família e ele não tinha condições

de casar, portanto desapareceu. E eu fiquei me lamentando e chorando muito. Todo dia,

eu chorava e me lamentava não poder casar, já que o primeiro namorado não tinha dado

certo. Um dia, eu estava lá no Sacoman e de longe vi aquele moço que passava de bici-

cleta. Ele falou comigo, e aí eu vi que era aquele moço mesmo. Ele me disse que ia ao

Paraná visitar um irmão e quando voltasse, falaria comigo. Aí nos encontramos para

namorar. Eu pensei assim: se for o meu destino, a gente vai casar. Alugamos um quart i-

nho lá na Rua Auriverde, na Vila Carioca, e depois casamos, dando início à luta na nos-

sa vida de casados. Antes de casar, houve uma reação da família ao meu namoro com

Laurindo, pelo fato de ele ser mulato. Especialmente do José, da Flora e de pai... Depois

que eu saí da casa da Flora e aluguei com a Virgínia uma casinha na Vila Carioca, aí,

sim, nós começamos a namorar. A Virgínia começou a namorar um moreno e, por conta

disso, teve uma discussão com Flora, que terminou lhe batendo na cara. Quase nessa

mesma época, Flora e Zeca foram para o Norte, juntamente com o Givaldo, e lá contou

a pai que eu namorava um mulato. Pai não gostou e mandou me dizer que acabasse com

aquele namoro, porque lá no Norte tinha rapaz para eu namorar e casar. Eu decidi contar

isso para o Laurindo mas a Madia não me deixou falar, me puxou pela roupa. Eu, sim-

plesmente disse que não ia desistir; para ficar aqui sozinha, como sempre fiquei? Não!

Já chega o que eu sofri na minha vida. Algumas vezes, eu sonhava que voltava para o

Nordeste e chorava muito no sonho. Quando o Anísio foi se casar, queria me levar. Eu

disse “não quero de modo algum!” Eu chorava porque eu queria cuidar de mãe, mas não

tinha como. Laurindo trabalhava nas feiras. Morava nuns barracos vizinhos ao João da

Marlene. Compadre Zeca conheceu um tio dele. Somente compadre Zeca é que conhe-

cia aqui a família do Laurindo. Antes, moravam com ele a mãe e o pai. Depois que eles

morreram, ele foi cuidar da vida. Foi nessa época que eu o conheci. Era uma pessoa

pobre, mas o que estragou a sua saúde é que ele era nervoso. Entre nós, ficou acertado

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que eu não queria ter muitos filhos em razão da minha idade. Somente um ou dois fi-

lhos, no máximo. Só isso! Não somente eu não posso mais ter filhos, como eu não quero

sofrer como minha mãe e Madia, conforme eu via lá no Norte. Ele pouco se preocupava

com isso, e aí eu disse que eu me separaria dele e só não me separei porque eu já estava

grávida da quarta filha. E o que eu fiz para evitar filhos? Contei para o padre e não me

arrependo, porque eu não podia mais ter filhos. Eu lembro da doença dele; era chagási-

co. Ele trabalhava na feira, mas não dava mais para sobreviver porque a prefeitura não

autorizava ele aumentar as quantidades que vendia. Eu, então, encontrei um trabalho

para ele ali perto de minha casa, onde fica o Carrefour. O chefe dele foi a minha salva-

ção, e é por isso que eu tenho minha aposentadoria hoje. Só faltava um ano para ele

perder tudo. E eu resolvi arranjar o dinheiro para cobrir a contribuição. Vendia uns pa-

ninhos na feira, e ele ficava uma arara, ficava brabo, me xingava que só vendo... Vendo

aquele meu interesse, ele dizia que eu queria que ele morresse para arrumar outro ho-

mem... Ele terminou sabendo que estava doente de chagas num exame que ele fez num

daqueles postos de saúde da época. O resultado foi: manchas na área cardíaca. Eu fiquei

desesperada e perdi quase nove quilos. Ele, então, nem se fala. Deixou até de ir traba-

lhar. Eu digo mesmo que, quando ele morreu, eu já estava mais conformada. Um dia,

ele estava assim sentado, e eu disse “meu Deus, ele vai morrer hoje”. Ele decidiu ir à

cidade para pagar a luz e a água. Estava pálido... brabo! Ele não era mais aquele homem

que eu havia conhecido. Não era! E eu não queria transferir esse problema para a minha

família. Ele foi, então, pagar a conta da luz e o carnê da menina na escola. Quando che-

gou no Brás, ali perto do Bradesco, passou em Gil Gomes, tirou o chinelo e sentou. E a

Márcia passou e viu ele ali, como também o marido da irmã da Maria do João. Ele che-

gou junto de uma barraquinha e não sei se comprou alguma coisa. Porque o dinheiro

pouco que ele tinha – uns oito cruzeiros daquela época –, roubaram. Só me entregaram a

aliança e os documentos. O resto do dinheiro levaram. Ele tinha comprado num marre-

teiro uma pêra. Quando, já sentado, ele deu uma mordida na pêra, ali, naquele instante,

ele sofreu o derrame e morreu. Márcia, que estava passando, escutou o barulho do povo

dizendo que um homem tinha morrido. Ela voltou e se apavorou. Eu sofri muito, filho.

De noite, eu sonhando que ele estava entrando dentro de casa... (chora muito). Eu dizia

que ia rezar, porque ele não vinha nos assustar. Elas ficaram apavoradas. E quem ajudou

a elas superar essas angústias foi o Budismo.

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Antônio – E a sua vida depois que Laurindo morreu, deve ter sido muito difícil,

não?

Conceição – Nossa, nem me fale. O problema era eu arranjar um trabalho. Eu tive duas

oportunidades. A primeira é que fui encaminhada pela Secretaria do Trabalho para me

inscrever numa firma de limpeza. Essa firma estava selecionando mão-de-obra para um

hospital que fica lá nuns morros de Jabaquara. Peguei o metrô e saltei na estação Con-

ceição. Chegando lá, a moça me foi logo mandando pegar num rodo e numa vassoura

para limpar o necrotério do hospital. Eu disse: “Pelo amor de Deus, me dê outro serviço,

esse não”. Quando viram a minha reação, decidiram que eu iria para a limpeza da cozi-

nha do hospital. Eu disse: “Não, aqui eu não fico, nem para limpar necrotério, nem co-

zinha. Quem me garante que amanhã não me joguem na limpeza do necrotério? Deus

me livre”. Nunca mais fui lá. Esse foi o primeiro. O segundo foi por intermédio de um

moço que era amigo dos colegas da escola de Márcia. E eu o conheci no Zoológico da

Prefeitura de São Paulo. Ele, logo depois, sofreu um terrível acidente com a namorada

dele e passou muitos dias internado no Hospital de Jabaquara. Ficou com muitas difi-

culdades físicas. Um dia, ele veio até minha casa, posto que ele conhecia as meninas. Eu

estava acabando de chegar da Vila Ema, e ele estava deitado no sofá. Eu perguntei co-

mo ele estava, e ele me disse que só não estava melhor porque não conseguia dormir.

Estava não sei quanto tempo sem dormir. Eu, então, disse que iria lhe dar um remédio

para ele dormir. Peguei uns maracujás e botei no liquidificador e dei a ele uma quanti-

dade não muito forte. Ele tomou e caiu num sono profundo, que dormiu a tarde toda e

só foi acordar no início da noite. Acordou tão feliz da vida pelo fato de ter conseguido

dormir. Procurou saber qual remédio eu lhe tinha dado e disse que a partir daquele mo-

mento sentia-se uma outra pessoa. E me garantiu que ia me arranjar um emprego no

zoológico. Dei baixa naquele emprego do hospital e me coloquei no zoológico. Ah!

Meu filho, lá foi pior no início, foi horrível. Cheio de bicho, a geladeira cheia de cabeça

de bichos. Eu disse, meu Deus, estou caindo noutra pior por conta das doenças contagi-

osas dos bichos. Tinha-se que enterrar os bichos quando eles morriam. Aí fui começan-

do na limpeza. Tudo bem, tudo bem, passava sempre no DP e via aqueles diretores, por

sinal já morreram dois daqueles diretores. Fazendo limpeza, tudo direitinha. No início,

eu não gostava porque nunca tinha trabalhado num setor de limpeza e meu trabalho na

Fontoura era diferente. Agora, estava na função de limpar para a prefeitura. Mas eu di-

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zia comigo mesma: tenho que enfrentar... Logo que eu me apresentei no zoológico para

fazer a seleção, fui logo aprovada. Disseram-me para voltar no dia seguinte, mas ainda

sem me efetivar. Eu disse que não tinha problema, porque isso era uma questão de tem-

po. E fiquei lá até me aposentar. No começo, só enfrentei porque eu estava muito preci-

sada. Pedia a Deus para me aposentar e me aposentei de fato. No dia em que me apre-

sentei ao DP, recebendo a minha folha para dar entrada da minha aposentadoria ao

INSS, foi a maior surpresa porque ninguém entendia que eu tivesse já idade de me apo-

sentar. Quando me confirmaram a aposentadoria, parece que eu estava no céu, de tanta

felicidade, e voltei para a terra para viver a minha felicidade. Parece que eu tinha res-

suscitado, de tão aliviada que fiquei. Chegando em casa, contei para as meninas, que

também quase não acreditaram. E é disso, hoje, com que eu vivo.

Antônio – Conceição, você botou um nome em cada um dos irmãos e dos sobrinhos

mais chegados, nome esse que só você mesma chama. Você pode enumerar esses

nomes e as pessoas a quem eles correspondem?

Conceição - Ah! Pois não! Vou começar por você: Tita (Antonio/Professor); Sinane

(Valdeci); Terinha (Elias/Olaia); Modinha (sobrinho Givaldo); Virgínia, José e a Flora

eram as únicas que não tinham nomes. Doida Velha (Maria/Madia); Lossibois (Anísio);

Cioba (Severino) Brás (Maria da Madia/Guirra); Vela Veia (Manoel); Fixó-Fichinho

(Edson, da Flora); Olheiros (Irene, da Flora).

Antônio – Você quer dizer ainda o que para terminar esta entrevista?

Conceição – Pra terminar, gostaria de dizer algumas coisas. A pessoa de mãe é alguém

que me deixa muita saudade. Foi a única e grande tristeza de ter deixado o Norte. Pela

parte de pai, não. Ela só ficou na minha casa uns cinco dias. Cuidei dela lá em Mato

Grosso e em outras oportunidades. E eu só não fiquei com ela em minha casa porque

meu banheiro era pequeno demais. O da Virgínia, não. Virgínia tinha condições. Não se

precisava pagar para os outros cuidar de mãe lá no Mato Grosso. Mas eu não tenho re-

morsos. Deus levou ela, e eu pedi pra Deus que Ele tomasse conta dela. E eu chorei

muito, muito, com a morte dela, porque ela era uma pessoa boa. Pai, não. Coitadinho,

era nervoso. Mas meu pai e minha mãe devem estar no céu (chorando). O padre me

disse que era para não ter remorso e me conformar. Eu cuidava da minha mãe e dava

banho (chorando muito).

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Anísio Jorge de Siqueira36

Antônio - Anísio, gostaria que você falasse sobre suas lembranças na Matarina e

na Santa Luzia.

Anísio: A gente saiu da Matarina, da Fazenda Matarina, em 1946. Eu falei recentemente

com o atual dono da Fazenda Matarina, o Eugênio Nunes, filho de Cícero Nunes, e ele

me confirmou exatamente isso. Quanto à nossa infância, ela foi maravilhosa. Lembro

quando a gente, em 1946, veio para Santa Luzia, onde pai havia comprado aquela pri-

meira parte de terras, já em 1936, se não me engano. E a gente mudou para Santa Luzia,

município de Sertânia. Em seguida, ele comprou a terra que era da velha Josefa Traqui-

nada. Depois, adquiriu a propriedade que era de José Bernardo e, finalmente, a última

terra que pertencia a Chico Félix, já falecido, onde Manoel morou. Foi uma infância

36

Nascido aos 08 de maio do ano de 1938, Anísio é casado com Enedina Maria de Siqueira. Pai de três

filhos: Célia, Hélio e Daniel. Mora no sítio São Marcos – Arapuá, distrito de Três Lagoas, MS, onde a

entrevista foi feita no dia 27 de dezembro de 2008.

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ótima, você também deve lembrar. Fiquei na Santa Luzia até os dezoito anos, ocasião

em que vim para São Paulo.

Antônio – Nesse período de sua infância, você gostava de jogar bola... lembra de

alguma trela?

Anísio – Gostar de jogar bola, isso não era o meu fraco, ainda mais que, nas peladas

daquela época as bolas eram de borracha e aí, já viu, levava drible e queda de todo ta-

manho... Por causa de chutar longe ou furar, andei pagando varias bolas. Também tinha

muita bola de meia; ainda hoje existe, acho.

Antônio – E o que mais fazia, tangia gado?

Anísio – Ah, sim, catava algodão, trabalhava na roça; afora fazer as tarefas normais da

escola. Aliás, você foi meu companheiro nessa tarefa de tocar o gado, ir atrás de cria-

ção, por sinal você xingava, uns dizem que era por preguiça, outros dizem que era por-

que chupava dedo, você lembra isso aí?

Antônio – Como era o dia-a-dia de menino?

Anísio – Naquela época, criança trabalhava. Hoje criança não trabalha até os dezesseis

anos. Eu tinha minhas tarefas: acordar cedo, tirar ração que, para alguns animais, era um

feixe de palma; para outros, como os bezerros, era um feixe de palha. A gente trabalha-

va muito enquanto criança. À medida que fui crescendo, lá pelos meus dez anos, eu fiz a

minha primeira comunhão e sempre tinha que cuidar da criação naqueles matos, naque-

las serras. Aí é onde eu pegava bode para matar e garantir a nossa sobrevivência, porque

a gente vivia daquilo, não é? Aquele era um tempo bem difícil, mas para nós não foi tão

difícil, porque, graças a Deus e ao esforço de pai e mãe, foi bastante gratificante para

nós. Não tínhamos tudo o que queríamos, mas tínhamos o suficiente para sobreviver.

Antônio – Nós sabemos que você sempre foi um grande caçador e um grande pes-

cador. Você lembra sua primeira caçada?

Anísio – Eu comecei a caçar com estilingue – lá, no Nordeste, nos chamávamos de “ba-

liadeira” – e lembro bem que tínhamos de andar com ela por debaixo da camisa, porque

se pai nos pegasse com aquilo ele nos dava surra. Quando eu apenas começava a caçar

de espingarda, certo dia cheguei da escola de Dona Zefinha, que foi minha professora,

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sua, de Conceição e do Severino... Essa professora sei que Deus já a levou. Eu senti

muito não a ter visitado nas vezes que voltei a Sertânia. Então, eu tinha acabado de che-

gar da escola e, no quarto onde a gente trocava de roupa para cuidar das obrigações,

havia uma espingarda que Manoel tinha comprado. Eu peguei aquela espingarda que

estava carregada e comecei a mirar em direção à cumeeira da casa... Daqui a pouco,

apertei o gatilho e foi aquele estampido. As buchas começaram a pegar fogo e caíram

em cima de um paiol de algodão. Naquele dia, não teve perdão, levei uma surra de pai.

A minha sorte foi padrinho Umbelino, mãe e Mena, nossa avó, que intervieram, dizen-

do: “José, espera aí; compadre José, não exagere!” Só sei que foi um trabalho danado

para apagar o fogo; terminaram apagando. Só que, depois, eu tive que pagar, no couro.

Foi assim a primeira vez que peguei na espingarda. Eu lembro que, quando aconteceu

aquilo, pai chegou pra mim e disse: “Cabra, se eu te pego com uma espingarda de novo,

eu te quebro ela na tua cabeça!”. Eu lembro que não gostei de ouvir aquilo. E, se for

pecado, Deus que me perdoe. Sei que, com oito dias passados desse acontecido, com-

prei uma espingarda ao meu irmão José, o barbeiro, que era mais velho do que eu uns

oito anos. Comprei a espingarda por duzentos mil réis, daquele tempo com o apurado de

uma criação que eu tinha e, claro, fiquei duro... Tinha que contar a pai. Um dia, eu acor-

dei cedo, cheguei à cozinha onde ele estava tomando café e fumando um cigarrinho de

palha... Eu, naquela enorme ansiedade, louco para comprar munição, cheguei pra ele e

contei o caso. Falei que tinha comprado uma espingarda a José, que já sabia caçar, que

não ia cometer nenhuma besteira, mas precisava comprar munição. Aí ele ouviu, coçou

a cabeça, enfiou a mão no bolso e me deu mil réis, uma nota vermelha, lembro bem. Eu

acho que dentro de dez minutos eu fui a Sertânia e voltei. Fui comprar naquela venda de

Francisquinho, você lembra? Voltei para casa muito contente e feliz e aí não aconteceu

mais nada. Pai era daquele jeito, mas tinha o seu lado bom...

Antônio – Você lembra alguma coisa marcante na escola de D. Zefinha?

Anísio – (Rindo) Você sabe que a escola funcionava no lugar onde tinha aquele barrei-

ro. Era onde morava o finado João Manoel. Depois, ela mudou para a casa onde morava

a Velha Maria Guilherme, mãe de Edite, Duda e Zé Guilherme. Cada um de nós tinha

uma tarefa: rezar, buscar água para encher um pote de beber... Um dia, eu fiquei encar-

regado de ir buscar água no barreiro; eu e o Dejaci, filho do velho Caboclo Quida. Sei

que a gente mijou dentro da lata d’água, e (rindo muito) o pior é que foi descoberto!

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Fizemos xixi dentro da lata d’água! Apesar de dizermos um para o outro que não se

devia abrir a boca, terminaram descobrindo, e foi um bafafá danado...

Antônio – Que lembranças você tem da professora D. Zefinha?

Anísio – Ela era uma ótima professora, você sabe disso. Quando uma professora não é

suficientemente rígida, não é uma boa professora, e ela foi uma boa professora.

Antônio – O que você lembra da convivência com os irmãos?

Anísio – É, naquela época, Antônio, os pais ignoravam o bom relacionamento com os

filhos. Eu mesmo não sendo dos mais velhos sentia o quanto pai era rígido e, assim,

meio ignorante no modo de falar; mas, sei lá, não tinha aquele pensamento mais franco,

uma conversa assim mais livre com a gente, principalmente com o Manoel e o José. Eu

discordava principalmente de certas reações dele com mãe. Uma vez mesmo, eu intervi

dizendo que ele não deveria falar com mãe daqueles modos. Você sabe que mãe, duran-

te vários e vários anos, costurou nossa roupa e também o fez para ajudar no arrimo da

família. Chegou um momento em que ela necessitava usar óculos de precisão. Como

não existia exame de vista acessível naquela época atrasada, os óculos dela provocavam

tonturas e muitas queixas da parte dela. Um dia, pai incomodado com aquelas queixas

de mãe, enfurecido, quebrou os óculos dela. Eu reclamei daqueles modos ignorantes

dele. Como era garoto crescido, ele quis me bater, e eu disse que não adiantava ele me

bater. Nós lutávamos, plantávamos palma, mas aquilo era como se fosse um “hobby”,

porque não servia para o nosso gado, que chegava a passar fome. Mas ele não queria ver

o gado estragar o plantio de palma nem queria que a gente cortasse a palma. Aquilo era

um atraso! A palma morria de velha, ele dava para os outros, mas não nos servia. Eu

não gostava daquilo. Até que, num certo dia, eu, ainda moleque, sabendo que ele tinha

muitos prejuízos na venda de criação para os compradores, resolvi falar. Muitos com-

pravam por um preço irrisório; outros compravam e não pagavam, ou então pagavam

muito atrasado... Certo dia, cheguei ao curral da casa de Zé Guilherme, no Riacho

Queimado, com uma criação que ele mandara juntar para vender. Estava ele com os

compradores já fechando o negócio. Eu disse então, que, a partir daquele dia, quem ne-

gociaria a criação seria eu e, graças a Deus, fui muito bem-sucedido.

Antônio – Fale sobre os divertimentos, as festas. Como é que os moços se divertiam

em Sertânia, nessa época?

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Anísio – Eu sempre encontrei um jeito para isso. O Manoel é que não ia mais longe, só

ali por perto de casa. Mas onde tivesse um forró, eu estava lá. Aproveitava a situação de

viver praticamente fora de casa. Pegava logo a minha roupa, já me preparava uma se-

mana antes. Eu morava no Riacho Queimado, com Madia, e gostava de forró. Só não

frequentava aqueles que eram perigosos por conta de brigas e confusões. Sempre ia ao

Açude do Estado e à Paraíba. Alguns tinham brigas; sabe, onde tem cachaça e mulher,

sempre há bate-boca, brigas, confusão... Eu, graças a Deus, frequentei muitos forrós,

mas nunca me encrenquei em nenhum deles não. Mesmo em Sertânia, eu sempre ia.

Agora, o Manoel, o José, o Severino e as meninas, estes nunca saíam de casa. Você sa-

be, não é? Havia aquele medo de fugir de casa...

Antônio – A partir de certo momento, você decidiu vir para São Paulo. Conte co-

mo foi essa decisão.

Anísio – Eu não pedi a pai para viajar. Eu primeiro me preparei. Minha viagem foi em

1957. Eu era jovem. Trabalhava na roça e tinha minha própria roça. Tinha mais que

todos da família, mais do que Manoel e José, que não tinham quase nada. Botava gente

para trabalhar, pagava, trocava dias de serviço com Paulo Felipe, Liro de Xéu, você

lembra-se dele, não? Era um grande amigo da gente. No ano de 1956, eu tinha uns seis

quadros de roça e perdi tudo com a seca. Vieram as primeiras chuvas de janeiro, e eu

enchi tudo de palma, milho, feijão. Depois, não choveu mais nada, e aí perdi tudo. Na-

quele momento, eu desanimei; encostei as ferramentas e juntei o que tinha de criação:

duas vacas e duas novilhas. Vim para São Paulo e trouxe comigo o José e a Virgínia.

Não vim de pau-de-arara, não. Tomamos um ônibus em Arcoverde e pegamos a estrada,

numa viagem de onze dias. Tivemos sorte. Naquele tempo, as estradas para São Paulo,

no caso a Rio-Bahia, eram cruéis. Mas viemos naquela vibração, e graças a Deus o que

eu hoje tenho devo a essa vinda para São Paulo.

Antônio – Toda a família sabe da importância de nossa irmã Flora e de Zeca, nosso

cunhado, na ajuda que deram aos irmãos que foram de Sertânia para São Paulo.

Gostaria que você falasse disso. Antes, porém, peço que você fale sobre o casamen-

to dela com Zeca, em 1952, quando foi “roubada” e casou a caminho de São Paulo.

Anísio – No dia em que Flora fugiu para casar, não caiu uma banda do mundo ou mes-

mo a metade de Pernambuco, porque Deus faz as coisas bem feitas. Pai ficou muito

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nervoso, ficou muito nervoso! Você sabe que ele não alimentava a possibilidade de Flo-

ra casar com o Zeca. Ele era contra esse casamento. Depois que ela casou, ele resolveu

esquecê-la para sempre, e isso fez a Flora sofrer muito. Após vários anos de tentativas

por parte dela, escrevendo para ele, ele mantinha sempre aquela ignorância. Hoje em

dia, as coisas mudaram muito e se vê logo que não havia necessidade daquilo. E foi uma

coisa que me marcou muito, aquela raiva que pai tinha do casamento da Flora com o

Zeca. Afinal, não havia a menor necessidade disso, porque se ela gostava dele tinha que

casar era com ele mesmo. É um direito da mulher casar com quem ela quiser. Eu já es-

tava em São Paulo quando convidei os dois para serem meus padrinhos de casamento

em Sertânia. E eles aceitaram: “vamos, sim, nós iremos para o Norte”, como se dizia. O

convite foi feito um ano antes. E o tempo foi passando, passando, quando faltavam seis

meses, três meses, ele (Zeca) começou se “escorando”. Dizia ele: “É, Anísio, como o

velho vai me receber? Aquele velho é ignorante. Será que ele não vai tentar se vingar de

mim ou tentar uma coisa pior contra mim?” Eu disse pro Zeca: “Deixa isso comigo que

vai dar tudo certo”. Tomamos o ônibus para o Nordeste no dia 17 de dezembro de 1961.

Pegamos o ônibus no Brás e, quando fomos nos aproximando ali de Paulo Afonso, Mo-

derna, Cruzeiro do Nordeste, a apreensão aumentava... A Naninha, irmã de Zeca, nos

esperava em Cruzeiro do Nordeste e, de lá, ela devia seguir para Arcoverde. Quando

nos encontramos ela falou: “Anísio, você não acha mais prudente eu levar Zeca comigo

para Arcoverde, e você ganhar tempo para sondar a receptividade do velho Zé Jorge?”

Eu disse: “Não, de jeito nenhum! Ele e a Flora vão para casa e é comigo”. Chegamos

em casa e o ônibus foi até o pátio da fazenda e nos deixou ali. Pai estava em Sertânia,

porque era sábado, dia de feira. Ele andava bem arrumado, lembro, como hoje, estava

de paletó, chapéu de massa, marca... Prada! E toca a demorar, demorar, demorar... E o

compadre Zeca naquela impaciência! Eu, por precaução, guardei todos os “armamen-

tos” (rindo muito) para evitar algum desastre, algum acidente! E fomos esperar pai ali

na estrada. Quando dei fé, parou um carro. Era um carro preto, se não me engano um

Mercury, de Severino Henrique. Quando ele desceu, eu me aproximei bem dele. Ali ele

já desceu e disse: “Ah! é você, Anísio!” Aí nos abraçamos e tal... Começamos a cami-

nhar aquele trechinho de caminho entre a estrada e a nossa casa. Compadre Zeca e Flo-

ra, a essas alturas (rindo muito), não sei nem como e onde é que estavam. Mas eu esta-

va confiante. Conversei com ele que o Zeca não era nada daquilo que ele pensava, era

uma pessoa muito boa, etc. Aí ele foi andando devagarzinho, chegou em casa, entrou...

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Compadre Zeca e Flora se “ocultaram”. Depois os dois chegaram, e ele nada de querer

falar, perdoar e muito menos abraçar os dois. Foi quando eu falei: “Pai, eu vim casar e

convidei os dois para serem meus padrinhos de casamento. E eu pretendo casar aqui em

casa. Se o senhor...” Você lembra, naquele tempo você era seminarista e estava em casa

com um colega seu e outro padre. Ai chegou o ponto em que eu disse: “Eu vim aqui

fazer as pazes e fazer com que isso acabe”. Sei que pai era muito revoltado com coisas

erradas, mas o Zeca não merecia aquilo. E eu continuei dizendo que as malas estavam

prontas, e eu iria chamar um carro, iria embora e casar em qualquer lugar. “Se o senhor

não aceitar eles aqui, eu não vou ficar aqui também”. Ele baixou a cabeça, chorou, cho-

rou... E eu dizia pra ele: “Pode chorar, pai; é bom desabafar!” Aí, depois de certo tempo,

ele ergueu a cabeça e disse: “Quem não perdoa na terra, no céu não será perdoado. Tudo

bem!” Foi nessa hora que compadre Zeca chegou, abraçou-se com ele, tal e coisa... Foi

só alegria a partir daí. No dia seguinte a gente foi pegar um carneiro já grandinho, no

Riacho Queimado, para matar. Nessa saída, ele pegou a espingarda de cartucho 20 dele

e botou nas costas. O compadre Zeca, que nos acompanhava, ficava só olhando muito

desconfiado (rindo muito), dizendo pra mim: “Será que esse velho não vai me dar um

tiro aqui?!” A partir desse dia para cá, foi só alegria, graças a Deus.

Antônio – Voltando à pergunta, vamos para os primeiros dias seus em São Paulo.

Conte aí essa sua experiência... Você foi morar onde?

Anísio - Eu não fui morar com a Flora. Ela morava num barraquinho, lá na Vila Cario-

ca; você conheceu, não é? Hoje, é Rua Brás de Pina. Eu tinha chegado trazendo a Virgí-

nia e o José e, ainda hoje, lembro que tinha no bolso a quantia de três mil e setecentos

cruzeiros daquele tempo. Flora, onde morava, tinha um terreno deles. Fui ao armazém e

comprei o material e levantei um pequeno barraco onde ficamos eu, José e a Virgínia.

Ficamos aí uns oito meses mais ou menos. Eu falei, então, pra Flora: “Vamos alugar

uma casa; aqui tudo é muito apertado, e o Zeca bem que poderia vender a parte dele

para um dos irmãos”... E assim foi feito. Ele vendeu, acho que foi para o Duda. E nós

fomos morar de aluguel na Rua Lício de Miranda. Aí foi muito bom, não é Antônio? Eu

que tinha chegado da roça, matriculei-me numa escola profissional, onde estudei dois

anos e pouco. Era uma maravilha. Estudei no SENAI, na Escola Poliarte da Avenida

Dom Pedro, no Ipiranga. Era difícil, porque eu tinha que pagar escola e ainda pagava

todo o material. O que eu ganhava não era suficiente, e eu tinha que “marretar” nas vi-

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las, nas favelas; favela da Vila Prudente, favela da Mooca, Santo Amaro, eu tinha que

andar por tudo aquilo lá, marretando. A essa altura, eu já trabalhava na Petersen, um

emprego arrumado pelo Severino, onde trabalhei três ou quatro meses de ajudante e

depois passei a ser meio oficial e, finalmente, oficial. Trabalhei nove anos na Petersen, e

o curso que eu fiz foi fundamental para a minha carreira. Durante esses nove anos, fui

ao Nordeste e casei em 1962. Depois voltei ao Nordeste para aquela experiência da ce-

râmica, tendo feito eu mesmo todas aquelas peças.

Antônio – Como e quando você conheceu Enedina?

Anísio – Eu conheci Enedina em Sertânia, em 1955-56, muito antes de vir trabalhar em

São Paulo. A Virgínia trabalhava com ela para o finado Severino, irmão dela. Quando

vim para São Paulo, já vim noivo. Vim trabalhar para aprender uma profissão e terminei

por construir aquele “castelo de areia” lá, na Vila Ema, que os meninos terminaram de

modificar...

Antônio – Voltando aos primeiros anos de São Paulo, como foi a vinda dos demais

irmãos?

Anísio – Como já disse, vim para São Paulo com o José e a Virgínia. O Severino já es-

tava aqui em São Paulo. A Flora e o compadre Zeca tiveram um papel muito importan-

te, tanto na vinda quanto na nossa permanência em São Paulo. Os dois foram nossos

pais. Apoiaram todos nós; não somente eu, como o Severino, o José, a Virgínia e a

Conceição. Durante os cinco anos que passei em São Paulo, antes do casamento, a con-

vivência com os dois era uma felicidade. Eram nossos pais, repito. Como já faleceram,

só nos resta hoje recomendá-los a Deus e rezar pela alma deles para que eles tenham o

sossego que merecem. Logo depois, aparecem nossos sobrinhos. A Irene, do compadre

Zeca, foi a primeira. Eu gostava muito e brincava muito com ela. Certa vez, tive que dar

uma surrinha de leve nela, para ela aprender... Vou contar essa história. Bem, Irene era

muito apegada ao pai, o compadre Zeca. Ele teve que levar Flora, certa vez, ao hospital,

ao cair da noite, porque ela estava passando mal. A Irene ficou naquele berreiro infer-

nal, uma “gritaiada” danada. E eu dizia: “Calma, minha filha, seu pai vai voltar logo”.

Mas ela nada obedecia. Foi então que eu peguei o cordão bento lá de uma congregação

de São Pedro e dei-lhe umas lapadas. Ela lembra muito bem desse acontecido (rindo).

Quando os dois voltaram e já estavam entrando no quintal, ela então começou a gritar.

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Eu disse pra ela: “Você vai falar para sua mãe e seu pai por que é que eu lhe bati”. E vai

contar, senão vai apanhar de novo. Ela ficou toda amuada, e Zeca e Flora perguntaram:

“Minha filha, o que foi que aconteceu?” Ela só fazia soluçar... Mas não conseguiu con-

tar nada. Foi muito bom pra ela... Pergunta para ela que certamente ela vai lhe contar.

Antônio – Em São Paulo, a Vila Carioca, naquele tempo, como era?

Anísio – Era uma beleza, era uma praia só... (ri ironicamente). Só que a areia da praia

era da cor de sebo e atolava bonito! A Vila Carioca, meu Deus! No dia em que eu che-

guei do Nordeste e tomei um táxi no Brás, o rapaz então disse que só me levaria até a

Rua do Manifesto, no Ipiranga! “Dali pra lá, eu não levo mais”, disse. Eu falei: “Então

não serve; deixar-me no meio da rua, com uma mala na cabeça, não serve”. Ele disse:

“Não, entre, vamos tentar nos aproximar ao máximo do seu endereço”. Eu disse: “Só

entro se me levar até o numero do meu endereço na Rua Álvaro Fragoso”. Assim era a

Vila Carioca.

Antônio – Como e porque vocês vieram morar na Vila Ema depois desses anos to-

dos na Vila Carioca?

Anísio – É o seguinte. A gente tinha interesse em comprar um lote de terreno. Falei com

o José para procurar um terreno, e a gente entraria como sócios. Ele caiu em campo e

encontrou vários terrenos, na Vila das Mercês, na Vila dos Quarenta, e alguns eu con-

denava porque eram acidentados demais... Até que encontrou aquele terreno lá na Vila

Ema. Entramos como sócios e compramos o terreno. Isso foi em 1959. Depois, a Flora e

o compadre Zeca compraram outro terreno lá que foi do José Felipe e terminaram indo

morar também na casa que construíram e que hoje é da Madia. Eu comprei o terreno lá,

construí a minha casa e os demais também. Muitos outros depois vieram. O Givaldo

também comprou, o Severino, a Madia. A Virgínia com o Aldir comprou lá no Sapo-

pemba.

Antônio – Anísio, fale agora sobre sua família.

Anísio - A Célia nasceu em São Paulo, na maternidade da Brigadeiro Luiz Antônio. O

Hélio já nasceu no Nordeste... (Áudio de um pequeno trecho da gravação prejudica-

do)

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Antônio – Isso significa dizer que você estando em São Paulo tentou voltar para o

Nordeste. A saudade bateu mais forte?

Anísio – É, quando nós saímos de São Paulo, eu não vendi nada. Deixei a casa alugada

para o finado Laurindo, marido da Conceição, nosso cunhado. Eu pedi a conta e deixei a

firma, já tendo feito aquele maquinário para a cerâmica no Nordeste. Montei aquilo lá

em Sertânia, mas infelizmente o comércio lá era fraco, como de fato ainda é, e não deu

certo. Trabalhei muito lá, quase morro de trabalhar e, em 1969, voltei para São Paulo.

Voltei para a mesma firma, onde trabalhei mais um ano e terminei pedindo a conta no-

vamente. Depois, entrei numa outra firma, onde trabalhei mais de vinte anos, a Grobe,

onde me aposentei.

Antônio – Explique melhor a decisão de montar uma cerâmica no Nordeste...

Anísio – Eu tinha trabalhado nove anos na Petersen e, você sabe, a gente tem aquela

saudade da terra onde nós nascemos e nos criamos. Essa terra é o Nordeste. Também

era aquela vontade de botar um comércio por conta e não ser eternamente empregado

vivendo fora da terra da gente. Talvez o ramo de comércio me fosse mais garantido, eu

pensei. E, às vezes, eu penso que fiz uma escolha certa por ter optado pela mecânica.

Mas essa pequena indústria cerâmica não deu certo pelo seguinte: você encostava vinte

a trinta mil tijolos, dez a quinze mil telhas e não chegava nenhum comprador para o

comerciante principiante... A matéria-prima era da melhor qualidade. Para você ter uma

idéia, eu vendi mais de um milheiro de telha para umas casas populares em Solidão

(PE), cujo acesso era em estradas de terra. Em pleno inverno, com um caminhão trucado

houve apenas a quebra de quinze telhas. O material era muito bom. Mas as coisas para-

vam por ali. Passava quatro a cinco meses sem vender nada. Perdi dois anos de trabalho.

Mas não me arrependo de nada daquilo que tentei em minha vida. Foi um tempo feliz

que eu passei com pai. Lá, em Sertânia, nasceram o Hélio e o Daniel, essa dupla de ouro

e prata.

Antônio – A viagem a São Paulo-Paraná da Madia foi uma aventura meio compli-

cada. O que você sabe disso?

Anísio – Olha, a vinda da Madia foi uma decisão muito rápida. Vieram ela e a família,

Zé de Melo e Liro. Primeiro veio Zé Guilherme com Manoel, que ficou em São Paulo e

ele foi para o Paraná comprar um terreno. Lá, ele comprou dois alqueires de terra, um

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deles numa chacrinha acanhada e outro onde ele construiu a casa. Quando eles (a Madia

e os filhos) chegaram a São Paulo, aquilo foi uma loucura. Chegaram num pau-de-arara

com não sei quantas pessoas e ficaram largadas lá na Rua Aurora. Ela com as crianças e

um moleque doente; a mulher de Leonel, também doente... A Madia com o Erasmo do-

ente, e ele quase morre. O Osvaldo, em Governador Valadares (MG), caiu num esgoto;

uma pessoa o socorreu lá, e ele não morreu por um milagre. Todo mundo doente, cheios

de diarréia; aquilo lá foi uma loucura. Naquela época, quando eu cheguei lá, estavam

jogados numa pensão, na Estação da Luz. A Rua Aurora era ali perto, bem pertinho da

Estação da Luz. Eu soube que ela estava lá, ligaram e eu fui buscá-la e a trouxemos para

casa com a molecada toda. Ficou lá a turma de Zé de Melo, era um monte de gente. Eles

iam para o Paraná, para Cafeeiros. E não tinham mais dinheiro, mais nada. Eu sei que

passei seis dias, mexendo para arrumar condução. Mas Deus sempre ajuda. Eu sei que

passei seis dias mexendo para arrumar condução. Mas Deus sempre ajuda. Fui a tudo

quanto é polícia, agência de governo, nada, nada! A Madia, não, ela estava lá em casa,

ela viajou depois de ônibus. Ai eu paguei tudo, todas as despesas da pensão; graças a

Deus não me fez falta. Eu procurei na Imigração, que era de graça, mas mesmo assim

não encontrei nada. Aliás, na Imigração eu consegui para os outros, mas tive que pagar

uma taxa. Tirei a mulher do Leonel do hospital, e essa é a historia da Madia, que teve

esse desfecho. Foi um grande sofrimento.

Antônio – Anísio, numa dessas viagens suas ao Nordeste, você sofreu um acidente

de carro. Como foi isso?

Anísio – Tomei o carro do Erasmo emprestado, um carro que ele tinha, um azarão –

porque quando ele pegou aquele carro, fez um passeio e um cavalou espantou-se com o

carro e foi em cima do capô. Saímos de São Paulo, dinheiro no bolso, eu e a velha. Saí-

mos meia-noite, e, quando o dia amanheceu, eu já estava na ponte Rio-Niterói. Lá pelas

sete ou oito horas, estava pertinho de Campos (RJ). Ali é muito acidentado e tinha cho-

vido muito à noite. Tomei café, abasteci o carro e aí saí. Quando ultrapassei um ônibus,

como tinha chovido a noite toda, a estrada estava cheia de cascalho e barro. E ali é mui-

to acidentado. Peguei aquela baixada com água, escorrendo água, aí ele derrapou, e eu

tentei controlar, mas quando vi já estava em cima de uma bueira. Nessa hora eu pensei

assim: se não acelerar, vamos morrer eu e muita gente. Aí eu acelerei mais um pouco,

passei naquele pequeno espaço da ponte e joguei a roda traseira em cima de um pé de

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eucalipto e saí rodando pelo ar. Não morri, e não morreu ninguém. A Enedina teve uma

luxação no braço direito, e eu fraturei uma costela. Devolvi o carro pelo guincho e,

quando chegou ali na Dutra, era para deixar o carro em cima do caminhão. O cara dei-

xou o caminhão numa descida com o freio de mão semiacionado. O reboque desceu a

ladeira e bateu no muro. O caminhão do guincho era uma Mercedes nova, recém-

pintada, e terminou como ferro velho, perda total. Como o carro estava no seguro, no

prazo de uns vinte dias o Erasmo recebeu um carro novinho.

Antônio – Depois dessa vivência em São Paulo, como foi a decisão sua de vir para

Mato Grosso do Sul? Após aposentadoria na Grob?

Anísio – Foi meio longa a vontade de vir morar aqui. Eu sempre gostava de pescar, co-

mo até hoje gosto; caçar, eu nunca cacei. O Idalécio, que sempre vinha passear aqui, me

falou que era assim, assim e me deu vontade de conhecer aquilo que, na época, era ape-

nas o Mato Grosso. Eu tinha uma Brasília, e os moleques eram pequenos, e eu vim e

gostei bastante. Comecei, então, a alimentar a ideia de comprar um sítio aqui, mas, na-

quele tempo, eu não tinha condição de comprar sozinho. Aí eu acertei com seu Idio que

nós dois compraríamos um terreno e, depois, nós adquiriríamos outro para cada um ficar

com o seu. E não deu duas. Graças a Deus, compramos aqui e, depois, surgiu aquele

outro que compramos, e continuamos contentes até hoje, com muitos sacrifícios, mas

bem, graças a Deus.

Antônio – Anísio, nesse sitio aqui você leva a vida que sempre sonhou, não?

Anísio – Caçar, não, que aqui não se caça mais nada. Não se caça mais hoje, no Brasil,

em lugar nenhum. É a coisa melhor que pode ter acontecido para a natureza. Agora,

pescar, não! Eu, para lhe ser sincero, estou no paraíso. Por sinal, hoje mesmo comemos

um pintado no almoço, fruto de uma dessas pescarias. Você fotografou e pode levar

para o seu filho, que diz ser pescador; desculpe, ele pode ouvir esta gravação e pode ser

que ele não vá gostar! Mas, de qualquer maneira, quem sabe, a gente ainda vai um dia

pescar juntos. E aqui é muito bom, você mesmo está vendo, é muito diferente do Nor-

deste. Não quero comparar nem desfazer daquela terra seca onde nós nascemos. Mas

aqui é bem melhor, é diferente, é campo.

Antônio – Durante o tempo em que você foi peão, do ponto de vista político como é

que você se posicionou?

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Anísio – Em primeiro lugar, eu tenho o exemplo a mostrar, que é o Sr. Idio, que está

aqui ao lado. Ele nunca foi da esquerda, e sim da ala política conservadora. Trabalhou

durante quantos anos e nunca chegou a ter resultados. Nem ele, nem ninguém, enten-

dem? Pelo que trabalhei, era pra eu ter mais, alguma coisinha a mais. Ele, da mesma

maneira. Hoje, do jeito em que está indo a situação em nosso país, a gente está no paraí-

so. Mesmo reconhecendo que as coisas ficam cada dia mais difíceis, mas evoluem para

melhor. Veja a crise que se abate sobre os Estados Unidos, e a gente não tem crise. Tem

e, ao mesmo tempo, não tem crise. Agora, com aqueles dirigentes da direita, aquilo foi o

atraso de tudo. Você vê o que se fez do Sarney pra cá. O que fez o Collor, o que fez o

Fernando Henrique para o trabalhador? O Collor pegou a poupança e o Fundo de Garan-

tia de muita gente. Quem tem dinheiro em poupança, no Brasil, é pobre; rico não tem

dinheiro em poupança; ele bota é na aplicação financeira do banco. Ele aplica ali; aliás,

agora não se aplica mais, acabou. Pelo que eu trabalhei, era para ter mais. Para você ter

uma ideia, eu saí de São Paulo em 1991 e tinha uma Brasília velha. O Fundo de Garan-

tia não dava para eu comprar um carro usado. E, hoje, a gente está nesse patamar em

que há possibilidades para tudo, graças a Deus. Aquilo, para nós, foi um atraso. Quem

era pobre, pobre era a vida inteira, e quem era rico ficava cada vez mais rico. Para se ter

uma ideia, até bem pouco tempo atrás o fazendeiro vendia dez mil bois e tirava nota de

apenas mil bois, e isso era praxe aqui. Faça agora! Faça agora! Tenha gado no pasto e

não tenha um por um registrado lá no IAGRO! Tenha fêmea e não vacine contra bruce-

lose! Bezerro, isso e aquilo, venda sem nota para ver o que lhe acontece! Tem que pagar

imposto. E eu concordo plenamente, e é por isso que o país sofreu o que sofreu. Está ai

seu Idio, que trabalhou a vida inteira. Coitado, só depois veio conseguir este sitiozinho

aqui. Sofrendo, ganhando o dinheiro de uma aposentadoria de miséria daquele tempo e

continua ganhando pouco. Dizem que a gente vai receber aqueles atrasados que foram

descontados pelo governo federal. Portanto, sem sombra de dúvida, a gente está vivendo

um novo momento na vida do país. Não pergunte para comerciante nem para fazendeiro

não, porque eles querem ver o diabo na frente e não querem ver o Lula como presidente.

Eram ricos, e cada vez mais ricos, e hoje pagam imposto. A gente vai numa loja e se

não pedir nota fiscal eles não dão. E aquela nota fiscal é dinheiro para nossa saúde; e

olhe que não precisamos pedir nada a ninguém, porque nós pagamos o certo, e assim é

que tem que ser. Essa é minha maneira de pensar, não sei os demais como pensam...

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Antônio – Anísio, gostaria que você dissesse qual foi sua maior alegria e a sua mai-

or tristeza na vida.

Anísio – Quando eu comprei este sitio aqui, foi a realização de um sonho, não é? Fi-

quei sem o meu carrinho, sem nada, e até para comprar este pequeno sitio o seu Idio

teve que me ajudar, visto que ele tinha uns trocados a mais sobrando; e aquilo para mim

foi umas das maiores alegrias. Outra alegria foi quando eu completei trinta anos de tra-

balho e me aposentei. Aposentadoria baixa, porque aposentado por tempo de serviço,

aqui no nosso país, não recebe nada. Não falo em você, porque você é um executivo;

mas eu, Idio; eu não, porque fui metalúrgico; graças a Deus, ganhava bem naquela épo-

ca, ganhava dez salários mínimos e aposentei com um bom salário, que depois foi cain-

do, caindo... Dizem que a gente vai receber aqueles atrasados; estão falando, não é?

Quando me aposentei, eu disse: “Hoje, eu não trabalho mais de empregado para nin-

guém”. Posso trabalhar em outras atividades. Quanto à tristeza maior foi quando o Gi

(Givaldo) se foi e, mesmo recentemente, o Manoel, o Zé Preto e, antes, a irmã dele.

Sempre tem momentos de tristeza, mas são coisas prometidas por Deus; e a gente tem

que se conformar. Porque a gente nasce, vive e morre. Feliz daquele que morre com

certa idade, como é o meu caso, o seu também. Vamos dar graças a Deus e viver mais.

Antônio – Qual é a mensagem que você deixa para seus filhos, seus sobrinhos, seus

netos...

Anísio – No nosso mundo de hoje em dia, a juventude judia muito de nós, os mais ve-

lhos, com drogas, vícios. Especialmente, aqueles que têm mais condições se envolvem

no mundo das drogas. Para meus filhos, peço sempre a Deus e sempre falo: “Vamos

sempre trabalhar com honestidade e cabeça erguida”. Lembro que o que eu tenho hoje

sempre pedi a Deus. Deus dá. Deus existe, e a pessoa que tem Deus no coração conse-

gue tudo o que quer nessa vida. E o nosso país, para mim, é um dos melhores do mun-

do. No Brasil, nós temos tudo, e que Deus ponha homens de coragem e mais honestida-

de na administração do nosso país.

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Antonio Jorge Siqueira37

Cláudio – Bem, nós estamos aqui, na casa da minha mãe, Tereza, fazendo entrevis-

ta com Antônio Jorge Siqueira. A primeira pergunta, Antônio, é onde nasceram

seus pais, local, data, cidade, qual a atividade deles e onde eles moravam.

Antônio – Pelo que me consta, meu pai nasceu no Estado da Paraíba, na região do Cari-

ri paraibano, no sítio chamado Amparo, naquele tempo município de Monteiro, hoje

37 Nascido aos 04 de março de 1942, na Matarina (PB). Estudou no Seminário de Pesqueira - PE (1954),

em Viamão – RS (1962), em Fribourg – Suíça (1964), em Paris – (1968) e doutorou-se na Universidade

de São Paulo – SP (1981). É professor da Universidade Federal de Pernambuco. Viúvo de Edilnete Sam-

paio, é pai de Ricardo. Entrevista realizada pelos sobrinhos da terceira geração (Ezenildo, Hélio e Débo-

ra). Igualmente, por Cláudio, Marcelo e William, da quarta geração, todos morando em São Paulo. A

entrevista ocorreu em 13 de setembro de 2009, na Vila Ema. Dedico esta entrevista à memória de Edilne-

te, minha esposa, musa de eterna inspiração na minha vida e saudosamente lembrada pela Família Siquei-

ra. Igualmente, a meu filho Ricardo, minha nora Regina e minhas netas, Beatriz e Júlia, na esperança de

que tenham de mim um retrato de corpo inteiro e, se possível, da minha alma e do coração.

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pertencendo ao município de Prata.38

Minha mãe, no que garante minha memória, teria

nascido em Panelas de Miranda, no Estado de Pernambuco. Acho que minha mãe, de-

pois, veio para a Paraíba morar no atual município de Prata e foi aí onde ela conheceu o

meu pai. Minha mãe era um ano mais nova que meu pai, e a data de nascimento dela

não sei bem; mas era em julho, não muito distante da do meu pai. Quanto à ocupação e

profissão deles, sei que sempre viveram da agricultura familiar. O roçado e a agricultura

foram a ocupação da família e do casal. Eram originários de famílias pobres, coisa mui-

to comum no Nordeste rural daquela época. Cultivavam a terra, tinham um pequeno

criatório e viviam da agricultura de subsistência. Soube, por meio dos meus irmãos mais

velhos que, quando meu pai não se ocupava da agricultura, logo depois de casado, ven-

dia fumo nas feiras, especialmente no lugarejo que é hoje a cidade de Prata.

Cláudio – Acredito que eles moraram também num lugar chamado Boi Velho, que

foi onde nasceu a Madia, a única que não nasceu na Matarina...

Antônio – Cláudio, eu acho que Boi Velho foi o sítio onde o casal José Jorge e Verôni-

ca morou logo depois de casados... A minha irmã Madia, na entrevista dela, descreveu

com precisão maior – porque eu era muito criança quando saímos da Matarina para Per-

nambuco – os lugares onde eles nasceram, viveram e moraram logo após serem casados.

Dos meus avós paternos e maternos, eu só conheci meu avô paterno e minha vó mater-

na. Os outros não alcancei vivos. Gostaria, então, de começar a falar sobre o meu avô

paterno, João Jorge de Siqueira. Ele é um personagem muito marcante para mim e para

toda a família. Porque ele era um agricultor muito simples e de uma personalidade bas-

tante rude e forte. Lembro bem que ele era cego, pelo menos eu o conheci cego. Não sei

qual a origem da cegueira, se catarata ou de outra doença degenerativa. A imagem dele,

que perdura em minha memória, é a de um homem rude, muito centrado no passado

dele, nas suas andanças, nas suas diversões, suas caçadas, seus cachorros. Como ele

contava histórias e falava de seus cachorros de caça! Minha mãe ria e caçoava muito

quando ele desfilava suas memórias de caçador “cachorreiro”, afogado nas suas memó-

38 Depois foi verificado na carteira de identidade de José Jorge Siqueira – que hoje está em poder do so-

brinho-neto Leonardo Siqueira, filho de José Carlos (Zé Preto) – que ele era filho de João Jorge de Si-

queira e de Cândida Maria dos Prazeres. Nasceu no município de São João do Cariri, aos oito dias do mês

de julho do ano de 1898. Sua estatura era de 1 m e 62 cent., cor branca, olhos castanhos claros e cabelo

grisalho liso. Cf. Identidade nº 102.264, emitida pela SSP/PE, aos 16 de março de 1945. São os dados

oficiais dos seus registros de nascimento.

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rias pretéritas e no silêncio da escuridão dos seus olhos. Dos meus irmãos, o mais che-

gado ao Tio João – era assim que nós o chamávamos – era Manoel. Inclusive era pare-

cido com ele: galegão, vermelho e de olhos azuis... Tio João queria muito bem ao Ma-

noel, mas também a todos os seus netos. Era impressionante o carinho que ele passava

para cada um de nós. Esse detalhe é interessante, porque ele nos mimava, nos colocava

no colo e jamais permitia que meu pai nos castigasse em sua presença. Quando meu pai

ameaçava nos bater, ele virava um bicho, ficava todo vermelho, alterado e levantava

uma bengala que ele usava para chamar a atenção do meu pai. E, evidentemente, meu

pai não se atrevia a desobedecer-lhe. Esse traço de sua carinhosa relação com os netos

eu não esqueço nunca. É a coisa mais marcante de minha memória na nossa relação com

ele. Interessante é que ele fazia conosco exatamente o contrário do que fez com os filhos

a vida toda, de acordo com o que meu pai contava. Segundo nos dizia meu pai, ele batia

e muito nos filhos homens e era muito grosseiro e rude com minha vó paterna, que tinha

o nome de Cândida dos Prazeres. Que nome lindo! Parece coisa de romance. Ou seja, na

passagem da função da paternidade para o avunculato, ele mudou completamente, pas-

sando da agressividade paterna para o trato afetivamente carinhoso do avô. Meu avô

viveu seus últimos dias conosco, lá em Sertânia, e eu lembro que ele gostava imensa-

mente de realizar algumas tarefas que eram condizentes com as suas limitações de vi-

são. Uma delas era despalhar as espigas de milho para ser batido e ensacado ou guarda-

do em grandes tonéis de zinco que existiam no armazém da casa da fazenda. Ele chega-

va cedo ao armazém, cheio de espigas de milho, um paiol enorme, e sentava num tam-

borete. Pegava espiga por espiga e ia dando conta de sua tarefa, sem conversar com nin-

guém, somente parando na hora da refeição, que lhe era servida por minha mãe. Outra

lembrança que eu tenho dele é que, em decorrência da cegueira, muitos lhe administra-

vam remédios caseiros na esperança de que recobrasse a visão. Assim é que ele lavava

os olhos com unguentos de folhas diversas, de catingueira, aroeira, juazeiro etc. Infu-

sões e poções de água conservadas com rabos de tatu, de pebas... Aquele negócio mal-

cheiroso, meu Deus! Meu pai construiu uma casinha para ele, onde poderia ficar mais à

vontade. Era uma casinha ao lado da nossa, com um pote de água e uma cama, onde ele

dormia à noite. Um cheiro de mijo, meu Deus! Como em nossa casa, naquela época, não

dispunha de banheiros, nós o conduzíamos ao mato, junto da casa, para ele fazer as suas

necessidades físicas. Era nessas horas que a gente conversava muito com ele. E como

ele gostava. Isso é o meu avô e pai do meu pai. Você perguntou pelos meus avós. Vou

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falar agora das lembranças de minha vó materna, Filomena de Jesus. Os nomes dos

meus avós são emblemáticos e bonitos, concordam? Nós a chamávamos de Mena (abre-

viação de Filomena). Mena, também, é uma pessoa que me deixou vivas lembranças. Se

assim foi, é porque ela foi muito especial para cada um de nós. Quais são as lembranças

de Mena que me marcaram? Antes de tudo, Mena foi uma pessoa que gostava muito de

viajar... Deslocava-se de São Francisco, lá junto da Prata, para Santa Catarina; de Santa

Catarina para Santa Luzia, em Sertânia, onde era nossa casa, a casa da filha Verônica.

Acho até que a Madia, minha irmã, é a neta que mais e melhor herdou da Mena aquele

gosto, propensão e satisfação de viajar. Mena adorava subir e descer de caminhão na-

quelas estradas poeirentas do sertão. E recordo que era um sacrifico enorme ela subir e

descer aqueles caminhões que faziam a feira entre Monteiro e Sertânia repletos de fei-

rantes. Ela vestia umas saias longas e tinha a bundinha meio empinada, coisa que muitas

mulheres da família herdaram dela... Já, no final, quando ela se tornou mais idosa, ela

acabava de chegar de uma dessas viagens e, dois dias depois, dizia que queria voltar

porque estava com saudades de fulano, de sicrano ou que tinha negócios a resolver; ti-

nha que ver ou falar com um e outro... Até que, um dia - e lembro isso como se hoje

fosse! –, meu pai sentenciou: “Comadre Filomena, a senhora não sai mais daqui. Quem

quiser lhe ver que venha vê-la aqui em casa, de onde não mais sairá!”. Ouvir aquilo de-

ve ter-lhe causado um imenso desgosto e sofrimento. Explicou a ela que aquela decisão

tomada era em função de sua idade e das condições difíceis dos transportes. Mena ado-

rava fumar cachimbo. Enchia-o de fumo, botava fogo nele e ficava horas e horas puxan-

do aquelas baforadas de fumaça... Ficava na janela olhando o mundo em redor, vendo

de perto os seus distantes lugares da memória, creio eu. Usava um paninho enrolado na

cabeça. Seus cabelos, apesar da idade, eram incrivelmente pretos e bem lisinhos. Esco-

rada com os cotovelos na janela, a bundinha bem empinada, alternando entre um pé e

outro como um pássaro nos galhos em sombra do meio-dia, ficava horas e horas. Tam-

bém recordo de uma maldade que nós cometemos contra aquele anjo de ternura que era

minha vó Mena. É o seguinte. Algumas vezes, ela se ressentia da falta de doce e ia ao

pote de açúcar saciar um pouco aquela vontade incontida de glicose. Minha mãe, saben-

do daquilo, lhe fez ver que o açúcar era para o café e que não era mais possível ficar

comendo dele na hora em que ela bem quisesse. E lhe proibiu de “surrupiar” aquele

mísero punhado de açúcar. Recordo que minha irmã Flora, em São Paulo, evocando um

dia comigo as limitações da vida nossa no Nordeste, sentia remorso e se penitenciava

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dessa ordem que foi imposta à pobre velhinha Dona Filomena. E Flora tinha toda razão,

porque eu também sentia remorsos. A precariedade da vida está mais em nós do que na

própria limitação que a cerca. A partir de certo momento, recordo que Mena começou

mais frequentemente a fantasiar coisas. Contava histórias meio cabeludas, via coisas

que a gente não via, pouco ou nada compartilhava conosco do seu mundo, dos seus pla-

nos e seus desejos. Começou a definhar. E terminou por “variar”, como se diz no sertão.

Nós nos divertíamos, atribuindo a ela fatos, atos e atitudes com os quais ela muito se

irritava. Meu irmão Anísio, por exemplo, dizia que a tinha visto trepada numa laranjei-

ra, balançando-se nos galhos, à procura de laranjas maduras... Ela dizia, “Mentira, cabra

sem-vergonha! Isto é história do cu dos cachorros!” E pai era dos que mais a atribula-

vam com essas brincadeiras, apesar de ser um velho muito carrancudo. Recordo ainda,

com remorsos, uma malvadeza que perpetramos contra ela, dessa feita a mando de mi-

nha mãe. Ela, minha vó, foi acometida de uma grave bronquite e, pensando no bem da

saúde dela, minha mãe resolveu que ela deveria parar de fumar. E nos ordenou jogar no

mato o velho e saboroso cachimbo dela. Que maldade, Mena! Perdão, mas a culpada foi

sua filha, Dona Verônica. Mas assumo a cumplicidade da sacanagem que fiz contra a

senhora. É o preço de recordar o passado da gente.

Cláudio – Essas violências se inscrevem como medidas que visavam proteger...

Antônio – É, é verdade, Cláudio. Ainda um detalhe dessa memória a que eu me referia

e que ia esquecendo. Mena, um dia, passou a morar na casinha que foi construída para

Tio João, que falecera em consequência de uma bronco-pneumonia, lembro bem. Um

dos remédios que lhe foram administrados tinha o nome de “Tussavento”. Também não

sei de qual laboratório. Quando minha vó Mena faleceu, eu estava no seminário, creio

que era o de Pesqueira. Não a vi quando do seu falecimento. Recordo muito bem que,

aos poucos, ela foi intensificando uma caduquice e, à noite, ela gritava e reclamava de

dores, que pareciam fantasiosas. A gente se acostumou com aquilo. Muitas vezes, nos

acordávamos à noite com aqueles gritos dela e, quando nos aproximávamos da casinha e

falávamos, ela calava repentinamente como se nada tivesse acontecido antes. A mana

Conceição cunhou uma frase sobre a morte dela que me parece muito adequada: “mor-

reu como um passarinho”. E assim deve ter sido.

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Cláudio – De acordo com sua descrição e memória, seu avô Tio João era vermelho,

olhos claros, a pele vermelha. Pergunto: lembra o tio Barbeiro?

Antônio – Não, absolutamente não. Manoel é que o lembrava bastante. Talvez Severi-

no, mas bem menos. Digo que era Manoel, sobretudo pela cor dos olhos. Meu avô era

provavelmente descendente de portugueses. A família Siqueira é uma tradicional paren-

tela ali do Moxotó pernambucano e do Cariri paraibano, mais precisamente de uma área

contígua aos dois Estados. Já a minha vó era descendente de índios e, lembro bem, mi-

nha mãe dizia que a vó dela, minha bisavó, tinha sido “pega a dente de cachorro”; um

eufemismo utilizado para significar a procedência indígena ainda bravia e pouco acultu-

rada. Muita gente gosta de citar a ascendência holandesa para pessoas louras do sertão.

Eu acho isso uma grande besteira, porque não acredito que os holandeses de Pernambu-

co, na segunda metade do século XVII, tivessem adentrado um interior inóspito e hostil

aos seus hábitos e sua cultura, como é e sempre foi o sertão do semiárido. Além do

mais, havia portugueses mais puxados para galegos do que mesmo apenas brancos. Essa

é minha opinião, sabe? Nós sabemos que os holandeses, impulsionados pelos interesses

da Companhia das Índias Ocidentais, ligadas ao comércio das especiarias do açúcar,

tomaram de assalto, na primeira metade do século XVII, parte do Nordeste do Brasil,

que era domínio da coroa portuguesa. E estavam interessados na produção e comerciali-

zação do açúcar. Antes mesmo de serem expulsos do Brasil, não demonstraram interes-

se no interior do semiárido nordestino, totalmente voltado para a pecuária e uma agri-

cultura incipiente e de subsistência. O que iriam fazer esses holandeses sertão adentro?

Procurar índias para alívio sexual? De modo que eu acho isso mais fantasioso do que as

próprias fantasias holandesas. Portanto, os olhos azuis, a brancura da pele e os cabelos

louros de alguns irmãos meus, com certeza, estão mais para lusitanos do que para bata-

vos flamengos. Não sei se respondi a sua pergunta.

Cláudio – Sim, respondeu. E acho muito bom levar em consideração o que o se-

nhor nos explicou, porque há na família certa crença que a vó Mena tivesse ascen-

dência holandesa. Aproveito para fazer-lhe outra pergunta. Mesmo sabendo que

você era muito criança quando mudou da Matarina para Santa Luzia, você lembra

de alguma coisa?

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Antônio – Absolutamente não. Porque eu tinha apenas um ano e meio ou apenas dois

anos quando mudamos para Pernambuco. O que eu sei é “de ouvir dizer” de minhas

irmãs que são mais velhas que eu. Mas isso elas já disseram, não é mesmo?

Cláudio – Concentrando-nos agora na Santa Luzia, peço-lhe que descreva como

era a casa da Santa Luzia, cômodos, alimentação, atividades de lavar, passar, cozi-

nhar, a água utilizada, a confecção de queijos... Como era o viver de criança na

Santa Luzia?

Antônio – De Santa Luzia, eu tenho lembrança de duas casas em que moramos. A pri-

meira foi aquela onde nos alojamos quando de nossa vinda da Paraíba. Era uma casa de

taipa, modesta e simples como a maioria das casas ali do lugar. Essa casa sofreu os des-

gastes do tempo. Foi demolida e, recentemente, quando estive lá, na Santa Luzia, com

Anísio e Hélio, vimos apenas o lugar onde era a casa e, dela, alguns restos de monturo,

de barro pilado e tijolos velhos. A segunda foi a casa de alvenaria que meu pai construiu

no início da década de cinquenta, onde fomos morar depois de vários anos de moradia

na velha casa de taipa. É uma casa que atualmente fica à margem esquerda da BR-110,

no sentido Sertânia - Monteiro. Fica a seis quilômetros de Sertânia. Da primeira casa,

restam também as primeiras lembranças de minha infância. Elas são imprecisas, talvez,

mas com certeza são lembranças. E quais são essas lembranças, atendendo ao rol de

questões que você me colocou? A primeira delas é referente a um hábito muito arraiga-

do em nossa família, que era estar todos juntos à mesa na hora das refeições. Meu pai

era superexigente com relação a isso. Incutiu em nós o costume de achar muito feio al-

guém frequentar a casa dos outros, principalmente na hora das refeições. Essa primeira

lembrança, portanto, é a da mesa da família toda junta quando das refeições. A segunda

lembrança é que vivíamos naqueles dias tempos muito difíceis, economicamente falan-

do. E isso se refletia na pobreza de nossos utensílios, dos móveis da casa e na própria

alimentação. Não que ela nos faltasse ou fosse pouca, mas era muito magra. A água era

da pior qualidade, em função do alto teor de salinidade das várzeas no Moxotó, ao con-

trário daquelas da Matarina. Na Santa Luzia, retirávamos água de uma cacimba de mi-

nação que existia em frente à nossa casa, antes da passagem do rio Moxotó, na nossa

várzea. Aquela água captada, uma vez colocada no pote para o consumo da casa, no dia

seguinte, parece que ela apurava mais ainda a salinidade. Sentíamos mais o quanto a-

quela água da cacimba era pesada na ocasião das primeiras chuvas, quando retirávamos

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água dos tanques de pedra que ficavam logo acima de nossa casa. Era água destilada. E,

mesmo sendo de absoluta qualidade, não gostávamos dela ao primeiro gole, dado nosso

costume com a água das cacimbas. Tínhamos perdido o gosto. Lembro que, no ambien-

te daquela casa, a gente viu o nascimento de Valdeci, meu irmão mais novo e caçula da

família. Não me lembro da chegada de Elias, que é mais velho que Valdeci e mais novo

do que eu. E essa lembrança de Valdeci está marcada pela alegria e festa das minhas

irmãs com a chegada dele. Um xodó para as irmãs. Dos cômodos da casa, lembro que

ela tinha uma enorme cozinha, dois quartos, uma sala de refeições com uma janela à

direita de quem entrava. Ali, junto àquela janela, ficava o pote d’água e a mesa no cen-

tro da sala. E tinha a sala da frente, de forma retangular, ocupando toda a largura da

casa. Essa sala tinha duas janelas frontais e uma porta principal. Além do mais, ela era

próxima à estrada de barro que transitava de Sertânia para Campina Grande, onde exis-

tia um terreiro no qual fazíamos nossas festas escolares; no dia sete de setembro, um

grande e monumental quebra-panelas. Como a família era grande – sete homens e qua-

tro mulheres - e tínhamos muitos trabalhadores para alimentar, as refeições se limitavam

ao básico. O leite era mais para consumo da casa. Comia-se leite com xerém de milho

ralado ou cuscuz. Não sobrava leite para o fabrico de queijo de coalho. O nosso rendi-

mento financeiro estava dependendo da venda de cereais, que eram guardados de um

ano a outro em depósitos de zinco, da venda do algodão – a principal renda – e dos ani-

mais, vacas, garrotes, ovelhas e bodes. A carne para consumo provinha das galinhas que

minha mãe criava no terreiro, do abate de bodes e carneiros e, mais comumente, do que

era comprado no açougue da feira de Sertânia.

Cláudio – E como e onde era comercializado isso?

Antônio – Em Sertânia, que, naquele tempo, era um entreposto de compra de algodão

situado entre o sertão de Pernambuco e Campina Grande, na Paraíba. Sertânia tinha

firmas internacionais de comércio e de beneficiamento do algodão, como Americana

Anderson Clayton – que depois teria o nome de SANBRA –, a Boxwell, firma inglesa, e

outras nacionais e locais. Óbvio que a época em que meu pai vendia o algodão da co-

lheita dele era um período menos indicado, em função de ser em plena safra, quando a

oferta era máxima e, portanto, baixava o preço do produto. Muitos agricultores tinham a

prática de vender o algodão na rama, “na folha”, como se dizia. Era em função da ne-

cessidade do dinheiro e, nesse caso, era uma venda antecipada da produção, sujeita à

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desvalorização do preço. Meu pai não usava desse costume, mas vendia na época pouco

favorável. Não se tinha uma mentalidade de cooperativas bem- estruturadas, e as empre-

sas se prevaleciam disso para aumentar seus lucros e dar continuidade a uma pobreza

crônica no sertão.

Hélio – Tio, em razão dessa pobreza, logo cedo, parece que vocês começavam a

trabalhar em casa e no roçado. Era o vô quem determinava essa divisão de funções

para a realização das tarefas? O que cabia aos meninos e às meninas?

Antônio – É, essa questão é interessante. No sertão, o casal busca ser feliz, tendo filhos;

e, com eles, prover as necessidades de mão-de-obra para a sobrevivência da família.

Essa pergunta, Hélio, é interessante porque ela nos deixa claro que cada menino e meni-

na não vivenciava a sua infância. Nós praticamente não brincávamos. Nossa atividade

lúdica era muito cerceada, senão reprimida. À medida que íamos crescendo, iniciáva-

mos o desempenho de tarefas de cuidar do gado, tanger os rebanhos, levá-los para os

bebedouros, ajudar na lida da casa transportando água etc. Sem falar nas pequenas en-

xadas para limpar mato, nas pequenas foices e facões para cortar ração do gado, nos

bornais para catar algodão, colher milho, feijão etc. A divisão dessas tarefas para as

meninas e os meninos, à medida em que eles e elas iam crescendo, era atribuída em fun-

ção do peso e do esforço que elas demandavam. Então, nunca vi as mulheres, lá em ca-

sa, limpando mato, brocando roçado, etc. Isso era tarefa masculina, porque era pesada.

As mulheres faziam o que lhes era compatível: cuidar da casa, lavar e engomar roupa,

catar cereais, cozinhar, varrer terreiro etc. Durante muito tempo, todas essas tarefas

masculinas e femininas não podiam ser supridas apenas pelos filhos e pelas filhas. Meu

pai, então, contratava trabalhadores, que passavam a morar com suas famílias em nossa

propriedade. Os trabalhadores solteiros viviam na casa da fazenda e nela se alimenta-

vam, tendo inclusive roupa lavada e passada por minhas irmãs. Era um acúmulo de tra-

balho para elas. A entrevista da Virgínia detalha muito bem essa azáfama caseira muito

ingrata e muito dura. Acontecia época de ter mais de vinte pessoas, só em nossa casa, a

quem cabia alimentar e cuidar deles. Depois, com o passar do tempo, isso foi minguan-

do e terminou por se acabar por completo, já nas décadas finais dos anos sessenta. Mas,

como crianças, a gente brincava pouco. Meu pai tinha um preconceito contra jogo de

bola e contra a diversão de prender e soltar passarinhos... Por isso mesmo, nós não tí-

nhamos tempo de brincar de bola. Quando jogávamos, era escondido dele e com bola de

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meia. Recordo que uma vez o meu irmão Severino perdeu, no chute de uma partida,

uma rara bola de borracha que apareceu por lá. Ela foi se alojar no meio de uns pés de

aveloz que tinha lá, onde nem o satanás passava por perto, dado o teor de toxidez do

aveloz. Foi um sofrimento para ele resgatar a danada daquela bola, que nunca foi dele.

Eu vim saber o que era brincar de bola quando entrei no seminário; inclusive aprender a

jogar outras coisas, como bola de gude, voleibol, etc.

Hélio – Tio, outra coisa que o senhor comentou: a educação. Apesar dessa dificul-

dade toda, o vô teve o cuidado de contratar uma professora para o ensino lá na

fazenda. O senhor lembra os meninos e as meninas nessa época do aprendizado?

Quem, entre os irmãos, teve maiores facilidades? O senhor, certamente, foi um

deles...

Antônio – Lembro e muito. E é um assunto que eu tenho muito apreço em falar, regis-

trando essa memória com muito prazer e muita alegria. Meu pai teve muitos defeitos,

mas teve também grandes virtudes. Uma dessas grandes virtudes dele e de minha mãe,

que era analfabeta, foi o valor que eles deram à educação dos filhos. Minha mãe ficou

analfabeta a vida inteira em virtude de um preconceito do pai dela, que dizia não colocar

as filhas para aprender a fim de evitar que elas, sabendo ler e escrever, escrevessem

bilhetes para os namorados. Vejam só! Meu pai, já adulto, ainda fazia parte daquele

contingente de analfabetos que povoava o sertão. Já adulto, ele sentia que o futuro esta-

va para os que sabiam ler e escrever. Inclusive, ele tinha uma opinião muito bonita

quando afirmava que o homem analfabeto era um homem cego. Ele tinha, portanto,

compreensão de que uma pessoa sem educação tinha um mundo limitado, um mundo

pequeno de horizontes, um mundo sem luz. Tanto isso é verdade que ele, já adulto, pra-

ticamente se autoalfabetizou. Contou com a ajuda de um primo distante dele, – que foi,

inclusive, meu padrinho de batismo. Trata-se de Manoel Ananias, que lhe ensinou os

rudimentos da Carta do A-B-C de Laudelino Rocha. Quando meu pai voltava à noite do

trabalho, treinava aquelas lições de aprender e soletrar letras, sílabas e vogais. Ele teve,

portanto, uma força de vontade exemplar, aprendendo inclusive a escrever com uma

caligrafia de qualidade. Como ele praticamente se autoalfabetizou, também passou a ser

muito exigente nesse assunto em sua relação aos filhos, quando eles eventualmente ti-

nham dificuldades na alfabetização, o que foi o caso do meu irmão Manoel e, depois, do

José. Mas ele se empenhou em que todos frequentassem a escola e tirassem todo o pro-

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veito da educação. Na Paraíba, meus irmãos e irmãs frequentaram duas escolas: a do

Mestre Gonçalo, que era tio da Enedina e da irmã de Manoel Ananias, Antônia, minha

madrinha de batismo. Contam que, quando os meninos e as meninas chegavam da esco-

la, à noite, meu pai ia tomar as lições para checar o aprendizado e o avanço deles. Como

meu pai não era professor, faltava-lhe a habilidade e a paciência do pedagogo. Rude,

como ele sempre foi, ao interrogar os filhos a seu modo, diante da evidência de que eles

não soubessem, ele ficava indignado e não poucas vezes surrava, como foram os casos

de Manoel e de José. Tanto que Manoel, um dia desses, disse a ele: “Eu não quero mais

nunca ir para a escola. Desisto de aprender a ler e escrever. O senhor pode me matar de

cacete que eu não mais vou querer saber de escola”. E assim foi até o final da vida. Com

essa atitude dele, querendo o melhor para os filhos, ele produziu o pior para alguns.

Com o passar do tempo, os irmãos menores se beneficiaram do aprendizado e do exem-

plo dos mais velhos, que aprenderam a ler e escrever. Eles já estimulavam, ensinavam,

tiravam dúvidas, e isso facilitou a educação de grande parte dos irmãos. Em Santa Luzi-

a, com o passar do tempo, e ele sempre preocupado com o futuro de nossa educação,

decidiu contratar e manter à custa nossa uma professora de Sertânia, professora leiga,

Zefinha Araújo. E eu faço questão de declinar aqui o nome dela, porque foi de uma im-

portância crucial para a minha vida, de meus irmãos e de muitos que passaram pelo seu

magistério. Por ela passou toda essa geração de Severino, de Conceição, de Anísio, mi-

nha, de Elias e de Valdeci. Dona Zefinha vinha de Sertânia a pé, ficava alojada na nossa

casa, dava aulas numa escola que funcionava na propriedade e acolhia alunos de toda a

vizinhança do lugar, sem custo e ônus algum para os pais de todos eles. Dona Zefinha

era tratada em nossa casa como uma visita permanente, para quem se reservava o me-

lhor do melhor de que dispúnhamos: da mesa, à deferência no trato. E acho que fizemos

o que devíamos fazer. Nós, os irmãos daquela geração, tínhamos realmente o estímulo

para o estudo e o aprendizado. Naturalmente que uns mais, outros menos, mas todos nós

tínhamos um rendimento escolar animador. Severino era um dos que tinham certa difi-

culdade; acho que também a Conceição. Mas tanto eu como Anísio, nos destacávamos

dos demais. A pedagogia era a pior possível; era a pedagogia da régua e da palmatória.

A professora nos batia nas costas com uma régua de madeira que, além de tudo, era uma

tábua bem-fornida. Batia bolos em nossas mãos com uma palmatória de madeira que

parecia ferro. Era a inclemência do castigo ao menor dos descuidos e das brincadeiras

de crianças. Ou o castigo pelo não-saber, pelo não-aprender e pelo desleixo de criança.

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Era a pedagogia do medo e das agressões. Eu não sei como é que eu logo me adaptei

àquilo. É verdade que ela era uma professora muito competente, que sabia os conteúdos

e os transmitia com clareza e destreza. Mas raramente ria. Era fria e pouco afetiva. Du-

rante as aulas, ela nos repassava uma série de conteúdos de conhecimentos e de habili-

dades de caráter religioso, moral, científico e gramatical, onde os conhecimentos e as

habilidades eram testados em exercícios pontuais de tarefas, arguições, ditados e, prin-

cipalmente, por meio dos temíveis “argumentos”. Esses argumentos eram feitos com

todos os alunos cercando uma mesa. Arguia-se um a um. Se alguém não soubesse res-

ponder, a professora perguntava ao aluno seguinte, que daria um bolo de palmatória na

mão daquele que não soube responder. E, caso esse aluno não batesse com força e fir-

meza, a professora iria ensinar-lhe como castigar de palmatória. Não era frequente, mas

acontecia de um só aluno mais apto no aprendizado surrar de palmatória todos os cole-

gas da mesa que se enrascaram na resposta a determinadas questões. Era, repito, a peda-

gogia do medo, do terror e do sofrimento. E, modéstia à parte, eu pouco apanhei nesses

macabros “argumentos” da escola de Dona Zefinha Araújo. Recordo, também, que bater

nas mãos dos meninos não me causava tanto constrangimento quanto bater nas mãos

delicadas das meninas minhas colegas. Voltando ainda um pouco à questão posta aqui

por Hélio, gostaria de deixar registrado um testemunho muito pessoal. Na família, e

entre os irmãos, eu sempre fui considerado um dos alunos que melhor se adaptaram ao

sistema de aprendizado da escola. Isso não significa nenhuma genialidade de minha

parte, apenas dotes pessoais e um esforço bem-direcionado ao sentido da aprendizagem.

Aprendia rapidamente, tinha boa memória, boa caligrafia, muita concentração, etc. Ou-

tro dia, na entrevista de Virgínia, ela me dizia que uma vez Dona Zefinha dissera a ela e

a meus pais que eu era um aluno muito aplicado e que escrevia tão bem e tão bonito

quanto ela mesma. Caligrafia é a beleza da escrita: o desenho da letra e a sua harmonia

no papel. Naquele tempo, a gente escrevia com um bico de pena – e vocês não sabem o

que é isso! –, que era ensopado num tinteiro. Quando a gente ia escrever,forçava-o a

derramar tinta no papel, mas tinha que ser feito com habilidade e leveza para não borrar

o papel de toda a tinta que restava no bico da pena. Não era fácil, e tinha que se dosar.

Não deixava de ser um aprendizado e uma arte. E, modéstia à parte, eu era bom nessa

arte. Edite, minha cunhada, viúva do Barbeiro, nesse tempo era aluna e também tinha

uma boa caligrafia. Esse é um dado da memória. Outro dado é o seguinte. Dona Zefinha

foi uma pessoa importante para a minha vida, e eu sou muito grato a ela por tudo o que

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ela me ensinou e me instruiu. O que sou hoje devo em parte a ela. Na minha vida públi-

ca de professor de universidade e de educador, eu fiz questão de dizer isso apenas uma

vez e num momento muito especial de minha vida de gestor e de educador. Quando da

aposição do meu retrato na galeria dos diretores do Centro de Filosofia e Ciências Hu-

manas da Universidade Federal de Pernambuco, fato acontecido há uns quatro anos. Eu

fiz questão de declarar esse meu preito de gratidão num discurso que fiz naquele mo-

mento. E o fiz conscientemente e com muita emoção. Pedi aos presentes que me descul-

passem, mas, naquela ocasião, eu iria falar de mim, como o fez Drumond de Andrade.

Eu queria, portanto, registrar esse sentimento de eterna gratidão. Quando meu pai me

levou para o Seminário de Pesqueira, no ano de 1964 – eu tinha apenas doze anos de

idade! –, o meu conhecimento naquele momento fora, todo ele, adquirido na escola de

Dona Zefinha. E, claro, havia um descompasso com os conteúdos dos currículos das

escolas estaduais e municipais. Ela, já dissemos, era uma professora leiga. Nesse sent i-

do, havia conteúdos que nós sabíamos e que os alunos das escolas públicas não sabiam.

Mas acontecia também o inverso. Ao chegar ao seminário, meu pai e eu fomos encami-

nhados para falar com o bispo da Diocese de Pesqueira, que era Dom Adelmo Machado.

Lá chegando, meu pai se apresentou e disse dos motivos de sua vinda a Pesqueira em

minha companhia. O bispo nos recebeu e mandou que eu sentasse numa cadeira ao lado

dele. E me entregou um livro aberto, pedindo que eu lesse em voz alta. Comecei a ler e,

logo nas primeiras linhas, ele mandou parar, porque viu que eu lia com desenvoltura.

Em seguida, me perguntou como se chamavam as partes iguais de uma laranja cortada

em quatro partes. E se a laranja fosse cortada apenas em três partes, como se chamaria a

parte maior e as duas menores... E por aí foi. Eu não titubeei em momento algum. De-

pois, fez algumas perguntas de cunho religioso e referentes ao credo da igreja católica.

Se o que Dona Zefinha me ensinou na escola estava certo, eu devo ter acertado tudo. O

fato é que fui encaminhado ao seminário para cursar a quarta série primária. Foi o meu

primeiro vestibular ao mundo de conhecimentos, fora o que o sertão de Dona Zefinha

me ensinou. Quando comecei a frequentar o quarto ano primário do seminário – que era

uma escola exigente e da melhor qualidade –, eu senti uma enorme diferença do meu

nível de conhecimentos. Havia muitas coisas que eu não sabia, porque não me fora en-

sinado e me cobravam esse conhecimento. E havia também muitas coisas que eu sabia,

mas não me perguntavam dessas minhas habilidades. Eu não tive outra escolha. Tratei

de estudar com afinco para me nivelar aos demais e tirar sarro deles quando se tratasse

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de um conhecimento que só eu sabia. Máximo Divisor Comum, na época, era uma ope-

ração matemática que só eu sabia na classe, e isso mediante de uma técnica diferenciada

que Dona Zefinha nos passara. Aquela defasagem me estimulou muito a estudar e a me

superar nas minhas limitações. Porque quem não sabia era gozado pelos demais, e eu já

tinha muito amor próprio dentro de mim para me submeter àquela humilhação. Eu sem-

pre dizia para comigo mesmo que tinha de saber igual aos meus colegas, mas, se che-

gasse a saber um pouco mais, já seria a glória. E fiz sempre assim na vida, até hoje. No

final do ano eu fui aprovado nas matérias, penando em algumas delas, é claro, mas pas-

sei para a turma do curso de Admissão ao curso ginasial. Fiz esta longa digressão para

que fique claro que me seria impossível galgar aqueles degraus da minha formação de

garoto e de rapaz sem a contribuição que me foi dada por Zefinha Araújo. Ela me per-

mitiu perceber os horizontes da vida que podiam ser alcançados trilhando as veredas

que ela nos apontou. O lado lúdico de nossa infância foi muito prejudicado. Na escola,

lá em Santa Luzia, nossa maior festa era o quebra-panela, que Dona Zefinha patrocinava

no dia sete de setembro. Uma panela de barro, cheia de confeitos, era dependurada nu-

ma corda, que era esticada de um lado a outro do nosso terreiro. Vedavam os nossos

olhos e, de cacete na mão, cada um tentava estourar a panela de ouro, o que não era na-

da fácil. Quando acontecia de acertar a panela e quebrá-la, era um festival de poeira que

levantava, cada um de nós catando as balas e os confeitos que podia. Mas era um dia de

festa...

Hélio – Tio Antônio, como o senhor já falou da importância que o vô dedicava à

educação, eu pergunto se, com o passar do tempo, vocês notaram uma mudança

dele no modo rude de se relacionar com vocês, ou continuou sendo sempre a mes-

ma pessoa?

Antônio – Meu pai não mudou. Sempre foi a mesma pessoa dedicada à família, prove-

dor do nosso sustento alimentar e das demais necessidades; mas continuou sempre a

mesma pessoa: rude, intransigente, reservado, mas só com os filhos... Ele só veio mudar

quando todos e cada um de nós nos tornamos adultos, e aí, sim, houve uma inflexão na

relação dele conosco. Isso se acentuaria mais ainda na medida em que os filhos saíam de

casa buscando viver a sua vida, cada um a seu modo. Ao final da década de cinquenta,

toda a minha família havia migrado. A maioria para o Sudeste, na direção de São Paulo,

inclusive eu, que já vivia fora de casa, desde o ano de 1954 e, no final da década de cin-

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quenta, estava estudando no Rio Grande do Sul. Com essa diáspora ele começou a ser

mais brando e compreensivo. Passou a se abrir mais com a gente, conversando mais,

ouvindo mais, ponderando mais e não apenas dando ordens e gritos, como ele habitual-

mente fazia. Quando falo do meu pai, ressalto que minha mãe era muito diferente, e

essas diferenças faziam a diferença a nosso favor. Era uma pessoa doce, bem-humorada,

alegre, otimista, confiante, batalhadora. E nos passava com muita facilidade o sentimen-

to do benquerer aos filhos, coisa que Zé Jorge raramente fazia ou o fazia com muita

dificuldade. A gente deduzia, sim, o seu amor por nós e só conseguíamos fazer isso com

a idade madura. Ainda bem. Mas, sabemos que não existe uma única forma de amar

nem de declarar o amor. Isso se constitui de infinitas possibilidades. O ser humano é

assim mesmo. Minha mãe, quando nos castigava, usava de “cocorotes” na cabeça, mas

aquilo nunca doía. Zé Jorge não abria guarda; quem, na casa, dependesse, dele tinha de

trilhar as suas veredas e fazer as suas vontades. Lembro que algumas vezes, quando ele

ficava contrariado com alguma coisa ou acontecimento, ele fazia o que nós, na época,

chamávamos de “sermões”. Horas e horas destilando suas mágoas e preocupações. Ba-

tia com o dedo indicador na mesa e dizia: “Vocês vão ver o que vai acontecer!...” Mas

ele foi muito doce e paciente num momento delicado da vida dele, na fase terminal de

um câncer no intestino. Lembro que todos da família vieram a Sertânia para se despedir

dele e, com os filhos, veio a maioria dos netos e netas. Em determinado momento, havia

certo tumulto na casa. E eu me preocupava com aquele barulho meio excessivo. Ele,

então, me dizia com uma paciência inaudita: “Deixa, meu filho, deixa-os falarem, isso

me faz bem!”. Esse é um sinal de que tudo na nossa vida muda, cedo ou tarde, apesar de

nossas resistências.

Cláudio – É, exatamente. Há uma afirmação do Anísio, no depoimento dele, que

diz “pai era daquele jeito, mas tinha o seu lado bom”. Não vou nem mais pergun-

tar o que ele quis afirmar com essa frase, mas fica aí o registro insuspeito do seu

irmão. No seu depoimento, você falou que ele não gostava que se caçasse. Mas nós

sabemos que as crianças gostam de brincar, caçar de estilingue... Você chegou a

caçar passarinho alguma vez?

Antônio – Não, ele não gostava que nós jogássemos bola e desestimulava as nossas

atividades lúdicas próprias da meninada naquela idade da infância. Caçar, não! Até por-

que ele era um exímio caçador. É aí que eu tento responder a sua pergunta. Na nossa

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família, existiam irmãos que eram bons caçadores...39

E havia outros que não eram ca-

çadores ou eram péssimos caçadores. Eu mesmo nunca me aventurei a caçar nem mes-

mo uma formiga. Também, nem tempo tive de exercitar isso, porque fui para o seminá-

rio com doze anos de idade. Os exímios caçadores eram Manoel, Anísio e, até certo

ponto, José. Anísio era bom no tiro e no estilingue, que nós chamamos, lá no Nordeste,

de “baleadeira” ou, simplesmente, de “baleeira”. Na entrevista de Anísio existe um

pormenor relativo ao seu “début” no mundo das armas. Um quase acidente com o mau

manuseio dele com uma das espingardas de meu pai. Vale conferir o depoimento hilari-

ante e insuspeito dele com relação a esse acontecido. José gostava de caçar à noite, uti-

lizando-se de cachorros na caça a pebas, tatus e gambás, que lá chamávamos de “tica-

ca”. O mano José Barbeiro era o “cachorreiro” da família e um grande caçador notur-

no.40

Cláudio – Antes de entrar nessa etapa de sua vida ligada ao seminário, que nós

iremos retomar daqui a pouco, para além desse assunto das caçadas, gostaria de

saber o que significa “tanger gado”. Como exímio e errante boiadeiro do Moxotó,

comente uma afirmação do seu irmão Anísio que dizia: “Aliás, você era o meu

companheiro nessa tarefa de tocar o gado e ir atrás da criação. Por sinal você xin-

gava; uns dizem que era por conta da preguiça, e outros pelo fato de chupar o dedo

polegar”. Você lembra-se disso aí? Conta pra nós...

Antônio – Lembro, lembro muito bem. Desde pequeno, adquiri o hábito de chupar de-

do. Eu e José, meu irmão. Isso, Freud certamente explica muito mais do que a memória

familiar. A gente sabe que a sucção de dedos aponta para uma carência, talvez a carên-

cia da mamadeira e, mais ainda, do seio da mãe. Mas eu não quero me aventurar nesses

39 Antonio - Nesta altura da entrevista Cláudio interrompe minha fala para me mostrar um bodoque (ins-

trumento de caça) que lhe foi dado pelo seu avô, Zé Guilherme, esposo da Madia. O próprio Zé Guilher-

me foi quem confeccionou o tal bodoque, numa de suas visitas lá ao sertão de Pernambuco. E Claudio o

tem como uma relíquia da memória e das habilidades do seu avô paterno.

40 Cláudio interrompe para dizer que viveu a sua infância e juventude morando ao lado do tio José - o

Barbeiro - e lembra que ele lhe contava muitas histórias dessas caçadas de tatus e pebas, utilizando ca-

chorros amestrados nessa tarefa. Ressalta essa qualidade do tio a seu filho Ezenildo, o famoso “Cacá”, e

demais sobrinhos presentes nesta entrevista.

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labirintos do meu inconsciente sertanejo. Prefiro tratar do consciente de minha memó-

ria, mesmo sabendo que a nossa memória é seletiva. Quanto ao “tanger gado”, isso re-

mete à pecuária que a família praticava. Nós criávamos bode, ovelha e gado leiteiro. A

caprinocultura foi a primeira que meu pai abandonou, dada a vulnerabilidade do bode às

doenças e, também, porque é difícil manter o bode e a cabra circunscritos a um espaço.

Eles fogem com facilidade, pulando cerca, fazendo buracos nas cercas, o que muito irri-

tava meu pai quando sabia que a criação dele havia invadido o terreno das pessoas vizi-

nhas a nós. Optamos por criar gado e ovelha, esta última por ser mais dócil e mais fácil

de manejar. Nós tínhamos as vacas de leite, com os bezerros, e o gado solteiro, que meu

pai vendia com mais frequência. Não tínhamos o hábito de fazer abate de gado para

consumo caseiro de carne. Eram mais os carneiros e, na época, os bodes. Manoel sem-

pre foi o exímio abatedor de carneiros e bodes para o nosso consumo. Quanto ao gado,

havia duas preocupações principais, aliás, três. Uma era tirar o leite, serviço pesado e

que exigia apartação dos bezerros com relação às vacas leiteiras. A outra era conduzir

essas vacas ao pasto, de onde deviam sair, à tardinha, para beber e serem separadas dos

bezerros para serem ordenhadas na manhã seguinte. Finalmente, a terceira, era ter al-

guém para tanger esse gado, seja para o pasto, seja para a bebida, seja para a apartação

do leite. Acontece que o pasto do gado ficava num extremo da nossa propriedade, e o

bebedouro, no outro. O pasto se fazia nos espaços de revezamento para ser poupado. O

bebedouro era o único lugar da propriedade onde existia água de minação permanente.

E ficava nas margens da BR 110, na vizinhança da propriedade de Chico Félix, um dos

nossos vizinhos. É aqui que entra essa história de “tanger gado”. Para trazer o gado para

beber, no final da tarde, era preciso ter um tangerino que retirava e retornava ao mesmo

lugar do pasto. E, no dia seguinte, levava as vacas leiteiras para o lugar do pasto onde se

encontrava o restante do gado. E assim, sucessivamente, dia após dia, semana após se-

mana, mês após mês. Era uma tarefa por demais monótona para um garoto de oito ou

nove anos, trilhando o mesmo caminho todos os dias... Subindo e descendo atrás de

gado, naquela poeira do sertão seco e quente, naquele passo lento do gado... Aquilo

nunca foi uma tarefa estimulante. Se é preguiça, não sei; sei apenas que era sacal por

demais. Anísio parece que não reclamava tanto e fazia aquilo com mais tranquilidade do

que eu. Fiz isso nos dias de minha infância, e digo com sinceridade: limpar mato, catar

algodão e tanger gado não foram minha praia; decididamente, não era mesmo. Hoje,

quando acontece de ir a Sertânia, gosto demais de rever aqueles caminhos, trilhar aque-

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las veredas que tanto me enfadavam. E fazer isso me dá muita alegria e muita saudade.

Mas, hoje, o momento é outro. E ver para recordar é sempre melhor do que fazer por

obrigação, como era o meu caso.

Cláudio – Ainda nos reportando à infância, gostaríamos que, se possível, o senhor

nos contasse com toda riqueza de detalhes algo que o entrevistador aqui tem muito

em conta, porque mexe um pouco com ele. Trata-se das festas juninas preparadas

pelo vô Zé Jorge, na fazenda Santa Luzia, festas essas de que meu pai, Givaldo,

falava muito e das quais ele nunca se esqueceu...

Antônio – No sertão da minha memória de família, havia duas festas importantes e

marcantes. Havia os festejos de São João, no mês de junho. É na época de inverno,

quando a natureza se veste do verde das plantas e também é uma época de fartura, oca-

sião em que, dependendo dos invernos favoráveis, havia fartura de milho verde, de can-

jica, de pamonha, de melancia, jerimum, melão, feijão, etc. E era, geralmente, uma épo-

ca de muito frio no sertão, se é que se pode falar de frio naquele lugar. A outra oportu-

nidade de festa eram as cantorias que se faziam em cada casa grande. Meu pai adorava

convidar cantadores de viola. A casa se iluminava e se enchia de convidados. Nós tive-

mos um primo legítimo, Firmo Batista, filho de uma tia,irmã de minha mãe, que era um

grande poeta e repentista da viola. Ele gostava de passar lá em casa para visitar minha

mãe e trazia consigo grandes violeiros e poetas de cordel, como Lino Pedra Azul, Antô-

nio Marinho e outros. No entanto, a grande festa era mesmo a noite junina. Naquele

tempo, se festejava também São Pedro com fogueiras acesas. Mas o pobre do São Pedro

ficava na rabeira do santo senhor São João. Como dizia, era a noite da fartura, da barri-

ga cheia e das comidas de milho; milho cozido e, sobretudo, milho assado na brasa da

fogueira. Era a noite lúdica por excelência. As pessoas tomavam-se como compadres e

comadres de fogueira, invocando São João. Tentavam adivinhar o futuro de sua vida

amorosa e afetiva, buscando ver na água de uma bacia, junto à fogueira, o rosto da pes-

soa amada. Era a noite dos estrondos e pipocos dos fogos, dos foguetões, dos rojões e

das inofensivas “chuvinhas”. Os mais comuns e acessíveis eram os “peidos-de-velha”,

os “busca-pés” e as “bombas”. Todo esse material a gente comprava no fabrico de pól-

vora dos irmãos Luiz e Manoel Fogueteiro, parentes da Dona Zefinha, que moravam em

Sertânia, na Rua Velha, ao lado da igreja matriz. Mas, acima de tudo, a noite junina era

a noite dos grandes forrós, especialmente para os mais moços. Lembro que, ainda meni-

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no, antes mesmo de entrar no seminário, acompanhei meus irmãos mais velhos em bus-

ca de alguns forrós, ali pelo Sítio de São Francisco. Meu pai nunca fazia forró em nossa

casa. Tinha medo de a rapaziada se exceder na cachaça. Mas, quando não as tínhamos

em casa, a gente procurava. Na Serra do Jabitacá, no sítio dos Campos, tinha um forró

famoso. E era o autêntico forró pé-de-serra, regado a cerveja quente, cachaça e muitas

cabrochas bonitas, tendo como piso um chão de barro batido e por luminária a luz do

candeeiro, além das labaredas da fogueira, naturalmente. Havia as pessoas corajosas que

pisavam o braseiro da fogueira de pés descalços. A gente acreditava que era milagre de

São João. Bons tempos. Esses tempos de fartura se contrapunham aos tempos de penú-

rias e dificuldades do resto do ano, com certeza. Existia também a festa de fim de ano,

na cidade, ou mesmo da padroeira da cidade, no dia oito de dezembro, época de primei-

ra comunhão, que a nossa escola preparava sob os cuidados de Dona Zefinha. Mas,

comparando com o São João, era uma festa chata: festa de cidade, celebrada à noite,

onde nós nos aborrecíamos com o sono e a falta de dinheiro para nos divertir. Passáva-

mos o tempo até a missa de meia-noite, ouvindo aqueles postais sonoros intermináveis.

Sem esquecer que tínhamos de andar uma légua – seis quilômetros - de ida para a cida-

de e outra légua de volta para casa, de noite, com sono e ressacados. Aquilo era o mun-

do da cidade, não era nosso mundo. Era um mundo estranho. Festa por festa, melhor era

mesmo a do São João.

Cláudio – Perfeitamente. Pergunto se o senhor não chegou a conhecer aquele gru-

po musical formado pelo meu bisavô, o velho Guilherme, na zabumba; pelo Duda,

no pífaro, e pelo Zé Guilherme, meu avô, no triângulo? Isso, para desespero de

Mãe Velha, que discordava daquela prática boêmia do marido...

Antônio – Lamentavelmente, não os conheci. Conheci Duda, Zé Guilherme. Soube que

seu Guilherme, o pai dele, tocava uma rabeca... Mas não os conheci como grupo musi-

cal. Deviam ser os boêmios do sertão da Matarina.41

Marcelo – Tio, agora é o Marcelo que vai fazer algumas perguntas para o senhor.

Lembra de alguma música marcante do seu tempo de infância?

41

Na sequência da entrevista, os entrevistadores fizeram uma sonoplastia, tocando uma música da Banda

de Pífanos de Caruaru, do Mestre Vitalino, importada por Cláudio pela internet.

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Antonio – Lembro, sim. Foi a música de uma daquelas noites de festa de Sertânia a que

me referi; um “postal sonoro”, como se chamava na época, que tocou a noite inteira no

serviço de som da cidade por encomenda de um namorado para o seu eterno amor. En-

tranhou na memória minha até hoje; entre outras coisas, por ser uma música muito boni-

ta e que eu ainda hoje gosto muito. Chama-se “Dez Anos”; era uma versão de Lourival

Faissal, da composição original de Rafael Hernandez, e que se intitulava em espanhol

“Diez Años”. Puro glamour da época. No Brasil, ela foi interpretada por Emilinha Bor-

ba, e os leitores podem acessar a internet no site www.letras.mus.br que vão ouvir o

original de Emilinha. Anos depois, ela foi relançada, em 1979, por Gal Costa. A letra

era mais ou menos assim: “Assim se passaram dez anos, sem eu ver teu rosto, sem olhar

teus olhos... Foste meu primeiro amor!” Eu acho que não é por acaso que fixei essa mú-

sica em minha memória; afinal, ela trata mesmo é das minhas lembranças no tempo:

“Assim se passaram dez anos”. Fala da noite, a minha noite de festa: “Recordo quando

a noite abriu seu manto, e o canto daquela fonte nos envolveu”... Faz referência à mi-

nha sonolência de menino enfadado: “O sono fechou meus olhos, me adormecendo” É,

ela é mesmo um troféu de profundas recordações... “Recordo, junto a uma fonte nos

encontramos”, cantava a música. Estou respondendo a sua pergunta. Outra música que

me marcou foi a do cancioneiro de Luiz Gonzaga, que eu ouvi cantada por ele mesmo

numa de suas visitas ao Seminário de Pesqueira. Chama-se “Açucena Cheirosa”. Lem-

bro que foi a primeira vez que vi e ouvi Luiz Gonzaga, e isso foi lá pelos anos de 1954-

55. Essa música tem, igualmente, uma letra muito poética e de grandes recordações.

“Quem quiser comprar, // eu vendo açucena cheirosa do meu jardim // vendo cravo,

vendo lírio // não vendo uma rosa que deram pra mim”. E, mais adiante: “há tantas

estrelas no céu // nas noites de São João // há festa nesses teus olhos // há fogo no meu

coração”. O velho Lua ainda era moço – não tinha tanto prestígio naquela época –, e vê-

lo tocar na sua sanfona, cantar com aquela voz marcante, impressionou a minha alma de

menino. Eu não passava dos doze ou treze anos. Era um pintote adolescente. Já na mi-

nha juventude, as músicas de sucesso eram aquelas que a gente ouvia nas férias, porque

no seminário não se ouvia tanto músicas da época; era um ambiente bastante filtrado

pelos padres para não nos desviar da vocação. Em Sertânia, faziam muito sucesso Or-

lando Silva e Anísio Silva: “Quero beijar-te as mãos, minha querida”... Tinha a música

“Índia” cantada pela dupla Cascatinha e Inhana... Em João Pessoa, eu já era rapazinho,

ali eu lembro que se ouvia muito os sucessos de Miltinho: “Menina-Moça” e “Ninguém

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É de Ninguém”... Lá pelos finais dos anos cinquenta, existiam duas músicas que eu e

minha geração ouvíamos muito: “Diana” e “Only You”, esta última do conjunto ameri-

cano “The Platers”. Essas são as músicas da minha adolescência.

Marcelo – E na infância e adolescência, quais eram as comidas que lhe trazem

lembranças?

Antônio – Na minha infância, no sertão, o que se comia era o trivial feijão, farinha de

milho – farinha de mandioca era um luxo! –, xerém com leite, cuscuz de milho ralado e

um pouco de mistura, que geralmente era carne, ovos fritos e galinha. Na espoca de in-

verno, comia-se pamonha, canjica e milho assado e cozido, que eu gostava muito. A

comida era temperada com coentro e cebolinha. Frutas, só as da nossa lavra: banana

comprida, fruta de palma, no verão; manga e melancia, no inverno. Arroz só se comia

nos dias de festa. Bebida, no sertão, lá em casa, era água do pote. Guaraná, quando se ia

à cidade. E cerveja quente, nos dias de grandes festas na casa. Só. Já na minha adoles-

cência, como eu vivia no seminário, minha alimentação era a que o seminário servia.

Uma comida muito caseira, especialmente no Seminário de Pesqueira, feita por Dona

Maria, irmã do reitor, Monsenhor Augusto Carvalho. Ao citar o nome dela, gostaria de

lhe fazer uma homenagem. Ela era, no seminário, a nossa mãe. Cozinhava para nós, nos

tratava quando adoecíamos, nos administrava remédio e nos mimava com sorvetes, do-

ces e frutas. Coisa de mãe de uma grande família. A cozinha de Dona Maria era, de ma-

nhã, mungunzá ou papa de aveia, café com leite, uma banda de pão na manteiga. No

almoço, era arroz, com bife de caçarola e uma fruta. À noite, era uma suculenta sopa,

café e pão. Havia os lanches, no meio da manhã e no meio da tarde, que geralmente era

banana ou um pedaço de rapadura. No Seminário de João Pessoa, a alimentação nossa

era preparada por irmãs religiosas. Aí a coisa mudava completamente, porque era comi-

da feita para um batalhão de pessoas e deixava muito a desejar. Mas, mesmo assim, co-

mia-se decentemente. Inclusive peixe (atum), uma vez por semana. E havia lanche tam-

bém, geralmente goiabada com biscoitos. No Seminário de Viamão, foi a minha pior

fase alimentar, porque foi onde eu comi a pior alimentação. Lá no Rio Grande do Sul, a

cozinha do seminário era confiada a umas irmãs franciscanas, de origem alemã. Era

uma cozinha alemã bastarda. Sabe-se que o alemão não tem na alimentação dele o forte

de sua especialidade. Come-se mal. E, lá, era pior porque não era nem Alemanha e mui-

to menos Brasil. O padrão alimentar era aquele das colônias alemãs do interior do Rio

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Grande. Um horror. E eu sofri com aquilo. Perdi peso, cheguei a pesar apenas cinquenta

e sete quilos. Dava graças a Deus quando íamos a Porto Alegre visitar algumas famílias

católicas, que nos davam um almoço na base de uma alimentação menos alemã. É o

caso de Dona Hilda e Germano Ruppenthal, um casal gaúcho, de Porto Alegre, que nos

acolhia com muita fidalguia. Na Suíça, em Fribourg, foi onde eu descobri que era suba-

limentado e passei a comer como gente de primeiro mundo, até porque, lá, a cozinha é

de tradição francesa. Aí, já viu... Engordei logo e passei a adorar batata-inglesa, que, até

então, eu odiava. A batata é a base da alimentação em muitos países da Europa, caso da

Alemanha e da Suíça.

Marcelo – Falando em juventude, tio, teve alguma namoradinha nessa fase?

Antônio – Essa é uma pergunta que, se eu responder, vou trair e decepcionar meio

mundo (muitas risadas). Namorada mesmo, não. Eu estudava no seminário, e a vigi-

lância dos padres e o meu próprio “superego” eram muito fortes para fazer uso desse

direito. Honestamente, eu pretendia me ordenar padre, e namorar abertamente ia de en-

contro a esse ideal de vida. Até porque as pessoas iriam ficar sabendo disso. Agora, nas

minhas fantasias e no meu coração, namorei algumas, afinal eu era um garoto de carne e

osso. Não vou citar aqui o nome delas para não criar uma intriga e uma celeuma entre

essas musas que ainda hoje devem estar vivas por este Brasil afora. Algumas delas de

modo meio platônico, como se diz; outras, por correspondência, ocasião em que a gente

trocava algumas delicadezas. Carta é um perigo! Era, ou pelo menos foi naquela ocasi-

ão. Eu decidi namorar pra valer no momento em que desisti de me ordenar padre.

Cláudio – Já que estamos falando nesse assunto de padre, poderia responder

quando e por que decidiu ser padre, quanto tempo viveu em seminários e mostei-

ros, qual a ordem religiosa a que pertencia, até onde chegou nesse ideal e o que

realmente o fez desistir? Tem mais. Pelos seminários em que passou, quais as lem-

branças que o remetem a lembrar de Pesqueira, de João Pessoa, Viamão e outros

seminários? E, finalmente, quando desistiu de se ordenar e como essa notícia foi

recebida no seio da família?

Antônio – Puxa, é meia vida! Vou tentar resumir e lhe peço que não deixe escapar al-

gumas das questões que você colocou. O que me levou a querer ser padre e quando?

Lembro que eu era pequeno, com nove ou dez anos, e, um dia, em Sertânia, fui levado a

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umas missões e visitas pastorais que se realizavam pela diocese na paróquia, onde era

vigário o monsenhor Urbano de Carvalho. O bispo da Diocese de Pesqueira era Dom

Adelmo Machado. Lembro que, naquelas missões, vendo e ouvindo os padres pregarem

e celebrarem missa, a vestimenta episcopal do bispo chamou minha atenção. Uma bati-

na vermelha, com uma cruz peitoral de ouro, um solidéu na cabeça e muito cortejado na

cerimônia litúrgica. Eu fiquei encantado com aquilo, talvez porque todo aquele ritual

fosse totalmente diferente de tudo o que eu conhecia no meu mundo de menino do ma-

to. E pensei comigo: eu vou ser um padre para depois ficar bispo. Botei aquilo na cabe-

ça. Acho que tudo isso está associado à minha decisão. Mesmo inconscientemente, eu

estava vendo ali uma oportunidade de canalizar minha habilidade para o estudo, algo,

sim, de que eu já tinha consciência. Estudando para ser padre, eu arquivaria de uma vez

por todas a minha pouca inclinação para a vida do mato, que eu não gostava e que me

dava a fama de ser um preguiçoso entre os irmãos. Ali se desenhava para mim uma

grande oportunidade de realizar meus desejos de aprofundar os estudos, abrindo novos

horizontes, mais amplos que aqueles do pequeno mundo da Santa Luzia. Recordo va-

gamente que, ainda menino, isso era objeto de minhas divagações e de fantasias com

relação ao meu futuro. Passei pelos diversos seminários que frequentei nada menos que

quatorze anos ininterruptos. Subsidiando um pouco mais sua pergunta, eu diria que me

lembro ainda hoje do momento de minha chegada no Seminário de Pesqueira. Eu era

um garoto de 12 anos de idade. No dia sete de março de 1954, eu adentrei aquele semi-

nário levado por meu pai. E, ainda hoje, recordar isso me dá muita emoção, porque foi

um momento singular na minha vida. Eu saira de casa cedinho, antes do sol nascer, e fui

a pé, com meu pai, a fim de tomar em Sertânia uma “Marinete” (pequeno ônibus–carro-

lotação) que nos levaria a Pesqueira, onde chagamos por volta das dez horas da manhã.

Dessa saída, tenho bem presente na memória minha mãe, ainda escuro, na porta da casa,

com um candeeiro na mão, me vendo aos poucos desaparecer no caminho para Sertânia.

Essa lembrança do olhar de mãe que vê o seu filho se afastar me marca profundamente.

É como se eu estivesse me desvencilhando do mundo restrito, embora seguro, da casa e

da família para um mundo desafiador, imensamente novo e diferente daquele da família.

Um mundo que estava à minha mercê. Eu era igual, naquele momento, aos meninos do

romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Jogado num mundo totalmente diferente,

onde a realidade das coisas me era desconhecida e até certo ponto elas me pareciam

misteriosas. Esse sentimento muito vivo invadiu minha alma de moleque sertanejo do

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Moxotó pernambucano. Volto à sua outra pergunta: quanto tempo e quais os seminários

e mosteiros que frequentei. O primeiro deles foi o seminário de Pesqueira, efetivamente

um momento de grande impacto para um garoto que sempre viveu na roça, junto dos

pais, com uma família muito unida. Lá me encontrava sozinho, junto de outros meninos,

longe de minha mãe e dos meus irmãos. Um mundo onde o cotidiano era rígido e bem-

demarcado. Hora para deitar, hora para levantar, hora de asseios, de banho, de jogos, de

engraxar sapatos, de assistir aulas, de recreação, de rezar e, sobretudo, hora de estudar,

que subentendia momentos de absoluto silêncio. Andávamos em filas indianas no inte-

rior do seminário para o refeitório, para a capela, para o dormitório e para as salas de

aula. Os menores à frente, e os maiores atrás. No final do semestre, antes da partida para

as férias e quando da volta das mesmas, havia o Retiro Espiritual. Era uma coisa por

demais estranha. Três dias de pregações, de intensas meditações pessoais e de absoluto

silêncio. Aquilo para mim era um suplício. Ninguém podia dirigir a palavra a ninguém.

Só o pregador falava. Somente ao final do retiro, quando o padre fazia uma oração, nós

respondíamos “Deo Gratias!” [Graças a Deus!] e aí é que podíamos falar. Era uma

zorra de falação nessa hora. Aquilo me impactou porque eu não era acostumado à aque-

la situação. Mas, logo assimilei aquele modo de vida. Confesso que havia ganhos nessa

nova vivência inaugural de seminário. Foi onde assimilei hábitos civilizados. Hábitos de

higiene diária do corpo, de utilização de banheiros, de banhos de chuveiro, de sentar e

levantar da mesa de refeições, de comer educadamente, de usar adequadamente garfo e

faca, de não cuspir no chão etc. Nesse ponto, o seminário foi para mim uma escola de

civilização e de cidadania. E não me envergonho de dizer e enumerar esses ganhos, que

são balizadores dos códigos de uma sociedade minimamente civilizada e cujos rudimen-

tos devem começar em casa, na educação doméstica. Em Pesqueira, eu fiquei até 1958,

tendo cursado do 4º ano primário ao terceiro ano do ginasial. Sem nenhuma modéstia,

fui um dos alunos que se destacaram. Era bom latinista, bom aluno de História, bom

orador e ensaísta de teatro, naquelas peças piegas que encenávamos. Não era bom joga-

dor de bola. Era muito ruim nesse mister. Fui transferido para estudar, em 1959, no Se-

minário de João Pessoa. Viajei de Pesqueira para o Recife e, de lá, para João Pessoa. Aí

o mundo começava a ficar maior e mais complexo. Era uma capital, uma cidade grande

e um seminário que ordenava padres. Os bispos só mandavam os seus seminaristas dar

continuidade aos estudos em seminários de referência e de qualidade. Naquele momen-

to, o Seminário de João Pessoa era um dos mais cotados, inclusive muito evoluído em

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termos de formação de alunos seminaristas e na abertura para uma pastoral que respon-

desse aos desafios dos problemas do Brasil e do mundo naquele momento de eferves-

cência da vida nacional. Final do governo Juscelino, começa o de Jânio Quadros, e e-

clodiu a revolução cubana. No Brasil, muita turbulência no campo, e os americanos a-

medrontados com a possibilidade de o Nordeste reeditar a experiência de Cuba. A maio-

ria dos superiores do Seminário de João Pessoa havia estudado em Roma e eram ho-

mens cultos e avançados para a época. Quanto à minha pertinência religiosa, eu estava

ligado – caso me ordenasse - ao clero secular, ou padres diocesanos, que são aqueles

curas de paróquias ligadas a uma diocese, dedicados diretamente para à chamada “cura

das almas” e que, nas suas paróquias, substituem o bispo nessa função. Daí o seu nome

de curas ou vigários; eles desempenham uma função vicaria, em lugar de alguém, no

caso, do bispo diocesano. Aquela turbulência nacional e internacional com a abertura

dos padres da Paraíba para uma formação atualizada - secundada pela convocação do

Concílio Vaticano II pelo papa João XXIII –, aquele momento, repito, me impactou, e

eu me abri para uma vida além dos muros do seminário. Nessa época, existiam também

em João Pessoa alguns padres vindos da Bélgica para servir na Arquidiocese da Paraíba,

caso de René Vandersand, Eduardo Hoornaert e o padre Joseph, não sei das quantas.

Falavam francês e, certamente isso me ajudou a gostar de aprender línguas outras que

não o português; o inglês, o francês, os clássicos latinos e uma erudição cultural, musi-

cal, sobretudo. Tornei-me um cabra afinado, como se diz. Cabeça feita. Com forte sen-

sibilidade para o social, sem nunca ter lido Marx, no entanto. Eu não tinha mais do que

dezessete anos, e foi o empurrão que eu precisava42

. Outra experiência marcante desse

momento é que, em João Pessoa, durante os três anos que lá frequentei, os padres depo-

sitaram em mim uma grande confiança que corresponderia a uma também enorme res-

ponsabilidade, que era de exercer a função de “suplente”. Suplente era aquele que supria

os superiores ante os alunos. Mas nós éramos praticamente da mesma geração, da mes-

ma idade dos dirigidos. E ele, o suplente, tinha que ser uma pessoa de confiança, equili-

42 Neste momento da entrevista, Cláudio me passa um pequeno breviário latino-português, com as horas

canônicas, que eu havia adquirido em João Pessoa, datado e assinado por mim. Era com esse livreto que

nós recitávamos as horas canônicas nos dias de domingo, antes da missa, e nos períodos de retiro espiritu-

al. Esse breviário fora dado a Cláudio pela Madia, retirado que foi de uma pequena estante de livros que

eu havia deixado lá em Sertânia, quando de minha ida para o Rio Grande do Sul. Óbvio que fiz meus

comentários, expliquei o conteúdo do livro e matei a curiosidade dos entrevistados, que me surpreende-

ram com um livro meu que eu não via há mais de cinquenta anos.

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brado, competente, estudioso e exemplar para os demais. O que o suplente levava aos

superiores era indiscutível. Tinham, inclusive, o direito de reclamar, chamar a atenção

dos alunos e, até mesmo, impor castigos, se necessário fosse. O que me incomodava era

que todos ficavam de olho no suplente; não lhe era dado o direito de fazer besteiras. E

nós sabemos que as besteiras fazem parte da vida dos jovens. Foi aí que eu aprendi a

dirigir, a administrar, gerenciar e ser exigente comigo e com os demais e ter uma defini-

ção de caráter. No mínimo, passei mais de dois anos nessa função de liderança. Senti

também que fui um pouco explorado, no bom sentido. Fui suplente dos alunos menores,

dos adolescentes e não sei se também dos maiores de idade. Como falei, acho também

que essa função de liderança e de “espelho” para os demais me tolheu um pouco de meu

direito de ser moleque e exercitar também a “molequice” e as trelas próprias da idade de

transição. É nesse sentido que falo de “exploração” pelos padres. Mas eu nunca falei

disso a ninguém. É a primeira vez. Vocês merecem esse voto de minha confiança. Bem,

agora vou falar de minha vivência em outro seminário, o de Viamão, na grande Porto

Alegre. Fui para lá no ano de 1962, a mando do bispo Dom Severino Mariano de Agui-

ar, bispo de Pesqueira, que sucedeu a Dom Adelmo Machado. Dom Mariano era uma

pessoa fora de série. Simples, amável, atencioso, mas também irônico e gozador. Um

grande amigo. Foi também outra pessoa muito importante na minha vida. E o Seminário

de Viamão era a menina dos olhos de Dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre,

de origem alemã, uma pessoa de muito prestígio no episcopado gaúcho. O bispo de

Pesqueira mandava para grandes seminários, incluindo a Europa, aqueles alunos que se

destacavam no bom exemplo, no estudo e na saúde. Para lá, foram mandados Inocêncio

Lima e Francisco Moura, que eram um pouco mais adiantados do que eu. Quando che-

guei lá, já encontrei tudo resolvido e organizado por eles no sentido de facilitar minha

adaptação e bom desempenho. Lá iniciei o curso de Filosofia, inaugurando a minha no-

va fase de educação do terceiro grau. Era uma faculdade reconhecida pelo governo fede-

ral e tinha um bom nível de ensino na filosofia tomista e escolástica. Recordo que, nas

férias, antes de viajar para Porto Alegre, fui informar minha mãe que eu iria viajar para

estudar em Viamão. Ela estava na sala, costurando numa máquina manual, e me disse:

“Mas meu filho, precisava ser tão longe? Não tem um lugar mais perto?” Eu me lem-

brei, naquele exato instante, do momento de minha saída de casa para Pesqueira, na

aurora daquelas primeiras horas do dia sete de março de 1954. Foi e continuava uma

viagem sem volta. Em Viamão, fiquei durante os anos de 1962, 1963 e 1964. Foram

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anos trepidantes de minha vida. Eu já não era mais adolescente, mas jovem universitá-

rio. Tudo mudava na minha vida. E foi como entrar numa espiral, sem tempo para tomar

fôlego. Fui admitido no curso de Filosofia e tornei-me atuante na política estudantil de

Porto Alegre naquele período conturbado que antecedeu o golpe militar de sessenta e

quatro. Fui eleito presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia do se-

minário de Viamão. E, modestamente, acho que isso já significava a consolidação dos

meus traços de liderança em meio aos meus colegas, vencendo preconceitos que o Sul

do Brasil destilava contra o pessoal do Norte e, mais ainda, do Nordeste. Isso significou

o meu passaporte para a consciência política, que se iniciava na área acadêmica e estu-

dantil. E me abriu as portas para a grande experiência de conviver com as lideranças

estudantis de Porto Alegre, os intelectuais da cidade, os movimentos sociais organiza-

dos e os partidos políticos que tinham o seu braço na academia, como o velho PCB. Foi

aí que aprendi as mumunhas que os “comunas” punham em prática para ganhar as vota-

ções na política estudantil: vencer pelo cansaço, noite adentro. Filosofia foi o curso mais

importante que eu fiz na minha vida acadêmica, até hoje, a despeito do ranço escolástico

e tomista dessa filosofia que lá se ensinava. Aprendi a pensar e a gostar de pensar. Tí-

nhamos um grande professor de História da Filosofia, um argentino de Mendoza, pro-

fessor Norberto Espinoza, que acabara de chegar da Alemanha, tendo sido aluno de

Heidegger, na Universidade de Freiburg in Breisgau. Foi um dos grandes professores

que tive em minha vida. Eu deveria ficar em Viamão até julho de 1964, quando termina-

ria a Filosofia e viajaria para a Suíça, Universidade de Fribourg, para dar início ao curso

de Teologia. Caiu, então, sobre nossas cabeças o golpe militar no final de março. Tem-

pos sombrios e difíceis para quem nutria tantas esperanças de mudanças sociais no Bra-

sil. Até meados do ano de 64, ficamos assustados com o direcionamento político do

país. Em junho, fui selecionado pela AUI (Associação Universitária Interamericana)

como integrante do grupo de universitários do Rio Grande do Sul que viajaria aos Esta-

dos Unidos para frequentar o seminário de um mês de duração, nas universidades de

Harvard e de Columbia, versando sobre “Vida e Instituições Americanas”. Tratava-se

de uma experiência muito interessante, de iniciativa de empresários americanos ligados

ao Partido Democrata e que tinha como escopo vencer as barreiras culturais, ideológicas

e políticas entre os Estados Unidos e a América Latina. Passamos uma semana convi-

vendo com uma família americana média; uma semana em Harvard com palestras de

grandes intelectuais americanos; outra semana em Washington, conhecendo a estrutura

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de governo dos EUA, ocasião em que fomos recebidos por Bob Kennedy, então minis-

tro da Justiça; a última semana seria em New York, onde conhecemos a Columbia Uni-

versity e visitamos a Expo Mundial, que naquele ano se realizava lá. Tudo pago, e a

viagem feita em aviões fretados para o grupo. Essa viagem abria-nos a possibilidade de

melhor conhecer a sociedade americana, ouvir a nata dos seus intelectuais, dos políticos,

de suas lideranças e poder tirar as lições com relação ao futuro do Brasil e da América

Latina. A senhora Mildred Sage foi a grande idealista desse Programa e, posteriormente

teria muitas dificuldades com a repressão política brasileira no sentido de dar continui-

dade a essa experiência inédita de anualmente levar centenas de lideres estudantis brasi-

leiros, de todo o Brasil, para conhecer um país como os EUA, permitindo que eles

mesmos pudessem tirar suas conclusões. Vou voltar ainda à memória do Seminário de

Viamão. Voltei dos estados Unidos no final de agosto e já desci no Recife, porque em

outubro eu deveria viajar para a Europa, Suíça, para iniciar em Fribourg o meu curso de

Teologia, que era a etapa final de minha formação antes de me ordenar padre católico.

Eu tinha muita vontade de conhecer a Suíça, por tudo o que dela se dizia e se sabia, in-

clusive pela beleza de suas paisagens, de suas cidades e de sua cultura organizacional.

Eu vibrei com a ida à Suíça, em vez de Roma, onde a Pontifícia Universidade Gregoria-

na me parecia excessivamente conservadora.

Cláudio – Lamento interrompê-lo, mas tenho que lhe perguntar como é ser um

sertanejo do Moxotó num país gelado como a Suíça?

Antônio – Vou lhe responder. Mas deixe-me só terminar um detalhe da pergunta ante-

rior, acrescentando um fato que tem tudo a ver com a minha vida universitária no Rio

Grande do Sul. É que eu viajei para a Europa no dia 10 de outubro de 1964, a bordo de

um transatlântico luxuoso, na época, que era o “Federico C”, da Companhia Italiana

“Linea C”. Onze dias de viagem até Gênova; de Gênova, fui para Roma, onde reencon-

trei Inocêncio Lima e Osvaldo Oliveira, colegas de seminário e de diocese. De Roma,

fui diretamente para Fribourg, de trem, já no final do mês de outubro, no ocaso do ou-

tono helvético. O fato a que me reportava é que, nesse ínterim da viagem entre o Brasil

e a Europa, o DOPS andou à minha procura em Porto Alegre para me prender. Era acu-

sado de subversão. Besteira, eu nada tinha de subversivo e nunca fui uma liderança polí-

tica extremista. Mas, como era um da geração da “esquerda festiva”, e apenas isso, por

muito pouco não vi o sol quadrado. Quando a polícia me procurou em Viamão, o reitor,

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que era o então Monsenhor Ivo Lorscheiter, avisou que eu já estava longe... Escapei por

pouco. Quando retornei, em 1970, ao desembarcar no porto do Rio de Janeiro eu estava

me cagando de medo. Mas não houve nada.

Cláudio – Voltando a esse caso da Polícia Federal à sua cata, coisa que nenhum de

nós aqui sabia, eu pergunto: será que a ordem do bispo, mandando-lhe estudar na

Europa, já não era um indício de que ele sabia desse pormenor e foi uma tentativa

de livrá-lo desse incômodo?

Antônio – Não, não acredito que o bispo soubesse e tivesse se antecipado à repressão

da polícia. Eles (bispo e reitor) pouco ligavam para esse tipo de atuação que desenvolví-

amos como estudantes universitários. E, até mesmo porque essa atividade não era para

ser caso de polícia e merecer dela a repressão. Creio que era apenas uma informação a

ser checada. Só isso. Eu chego, finalmente, à Suíça, um país sem a inflação que tanto

infernizava a vida dos brasileiros, com uma moeda forte e estabilíssima, e o nível de

vida da população nos píncaros, sem falar de uma alimentação ultrassaudável... Eu era

magríssimo na época, um espanador da lua, pesava apenas cinquenta e sete quilos. Pen-

sei até que vocês fossem cascavilhar alguma foto minha de Viamão, onde eu apareço

magro como um fiapo. Como já afirmei, na Suíça eu descobri que era minimamente

subalimentado. Aprendi a gostar de batata, tomar leite e comer muito chocolate. Logo

fui diretamente aceito como aluno regular do curso de Teologia na Universidade de Fri-

bourg. Naquele tempo, a língua predominante do cantão de Fribourg era o francês. Ho-

je, já está meio a meio: francês e alemão. E foi um momento também muito especial

para mim, porque, àquelas alturas, eu me considerava um cidadão do mundo, incorpo-

rando na minha vida pessoal e profissional o que de melhor se oferecia em termos de

conteúdos e condições de aprimoramento. Aí, de novo, eu me lembrava de Zefinha Ara-

újo, com quem tudo começou e em cuja escola brotaram em mim as possibilidades de

sonhos. E ali, naquele momento, naquele lugar, eu estava realizando sonhos reais e não

meramente possíveis. Eu me sentia privilegiado, e esse privilégio tinha-me sabor de

responsabilidade para com meus pais por tudo que fizeram para minha educação; com

minha diocese também, que me ensejava oportunidades ímpares de formação de quali-

dade como aquela que eu desfrutava. Naquela época, existiam em Fribourg uns quatro

brasileiros, não mais. A maioria teólogos. Com o passar do tempo, fui assediado pela

saudade e o isolamento dos colegas mais chegados que tinham ficado no Brasil. Com o

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consentimento deles, consegui bolsas de estudos financiadas por paróquias católicas

suíças. Foi nessa condição que vieram para Fribourg, um ano depois de minha chegada,

os colegas Valmon de Oliveira, da Diocese de Aracaju, que estudara comigo em Via-

mão. Idem, Francisco de Luís Brito, que nós apelidávamos de Chico Pó, cearense do

Crato. Logo em seguida, Geraldo Castelli, da Diocese de Caxias, no Rio Grande de Sul.

Cláudio Ruaro, foi logo estudar em Paris, mas vinha frequentemente a Fribourg nos

visitar. E vieram outros alunos de dioceses de Santa Catarina, como Gentil Soares,

Luís Facchini e Gervásio, de quem não lembro o sobrenome. Pouco a pouco, fomos

formando uma comunidade de estudantes brasileiros na medida em que outros alunos,

de outros cursos, foram também chegando para cursar a universidade, como Paulo Ra-

ad, do Rio de Janeiro, Gabriel Barbosa, de Minas; os gêmeos Américo e Vicente No-

gueira, de Campos, Celso e Nadja, também do Rio de Janeiro. O Chico Pó terminou

falecendo em Fribourg, no inicio de 1969, o que foi um choque para o grupo. Nessa

época, eu já havia abandonado o seminário e estudava em Paris. Esse grupo de brasilei-

ros foi muito bom para todos nós. Era uma vida muito fraterna e nos juntávamos sem-

pre, brincando e recordando o Brasil. Volto a falar daquele sentimento de gratidão a

Dona Zefinha, meus pais e meus irmãos. Hoje, quando trabalho para recuperar e preser-

var a memória de minha família é assim como um preito de gratidão e reconhecimento

pelo muito que dela recebi, o que certamente não foi dado aos outros irmãos para me

beneficiar. E acredito que uma maneira de me dizer agradecido por tudo o que dela re-

cebi é investir num trabalho como este, que busca recuperar a identidade de uma família

lutadora, onde todos e cada um têm e terão o seu lugar preservado para que nossos fi-

lhos e os filhos dos nossos filhos saibam e não deixem cair no esquecimento as nossas

lutas e aquilo que foi nosso sonho de dias melhores. A amnésia é uma perigosa e insidi-

osa espécie de morte43

. Minha estada na Suíça foi toda ela custeada por um casal de

suíços da cidadezinha alpina Saas-Fee, do cantão do Valais (Wallis), região alemã. Tra-

ta-se de Werner e Ida Imseng-Zurbriggen, hoje com mais de oitenta anos de idade. Eles

me pagaram os custos do alojamento no Foyer St. Justin, onde eu estive alojado, e as

demais despesas mensais. Nas férias, me acolhiam na casa deles como filho. Tanto que

43 A entrevista é suspensa no momento em que Cláudio passa às minhas mãos um cartão-postal dos Alpes

da Suíça, sob pesada neve do inverno, que fora por mim mesmo endereçado aos manos Elias e Valdeci,

no ano de 1968, época em que eu estava deixando Fribourg para estudar em Paris e praticamente já havia

desistido de me ordenar padre.

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eu os considero meus segundos pais. Nunca me negaram nada. Sempre que vou á Euro-

pa, eu os visito e, cada vez, sou recebido da mesma maneira e com o mesmo carinho.

Para a minha ordenação de padre, reservaram, na época, a quantia de cinco mil francos

suíços, o que é uma soma considerável. Quando os informei que havia desistido de me

ordenar, eles entenderam perfeitamente e me apoiaram bastante na decisão. E o casal

fez questão de me repassar a quantia aludida, dizendo-me que eu a usasse como bem

quisesse. Quando fui para Paris, utilizei essa soma para me manter lá pelo espaço de um

ano. Era o momento em que eu redirecionava minha formação acadêmica para atuar no

Brasil como profissional ligado às áreas de docência e pesquisa acadêmica. Fiquei em

Paris até fevereiro de 1970, onde cursei o equivalente ao mestrado, na Ecole Pratique de

Hautes Etudes, sob a orientação do professor Henri Desroche. No período, cursei, de

igual modo, o IRFED – Institut de Recherche et Formation en vue du Développement

Harmonisé, um instituto criado pelo padre francês Lebret, que atuou muito no Brasil e

que trabalhava na ótica da “Economia e Humanismo”.

Cláudio – Retomando aquela pergunta anterior, fale-nos de sua desistência de ser

padre; quando foi que tomou essa decisão e como a família recebeu essa notícia?

Antônio – Certo, vamos lá. Por que não me ordenar, uma vez que eu já tinha comigo

um documento lavrado nos arquivos da Diocese, dando permissão a qualquer bispo da

comunhão católica, de qualquer parte do mundo, para me ordenar? Ainda hoje, guardo

esse documento comigo com muito carinho. Quem sabe se um dia ele não virá a ser

usado? (rindo). A primeira razão de minha desistência é que aquele momento era o fi-

nal do Concílio Vaticano II. Ele foi um Concílio muito importante, porque permitiu à

Igreja Católica dialogar com o mundo, com os seus impasses, seus problemas, seus an-

seios. E levou a Igreja a se voltar também para o interior dela mesma, à medida que se

abria para fora de si, para o mundo no qual ela estava inserida. Havia uma crise interna

na Igreja gerada pela necessidade de ela se adaptar e responder aos novos ares dos tem-

pos, necessidade de um “aggiornamento”, como se dizia na época. Uma dessas deman-

das era o fim do celibato. O celibato sacerdotal é uma determinação disciplinar da Igre-

ja, não é matéria doutrinária. O papa, ouvindo os bispos, pode abolir a exigência do ce-

libato na hora em que ele bem quiser. E o sentimento da maioria dos padres e dos futu-

ros padres naquele final de concílio era que aquilo não fazia mais sentido. Defendíamos

que padres e pastores de almas vivessem a vida de cada um de maneira plena que permi-

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tisse a sua realização como homem e como filho de Deus. Ao se entender que o celibato

era uma hipocrisia e uma caricatura da plena dedicação a Deus e da sublimação das ca-

rências afetivas, sobretudo da importância da complementaridade entre o homem e a

mulher, outro caminho não restava senão abandonar o ministério, pedindo licença para

casar, a bem da coerência ética e da moralidade. Quem não foi ordenado padre percebeu

que o celibato era um barco furado. E ninguém queria embarcar naquela canoa furada.

Foi o meu caso. Em 1968, tomei a decisão de não mais me ordenar e fiz uma carta longa

ao meu bispo, Dom Mariano de Aguiar, informando de minha decisão e de minhas ra-

zões. Fiz também uma carta bem-pensada para comunicar essa decisão a meus pais. Eu

sei que isso foi uma notícia que lhes causou muita frustração; afinal, tinham passado

vinte anos acalentando o sonho de ver um de seus filhos padre da Igreja. E aí foram

buscar uma culpada - sempre a mulher – para jogar sobre ela a frustração e a raiva. Cla-

ro que isso nunca me foi dito dessa maneira nem a mim e muito menos a Edilnete.

Sempre deixei claro para quem quisesse saber que a decisão de não me ordenar foi mi-

nha e só minha. E tem mais: eu nunca me ordenaria para fazer a vontade de pai, de mãe,

de irmãos, de tios ou de quem quisesse... A decisão de entrar foi minha e a de sair tam-

bém. Que fique isso muito claro.

Marcelo – Tio, você estudou com vários colegas lá. Todos eles chegaram a se orde-

nar?

Antônio – Olha, Marcelo, boa pergunta! A maioria dos meus colegas e companheiros

da geração, a maioria debandou; com certeza, 95% deles deu no pé (risos). Foi uma

debandada geral. Ninguém se aventurou entrar na canoa furada. E tem mais: esses 5%

que continuaram no barco, depois caíram fora também. Não falo de quem quis se orde-

nar.

Débora – Tio, foi nesse momento que você conheceu Edilnete?

Antônio – É verdade, Débora. Chegando a Paris, logo que escrevi e comuniquei a meus

pais e ao meu bispo que eu não mais ia me ordenar, eu abri geral para as namoradas.

Ainda mais estando em Paris. Decidi recuperar meu tempo; afinal, eu tinha naquele

momento vinte e seis anos de idade. Tava na hora de ir à caça, não é? Era meio beato,

meio piegas; ainda tinha aquele tique de seminarista, meio arisco, meio desconfiado,

inseguro. Mas era um mistério para as mulheres, podem crer. E as mulheres gostam de

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mistérios. “Quem é ele?” “Quem sabe o que é ele?” Óbvio que as mulheres de Paris,

todas elas se encantaram comigo (risos). A minha primeira namorada veio a ser uma

baiana de nome de Arlete. Grande pessoa. Mas não deu certo, ela deve ter visto que eu

não era o que ela queria, sei lá. E eu queria viver a minha vida livre, leve e solta, que eu

não tinha vivenciado até então. Recolhi o meu time. E o que era Paris, para mim, naque-

le exato momento? Era o lugar romântico por excelência, lindos lugares para a corte,

para namorar; vivia-se os tempos da minissaia, da liberação da pílula, da era de Aquari-

us, do cigarrinho... Paris era a cidade tolerante com os hábitos amorosos. Paris, aliás,

nunca perdeu o seu glamour. Foi nesse clima que nos conhecemos, eu e a Edilnete.

Cláudio – Como?

Antônio – Foi relativamente simples e inusitado como sói acontecer com o amor. Nós

morávamos na Cité Universitaire de Paris; ela, na casa do Brasil, e eu, na casa da Suí-

ça; as duas, aliás, projetadas pelo mesmo arquiteto, Le Corbusier. São hoje duas casas

tombadas como patrimônio da arquitetura mundial. Cada país tinha na Cité uma casa de

acolhimento dos estudantes desses respectivos países: Espanha, México, Irã, Portugal,

Alemanha, Suíça e Brasil. A gente circulava pelas casas da Cité e, claro, como brasilei-

ro, ia com frequência à casa do Brasil. Eu cheguei lá em outubro e lembro bem que,

numa noite já de dezembro, nós saímos juntos no carro de um médico psiquiatra per-

nambucano que fazia estágio em Paris, Abílio Guerra. Conosco, foi a Edilnete para co-

nhecer a iluminação dos Champs Elysées, na data em que os franceses comemoravam a

liberação da França do domínio nazista. Foi aí que eu conheci aquela moça brasileira,

pernambucana, psicóloga... Bonita, bem apessoada, alta e simpática. Foi meio caminho

andado. Não sei o que ela viu em mim, além de minha beleza olímpica. Conhecemo-

nos, e só. Até porque ela já namorava um gaúcho, que era amigo meu, conhecido lá de

Porto Alegre, Lourival Possani. Depois, já em abril, nós fomos de carro ao Marrocos:

Cláudio Ruaro, Golias Silva, Edilnete, eu e Lúcia, uma brasileira capixaba, cujo sobre-

nome era Lobato. Nesse momento eu já sabia, mediante confidências de Lourival, que o

namoro deles não ia lá tão bem. Ele, com aquela simplicidade de gaúcho meio chucro,

sabendo que eu era pernambucano, como ela, me dizia: “É pra ti, Siqueira! Eu e a Edil-

nete não nos entendemos”, dizia ele. “Vai, Che!” Eu dizia: “Sim, Louri, e eu sei lá quem

ela quer! E se ela prefere você a mim, como é que fica?” Lourival estudava e pesquisava

na área de biociências. Só tinha tempo para o seu labor acadêmico e seus papers. Eu,

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não. Estava numa condição de malandragem. Fizemos aquela viagem ao Marrocos e

acho que a química entre nós ficou mais evidente. Na volta, ela desfez o namoro com

Possani, e nós começamos a nos cortejar e ser felizes. Assim se iniciou nossa Love

Story. Foi um grande e gratificante momento em nossas vidas, à margem do Sena, na-

quele clima de jovens estudantes que se amavam freneticamente. Forjamos aí as bases

sólidas de um companheirismo que durou enquanto a vida dela durou. Logo em ju-

lho/agosto de 1969, ela voltou ao Brasil, pois tinha terminado o prazo do estágio dela,

que era funcionária federal de nossa universidade. Eu fiquei lá preparando a defesa da

minha dissertação e só pude voltar ao Brasil no ano seguinte, no final de janeiro.

Marcelo – E o primeiro beijo?

Antônio – Ah! O primeiro beijo garanto que não foi em Paris. Também, pudera! So-

mente um beijo? Eu conheci uma garota belga, que passava as férias de inverno lá na

cidade dos meus benfeitores suíços, em Saas-Fee. Nós conversávamos muito, nos en-

contrávamos com frequência num daqueles cafés da cidadezinha, um pouco longe dos

olhares dos Imsengs e da família dele. Era janeiro e fazia um frio muito grande. A gen-

te, para se aquecer, sabe, fomos gostando de nos conhecer, apenas nos conhecer. Como

ela teve que voltar logo para a Bélgica, nós, ao final de um de nossos encontros, uma

vez só, nos beijamos carinhosamente, acidentalmente, sem maiores arroubos. Algo mais

do que um simples selo, mas nada comparado a um beijo às margens do Sena.

Cláudio – E o namoro com Edilnete no Brasil, como é que foi, como prosperou?

Antônio – Ela voltou em julho/agosto de 69, e eu, em fevereiro do ano seguinte. Voltei

de navio, onze longos dias de viagem. Muita diversão no navio, onde dancei muito e me

diverti, pois formamos no navio um grupo muito seleto e amável na volta ao Brasil. Um

grupo de paulistas. Um deles era parente de Olavo Setúbal, banqueiro dono do banco

que, naquele tempo se chamava Itaú-Lorena, acho que era isso. Era um casal altamente

simpático: Jota e Lídia, não lembro os sobrenomes. O nome dele era Joaquim e o dela...

não lembro mais. Foi uma linda viagem. Desembarquei no Rio de Janeiro em plena se-

gunda-feira de carnaval. Um calor dos diabos e eu com aquela roupa da Europa, quente,

quente, santo Deus, como sofri! Um daqueles colegas meus de Fribourg, que já havia

voltado ao Brasil, foi nos receber e me levou para o apartamento dele, que ficava em

Ipanema. Foi ele quem me descolou uma grana para eu viajar a São Paulo e encontrar a

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parentela. Naquele ano, a Escola de Samba do Rio que ganhou o desfile foi a Portela,

com o samba-enredo de Paulinho da Viola: “Foi um Rio que passou na minha vida // e

meu coração se deixou levar!”... Foi bom, porque eu mergulhei na volta ao Brasil pelo

carnaval. Acho que tinha que ser assim mesmo (risos). Despachei minha bagagem para

o Recife e vim de ônibus reencontrar vocês aqui. Na noite em que cheguei à Vila Ema,

tomei uma cervejada com Anísio, Jacaré, Valdeci e não sei mais quem... Eu lembro que,

no dia seguinte, mesmo sem eu pedir, Flora pediu a Valdeci para me acompanhar até a

Mooca ou ao Brás para comprar roupas adaptadas ao Brasil. E foi ele quem pagou pra

mim todas aquelas camisas e calças, bem mais leves e de mais bom gosto do que as da

Europa. Na volta ao Brasil, eu me vesti de Brasil às custas de Valdeci. Eu sempre vou

agradecer a ele, que também comprou meu bilhete de ônibus para o Nordeste numa em-

presa safada de Guarabira, na Paraíba, chamada Viação Planalto. O ônibus levava de

volta, metade dele, famílias que estavam voltando para o Norte. Mais da metade de to-

dos esses tinham conjuntivite. Santo Deus, que viagem! Logo que cheguei do Rio, fui

direto para a casa de Virgínia e de Aldir, que moravam na Vila Carioca, na Rua Brás de

Pina, juntamente com Anísio, que acabara de chegar do Norte. Lembro que Aldir, na-

quela simplicidade generosa dele, abriu um uísque nacional para festejar a minha che-

gada. Foi o pior uísque que eu tomei na vida. O Botinha que me perdoe! Mas ele e Vir-

gínia se desdobraram na recepção. Aqui, na Vila Ema, todo mundo era jovem, novi-

nhos, cabeludos, com calças-boca-de sino, tipo San Remo. Roberto Carlos era da mo-

da... Os cabelos meio compridos eram a moda geral. Todo mundo zen. Voltando para o

Nordeste naquele ônibus infectado, eu fui lentamente sentindo a ficha cair. Era na reali-

dade uma viagem de volta. Seria talvez a continuação da minha viagem inicial, lem-

bram? Emociono-me falando disso agora. A viagem durou de quatro a cinco dias. Eu

tinha voltado com a minha dentição em petição de miséria. Os dentistas suíços e euro-

peus maltrataram meus dentes. Não conseguia comer carne de sol nem coisa mais con-

sistente. O ônibus parava nos piores apoios, sem direito a banho, comida precária e cara.

Pra variar, o ônibus, a certa altura da viagem, furou o pneu, e não tinham sequer pneu de

suporte. Acho que eu, na minha volta da Europa, reeditava a saga de sofrimentos de

todos da família quando de sua vinda para São Paulo. Lembro bem que cheguei à Santa

Luzia de madrugada. Bati na porta e acordei seu Zé Jorge, igual a Luiz Gonzaga quando

acordou o velho Januário na sua volta do Rio de Janeiro para Exu... Lembram? Encon-

trei meu pai e minha mãe sozinhos naquela casa imensa da Santa Luzia. Ávidos por

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saber como é que eu estava e também ansiosos por me contar tudo o que aconteceu na-

quele lapso de tempo de minha ausência de quase seis anos. Emendamos a conversa

pela manhã e fomos até à tarde. De manhã cedo, chega Manoel com a alegria de sem-

pre. A mesma pessoa; meu pai o mesmo; minha mãe a mesma. Pouca coisa mudou. As

pessoas dificilmente mudam. Foram dois dias de conversas e de histórias para neutrali-

zar o tempo da ausência. Eu informei a eles que tinha muita pressa em manter contatos

com o Recife para definir meu futuro profissional. Dizia-lhes que tinha de começar a

minha vida profissional. E, efetivamente, meu futuro estava no Recife.

Hélio – Tio, quanto tempo o senhor esteve separado da Edilnete depois da volta

dela ao Brasil?

Antônio – Nada mais do que seis ou sete meses. Antes, porém, tem um detalhe pitores-

co desse tempo que marcou a separação forçada entre a Edilnete e eu. Edilnete estando

no Recife, e eu, em Paris, nós mantínhamos o namoro através de cartas. Na minha vinda

para o Brasil, acertamos que ela deveria endereçar a correspondência para um endereço

de São Paulo, onde eu teria que me encontrar com os parentes. E caí na besteira de dar o

endereço de minha irmã Virgínia, que morava na Vila Carioca. Edilnete mandou não sei

quantas cartas, tamanha era a paixão. Quando eu chego à casa de Aldir e de Virgínia,

bisbilhoteira, fofoqueira e intrometida como ela sempre foi (risos), ela logo me pergun-

tou “Quem é essa quenga que lhe manda tantas cartas? Deve ser a puta sem-vergonha

que lhe tirou do seminário, não é”? (risos). Eu fechei a cara e não abri a guarda; apenas

disse a ela que eu tinha deixado o seminário por decisão minha e que agora iria, sim, ter

mulher na minha vida; namorar era o caminho certo para me casar. Hoje, ela conta outra

história, viva como ela sempre foi! Ela nunca engoliu a Edilnete. Ela não diz isso, mas

eu sei que ela nunca gostou dela. Voltando ao fio da história da minha volta ao Brasil,

logo depois de chegar a Sertânia, viajei para o Recife para me encontrar com Edilnete e

ver quais eram as perspectivas de trabalho que existiam para mim. E eu não conhecia

ninguém no Recife. Tinha apenas um ou dois nomes de pessoas indicadas por amigos e

colegas de Paris. E nada mais. Tudo era incerteza.

Marcelo – O senhor estava nessa época com vinte e oito anos, não? Cláudio – E foi

ficar onde, no Recife? Logo você, que chegou sem eira nem beira...

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Antônio – Rapaz, essa pergunta de vocês é importante. Estou vendo que vocês andaram

por ai vasculhando minha vida pretérita, não? Chegando ao Recife, fui procurar Edilne-

te, óbvio. Ela, de maneira ousada para os padrões da época, me convidou para ficar hos-

pedado na casa da família dela, onde vivia a mãe dela, Dona Antonieta; um irmão, Neil-

ton, médico; e uma irmã dela, recém-casada, Edinilze. O pai dela já havia falecido há

anos44

. Aquilo foi um escândalo na rua dela. Afinal, chegava o namorado de Edilnete da

Europa e já se aboletava na casa dela. Negócio complicado. E eu e ela pouco ligando

para o que as pessoas da rua achavam daquilo. Fiquei hospedado lá até que a gente se

casasse. Casamos em dezembro de 1971; e, nesse meio tempo, noivamos com pedido de

casamento e troca de alianças e tudo mais para calar a boca dos bestas. Foi na casa da

Edilnete que eu assisti aos jogos da Copa do Mundo de 1970, no México.

Débora – E sua sogra, como ela reagiu a tudo isso?

Antônio – Olha, Débora, justiça se faça, eu não falo mal de minha sogra. Pelo menos

minha sogra não é nem nunca foi o demônio que os genros geralmente pintam. Minha

sogra era uma pessoa adorável, amabilíssima e me tratou com muito carinho e deferên-

cia. Depositou toda confiança em mim, abrindo a porta principal da casa. Sempre me

tratou como filho. Falar dela nesses termos é o mesmo que lhe prestar uma devida ho-

menagem a ela. Não só a ela, mas ao filho e à irmã de Edilnete também.

Hélio – Durante esse período em que o senhor esteve acomodado na casa da Edil, o

que o senhor fez profissionalmente para se manter?

Antônio – Quando eu cheguei ao Brasil, era um período politicamente dificílimo. Plena

vigência do AI-5, da repressão do Garrastazu Médici, o período do “Ame-o ou Deixe-

o”... A gente pensava mais no que não devia dizer do que mesmo no que devia dizer.

Isso foi muito ruim e limitante para o meu começo de vida profissional, que, obviamen-

te, estava mais direcionada para o ensino superior, que era uma área extremamente vigi-

ada e patrulhada pelos órgãos de repressão. Como eu portava o título acadêmico euro-

peu de Mestre - e naquele tempo eram raras as pessoas de minha idade assim qualifica-

das -, isso facilitou em parte a minha profissionalização. Logo me ofereceram uma ca-

deira de Antropologia Social na Escola Superior de Relações Públicas do Recife. Eu

44 A galera faz hum...

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não era antropólogo, mas, depois de fazer curso de filosofia, teologia e ciências sociais,

ensinaria até o cão a chupar manga. E é o que fiz. Meti a cara e aceitei. Foi o meu pri-

meiro emprego, que não era bem-remunerado mas, como se diz, dava para uma lavagem

de roupa. Nessa altura da minha volta, eu sofri um pouco com a perda da minha fluência

na língua portuguesa, por conta do período de cinco anos fora do Brasil falando francês.

Não que eu não fosse capaz de falar e entender o português. Mas eu não conseguia falar

com fluência e com a elegância que se requer de alguém que fala em público, seja como

orador, seja como professor. E aquilo me incomodava demais. Aos poucos, fui reto-

mando esse ritmo de falar bem e com naturalidade. Nesse mesmo período, fui convida-

do a ser coordenador regional da CNEC = Campanha Nacional das Escolas da Comuni-

dade, secção de Pernambuco. Um trabalho difícil, pela minha falta de experiência e pe-

las limitações da própria instituição, que sobrevivia de dotações irregulares e pontuais.

E era difícil se trabalhar na área socioeducacional, por conta da repressão política. Mas

não deu certo, por conta de minha falta de experiência; e não posso me queixar e muito

menos acusar alguém. O salário era baixinho, baixinho. Meses depois do ano de 1972,

entreguei o cargo e fiquei me dedicando a algumas aulas episódicas na Universidade

Federal de Pernambuco, no Ciclo Geral da Área I, que havia pouco havia tinha sido

implantado pelo MEC. Foi meu vestibular de docente na UFPE, acumulando com a ca-

deira de Antropologia Social na ESURP (Escola Superior de Relações Públicas). Foi

com o salário da ESURP e da CNEC que eu pude amealhar os meus proventos para

comprar alguns móveis para o nosso casamento e também garantir o aluguel de uma

casa. Porque a geladeira, eu já havia comprado com o dinheiro de um curso de especia-

lização que eu ministrei no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais sobre Messi-

anismo no Nordeste do Brasil, em maio/junho de 1970. Recordo que nesse curso eu

morria de medo de falar, com medo da repressão política. Foi Mauro Mota quem me

conseguiu esse curso no IJNPS da época, hoje Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco).

Cláudio – Tio, devido ao adiantado da hora, vou pedir para ser direto nas respos-

tas, porque ainda faltam muitas questões. Por exemplo, o convívio com Edilnete, o

casamento, o nascimento de Ricardo, o casamento de Ricardo, as netas, o faleci-

mento da Edil, a doença dela, de que forma foi, a decisão de não comunicar à famí-

lia, como reagiu à perda dela e como está sendo sua vida depois da perda da Edil-

nete...

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Antônio – Vou mesmo tentar resumir trinta anos em alguns minutos, dado o avançado

da noite. Casei com Edilnete em dezembro de 1970. Ricardo nasceu em março de 1972.

No mês de julho, morreu meu pai. No final do mês de março de 1971, eu fui admitido

como professor na Universidade Federal de Pernambuco por meio de um concurso in-

terno. Até meados de 1972, nós moramos numa casa alugada, no bairro do Cordeiro,

junto onde morava a mãe da Edilnete. Em abril/maio desse ano, conseguimos comprar

um terreno em Casa Forte e depois construímos a casa onde moramos até hoje. Fizemos

um empréstimo no Sistema Financeiro da Habitação por intermédio do Banco Nacional

do Norte (Banorte), e levantamos a casa mediante o contrato com uma construtora, a

Lemos e Grimaldi. Em março de 1973, passamos a morar em Casa Forte, onde mora-

mos até hoje. Foi aí onde Ricardo cresceu e evoluiu até o casamento. Logo no início,

Edilnete conseguiu consolidar uma clientela ligadaàa aplicação de testes de personali-

dade; depois, psicoterapia e, mais tarde, psicanálise. Foi aí, nesse período, que constru-

ímos o nosso patrimônio, graças, sobretudo, ao trabalho bem-remunerado dela, muito

mais que o meu, da universidade. Em 1975, já morando em Casa Forte, fomos vítimas

de uma cheia no Recife que inundou nossa casa até a altura de 1,40, fazendo com que a

gente perdesse praticamente tudo, inclusive documentos e acervo valioso de fotos nos-

sas da Europa. Em 1976, eu iniciei meu curso de doutorado na Universidade de São

Paulo (USP), tendo sido um dos primeiros da minha área, de Pernambuco, a se doutorar

na USP. Algo inédito, posto que ela não mantinha vínculos com o MEC e a CAPES.

Aqui, em São Paulo, eu conhecia poucos professores e lembro que fui contatar alguns

deles para orientação, tendo ido com Zeca até o campus do Butantã. Em março de 1977,

eu iniciei meus estudos na USP, onde fui acolhido e tornei-me orientando da Dra. Maria

Regina Simões de Paula, tendo defendido a minha tese em agosto de 1981. Nesse perío-

do, passei a viver em São Paulo durante o tempo em que cursava algumas disciplinas na

universidade. Inicialmente, fiquei aqui na Vila Ema, na casa de Dona Flor e seu Zeca.

Depois, como era muito longe do campus da USP, terminei alugando um quarto na casa

de um casal de austríacos, na Teodoro Sampaio, o que facilitava em muito o meu rápido

acesso à universidade. Esse foi um período muito interessante e rico para mim, pelo

convívio que eu mantive com meus familiares aqui da zona leste paulistana. Nos finais

de semana, vinha para a Vila Ema e fazíamos encontros e almoços periódicos na casa de

uns e outros. Tenho muitas fotografias que retratam esses momentos. Vocês eram todos

garotos de quatro e cinco anos. Ainda hoje cultivo a amizade com muitos professores

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meus da USP, daquela época, que atualmente são meus colegas de universidade. Um

deles é o casal Dilu (Maria de Lourdes) e Aldo Janotti, lá da Rua Pedralva, no Alto do

Sumaré, pessoal esse que Cacareco conhece muito bem, porque já me levou lá várias

vezes para almoços e jantares quando de minhas vindas a São Paulo. Nesse período em

que fazia o meu doutorado, consegui também construir minha casa de praia em Taman-

daré, no litoral sul de Pernambuco, dessa vez financiada pela CEF. Mas fui eu que ad-

ministrei a construção. No ano de 1982, quando de nosso veraneio em Tamandaré, E-

dilnete teve ciência de que tinha um minúsculo nódulo no seio direito. Procurou o seu

ginecologista, que a examinou e disse que aquilo que ela detectava não era nada e que

ela simplesmente esquecesse. Um ano depois, mesmo sem sentir nada, um colega dela

do Departamento de Neuro Psiquiatria da UFPE, nosso grande amigo Cheops Teixeira

Cavalcante, insistiu que ela procurasse um mastologista para checar a natureza daquele

nódulo, o que ela efetivamente fez e descobriu por intermédio desse médico que era

uma neoplasia maligna ainda não muito evoluída. Foi um susto muito grande para nós, e

principalmente para ela. Naquele momento, ela fez uma mastectomia, retirando o seio e,

um ano após fez uma cirurgia plástica de restauração da mama. Um sucesso. A com-

pleição física ficou perfeita. E, a partir daí, ela passou a fazer os exames periódicos de

avaliação, até dez anos depois da mastectomia. Após isso, passou a fazer apenas anual-

mente e, depois de quinze anos, foi dado como curada. Ela viveu dezessete anos sem

nenhuma recidiva do câncer e, por isso, foi dada como curada. Logo que descobrimos

que ela era portadora de um câncer, após o susto, ela tomou a decisão de não divulgar a

ninguém o seu câncer de mama. Uma decisão dela. Nem Ricardo nem a família dela

ficaram sabendo. Sabia apenas um reduzidíssimo grupo de pessoas muito ligadas a ela

por laços profissionais e afetivos. Alguns anos mais tarde, ela decidiu comunicar o fato

à irmã dela no sentido de que as sobrinhas mulheres fossem informadas da doença para

futura prevenção. Foi nessa hora que comunicamos a Ricardo. Conversamos longamen-

te com ele, e, mesmo assustado, ele compreendeu o silêncio da mãe. Após dezessete

anos, Ricardo já casado, aparece nela uma tosse muito insistente e, depois de acurados

exames médicos, descobre-se que ela era portadora de uma metástase do câncer de ma-

ma, atingindo agora a pleura. O choque foi ainda maior, e tudo então se complicou. Mas

ela sempre demonstrou muita vontade de viver e manter a sua saúde. Apesar do susto,

ela não se abateu. Durante todos esses anos de expectativas e sofrimentos, nossa relação

sofreu muito. Era muito pesado guardar aquele silêncio e acompanhar de perto as apre-

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ensões dela como paciente. Mas sempre ajudei como podia e fui buscar forças não sei

onde para transmitir-lhe otimismo e apoio incondicional. Mas foi duro, foi dificílimo.

Logo que foi sabedora da metástase, ela iniciou as sessões de quimioterapia, que, sabe-

se, é um tratamento agressivo e que deixa o paciente em petição de miséria. Além de

tudo, ver a lenta queda do cabelo, para a mulher ou qualquer um, é um sofrimento. Não

há autoestima que suporte isso. É dramático e doloroso. Mas a esperança é sempre a

última que morre. Da descoberta da metástase até o falecimento dela, passaram-se seis

anos. Foi uma resistência brava. Os médicos ficaram impressionados. E ela morreu vi-

vendo, até o último suspiro de sua vida. Durante esse tempo, não deixou de clinicar e

não desmarcou clientes. Tanto que, com o falecimento dela, fui eu quem informou aos

clientes do desfecho. A doença, na sua fase terminal, não a maltratou tanto. Ela não se

queixava de dores nem teve atrofias orgânicas. Faleceu no dia cinco de janeiro de 2005.

Eu, pessoalmente, não concordava com esse silêncio que ela impôs por vontade e deci-

são dela. Mas sempre achei que era um direito dela, e ela era a paciente. E ponto final.

Volto agora à sua pergunta para falar das minhas netas. Confesso que tenho muito orgu-

lho do meu filho, que, juntamente com Regina, nos deu duas netas. Pensávamos ter dois

filhos quando casamos. Mas, por um problema ginecológico, foi muita sorte nossa a

Edilnete engravidar. Deus foi muito generoso conosco. Nasceu o Ricardo, que sempre

foi um filho que nos deu alegrias na vida, na nossa relação com ele. E ele casou com

uma moça que é um primor de gente e de pessoa, a Regina. Nós sempre aprovamos com

muito gosto o casamento dele. Regina engravidou depois de uns três anos de casada e

logo ficamos sabendo que era uma menina. Foi a suprema alegria de Edilnete; aquilo

encheu-lhe a vida de felicidades porque ela sonhava demais ter uma neta. Antes de Bea-

triz nascer ela, talvez temendo que a morte tragasse o prazer e a ventura de ver a neta,

escreveu do próprio punho uma carta para Beatriz ler quando se alfabetizasse. E entre-

gou essa carta a Regina. É uma linda declaração de amor de uma avó para com sua neta.

E veio Beatriz, que é uma boneca. Muito parecida com Ricardo, é a cara dele. E posso

garantir que a Edil morreu na alegria e na felicidade de ter visto nascer uma neta mu-

lher. Ela faleceu no dia cinco de janeiro e, ainda no dia 26 de dezembro, data do seu

último aniversário, fizemos uma comemoração íntima em razão da indisposição dela.

As fotos são significativas desse transbordamento de alegria dela com a neta, partindo o

bolo, distribuindo bolo, abraçando um a um dos parentes que vieram ao aniversário de-

la. Oito dias depois ela morreria. Mas tenho certeza de que morreu vivendo e morreu

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feliz pela neta que viu nascer e pela vida que levamos como casal. Quatro anos após,

nasce a segunda neta, Júlia. Essa ultima neta, infelizmente, a avó não viu nascer. Mas

posso dizer que é outra princesa. É a cara de Regina. Muito viva e muito sapeca. Sinto-

me plenamente gratificado, porque elas me chamam de “vovozinho”. O que mais quero?

Cláudio – Há pouco, falando da gravidez de Edilnete, o senhor falou que “Deus foi

muito generoso conosco”. Como é que ficou essa questão da sua fé depois que de-

sistiu de ser padre?

Antônio – Rapidamente, em função do tempo e para ser objetivo. Minha formação filo-

sófica e teológica foi sempre marcada pelo signo da racionalidade. De modo que eu

busco ser um pouco como Santo Agostinho: “fides quaerens intellectum”45

. Eu sempre

procurei acreditar em coisas que tivessem uma conotação de racionalidade para alimen-

tar a minha credibilidade, tendo em vista que acreditar pela fé é uma coisa e provar pela

razão é outra. Insisto que não é a pura racionalidade que me satisfaz, mas também a

irracionalidade me aborrece. Não sei se me fiz entender. A razão, para mim, é a infinita

abertura do humano, inclusive para o mistério da vida, da morte, da felicidade... Viver,

para mim, é interagir. Daí vem meu gosto e minha vocação para a história. A história é

diálogo, é abertura e sintonia com o outro como permanente interlocutor. Por isso mes-

mo, o que mais me encantou no meu curso de teologia foram os estudos bíblicos que

cursei na universidade de Fribourg com alguns eminentes exegetas dominicanos de lá:

Barthélemy e Spicq. A Bíblia é poesia, é história, tradição, narrativa. A história de vi-

vências da aliança entre Deus e seu povo eleito, Israel. Depois que abandonei a ideia de

ser padre, deixei também de ir à igreja aos domingos para assistir missa, fazer confissão

dos pecados, etc. Não seria eu, portanto, um exemplo de bom católico, se isso que falei

é o que caracteriza o bom católico. Acho que minha fé em Deus e minha prática religio-

sa têm e adquirem consistência na medida em que eu consiga ver Deus como bondade,

misericórdia, magnanimidade. Ele é muito mais perdão e justiça; e muito menos castigo

com a vingança e a cólera. Se Deus existe – e eu acredito que ele existe –, ele é bom. E,

sendo bom, eu tenho que viver como alguém que acredita em Deus sendo bom também

com aqueles com os quais reparto minha vida, meu trabalho, minha casa, minha pátria.

45

“A fé dialogando com a razão”...

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É desse modo que eu tento demonstrar que sou religioso, temente a Deus e cristão. Até

porque religião para mim não é apenas crença é, sobretudo, prática.

Cláudio – Complete as afirmações seguintes:

O meu sonho era: ser padre

O meu sonho é: ser um bom educador.

Família: é a sociedade em miniatura, é o suporte da pessoa.

A maior alegria: é ter visto meu filho nascer. No dia em que ele nasceu, acordei todos

os meus amigos, que ainda hoje me xingam.

A maior tristeza: foi perder minha companheira de trinta e quatro anos de convivência.

Chorei feito um bezerro desmamado.

William – Tio, gostaria que explicasse de onde veio essa paixão pelo Santa Cruz,

qual o primeiro dia em que foi ao estádio do Arruda e com quem?

Antônio – Eu agradeço a você, William, ter feito essa pergunta, pois, do contrário, eu

iria sair daqui frustrado. Mas ainda bem que você não me perguntou por que eu não sou

Santista! (risos). O Santa Cruz é um time de massa. E eu sempre prefiro o povo. Em

Pernambuco, tem três times: o Clube Náutico Capibaribe, que é o mais antigo e tem

uma história marcada como clube de elite, aristocracia, “pó-de-arroz”, como era o Flu-

minense no Rio de Janeiro. E eram mesmo racistas, porque, durante muito tempo, se-

quer admitiam jogadores negros no seu elenco. Claro, isso é passado. As cores do clube

são vermelho e branco. Eu não iria ser alvirrubro por essas razões. Tem o Sport Club do

Recife, que reúne pessoas do povo e da classe média; mas só as pessoas chatas e agres-

sivas. As cores são vermelho e preto. Claro, eu, que não sou chato nem agressivo, tam-

bém não seria rubro-negro. Finalmente, tem o Santa Cruz, cujas cores são vermelho,

preto e branco; é a nação tricolor. É a síntese dos dois clubes anteriores nas cores e na

torcida, porque tem as cores mais bonitas – a síntese; só tem as pessoas de bem do po-

vão, da classe média e da elite. Por isso, eu sou tricolor, com muito orgulho e paixão,

como você mesmo disse. A primeira vez que vi a camisa do Santa Cruz foi em Pesquei-

ra e eu achei linda, muito bonita. Mas não morria de paixão como torcedor. Lá, em Pa-

ris, conhecendo Edilnete, que era uma alvirrubra de quatro costados, demarquei logo

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meu espaço, declarando-me tricolor. A primeira vez que fui ao Arruda – naquele tempo

era um estádio mirrado, pequeno – foi em 1972, num clássico entre Santa e Náutico, e

Givanildo já jogava no time. O apelido dele era “Topogigio”, porque ele era aparentado

com aquele boneco da televisão dos anos setenta. Vi o Santa ganhar com um gol do

lateral Gena, que fez o gol sem querer. Mas vibrei muito. Quanto a Ricardo, fizemos um

pacto civilizado em casa, eu e Edilnete: ele escolheria, por ele mesmo, o time pelo qual

torceria. Eu fiquei na torcida pelo “santinha” e ela pelo “nautiquinho”. Ricardo balançou

na corda bamba, mas como o pai é o herói para o filho, decidiu-se pelo Santa. Após essa

decisão eu o levei várias vezes ao Arruda, já reformado, e ele ia mais para comer salsi-

cha e chupar picolé do que mesmo para torcer pelo time do coração. Hoje, não.

Hélio – Tio como está sendo para você estar realizando este trabalho da memória

da família? O que o levou a isso?

Antônio – Está sendo um trabalho por demais gratificante. A gente está voltando no

tempo, o tempo da recordação, da memória. Voltar no tempo significa fazer uma via-

gem. Como sói acontecer com as viagens, esta aqui é ao mesmo tempo prazerosa e de

muita responsabilidade. É difícil voltar ao passado e falar da sua memória sem que isso

não bula no afetivo. Por isso mesmo, a gente se emociona quando recorda. Cada uma

dessas pessoas que eu entrevisto - como vocês fazem aqui comigo –, eu as levo nessa

viagem e à possibilidade de interpelar a sua emoção. Repito, este trabalho está sendo

muito gratificante, porque vocês são a motivação dele. Eu confesso que não teria inicia-

do este trabalho se não tivesse sentido em vocês, quando de algumas viagens que eu fiz

aqui a São Paulo, o interesse pela história da família, pela memória dos momentos difí-

ceis que tiveram de superar, como aquela viagem de Madia para o Paraná. Recordo,

emocionado, que ouvi Anísio contar com detalhes a epopeia que foi essa viagem dela e,

mais ainda, o interesse de vocês em ouvir aquela história pontilhada de sofrimento, de

bravura e de esperança em dias melhores. Enquanto Anísio narrava a aventura, havia da

parte de vocês um respeito religioso, um silêncio religioso. E vocês são a terceira gera-

ção. Vocês são os filhos dos nossos filhos. Eu sonho que vocês transmitam essa memó-

ria aos filhos de vocês com o mesmo carinho que vocês a recebem de nós da segunda

geração. Por isso tudo, este trabalho está sendo algo extremamente gratificante, em que

pese ao ônus da tarefa, até certo ponto penoso. Cada vez mais, sinto o peso da responsa-

bilidade, porque acho que daqui deste ponto em que estamos não haverá mais volta. E

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sinto que a cruz está pesando e peço a ajuda de vocês porque não é fácil. Mas acho que

o que ficar como resultado deste trabalho será um marco indestrutível da nossa memó-

ria. Por isso mesmo, temos de registrá-la de duas maneiras: em texto e em imagens.

Marcelo – Tio, diante de todos esses dados que nos foram relatados aqui, em sua

entrevista, narrando sua viagem para a Europa, sua vida profissional e sua educa-

ção, que mensagem o senhor deixaria agora para o seu filho, sua nora, suas netas,

seus sobrinhos e primos?

Antônio – Minha mensagem é uma só. Nós somos movidos por sonhos e desejos. Tudo

o que eu consegui na minha vida é porque eu sonhei muito, para realizar talvez pouco.

Se não fossem meus sonhos de menino, lá em Sertânia, querendo ser padre; se não fos-

sem meus sonhos de estudante universitário, pretendendo fazer política estudantil; se

não fossem meus sonhos de brasileiro e nordestino de buscar na Europa a base sólida

de um conhecimento, buscando o aperfeiçoamento cultural e civilizatório; se, depois de

atingir todos esses objetivos, eu não tivesse sonhado fazer um doutorado, buscando o

coroamento de uma vida de estudos e de pesquisa, superando mil sacrifícios com a au-

sência de minha casa, de minha mulher e do meu filho, repito, se eu não tivesse tido

essa ousadia de sonhos e de desejos, eu não seria nada na vida. Ninguém será nada na

vida se não sonhar, se não desejar. Na hora em que a gente se recusa a desejar, a gente

se nega não apenas como cidadão, mas também como humanos que somos todos. Não

podemos deixar de sonhar. Somente os mesquinhos e pobres de espírito é que não so-

nham. E, digo mais: é preciso sonhar muito para realizar um pouco daquilo que se faz

com alegria e generosidade. Já que os sonhos e desejos são ilimitados, por que a gente

não pode sonhar nem que seja um pouco?

Marcelo – Gostaria de acrescentar algo ao seu depoimento que considera relevan-

te?

Antônio – Eu gostaria de registrar o meu agradecimento ante a receptividade e o cari-

nho que vocês tiveram neste trabalho da entrevista. Afinal, tudo isso implica reuniões,

seleção de perguntas, conchavos, estudo e pesquisa dos dados relevantes do entrevista-

do. Registro aqui para a posteridade que fui entrevistado por Cacareco, sobrinho queri-

do. Cacareco é o apelido carinhoso de Ezenildo, segundo filho do mano José e de Edite.

Ele foi o competente contrarregra de iluminação da sala, esta luminosidade que nos ilu-

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mina. Participou também ativamente da entrevista o Cláudio, meu sobrinho mais velho,

filho de Givaldo. Foi ele quem deu o pontapé inicial para que este trabalho de memória

acontecesse. E tem sido o incansável membro da família que vem trabalhando noutras

frentes de memória, como fichas de registro de nomes, de falecimentos e de árvore ge-

nealógica. Que os frutos apareçam, Cláudio. No aniversário dos oitenta anos da Madia,

ele provou que era possível fazer um registro da memória de uma família que não tem

vergonha de si mesma, porque é vitoriosa na vida e na felicidade. Muito obrigado,

Claudio, eu queria lhe agradecer46

. Muito obrigado, Cláudio, eu concordo inteiramente

com você47

. Não, foi um lindo testemunho, não há pelo que se desculpar. Eu gostaria de

dar continuidade a meus agradecimentos. Desta vez, é a William, que, antes de tudo,

disponibilizou o quarto dele para esta entrevista. Este quarto é o ninho dele e nunca vi o

quarto dele tão arrumado (risos). Zenildo montou este feixe de luz e, sem ele, a qualida-

de do vídeo talvez tivesse ficado comprometida. William ofereceu com grande compe-

tência a assessoria no processamento das imagens. Agradeço a Hélio por ter compareci-

do a esta entrevista depois ter feito mais de uma reunião para organizar esse roteiro de

questões, trazendo a contribuição dele. Hélio é filho de Anísio e é um dos sobrinhos de

46 Cláudio pede a palavra para dizer que essa ideia de resgatar a memória da família nasceu no dia do

sepultamento da vovó Verônica. “Após o sepultamento dela, nós da família, viemos aqui para o quintal da

casa do pai dele e organizamos um churrasco. Sentamos junto com o Anísio, o Toinho e o Hélio, que

também estava com a gente”. Naquele momento, ele começou a falar desse seu desejo de lidar com a

memória. Afirma ele: “Eu tenho uma pasta, onde eu guardo toda a documentação da família e aí não

inclui apenas a família dos Guilherme, com os bodoques que eu recebi do Zé Guilherme e a planta da

casa”. A pasta organizada por Cláudio nos é mostrada, e nela está escrito “Lampejos da Memória”. E

continua ele: “Quando acontece de alguém falecer, anoto a data, a filiação... Tudo isso porque as pessoas

vão partindo, e essa linda história da migração, das dificuldades, serve de lição e de lembranças para que

não haja esquecimento dessa bela luta da família. A família sempre se mostrou interessada, porque bata-

lhou muito. O depoimento que o senhor nos deu aqui é muito interessante. É preciso sonhar? É! Mas é

preciso batalhar para conseguir as coisas, como o senhor falou. Até para se conseguir realizar metade

desses sonhos é preciso trabalhar muito e enfrentar muitas adversidades. São as enchentes na casa, são

outras inúmeras dificuldades. Muitas vezes as pessoas passam por esses problemas e acham que somente

a vida delas é cheia deles. Não! Olhe para trás e verá que teve muita gente que sofreu o dobro de você.

Aquele agradecimento que o senhor fez a Zefinha Araújo, com aqueles reflexos na vida de todos os ir-

mãos, assim como seu exemplo de vida como professor e como estudante, isso refletiu em nós, em nossa

educação e certamente refletirá também na educação dos nossos filhos. Porque o tio Antônio sempre foi

um exemplo e, assim como a Zefinha Araújo está para vocês, da segunda geração, o tio Antônio está para

nós da terceira. O estudo e o exemplo se refletem na vida inteira. Este trabalho é um marco de lutas por

parte de pessoas que enfrentaram uma vida de luta, como a vó Madia, que é um exemplo de vida e sempre

bem-humorada. Ela tem todos os motivos do mundo para ser uma pessoa mal-humorada e, no entanto, é

sempre aquela alegria e disponibilidade. Tem gente que tem tudo e não consegue ser feliz”.

47 Cláudio: “Desculpe, foi só um desabafo”!

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primeira hora envolvido nesta aventura do resgate da memória da família. Lembro que,

naqueles momentos iniciais, mencionados por vocês há pouco, relembrando a família,

nós estávamos reagindo à morte dos que se foram, evitando cair no esquecimento, tor-

nando-os permanentemente presentes, e não tragados pelo passado. Naquele momento,

Hélio, eu lembro que você estava muito atento e prestava muita atenção ao que seu pai e

nós outros dizíamos. Você, inclusive, me incentivou a escrever aquilo que se falava ali

de viva voz. Marcelo, segundo estou sabendo, após a morte do Givaldo ele tem sido

muito presente. Principalmente no sentido de viabilizar todas as condições para a união

dos irmãos em torno da mãe e demonstrar o quanto se deve permanecer fiel ao bom e-

xemplo que Givaldo lhes deu. Tenho certeza de que amanhã você fará com a memória

de seu pai aos seus filhos o que nós aqui estamos fazendo para os nossos. Lá atrás, estou

vendo minha querida Débora, a filha de Virgínia e de Botinha, ela que trabalha em ban-

co, longe de casa, que sai para o trabalho bem cedinho e, até uma hora como esta (mais

de meia-noite) continua ali, paciente e firme. Veio participar da entrevista e colocar suas

questões muito importantes, como uma prova de muito apreço e carinho. Finalmente, a

distinta plateia composta de Isabel, esposa de Marcelo e da Tereza, viúva de Givaldo e

mãe destes três marmanjos. Vi e observei que, mesmo não tendo colocado nenhuma

pergunta, ficaram muito atentas e ouviram pacientemente o que tive a honra de ouvir e

responder. A vocês todos, agradeço a improvisação deste estúdio de gravação. Acho

mesmo que somente vocês seriam capazes de me propiciar esta alegria e me dar a honra

de ser entrevistado. Muito obrigado.

Marcelo – Nós é que agradecemos ao senhor por nos ter contado essas histórias

maravilhosas de sua vida e da vida da família.

Tereza – Foi bom conhecer um pouco mais sobre você, de sua vida, de Ricardo, da E-

dil, de todos vocês.

Cláudio – Em suma, obrigado pela franqueza (palmas).

Débora – Só para fechar aqui, oh! E nós provamos que somos mesmo sobrinhos da

Virgínia: bisbilhoteiros e fofoqueiros.

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Elias Jorge de Siqueira48

Antônio – Elias, você foi o primeiro dos nossos irmãos que nasceu no Moxóto per-

nambucano – cidade de Sertânia - o que lhe lembra essa história do Moxotó de

Pernambuco?

Elias – A única coisa que eu me lembro desse negócio do Moxotó é que pai falava que

quem nascia no Moxotó era preguiçoso. Eu não concordo com isso, porque, no nosso

caso, nós sempre cuidávamos do gado, íamos buscar de manhã cedo no roçado, ao mei-

o-dia íamos novamente buscar para dar água; nós estudávamos, eu e Valdeci; e quando

chegávamos da escola, a primeira coisa que fazíamos era buscar o gado para dar água.

Antônio – Além desse trabalho de lidar com o gado, o que vocês faziam?

48 Entrevista com Elias Jorge de Siqueira, em São Paulo (Jardim Adutora), esposo de Doralice Alexandre

de Siqueira (Dora), feita em data de 11 de setembro de 2009. Pai de Eduardo e Luciana. Elias Jorge nas-

ceu no dia 25 de abril de 1945 e veio a falecer em outubro de 2011.

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Elias – Olha, depois disso aí a gente ia caçar, matar passarinho, e eu, como era mais

velho do que o Valdeci, sempre me preocupava em ir atrás do gado; e o Valdeci, já na-

quele tempo, era muito safado e não se preocupava em ir atrás do gado nem de nada. E

outra coisa, quando a gente chegava à porteira e via o gado ou as ovelhas, concluía que

quem estivesse na porteira estava com sede e o resto que não estivesse a gente não ia

buscar coisa nenhuma. Portanto, quem não estava com sede não estava com nada. quele

gado que estava na porteira a gente levava pra beber água lá nos poços do Moxotó.

Antônio – E vocês, além de caçar e de matar passarinhos, de que brincavam?

Elias – De vez em quando, a gente jogava uma bola de meia (rindo). Eu lembro muito

bem que, uma vez, fizemos uma bola e, na hora de chutar, chutei uma pedra. Meu ami-

go, a cabeça do dedo foi pro saco!

Antônio – E pai, ele não se opunha a esse tipo de brincadeira?

Elias - Não, o que ele detestava era uma peteca, também conhecida como estilingue,

que lá chamava-se de “baleadeira” ou mesmo “baleeira” . Não gostava mesmo. Mas era

uma diversão, não? Era eu, Valdeci e o Givaldo (Geová).

Antônio – Além dos meninos da Madia, com quais outros vocês se relacionavam?

Elias – Eram o Geová, o Severino (Liro) e depois vem Bia, de Valdevino, e o Caria

(Zacarias). Essa era a turminha dos vizinhos, ali. Não tínhamos mais outros vizinhos.

Antônio – Então, era cuidar do gado, caçar passarinho, um joguinho de bola aqui e

ali... Você lembra alguma trela que vocês praticaram como meninos?

Elias – Lembro uma vez, do velho Chico Félix, aquele f.d.p., onde nós, às vezes, pegá-

vamos goiaba dele. Ele acusou a gente de ter subido no pé de goiaba dele. Avisou a pai

que nós tínhamos entrado no roçado dele e, subindo nos pés de goiabas dele, tínhamos

feito o maior estrago, comido e descascado as goiabas... Por conta disso, pai me deu

uma surra grande. Valdeci, não. Motivado por isso, Luiz Gomes, sabendo do aconteci-

do, ficou a nosso favor. E Paulo Felipe ficou tão revoltado que queria matar o pé de

goiaba. Manoel então aconselhou não fazer mais aquilo, dizendo ele que, no final, se

matássemos o pé de goiaba, terminariam por saber que fomos nós. Terminamos deixan-

do os pés de goiaba pra lá e ficou nisso mesmo. O tempo foi passando, pá, pá, pá... Chi-

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co Felix ficou doente e Anísio teve que ir tirar o leite das vacas dele. A velha Neném,

esposa de Chico Félix, disse para o velho ir verificar se o Anísio não estava bebendo o

leite (rindo...). Acontece que eu escutei o papo da velha e fui direto contar pro Anísio.

O Anísio virou e derramou o balde de leite, foi embora e ficou por isso mesmo. O ve-

lho, que já estava com o pressentimento de que a gente roubava as goiabas, acreditou na

conversa da velha de que agora o Anísio estava também bebendo o leite que ele tirava

das vacas.

Antônio – Você lembra alguma presepada de Valdeci?

Elias – Não, de Valdeci, não. Aliás, lembro só que, uma vez, eu e o Geová fomos bus-

car uma lata d’água lá num barreiro de José Antônio e, na volta, Geová acertou a lata

com uma pedra de “baleadeira” e furou a lata d’água, terminando por derramar toda a

água pelo furo da lata. Madia, então, chegou e disse: “Mas quem foi que fez essa des-

graça?” E o Givaldo ficou todo calado... Essas eram as presepadas de moleques, nós

éramos todos moleques.

Antônio – Elias, você lembra a escola da professora Dona Zefinha? Você estudou

nela?

Elias – Estudei! Lembro que todo final de ano tinha lá aquele negócio de fazer umas

perguntas...

Antônio – O “Argumento”.

Elias, - Exatamente, “Argumento”. O Anísio era bom em matemática. Faziam aquela

roda de meninos, e ele era doido para bater de palmatória em todo mundo. Numa dessas

vezes, o Severino (Juca), nosso irmão já falecido, não quis entrar no “Argumento”. D.

Zefinha, então, anotou num caderno que ele se recusara a participar da tarefa e mandou

para pai. O Severino, então, no meio do caminho para casa, pegou o caderno, rasgou em

quatro pedaços e jogou em cima de uma cerca de aveloz que tinha perto da escola (rin-

do muito). E o Anísio ficou doido, porque o que ele queria mesmo era bater com a pal-

matória em todo mundo. Ela sabia mesmo.

Antônio – Como era Dona Zefinha?

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Elias – Era braba. Era muito severa. Chegava e intimava mesmo para se fazer as coisas

dentro do certo. Era rigorosa nesse tipo de coisa. E, outra coisa, eu lembro que você,

mesmo quando estudava pra padre, com o fim da escola lá no sítio, nós fomos estudar

em Sertânia. Você chegou e fez umas perguntas, escreveu um negócio de religião cató-

lica e eu respondi. Você, então, disse que nós já podíamos entrar na segunda série. Aí,

então, fomos eu e o Valdeci estudar em Sertânia. Valdeci tinha jeito de bobo, eu o cha-

mava de bobo. É que ele nem sempre gravava muito as coisas, não estava nem aí... Eu é

que chamava a atenção para as coisas. Nós entramos, então, para o ginásio. O tempo foi

passando, nós estudando, um ano, dois anos... A escola era... Grupo Escolar Jorge Me-

nezes, onde nós ficamos lá estudando. Depois, no final do ano, nós entramos no Ginásio

Olavo Bilac, onde ficamos dois anos, eu e ele. Nós íamos a pé. Depois passamos a ir de

jegue (rindo...). Nós tínhamos um jegue que pai tinha botado o nome dele de “Muafo”.

Íamos no jegue e o deixávamos lá na padaria de Zezinho Moraes. Nós deixávamos o

jegue e, de lá, subíamos e íamos para a escola. Com o passar do tempo, deixamos o je-

gue pra trás e compramos uma bicicleta a José Antônio. Aí nós já estávamos bem, ía-

mos de bicicleta, tal, beleza pura. Fizemos o ginásio, e a partir daí pai passou a pagar

uma escola particular. Aí já era o curso de admissão, um negócio mais para frente. Era a

escola de Dona Zila, a mulher do Ziro. Ela era funcionária do Correio. E aí o tempo

passou, acabou e tal... E, então, nós viemos para São Paulo.

Antônio – E a história de um saco de açúcar?

Elias – Ah, sim! No caminho de casa para a escola em Sertânia, passou por nós, na es-

trada, um caminhão carregado de açúcar e tinha um saco dependurado de um lado da

carga. Caiu o saco de açúcar. A gente, que vinha de jegue, pegamos o saco de açúcar,

botamos em cima do jerico... E tome pra casa. Nessa época, mãe estava aqui em São

Paulo. Ela veio fazer uns exames. Quem ficou lá foi eu, Valdeci, Conceição e pai. Ele

viu a gente chegar com o saco de açúcar e disse: pronto, vocês agora podem comer açú-

car à vontade... A gente tinha um cachorro, e o nome dele era “Parrudo”. Todas as vezes

que nós vínhamos da escola, à noite, “Parrudo” vinha nos encontrar, com uma alegria

danada. Aí o tempo passou e nós viemos para São Paulo. Esse foi o passado nosso, meu

e do Valdeci, no período em que nós éramos pequenos. Você estudava, na época; estu-

dava no Rio Grande do Sul. Antes, você estudava em Pesqueira, depois em João Pessoa,

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depois foi pra Viamão, no Rio Grande do Sul e, depois para a Europa, na Suíça, onde

passou cinco anos e meio.

Antônio – Gostaria que você falasse das lembranças de sua convivência com os

demais irmãos e irmãs...

Elias – Olha, eu lembro bem que a Virgínia trabalhava em Sertânia com Genival Farias;

trabalhou também com Severino, irmão da Enedina. Depois ela veio embora para São

Paulo com o Juca (Severino). Ficamos eu, Valdeci e Conceição. Ela foi a última que

veio, antes de nós, para São Paulo. O Manuel ficou um tempão no sítio, casou, ficou

outro tempão, depois veio para São Paulo, mas só passou um ano e pouco em São Pau-

lo. Voltou para o Nordeste, onde permaneceu até falecer. O Barbeiro (José) veio junto

com Severino e o Anísio. O Severino veio um tempo para São Paulo, voltou para o

Nordeste, casou, veio novamente para São Paulo, depois voltou de novo pra lá. Nessa

época, eu estava lá sozinho, porque o Valdeci tinha vindo para São Paulo. Em seguida,

veio o Juca, veio o Anísio e eu estava lá. Na época que o Anísio esteve lá, no Nordeste,

na última vez, ele botou comigo o negócio de uma olaria, que não deu certo. Foi nessa

época que eu comecei a namorar a Dora.

Antônio – O que você se lembra do relacionamento de pai e de mãe com vocês? Os

dois eram iguais ou diferentes? Em quê?

Elias – Pai sempre foi bruto. Era algo assim como um carrancismo. Tudo tinha que ser

daquele modo que ele queria e porque ele queria. Quando ele via a gente com certas

brincadeiras, ele ficava “muito macho”. Com mãe, ele sempre foi muito bruto. Eu lem-

bro bem que um dia mãe foi fazer um exame de vista em Campina Grande, e ele foi

junto com ela. Ficamos em casa eu e o Manoel. O Manoel, aliás, mesmo depois de ca-

sado sempre ficava lá em casa direto. Amanhecia o dia e Manoel chegava lá em casa e

só saía pra casa dele de noite. Zé Preto ficava lá em casa direto. Mãe, então, dividia o

que ela tinha com eles. Nós tirávamos leite, fazia-se um queijinho; mãe vendia, ia para

Sertânia com Zé Preto, no ônibus da empresa Realeza. No sábado, fazia as compras da

feira e dividia com Manoel. Eu lembro bem disso aí. Ela e a Virgínia trabalharam muito

costurando aquelas roupas de “carregação”. Virgínia costurou muito. Fazia negócio de

“carregação” para Zé Vicente. Eu era moleque e lembro muito bem, eu e o Valdeci. E

você estudando. Pai, aliás, deu muito apoio para você e o Juca. Dos irmãos, foi quem

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mais pai ajudou. Eu lembro muito bem que pai comprou dez garrotes magros, engor-

dou-os, viraram boi, touros; pai vendeu e deu um carro pro Juca. Comprou um Mave-

rick, um carro velho, e deu pro Juca. Eu lembro bem daquele pacote de notas, embru-

lhado em papel de jornal... Ele ajudou. O tempo foi passando, não é, Antonio?

Antônio – Então, você considera que ele ajudou muito mais ao Juca e a mim do

que aos demais irmãos?

Elias – Exato. Não dizer assim, nós éramos os caçulas. Mas, para Manoel, José e Anísio

ele ajudava assim... Mas ele deu mais importância... (filmagem interrompida por moti-

vos alheios à nossa vontade).

Antônio – Voltando às suas lembranças, você considera que mãe era mais doce na

sua relação com os filhos e filhas e, ao seu modo, ela conseguia equilibrar um pou-

co o temperamento de pai?

Elias – Exatamente! Ah, sim! Voltando àquela consulta que ela foi fazer em companhia

dele em Campina Grande, ela fez a consulta, tirou os óculos etc. Aí, lá em casa, depois

da janta, estava eu, Manoel - ele todo dia jantava lá em casa, à noite -, Anísio... Sei lá,

eles tiveram uma discussão e pai pegou os óculos e quebrou, pisando em cima. O Ma-

noel se intrometeu, e então eu cheguei junto e falei, falei certo, que ele não devia ter

feito aquilo, tal, tal, tal... Ele também ficou quieto. Eu disse: “Mãe fez um exame, o se-

nhor pagou sem discutir. Aí o senhor quebra os óculos, mãe fica sem eles, e agora?”

Também ele ficou quieto e não falou mais nada. Mãe também falou umas coisas lá... eu

lembro isso como se fosse agora. Fiquei chateado. Aí passou...

Antônio – Você lembra a história do casamento de Flora, quando Zeca roubou

Flora para casar?

Elias – Eu escutei. Eu era pequeno e escutei, só. Não recordo de nada disso aí nem lem-

bro quando Flora saiu, muito menos se ela namorava, nem com quem namorava. Eu

lembro, sim, da Virgínia, que namorava o Manoel, de José Antônio. Também disso não

lembro nada do final. Lembro quando se reuniram Anísio, Virgínia, Duda e Zé Filipe

com o intuito de vir para São Paulo - isso foi em 1958. Ainda em 1957, o Anísio botou

um roçado, viu? Quando eu era moleque, lembro que tinha a casa de Dona Joana, que

era a mãe de Zeca. A gente estava lá, eu, Valdeci e Givaldo, fazendo uma peteca (est i-

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lingue) e Zé Guilherme chegou lá e cortou as borrachas das petecas. Aí nós “ficamos

macho”. Outra coisa também que eu lembro quando era moleque é que Liro um dia bo-

tou fogo ali pertinho da casa de Zeca, de Dona Joana. Eu cheguei de noite, e lembro que

Manoel, de Zé Antônio, estava lá em casa. Pai, então, disse que nós tínhamos botado

fogo. Eu falei que não havia sido nós que botamos fogo no capim. Ele bateu a perna,

dizendo que tinha sido nós. Nessa hora, Liro ouviu a questão e disse prá pai: “Seu José,

quem botou fogo lá no capim foi eu”. Outra vez - foi a última que ele me bateu -, eu e o

Valdeci pegamos uma briga na cozinha. Ele chegou, me pegou e deu uma surra conde-

nada. O fato é que eu apanhei; eu e o Valdeci, ele bateu em nós dois. No dia seguinte,

amanheceu o dia - ele estava tomando café, - eu disse: “Pai é a última vez que o senhor

me bateu. Daqui pra frente, se o senhor me bater, eu vou embora de casa”. E ele reagiu;

“Cabra safado, você está me desafiando?” Eu disse: “Estou falando a verdade”. Tam-

bém, a partir desse dia foi a última vez que ele me bateu.

Antônio – Quando pai aplicava essas surras, qual era a reação de mãe vendo aqui-

lo tudo?

Elias – Mãe não aprovava nem gostava daquilo (emociona-se).

Antônio – Caso você concorde, vamos encerrar este capítulo de memórias das mo-

lecadas de Sertânia. Vamos agora falar de sua relação com Doralice. Quando e

onde você a conheceu?

Elias – Foi em Sertânia, aliás, em Pernambuquinho, num sítiozinho de José Laurindo.

Num casamento lá, que fomos eu, Manoel, Bia - filho do velho Valdevino -, Antônio

Feliciano. Nós fomos num jipe alugado. Chegamos lá e tal, não é? À noite, depois do

casamento, começou um forró. Eu gostava de forró, não sabia dançar nada. Nessas ho-

ras, o Manoel dizia: “Aprende, f.d.p!” (rindo muito). Nessa época, Manoel tomava uma

cachaça da bexiga! Chegamos lá, começamos a tomar umas pingas, introduziram um

“chapéu” e todo mundo ficou cheio das cachaças. O motorista do jipe, Ziro, veio nos

buscar pra nos levar... (interrupção momentânea da filmagem por motivos alheios a

nossa vontade). Aí, eu e Dora ficamos, continuamos nos namorando mais ou menos um

ano - isso era em junho de 1966 -, todos os finais de semana; todo sábado e domingo, a

gente se via. Ela era professora, lá no Sítio Catolé, na Paraíba, perto de Pernambuqui-

nho. Lá no Nordeste, eu sentia que não tinha futuro nenhum, nada, nem de profissão,

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nada. Terminei por acabar o namoro. Aliás, vim aqui para São Paulo. Passei um tempo

sem arranjar nada de emprego e depois achei que não fazia sentido continuar namoran-

do e acabei o namoro. Depois, ela veio aqui para São Paulo, nós nos encontramos de

novo, começamos novamente a namorar e terminamos casando.

Antônio – Gostaria, agora, de saber quando e como foi a sua decisão de deixar o

Nordeste e migrar para São Paulo?

Elias – Tanto eu quanto o Valdeci, nós já tínhamos tido a experiência de viver em São

Paulo. Eu mesmo, inicialmente, vim para São Paulo com doze anos de idade. Vou con-

tar isso. Eu estava terminando o segundo ano ginasial, e pai teve a ideia de nos mandar

para São Paulo. Obviamente que nós viemos contando com a Flora, que morava com

Zeca na Vila Carioca. Nessa mesma época, o Valdeci foi morar com a Virgínia e a Con-

ceição, que já estavam aqui. Ficaram os três morando lá na casa deles. Eu vim morar na

Vila Ema, com o Anísio. Isso foi em 1959-1960... O Anísio casou em 1959... É, ele ca-

sou lá em casa, em 1959. Ele já morava em São Paulo, na Vila Ema, e eu então vim

morar na casa do Anísio. Aí fiquei na casa do Anísio. A partir daí, continuei a estudar,

fiz curso de desenho. Nesse tempo, a Flora saiu da Vila Carioca e, como tinha comprado

um terreno na Vila Ema, veio morar nela. Eu então passei a morar com a Flora. Aliás,

eu estou antecipando as coisas. Antes de casar... (rememora) Olha, eu morei na Vila

Ema, com a Flora, juntamente com o Geová e, a partir daí, é que eu voltei para o Nor-

deste. Depois, então, que eu fui para o Norte é que comecei a namorar a Dora. Veja que

eu fiz uma antecipação da história que estou lhe contando.

Antônio – Então, você vem para São Paulo, mora na Vila Ema com Anísio e depois

com Flora, faz curso de desenho, volta para o Nordeste... E o trabalho, quando

começou a trabalhar aqui em São Paulo?

Elias – Aqui em São Paulo, eu fiz o curso de soldador no SENAI. Nessas alturas, quan-

do eu entrei no SENAI já estava namorando Dora. Esse curso foi muito bom e impor-

tante. Através dele eu arrumei uma profissão, arrumei emprego em São Caetano, casei,

comprei um terreno aqui, onde moro até hoje. Saí da firma em São Caetano e arrumei

emprego em outra, em Diadema. Ao casar, fiquei morando ao lado da casa do Anísio

durante sete anos. Depois, como já tinha comprado um terreno, construí aqui. Em Dia-

dema, arrumei outra firma, saí dela e arrumei mais outra em São Bernardo, onde traba-

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lhei durante onze anos e terminei me aposentando. O nome das firmas era HETERA, a

TOPEMA e a APV, de onde saí aposentado, em 1994.

Antônio – Fale agora um pouco dos seus filhos...

Elias – A Luciana e o Eduardo nasceram quando eu morava na Vila Ema. Ela nasceu

em 1974, e o Eduardo em 1976. A Luciana teve um caso aí com um cara e arranjou uma

filha, que é a minha neta e que mora comigo hoje. Arranjou outro namorado e também

não deu certo; terminou arranjando outro namorado e casou; hoje, é casada. O Eduardo

casou; mora comigo e... Estamos aí. O Eduardo trabalha, aliás, ele trabalhou numas fir-

mas aí e foi mandado embora, trabalhou nas Pernambucanas. Já arrumou outro trabalho

e vai começar na segunda-feira. A firma fica localizada em Guarulhos. A Luciana com o

esposo estão parados; estão entregando currículos e correndo atrás de trabalho.

Antônio – Elias, aqui em São Paulo vocês tiveram um apoio muito grande de Flora

e de Zeca, não?

Elias – Muito! A Flora, tanto para mim quanto para os meus irmãos - você sabe muito

bem disso -, sempre tomou a linha de frente. Quando ela via que o negócio estava erra-

do, ela chegava e metia a boca. E ai daquele que não aceitasse o conselho dela. Era igual

a pai e mãe. Sempre apoiava, agora tinha uma coisa: não pisasse em cima da bola - você

sabe muito bem! A Virgínia apoiou e ajudou meio mundo de nossos irmãos. A Concei-

ção casou com Laurindo, que, infelizmente, faleceu muito cedo. É outra batalhadora.

Tem as filhas, mora lá na Vila das Mercês. Vive uma vida difícil, pois as meninas não

casaram; uma delas também viveu uma aventura, teve um filho... É uma batalhadora.

Está sobrevivendo com muita dificuldade com a pequena aposentadoria dela. A Virgí-

nia, sabe como é que é, aquele negócio dela. Têm as meninas, a Débora e a Rosângela

que não casam e já faz tanto tempo que Rosângela namora... Comprou uma bela casa,

reformou e no ano que vem promete se casar. A Débora se formou, não teve auxílio de

nada e trabalha hoje no banco, e acho que é o sustento da casa. O Aldir, nós conhece-

mos muito bem como ele é. Senhor Anísio, como dizia Seu Valdevino, está lá no Mato

Grosso do Sul do jeito que ele quer, não é? Tem muita coisa pra pescar, pra caçar, as

cobras comendo os cachorros dele. Ele que se cuide, porque o IBAMA também está na

parada, sabe como é que é... Ele tem tudo o que quer por lá. Tem uma aposentadoria

boa, a nega também é aposentada, recebe o salário dela. Estão aí, tocando o barco. O

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Juca, coitado, infelizmente faleceu, cavou muito. A mulher mora hoje lá pro lado de

Batatais, no interior paulista. Os filhos vão levando como podem. A Sônia teve o mari-

do assassinado de bobeira. O José, coitado, faleceu. É assim a vida, Antônio.

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Valdeci Jorge de Siqueira49

Antônio – Valdeci, fale sobre as suas lembranças de infância...

Valdeci – Pois é, professor! O que eu gostaria de lembrar sobre a minha infância, desde

criança e desde quando eu me lembre, é o seguinte: na minha infância, quem convivia

mais de perto comigo era o Elias, o Givaldo, enfim, os meninos de Zé Guilherme; aque-

les que foram se tornando rapazinhos, mocinhos e por aí começou a nossa vida, a nossa

infância, a nossa temporada. Veja bem, eu lembro que a gente estudava aqui com a

49 Valdeci Jorge Siqueira, nascido aos 20 de janeiro de 1947. Casado com Rejane Cavalcante, é pai de

Wagner, Sandreane e Luciana. Entrevista feita aos 12 de maio de 2009, em Sertânia, na Fazenda Santa

Luzia, herança da família, onde reside.

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Dona Zefinha, aliás, eu não, vocês. Efetivamente, eu comecei na escola do São Francis-

co, a escola de Dona Izaura, esposa de Seu Lino. Para a escola, daqui saia eu, Elias, o

filho do finado Amaro, Suely, de Chico Félix, enfim, as meninas de Zé Antônio: Edite e

aquela outra, que eu agora esqueço o nome dela... Edileuza! Então, durante uns certos

anos nós estudamos no São Francisco. A gente ia para a escola na parte da manhã, e

depois, na parte da tarde, a gente cuidava das ovelhas, que geralmente ficavam aos cui-

dados meus e do Elias, sem esquecer que contávamos também com a ajuda do Givaldo

e dos meninos de Zé Guilherme. Então, foi assim que levamos aquela vida até à idade

de doze anos, mais ou menos, onze, dez anos... Estudamos mais um certo tempo com

João Cabral [aponta para a frente], depois a gente foi estudar em Sertânia, começando

no Jorge Menezes e, depois, fomos para o colégio Olavo Bilac, onde cursamos até a

segunda série. Mas, enquanto isso, a Madia já tinha ido embora para São Paulo, e a gen-

te não contava mais com a companhia do Givaldo e dos meninos. Então, eu e o Elias

ficamos sós aqui. Durante esse tempo de infância, o que eu lembro bem é aquela amiza-

de que a gente tinha como criança com os meninos Severino, Liro, que passaram aque-

les tempos todos com a gente. Isso com a idade de até quatorze ou quinze anos. A partir

daí, nós fomos para São Paulo, eu e o Elias. Pai resolveu... não sei! Acho que foi a Flora

que pediu que a gente fosse para São Paulo e, então, a gente teve essa chance de viajar

para São Paulo. Saímos daqui e fomos para a casa dela. Só que, aqui, ficaram apenas

pai, mãe e Manoel. Passei aqueles anos todos em São Paulo, de 1962 a 1970. Nesse en-

tretempo, saí da firma, depois fui para o Exército, onde passei mais de um ano, depois

voltei para a mesma firma, fiz um acordo. Nessa firma, comecei trabalhando em “servi-

ços gerais”, e como a firma tinha umas maquininhas que selecionavam a qualificação de

alguns operários, então passei a trabalhar naquelas máquinas. Mas aquilo não represen-

tava um meio de conseguir uma profissão. É tanto que, como trabalhador em São Paulo,

eu não tive a chance de me firmar numa profissão. Não trabalharia em firmas se não

tivesse feito um curso. Você bem sabe que, em São Paulo, as pessoas começavam a tra-

balhar numa firma e, depois, se tornavam profissionais sem nunca ter estudado numa

escola. Eu fiz um curso, de dois anos, de mecânica de automóvel e, a partir daí, e com

essa pequena experiência, eu passei a ter a possibilidade de dirigir um carro; isso me

despertou muito. Fiquei praticamente uns dois anos, dois anos e meio, com a Virgínia,

vendendo roupa lá no Paraná. Em seguida, voltei para São Paulo, lá nos idos dos anos

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setenta. Foi em seguida que vim aqui ao Nordeste fazer uma visitinha a pai e a mãe,

pois já fazia praticamente oito anos que eu vivia fora daqui. Então, vim para cá.

Antônio – Você, em São Paulo, teve a experiência de servir ao Exército. Acho

mesmo que foi o único da família a ter servido ao Exército. Fale dessa sua experi-

ência de quartel...

Valdeci – O que eu guardo desse pouco tempo em que servi no Exército é que ele é uma

boa escola, sabe? No Exercito, se ensina de tudo, e o cara aprende de tudo, digo: dentro

das possibilidades e do interesse de cada um. Se, por exemplo, ele tiver um certo conhe-

cimento, é claro que, no futuro, vai adquirir uma certa posição, não é isso, professor? E

aquele que não tem, ele sai como soldado mas, de qualquer maneira, tendo a sua reser-

vista de primeira categoria. Isso dentro do conhecimento e do comportamento de cada

um que fique lá um ano e saia na primeira baixa. Ai eu, voltando a São Paulo, tive a

oportunidade de adquirir conhecimento em relação à vivência e convivência em São

Paulo, na vida com todo mundo, não é? Durante o tempo que eu passei no Exército,

observava que eles exploravam a capacidade de cada um daqueles que ali serviam. Foi

aí que eu levei ao conhecimento deles que, além do bom comportamento que eu tive, eu

possuía uma capacidade de atirador. Em função disso, eu passei a competir com outros

que também tinham a função de atirador e passei a me destacar. Essa foi uma graduação

que eu tive durante o tempo em que servi ao Exército. Sempre tive um bom comporta-

mento, nunca pratiquei coisas que não deveria. Saí na primeira baixa, e tudo bem. Sain-

do do Exército, voltei à firma e, como já falei, fiz um acordo, recebi um dinheirinho que

serviu de capital inicial para, juntamente com a Virgínia, tornar-me feirante em São

Paulo. O Elias fez um curso de mecânica, no SENAI, coisa que eu não fiz. Cursei algo

ligado à profissão de automóvel. O Elias é que teve a chance de fazer um curso que lhe

deu uma especialização profissional que hoje é a garantia da sobrevivência dele. Isso ele

deve ao curso que fez no SENAI. Nesses oito anos em que vivi em São Paulo, a gente

passeou muito, se divertiu muito, porque lá era o centro da família e, foi muito bom.

Depois disso, eu vim embora e, aqui chegando, só tinha pai, só tinha mãe, os dois já

com uma certa idade, você sabe. “Seu Manoel”, dono de casa, morando na casinha de-

le... Então, eu fiquei porque não tinha mais condições de voltar para São Paulo ausen-

tando-me de pai e mãe. Fiquei aqui setenta e um, setenta e dois; no final de setenta e

dois, pai adoeceu. Fez uma cirurgia de hérnia, em Arcoverde, e chegou a melhorar da

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hérnia. Mas, não foi o suficiente para garantir a saúde e sobrevivência dele, não é pro-

fessor?! Por trás de tudo aquilo, ele tinha um outro incômodo que o fez sofrer, sofreu

dois a três meses, um sofrimento muito grande até que veio a falecer. Então, eu fiquei

com mãe, depois a Flora veio aqui e levou mãe para São Paulo; ela ficou aquela época

em São Paulo, depois voltou, voltou de novo para São Paulo, e eu fiquei em definitivo.

Antes da primeira ida de mãe, eu conheci a Dona Rejane. Começamos a namorar e pas-

samos três, não, quatro anos e foi quando em pensei em me casar. Casei-me, mãe foi

para São Paulo. Nós ficamos aqui, e depois nasceu o primeiro filho, Wagner, depois de

dois anos de casados, não é mesmo, Dona Rejane? Depois, veio a Sandreane e, depois,

veio Luciane. São três os filhos. Bem, enquanto isso, depois que pai faleceu e fizemos o

inventário da propriedade, eu pensei em encontrar mais um meio de vida para nós a-

companhar aquilo que já vínhamos tendo na agricultura e criando uns bichinhos e tal...

Foi quando comprei o meu primeiro tratorzinho. Comprei o primeiro trator, e aquilo foi

muito bom porque, naquela época, a gente pôde plantar mais, produzir mais, não é? É

tanto que, até hoje, ainda tenho o trator, que está com trinta e tantos anos, e o tratorzi-

nho ainda continua do lado, sabe, professor! Portanto, essa é a história minha, aqui, du-

rante todo o tempo que estive aqui e não me arrependo. Continuo morando aqui, preten-

do morar ainda, não é? Só que, agora, nós sabemos que foi embora parte da família:

faleceu pai, faleceu mãe, nossa irmã Flora, Severino, José, Manoel, Marlene, Zé Preto,

Chico, Edilnete, enfim, diminuiu muito a nossa família. Mas, eu continuo aqui, rece-

bendo alguém que vem de São Paulo, que vem passear, inclusive o professor, que sem-

pre está aqui junto com a gente. Vivemos criando galinhas, tipo essas que estão aqui

cantando. Enfim, professor, é a vida. Finalmente, queria deixar isso claro, como um

retrato de minha infância.

Antônio – Gostaria que você falasse da sua convivência com os irmãos, o dia-a-dia

de vocês, as brincadeiras, as caçadas, a diversão, o passa-tempo...

Valdeci – Veja bem, o costume sertanejo com relação a caçar no mato, geralmente, a

gente aprende com os da família. Os nossos pais e os nossos irmãos é que passaram isso

para a gente. Eu cacei muito pouco, aqui. No entanto, pai, Manoel, o Anísio e o Barbei-

ro, na época em que eles viviam aqui, eles sempre caçavam. O Barbeiro, por exemplo,

era especialista em caçar com cachorro. Todo e qualquer cachorro para ele tornava-se

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um cão de raça. Ele tinha assim uma espécie de jeito, de ímã, que fazia com que o ca-

chorro se adaptasse a ele muito bem como caçador.

Antônio – Acho até que ele, Barbeiro, herdou esta qualidade do nosso tio Pedro,

irmão de nosso pai.

Valdeci - Exatamente, o tio Pedro era especialista nessa técnica desportiva. O “Senhor

Anísio”, [era assim que um vizinho nosso de Santa Luzia, seu Valdevino, referia-se

a Anísio e, mais tarde, essa expressão foi adotada por Givaldo] na época em que a

gente era solteiro, era pescador e um grande caçador. Caçava de espingarda e gostava

muito de pescar. É tanto que, quando ele se foi ao Mato Grosso do Sul, ele já levava a

profissão de pescador e caçador como certa. Isso ele não aprendeu lá em São Paulo,

nem no Mato Grosso. Ele já levou daqui as experiências que ele tinha no mato, caçando,

a noite, de espingarda, matando as coisas de noite, como a paca, por exemplo. E na pes-

caria ele pôde pescar muitos peixes naqueles grandes rios de São Paulo e do Mato Gros-

so. É tanto que hoje ele se encontra lá, no Mato Grosso, invadindo as águas daquele

Paranazão. O Manoel caçava muito, mas de espingarda, tá entendendo? O Elias, aliás,

eu tive uma infância brilhante com o Elias, aqui, na nossa fazenda, como também com o

Givaldo. No período em que Givaldo morava aqui, a gente brincou muito por esses al-

tos, a gente tirou muito mel de abelha de “inxu”, e isso ficou como uma infância muito

boa, sabe? Uma infância que a gente nunca esquece, não é?

Antônio – Essa longa experiência de cuidar sozinho da fazenda, ao lado da compa-

nhia do Manoel, lhe marcou muito?

Valdeci – É, depois de tudo isso aí, mãe terminou indo para São Paulo e ficamos eu e o

Manoel. E o professor lá no Recife. Seu Manoel ficava aqui com a gente e tomava conta

do gado, naquele período em que eu me ausentava para trabalhar no trator com Zé Pre-

to, fazendo aração de terras dos vizinhos. Na época da colheita, era a mesma coisa, fazí-

amos a colheita na região e passamos o tempo levando a vida assim. Depois disso, foi

quando Seu Manoel adoeceu, dois anos atrás. A partir daí, ele não permaneceu mais

junto da gente e terminou falecendo, seguindo-se da morte de Zé Preto, de Chico e, ago-

ra, com a doença grave de Anísia, em São Paulo. Ou seja, a Fazenda Santa Luzia, além

dos nossos pais, perdeu o seu mastro. Mas, a vida continua e nós não podemos dispor da

convivência com todos para sempre...

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Antônio – Você recorda de alguma aventura do tempo de escola, em Sertânia, onde

você e Elias estudavam?

Valdecí – Ah, sim! No tempo em que eu e o Elias estudávamos em Sertânia, nós íamos

para a escola em lombo de jumento. Certa vez, voltando para casa, deparamos com um

volume na estrada. E descobrimos que aquilo era um saco de açúcar que teria caído da

carga de um caminhão. Tivemos uma certa dificuldade de colocá-lo na lua da sela. Mas

encontramos um jeitinho, colocamos em cima e trouxemos o saco de açúcar para casa.

Aqui chegando, pai e mãe ficaram muito alegres com a quantidade de açúcar e eu lem-

bro que pai disse o seguinte: a partir daquele dia, nós teríamos toda liberdade em fazer

garapa, pois havia muito açúcar, Isso tudo são coisas que a gente não esquece e ficou

marcado na nossa lembrança de menino.

Antônio – Quando você estava no Sul, houve um acidente com você em Paranaguá,

não?

Valdeci – Nessa época, eu vendia roupa com a Virgínia em Paranaguá e, no dia 25 de

dezembro de 1967, não esqueço mais essa data, eu, junto com o Branco, um sobrinho do

Zéca, que tinha uma venda, fomos a uma cidade próxima buscar uma provisão de bebi-

das. Não tivemos muita sorte, porque, no caminho, sofremos uma virada da caminhone-

te. Nessa virada, eu fui parar no barranco da estrada, lá embaixo. E, com isso aí, eu qua-

se que ia, quase morri, não é? Levei uma pancada na cabeça, sangrou muito, e eu fiquei

desacordado por uns tempos. Mas fui recuperando devagarzinho e melhorei. Falando

em acidente, lembrei de um que, recentemente, aconteceu comigo aqui, nesta BR-110.

Outro acidente, e esse foi horrível. No Paraná, o acidente foi com uma caminhonete, e

aqui foi com uma carreta que transportava milho do Paraná; eu acredito que era do Pa-

raná. Como você vê, o Paraná nunca me esqueceu. Há uns quatro anos, a gente saiu para

fazer uma caminhada, não foi, Rejane? Eu sempre fazia umas caminhadas. Acordei ce-

do, vesti um short e fui fazer a tal caminhada pela BR-110, aqui ao lado, saindo daqui

para o São Francisco, que era o percurso que eu fazia todos os dias. Quando passei ali

pela ponte, já um pouquinho mais em cima, ouvi, pelo barulho, que se aproximava uma

carreta no sentido Sertânia-Monteiro. Exatamente nessa subida aí que leva à casa do Seu

Manoel, onde eu estava passando, a estrada tinha muitos buracos e, não sei como nem

por que, a carreta fez um movimento brusco que chegou a se chocar com um carro que

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vinha em sentido contrário. O fato é que a carreta bateu no carro, tombou no barranco, e

uma parte da carga do milho - era uma carga a granel - caiu por cima de mim, jogando-

me lá embaixo, de uma boa altura. Mas, mesmo assim, eu pude me levantar, tonto com

aquele barulho todo e com uma poeira imensa da carreta que se arrastava pela ribanceira

do barranco. Eu fiquei meio doido, pensando que a carreta iria passar por cima de mim.

Graças a Deus, tive sorte, saí com pequenos arranhões, porém sem maior gravidade.

Antônio – Valdeci, você tem algum sentimento marcante com relação aos parentes

nossos?

Valdeci – Olha, para todos nós, a lembrança que... Foram várias, não é, Antônio?! A

Flora e o Zeca acolheram todos nós em São Paulo, desde os anos cinquenta. E a nossa

convivência com Flora e Zeca foi marcante, porque eu acho que todos os dias nós tí-

nhamos alegria na casa do Zeca. Houve alguns momentos difíceis com relação a empre-

go, salário, dificuldades porque sabemos que todos eles eram assalariados... Mas a casa

da Flora nunca foi uma casa de desprezo. Era sempre uma casa cheia. Uma casa onde o

que tinha em termos de alimentação e bondade sobrava. Eles se foram de São Paulo

para o Paraná e se deram muito bem. Saíram de São Paulo por conta do casamento da

Irene, que decidiu morar no Paraná, e eles quiseram acompanhá-la com o Jacaré, sobre-

tudo buscando a companhia da família, que já morava lá. Por isso mesmo, passaram

uma temporada ausente da família que vivia em São Paulo. Mas isso não impedia de

muitos irem ao Paraná ou eles virem a São Paulo. Quer dizer, em relação a dias marcan-

tes é isso mesmo que eu acabei de dizer. Toda vez, todos os dias, eram dias marcantes

na casa da Flora. Com relação a Manoel, aqui pra gente, o que mais marca é você... Por

exemplo, você... [chora]. Travou agora! O que muito marca a vida da gente aqui é você

ver, por exemplo, numa noite de lua, você ver aqui ao lado da casa do Manoel... [cho-

ra]. Manoel era brincalhão, fez tudo aquilo que nós sabemos, mas o que marca é você

sair uma hora da noite, ver uma lua clara, ver esse alto aqui e o que vem em minha lem-

brança e prende logo minha imaginação é saber que Manoel não existe mais. Você sai

ali na várzea de Zé Bernardo, como a gente viu hoje, toda ela se “destiorando” [estio-

lando]; uma várzea daquela, toda cheia de mato e que nunca foi daquele jeito... E aquilo

ali foi toda a história de Seu Manoel. E, no mais, professor, infelizmente é isso. Quanto

ao José... O Barbeiro, com toda aquela calma dele, saiu daqui para São Paulo, em 1957.

O Barbeiro também foi outra pessoa que fez muita falta para a gente com a ausência

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dele. Sofreu muito. Morou durante muito tempo naquela casinha, embora o terreno fos-

se dele; mas ele passou boa parte da vida em São Paulo, morando naquela casinha pobre

e humilde. Mas, mesmo assim, tinha muita alegria. Depois ele comprou aquele terreno

com o Givaldo e pôde construir a casa dele, com o salão de barbeiro livre, não é? E ali

foi onde ele arrumou o pão, com a Edite trabalhando. Uma das coisas que me marcam

muito sobre o Barbeiro, aqui, no sertão, na fazenda, no nosso terreno, era ver como o

José era caçador. Uma vez, ali no açude, na várzea do açude, ele conseguiu arrancar de

uma vez quatro pebas de um buraco. E a história desses pebas ele contava sempre. Até

que, coitado, vindo de São Paulo, entendeu de fazer uma caçada aqui, à noite, e saiu ali

na serra, na frente da casa de Seu Manoel, ali perto daquele barreiro. E, por sinal, era

uma época de inverno, como agora, e o barreiro estava cheio. O Barbeiro vinha de noite

e pisou lá em falso na beirada do barreiro e caiu lá dentro. Ele pensou que ia morrer,

sabe, com aquele susto que ele teve. Molhou-se todo. Isso são coisas que marcam. Co-

mo uma daquelas viagens que o Barbeiro fazia de São Paulo para cá. Quando a gente

menos esperava estava o Barbeiro por aqui. Sem contar uma dessas viagens que ele fez

em companhia do Severino, saindo do Recife para São Paulo. Aliás, eles vieram para o

Recife e lá o Severino comprou um Volks. Eles, então, vieram de carro para cá e, daqui,

voltariam para São Paulo. Passaram uns dias por cá, o Juca [apelido do Severino] todo

satisfeito, arrumando o carrinho dele, esperando que chegasse o dia dele voltar para São

Paulo. Então, foram para São Paulo, levando o carro. Naquela época, eles estavam com

pouco dinheiro e, já chegando em São Paulo, faltou gasolina. Tiveram que vender o

pneu de suporte do carro para agar a gasolina. Foi um verdadeiro sufoco para eles, sabe?

Aliás, as viagens do Barbeiro sempre tinham certos atropelos que davam ocasião dele

poder contar as histórias dele... Quanto ao Severino, vivia aqui na época de solteiro,

comprou com pai aquela caminhonete em Caruaru. Lembrando bem, acho que aquilo foi

um sofrimento, um aprendizado para ele, mas não deixou de ser um sofrimento. Porque

ele começou com um carrinho que não tinha condições de nada, professor. Aí foi pra

São Paulo com ele, sofreu muito com ele aqui porque o carro quebrava demais. Inven-

tou de ir para São Paulo levando uma carreada de jerimum daqui, que era para apurar

dinheiro e fazer um capital. Chegando em São Paulo, passou uma época com esse carro,

depois voltou com ele aqui. Regularizou alguns documentos dele que estavam irregula-

res e depois voltou com ele, já tendo vendido esse carro. O Juca sempre teve uma vida,

uma longa vida de muito trabalho, muito sacrifício, não é?

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Antônio – Fale de você e de Rejane, de sua vida de família...

Valdeci – É, professor, a gente... eu sou feliz. Embora que a Dona Rejane esteja ali pre-

sente, ela vai ter de me ouvir o que eu vou contar e vou confessar. Graças a Deus, eu

posso dizer que vivo feliz e fiz um bom casamento. Construí uma família e gosto muito

dos meus filhos e estamos aí na luta, estamos vivendo. Durante todo esse tempo, Dona

Rejane tem sido uma senhora dona de casa. Hoje ela está com uma dorzinha numa per-

na, mas isso é coisa do dia-a-dia, não é, professor? São trinta e três anos de uma boa

convivência, sabe, e eu espero que isso aí continue mais trinta e três vezes três, sabe? E

os meninos estão aí. O gordo está aqui com a gente, saiu de João Pessoa; a Sandra é

casada, como todos sabem. Luciane está para se casar este ano. Termina também o cur-

so dela este ano. Pretendo viver muitos anos aqui com eles e com alguém da família que

sempre nos procura, por muitos e muitos tempos.

Antônio – Valdeci, você gostaria de deixar uma mensagem para a família, os netos

e os sobrinhos?

Valdeci – Eu acho o seguinte: para os meus sobrinhos, professor, se eles seguirem os

exemplos que nós, hoje, os mais velhos da família deixamos, esse jeitinho nosso, acho

que eles terão um futuro pela frente, em termos assim de convivência, de querer bem à

família, enfim, de viverem felizes. É o que eu posso dizer. Que eles nunca esqueçam a

gente, desde o começo da nossa história que é justamente o que você está passando aqui

pra eles, e que possam viver sempre bem, viver unidos, sempre levando em considera-

ção esse bom exemplo que acho que nós demos e que continua.

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Doralice Alexandre de Siqueira50

Dora – Eu sou nordestina, filha de pais nordestinos e paraibanos. Fiquei na minha terra

natal até os dezenove anos. Antes de vir para São Paulo, a minha infância foi toda ela no

Nordeste. Comecei a frequentar a escola aos meus sete anos de idade. Fui alfabetizada

num grupo escolar da Paraíba, num lugar chamado de Queimadas. Depois, fui para a

cidade de Sertânia, que já fica em Pernambuco. Foi ali onde terminei o primário e lá

acabara de ser fundado um colégio chamado de Nossa Senhora da Conceição, colégio

das freiras franciscanas. O patrono era o pároco da cidade, monsenhor Urbano de Car-

valho. Fomos nós que inauguramos aquele colégio das freiras. Naquela época a gente

fez o admissão, digo, o programa de admissão; depois dele, a gente estava preparado

para fazer o curso ginasial. Mas aí, em virtude das condições financeiras dos meus pais,

não foi possível começar o ginasial. Então, eu só fiz o admissão e voltei para o sítio.

Nessa altura, eu já estava sendo criada por meus avós. Porque com meu pai eu fiquei

pouco tempo, pois quando eu tinha cinco anos de idade ele se separou da minha mãe, e

50 Doralice A. Siqueira (Dora) esposa da Elias Jorge Siqueira. Entrevista feita em 11 de setembro de

2009, Jardim Adutora – São Paulo.

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eu então fui criada por meus avós. Quando eu fui para Sertânia, para o colégio, fazer o

meu curso de admissão, eu já estava sendo criada por meus avós. Então, eu não pude

dar prosseguimento aos meus estudos, Antonio. Eu tinha muita vontade de estudar; o

meu maior desejo era estudar, mas não consegui dar continuidade; voltei para o sítio e

fiquei na roça. Mas eu não gostava daquela vida da roça. Eu tinha vontade, sim, de ir

para a cidade, tinha vontade de ir para um lugar onde pudesse evoluir, né! Um lugar

onde eu pudesse estudar e trabalhar. Nessas alturas, foi quando eu conheci o Elias. Eu

tinha feito dezesseis anos quando eu conheci o Elias. Quando eu conheci o Elias, eu já

estava morando com uma família lá da Paraíba. Naquele tempo, os prefeitos das cidades

pequenas, como era o caso de Monteiro, convidavam aquelas moças para alfabetizar as

crianças nos sítios das fazendas, né? Eu então fui convidada para ser uma dessas profes-

soras, vamos dizer leigas, né? Eu fui, então, alfabetizar crianças numa casa cujo dono se

chamava José Laurindo e a esposa chamava-se Laura; e foi aí que eu conheci o Elias,

numa festa de casamento. Conheci o Elias e começamos a namorar. A cada quinze dias,

eu vinha na casa dos meus avós. Eu levei ao conhecimento deles que eu tinha conhecido

esse moço e o Elias era filho do Seu Zé Jorge, que tinha sido um amigo do meu avô.

Meu avô chamava-se José Alexandre de Souza, morava na Paraíba, perto de Monteiro,

no lugar chamado Queimadas. Eu levei ao conhecimento do meu avô que tinha conhe-

cido esse moço, e ele ficou satisfeito porque sabia quem era o pai dele, uma família as-

sim de renome. Eu sei que o namoro foi bem aceito. Aí nós ficamos namorados por uns

meses, e eu tinha um grande sonho de vir aqui para São Paulo. O Elias falava pra mim

que já tinha vindo aqui pra São Paulo na época em que ele era adolescente. Eu falava

prá ele: “Quem sabe, a gente casa e acaba indo morar em São Paulo”. Ele contava pra

mim que havia muita ilusão com São Paulo, que não era fácil chegar aqui e conseguir as

coisas. São Paulo era muito difícil. Mas ele falava: “Quem sabe, não é?”. Eu sei que,

passados alguns meses de namoro, eu já estava conhecendo a família dele, porque eu

ainda não conhecia ninguém. Só por nome, assim, porque meu avô falava... Mamãe

tinha sido muito amiga das meninas, também, e falava muito no nome dessas moças,

que tinham sido amigas dela. Então, eu sei que foi bem aceito o namoro. Passados al-

guns meses, o Elias tomou a decisão de vir embora aqui para São Paulo. Levou ao co-

nhecimento do meu avô que precisava vir porque ele estava namorando e queria casar

comigo, mas para tal precisava vir a São Paulo para arrumar a vida, né? Naquele tempo,

acontecia muito dos moços virem aqui pra São Paulo e as moças ficavam lá, guardando

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aquela fidelidade aos moços. Assim se deu com a gente. Ele veio e arrumou um empre-

go, mas, logo de início, ele não foi bem-sucedido, né? Ele obedecia muito à Flora, e a

gente já se considerava um casal de namorados comprometidos, não? Tínhamos respon-

sabilidade de futuramente assumir um casamento. Eu só sei que a Flora, muito preocu-

pada, depois o aconselhou a desistir daquele namoro, rompendo praticamente com a

possibilidade de casamento, não é, Antônio? Eu tinha ficado com o anel de compromis-

so e naquela satisfação imensa, e a família também. Meus avós, que me criavam, ma-

mãe também que morava comigo, junto do meu avô externavam essa alegria. Ele cuida-

va de mamãe e cuidava da gente. O Elias e eu ficamos nos correspondendo; uma vez

por mês, ele mandava uma carta e vice-versa. Depois de certo tempo, ele estacionou na

correspondência. Eu escrevia e não recebia resposta. Aquilo me causou preocupação no

sentido de saber o porquê de meu noivo não mais estar me escrevendo. Nesse clima,

quando eu menos espero chega uma carta pra mim. E eu, com aquela felicidade imensa,

ao abrir a carta fiquei consciente de que não estava sendo bem-sucedida. Tive uma sur-

presa muito desagradável, porque ele estava rompendo com a possibilidade de casamen-

to. Ainda mais porque eu estava com um anel de compromisso; certo que não era uma

aliança de ouro, mas a gente considerava já um futuro casamento. Na carta, ele me fala-

va que não estava preparado, que a situação estava muito difícil e, para não tomar mais

o meu tempo, ele achava por bem desistir, e eu estava livre para partir para outro. Então,

aquilo foi um sentimento grande que eu tive, e minha família também. Eu fiquei muito

magoada, porque eu não esperava aquela surpresa tão desagradável. Isso foi em 1968,

junho de 1968. Passaram-se alguns meses, e eu meio decepcionada porque sabia que

não havia motivo para que aquilo viesse acontecer... Eu, que já tinha aquele desejo i-

menso de vir aqui para São Paulo, depois daquele acontecido aumentou em mim mais

ainda a vontade de vir embora. Naquela região, eu olhava assim para todos os lados e só

via lugares muito escassos, atrasados; a situação financeira das pessoas era cada uma

pior que outra... Eu dizia: meu Deus do céu, eu não tenho condições de estudar para me

preparar. Aqui, por qualquer coisa, basta a gente olhar para um moço que ele já quer

casar. Naquela época, qualquer coisa que viesse manchar a honra de uma moça denegria

a imagem de toda a família, não é, Antônio? Então, a gente procurava se preservar o

mais que pudesse para ter o nome da gente honrado, o nome da família e tudo... Eu fi-

quei com muito sentimento, porque eu me lembrava do Elias, que eu considerava de

uma família nobre. Eu também era de uma família de renome, mas o Elias era de uma

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família nobre, e eu perdi aquele partido. Eu, com os meus dezoito anos, fiquei muito

decepcionada. Eu sempre tinha vontade de vencer e dizia: se eu olhar para qualquer

moço, aqui, logicamente ele vai se interessar por mim e mais depressa ele vai querer

casar comigo. Mas eu não quero casar para ficar aqui nessas fazendas, nesses lugares

atrasados, onde os moços nada têm para me oferecer; e eu, então, disse: eu vou embora

para São Paulo. Agora havia um motivo maior. Eu não dispunha de meios financeiros

para a viagem. Isso foi no mês de junho de 1968. Terminou o ano, e quando foi em ju-

lho do ano seguinte chegou um casal de São Paulo, que era vizinho nosso e tinha vindo

para o Recife. Ele era camioneiro e fazia viagens de São Paulo para o Recife, fazendo o

transporte de móveis. E eu nunca tinha visto aqueles caminhões fechados, tipo baú.

Quando aquele caminhão baú chegou a Sertânia, justamente naquela semana, também

eu tinha saído do sítio para Sertânia. Na cidade, havia um comentário geral que tinha

chegado um camioneiro de São Paulo com um caminhão todo fechado. E aquilo foi uma

coisa assim um tanto quanto assustadora. Mas tratava-se daquele casal vizinho nosso

que estava morando em São Paulo e que fizera aquela viagem para o Nordeste. De Ser-

tânia, eles foram até a casa dos pais deles, que eram nossos vizinhos lá no Jabitacá, na

Paraíba. Meu avô fez um café pra eles com macaxeira - que aqui, em São Paulo, a gente

chama de mandioca, né! Aquele café era tudo de bom que ele tinha de oferecer àquele

casal. Quando eles chegaram à casa do meu avô e foram tomar aquele café, naquele dia

de manhã, eu estava ralando o milho. Ela, então, passou a contar para minha mãe que

queria levar para São Paulo a irmãzinha dela, aproveitando a oportunidade que ela esta-

va com aquele caminhão. Nele, tinha muito espaço, vinham outras famílias, e ela queria

trazer a irmãzinha dela... Só que a mãe dela não aceitou. Eu, ralando aquele milho, fi-

quei pensando assim: bem que eu poderia ir embora com aquela família... Ela, então,

perguntou a mim: “Tu não queres, Dora, ir com a gente?” Eu então respondi: “Só que

mamãe não deixa”. Ela, então, dirigindo-se à minha mãe, pergunta: “Tu não deixas não,

Severina”? Só que, quem comandava a gente, quem dava ordens era o meu avô, não é,

Antônio? Era ele quem cuidava de minha mãe; a gente recebia todas as ordens era do

meu avô. Aí mamãe baixou a cabeça e disse assim: “Pai não deixa!”. Ela, então, res-

pondeu: “Se seu Zé Alexandre deixar, você concordaria?” Ela disse “É, eu não ia achar

muito bom, mas se pai deixar e ela quiser ir”... Eu só sei que fui depressa lá na roça,

onde minha avó estava trabalhando, pedi pra ela, e ela falou pra meu avô e ele abriu

mão. Não foi assim algo aceito com muita boa-vontade, mas como eles tinham muita

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vontade que nós viéssemos arrumar a vida e trabalhar para alcançar nossos objetivos,

ele abriu mão e aceitou que eu fizesse a viagem, não é, Antonio? Isso foi assim entre

dez e onze e meia do dia. Preparei-me, e o casal devia sair de lá por volta das quatro e

meia daquele dia pra ir para Sertânia. Eu lembro que minha avó pegou um franguinho,

matou aquele frango, fizemos aquela farofa, como os nordestinos costumam fazer; a-

quele frango, bem torradinho, ela colocou numa mochila. Não é como hoje, que a gente

tem “tuperware”, tijelas, não, nada disso. Ela pôs aquilo numa mochila, e eu muito bem

satisfeita. Mas, antes de tudo aquilo, eu peguei duas peças de roupa, uma saia e um ves-

tido, fui lavar e colocar numa mala para completar a minha bagagem de viagem. E as-

sim foi. Quando foi às duas horas da tarde, eu saí da casa do meu avô com destino a

Sertânia. Aí eles alugaram um jeep, aquele casal. E aquilo pra mim foi uma felicidade

muito grande, só com o fato de saber que ia sair dali do pé da serra com destino a Sertâ-

nia, de jeep. Viemos para Sertânia e, quando foi assim por volta das oito horas, a gente

entrou dentro daquele caminhão baú, onde já tinha muita gente. Muitos paraibanos, ca-

sais, todos preparados, alguns com malas; aqueles que não tinham malas tinham sacos.

Ele colocou todo aquele pessoal dentro do baú e viemos para São Paulo. Nós dormimos

na localidade chamada “Placas”, numa parada lá, e, no outro dia, prosseguimos a via-

gem e levamos de nove a dez dias pra chegar aqui em São Paulo, dentro daquele baú.

Entre os “passageiros”, vinha até uma mulher gestante. Aqueles que eram mais grã-

finos traziam redes, armavam a rede dentro do baú. Num daqueles dias eu comecei a

passar mal naquele ambiente fechado. Quando a gente necessitava parar por alguma

coisa, a gente batia na parede do baú e o motorista buscava saber qual era a necessidade;

e viram que eu estava passando mal. Passamos a fazer um revezamento. Durante certo

tempo, eu viajava na cabine e depois voltava para dentro do baú. Dentro dele, também,

era transportado jerimum, muitas espigas de milho verde, que eles traziam, e vinham até

uns espinhos, que a gente lá no Nordeste chama de “coroa de frade”. De noite, quando a

gente queria dormir, era preciso afastar aquilo ali, evitando que a gente se espinhasse ou

se maltratasse. Eu sei, Antônio, que foi com muita dificuldade que eu cheguei aqui. Fo-

ram nove dias de viagem que a gente levou. De Sertânia para a Bahia, parece que a gen-

te levou uns três dias, andando só em estrada de terra. Depois desses três dias é que se

pegou o asfalto. Quando ele parava na estrada, ele abria aquele caminhão, a gente descia

e ia tomar banho naquelas minas. Quando eu via o asfalto naquelas estradas, era como

se eu estivesse nos Estados Unidos, com aqueles lugares e aquelas coisas todas diferen-

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tes. Aí já me batia uma saudade muito grande de casa. Ao mesmo tempo, eu tinha aque-

la esperança de que eu ia conseguir algo de melhor pra mim. Cheguei aqui em São Pau-

lo e fui morar na Vila Industrial, que é um bairro que fica aqui perto. Nessa vila, já tinha

muitos nordestinos, inclusive uns primos meus. Eu fui muito bem-recebida, muito bem-

aceita. Por outro lado, eu via as dificuldades de uma boa parte dos conterrâneos nossos,

mas nunca eu desanimei em hipótese alguma. Mas eu via aquelas dificuldades de pesso-

as morando num porão, famílias com crianças dormindo todos num só cômodo. Mesmo

assim, eu não perdia as esperanças. Eu sabia que eu estava em São Paulo, que eu iria

enfrentar as dificuldades e terminaria por vencer. E o meu maior sonho era encontrar o

Elias. Daqui de São Paulo, eu pouco conhecia os bairros e só sabia o nome de alguns

por conta das cartas que ele me mandava; mas não conhecia nada até então. Logo, den-

tro dos trinta dias, arranjei emprego. Depois, apareciam aqueles nordestinos, moços

conhecidos, solteiros, interessados em namorar comigo. É bem possível que eu tenha

tido algumas paqueras, mas eu ficava assim muito reservada. Quando foi um dia, eu

encontrei aqui um conhecido lá de Sertânia, que já era amigo e estava namorando uma

amiga minha. Ele, então, disse pra mim: “Porque é que todas as meninas que vieram lá

do Nordeste, cada uma tem seu namorado, estão todas interessadas em casar, e você

parece que não tem nenhum interesse em casamento? Tem aqui alguém que você gosta

ou você deixou algum pretendente lá em Sertânia?” Eu, então, respondi pra ele que não

e, depois, contei pra minha amiga, que era namorada dele, que eu tinha tido esse noivo,

que ainda gostava dele e que tinha esperança de encontrá-lo aqui em São Paulo. Ela

contou pra ele e, aí, eu não sei se ele aproveitou da situação, mas ele disse pra mim que

tinha visto o Elias num determinado lugar. Nesse tempo, eu ainda era católica, e ele

também era muito católico e religioso. Mas aí eu logo percebi que era brincadeira, que

não era verdade, e fiquei bem na minha. Eu já tinha arrumado serviço e então fui traba-

lhar. Eu tinha chegado aqui em julho, no final de julho de 1969. Trabalhei até o final do

ano e, quando foi em abril de 1970 eu já estava trabalhando numa metalúrgica que fica-

va lá no Cambuci, uma firma boa. Eu me considerava bem-empregada. Num desses

dias, eu cheguei em casa, vindo do serviço, e então minha irmã disse assim pra mim:

“Eu tenho uma notícia muito triste pra te dar”. Aí eu fiquei assustada e perguntei: “Nos-

sa, o que foi que aconteceu, mamãe morreu? Foi carta que veio do Norte?” Ela disse:

“Não, não foi isso, mas é uma coisa que vai te entristecer muito. O Elias casou-se”. Aí

eu disse: “Puxa vida, Nina! A gente não tem notícia dele, não se sabe onde ele mora...

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Quem te deu essa notícia do Elias?” Ela, então, me perguntou por que eu me interessava

tanto por ele, inclusive buscando saber onde ele morava... E ela, então, me contou toda a

história. Eu tomei banho, jantei, me deitei. Quando eu deitei, fiquei pensando assim...

Depois do meu emprego, tudo o que eu queria era encontrar com o Elias e tentar ver se

a gente renovava o namoro. Naquele tempo, a gente falava “renovar o namoro”, não é?

E caso a gente voltasse a namorar, quem sabe, daria certo o casamento. Afinal, eu já

estava em São Paulo, trabalhando; ele certamente estaria também trabalhando... Mas,

agora, que ele está casado, eu vou mudar de ideia. Vou partir para outra, vou continuar

trabalhando e pode ser que um dia apareça um “baiano”, né? Uma pessoa direita, lá do

Norte, igual ao Elias. Então, eu me caso. Mas, agora, só me resta trabalhar, trabalhar.

Aí, Antônio, quando passou um prazo de uns quinze dias que eu tinha recebido aquela

notícia, eu estava indo para o meu trabalho no Cambuci. Num ponto de ônibus antes do

que eu devia descer, eu olho assim pra dentro de um bar, e quem eu vi dentro daquele

bar? Lá estava o Elias. Eram quinze para as sete da manhã. O Elias estava dentro do bar

tomando um cafezinho... Já fazia três anos que nosso namoro tinha terminado, lá no

Nordeste. Ele estava vestindo uma camisa vermelha – ele sempre gostou da cor verme-

lha! Ele estava diferente, estava mais bonito. Tinha engordado mais, estava bem arru-

madinho, com uma pele mais bonita, não aquela pele queimada do sol do Nordeste...

Ele estava tomando café, e eu ia descer um ponto depois. Quando eu o vi dentro do bar,

não pensei duas vezes, desci junto com os passageiros daquele ponto. É preciso dizer

que eu não tinha a mínima ideia de onde ele morava aqui em São Paulo. Eu desci ali

naquele ponto com minha bolsinha, a marmita... Eu passei - ele que jamais sabia onde

eu estava -, olhei e disse assim comigo: eu tenho que falar com ele, não posso perder

essa oportunidade. Sei lá o que está se passando, o que ele está fazendo aqui... Eu sei

que eu estou indo trabalhar, mas ele, eu não sei... Mas eu tenho que me apresentar. Eu

voltei. E os caras que estavam com ele, os amigos, eram espertos e ficaram de olho.

Muito lentamente, eu estou voltando, não queria perder aquela oportunidade, porque era

muito preciosa. Eu estou voltando, contando os passos – interessante a coragem que eu

tive de ficar assim encarando ele. Quando eu fui passando, ele me viu a aí eu percebi

que ele levou um susto. “Oi!”, eu falei. “Oi”, ele respondeu. Ele tinha dito para os ami-

gos que já me vira passando quando da primeira vez e que me conhecia. E os colegas

dele teriam dito que já era a segunda vez que eu passava e que estava encarando ele.

“Acompanha ela – disseram! Ele disse: ”Não, rapaz, eu não posso”. Ele sempre foi mui-

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to reservado. Eu era mais atirada. Eu, então, parei e logo que parei, olhei assim e disse:

“Moço, fala pra esse moço aí de blusa vermelha que eu quero falar com ele”. Nossa, ele

não quis pensar duas vezes, saiu com roda nos pés. Aí o Elias chegou dando risadas,

como se nada tivesse acontecido. Aí disse: “Puxa vida, eu não acredito; é você, Do-

ra?”Aí eu disse: “Sou eu!”. Ele disse: “Mas o que é que você está fazendo aqui?” Aí eu

respondi: “Sou eu que pergunto: o que você está fazendo aqui?” Ele, então, disse: “Eu

vou trabalhar”. Ao que eu respondi: “Eu também estou indo trabalhar”. Aí ele pergun-

tou: “Que horas você entra no serviço?”Eu disse: “Sete e meia”. Mas eu estava com

mais tempo, porque a essas alturas eram quase cinco para as sete. Ele, então, propôs

marcar um encontro. Aí marcamos um encontro. Quando eu saí do serviço, ele já tava

no ponto de encontro onde a gente marcou. Aí a gente foi conversando até o ponto de

ônibus; quando nós chegamos ao ponto do ônibus, eu perguntei pra ele se ele não iria

comigo até a casa da minha irmã, na Vila Industrial, onde eu estou morando. Ele foi

comigo até a Vila Industrial. Chegando lá, eu chamei meu cunhado, apresentei o Elias a

ele. Meu cunhado já sabia mais ou menos de tudo o que tinha se dado...

Antônio – Mas aí você já sabia que ele não tinha casado?

Dora – Naquele momento do encontro lá no bar, eu o “apertei” um pouquinho, e ele

disse que não, querendo me provar com os documentos e tudo mais... que não estava

casado. Aí ele fez questão de me acompanhar e também de me mostrar que não estava

casado. Aí meu cunhado gostou e falou pra ele que eu estava ali morando com ele na-

quela situação um tanto difícil... Mas, se fosse para ter namoro mesmo, era para ter ca-

samento. Eu só sei que, com poucos meses, ele me trouxe até a casa da Flora, na Vila

Ema. Foi quando eu fiquei em paz, fiquei tranquila. Fui muito bem-recebida quando

cheguei à casa da Flora, né? Tanto ela como o Zeca me receberam muito bem. O Zeca

era quem recebia as minhas cartas, né, as minhas correspondências. Assim foi, Antônio.

Ao todo, foram mais três anos de namoro. Como, de fato, ele lhe contou, realmente du-

rante esse tempo ele esteve frequentando o SENAI e falou pra mim que não estava pre-

parado para casar antes de aprender uma profissão. Falou que eu tivesse um pouco de

paciência, mas que nós íamos namorar pra casar. Graças a Deus, eu recebi o maior a-

poio da família. Quando todos me conheceram, nossa! Cada um era melhor do que o

outro. Eu fiquei muito satisfeita e escrevi para o meu avô. Mandei uma carta pra ele

contando toda a história e ele ficou bem satisfeito, lá no Nordeste. Só sei que foram três

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anos de namoro e noivado, até que aconteceu o casamento. Eu agradeço muito a Deus,

Antônio. Foram três coisas muito boas que Deus me concedeu aqui nesta vida: meu

casamento, meus pais e meus filhos. Sou muito grata a Deus e me considero uma pessoa

muito feliz. Fizemos com muita luta, com muito esforço e muito sacrifício. Comecei

preparando meu enxoval. A Flora me ensinou muito. Ela me orientou e me passou mui-

tas experiências boas e bonitas. Eu sempre via nela aquela simplicidade na vida, sabe?

Uma mulher de muita fibra, entendeu, Antônio? O Zeca, nossa! Era muito mais do que

um amigo. Aquela simpatia, aquela coisa assim tão maravilhosa. A gente chegava à casa

deles e eu era tão bem-recebida. Em São Paulo, naquele tempo, as coisas não são como

hoje. As moças viviam fazendo plano no intuito de casamento. A gente via naquelas

firmas elas falando de enxoval para o casamento. Eu também buscava copiar aquelas

coisas. Naquele tempo, a gente não ganhava muito. Emprego tinha muito, mas os salá-

rios eram baixos. Quem enriquecia eram os empresários. Já os funcionários, o que ga-

nhavam nem dava se vestir bem nem para calçar bem e muito menos ter uma boa ali-

mentação. Mas o meu dinheirinho era um dinheiro tão abençoado!... A Flora me orien-

tava muito. Eu chegava à casa dela, e ela me falava assim: “Dora, não copia muito coi-

sas aqui das mocinhas, que elas gostam muito de se endividar, de fazer muitas dívidas.

Você faz aquilo que estiver dentro de suas posses. Os turcos vendiam muito a prestação.

O Elias também não tinha assim muitos calçados e agasalhos. As roupas nossas eram

poucas. Eu mesma passei muito frio aqui em São Paulo, porque duas blusas dessas aqui

eram muito. As geladeiras, naqueles tempos, eram muito mais para pessoas de posse. A

marmita, quando eu ia trabalhar, a mistura, na maioria das vezes, era um pouco de feijão

com arroz e normalmente era acompanhado de um ovo frito. Colocava aquele ovo na

marmita e, quando destampava, na firma, na hora do almoço, ele estava azul. Muitas

vezes a comida ficava estragada, porque a gente não tinha direito de usar geladeiras. Já

a casa da Flora, ela era assim bem montada, tudo muito bem organizado. A Flora era

muito equilibrada e muito econômica. Nos finais de semana, da quinta para a sexta-feira

eu vinha pra casa dela, e aí ela arrumava uma marmita para mim. Era uma comida mais

reforçada, mais saborosa... Eu chegava, então, na casa dela e dizia: “Flora, eu nem faço

tanta questão de você me dar a janta, contanto que você me dê a marmit”a. Ela dava

risada e dizia: “Não, tem a janta pra você e tem sua marmita pra você levar amanhã”. Eu

sei que ela me orientava muito, Antônio.

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Antônio - Dora, gostaria que você falasse de sua vida de casada, sua nova família...

Como você se sentiu acolhida na família do Elias?

Dora – Eu me senti bem-acolhida. É bem verdade que aqui em São Paulo, naquela épo-

ca, tinha-se muito preconceito com nordestinos. Chamavam a gente de “baiano”. Mas

eu nunca permiti, com os meus vinte anos de vida, que alguém me “pisasse”, eu não

permitia isso. Havia aqueles colegas de fábrica que diziam: “Doralice está namorando

um baiano com calça larga!”. Naquele tempo era moda usar calça justa, com boca de

sino, cabelo comprido, era o tempo de Roberto Carlos... E a Flora me orientava e falava

pra minhas amigas pra respeitar. Quando elas me viam no ponto de ônibus com o meu

namorado, diziam: “Eu vi Doralice lá no ponto de ônibus com o namorado dela. Ele é o

‘calça-larga’.” Aí eu dizia pra elas que o meu namorado era um calça-larga, mas era um

moço decente. Era de uma família de nordestinos decentes, um pessoal de muita classe.

E eu vou casar com ele, porque sei que ele é um moço que tem condições de me dar

uma vida boa e que pode até ser que eu venha a trabalhar, mas eu espero que eu não

precise acordar cedo, fechar uma marmita e vir trabalhar, porque eu sei que ele tem

condições de me sustentar. Ele é de uma família boa. E assim foi, fui me preparando, a

Flora ajudando no enxoval, tudo, né? Eu era totalmente administrada pela Flora. Já a

Virgínia vendia confecções nas feiras livres de São Paulo, era “marreteira”. Ela vendia

calcinhas, camisolas, tudo... Ela chegava à casa da Flora com aquelas mercadorias, e eu

ficava com vontade de comprar para o meu enxoval. Mas eu tinha vergonha, porque eu

não tinha dinheiro... Ficava olhando assim e dizia: “Virgínia, quanto que custa essa ca-

misola?” Ela então dizia: Prá quem não tem dinheiro, essa camisola custa tanto”... Aí eu

dizia: “Filha da mãe, por que ela me faz tanta vergonha, né?” Aí ela dizia: “Toma, besta

velha...” Às vezes ela nem cobrava. Aquilo era satisfatório para mim, não é, Antônio?

Eu me sentia bem-acolhida no meio de uma família, né?

Antônio – Dora, você pode falar da vida de casados de vocês? E os filhos? O que

isso significou para vocês como casal?

Dora – Quando nós casamos, eu tinha muito interesse em dar continuidade ao meu em-

prego, porque àquelas alturas eu que trabalhava numa metalúrgica, já estava substituin-

do a telefonista da firma... Os donos dessa metalúrgica – Indústria de Etiquetas Cobra -

eram italianos, e a telefonista, sendo parente deles e por ser já uma senhora de idade, às

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vezes necessitava tirar folga para descansar. Hoje, essa firma está na cidade de Itu. Eu,

então, quando substituía aquela senhora procurava fazer o serviço com muito afinco.

Eles, então, percebiam que eu era muito eficiente para aquela função. Assim casei, fi-

quei trabalhando e não pretendia ter filhos logo. Eu tinha seis meses de casamento e não

queria engravidar. Queria continuar com o meu emprego. Mesmo que o Elias já se con-

siderasse bem-empregado, eu tendo o meu emprego, poderíamos arranjar bem a nossa

vida. Nós já havíamos comprado esse terreno onde construímos esta casa, estávamos

pagando o terreno, ainda morando de aluguel. Mas eu pensava: a gente vai arranjar a

nossa vida, vamos construir a nossa casa e não precisamos arrumar filhos agora. Eu só

sei que com seis meses de casamento eu já estava grávida, não é? No momento em que

eu suspeitei que pudesse estar grávida, para mim não foi assim tão agradável, ou seja,

não foi tão aceito o fato daquela gravidez.

Antônio – E, naquele tempo, não era prática muito comum a mulher usar métodos

anticoncepcionais para evitar gravidez, não?!

Dora – Evitava-se, tomava-se anticoncepcionais, mas não era igual a hoje. Aí eu fiquei

meio preocupada, sabe... Cheguei a conversar com a minha amiga lá da firma, que era

telefonista. Ela, então, me aconselhou a ir ao médico e fazer um exame para ver se esta-

va grávida. Ela disse: “Se você estiver grávida, você aceita a sua gravidez. Pelo que a

gente está vendo, você casou muito bem... Aceite seu filhinho e, quando você ganhar

seu filho, se é que você está grávida, você arruma uma creche boa, deixe o seu filho na

creche e você volta ao seu emprego”. Eu, então, fiz o exame e constou que eu estava

grávida. Nessa hora, eu conversei com o Elias e pensei comigo: se o Elias aceitar bem

esse filho, então vai me dar assim um grande prazer. Foi aí que eu contei pra ele e vi

que foi bem-aceito. Eu disse pra ele: “A gente está casado mesmo, estamos os dois bem-

empregados, estamos pagando o terreno, tudo... Então, acho que não vai atrapalhar a

nossa vida”. Mas minha preocupação era que eu sabia que iria perder aquele emprego e

que eu não queria perder. Eu sei que fiquei trabalhando grávida, mas muito bem-aceita

lá na firma. Quando eu estava de cinco meses, digo, de quatro meses de gestação, eles

me deram férias. Naquela época, fazia cinco anos que eu estava aqui em São Paulo e

ainda não havia retornado ao Nordeste. Elias ia pegar férias também. Ele disse que, caso

tivesse férias, nós dois iríamos viajar ao Nordeste. E eu fiquei toda feliz. Dizia comigo:

vou voltar para minha terra, vou fazer um passeio, vou chegar lá muito bem casada, né?

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Já estou até grávida... E nós dois empregados... Que coisa “chic”, não é? Quando tudo

estava preparado para fazer essa viagem, a firma do Elias avisou pra ele que não iria

mais dar as férias dele. Eu só sei que, para resumir essa parte, no lugar do Elias ele co-

locou a minha mãe, que já estava aqui em São Paulo com a gente. Mamãe não tinha

condições financeiras nenhuma, pra nada, coitada! Ela ainda não morava com a gente,

só morávamos nós, o casal. O Elias, então, comprou a passagem e deu pra mamãe, que

recebeu aquilo como um presente grande. Viajamos, então, para Sertânia, para Campina

Grande, onde fiquei uma semana com a minha família, e de lá voltamos para a casa da

Dona Verônica – a mãe do Elias -, e ela se mostrou muito feliz e satisfeita com aquela

nora, sabe? Aquela coisa boa, nossa! Uma coisa muito bonita! Nesse tempo, eu não co-

nhecia ainda o Valdeci, também não lhe conhecia, né? Eu, antes, pensava assim... Eu

vou chegar lá no Nordeste e conhecer esses dois cunhados, que eu nunca vi... No entan-

to, quando eu cheguei lá, não tive a felicidade de conhecer vocês dois. O Valdeci estava

trabalhando acho que na Bahia, em Sobradinho, e você lá pro Recife. Eu sei que eu e a

mamãe ficamos cerca de uma semana com a Dona Verônica. Eu continuava grávida da

Luciana e quando cheguei aqui em São Paulo retornei ao meu emprego para trabalhar.

Quando faltavam dois meses para ganhar a Luciana, o Elias tirou férias e foi passear em

Sertânia, e eu fiquei. Só sei que quando eles me deram a licença pra ganhar a Luciana,

fiquei em casa, tudo... E foi aí que ela nasceu. A gente com aquela felicidade, o primeiro

filho; a gente com aquela alegria, aquela coisa tão boa. Elias e o Anísio... Anísio era

assim muito machista. A gente era muito manipulada, já não era tanto com a Flora. Di-

minuiu a carga da Flora e passou pro Anísio. Quem mais administrava a gente era o

Anísio. A Luciana era muito bonita. A gente tomou o Anísio e a Enedina como padri-

nhos. O Anísio, então, falou pro Elias que eu não iria mais trabalhar para ficar cuidando

do nenê. Disse que o Elias estava trabalhando e podia muito bem cuidar da família,

manter sua mulher e sua filha sem que a Dora precisasse trabalhar. Impôs aquela ordem,

e eu então deixei o emprego para cuidar da Luciana. Quando cheguei, falei para a minha

patroa, que era de uma família italiana, e ela disse pra mim que eu era uma menina de

muita responsabilidade e muito ativa e que eu fosse cuidar do meu nenê. Quando eu

encontrasse uma pessoa de muita responsabilidade para cuidar do nenê, eu podia voltar

que a firma ficava esperando pela minha volta. Quando a Luciana estava com um ano e

sete meses, o Eduardo nasceu. Aí que o Anísio não deixou, né? Nessas alturas, Antônio,

a gente já não estava mais morando naqueles dois cômodos de aluguel. Fomos morar

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naquela casa da frente do terreno do Anísio. O Anísio era quem administrava tudo. Tu-

do. Ele até intervinha na nossa vida particular Chegava até ao ponto de quando aconte-

cia eu conversar com Enedina que a minha menstruação tinha atrasado... ele chegava

pro Elias e dizia: “Cuidado, vocês não vão se encher de filhos, não!” Eu me sentia assim

muito segura, eu tinha muita confiança na família, e o apoio que eles da família me da-

vam era o meu verdadeiro amparo. Eu, então, não me importava de eles me manipula-

rem, entendeu? Não sei se era simplicidade minha, não sei. Sei que eu era assim. E as-

sim levamos a nossa vida. Moramos com o Anísio sete anos. Teve uma época que o

Elias ficou desempregado cinco meses. Naquele tempo era difícil alguém ficar desem-

pregado, mas aconteceu isso com o Elias. Nesse período o Anísio chegava mesmo a

pagar conta de água, conta de luz e até mesmo um empréstimo que o Elias fez no banco

para custear material de construção de nossa casa, que já iniciávamos a construir. O

Elias não tinha condições de pagar aquela conta no banco e o Anísio chegou e pagou.

Nós, então, tínhamos eles como os pais da gente, sabe Antônio, era assim. Tanto a Lu-

ciana quanto o Eduardo, até hoje, têm o casal como pais. E, outro dia, eu escutei o Da-

niel falar que tem a eles como irmãos. E eu procurei sempre mostrar para os meus filhos

a importância desse lado da família. Eu, que vivi praticamente criada sem pai e com o

apoio do meu avô, eu sabia o quanto aquilo me foi difícil. Tanto que prometi mostrar

pra eles o quanto era importante ter o apoio de uma família, tanto do meu lado quanto

do lado do pai deles, no caso, da família do Elias. Hoje, eu estou convivendo com ela e

precisando dela. E reconheço toda a ajuda que eu recebi da parte deles. E sempre falei

para os meus filhos: “Esse é o seu tio, essa é a sua tia. Considerem eles, tenham respeito

a eles, à avó, Dona Verônica, porque é uma coisa muito boa a gente ter uma família”. A

ponto de hoje eles terem muito apreço. Outro dia, eu ouvia de Luciana que ela admirava

muito a família do pai dela, porque era muito unida. Claro, não é, Antônio? Tem seus

altos e baixos, porque ninguém é perfeito e não existe perfeição. Mas a Luciana me di-

zia o quanto ela gosta da família do pai dela. Em qualquer situação, eles chegam junto e

os mais novos a gente vê que eles herdaram as lições dos antigos e, por isso, têm uma

cabeça boa. E eu sempre lutei por isso, Antônio. E isso me deixa muito feliz, muito fe-

liz, Antônio. E para ser sincera – e não é por estar aqui falando em sua presença –, eu

tinha tanta vontade de conversar com você! Eu desejava ter uma oportunidade de con-

versar com o meu cunhado, né? Para que possa passar pra ele o que eu sinto por ele.

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Antônio – Nós temos - particularmente eu - muito apreço pelos nossos cunhados e

nossas cunhadas, afeição essa que se desdobra no carinho que igualmente temos

para com os nossos sobrinhos, caso da Luciana e do Eduardo. Alguns desses cu-

nhados e sobrinhos já faleceram. E no caso dos seus dois filhos, tenho certeza,

também, que esse benquerer que eles devotam à família é fruto do exemplo do que

vocês, como casal, como pais, foram capazes de passar para eles.

Dora – Muito obrigado, Antônio.

Antônio – Para finalizar esta entrevista, gostaria que você deixasse uma mensagem

para a família e para o futuro dos seus filhos, uma palavra muito sua...

Dora – A mensagem que eu deixo para os meus filhos é que eles saibam tirar lições de

toda a minha experiência de vida, da vida que eu vivi. Eu sempre falo pra eles que, na

medida do possível, tenho procurado passar pra eles as experiências boas. E, caso eles

façam da forma que eu lhes tenho ensinado - como igualmente o pai deles, não é? -,

uma pessoa de responsabilidade, de caráter, que gosta mais de pagar do que comprar eu

acho que eles podem se beneficiar desse exemplo. Dele e meu também, e, vivendo as-

sim, eles não irão se arrepender. Graças a Deus que eu tenho visto que eles buscam

copiar as coisas boas, tanto do pai quanto da mãe. Para a família do meu marido, o que

eu tenho a dizer é que sou muito grata a vocês. Muito grata por tudo que vocês fizeram

por mim. E sou muito agradecida, porque até hoje vejo que na vida de cada um o trata-

mento que vocês me dispensam é algo assim de coração, coisa sincera e que nada tem

de hipocrisia nem da falsidade. São muito sinceros no que dizem, no que fazem e no

que falam, né? Sou muito bem-aceita todos os momentos em que chego à casa de cada

um da família do meu marido. Muito bem-recebida. Por isso, sou muito agradecida a

vocês por essa consideração tão grande.

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Edite Guilherme de Siqueira51

Antônio – Edite, fale de sua infância, do lugar onde você nasceu e das pessoas com

quem você conviveu enquanto criança.

Edite – Eu convivi com a família de vocês lá na Matarina. Nós convivemos enquanto

crianças e depois como adolescentes. Quem era dessa época? Eram o Manoel, a Flora, a

Virgínia; o José era menor. Depois nasceram o Severino e o Anísio. Nós éramos todos

crianças. Eu morava ali na Matarina, não muito longe de vocês, perto de onde tinha um

mata-burro na estrada que ia da Prata para Santa Catarina. A minha casa tinha uma sala,

um quarto só, escuro e sem janela... Depois disso, tinha a cozinha. Banheiro não tinha,

51 Edite Guilherme de Siqueira – viúva de José Jorge de Siqueira Filho. Entrevista feita na Vila Ema - São

Paulo, aos 11 de setembro de 2009.

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não é? O banheiro era o mato. Em frente à minha casa, nunca esqueci, Antônio, tinha

um pé de juá, bem grande, em frente à porta principal de entrada da casa. Aí moravam

meu pai e minha mãe, o finado Leobino, José Guilherme, Duda e eu. A Maria, minha

irmã, já era casada e morava em Bananeira, perto da Prata, na Paraíba. O Leobino era

meu irmão e tinha vinte anos quando morreu afogado. Ele trabalhava de cortar cana no

sítio de Cícero Nunes. Ele era mais velho do que o Duda. Tinha lá um time de futebol,

na Matarina, e nele jogavam Duda, o Ageu, o Manoelzinho, de Seu Feliciano, e o Age-

nor, irmão do Ageu. Nós morávamos numa casa que pertencia à Matarina, de Cícero

Nunes. Ele era uma pessoa muito boa, um bom patrão. Cada um daqueles trabalhadores

dele tinha uma casa no sítio. Junto da casa da fazenda, tinha um açude onde se plantava

batata, verduras. A Virgínia deve lembrar isso. O Leobino morreu afogado nesse mesmo

açude. Todas as tardes, após o dia de trabalho no corte da cana, eles tomavam banho

naquele açude. O Leobino nadava muito bem. Ele atravessava o açude e voltava. Numa

parte da ribanceira do açude, tinha uma descida; era ali que o gado tomava água e onde

eles entravam no açude. Eu lembro muito bem que era uma tarde de sábado, o dia em

que ele faleceu. Eu era bem pequena. Minha mãe contava que ela estava varrendo o

terreiro, e eu estava com ela brincando ali debaixo do pé de juá. No dia e na hora em

que ele morreu, ela contou que apareceu aquele redemoinho, levantando as folhas de-

baixo daquele juazeiro (chora). E ela perguntava “O que será que está acontecendo?”

Aonde ela ia, ele ia atrás. Exatamente na hora em que o Leobino morreu. Aí vieram dois

moços em direção à minha mãe, eu nunca esqueci, e contaram para ela que ele tinha

falecido. Contaram que estavam vendo que ele vinha voltando da travessia do açude e,

de repente, viram que ele botava a cabeça fora d’água e gemia e pensaram que ele est i-

vesse brincando. Mas ele não estava brincando, ele estava sentindo alguma dor no peito.

Logo depois disso, viram que ele desceu de uma vez – eram uns trinta metros de fundu-

ra – e não subiu mais. Eles chamaram umas pessoas para ajudar, mas quem mergulhou e

tirou foi meu pai. Ele mergulhou com roupa e tudo e o retirou de dentro. Puseram-no de

cabeça para baixo para ver se ele soltava água, mas ele não conseguiu, sinal de que não

encheu os pulmões d’água. O velório dele foi lá, na casa da fazenda do seu Cícero Nu-

nes. A mãe, coitada, ficou num estado de nervos que não sabia o que fazer. E eu lembro

que quando ele estava no caixão - ou não sei mesmo se era rede -, ele perdia muito san-

gue. É sinal de que, nos esforços dele ao nadar, houve algum derrame. Deve ter sido

isso.

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Antônio – Edite, fale de seu pai e de sua mãe...

Edite – Meu pai separou de minha mãe ainda quando a gente morava ali na Matarina.

Ele nos largou a todos. Meu pai bebia muito, era mulherengo e estúpido com minha

mãe. Minha mãe não escondia isso, ela nos falava. Ele bebia, gostava muito de farra, já

quando a gente morava no Sítio Bananeira. Ele criava gado e às vezes matava boi. Uma

vez, ele correu atrás de um porco com uma faca para matá-lo. Olha que brutalidade, né?

Quando ele jogou a faca, não sei o que aconteceu, minha mãe vinha saindo e aquela faca

resvalou e bateu nela, tendo sangrado muito, depois. Ela nos contava isso e dava uma

ideia de como ele era bruto. Quando ele separou de nós, já estávamos morando na Mata-

rina. Um dia, ele sumiu e foi embora, desapareceu. Arrumou uma mulher e colocou uma

bodega ali bem perto de Santa Catarina. E passou a morar com essa mulher. Mãe ficou

sozinha com todos nós, trabalhando na roça para nos dar o sustento. Eu e Duda éramos

pequenos. O Zé Guilherme conheceu a Madia e depois terminou casando com ela, indo

morar onde teu pai morava, em Pernambuco. Foi através dele que a gente foi morar lá

com vocês, em Sertânia, entendeu? Porque, até então, a gente morava sozinhos na Mata-

rina. Eu não lembro o namoro da Madia com o Zé Guilherme. Eu ainda era pequena.

Mas lembro muito de tua mãe, Dona Verônica, que nos ajudou muito. A gente não tinha

praticamente o que comer, e ela nos ajudava. A gente, juntamente com a Virgínia e a

Flora, íamos catar algodão, feijão, milho... E a gente brincava e se divertia muito. Minha

mãe era muito brincalhona. Nós trabalhávamos na roça. Lá também tinha o tio Umbeli-

no. E eu lembro que brincava muito com os filhos da Teodósia, que era irmã de Celina,

esposa de tio Umbelino. Nós íamos tomar banho no açude, toda aquela meninada. Nin-

guém mexia com a gente. É tão diferente de hoje, não? Em Pernambuco, foi o período

de nossa adolescência.

Antônio – Como era a vida de vocês nessa época?

Edite – Era uma vida de simplicidade. A gente praticamente não se divertia, mas, ape-

sar disso, a gente era feliz, sabe, Antônio? Nossas bonecas eram feitas de pano e de

pau. Nós não tínhamos brinquedos. Queríamos comer um doce e não tínhamos. Quando

a gente queria comer um doce, nós pegávamos açúcar da lata para comer. E a mãe fica-

va tão braba... (rindo muito). Quem fazia uns docinhos era Maria Gomes. Lá na Paraí-

ba, eu estudei na escola de Manoel Clementino. Ia a pé, uma distância enorme. A Madia

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estudou com ele... E, nessa época, eu lembro que ele fazia uns docinhos de açúcar. Ele

mexia o açúcar e fazia um tipo de cocadinha que a gente comprava. Nunca esqueci isso.

Aí eu voltava da escola sozinha, brincando... Pulava nas pedras, subia nas árvores, nos

pés de umbu. Era gostoso. A vida nossa era essa e era assim. Depois, mesmo em Per-

nambuco, a gente costumava ir às festinhas que o tio Umbelino organizava. Eu, a Virgí-

nia e a Conceição íamos escondidas. Se teu pai soubesse, meu Deus! Ele terminava ba-

tendo. Nós íamos e brincávamos com os meninos: Carlos Gomes, Manoel, José... O

Severino ainda era molecão e também ele não gostava disso não. Tinha o finado Nelson

e o povo de Maria Gomes. Às vezes, a gente ia para Sertânia, e o dinheiro que a gente

tinha era dos ovos de galinha que tua e minha mãe vendiam. A gente ia de pé para a

cidade. Chegando lá, sem dinheiro, a gente via todas aquelas barracas com tanta coisa,

mas nós só fazíamos olhar. Quando era uma hora da manhã, depois da missa, tua mãe

comprava uma enorme tábua de pão doce (rindo muito) e nós vínhamos comendo pelo

caminho, de volta para casa. E o frio? Sabe o que nós fazíamos? Levantava a saia até os

ombros para cobrir os braços, protegendo do frio (rindo). A gente olhava aqueles car-

rosséis, sem poder brincar, batia um sono... Nossos namorados... Meu primeiro namora-

do foi Nelson, um primo de vocês, filho da finada tua tia, acho que era Sinforosa. Foi

um namoro só de piscar o olho, porque naquele tempo nem pegar na mão da noiva era

permitido. Uma vez, eu morava naquela casinha lá da escola onde Dona Zefinha dava

aula, ali na sala de nossa casa. A casa tinha uma sala grande onde se dava a aula, en-

trando tinha um corredorzinho e, ao lado, a cozinha e um quartinho. Só, mais nada. Do

lado esquerdo, tinha um pé de canafistula. Todo mundo sabia que a Miúda, esposa de

João Garcez, gostava muito de conversar com a Dona Zefinha (rindo muito). Eu apron-

tei cada uma nessa época, que só vendo... A gente subia num fogão de barro que tinha

na casa e por ele a gente olhava as duas pela fresta das telhas. Elas, claro, não consegui-

am nos ver. As duas tinham uma conversa, bem baixinha... A gente doida para saber o

que elas conversavam e não conseguíamos entender nada! Nós ríamos tanto, tanto! A

Virgínia era a mais sem-vergonha. Uma vez, nesse tempo eu já namorava José, à noiti-

nha ele veio lá em casa, chamou-me na porta e eu fui e abri a porta. Ele me abraçou e

me beijou. Tua mãe viu aquela cena amorosa e ficou tiririca com ele. “Cabra sem-

vergonha... (rindo muito). Que modos são esses de beijar moça, você não tem vergonha

na cara?” Eu fiquei tão sem jeito, meu Deus! Quase morri de vergonha, Antônio. E fi-

quei meio desconfiada, né? Pois é, a gente era inocente demais. O que acontecia quando

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a gente tinha as primeiras menstruações? Era um Deus nos acuda, porque nós não sabí-

amos do que se tratava. Ninguém, nem nossas mães conversavam conosco o que era

aquilo. Um dia, eu estava com uma dor de barriga danada. Falei pra Virgínia que estava

com aquela dor que não passava, não passava de jeito nenhum. Perguntei a ela o que era

aquilo. Depois, vieram as regras. E aí eu disse pra Virgínia que estava toda me lavando

em sangue (rindo muito). Veja a inocência da gente, Antônio. Comparando com os

dias de hoje?! Foi aí que a Virgínia veio me explicar ao modo dela. Nunca as mães da

gente nos ensinaram qualquer coisa. Às vezes, entravam as comadres para conversar e a

gente não escutava nada; elas brigavam conosco para a gente não ficar ali, junto delas,

ouvindo aquele papo. E era ruim para nós essa ignorância. Uma coisa da vida, da natu-

reza...

Antônio – E o que você lembra sobre a vida na escola, lembra os colegas?

Edite – Meu tempo de escola, a maior parte do tempo foi ali na escola de Dona Zefinha,

com vocês todos. Ali vinham as meninas e os meninos todos. O José é que tinha pregui-

ça de estudar. Eu tinha uma caligrafia muito bonita. Lembro de Isabel, a tua prima, filha

do Seu Umbelino. Tinha aquelas cantorias todas, ou seja, a obrigação de ler aquela car-

tilha cantando em voz alta, cantando as operações de matemática... Cantava até apren-

der, da primeira página até a última. Dona Zefinha era braba e muito dura. Nessa época,

na casa de vocês, eu lembro que tinha um mundo de trabalhadores. E Dona Verônica

costurava um mundo de roupa, no sistema de carregação. Ela pegava aquela imensa

trouxa de roupa e levava para entregar em Sertânia. Era um trabalho enorme. E a Flora

ajudou muito nisso também. Como era trabalhadora a Flora! Trabalhou até a última ho-

ra. Mas esse foi um tempo maravilhoso. Casei naquela igreja matriz de Sertânia. Meu

padrinho foi Severino Caminhão, irmão da Enedina. Depois do casamento, deram um

almoço na casa da fazenda. Foi só pra gente mesmo, para os padrinhos e uns vizinhos.

Na nossa casa, morávamos eu, Duda e minha mãe. Duda, depois, veio para São Paulo. E

lembro que por esses mesmos anos o José viajou para Minas Gerais com aquele pessoal

do seu Paizinho, os Remígio. Nós casamos e ficamos uns anos naquela casinha, lá junto

de vocês. Quando nós viemos para São Paulo, a Ezenilda tinha já mais de dois anos de

idade. Depois, veio o Zenildo, que nasceu também na nossa casinha lá de Santa Luzia.

Antes de vir pra cá, o José trabalhou de barbeiro um tempo, em Sertânia, no salão do

Lula Barbeiro, lembra? E nós alugamos uma casinha ali perto da Rua do Buraco, na

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saída de Sertânia para Monteiro. A Ezenilda nasceu aí. Você passou uns dias na nossa

casa, lembra? A Ezenilda chorava, meu Deus, como ela chorava! Lembro que a casa

não tinha banheiro, e a gente fazia as necessidades, embrulhava em jornais e jogava

fora. Como aquilo não prosperou, o José resolveu vir para São Paulo. Ele veio na frente

e ficou na casa de Flora, na Rua Lício de Miranda, na Vila Carioca. Chegou um certo

tempo, e Dona Verônica me aconselhou a viajar para São Paulo a fim de ficar junto do

meu marido. E ela disse-me nessa ocasião: “Homem é bicho ruim, vá embora! Onde

estiver o homem, tem que estar a mulher!” Eu lembro que ela ajeitou e veio eu, a minha

mãe e o Severino. Ele me ajudou muito. Sem dinheiro, sem fralda; lembro que tive de

rasgar não sei quantos lençóis velhos para fazer fraldas para os meninos. Logo que che-

guei aqui em São Paulo, passei tanto frio! Pensa que tínhamos roupa? A viagem da vin-

da para São Paulo foi outro Deus nos acuda. Pegamos um daqueles ônibus velhos clan-

destinos e tomamos a estrada para São Paulo. Mas, graças a Deus, não aconteceu nada.

Chegamos aqui esbagaçados, mortos, com duas crianças a tiracolo. E a mãe veio comi-

go.

Antônio – Novo momento de sua vida em São Paulo, não foi?

Edite – Foi um sufoco, porque o José estava morando com a Flora. Todo mundo dentro

da casinha dela lá na Vila Carioca. Não sei como cabia, mas coube. Ele já havia com-

prado um terreno aqui na Vila Ema. Ele vendeu uma vaca que ele tinha no Norte e deu

de entrada aqui num terreno junto com o Anísio. Aí nesse terreno ele levantou um bar-

raco de madeira. Mas como fazia frio! E quando nós chegamos aqui, naquele tempo,

havia uma garoa gelada com um frio intenso. O mundo ficava que parecia gelo. E, como

lhe disse, nós não tínhamos roupa; nem meias, nem agasalhos... E logo, logo, eu fiquei

grávida de Aparecida. A Ezenilda é do dia 12 de novembro de 1956, o Zenildo é do dia

24 de fevereiro de 1958. A Aparecida é do dia 29 de maio de 1960. Eu só comecei a

trabalhar no Hospital da Cruzada no dia 18 de janeiro de 1961. Vou falar sobre a minha

vida de profissional aqui em São Paulo. Comecei a trabalhar aqui em casa de família.

No primeiro emprego, eu ia de pé até uns prédios altos que ficam ali na Santa Clara.

Comecei a trabalhar lá, e era na casa de uma mulher boazinha. Ela me dava verdura, me

dava leite, mas não deu certo continuar porque eu tinha que ir e voltar a pé, e era longe.

A Flora arranjou lá na Silva Bueno a casa de uma síria para eu trabalhar. A mulher era

ruim e miserável, era pão-duro que só vendo. Ela tinha uma loja ali na Silva Bueno, mas

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era uma sujeira desgraçada a casa dela. Quando eu cheguei, deparei com um monte de

roupa suja para eu lavar. Eu ia de pé até a Vila Prudente e lá pegava aquele bonde bran-

co, aberto, que existia nessa época, para poder chegar lá à casa dessa mulher. Eu limpa-

va a sujeira da casa e da roupa da mulher. Um dia, após esse esforço todo, já com muita

fome, fui à padaria comprar a quantidade de pão que ela me pedia todos os dias. Eu não

sabia que o pão tinha aumentado. Devolvi o troco a ela sem conferir se estava igual às

outras vezes. Ela achou que o dinheiro estava pouco e não entendeu, porque não sabia

que o pão e o leite tinham aumentado. Eu fiquei chateada com aquilo, porque ela imagi-

nava que eu tivesse ficado com parte do dinheiro do troco... Quando fui ver o meu al-

moço, vi que era um ovo, uma verdurinha e tudo bem pouquinho, feijão e arroz. Um

dia, eu lavei uma trouxa de roupa, tão suja, Antônio, tão suja que eu nunca esqueci.

Quando as crianças viram aquela roupa lavada, disseram: “Olha que limpas estão as

nossas roupas, mãe!”. Eu decidi sair de lá, porque não me compensava o trabalho e o

esforço. Era muito trabalho, e ela me pagava uma miséria, além da fome a que era sub-

metida. E quem trabalha no pesado tem fome, não é? Eu decidi ir embora. Saí de lá e

nem o dinheiro do dia fui receber. Quanto ao emprego do hospital, a história aconteceu

da maneira seguinte. O José, nesse tempo, trabalhava no Estado, na limpeza pública,

com esgotos de rua. Eles usavam umas botas de borracha e tomavam vacinas para evitar

doenças. Depois de algum tempo, mandaram-no trabalhar no Hospital da Cruzada. E lá

tinha uma senhora, Dona Olga, que era a chefe do escritório. Era uma solteirona, mas

era uma senhora muito bondosa. Ele falou com ela se não estavam precisando de al-

guém para trabalhar no hospital, não sei o que mais. E tinha um tal Senhor Sílvio que

era o chefe dele, e José gostava muito de brincar com ele. Eles tinham que fazer faxina

nos corredores do hospital. Um dia, ela me chamou e fui lá. Antes, porém, eu tive que

dar baixa num emprego que eu arranjei lá na Vila Prudente, na casa de uma senhora

boazinha, que se chamava dona Elisa; eu nunca esqueci o nome dela. Ela já estava gos-

tando de mim e tinha pegado confiança. Ela tinha um filho que estudava na faculdade

pra médico. Eu tive que pedir as contas. Falei pra ela que tinha arranjado uma vaga num

hospital para fazer um trabalho que eu gostava e que lá eu ia ter estabilidade e os meus

direitos trabalhistas garantidos. Ela lamentou muito, mas entendeu minha atitude. De lá,

eu fui para o hospital.

Antônio - E aí, nesse novo momento, o que você fez e o que mudou em sua vida?

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Edite – Eu iniciei lá fazendo faxina. Eu não sabia fazer nada. Antônio, foi a mão de

Deus, não foi outra coisa, foi a mão de Deus. Logo que eu entrei lá, frequentei um curso

que o SESI ofereceu para atendente e, depois disso, eu entrei trabalhando para a pedia-

tria com as crianças; trabalhei no berçário, trabalhei na pediatria com as crianças doen-

tes, trabalhei com os prematuros, cujo médico chefe era o Dr. David e que era uma pes-

soa muito boa, uma pessoa de idade e muito gentil. Levava as crianças pra mamar,

transportava no carrinho com a maior responsabilidade. Cuidar do nome deles, o nome

das mães, o número da cama. E as crianças pareciam aqueles pacotinhos de gente... Le-

vava pra mamar e depois ia deixá-las nos diferentes andares do prédio. Era um serviço

gostoso. Depois, peguei a amizade e consegui trabalhar nos andares das pacientes até a

época em que me jogaram para trabalhar no centro obstétrico, após a mudança da antiga

chefia. Meu horário de trabalho era o seguinte: no primeiro mês, eu entrava das três às

onze horas da noite. E, naquele tempo, os ônibus eram uma tristeza, Antônio. Eu andava

do hospital até ali à Praça João Mendes para pegar o ônibus da Vila Ema. Eu chegava

em casa uma hora da manhã. Descia onde hoje existe aquela padaria, na esquina com a

Rua Herveck, e subia essa ladeira todinha. Era uma casa aqui e outra bem longe. Sentia

um medo que só vendo, apesar de, naquela época, não ter os assaltos e perigos que te-

mos hoje em dia. Saía correndo, e a marmita chacoalhando: xek, xek, xek... Um dia, um

motorista do ônibus me perguntou se eu não tinha medo de andar pelas ruas numa hora

daquelas. Eu falei para ele que, se eu precisava trabalhar, iria fazer o quê? E olha que eu

andava até onde morava o Anísio. Era muito longe. Isso durou um ano, mais ou menos.

Depois, me mudaram de horário. Eu passei a trabalhar, entrando às sete e largando às

quinze horas, ou seja, três da tarde. Aí melhorou para mim. Outra época, eles modifica-

ram os horários, e ainda ficou melhor para mim. Começava às sete da manhã e ia até às

sete da noite, sendo um dia sim e outro não. Aí melhorou ainda mais. E houve uma épo-

ca em que o hospital entrou em crise e começou a cair o atendimento. Foi nessa época

que o pagamento saía atrasado. Mas eu continuei lá como todos os demais que precisa-

vam do salário. Depois, o hospital melhorou a administração e entrou nos eixos. Houve

uma época em que minha chefe se chamava Dona Elza; aquilo era uma mulher ruim...

Tinha as fofoqueiras, que viviam falando mal de você, tinham as puxa-saco... Mas eu

tinha lá minhas pessoas boas, que me ensinavam, me orientavam. Havia dias em que se

uma não tivesse dinheiro para levar o lanche as outras dividiam com essa colega. Eu

sempre exerci a mesma função de auxiliar de enfermagem. Não tinha condições de mu-

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dar, não estudei. Eu tinha vontade, mas como ascender? O José sempre foi um homem

que não me ajudava nem incentivava nada. Se eu fosse outra pessoa, eu o teria deixado

há muito tempo. Mas eu gostava do teu irmão. Foi o que eu falei para ele antes dele

morrer. “Você foi o único homem que eu amei. Homem nenhum tocou em mim, você

foi o primeiro e você não me valoriza!” Eu falei pra ele isso. Quando eu chegava em

casa do trabalho, encontrava José jogando bilhar, em vez de estar trabalhando. Eu che-

gava e não tinha nada pra botar no fogo e aquilo me revoltava, Antônio. Ele mandava

Zenilda comprar um quilo de feijão lá no bar do fiteiro. Ele passava o dia em casa e

ainda a mandava comprar essa mesquinharia. Isso não é humilhação? É. Tinha dias que

só tinha um ovo. Houve época em que Virgínia ficou com a gente lá. Nós só tínhamos

um quarto para dormir. Isso é vida? Nossa, eu sofri muito. Tenho a cabeça no lugar,

porque Deus é bom. Houve época em que a chefe me jogou sozinha num andar. Antô-

nio, eu cheguei a fazer parto! Claro, foi em situação de emergência, porque não tinha

ninguém para atender. Mas tinha que ter um auxiliar, porque o auxiliar mandava mais.

Eu tinha de fazer injeção, sem saber, eu tinha que ligar o soro dos pacientes – ainda bem

que elas tinham me ensinado –, o que não é o mesmo, mas Deus me ajudou. Às vezes,

as mulheres estavam para ganhar neném e eu tinha de as colocar na mesa, abrir todo o

material para não contaminar... Eu corria no telefone para chamar os médicos que esta-

vam lá embaixo, não sei o que estavam fazendo, deviam estar tomando cafezinho, sei lá.

E, aí, o que acontecia era eu sozinha num andar pra tudo. Eu fazia ficha, eu fazia pulsei-

rinha dos nenéns, olha que responsabilidade! O neném nascia, eu mostrava o sexo à

mãe, falava o nome, perguntava o nome dela, e o médico cuidando dela lá. Punha tudo à

disposição dele, porque eu mesma não podia. Punha no ressuscitador e aspirava os ne-

ném, limpava, embrulhava e colocava no cestinho, levava lá embaixo para pesar. Ia lá

ao berçário, fazia a papelada, preenchia... Às vezes, as colegas tinham dó de mim e se

encarregavam de encontrar alguém que levasse aquele papel no berçário, que era para

ser entregue à família quando chegasse alguém. Eu entrei nesse hospital em 1961 e saí

em 1989. Saí aposentada. E foi para mim uma vitória. Foi lá, quando eu trabalhava no

hospital, que descobri que era chagásica. Eles me encaminharam para o Dante Pasanelli

para fazer o tratamento. Naquele tempo eu integrava o grupo de controle do tratamento

de Chagas com aqueles barbeirinhos pequeninos para picar em quatro partes dos meus

braços. Hoje, eles não fazem mais. Todo mês, eu tinha que ir lá para os barbeiros chupar

o meu sangue. Eles administraram remédios que me eram repassados. O remédio vinha

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dos Estados Unidos. O médico era nervoso... Era o Dr. Elias. Ele terminou morrendo de

câncer. Tinha gente que, como efeito colateral do remédio, caía até a pele do pé. E ele

dizia: “Tem de tomar!” Outros passavam mal, e ele: “Tem de tomar!” Eu dizia: “Ai meu

Deus do céu!”. Graças a Deus, eu não tive nenhuma reação. Depois disso, eu fiquei fa-

zendo controles periódicos e acho que, se afetou o coração, deve ter regredido. Depois

da morte de José é que eu tive uma arritmia. Mas foi por conta dos problemas que eu

tive, não é, Antônio? Com quatro meses após a morte de José, morreu Duda. Na luta

com José, tinha dia que o meu corpo tremia de cansaço, Teresa é testemunha disso. Mas

estou bem. Fiz exames recentes e deu tudo bem. Quando eu me aposentei, achei ruim

ficar o tempo todo em casa. Mas logo acostumei.

Antônio – Edite, fale-me de José Barbeiro, seu marido. Ele melhorou a situação

dele depois que chegou a São Paulo?

Edite – Que nada! Eu era o homem e a mulher da casa. Praticamente, José não traba-

lhava, e o que ganhava na barbearia era uma mixaria. E ele tinha outra mania, que você

deve lembrar, é que, quando ele decidia ir pro Norte, sequer me avisava; já chegava de

passagem na mão. Aquilo me doía, porque eu era a mulher dele, e isso não se faz nem

com uma vagabunda, sou sincera em falar. Quanto mais eu, que sempre o respeitei; até

hoje, ainda o respeito. Onde ele estiver, ele é o mesmo, entendeu? Não foram poucas as

vezes que ele decidiu viajar e, quando ficava faltando um dia, ele falava: “Arruma as

coisas que eu vou pro Norte”. Eu ficava trabalhando, e ele no mundo. Não me deixava

despesa, dinheiro, não deixava nada. Eu é que tinha de quebrar a cabeça, eu mesma, e

resolver a minha vida. Compreendeu?

Antônio – Como é que José era pai, e qual era a relação dele com o filho e as fi-

lhas?

Edite – Olha, quando eles mereciam, eu é quem os castigava com um tapinha. Sempre

ia trabalhar preocupada, como eu mesma falava para a Zenilda, que era a mais velha dos

meninos. Eu avisava a ela que tinha feijão, arroz e carne, e ela é quem cuidava dos mais

novos, Zenildo e a Aparecida. Ela era quem os levava à escola e ela contava que, quan-

do os deixava lá, vinha chorando com saudade deles. Eu não tinha tempo de ir numa

reunião de escola, e o José nunca foi. Ele quase não trabalhava. Você sabe o que ele

fazia quando não tinha ninguém? Ele ia jogar bilhar num bar durante duas, três e quatro

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horas. Eu discutia, às vezes, com ele. E ele tinha um medo danado de mim, quando per-

cebia que eu o flagrava nessa jogatina (rindo muito). Ele se escondia de mim. Durante

a doença, ele sofreu muito, e aquilo me dava uma imensa dó dele, apesar dele me xin-

gar, mas eu acho que era por conta da doença avançada. O problema principal da saúde

dele, que o levou à morte, foi o rim e isso porque ele tinha pressão alta e nunca se preo-

cupou em tratar. Esse foi o diagnóstico. Ele sempre teve pressão alta. Há uns trinta anos

que ele sofria de pressão alta, mas nunca quis ir a um médico se tratar. Esse quadro clí-

nico de problemas decorrentes de pressão alta é familiar. Manoel tinha pressão alta,

Flora, Severino, José... A Marlene, de Manoel, tinha pressão altíssima. Voltando à per-

gunta sua, a relação dele com os filhos era mais ou menos. Mas não era boa. Ele era

muito encrenqueiro e teimoso, e isso sempre aborreceu os filhos e, especialmente, a

mim.

Antônio – E sua relação com os irmãos: Maria, Duda e Zé Guilherme?

Edite – A Maria já faleceu há muito tempo lá no Norte, em decorrência de uma queda

que ela levou. O Zé Camilo, marido dela, não sei se morreu ou se ainda vive. Os filhos

dela abandonaram e se mandaram para as bandas de Mato Grosso. Nunca mais ouvi

falar deles. O resto morreu; o último foi Duda. Eu gostava de todos eles. Uma vez, Zé

Guilherme ficou um ano sem falar comigo. Pelo seguinte. Num desses finais de ano, eu

me juntei aqui com o José e os meninos e fomos à casa dele e da Madia para almoçar

com eles naquele dia de festa. Chegando lá, encontrei o maior rebuliço. Zé Guilherme

tinha brigado com Madia. O motivo: ciúmes. Acho que ele ciumava daqueles colegui-

nhas dos meninos que sempre iam a casa brincar e conversar. Ele estava todo emburra-

do. Aí eu falei pra ele acabar com aquilo, não fazia sentido ciumar da coitada da Madia,

que só tinha filhos. Aquilo era absurdo da parte dele, e ele não tinha razão de acusá-la

de nada. Ele ficou danado comigo e passou mais de um ano sem falar comigo e sem vir

aqui em casa. Eu falei pra ele que aquilo fazia vergonha. Zé Guilherme herdou o gênio

difícil do pai. O Duda era calmo. Ele foi bom pai, bom marido, bom amigo de todos.

Todos vocês têm uma relação especial com Duda. Ele ficou muito preocupado comigo

quando o José morreu. Com quatro meses depois, ele falece. Ele tinha feito uma cirurgia

do coração e correu tudo bem, uma maravilha. Fez a cirurgia em Curitiba e foi operado

por um cirurgião dos Estados Unidos que visitava Curitiba na época da operação dele.

Mas, de repente...

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Antônio - Edite, fale de sua maior tristeza e de sua maior alegria.

Edite - Minha maior alegria era quando todos nós estávamos juntos, quando éramos

pequenos. A gente, praticamente, não tinha nada, mas nós nos sentíamos felizes. E falo

de coração: amei muito seu pai, todos vocês (chora muito). São pessoas muito especi-

ais para mim. Sou feliz por ter os meus filhos e os netos que eu tenho. Mas tem dias que

me acho sozinha. Eu nunca esperei ficar sozinha. A minha guia aqui é Tereza. Tudo é

ela quem me ajuda. Minhas tristezas são decorrentes dessas coisas. Gostaria de ver mi-

nha família mais unida, na paz, sabe? Porque nós não levamos nada da nossa vida. Nós

deixamos tudo aí. José lutou, eu lutei, todo mundo luta. Você vê a tristeza da gente ter

perdido o Givaldo, uma pessoa boa, maravilhosa, aconchegante, especial. Nós fomos

criados todos juntos. Os meus netos me alegram. Tenho netos e bisnetos; hoje, nasceu

um deles. Isso já me basta.

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Enedina Maria de Siqueira52

Antônio – Enedina, qual a sua idade? Diga o nome dos seus pais, seus irmãos, onde

você nasceu e morou.

Enedina – Eu tenho setenta e três anos. Sempre fui muito fã do meu pai, e nós nos de-

mos bem em toda a minha vida. Com minha mãe, também. Você sabe que em todas as

famílias existem desavenças, mas na nossa família tudo foi controlado. Eu nasci e me

criei no Nordeste, lá na velha Paraíba cheia de coisas. Durante muito tempo, trabalhei

com meus pais ajudando a eles. Quando cheguei à idade de estudar, tive oportunidade

de estudar, pedindo muito a eles, porque você sabe que, naquela época, a gente vivia

para ajudar a nossa família, que trabalhava na roça e não se tinha mentalidade de ter

todo o tempo para estudar. O tempo de estudo era muito pouco. Quando eu tinha a idade

de doze anos eu falei para o meu pai que iria ajudá-lo naquilo que fosse possível, inclu-

sive trabalhar na roça. Mas, dizia eu, peço-lhe que me deixe estudar. Ele concordou, ao

contrário de muitos pais que, no Nordeste, achavam que a mulher não deveria estudar

para melhor se dedicar às tarefas de dona de casa. Mas ele não usou esse tipo de argu-

mento. Minha mãe também era uma pessoa compreensível, graças a Deus. E, até certa

52 Enedina Siqueira, casada com Anísio Jorge Siqueira, mora em Arapuá, Três Lagoas, MS. Entrevista

feita no dia 12 de setembro de 2009, na Vila Ema, São Paulo.

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idade, a gente foi crescendo juntos. Quando eu tinha a idade de quatorze anos, meu ir-

mão Severino comprou uma lojinha, e eu fui com ele para aprender a trabalhar no co-

mércio. No prazo de um ano e meio, trabalhei para aprender, antes mesmo de me ocupar

de outras coisas.

Antônio – Desculpe voltar ao início da entrevista. Quem eram seus irmãos? Você

ocupava que posição na família?

Enedina – Alguns dos meus irmãos e irmãs faleceram. Nós éramos quatorze irmãos.

Maria do Carmo, Maria Rita... Essas irmãs morreram antes de eu nascer, por isso tenho

dificuldade de memória com relação a elas, porque eu não as conheci. Também morreu

o caçula, que se chamava José Everaldo e, além dele, tivemos Maria ..... (inaudível),

Maria José, Maria do Carmo e Quitéria. Já os meus irmãos foram Severino, Manoel,

Francisco e Expedito. De irmão vivo, agora eu só tenho o Expedito. E das irmãs, eu

tenho a Tida (Erotides), a Maria do Carmo e a Quitéria. Nós morávamos na Paraíba, no

Sítio São Francisco, perto da atual cidade da Prata. Nós todos, como já disse, vivíamos

na roça e da roça. Como a vida da roça é muito difícil, e você sabe bem o que é isso, a

gente, na medida em que ia completando a idade de doze, treze e quatorze anos, saía

para buscar outros meios de sobrevivência. A maioria dos homens saiu e ficamos sós,

eu e minhas irmãs. As mulheres, pouco a pouco, foram casando, outras buscando os

seus namorados; foram saindo uma a uma. Os velhos ficaram sós. E logo entenderam

que viver sozinhos naquele fim de mundo não lhes dava futuro. E aí resolveram vender

o sítio lá da Paraíba e compraram outro sítio na divisa do Estado de Pernambuco com a

Paraíba, perto do vilarejo de Pernambuquinho. Ali meus pais ficaram muito tempo e

terminaram vendendo. Compraram uma casa em Petrolina, onde passaram a morar na

cidade. Lá chegando, ele começou a negociar com fumo. Meu pai era uma pessoa muito

boa e não negava as coisas para ninguém. Até que, por ser tão bom de coração, termi-

nou levando um prejuízo relativamente grande, sabe? Chegava a época de fim de ano, e

meu pai comprava caminhões inteiros de fumo. A turma foi vendo aquele homem hu-

milde, que prosperava e não negava nada a ninguém, procurando fazer favor a todo

mundo. Certas pessoas começaram a pedir emprestado dinheiro, mercadoria e outros

bens. Terminavam indo embora sem pagar um centavo. Resultou que meu pai teve um

enorme prejuízo. Chegou a um ponto em que ele deixou de fazer negócio e foi viver

com a aposentadoria.

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Antônio – Voltando um pouquinho ao início de suas memórias, quando você teve o

consentimento de seus pais para frequentar a escola, quem foi sua professora e

qual escola você frequentou?

Enedina – Meu primeiro professor foi uma mulher, que se chamava de Neném. O se-

gundo professor era chamado de professor Raul. A escola era lá em São Francisco, e

esse professor era maravilhoso. Era parente de Cazuza Nunes, era irmão dele. Depois

que eu mudei dessa primeira escola para a outra da divisa com os Estados, estudei com

outras pessoas e foram outros os meus professores. Mas não lembro mais os nomes de-

les.

Antônio – As minhas irmãs, quando moravam lá na Matarina, que é vizinha ao

São Francisco, falavam todas que tinham tido um professor maravilhoso, cujo no-

me era Mestre Gonçalo e que era teu tio...

Enedina – É verdade, só que eu não cheguei a estudar com ele, porque eu não tinha

idade. Apenas lembro que, quando ele dava as aulas, eu ficava ali junto dele, com uma

vontade louca de ir aprender, mas eu não tinha idade para isso. Eu ficava só olhando o

que ele fazia e falava para os outros alunos. Houve um momento em que ele falou para

minha mãe: “Olha, Margarida, sua filha é muito inteligente, e a gente tá vendo como ela

é interessada. É alguém que, se tiver uma oportunidade de estudar, ela vai pra frente”.

Minha mãe ficou naquela... Quando eu completei sete anos, fui pra escola. Aprendi as

primeiras letras, e tudo o mais, quase sozinha, porque os pais da gente nunca consegui-

am nos ajudar. Com a idade de uns doze anos, eu vim com os meus pais morar na divisa

com Pernambuco. Ainda passei uns quatro anos trabalhando com ele ali no sítio. Depois

é que surgiu a lojinha do meu irmão, e eu parti para trabalhar com ele na cidade. Nessa

idade da minha adolescência, eu tinha minhas amiguinhas com quem conviva e brinca-

va. A maioria eram minhas primas, e era com elas que eu ficava a maior parte do tempo.

Elas eram filhas do meu tio, Fortunato Ângelo. Conversavam ali e tal, mas tinham ou-

tras pessoas que eram amigas da gente. Mas faz tanto tempo que a gente se viu que, com

essa passagem do tempo, a gente termina esquecendo. Mas eu tive uma infância e uma

adolescência boa. A minha, foi porque eu nunca fui maltratada, nunca fui humilhada e

meu pai e minha mãe me adoravam. Só que havia as trelas, enquanto meninas, e vez por

outra fizemos por merecer umas palmadas na bunda. Lembro bem que, às vezes, mamãe

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me deixava tomando conta dos meninos, e eu começava a fazer uns carrinhos para eles

brincarem e terminava por esquecer as panelas no fogo, deixando queimar a comida.

Um dia, ela foi apanhar um algodão e recomendou que eu olhasse as panelas, cuidando

em não deixá-las queimar. Eu fui fazer uns brinquedos para os meninos, e a panela de

xerém terminou esturricando... Ela vinha voltando com uma lata de água na cabeça e

quando chegou sentiu o cheiro daquela panela queimando. Foi logo dizendo: “Espera aí,

cabrita!” Ela não chamava nome com a gente de modo algum. “Espera aí, cabrita, que

eu vou lhe ensinar”. Aí ela pegou uma corda e, quando eu vi que ela ia me bater, eu dei

uma carreira tão grande... Você sabe que as portas das casas no Nordeste têm uma divi-

são no meio e que geralmente só fica aberta a parte superior, ficando a outra fechada

permanentemente. Quando eu corri, vi que a porta de baixo estava fechada e só tinha

uma saída, era saltar de um pulo só. Só que, quando eu pulei, caí no chão; nessa hora,

minha mãe já estava em cima de mim para dar as bordoadas. Eu fiquei com desgosto

porque tinha apanhado, mas fazia parte da nossa vida de meninos. Meu pai nunca foi de

bater em nós. Mesmo com minha mãe, a gente não vivia apanhando à toa. Ele dava mui-

to era conselhos, ensinando que não fizéssemos assim e assim. Umas palmadinhas, vez

por outra, mas não era de bater como carrasco e estúpido; não era. O nosso dia-a-dia era

uma vida dedicada à roça, onde passávamos a maior parte do nosso tempo. A gente se

sentia bem, apesar do calor inclemente daquele sol de verão. Quando chegávamos a

casa tomávamos banho e ficávamos ali naquelas janelas... Eu e minhas irmãs botávamos

pra cantar... Cantávamos tudo o que aparecia na vida. A gente decorava e cantava. A

minha irmã Tida era muito danada e sempre foi brincalhona. Ficava botando fogo na

gente e íamos até a madrugada dando gargalhadas. Minha mãe dizia: “Minhas filhas,

vão dormir que amanhã é dia de serviço e vocês têm de acordar cedo!” Chegava ao

quarto, e a gente não tinha sono. Ficávamos conversando bem baixinho, cochichando...

Era boa a minha vida de infância. Nunca passamos apuros de ter fome, necessidades,

não. Meu pai sempre foi um homem cuidadoso e buscou mesmo como pobre manter

bem a sua família. Um pobre que nunca deixou faltar o nosso pão. Namorar... Era a coi-

sa mais difícil. Eu não tinha namorado não. O primeiro namoro meu foi uma graça. Foi

numa festa de novena. Olha, eu dei risadas pra caramba quando as meninas descobri-

ram. Eu vou contar. As minhas irmãs tinham lá os namorados delas. Eu ficava mais de

fora. Fui à festa e lá vi um rapaz bonito, morenão, alto... A gente se olhou de longe,

porque o namoro naquele tempo era mesmo a distância. Não é, absolutamente, como

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nos dias de hoje. Eu sei que quando o rapaz veio para perto de nós, em público, se fazer

anunciar, nessa hora eu vi que ele tinha um pescoço maior do que o normal das pessoas.

Olha, as meninas depois me gozaram o quanto puderam, perguntando se eu estava na-

morando um rapaz ou um ganso (ri muito). Olha, Antônio, a partir daquele momento

acabou-se o encantamento, algo como um pavão que mostra os pés. Foi uma ducha de

água fria. Acabou a novena, e nós fomos embora. No caminho, foi uma gozação só com

a minha cara. A nossa vida era aquela, de roçado, de brincadeiras, de cantar... A minha

saída da roça para a cidade foi mais ou menos assim. Meu pai aceitou que eu saísse,

porque já naquelas alturas eu tinha feito a quinta série primária. Eu sempre escrevi e

sabia contar muito bem, sem nenhum problema. Fui trabalhar junto com meu irmão,

aprendi a trabalhar na loja dele por cinco anos – o ramo dele era comércio de tecidos.

Eu fazia de tudo na loja: contas, metragem, vendas; conhecia todos os tipos de tecidos.

Sabia o que era de algodão, o que era seda, o que era “laquê”, todos os tipos de coberto-

res, do mais barato ao mais caro, etc. Em Sertânia, tinha muita gente orgulhosa, que

fazia questão de aparecer, e essas mulheres ai de Sertânia compravam coisas boas, se-

das, crepes, linhos... Os homens compravam brim, linho, caque. Teu pai era meu fre-

guês. E era um freguês bom, porque ele gostava de roupa boa: linho, caque... Quando

chegavam aquelas peças de tecidos de qualidade, eu oferecia a ele, e ele sempre levava

do melhor. Eu já tinha certo conhecimento e intimidade com ele para poder abordar e

oferecer a mercadoria. Ao final do ano, eu e ele fazíamos o balanço da loja. Algum

tempo depois, a sua irmã Virgínia passou a trabalhar conosco. Veio outra menina, que

se chamava de Bernadete. A gente viajava para aqueles povoados mais distantes com

tecidos para serem vendidos, e lá se passava a tarde inteira vendendo roupa naquelas

barracas. Voltando a minha família, como eu lhe dizia, meus irmãos foram saindo aos

poucos e também minhas irmãs, seja por opção, seja por casamento. Meus pais decidi-

ram vender o sítio quando se viram sozinhos. Foi para Petrolina, onde já tinha Francis-

co, meu irmão, e minha irmã Quitéria morando. Minha irmã Leda foi morar em Alago-

as. Eu, depois da experiência com a lojinha do meu irmão, fui trabalhar em Arcoverde,

onde já morava minha vó e meu tio Firmino, irmão de minha mãe. Tinha lá Fortunato,

Firmino, Feliciano, Domingos e Geraldo, todos meus tios, irmãos de minha mãe. Minha

vó congregou lá os cinco filhos dela e as quatro filhas. A história é a seguinte. Minha vó

teve um primeiro casamento, no qual teve nove filhos; logo em seguida ocorreu o fale-

cimento desse marido, que deixou cinco filhos, todos muito pequeninos. Minha vó, co-

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mo era uma mulher muito séria e conservadora, não quis casar de novo. Decidiu traba-

lhar para ela mesma criar aqueles filhos. E não arranjou outro homem na vida dela. Cri-

ou mamãe, minhas tias... Criou todos eles sem se desfazer da família. Quando os filhos

tomaram conta de si, decidiram “voar”, como a gente diz quando os filhos saem de casa

para ganhar a vida. A maioria foi embora e depois levaram a velhinha para junto deles.

Olhavam para ela com muito carinho. Eu mesma cheguei a morar com minha vó; passei

pouco tempo com ela, e logo depois ela veio a falecer.

Antônio – Foi nesse tempo de Arcoverde que você conheceu Anísio?

Enedina – Eu conheci o Anísio em Sertânia, na época em que eu trabalhava com sua

irmã, Virgínia. De vocês, eu conhecia o Severino, o Manoel, mas não conhecia o Valde-

ci, nem os outros... Nem você. Você era muito jovem, era um “crianção” ainda. Só de-

pois que eu tive o contato com Virgínia é que eu fui conhecendo os demais. O Anísio já

era rapaz. Você estava estudando fora. Eu, então, conheci o Elias, o José Barbeiro, o

Valdeci e o último da família que eu realmente cheguei a conhecer foi o Anísio.

Antônio – E aí, como é que isso se transformou num namoro? Foi você quem jogou

o laço, ou foi ele?

Enedina – Ah, não! Foi ele, e foi tão engraçado. Eu tinha um namorado. E acho que foi

o primeiro namorado mais sério com quem eu tive um compromisso. Chegou por lá, um

dia, um primo meu e me contou que esse cara estava de sacanagem comigo, não é? Aí

eu disse comigo mesma que seria o fim. Peguei a aliança velha de compromisso, joguei

dentro de um envelope e mandei-o andar. Fiquei livre e desimpedida. Era época de fes-

tas de São João, de todas aquelas festas juninas que têm lá... Época em que as moças

casamenteiras se divertiam dizendo que iriam encontrar um namorado. Então, eu conhe-

cia o Anísio de pouco tempo. Mas ele já andava me “espiando”, me procurando; um dia,

até jogou uma piada para mim. E, nessa época, eu ainda tinha o compromisso com o tal

rapaz. Ele me falou pra jogar fora aquela coisa velha, que ele em troca me daria uma

aliança de ouro. Ele se referia à minha aliança de compromisso (rindo muito). Aí eu

fiquei quieta, né? Eu nem o conhecia direito. Sabia apenas que ele era filho de Seu Zé

Jorge com Dona Verônica, irmão de Severino. O Severino foi o primeiro dos seus ir-

mãos que se tornou meu amigo. Era com ele que eu mantinha mais contato, sabe? Mas

quando ele me falou aquele negócio assim... Antônio, você sabe que eu sou uma pessoa

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que, quando eu gosto das pessoas, gosto por sinceridade. Não sou uma pessoa falsa nem

gosto de falsidade. Então, quando aquele rapaz chegou pra mim e falou isso, a primeira

reação minha foi perguntar a ele se era sério aquilo que ele estava me falando... Porque

eu não vou querer ficar servindo de capacho para ninguém não. Quando eu peguei a

aliança de compromisso e entreguei ao cara, mandei-o embora de uma vez. Eu estava,

portanto, livre e desimpedida só a partir daquele momento. Isso aconteceu no início do

ano. No meio do ano é que acontecem as festas juninas. É um momento muito festivo,

onde a gente reúne todos os primos e parentes, com muita fartura, fogueira etc. Eu falei

assim “puxa, eu estou sem namorado e tenho que arranjar um para passar pelo menos o

São João” (rindo). Eu trabalhava com a Virgínia e ela, sendo daquele jeito desinibido

que é, disse-me assim: “Eu tenho um irmão bonito e vou te apresentar”. Ela me apresen-

tou, e então ficamos um pouco conversando por ali até que ele teve que sair até a casa

de vocês para arranjar lá uma sanfona para animar a dança do São João, da fogueira. E o

Anísio se foi. Eu sei que a gente começou a conversar e tudo... Eu disse pra Tida que

tinha arranjado um namorado e certamente não iria passar o São João sozinha. Mas eu

não tinha intenções de dar continuidade àquele namoro. Aquilo era apenas um momen-

to. Com a continuação, eu tive que me mudar para Arcoverde para dar continuidade ao

meu trabalho, e o Anísio ficou. Na oportunidade de um nosso encontro na casa dele,

naquela casinha dali da beira da rodagem, que era onde a gente mais namorava, ele me

falou numa hora dessas que iria viajar para São Paulo. Ele tinha trabalhado o ano inteiro

numa roça que havia preparado, onde plantou de um tudo e tudo se perdeu com falta de

chuva. Ele, raivoso, pegou uma daquelas enxadas e disse que tinha fé em Deus que nun-

ca mais pegaria numa peste daquela para sobreviver. “Eu vou embora”, disse. Quando

ele me falou isso, eu disse que estava bom. Ele poderia viajar. Porque eu já estava com

minha vidinha mais ou menos arranjada, ganhando meu salarinho, tendo minha vida

normal, né? Quando ele me falou que não tinha outro meio de vida de arranjar alguma

coisa, eu o apoiei para ele viajar pra São Paulo. Em São Paulo, você vai ter condições

melhores para constituir sua vida, né? Quando ele tomou a decisão de viajar, falou para

o pai dele que queria viajar. E, como gostava de mim, iria pedir-me em casamento. Foi

quando ele resolveu me pedir em casamento a meu pai. Mas, antes dele me falar em

casamento, eu decidi falar pra ele que ele ia sem compromisso e eu ficava também sem

compromisso. Depois disso é que ele falou que iria noivar. Eu dizia que não via sentido

em ficar com um namoro em que eu não sabia se iria para frente ou iria ficar na situação

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em que me encontrava antes de conhecê-lo. Eu tinha a minha vida livre, e ele podia

também ter a vida dele livre, sem compromisso nenhum. Mas ele não aceitou. Foi ai

quando ele decidiu me pedir em casamento. Nessa oportunidade, mesma ele me afirmou

que somente iria casar quando ele comprasse o chãozinho dele e aprontasse a casinha

para morar, mesmo sendo de dois cômodos. Eu aceitei ali. Falei que iríamos trabalhar;

eu ia aprontar o meu enxovalzinho de casamento, comprar minhas coisas, porque eu

tinha minhas economias também. E a gente ficou assim. Ao final de quatro anos e pou-

cos meses, ele voltou, e a gente casou. Viemos para São Paulo naqueles paus-de-arara,

não; naqueles velhos ônibus. Passamos sete dias na estrada. Oh, Antônio, que viagem

horrível! Eu tinha a impressão de nunca na minha vida chegar a esse lugar, que era São

Paulo. Uma semana inteira na estrada. E era uma estrada de terra... Eu dizia pro Anísio:

“Nós não vamos chegar não?” Daqui de São Paulo, a comadre Flora e o compadre Zeca

foram os meus padrinhos. Aproveitaram a viagem ao Norte para fazer as pazes com

seus pais e serviram de padrinhos. Eu já conhecia os seus irmãos, meus cunhados todos

que estavam aqui em São Paulo. A Flora é que eu não conhecia. Foi a última da família

que eu conheci.

Antônio – E a vida de casados aqui em São Paulo, como foi? Logo engravidou e

teve filhos?

Enedina - A primeira filha que eu tive foi a Célia. Ela nasceu aqui em São Paulo. Eu

havia casado no dia nove de janeiro de 1962, e a Célia veio nascer em dezembro do

mesmo ano, no dia 11 de dezembro. Eu a tive no mesmo ano em que casei, só que não

foi assim seguido ao casamento. Eu vim ter o Hélio em 1968, lá no Nordeste. Depois de

casarmos, viemos para São Paulo e aqui passamos quatro anos. Depois disso, o Anísio

resolveu voltar para o Nordeste. Ele tinha o intuito de montar lá uma olaria. Aquilo ali

não deu em nada e foi um momento muito difícil na nossa vida.

Antônio – Conte quais as dificuldades que vocês tiveram de encarar...

Enedina – Foi difícil porque, no começo, ele chegou a montar aquela olaria toda e ini-

ciou a fabricação das telhas. Como ele não sabia fazer, teve de arranjar uma pessoa que

sabia fazer para dar andamento àquilo ali. O Anísio é um cara que manda alguém fazer

uma coisa e deixa, não vai verificar se essa pessoa está fazendo ou não. Ele é muito con-

fiante nas pessoas. O fato é que esse contratado ia fazendo aquelas telhas, e elas iam se

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desmoronando, rachando e, finalmente, nem serviam para vender. E a gente começou a

amargar prejuízo. Nessa época, eu tive que fazer uma rápida cirurgia, e a partir daí nós

começamos a nos endividar, devendo pagar o dinheiro que havíamos pedido ao tio Fir-

mino para a cirurgia. E ficamos sem conseguir pegar um centavo daquilo ali. Era so-

mente pagando, tirando do bolso para pagar o rapaz que sabia fazer as telhas e nunca se

vendia nada. Nunca vendemos cem telhas daquela fabricação. Olha, aquilo foi a pior

coisa que já fiz na minha vida. E o Anísio, você sabe que ele gosta de pescar, de caçar...

Saía com Seu Zé Jorge e ia fazer aquelas caçadas por lá. Eu, que estava convalescendo

da cirurgia, é que me encarregava de pagar toda sexta-feira aquele dinheirinho, que nós

tirávamos não sei de onde para pagar aquele contratado. Numa dessas sextas-feiras, eu

cheguei devagarzinho lá na olaria e percebi que, das cem telhas que tivessem lá, não se

encontraria cinco boas; todas rachadas. Aquilo me deu uma raiva... A gente tirando di-

nheiro não se sabe de onde... Dinheiro do seu pai, certamente, que nos ajudou muito.

Chegando lá, eu fui olhar aquela telha toda quebrada, e o cara já tinha levado o dinheiro

dele que recebia na sexta e só recomeçava a trabalhar na segunda-feira. Anísio chegou

da caçada. Fiz um café e disse pra ele: “Anísio, hoje você vai resolver uma coisa”. Eu já

estava saturada, né? Eu nunca fui de ficar brigando com ninguém. Mas chega um mo-

mento em que a gente tem mais é que abrir os olhos daquela pessoa que estava sendo

iludida. Anísio estava sem vontade de deixar aquele negócio e vir embora para São Pau-

lo. Ele preferia ficar ali, naquela vida sem futuro. E a gente continuava tendo família. Já

tinha nascido a Célia e depois vieram o Hélio e o Daniel. E eu me perguntava como é

que eu iria educar os meus filhos numa situação daquela? Olhava-se para um lado e para

o outro, para frente e para trás e não se via um horizonte, né? Então, logo depois que ele

tomou aquele café eu falei pra ele que tinha entregado o dinheiro da semana para o olei-

ro. E olha que o oleiro, além desse pagamento semanal, já estava nos devendo uma

quantia a mais. Eu disse que achava que ele deveria ir lá e, primeiramente, desse uma

olhada na produção semanal dele e daí poder concluir se o que eu estou falando é sério

ou não. Ele foi e constatou que as telhas estavam todas quebradas. Nesse momento, ele

foi falar com o tal oleiro, que se chamava Vicente. Seu Zé Jorge falou logo assim: “Bem

que eu te falei, Anísio, se isso tivesse futuro eu já tinha iniciado há muito tempo!” Afi-

nal, você bem sabe que o barro de lá é um barro bom, bom mesmo. Nessa hora, eu su-

geri a ele que desistisse daquilo, porque a gente já estava endividando. Desista disso e

faça aquele cara lá nos pagar o dinheiro que nos deve e reformar uma casinha que tinha

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lá perto do Manoel, para que nela possa morar com você e meus filhos. Nós vivíamos

na casa do nosso sogro, e aquilo não era normal nem justo. Nós ficamos bastante tempo

morando com Dona Verônica. Olha, Antônio, quando a gente casa, quer casa. Não pos-

so falar que morar aquele tempo com minha sogra foi ruim, não. Mas quando a gente

casa e passa a ter filhos, a gente deve ficar no nosso cantinho, porque nele a gente educa

os nossos filhos do jeito que a gente pode. Do contrário, é incomodar e não devemos

fazer isso. Eles eram duas pessoas de idade, com a família toda criada e dona de si...

Ficar agora aturando choro de menino pequeno, zuindo no ouvido do meu sogro à noite,

na hora de dormir? Eu disse que aquilo estava errado. Pedi que ele pegasse aquele di-

nheiro, mandasse o cara dar uma melhorada naquela casa, dividisse em quarto, sala e

cozinha... Pra eu viver, não precisava de mais nada. Eu falava aquilo pra ele, mas con-

fesso que tinha um sentimento dentro de mim de que, mesmo aquilo, não tinha futuro

nenhum. Mas, mesmo assim, eu ainda preferia ficar no que era meu. Como, de fato,

aconteceu. Procedeu-se à reforma. Não tínhamos nada, nem mesa, nem guarda-roupa,

nem móveis, apenas a cama de dormir. Era aquela pobreza... Só tínhamos a cama e uma

rede na sala para se descansar depois de um dia de trabalho. Mas eu gostei, gostei de

ficar: ficava ali naquela vida, dormia, levantava, fazia tudo o que eu queria. Porque na

casa de minha sogra eu me sentia à vontade, até certo ponto. De outro lado, eu não me

sentia bem, porque se eu tivesse vontade de fazer alguma coisa não tomava essa decisão

por minha conta. Eu tinha que me comunicar com ela. E, às vezes, a pessoa falava que

não era possível fazer aquilo ou aquela coisa. E aí, nesse caso, a gente fica com aquele

sentimento de querer e não poder fazer as coisas. E isso é ruim. Mas, mesmo assim, eu

não me queixo, pois meu sogro e minha sogra foram muito bons comigo. Com meus

cunhados, minhas cunhadas, eu me dou bem com todos eles; com todo mundo, e consi-

dero muito a todos. Sua família, a família do meu marido, eu a considero como meus

irmãos. Para mim, foram todos ótima gente, e eu tenho a maior consideração. Nunca

tive nada contra nenhum deles, não é? Mas, Antônio, a gente quer viver cada um a sua

vida, na sua casa. A partir desse momento em que nos desfizemos da olaria, ficamos

ainda muito tempo em Santa Luzia, sem ter nada, absolutamente nada. Até que um dia

eu perguntei para o Anísio o que a gente construiria na vida se continuássemos a viver

aquela vida ali. Até ali, não se tinha produzido nada. E logo ele que, em São Paulo, ti-

nha aprendido uma especialização e tinha praticado uma profissão rendosa... Uma pro-

fissão que ele aprendera a viver dela... E agora, ficar ali jogado naquele lugar que não

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tinha vida? Nem vida nem futuro nenhum? Ele não gostou daqueles meus conselhos,

porque o gosto dele era ficar por lá mesmo. E aí foi indo, foi indo, o tempo foi passando

e eu queria que ele resolvesse alguma coisa da vida, porque afinal ele era o dono da ca-

sa. Nós estávamos nos privando das coisas de primeira necessidade, Antônio. Algo co-

mo roupa, calçado e até mesmo alimentação, tudo isso. Eu não via futuro naquela vida

e, sempre que eu voltava a tocar nesse assunto, ele ficava enraivecido comigo. Ele me

dizia que tinha a impressão que eu estava louca para que ele fosse embora dali, apenas

por ir embora... Foi quando eu disse que desejava muito que ele procurasse condições

de viver sem estar à custa do pai e da mãe dele. Afinal, aquilo não era justo, porque a

nossa família estava crescendo e não era certo que se continuasse vivendo à custa do pai

e da mãe. Aquele assunto passou, e eu não voltei mais a comentar. O tempo também foi

passando. Até que, finalmente, um dia a Flora e o Zeca foram ao Norte fazer uma visita

à família e viram de perto aquela situação. Eu tinha deixado a minha casinha em São

Paulo, onde tinha de um tudo, toda arrumadinha. Quando minha comadre Flora viu a

minha situação naquela casinha tosca, ela começou a chorar. Ela lamentava nos ver nu-

ma situação daquela sem necessidade nenhuma. Afinal, Anísio não era um pobre coita-

do que nunca tinha tido nada na vida. Com ele era diferente, porque ele teve condições

de crescer na vida. Era jovem, inteligente, estudou, aprendeu uma profissão boa pra ele

que, até hoje, conseguiu viver dela... Ela me sondou da possibilidade de ela, com a aju-

da do Zeca, convencer o Anísio a voltar com eles para São Paulo. Eu informei que vol-

tar para São Paulo não era mais a vontade dele. No entanto, ela, como irmã, podia con-

versar com ele sobre essa possibilidade. Eu é que não falaria mais a ele da necessidade

de sair dali de Sertânia para São Paulo. A comadre Flora e o Zeca, o marido dela, eram

pessoas boas, maravilhosas. Ela me perguntou se, caso ela convencesse o Anísio a vol-

tar, eu concordaria. Eu respondi que era a coisa que eu mais desejava na vida. E que eu

não tinha medo nenhum de ficar sozinha. Eu estava grávida de Daniel naquele momen-

to. Disse pra ela que, caso ela conseguisse dele essa decisão de viajar, eu nunca pagaria

a ela esse favor que ela nos prestava; a mim, a ele e a meus filhos. Eu sei que os dois

conversaram com ele e chegaram ao ponto de convencê-lo da viagem de volta. Ele che-

gou lá em casa dizendo prá mim: “Velha – é assim que ele me chama ainda hoje! –, a

Flora e o Zeca estão querendo me levar para São Paulo, o que você acha? Você está

grávida, esperando nenê, o que é que eu faço?” Eu respondi pra ele que gravidez não era

doença e que eu estava grávida, mas não estava doente. E caso ele decidisse acompa-

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nhar os dois para São Paulo, ele não devia se preocupar comigo coisa alguma. Eu aqui

me virava. Ele se mostrou preocupado em me deixar sozinha, mas eu o tranqüilizei,

dizendo que não teria problema nenhum. Ele resolveu ir embora, e eu fiquei. Mas fiquei

pouco tempo, porque eu tive meu filho em abril e, logo depois de uns cinco meses, já

viajava para São Paulo, juntando-me a ele.

Antônio – Eu lembro, Enedina, que logo nos primeiros dias de minha chegada da

Europa, em 1970, nas conversas com meu pai, ele me falava desses momentos difí-

ceis que vocês todos passaram, especialmente com o peso das três famílias para ele

e minha mãe: da sua, do Severino e do Manoel. Segundo ele contava, foram mo-

mentos de muito apuro e dificuldades...

Enedina – Antônio, eu lembro muito bem dessa situação tão ruim em que se encontra-

vam seu pai e sua mãe, garantindo o sustento de três famílias. Porque é preciso lembrar

que, quando nós estávamos naquela penúria de vida lá em Sertânia, num certo dia, che-

gam o Severino e a minha irmã Erotides com os meninos. E chegaram lá para ficar.

Venderam a casa que tinham adquirido aqui em São Paulo. Severino se demitiu do em-

prego e se mandou para o Nordeste, de uma vez por todas. Eu lembro que lhes perguntei

se tinham ido passear, e eles me responderam que tinham ido para morar lá, de vez. Na-

quela hora, eu tive tanta raiva... Porque eu percebi que a opção daquelas pessoas já fei-

tas na vida era voltar agora aos tempos de uma vida em que dependiam em tudo do pai e

da mãe. Eles que criaram os filhos com tantos sacrifícios, orientaram para a vida, todos

ficaram donos de si mesmos e, naquele momento, voltavam a ser dependentes, onerando

a velhice de duas pessoas que não mais mereciam aquele peso. Eu via todos os dias mi-

nha sogra fazendo aqueles queijinhos dela, daquele leite mirrado, vendendo em Sertânia

para nos sustentar com aquele dinheirinho... Logo, logo, começou a desunião do Severi-

no com a Erotides; chegaram mesmo a se separar. Minha irmã ficou muito atacada de

depressão profunda, tendo que se internar no Recife. Portanto, tudo isso começou a

mudar com a viagem da Flora, do Zeca e do finado Givaldo, quando decidiram trazer

Anísio de volta para São Paulo. A Flora e o Givaldo foram ao Recife visitar a Tida e viu

que a situação era crítica. É preciso lembrar que, enquanto era apenas minha família e a

do compadre Manoel, as coisas já iam ruim. Mas, com a chegada da Tida e do Severino,

as coisas foram se fechando. Afinal, eram quatro famílias - contando com o seu pai e

sua mãe - que deveriam ser sustentadas. A coisa foi se fechando e, nessa hora, eu senti

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muita pena do meu sogro, lhe confesso. Porque até então eu sempre o vi ter um cafezi-

nho reforçado, onde não faltava um pedacinho de queijo, uma mistura variada, uma coa-

lhada matinal, etc. Mas, à medida que a coisa foi apertando, aquilo foi diminuindo, foi

sumindo, foi desaparecendo para suprir a manutenção das famílias. Eu via que aquilo

não era possível, era demais... Ver os filhos depois de casados voltarem ao ninho da

proteção dos pais... Quando foi um dia desses, eu cheguei lá para buscar uma lata de

água doce da cisterna e vi seu pai muito nervoso. Nervoso como nunca eu o tinha visto

até então. Quando eu cheguei, lá estava o Severino. Nesse dia, era sábado, e Dona Ve-

rônica tinha ido fazer a feira. Eu, então, fiz um café rápido, um café simples e o colo-

quei sobre a mesa. Naquele momento, ele começou a dizer umas verdades que eu acha-

va que ele tinha total e absoluta razão de nos dizer aquilo, tanto para mim como para os

outros. AÍ ele começou e falou assim: “Vou falar uma coisa pra vocês, agora. Eu já criei

vocês, cada um é dono de si. Hoje eu tenho pouco, estou ficando velho e vai chegar a

doença. O que eu tenho aqui é para nos manter na nossa velhice, nas nossas necessida-

des. De modo que cada um procure o seu caminho”. Ele não tinha mais condições de

nos segurar. Eu gostei quando ele disse aquilo, porque eu achava que ele tinha razão.

Mostrou que aquilo que acontecia ali não era bom nem ideal para qualquer um de nós.

Nem para ele nem para nós. Aquilo me chocou, porque eu sabia que meu marido tinha

condições de levar uma vida melhor e, portanto, naquele momento, merecia aquela re-

primenda do pai. Botei aquela lata de água na minha cabeça e chorei todo o caminho de

volta até à minha casa. Eu me perguntava por que estava numa situação daquela. O Aní-

sio sendo uma pessoa jovem, um bom profissional, por que aceitava ficar numa situação

daquela? Eu não precisava passar por uma situação daquela. Deixei a minha casinha em

São Paulo e vim para essa situação de penúria. E me senti mal, não pelo que ele falou,

porque ele tinha toda razão da vida. Quando eu via seu pai se privando daquelas coisi-

nhas melhores que ele tinha direito de ter, aquilo me doía na alma. Eu não falava muito,

Antônio, porque eu não sou uma pessoa de ficar me lamentando e me maldizendo. Mas

eu sofria com aquilo.

Antônio – Como é que as coisas evoluíram com a vinda de Anísio para São Paulo?

Enedina – Depois que ele viajou, eu fiquei lá, meu sogro me deu todo apoio, tomou

conta de mim, minha sogra tomou conta de mim e me ajudaram no momento em que eu

precisei. Tive meu filho com o apoio de todos eles. Saí de lá, vindo para São Paulo, sem

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mágoas de nada e de ninguém, de jeito nenhum. Mas me senti muito bem e feliz quando

saí de lá e vim para minha casa, ficar junto de minha família. E de lá até hoje, garanti o

meu futuro. Claro, nós não tivemos tantos recursos, mas aprumamos a nossa vida, e não

posso me queixar de modo algum. Com a volta do Anísio, ele se empregou de novo e

nunca mais faltou nada para a gente. Graças a Deus, eu sou uma mulher controlada e

por nunca ter sido extravagante... Continuamos trabalhando e construindo as condições

de criar os nossos filhos.

Antônio – Eu sempre soube que Anísio tinha um sonho na cabeça que, com a apo-

sentadoria dele, não ficaria em São Paulo para morar num lugar de mato, no inte-

rior. Você concordava com isso?

Enedina - Eu sempre soube que ele desejava alguma coisa assim. Além do mais, antes

dele se aposentar eu fui conhecer aquele sítio que ele terminaria comprando lá no Mato

Grosso; e eu gostei daquele lugar lá. Era um ar puro, um ar gostoso, um ar livre, mas

não tinha intenção, naquele tempo, de ficar morando ali. Com a aposentadoria, o Anísio

tomou a decisão de que não ficaria mais morando em São Paulo e decidiu ir morar ali

naquele sítio que ele já conhecia. E logo, logo, ele decidiu comprar aquele pedacinho de

terra. Tudo bem. Agora tem o seguinte: na hora em que ele tomou a decisão de ir embo-

ra, eu estranhei. É que eu tinha aqui a minha casa, meus filhos e não sou como o Anísio,

que adora viver no mato, nas brenhas. Além do mais, lá não tinha praticamente nada e

tínhamos que construir tudo, como de fato, construímos. Fui, e, com o passar do tempo,

minha família foi toda ficando independente de nós, tomando conta de sua vida, dos

seus afazeres e do seu trabalho. Nessa situação, eu não achava que era necessário ficar

com eles em São Paulo. Entreguei a eles tudo o que tinha, deixei que eles tomassem

conta da casa onde a gente morava e fui acompanhar o meu marido. Fiquei lá em defini-

tivo. Acho que foi uma boa opção, pelo fato de morar num lugar onde temos tudo, uma

casa boa, construída por nós e aquela natureza verde... Estou feliz lá também, porque os

meus filhos estão felizes aqui. O que nós tínhamos é deles. Neste exato momento, esta-

mos tramitando a documentação de legalizar para eles a transferência do que nós temos

aqui de imóveis. Vai ser deles por direito. Nem eu nem o Anísio queremos deixar pro-

blemas para os nossos filhos. A gente sempre trabalhou para os nossos filhos. O que nós

temos é deles. E sou feliz em tudo e não me queixo de nada. Adoro minha família, ado-

ro meus cunhados, adoro todo mundo e sou feliz da vida.

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Rejane Cavalcante de Siqueira53

Antônio – Rejane, fale do seu sentimento de integrar a família Siqueira...

Rejane – Sentimento de amor e de agradecimento. Eu agradeço muito a todos da famí-

lia Siqueira, porque me acolheram, me aceitaram como eu era, como eu sou, e pra mim

é como se já há muito tempo fizesse parte da família. Fui acolhida de braços abertos.

Deram-me muito carinho e muita compreensão. O que eu transmito para todos é que

continuem sempre com essa compreensão e esse sentimento de amor que têm uns pelos

outros. Que continuem com essa amizade, que sempre transmite segurança, e não dei-

xem de dar seus bons conselhos que sempre nos são repassados. A própria Virgínia,

mesmo sendo daquele jeito esquentado, não deixa de ser uma pessoa maravilhosa e que

tem bons sentimentos. O mesmo digo da Madia, como de todos os demais. Manoel era

também esquentado, porém aquelas coisas que ele dizia, é importante que a gente deixe

53 Rejane Cavalcante, esposa de Valdeci Jorge Siqueira foi entrevista na Fazenda Santa Luzia, em Sertâ-

nia, onde reside, na data de 11 de maio de 2009.

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passar... Finalmente, todo o pessoal da família, incluindo Anísio e Flora, que, além de

minha cunhada, era minha comadre; e, além de tudo, uma pessoa maravilhosa. Uma

pessoa bacana, tanto ela quanto Zeca, e eu não tenho palavras para definir o quanto a-

mável eles eram. Porque ela era tudo, era o esteio de toda a família. Senti muito por

todos quanto se foram. Gostaria que todos que virão por aí, netos, bisnetos, que eles

continuem com essa garra que os Siqueira têm.

Antônio – Como é que você e o Valdeci se conheceram...

Rejane – Você sabe que tanto meu pai quanto minha mãe gostavam muito de vir jogar

sueca por aqui. Eu sabia que eles vinham sempre à noite jogar sueca com Seu Zé Jorge,

com Dona Verônica, mas eu nunca tinha vindo com eles. Aconteceu que, na festa de

uma noite de São João, eles nos convidaram para vir comer pamonha, aqui na Fazenda.

Nessa tal pamonha, Valdeci estava aqui e ficava sempre olhando para mim... Em Sertâ-

nia, tinha uma pracinha em frente ao cinema e à prefeitura, onde as moças, à noite, fica-

vam dando umas voltinhas. Ele, então, ficava sempre ali, frente à prefeitura, olhando

para mim, fazendo aquela paquera. Quando foi um dia, ele chegou lá em nossa casa e

me disse: você é filha de Dona Raimunda, e eu não sabia. Daquele dia em diante, ele

então ficou sempre encontrando e conversando comigo. Passamos ainda quase um ano

para namorar e começamos a namorar num dia em que Seu Zé Jorge, estando doente,

ele, Valdeci, foi levar Anísio e Elias ao ônibus que os traria de volta a São Paulo, após a

visita a seu pai. Nessa oportunidade, eu estava vindo da escola, a gente se encontrou e

voltamos conversando. Foi essa a nossa primeira noite de namoro. Passamos um bom

tempo namorando e, nesse momento, passei a conhecer a família dele mais de perto;

isso demorou um ano e três meses e aproveitamos para nos conhecer melhor. Dona Ve-

rônica tinha aquele preconceito dela contra mim e, inicialmente, se opôs ao casamento,

dizendo que eu era uma menina de cidade e que convinha mais a ele casar com uma

pessoa do sítio... Por isso ela não queria o casamento. Quando veio a turma de São Pau-

lo, próximo ao meu casamento, eles conseguiram “domar” D. Verônica, e foi nessa oca-

sião em que “fizemos as pazes”. Em fevereiro de 1973, nós casamos. Foi um casamento

muito bonito, com a presença de alguns da família...

Antônio – A partir daí, você passou a ter uma boa relação com Verônica, não?!

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Rejane – Tinha, nós passamos a ficar muito amigas. No casamento, ela conseguiu levar

Valdeci ao altar, o que nunca tinha acontecido na família com filho nenhum. Foi o pri-

meiro e único filho que ela levou ao altar. Tivemos uma relação muito boa. Ela ficou

morando aqui mesmo na fazenda, e eu morava ali, pertinho dela. Ao nascer Wagner, foi

a maior alegria para ela e para todo mundo. Ela gostava muito dele e, sobretudo a partir

daí, ela passou a dar muito carinho e ficou totalmente diferente do que fora no início do

nosso namoro. Depois, nasceu Sandreane e Dona Verônica apegou-se muito a ela. Gos-

tava de trazê-la para esta casa. Eu tive a terceira filha, e ela sempre aqui morando com a

gente. Depois, na medida em que ia ficando mais velha começou a dar um pouquinho de

trabalho. Por esse motivo, ela viajou para São Paulo para ter um maior cuidado das fi-

lhas, inclusive depois de ter ficado uns tempos com Manoel e Anísia. Com a saída de

Dona Verônica, eu fiquei aqui com Valdeci, lutando para melhorar as coisas aqui, por-

que aqui sempre foi o esteio de todos. É o lugar que lembra seu pai e a gente queria que

isto aqui nunca caísse; ao contrário, subisse para melhor. Passados esses anos, Dona

Verônica foi embora, ficamos muito tristes com a idade dela, pois ela deixou muita sau-

dade pra gente. Mas sabíamos que ela foi para um lugar bom e que estava muito bem

tratada, que foi o que sempre quisemos para ela. Nós ficamos aqui e, sempre que podí-

amos, íamos visitar ela em São Paulo, no Paraná. Numa dessas visitas, a gente se despe-

diu dela, pois que, um mês e meio depois, ela veio a falecer. Durante esses últimos anos,

nós temos uma convivência boa com a família. Para cá, vieram Virgínia, Anísio... eu me

relaciono muito bem com todos eles e acho que nenhum deles tem queixa de mim. Eu

gosto muito de todos eles, acho uma família muito bacana. Minha família gosta muito

de Valdeci, que mantém uma relação muito boa com todos os meus irmãos. Meus pais

gostavam muito, muito dele; eram amigos de caça, de tudo. Hoje, não mais tenho os

meus pais. Acho que foi uma coisa muito bacana entrar nesta família. Tanto que hoje

em dia, quando morre um deles, a gente sofre muito. Foi assim com o falecimento de

Dona Verônica, de Marlene – que foi uma experiência muito triste, exatamente por ter

sido umas das primeiras -, de Severino, que vivia sempre aqui com a gente. Depois veio

Zeca, Flora, José, Edilnete, no Recife; depois veio a morte de Manoel, Zé Preto, Chico...

Tudo isso deixou a gente muito triste. Mas sentimos que não se pode mudar a vontade

Deus, e se Ele quis assim...

Antônio – Fale um pouco dos seus três filhos e de sua relação com eles...

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Rejane – Wagner, que está comigo, é o meu xodó e tenho por ele um grande amor, tal-

vez por ser o único homem dos filhos... Tem Sandreane, que já é casada e tem um net i-

nho, que é o Felipe, a coisa mais fofa que existe. Caduco muito com ele, é o meu outro

xodó. Tenho Luciane, que está estudando em João Pessoa e que se forma neste ano em

Fisioterapia. Ela tem um noivo e pretende casar em julho. Vai morar no Rio, e eu já

estou pensando como é que vou me separar dela, já que somos uma família que vive

muito unida. Já estou pensando como vou me separar dela. Mas entendo que cada um

tem que seguir seu rumo e seguir sua vida. Finalmente, devo dizer que tudo foi bom

demais e não tenho nem palavras para definir essas coisas boas da vida, né? Wagner,

atualmente, mora comigo agora e já começa a substituir o pai nalgumas coisas, já que

ele está com uma idade um pouco mais avançada. O pai entende que já deve passar al-

gumas coisas para ele, é mais novo, tem boa cabeça, porém sempre sob a supervisão e

os conselhos do pai. Eles se comunicam bem um com o outro e, assim, acredita que ele

pode muito bem definir certas coisas. Sandreane mora na cidade, e tudo ela combina

comigo. Nós somos como duas irmãs. Luciane também, tudo o que fui passei para eles

como exemplo. Nunca modifiquei meu jeito de ser. Sempre fui uma pessoa simples,

gosto de trabalhar, toda a vida gostei e ensinei isso a eles. Graças a Deus, nunca eles me

deram trabalho, até hoje. São uns filhos maravilhosos. Felipe é o meu xodozinho, e es-

pero que apareçam outros para continuar os Siqueira e Siqueira Cavalcante. Finalmente,

tem o meu xodó velho, que está agora olhando para mim, ali, um pouco preguiçoso para

botar milho para as galinhas, mas vai levando a vida e, aqui e ali, uns gritos para fazer

melhor...

Antônio – Você falou no netinho Felipe como sendo seu xodozinho. E os seus gatos,

o que são para você?

Rejane – Olhe, é o seguinte: se eu hoje fosse estudar, como fiz antigamente, eu iria fa-

zer o curso de veterinária porque gosto muito de animais. Tenho os meus gatos, que

também são o meu xodó. Tenho Fred, tenho a Galega, o Negão e agora tem o Branqui-

nho, que é o meu xodozinho pequeno. Eu os trato muito bem, são muito bem tratados.

Tenho também o meu cachorro de estimação que se chama Flay, que é outro dos meus

xodós e com todas as criações eu gosto de mexer, com bode, ovelha, cabras... Apesar de

eu ser uma “menina de rua”, como dizia Dona Verônica, eu nasci num sitio em São

Bento do Uma, onde vivi até os meus doze anos. Depois disso, vim para Sertânia e aí

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passei a morar em rua, né? Mas era um pouco rua e um pouco sítio, né? E toda a vida eu

gostei do sítio. Mas Dona Vera não acreditava que eu fosse me adaptar à vida do sítio.

Mas ela se enganou e depois terminou pedindo desculpa. Ela gostava muito de mim e

nos dávamos muito bem. Ela dizia a mim que eu era a nora que ela gostava. O resto é

que vem aí pela frente.

Antônio – Uma mensagem para a nossa família, que também é sua família...

Rejane – Meu desejo é que as famílias Siqueira e Cavalcante fossem como uma única

família. Que sigam em frente, sempre pensando no bom exemplo da família. Que lem-

brem sempre do exemplo dos pais e, desse modo, ao ficar velhos também, lembrem

sempre dos que se foram. Desejo um futuro que lembre sempre do passado, que é o da

gente, hoje. Pensando no que já passou, eles poderão ter um futuro melhor. Afinal, eles

tiveram um bom exemplo.

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TERCEIRA PARTE

oooooooo

ENTREVISTAS

Parentes e Amigos da Matarina e de Santa Luzia

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Terezinha Matos54

Valdeci – Pois é, Terezinha, neste mês estive conversando em Sertânia com Cesari-

na.

Terezinha – Pois é, ela está pros lados de Sertânia. A comadre Maria Mora aqui. Inácia

mora aqui também.

Antônio – Firmo Batista era seu irmão, não?

54 Terezinha Rodrigues de Matos é uma das nossas primas da Prata que foi entrevistada. Filha da tia

Josefina, esposa de Sebastião Matos, mais conhecido na redondeza por Sebastião do Mato. Segundo Pe-

dro Nunes me informou, ele era um grande cerqueiro (que levanta cercas) e o pai dele chegou a ser can-

gaceiro e homem de confiança do Dr. Santa Cruz, da Santa Catarina. Terezinha tem a idade de 75 anos;

ciquenta anos de casada - só no religioso, diz ela! - com José Clemente da Silva. São seus filhos: Maria

dos Anjos, José Benício, Adeilcio (vulgo Boleza), Aparecida, Sônia (falecida, morreu com quarenta e sete

anos), Maria de Nazaré, Ângela, Maria Filomena e Ana Celeste. Informa que teve treze filhos; três deles

morreram.

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Terezinha – Não, ele era filho da tia Júlia, que morava aqui na Prata, na região do Ca-

xingó. Tia Julia tinha como filhos Firmo e João Batista. A família matriz da mãe Josefi-

na e das irmãs, que incluía Verônica, era Filomena do Espírito Santo (chamada de Me-

na) e José Feliciano (chamado de “Pai Velho” e também de “Padim Velho” – assim

diziam os filhos de Verônica e José Jorge). As filhas do casal Filomena e José Feliciano

eram as seguintes, por ordem de idade: Maria Paulino, a mais velha, que morava no

Sítio São Francisco, tia Júlia, que morava no Caxingó e Josefina – sua mãe, também

chamada de Zefinha -, que morou na Prata e morreu com 69 anos, após uma trombose

que lhe causou uma paralisia de quatro meses. Verônica, que morou na Matarina e de-

pois em Santa Luzia (PE), era a mais nova das filhas e foi também a última a falecer aos

97 anos de idade. Os homens, filhos de Mena e Pai Velho, sem ordem de idade, eram os

seguintes: Feliciano, Manoel, Umbelino, Antônio, Luís, Marcelino, Joaquim e Moisés.

Conforme eu me lembre, seriam. Portanto, esses os nomes das mulheres e dos homens,

conforme também minha mãe me falava direitinho. Eu cheguei a conhecer vários, al-

guns eu nunca conheci...

Antônio – E tia Júlia, quais eram os filhos dela?

Terezinha - Os filhos de Júlia são estes: João Batista, Firmo e Dezinho... As filhas e

filhos de Josefina: Terezinha, Cesarina, Maria, Inácia, - a mais velha, todas vivas; Vital

– foi assassinado em Afogados da Ingazeira, Manoel, José e Genival. A família de Ge-

nival, incluindo três filhos e a esposa, que já faleceu, moravam em Afogados. O casal

tinha três filhos: Lurdinha, Cícero e Genilson. Cícero saiu uma época à procura de ser-

viço e nunca mais apareceu. O marido de Josefina chamava-se Sebastião Matos, vulgo

Sebastião do Mato. A família de Josefina viveu no entorno da hoje cidade de Prata. Uns

tempos na Fazenda Matarina, outros no Sítio São Francisco, outros no Mogiqui – onde

nasceu Terezinha e onde a família viveu quarenta e cinco anos. Naquele tempo, a Fa-

zenda Mogiqui era propriedade de Cícero Nunes, também dono da Matarina. Lembro

que José Jorge e Umbelino moravam naquela região da Matarina; não estou segura se o

seu tio Antônio também morava na Matarina e também o tio José. Este último tinha

duas filhas, uma delas – Letícia – mora em Triunfo (PE) e a outra – Quitéria –, que mo-

rava em São Paulo, faleceu. Terezinha lembra muito das primas de Matarina, filhas da

tia Verônica: Maria (Madia), Flora e principalmente Conceição, com quem fazia pernas.

“Aquilo não era qualidade de gente. Hoje eu tenho uma filha que parece muito com e-

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la”. Tenho muita lembrança da Virgínia, com quem a gente sempre se encontrava – ela

vinha para o São Francisco, e nós íamos lá, na Santa Catarina – época de festa; maio era

um mês de alegria, era festa mesmo. Na Casa Grande do Dr. Artur Santa Cruz, tinha

tudo o que era bom, especialmente nos dias de feira e nos dias de domingo. Mas eu não

esqueço as farras de Conceição, a parte dela eu acho que é a minha. Já Maria (Madia),

que era a mais velha, a gente tinha um certo respeito. “Flora (Florisa) era a Inacinha de

comadre Inácia, em vida, toda desenvolvida para tudo”. “Virgínia, a gente se gostava

muito”. Guardo na lembrança todas as coisas da nossa vida de criança. Brincávamos

todas as qualidades de brincadeiras. Eram festas e mais festas. Damião se encarregava

daquelas coisas bonitas, só aproximadamente a padre; só para rezar no mato, levar flo-

res. E a gente só fazia mangar e ficar junto. Falando de Manoel Jorge, ela lembra muito

bem. Tem muita saudade dele e relembra muito as coisas que conversaram quando da

última vez que se encontraram. Lembra que ele quando fez uma visita a tia Josefina

contou a história de uns passarinhos que ele caçou. As histórias dele faziam todo mundo

morrer de rir. Lembra que somente veio a saber do falecimento dele após passar uns

dias na casa de Cesarina, em Sertânia. De Verônica, ela diz que se lembra muito: “A-

quela velhinha loira, tão bonita – toda vida ela foi bonita – bem educada, paciente e per-

severante ante tudo no mundo. Quando a gente ia à casa dela conversar, tudo virava

festa. Era uma pessoa viva e trabalhadora. Não vou esquecer nunca dela”. Já com a tia

Júlia ela tinha pouca aproximação; apesar dela morar perto, mas se viram poucas vezes.

O mesmo não foi o caso das tias Maria e Verônica. De José Jorge, ela lembra um pouco

apenas. Era amoroso e paciente, comparando com aqueles moradores que tinham desa-

venças com os patrões. Ela lembra que ele ficava sempre calado e, como seu pai Sebas-

tião, os dois sentiam muito as injustiças que padeciam aqueles pais de famílias. Mas não

quiseram entrar em briga pela posse definitiva deles nas propriedades onde moravam e

trabalhavam, apesar de insistentes pedidos de outras pessoas. É o caso de Cazuza Velho,

que fez tudo para o pai dela registrar em Monteiro o seu pedido de integração e posse,

depois de quarenta anos de trabalho na propriedade onde vivia. E ele resistiu. E ela lem-

bra que, tanto José Jorge quanto Sebastião do Mato, ambos tinham uma condição espe-

cial na propriedade onde trabalhavam não só em agricultura, como em criatório de gado.

Ambos terminaram comprando um terreninho fora dessas fazendas, onde construíram o

futuro sem querelas com os parentes dos fazendeiros. Lembra a esse propósito o quão

diferente dos outros fazendeiros era Cícero Nunes: uma pessoa boa, atenciosa e amável,

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tanto ele quanto sua esposa, D. Isabel. Estimulava que os seus moradores plantassem e

colhessem. È o caso de sua família, que tinha muito milho, batata etc. Ela não lembra

detalhes da morte de Cícero Nunes,– que teve uma morte súbita em Campina Grande, e

de Dona Isabel, que antes de morrer passou muito tempo hospitalizada. Recorda de

Francisco Nunes, filho de Cícero Nunes, da mesma idade dela. Recorda que, após a saí-

da da família Siqueira para Santa Luzia, eles raramente se encontravam, pela distância e

pelas dificuldades de locomoção. Tinham que andar a cavalo longas distâncias. Mas isto

não impediu que ela visitasse a tia, algumas vezes. Uma delas recorda bem que tio Um-

belino estava doente. Falou que a imagem dos tios é muito boa, pessoas amáveis e, so-

bretudo brincalhonas. Recorda o caso de tio Feliciano, que gostava de jogar umas parti-

das de baralho e, contra a vontade de Padre Damião, fazia escondido, até que o filho

padre o flagrou na mentira e na jogatina. Inquirido, respondeu que o companheiro dele

de jogo era o culpado, pois induzira-o ao jogo. [Saímos para conversar com Inácia,

irmã de Terezinha, ocasião em que as duas ficam lado a lado].

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Inácia Rodrigues Matos55

Antônio – Inácia, quais as lembranças que você guarda da família de nossas mães.

Inácia – Lembro muito bem de tia Verônica. Ela era assim uma pessoa magra, alta, ca-

belo louro, ela era muito bonita... Na época que eu a vi, ela era ainda uma mulher meio

madura. Depois, num certo tempo, nós fomos a Sertânia e passamos na casa dela. Mi-

nha mãe e meu pai eram muito unidos a tia Verônica, mas depois que ela mudou para

Sertânia ficou tudo muito difícil, uns foram morrendo, hoje morreram todos, pronto!

(voltando-se para Terezinha, ao lado). Eu acho que não tenho mais tios. Tio Umbeli-

no morreu, tio Joaquim morreu... Tio Feliciano. Inclusive aquele que era bem alvinho,

quem era... Marcelino e tia Júlia...

Antônio – Um deles teve a ver com o negócio de um crime na casa grande da Santa

Catarina, não?

55 Inácia Rodrigues de Matos, filha de tia Josefina. A entrevista foi concedida na Prata, no dia 23 de no-

vembro de 2008. Mãe de Maria José, Maria Inácia, Maria das Graças e Maria Aparecida.

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Inácia - Teve, sim. (Alguém cita o nome de tio Manoel).

Terezinha – Eu acho que era tio Antônio... Eles comentavam... Mas faz muito tempo;

isso é dos tempos de antigamente...

Antônio – Inácia, você lembra de alguns dos meus irmãos e irmãs, seus primos, na

Matarina?

Inácia – Lembro. Uma delas fazia muito tempo que eu tinha visto. Eu ia para Sertânia,

não, nós íamos para São Paulo. Em Monteiro, passamos na casa de tio Feliciano. Quan-

do eu cheguei lá, vi aquela mulher, ela conversando, lá na cozinha. Ela voltava e entrava

no quarto. Aí eu disse: aquela mulher é Maria (Madia), de tia Verônica. Aí eu falei:

quem é você? Ela disse: e você? Eu disse: eu sou Inácia e acho que você é Maria. É!

Virgem Maria! Mas as outras eu não tenho visto não. Ainda são vivas?

Antônio – Das minhas irmãs, só a Flora faleceu. (Terezinha, falando para Inácia:

eu acho que ela era madrinha de Inacinha). Dos meus irmãos, Manoel faleceu. Não

sei se você soube...

Inácia – Não soube não!

Antônio – José e Severino também faleceram. A Madia – a mais velha – claro, está

viva. Está com oitenta e dois anos, bastante lúcida. Recentemente, ela perdeu o

filho mais velho, o Givaldo, e ela foi muito forte, aguentou um tranco muito duro e

difícil. Pouco mudou. Continua a mesma pessoa. Era casada com Zé Guilherme –

que também faleceu. Inácia, você lembra de meu pai?

Inácia – Lembro, lembro! Tinha feições finas, alto, magro, cabeça branca... Meu Deus

do céu, a gente imagina assim... (Entra o genro de Inácia, marido de Maria Apareci-

da, que senta ao lado dela).

Antônio – Eu gostaria, agora, de saber quais as lembranças mais vivas, mais mar-

cantes que você guardou de tia Josefina e de seu pai, Sebastião.

Inácia – É, eu tenho assim uma saudade... Quando eu vejo uma pessoa assim meio pa-

recida com mãe eu recordo dela, né? Mãe era uma mulher magra, mas de estatura meio

baixa, morena, uma morena clara, os cabelos ralos, meia afilada. Depois, quando ela

ficou mais velha engordou mais, não foi comadre Terezinha? Logo antes de falecer, ela

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tinha um “corpão”, ficou forte. Meu pai, toda a vida, foi baixo, moreno (Nesse momen-

to comparam Manoel – um dos irmãos – ao pai. Ela discorda, acha um pouco pa-

recido apenas com seu jeito de olhar, de conversar, mas as feições do pai eram

muito mais bonitas e, enfim, não há nada de parecido).

Antônio - E da tia Maria, a mais velha, você lembra?

Inácia – Ah, sim! Era “xôxinha”.

Antônio – E de Mena, nossa avó, você lembra?

Inácia – Ela tinha uma garupa bem alta... Nos finais de semana, sábados e domingo,

eram os dias das palestras das moças e das mulheres que ainda eram novas. Tinha um

negócio de acender umas fogueiras, e nós íamos brincar de roda. Pai Velho tinha ciú-

mes, porque imaginava que Mãe Velha estava também se divertindo, acho que era isso.

Ele, então, pegava um canivete velho de mola, que mal fechava, e dizia que ia matar

Mãe Velha. Ela, então, só passava a mão na cabeça, que tinha quatro cabelinhos louros,

e dizia: “José, José, que história é essa?!” Mãe sempre tomava a frente, e ele então re-

clamava: saia daí!

[Fomos para a casa de Maria Aparecida, a terceira irmã de Terezinha, onde lá en-

contramos Genival, outro irmão das três]

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Maria Aparecida e Genival Matos56

Maria Aparecida Rodrigues de Matos e Genival Rodrigues de Matos

Antônio – Gostaria de saber quais as lembranças e recordações que vocês têm da

família de tia Josefina, mãe de vocês. Verônica, por exemplo...

Maria Aparecida – Eu me lembro dela assim, das feições dela; que era galega, alegre,

tia Verônica era muito alegre com a gente.

Genival – Toda vez que a gente se encontrava com ela era aquela alegria maior do

mundo. A gente conversava muito. Quer dizer, eu mesmo tive pouco tempo para con-

versar com ela. Ela, algumas vezes vinha aqui, outras vezes a gente ia lá, na casa de tio

Feliciano, e então a gente se encontrava, mas era pouco tempo. Costumava ir mais para

um joguinho de futebol e era pouco tempo para se frequentar. Mas, igual a ela (refere-

se a tia Maria) eu tenho lembranças dela. Tinha aquele jeito dela, assim, na minha

56

Entrevista concedida no dia 03 de novembro de 2008, na cidade de Prata. Os dois são filhos da Tia

Josefina, irmãos de Terezinha e Inácia Matos.

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mente ela era muito parecida com mãe, além de serem irmãs, eram bem parecidas. Pron-

to, a maior lembrança que eu tenho é essa que lhe contei (e Maria Aparecida acrescen-

ta: eu também!).

Maria Aparecida – Já faz tempo. Comadre Terezinha é que bota tudo na memória, eu

nunca vi. Já comigo acontece assim de eu hoje estar vendo vocês aqui e amanhã não

lembrar mais nada do jeito de vocês. Agora, vocês eu vi todos pequenos. Algumas ve-

zes, eu ia à casa de tia Verônica e eles estavam todos na calçada. A casa dela ficava num

lado e, no outro lado, a de tio Umbelino. A gente via vocês, todos pequenos, mas todos

nós também éramos pequenos e nem dá pra lembrar essas coisas todas não. O que eu

lembro mais é disso aí... Nós chegávamos lá, éramos muito bem recebidas por titia, seu

Zé Jorge; vocês também iam brincar com a gente ali pelas calçadas, íamos para a vár-

zea, onde tinha uns pés de manga, de coco, de fruteiras. E só isso mesmo, meu filho. Eu

lembro, era tudo tão alegre. Mãe gostava de ir. Quando ela podia, ia por lá, não é coma-

dre Terezinha? Sei lá, meu Deus, acabou-se.

Antônio – Fale como era a vida de vocês, entre irmãos...

Maria Aparecida (rindo e abraçando Terezinha) Mas toda vida nós...

Terezinha – Graças a Deus, eu só enxergo terra onde meus irmãos pisam.

Antônio – Tia Josefina falava dos irmãos dela?

Maria Aparecida – Ave Maria, era só do que ela falava... (Boleza intervém e diz que

a conversa dela para todo assunto que puxava era de um irmão!).

Terezinha – Tia Verônica e tio Feliciano puxaram a Mãe Velha. [trata-se de Filome-

na, a Mena, nossa avó, mãe de nossa mãe e que faleceu com mais de noventa anos

de idade]. No final, Mãe Velha ficou na casa de tia Verônica, lá em Sertânia. Já minha

mãe puxou ao Pai Velho, nós chamávamos assim mesmo, Pai Velho brigava muito com

Mãe Velha por ciúme. Ela, então, gostava muito de ir lá à casa de mãe. O Pai Velho não

podia andar e queria conversar com ela, queria a presença e a atenção dela. Mas ela

sempre teimava em sair e ia à casa de tia Maria também. Ele, deitado na cama, com uma

faca na mão, dizia: “Ô, Filomena – ela tinha os cabelinhos bem ralos e amarelinhos –

você quer ir, é? Você diz que quer sair daqui de casa?” Nessa hora, mãe se intrometia

entre os dois e dizia: “Mãe, vocês dois estão de novo brigando?”. E, realmente, a velhi-

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nha ficava com medo. Dizia: “José, José!” A bundinha dela era alta! Mãe dizia: “Papai,

que é isso, pra que essa faca?” E ele: “É porque esta mulher não quer me atender de

jeito nenhum”. Ou seja, ele estava era com ciúme da velha. Terminou ela indo várias

vezes para a casa de tia Verônica, e foi lá mesmo que ela morreu. Ela tinha um cachim-

bo. Eu achava lindo ver ela fumar... Um dia, eu roubei o cachimbo dela, taquei fumo e

fui para uma casinha e fumei, fumei. Quando eu pensei que não, o mundo estava rodan-

do. Tentei me levantar, não aguentei. Aí eu disse: não vou dizer que fumei, senão pai

vai me dar uma pisa. Ali mesmo caí, vomitei, vomitei... Depois chegou alguém, que

tinha ido comigo, procurando por mim. Disseram, então, que eu estava doente. Pergun-

taram: “O que foi isso?” Não demoraram e descobriram que eu tinha fumado cachimbo,

no cachimbo de Mãe Velha. Mas que eu fumei, fumei, até matar a vontade. Nunca es-

queci disso. Mas eu achava tão bonito ver ela fumar. Acendia o cachimbo e ficava

“puf”, “puf”!

Maria Aparecida – E Pai Velho também fumava no cachimbo. Ele disse um dia a Mãe:

“Minha filha, eu estou com fome”. Ao que ela respondeu: “Está com fome papai?” Aí

ela foi buscar uma comidinha, e não tinha mistura nesse dia. Aí ela pegou feijão, ajei-

tou, fez um molho de cebola e botou pimenta. Ele disse: “Isso aqui é a comida, minha

filha?” Ela disse: “É, e se tiver ardido me diga para eu botar mais pimenta”. Ele respon-

deu: “Minha filha, você botando mais pimenta vai me matar sufocado”. Ela, então, res-

pondeu: “Não, papai, eu boto mais carne!”

Antônio – Genival, Firmo Batista, nosso primo, foi um cantador de muita fama

neste sertão do Cariri paraibano. Você chegou a conhecê-lo?

Genival – Claro. De Firmo Batista, lembro bem de uma cantoria dele com outro canta-

dor, cujo nome eu não me lembro. Os dois estavam de viola na mão, no terreiro; a fo-

gueira acesa, e eis que lá vem passando uma procissão. E os caras estavam todos com

bacamarte na mão para que, quando a santa chegasse, fosse feito o festejado. Nessas

alturas, um devoto solta um foguetão, que espalhou fogo e passou bem perto, quase

chamuscando a santa. Um cara, então, se dirige a Firmo Batista pedindo que ele fizesse

um verso de improviso com aquele acontecido. E o nosso primo poeta mandou brasa:

“Eu fui uma festa na roça // na casa de um sertanejo //Achei bonito o festejo // No ter-

reiro da paróquia // Mas que a festa era de Nossa // Senhora da Conceição// Detonou

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um foguetão // Quase joga a santa fora // Valei-me Nossa Senhora // Com o bacamarte

na mão” (aplausos). Lembro de uma provocação que certa vez Firmo Batista armou pra

cima de Pinto do Monteiro: “Eu não sei o que tem Pinto // que só canta nesta esquina”.

Na bucha, devolvendo a provocação, Pinto responde: “Isto é minha oficina // Faço, con-

serto e remendo // Se o ferro for comprido, eu forjo // Se for pequeno, eu emendo // Se

faltar ferro, eu lhe compro // Se sobrar ferro, eu lhe vendo”. Pinto matava na unha

quem o desafiasse. Lembro de memória uma resposta de Pinto a um cantador que ter-

minou sua estrofe jogando-o contra sua mulher, de nome Carmelita. Dizia ele: “Pra

apertar Pinto Velho// é bastante Carmelita”. Pinto retrucou: “Aperto de mulher nova //

Aceito perfeitamente // Sendo ela mulher nova// Faz o velho ficar quente // De oito pra

nove meses // O padre batiza gente”. De Firmo Batista, lembro bem ainda de um im-

proviso dele em cima da variação de um mote sobre bebedeira, que lhe foi passado. Co-

nhecia-se um mote famoso que dizia: “Quem vê o que o bêbado faz // Bebendo não tem

vergonha”. O novo mote é diferente e diz: “Quem vê o que o ébrio faz // Não bebe,

preste atenção”. E o primo poeta improvisou: “Lampião no Ceará // Um ébrio chega-se

a ele // Pegou no bigode dele // Puxou pra lá e pra cá // Disse: agora vá // Sem nenhu-

ma alteração // Diga a seu comboio ladrão // que você viu o satanás //Quem vê o que o

ébrio faz // não bebe, presta atenção” (aplausos).

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Severino Anastácio da Silva57

Antônio – Severino Anastácio, você conheceu Cícero Nunes?

Severino – Gente muito fina. Cícero Nunes era um homem importante. Ele nunca per-

seguiu ninguém. Era assim meio estridente. O cabra ruim, com ele, não se arranjava

não. Homem importante é homem de caráter, porque caráter não só vem em cima de

gente rica, vem em cima de pobre também. Tem pobre que tem caráter. Cícero Nunes

sempre foi bom com aquelas pessoas que eram moradores e eram boas pessoas, do tipo

Zé Jorge, Zé Porfírio e mais uns que, mesmo pobrezinhos, conviveram com ele traba-

lhando. Uma pessoa que morava ali perto de Boa Vista, ele era... Estou esquecido do

nome dele! Vivia em definitivo trabalhando na fazenda dele. Uma fazenda, quando tem

condições, não falta o que fazer, não é?! De forma que eu, enquanto criança, sem co-

57 Severino Anastácio é primo legítimo de Enedina, esposa do Anísio. Foi contemporâneo de José Jorge,

na juventude. Atualmente tema idade de 89 anos e é proprietário da Fazenda Porteiras, em Sertânia, onde

concedeu a entrevista na data de 24 de novembro de 2008.

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nhecimento de Cícero Nunes e uma tia dele, chamada Teca – por sinal ele era meu pa-

drinho. Essa aí era uma criatura santa. Aliás, meu pai, muito pobrezinho e sem conhe-

cimento, também, porque era analfabeto de pai e mãe, tomou eles por meus padrinhos.

E eu tenho orgulho de ter tido um padrinho como Cícero Nunes, um homem importante

e que me serviu muito em momentos de grandes necessidades. Eu digo que mais ou

menos ele me admirava, só por saber de onde eu vim. Eu comprei uma primeira garra de

terra lá, por dois mil e quinhentos contos, naquele tempo era assim que chamava. Aí

surgiu outra que foi comprada através de sacrifício, tremendo sacrifício. Eu fiz dois car-

ros-de-boi. Vendi um a Antônio, Antônio... Santos. Ele me comprou o carro e nós só

ficamos com os dois garrotes do carro. Depois que fizemos outro carro-de-boi, surgiu

essa garra de terra e eu comprei. Logo, logo, surgiu outra e eu fiquei doido para pegar,

tudo ligadinho; hoje é uma propriedade só. Aí eu pensei assim: o que é que eu faço?! Eu

tinha umas três ou quatro reses, vendi e apurei uns dois mil e poucos contos. Faltou o

resto e tinha umas resinhas ali com Fortunato e que terminei vendendo a Fortunato

mesmo. Aí eu saí de Tuparetama e disse: “Vou ver Cícero Nunes”. Eu tinha um cavalo

bom. Cheguei lá na fazenda, parecia uma feira, tanta gente tinha na casa dele, uns tantos

como eu, atrás de dinheiro. Eu disse: “Eu tava passando por aqui e vim lhe visitar, vim

lhe ocupar. Fiz um negócio lá numa garrinha de terra, e minhas condições não me per-

mitiram pagar tudo, tanto para uma primeira terra, quanto para uma segunda também.

Não deu para pagar, e eu estou precisando de mil cruzeiros; naquele tempo, era “mil

reis”, que chamavam também de ‘contos’.” Eu senti que ele teve prazer em me servir. E

me disse: meu filho, você não leva hoje, eu estou sem dinheiro aqui; o que tinha aqui já

foi distribuído para o povo, mas, na segunda-feira, eu mando por compadre... (não lem-

bro agora o nome, porque faz tantos anos, e a gente esquece o nome do povo. Ele era

um compadre dele, de muita confiança; um comerciante de tecido e morava em Montei-

ro) Euclides!!! Eu mando por ele. Então eu agradeci e disse: está bom demais! Na se-

gunda-feira, eu cheguei primeiro do que ele, porque eu tava num trabalho que me toma-

va todo tempo da feira, até o final. Eu cheguei lá e ele tava por ali, me procurando...

Pronto, olhe aqui o dinheiro que Cícero Nunes lhe mandou. Recebi o dinheiro, paguei

os compromissos e fiquei satisfeito demais. E satisfeito também porque ele me atendeu

de uma maneira clara, com gosto de servir. Eu admirava Cícero Nunes não somente por

isso, mas por muitas outras coisas que ele fazia com o povo por ali. Homem muito bom,

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bom, bom! E tudo isso bem ao contrário dos Dantas, que eram homens muito violentos,

hi!...

Valdeci – Severino, já ouvi dizer que você quando jovem trabalhou junto com meu

pai na construção de uma estrada, no RN?

Severino – Trabalhei, sim. A gente era solteiro. Eu era menino, tinha 13 anos de idade,

não tinha nem treze completos.

Valdeci – Qual foi o trecho da estrada em que trabalharam? Foi mesmo no RN?

Severino – Eu acho que já era no Rio Grande do Norte, numa cidadezinha que antiga-

mente tinha o nome de Badalo. Na época, chamava-se de Equador. Trabalhamos um

magote de meses eu, Pedro, Firmino, Zé Jorge e uma turma da Prata. O feitor era da

Prata, mas não estou mais lembrado como era o nome dele. Além de nós, tinha mais

outros que eu não me lembro mais. Sei que ele era feitor dessa turma da Prata. Durante

este período de trabalho, adoeceram Zé Jorge e Firmino. Era uma febre danada. A firma

pagava os casados com um preço e os solteiros com outro. Pedro entrou como casado.

Ganhava abaixo de dois mil e quinhentos contos. Eu, que era um guri, o meu ordenado

era mil e oitocentos contos. Mas eu só recebia uns mil e quatrocentos, porque o resto

ficava para um tal de Montepio, que não era Barracão. O Barracão recebia o dinheiro

logo do feitor e pagava de acordo com os descontos do fornecimento. O trabalho era a

picareta e carrinho-de-mão. Então, na casa em que a gente ficava, estavam doentes Zé

Jorge, num canto, e Firmino, no outro. Zé Jorge gritava: “Firmino, ô Firmino! Tu queres

uma “vorva” assada?” (risos... “vorva” queria dizer flatulência, bufa, peido). Aquele

tempo era um tempo ruim, quer dizer, tinha um lado bom porque não tinha essas violên-

cias de hoje. Mas... governo? Só tem governo para receber o imposto do território, que é

o INCRA. Tem governo não, essa administração... e, note-se, surgiu aquele lá que era

José... Américo de Almeida. Esse aí conseguiu esta verba para lá, e ali se trabalhava.

Eram oito horas por dia, sem falhar hora nenhuma. Hoje, não. O trabalhador chega na

hora que quer. Mas, naquele tempo, num serviço publico como o nosso, chegava-se às

7:00 e saía às 11:00 e voltava-se às 13:00, largando somente às 17:00.

Antônio – Severino, você lembra o ano em que meu pai adquiriu a propriedade em

Santa Luzia?

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Severino – Lembro não. Eu fiquei muito afastado, indo de Arcoverde para Tuparetama,

muito ocupado com minhas atividades. Quem ficou muito entrosado foi compadre Fir-

mino. Gostava muito de vocês e foi ele que estava por lá.

Antônio – Margarida e Zé Caminhão foram os pais da Enedina, minha cunhada. E

eles moraram sempre ali, perto de Pernambuquinho?

Severino – É, moraram em Pernambuquinho, mas eles moraram também em São Fran-

cisco, junto da Prata. Por sinal, a garrinha de terra que tocava para meu pai era uma mi-

xariazinha de terra, e eu, morando já ali no Pajeu e os meus pais comigo, botei na cabe-

ça que já tinha terra demais e deixei pra lá para os jumentos passarem por cima. Ele

morou lá muitos anos e criou quase toda a família lá, o Zé Caminhão. Era conhecido por

Zé Caminhão. Eu nem me lembro do nome legítimo dele. Houve um caso com ele, lá

em Caruaru, quando ele era bem mocinho, numa festa ou algo assim. Disparou um ba-

camarte numa pessoa e matou. Ele, então, correu para ali, ficou um tempo escondido e,

nessa ocasião, trocou o nome por José. José Caminhão, por que esse nome? Eu soube

que ele, já depois de casado - é bem verdade que não houve perseguição a ele lá e pres-

creveu o tempo –, ele tinha uma égua, uma égua grande danada, e ele era meio doidão.

Vinha de Boi Velho e correu na frente de um caminhão até perto de São Francisco. Por

isso botaram o nome dele de Zé Caminhão. Montado numa égua, correu adiante de um

caminhão. Era uma pessoa boa. Gostava muito dele.

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Francisca Ananias58

Francisca [irmã de Laura, Antonia e Manoel Ananias]

Antônio – A família Ananias era muito ligada à nossa família?

Francisca – Eu tinha um genro que sempre viajava num cavalo para Sertânia. E eu per-

guntava a ele por compadre Zé Jorge e comadre Verônica. Ele não entendia a nossa li-

gação de amizade, e tratei logo de explicar a ele: eu tenho muita coisa a ver com eles.

Somos primos, nascemos e nos criamos todos juntos, num bolo só. Quando compadre

Zé Jorge estava bem doente, eu fui lá visitar ele. Ele, mesmo doente, reconheceu a gen-

te. Ainda me deu um abraço, abraçou comadre Laura, mas tão pesaroso. Quando a gente

esteve lá, conversei muito com comadre Verônica. Ela fazendo queijo, e eu de lado,

olhando. Ela contando as histórias. Aí Manoel chegou e ficou com a gente também.

Enquanto a gente esteve lá, ele ficou conosco. Aí nós viemos embora e não deu mais

58 Francisca faz parte da Família Ananias que tem parentesco conosco do lado da família de nosso pai.

Além disso, sempre foram pessoas de grande apreço e estima da parte de José Jorge e Dona Verônica.

Francisca é madrinha do Anísio. Seu irmão, Manoel e sua irmã, Antônia, (falecidos) foram meus padri-

nhos. Tem outra irmã, Laura, também muito amiga da nossa família. Tem 89 anos de idade e mora nas

terras da Fazenda Santa Catarina, onde concedeu esta entrevista, no dia 03 de novembro de 2008. Bastan-

te lúcida e bem-humorada.

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para a gente ir ver ele de novo. Naquele tempo, a gente tinha muitas obrigações, tinha

casa de negócio, tudo...

Valedeci – Francisca, quantos filhos você tem?

Francisca – Eu só arrumei dez filhos. Destes, morreram três e tem sete vivos. O padre

frei Damião certa vez me confessou e adivinhou tudo o que eu tinha na minha cabeça

(risos). Quando eu conto essa história, as meninas dizem que é mentira. Então o frei

Damião disse que Jesus tinha marcado para eu ter vinte filhos. O frade disse: “Minha

filha tá marcado para você ter vinte filhos, mas vou lhe fazer um apelo para só ter dez

filhos”. Ai eu disse: “Graças a Deus, Frei Damião”. E, realmente, só tive os dez filhos e

criei todos, agora, depois, morreram alguns, já de grande. Morreu uma moça com dezes-

sete anos. Teve papeira e pegou um peso... o que eu gastei com esta menina, indo de

Arcoverde a Campina Grande, onde passei trinta e tantos dias. Os médicos sempre dizi-

am que ela escapava, mas eu tinha certeza que ela não escapava não, como de fato.

Antônio – Francisca, você é mais velha do que sua irmã Laura, não?

Francisca – Sou! Tenho 89 anos, e comadre Laura é a caçula.

Antônio – E os demais irmãos?

Francisca – Comadre Antônia morreu com noventa e uns quebrados, não sei se é três

ou é cinco. Manoel Ananias morreu com noventa e um anos. Comadre Antônia demo-

rou a morrer, morreu velhinha...

Antônio – E sua saúde, como está?

Francisca – Eu não tenho saúde não, meu filho. É doente... com reumatismo, olha o

meu joelho. Laura é pior do que eu. Tem dia em que as pernas de Laura parecem um

pau de tanger boi (risos). Mas ela também se encolhe demais, eu não me encolho não.

Eu varro terreiro, lavo minha roupa; a roupa grande, não porque não tenho mais força.

Eu passo na casa da minha sobrinha, e ela diz sempre: “Também madrinha Chica não se

assenta, só é para riba e para baixo...”. Outra sobrinha me disse: “Ô, titia, se assentar

encolhe, e estando mexendo pra lá e pra cá melhora”. Eu disse: “É mesmo assim que eu

faço”.

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Eugênio Nunes59

Antônio – Eugênio, você é um dos filhos de Cícero Nunes. Que lembranças de sua

infância você guarda de seu pai?

Eugênio – A lembrança maior que eu tenho do meu pai é quando ele selava a burra para

ir à feira da Prata. Isso acontecia toda terça-feira. Nas quartas-feiras, era para Boi Velho.

Eu era quem ia sustentar a burra para ele montar. Naquele tempo, eu era menino.

Antônio – Seu pai lhe encaminhou para os estudos?

Eugênio – Me botou para estudar em Patos...

Antônio – Aonde?

Eugênio – Em Patos. Eu morava na casa de um tio meu, chamado tio Tonheira. Ele era

promotor, e meu pai me botou lá, na casa dele. Eu estudava no colégio diocesano de

Patos, cujo nome era Colégio Padre Vieira. Tempos depois, eu não quis estudar e só

queria voltar para casa, para a vida do campo, e terminei fugindo do colégio. Andei um

bocado a pé e outro de caminhão até Sumé, digo, até Monteiro, e depois cheguei em

casa. Depois de tomar um bocado de grito de meu pai eu disse: “eu não vou mais não,

meu pai, eu vou ficar aqui com o senhor”. E fiquei. Depois que papai morreu, vim em-

bora para cá.

59

Eugênio Nunes é o filho mais novo de Cícero e D. Isabel Nunes, proprietário da Fazenda Matarina,

próxima da localidade da Prata, onde José Jorge foi arrendatário até meados da década de trinta.

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Antônio – Eugênio, eu gostaria de registrar aqui a imensa gratidão e profundo

respeito e admiração de minha família por Cícero Nunes, seu pai. Nossa família foi

moradora da Matarina e, graças a ele, meu pai conseguiu comprar um pedaço de

terra, no Moxotó pernambucano, onde nós crescemos. Meu pai dizia sempre que

Cícero Nunes era manso e justo de coração, bem ao contrário de tantos outros fa-

zendeiros-coronéis deste Cariri paraibano.

Eugênio – Eu acho até que eles eram compadres. Papai falava muito no nome dele: “a-

quilo ali é um homem de confiança!”, dizia ele.

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Neco (Manoel) Porfírio60

Antônio – Neco, que lembrança você tem da família de Verônica e Zé Jorge?

Neco – A gente nasceu e se criou junto. Por isso, sempre fomos visitados aqui pela fa-

mília de vocês. Lembro de uma dessas visitas, meu pai ainda era vivo. Lembro que a

primeira vez que você veio aqui vieram também José, Severino e Carlinhos, de Maria

Gomes. Lembro até que vocês vieram numa camionete que Severino deixou na casa de

Bento, lembra? Então, nesse tempo, carro não vinha até aqui, e por isso deixaram a ca-

mionete na casa do finado Bento, em Santa Catarina. Nessa época, Carlos, de Maria

Gomes, era casado de pouco. Isso já faz muito tempo, muitos anos... Eu já vou comple-

tar 69 anos, agora em junho do próximo ano.

Antônio – Neco, uma coisa que eu lembro e que meu pai falava muito era a amiza-

de que ele tinha por vocês, especialmente o seu pai, José Porfírio...

60 Neco é um dos filhos mais novos de José Porfírio e que foi um dos grandes amigos de Zé

Jorge. Ele morava no Sítio do Cachorro Morto, não muito longe da Matarina. Esta entrevista foi

fita no dia 23 de novembro de 2008

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Neco – É mesmo. Eles eram compadre duas vezes. Pai foi padrinho de Conceição, sua

irmã; e o finado José Jorge, padrinho de meu irmão Zezé. Foram compadre duas vezes.

Mas, quem diria, ver Antônio aparecer aqui... Eu soube que Virgínia esteve aqui, passou

pela casa do finado Zé Jorge, tirou fotografias e me disseram que ela chorou pra se aca-

bar (dirigindo-se a Valdeci). Taí, você também veio, não foi? Aí me contaram tudo. As

vezes, a gente tem vontade de ir lá em Sertânia. Eu até tenho um carro aí, mas não tenho

a habilitação e tenho medo de enfrentar a “Operação Manzuá”61

. Não sabia que já aca-

baram com essa Operação em Monteiro. Porque é pertinho. Às vezes, eu digo: tô com

vontade de ir na casa de Valdeci, mas...

Valdeci – Me informaram que quem passou por lá foi Antônio...

Neco – Foi, ele falou que passou por lá uma vez. Antônio andou por aqui ontem. Ele

mora em Sumé, mas tem um pedacinho de terra aqui.

Valdeci – Por sinal, eu soube, informado por alguém daqui, que Antônio tinha fa-

lecido...

Neco – Não! Quem faleceu foi o mais novo, Severino, que chamavam de Biga. Foi esse

que faleceu. Qualquer dia, quando você menos esperar, eu tomo um transporte particu-

lar e vou bater lá na sua casa (Valdeci informa que as portas estão e sempre estive-

ram abertas).

Antônio – Você lembra de meu pai?

Neco – Demais! Vou contar uma história agora. Antônio não estava em casa nessa oca-

sião, mas pode até ele lembrar. Quando o finado Sebastião Paulino comprou aquele ter-

reno que foi de Chico Felix, ali encostado a vocês, ele passou a falar de vender. Aí o

finado Zé Jorge, numa vez que ele veio aqui, disse que compraria aquele terreno. Mas

ele não disse que tinha vindo para comprar. Ele chegou aqui em casa, e pai tinha ido

para a várzea. Ele falou a minha mãe: “Ô comadre, onde está o compadre José Porfí-

rio?” Minha mãe respondeu: “Ele tá lá na várzea, compadre. Você não quer ir lá não?”

61 Trata-se de uma operação de vigilância policial, posta em prática por diversos governos da Paraíba.

Essa operação se praticava nas fronteiras da Paraíba com os demais Estados do Nordeste, onde se tentava

controlar a saída de carros de passeio e de cargas. A palavra “manzuá”, na região, significa espécie de

armadilha utilizada na pesca da lagosta...

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Ele disse: “Não, comadre, eu quero é que você me dê esse menino para eu ir com ele na

casa de Sebastião Paulino, na Lapa”. Ele não me chamava de Neco. Só meu pai e minha

mãe é que me chamavam de Manoel, o resto só me conhecia por Neco. Aí ele disse: “Eu

vou ver se compro aquele terreno, mas não vou dizer que vou comprar, só que vou

comprar um pasto”. E nós saímos daqui, eu que nunca tinha ido na casa de Sebastião...

eu sabia onde era a Lapa, mas a casa dele, não. Aí rodeamos umas brenhas, uma caatin-

ga de uma manga enorme. Mas terminamos saindo na casa dele. Aí, tendo ele falado

que queria comprar um pasto, Sebastião mandou que ele fosse olhar por lá... Nós volta-

mos por um caminho onde eu nunca tinha andado, mas saímos no Sitio do Meio. Foi

dessa vez que o finado Zé Jorge veio aqui. Depois disso eu o vi umas duas ou três ve-

zes. Ele deve ter vindo aqui na década de sessenta [A entrevista sai do foco das pesso-

as de Zé Jorge e de Zé Porfírio].

Neco – Ô, Antônio, agora eu vou perguntar uma coisa a você, continuando aquela con-

versa que iniciamos. Quando Severino morreu, depois que Severino morreu, aí morreu o

Manoel? [Informei a ordem de falecimento de Severino, de Florisa, de Manoel e de

José. Nessa hora ele informa que soube do falecimento do filho homem mais velho

de José Guilherme, o Givaldo, segundo informações repassadas por Norma]. Maria

de José Guilherme morreu também? [Informamos que não]. Norma tinha me dito que

ela tinha morrido também, eu já estava mentindo por aí.

Antônio – Neco, você lembra de alguma presepada de vocês, meninos, ali na Mata-

rina, algo como a do Manoel e da Flora, que subiram na Serra Preta com asas de

palhas de coqueiro, imitando passarinhos, e se ralaram nas pedras?

Neco – Com Manoel e Floral, não. Agora, tinha um filho do finado Faustino Figueira

(pergunta a alguém se lembra de João Figueira, aquele boiadeiro que comprava

gado; tinha um sobrinho dele que tem até o apelido de Capuxu); ele chegava no

velho Luís e subia para roubar coco. Quando o velho chegava, ele já estava pronto com

aquelas palhas de coco. Um dia, caiu em cima das pedras e cortou a cara todinha. Aque-

le pé de cajueiro, ali de Antônio Terêncio, lembram dele? Levei muitas carreiras ali da

velha Joana... E aquele cajueiro ainda é vivo, rapaz!

Valdeci – Neco qual é a sua idade?

Neco – Vou fazer sessenta e nove anos de idade em julho próximo...

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Valdeci – Manoel dizia que roubava muita melancia com você, aí pelos roçados...

Neco – Manoel Jorge? Era Expedito, meu tio. Ainda é vivo e mora em São Paulo. Ele

mora, se não mudou, ele mora ali perto da igreja do Rudge Ramos? Não tem a Avenida

Senador Vergueiro, saindo do Rudge Ramos como quem vai para São Bernardo? Val-

deci morou ali pertinho e conhece... Tem a Rua Quinze de Setembro, ali perto da Ave-

nida Caminho do Mar, se ele não mudou ainda mora lá. Aqueles trechos ali eu mexi em

tudo, conheço tudo. Se ele não mudou, esse é o endereço dele...

Anônio – Nesta altura da conversa a entrevista terminou porque tivemos que visitar

outro irmão mais velho de Neco, Zezinho Porfírio, que morava alguns quilômetros adi-

ante. Lamentavelmente não tivemos condições de entrevistá-lo.

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Zacarias Neves62

Antônio – Zacarias, a nossa irmã Virgínia fala sempre de uma visita a um umbu-

zeiro, onde você teria chegado primeiro do que ela e chupado todos os umbus.

Conte essa história...

Zacarias – Eu possuía uma “baliadeira” com um saquinho de balas no lado esquerdo.

Com a mão direita, pegava o cabo da “baliadeira” e me preparava para atirar. Quando

cheguei lá no pé de umbu, eu não esqueço nunca, uma juriti voou e eu aí atirei. A bala

pegou mesmo o pé do ouvido da juriti. E tinha uns umbus no chão. Ai eu disse, vou

apanhar depressa, que com pouco mais ela (a Virgínia) vem. Eu chegava na cerca e fa-

zia assim (faz o sinal de abrir) e as varas era só pra lá e pra cá e eu, “zupt”, entrei. Ela

chegou e foi logo dizendo: “Já estás ai, não é?” Eu disse: “É, perna de sabiá!” Ela e-

mendou: “Deixa que eu vou contar pra pai, cabritinho ruim, viu! Olha, desaba daqui”.

Aí eu disse: “É já, só vim pegar uma juriti que caiu aqui no chão”. E ela: “Quá-quá-quá!

mas eu vou sempre dizer a pai”. E ficou lá com uma vara, derrubando os umbus. Era o

pé de umbu do finado Antônio Grilo, aquele que trabalhou para o teu pai, o finado Zé

62 Zacarias, ou “Caria” como é carinhosamente chamado pela nossa família é vizinho nosso, desde os

primeiros momentos da aquisição de nossa posse de terra, em Sertânia. Filho adotivo de José ou de Sebas-

tião das Neves, que desde cedo o acolheram na pequena propriedade deles, junto à nossa Santa Luzia.

Pessoa muito querida pela nossa família. Entrevista concedida a mim e a Valdeci na Fazenda Santa Luzia,

aos 05 de novembro de 2008.

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Jorge. Ele tinha um rancho naquele serrote acolá (aponta), no pé de umbu. Uma feita,

chegaram a botar fogo no rancho dele, queimaram rede, queimaram tudo.

Valdeci – Ele era de onde, Carias?

Zacarias – Antônio Grilo era daqui do lado de Afogados da Ingazeira. Voltando a esse

caso do incêndio no rancho ele sempre vinha aqui jogar sueca com o finado Zé Jorge.

Não sei quem foi dos trabalhadores logo viu e avisou: “Eita, seu Antônio, lá pra suas

bandas tá ardendo de fogo. Olha o clarão!” A gente pegou uma foice e uma espingarda -

uma espingardinha curta -, até era preta, estou bem lembrado, eu era menino. Aí quando

a gente chegou lá, menino, só tava o chão. Aí o pai de vocês, Zé Jorge, disse: “O senhor

vem por aqui e - eu conto isso com certeza, perante Jesus Cristo! – Eu vou lá na rua

comprar umas coisas pro senhor”. Quando chegou lá, um homem disse: “Ah, ele pegou

um caminhão aqui e arrancou-se lá para o lado de Afogados”. Quando ele veio aparecer

foi com uns quatro meses depois. Vocês não sabiam não, porque vocês eram meninotes,

mas o finado Zé Jorge deu-lhe uns trocos medonhos. Disse-lhe que ele estava morando

com um homem. Ele respondeu: “Nada, foi que, mais, mais”... Seu pai, ainda assim, foi

comprar as coisas, aí ele disse que não queria mais. Parece-me que ele tinha assim -

Deus que me perdoe, o homem já morreu! – aquela soberba...

Valdeci – Zacarias, você chegou aqui com quantos anos?

Zacarias – Três anos. Tá lá meu retrato ampliado que eu guardei. O retrato que minha

mãe tirou tá lá, eu mandei ampliar o que ela mandou fazer.

Valdeci – Você lembra o ano?

Zacarias – O ano foi de... quarenta e um. Não, não, não, minto! Foi ao terminar o ano de

1939. Eu sou do dia 25 de dezembro de 1939.

Antônio – Zacarias, você lembra como é que pai iniciou as compras de terras dessa

propriedade Santa Luzia?

Zacarias – Teu pai chegou da Paraíba. Nós já morávamos ali. Mas nós não tínhamos

condições de comprar isto aqui. Nós não... eu era menino! Aí teu pai foi e comprou, ela

morava naquela casa ali, de taipa. Tinha um quarto detrás onde teu pai dormia quando

ele vinha da Paraíba. Ele não queria se misturar com o povo lá dentro da casa, esse pes-

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soal antigo, sabe como é, Deus lhe perdoe... Logo teu pai, que era meio cismado! Ele

vinha com um tal de Zé... Zé Capim, o apelido de um trabalhador que era lá da Paraíba.

Era um baixinho, meio moreno, que vinha com teu pai. Trabalhador que era medonho.

Aí veio e... Zé Florindo era quem tomava conta dessa propriedade e tudo de teu pai pas-

sou a ser com Zé Florindo, o tio de Anísia, tua cunhada. Aí ela foi e vendeu a teu pai.

Ficou a terra da velha Josefa Traquinada lá pra dentro. Foi tempo que teu cunhado José

Guilherme casou com tua irmã e ficou morando lá. Depois, chegou aquele menino aí,

filho de Otaviano, irmão de comadre Lauriza, dizendo que tinha um pedaço de terra na

propriedade. Zé Jorge, então, mandou: “Vá ao juiz, que o juiz é quem consegue definir

isso aí, não sou eu não”. Foi assim mesmo. E ele nunca mais veio procurar nada. Era um

galeguinho...

Antônio – Zacarias, e a agricultura daqui, o que é que se plantava?

Zacarias – O primeiro roçado que o finado José plantou foi esse aqui da ponte. Antes, a

estrada era aqui desse lado (aponta). Ele plantou até a beira do rio e depois ele começo

a trabalhar para o lado do açude que ele mandou fazer. Ele gostava muito de plantar. O

que ele mais gostava de plantar era feijão de arranca. E ele tinha sorte com o feijão de

arranca, pode confirmar que era verdade mesmo. Depois, o segundo roçado quem botou

foi Zé Guilherme, cobrindo aquela chapa de serra todinha. Foi um fogão bonito! E lu-

crou todinho. O finado Givaldo era pequenininho na época, mas era quem ajudava a

limpar mato com ele. Lucrou todo mundo.

Antônio – Zacarias, você lembra da construção daquele açude ali do Riacho Quei-

mado?

Zacarias – Não senhor! Na época da construção daquele açude, arrastava-se terra num

coro de boi. Era, num couro de boi; ou boi ou vaca, né? Amarrava o couro numa canga

e se puxava para a parede, onde se aplainava para lá e para cá, para lá e para cá!

Antônio – Zacarias, na nossa propriedade tinha uma escola, não era? E você che-

gou a estudar nessa escola?

Zacarias – A professora era Zefa Çula, não era? A escola era... ela começou a ensinar na

casa que foi de Manoel, seu irmão. Depois, à noite, iam todos lá pra nossa casa, ensi-

nando a gente lá em casa. Eu aprendi a assinar o nome com ela, a finada Josefa, que já

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morreu. Aprendi eu e as meninas todas... Depois, ela passou a escola para essa casinha

aqui. Ela tinha uma amiga chamada Miúda. Miúda era irmã da finada Isabel, sogra de

teu tio Umbelino. Era uma senhora gordinha e baixa. Depois disso, o tempo foi “afra-

cando” e ela deixou de ensinar a todos nós.

Antônio – Zacarias, naquela época de tantos trabalhadores aqui, tinha muita festa

e diversão?

Zacarias – Trabalhador tinha muito, agora o ganho era fraco. Mas, naquele tempo, tudo

era barato. Quinhentos réis, “deztões”63

, era dinheiro! Tinha as pratas de “doistões”, de

cruzado, de tostão, era até um dinheiro branco, ainda me lembro. Não atalhando a con-

versa do senhor, amigo velho, apareceu a nota de “deztões”.

Antônio – Pai sempre se deu bem com vocês da família Neves, não é verdade?

Zacarias – Sempre se deu bem. Quando ele chegou aqui da Paraíba, o finado Manoel

seu irmão já era grandinho, veio ai trazendo umas cabras, umas ovelhas. Agora eu não

estou lembrado... ninguém tinha conhecimento lá pro lado da Paraíba, né, só se conhecia

Monteiro onde se ia à feira algumas vezes. E ia-se e voltava a pé, porque não se tinha

dinheiro para pagar o transporte do caminhão... agora me lembrei, de Cícero Bezerra.

Era um caminhão meio azulado. Ele dizia “Me dê tanto que eu levo vocês”. Aí deixava

a gente ali. Já seu pai, o pai de vocês, ele vinha montado nos animais. Ele tinha uns a-

nimais bons, forçosos. Saía da Matarina, não é? Porque a feira dele era em Prata de Boi

Velho, parece que era. E pra Monteiro acho que ficava um pouco mais distante pra vir

para cá. Aí ele foi criando, e Dona Verônica mais as meninas criavam muitas galinhas.

A família foi morar ali numa casa de taipa, que era uma “casona” grande. Hoje em dia,

ainda tem um pé de frejó ali, né? E na porteira da várzea, ainda estou lembrado, tinha

um pé de chorão. Essa várzea daqui da frente (aponta), que dividia com a nossa, era só

mato e não tinha cerca não, mas ninguém atravessava de um lado pra outro não. Tam-

bém os roçados eram aqueles “cuirrimboques” de nada. Pois bem, a raposa largou a

comer galinha, tanto a de vocês como as nossas. Aí Zé Jorge foi lá em casa e disse: “Seu

Sebastião e José Neves, eu vou fazer umas tocaias acolá porque a raposa está acabando

as galinhas. Sebastião disse, então: “Ô seu José, faça aí o que o senhor quiser, aqui nós

63 Corruptela de dez tostões.

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somos vizinhos e não vamos criar dificuldade não. Ele fez então uma tocaia lá dentro do

rio. Aí tinha um bebedouro onde os bichos da gente bebia, dentro do rio. Aí ele disse

pra avisar ao Daria e Chico – irmão de Manoelzinho, que casou com a finada Joana,

casamento esse feito pelo pai de vocês pois Manoelzinho ia dar no pé! Aí, quando nós

demos fé, ouvimos foi um tiro, por volta das quatro horas. O pé de quixaba por debaixo

do qual passava nosso caminha, na beira do rio, era preto. O finado Zé Jorge matou u-

mas quatro raposas lá. E ali, naquela porteira (apontando), ele matou umas duas. Aí ele

ainda ensinou a Manoel e Zé das Neves que era meu irmão a armar o monde para pegar

o gato. Ele matou uma porção de gatos vermelhos, vários casais de gatos, e aí foi desa-

parecendo lentamente até acabar...

Valdeci – Conta aí a história do casamento de Manoelzinho com Joana que pai

teve de apressar...

Zacarias – Zé Jorge tinha sabido por cima do desmantelo entre ela e Manoelzinho, que

queria fugir para não casar. Ele chegou lá em casa e foi logo perguntando: “O que é que

está acontecendo aqui?” Desculpe, mas eu estava escutando a história. A minha mãe

então contou todo o acontecido. Ele disse: “O quê? Com Joaninha, logo minha “fazedei-

ra” de café?” Porque era ela que fazia o café que ele gostava; e ele tava sem entender

por que ela não tinha vindo trazer o café... Zé Jorge gostava de um café meio chegado

no pó e que não era tanto açúcar, não é? Era um café médio. Quando ele tomava aquele

café, aí subia a vontade do cigarro dele. Falou: “Cadê ela?” Minha mãe respondeu: “Es-

tá lá dentro”. “Então, chame ela aqui. Ela deve sair, porque está enfurnada aí no quar-

to!” Ela, então, veio e contou tudo como foi. Ele disse: “Olha, meninada, eu vou tomar

conta porque ela é de menor. Zé das Neves me acompanhe. Amanhã bem cedo vá mais

Seu Caria lá na casa de Zefa Traquinada, pegue um carneiro e um bode e traga. Você,

Souza, venha ajudar a matar e tirar o couro, que nós vamos fazer o casamento. Vamos

levar o cabra para fazer o casamento. Podem logo matar esses bichos que eu vou avisar

por aqui pra nós dar de comer a todos na festa do casamento dela”. Daqui a pouco se vê

ele botando uma calça e uma camisa que eu não esqueço nunca – remendada aqui em

cima da pá –, era uma roupa que chamavam de pólvora com farinha. Ela tinha uma lista

amarela com uma branca na altura da “orela” (orelha) do tecido, no pano. “Ah, mas eu

não posso casar, vou-me embora para São Paulo trabalhar e quando eu arrumar lá um

dinheiro eu venho casar”. Zé Jorge disse: “Você vai casar com essa roupa aí. Quando

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foi pra bulir com a menina, você não se importou nem com roupa nem com calçado,

agora vai assim. E não tente escapulir não!” O finado Sousa disse: “Se escapulir, eu

passo-lhe a espingarda. Mesmo assim, foi! Estou contando com fé mesmo. Aí Zé Jorge

disse: “Não! Pode deixar comigo, Sousa, o que é que há? Se você fizer isso você está

prejudicado comigo, porque ele mora comigo, ele é meu trabalhador, viu?”. Tou lhe

dizendo. Quando se viu, ele tava por trás tentando escapulir. O finado Zé Jorge ficou tão

desconfiado que atravancou as portas aqui e armou a rede aí na sala. Fizeram o casa-

mento, não é? Depois chegou um tempo meio ruim, e ele inventou de trabalhar num

serviço pro lado de João Pessoa, na construção de uma estrada. José das Neves foi com

ele, chegou lá passou oito dias e tinha um homem chamado Seu Doca. Nesse tempo,

não era tempo de ônibus, era sopa. Depois, pegaram a dizer que sopa era coisa de ali-

mento, por isso botaram esse nome de ônibus e com ônibus ficou até hoje. Agora mes-

mo com essas veraneios falam em carro de lotação. Aí deixou ela por lá e veio embora,

dizendo: “Quando eu chegar lá, comadre Joana, eu peço para Sebastião escrever uma

carta, mandando dizer mãe como é que vai. De noite Sebastião escreveu a carta dizendo

tudo certinho, mandou logo pois a estrada estava aí na porta. Aí seu Doca disse: “Ama-

nhã você escreve a carta da menina que eu levo”. Escreveu a carta e, às oito horas, o

ônibus passava cheinho de gente, e ele foi com a carta. Chegando na rua, ele encontrou-

se logo na feira do preá – lado tem a feira onde se vende os bichos –, isso lá em João

Pessoa. Topou logo com aquele menino que matou o finado Cícero ali, o primo de Aní-

sia, Roberto. Era igual ao finado Zé Preto, sobrinho de vocês, um era escrito o outro.

“Oh, Roberto, você por aqui?! Estou por aqui. Zé, tu me dás licença que eu vou fazer

minha feira, depois eu venho aqui pra tu ir comigo tomar um café e nós conversarmos

para tu saber como andam as coisas por lá. Oxente, deu foi no pé... [Zacarias teve de

interromper a entrevista, chamado que foi à sua casa].

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Louro Caboclo64

Antônio – Louro, é o seguinte: você conviveu durante vários anos e foi amigo de

muitos de nossa família, lá em Sertânia. Você conheceu bem de perto meu pai e os

irmãos Manoel, Anísio... Anísio lhe tinha tanto apreço que tomou você e dona Nena

como padrinho e madrinha de Hélio. Que lembranças ficaram na sua memória das

pessoas e daquele tempo?

Louro – Perfeitamente, jogamos muitas suecas, noites e noites. Eu lembro tempos bons

que passaram entre vocês e a gente. Para mim, foi uma honra ter aquela família como

amigos. Como, de fato, até hoje somos amigos. Principalmente, a amizade entre meu

64 Louro é um dos filhos de Caboclo Lulu (falecido), fazendeiro vizinho, proprietário da Fazenda São

Francisco e que foi um dos maiores amigos de Zé Jorge. Adorava caçar nos sertões de Pernambuco. Anu-

almente organizavam caçadas nas quais, infalivelmente, Louro Caboclo, o velho Caboclo Lulu, José e

Manoel Jorge sempre compareciam. Esta entrevista foi feita em Gravatá por mim e por Ricardo, aos 16 de

janeiro de 2010, onde atualmente Louro reside com sua família.

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pai e o seu. Eles demonstravam serem amigos íntimos e de muita confiança entre eles;

de tal modo que bastava um olhar para o outro e se comunicavam. Isso se refere aos

nossos pais, mas, igualmente, com os mais novos, como é o caso do Anísio, Manoel,

Enedina... Você, não, porque você viveu mais tempo fora, estudando, do que mesmo

morando lá. Eu vou lembrar...

Ricardo – Você é da mesma faixa etária do tio Manoel?

Louro – Eu sou mais velho do que Anísio um ano, um mês e um dia. Como eu estava

lhe dizendo, eu vou lembrar uma passagem que se deu com você e meu pai. Foi na Fa-

zenda São Francisco, e você estava pertinho de se formar. Chegando lá, na fazenda,

você foi visitar meu pai, que já estava acamado. Você estava com papai no quarto. Eu

chegando, peço licença e entro no quarto. Papai me dirigiu a palavra me perguntando:

“Terminou o curral, meu filho?”. Você se vira pra mim e me pergunta: “Você estava

fazendo um curral?”. Eu disse, “Não, Antônio, eu estava tirando o leite”. Lembra dessa

passagem? E, assim, foram várias e várias vezes. Tudo passou! (silêncio). Tem outra

passagem de Zé Jorge que eu nunca esqueci. Lembro que ele chegou lá na minha casa à

noite. Eu tomei um susto grande porque eu não esperava ver Zé Jorge naquela hora em

minha casa. Eram mais de sete ou sete e meia, quando eu ouço alguém bater à porta:

“tóc, tóc!” Eu pergunto: “Quem é?” Ele logo responde: “É Zé Jorge de Siqueira”. Eu

abri a porta e mandei que ele entrasse. Ele foi logo me dizendo que a demora seria pe-

quena. Ao que eu respondi que, mesmo que fosse pequena, ele entrasse e dissesse o que

tinha acontecido; porque vê-lo àquela hora da noite fora da casa dele deveria ter aconte-

cido alguma coisa. Ele, então, me disse que vinha me fazer um pedido para pegar a be-

zerra nova de uma vaca que tinha morrido atolada no açude do Riacho Queimado. E ele

temia que a bezerra fosse morrer de fome. Eu garanti a ele que iria, sem o menor pro-

blema. Apenas não garantia ir cedinho da manhã porque tinha de tirar o leite das vacas;

mas logo em seguida eu estaria lá, na Santa Luzia. Ele foi embora, e eu, de manhã, após

fazer as obrigações, fui prá lá. Lá encontrei Valdeci, Lassi, meu sobrinho... Juntaram-se

a outros que, a pé, trataram de procurar a tal bezerra. Depois de muita procura, já com o

dia bem alto e até depois do meio dia, não encontramos nada. Já estávamos desaniman-

do porque a busca era inútil. De repente, eu avistei a bezerra, que estava deitada já no

final do açude, em direção ao Riacho Queimado, debaixo de uma jurema preta. Eu a

avistei de longe e tirei o cavalo para o lado de cá e, nessa hora, chamei os meninos lá

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fora. Toquei o búzio, eles chegaram e eu apontei a direção onde tinha visto a bezerra.

Você sabe que a gente correr atrás de um boi grande num mato serrado já é difícil, ima-

gine correr atrás de um bezerro novo, com apenas um mês de nascido... Combinamos

que alguns iriam a pé, por cima do lugar onde estava a bezerra no intuito de fazer um

cerco e trazê-la voltando na direção do riacho. Tudo isso para evitar que ela corresse,

subindo em direção àquele serrote lá do antigo fio de telégrafo. Eu dizia que, caso ela

subisse naquela direção, não haveria condições da gente acompanhar. Dito e feio.

Quando os meninos foram se aproximando, a bezerra correu em direção do tal serrote.

Eu soltei-lhe o cavalo atrás; e a bezerra vai em cima, vai em baixo... Na passagem do

caminho, a gente pegou a bezerra. Pegamos a bezerra, falei com Valdeci, ele me agra-

deceu e vim embora sem encontrar mais com Seu José Jorge. Acabou. Quando é um

belo dia, chega Seu José na minha porta, dizendo que tinha trazido um pequeno presente

para me entregar. Eu disse: “Tá certo, Seu José, muito obrigado!” Era um lindo corte de

tecido, do bom, para eu fazer um paletó e uma calça. Esse terno veio comigo aqui pra

Gravatá.

Antônio – Louro, consta que todos os anos vocês se organizavam e faziam viagem

para uma grande caçada. Conte aí como eram essas caçadas...

Louro – Todo ano a gente fazia uma caçada, e era em Ourimamã, no alto sertão de Per-

nambuco, na região do submédio São Francisco. Era na fazenda de um senhor que se

chamava Seu Luís, porém não sei o sobrenome do homem.

Ricardo – E tinha uma data certa para essas caçadas?

Louro - Era no mês de setembro. Porque lá, na região, em setembro, o tempo é mais

quente do que na nossa região do Moxotó. E para a gente que caçava veado, cotia e e-

ma, era mais fácil, porque com o calor do sol o bicho vai procurar uma sombra, um

“malhador”, para se proteger do sol inclemente do verão sertanejo. De modo que sem-

pre era no mês de setembro; no começo, na segunda e, às vezes, até na terceira semana.

Dependia lá do homem também. A gente caçava de cachorro. E, nessa mesma época, eu

achava que era gente e caçava de dia e de noite. Manoel caçava menos, mas ele gostava

de caçar mais durante o dia que à noite. Seu Zé Jorge só caçava durante o dia; já meu

pai caçava de noite. E assim a gente organizava a caçada, né?

Antônio – Quem é que organizava e ficava à frente dessas caçadas?

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Louro – Quem organizava isso era o meu irmão mais velho, Zuza (mostra uma foto

com todos os caçadores e aponta o seu irmão). Nesta foto, vocês também podem ver

esse velho que era chofer do velho Chevrolet 1946. Então, Zuza e Seu João, que era o

dono do carro e morava em Pesqueira, é quem organizavam a caçada. Nós fomos umas

duas ou três vezes nesse mesmo carro. Esse velho que está aqui na foto com uma mala

na cabeça é o único do grupo que não é caçador. Nesse dia, ele tinha pedido uma carona

a Seu Júlio, de Pesqueira para Serra Talhada. Na hora da foto, eu lembro que ele disse

que não era ajudante do carro, mas ia sair na foto para ficar como lembrança. Resumin-

do, Seu Júlio trocava as ideias com Zuza, depois ia lá para o São Francisco e, lá, se en-

tendia com papai. Logo, logo, papai corria pra casa de Zé Jorge ou o mandava chamar,

faziam os acertos e davam como certa a caçada daquele ano. Zuza vinha pra São Bento

do Una e, lá, comunicava e se acertava com alguns outros caçadores interessados. De-

pois do acerto, fazia-se o planejamento da caçada com o custo dos mantimentos e da

gasolina, ida e vinda. As despesas do caminhão, meu pai é quem assumia. Na véspera

de voltar, juntava todo mundo debaixo do pé de umbu, onde a gente se arranchava. So-

mavam-se todas as despesas e dividia-se pelo número de caçadores. No caso da gasoli-

na, a mesma quantidade que se consumiu na ida colocava-se na volta. As comidas fica-

vam dentro de uns caixões. O que sobrasse, cada um podia levar quanto quisesse. Meu

pai sempre levava uma pessoa que ficava encarregada de cozinhar a comida do grupo.

Antônio – Uma vez chegando ao local da caçada, como é que vocês se organizavam

e qual era a rotina?

Louro – Nós, chegando ao local, antes de tirar os troços de cima do caminhão, nos a-

presentávamos ao dono da fazenda, esse tal de Seu Luís, cuja casa ficava a uns cem me-

tros do nosso caminho. Meu pai nunca passou por lá sem primeiro se apresentar ao dono

da fazenda. Em uma dessas caçadas, passamos por lá, e Seu Luís tinha ido para Petroli-

na. Meu pai avisou a esposa dele, Dona Mariquinha. No dia seguinte, quando menos

esperávamos, Seu Luís foi nos encontrar lá no rancho, debaixo do pé de Umbu. Lá che-

gando, ele dava boa tarde a papai e Seu Zé Jorge. Papai, então, de lá, gritava ou pra

mim, ou pra Lula, pedindo que levássemos um café para os três. Numa dessas visitas de

Seu Luís regadas a café, conversando entre os três, meu pai perguntou-lhe se por acaso

havia chegado ao curral dele alguma rês com ferimento provocado por cachorros. Seu

Luís respondeu que não viu nem sabia disso. Meu pai, então, o informou que um dos

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seus cachorros tinha acuado um bezerro novo e que a vaca veio se defender do cachorro,

provocando uma correria do gado em direção ao curral da fazenda. Seu Luís confirmou

que não viu nenhuma rês ou bezerro ferido por cachorro. Nessa hora meu pai comunica

a Seu Luiz que já havia matado o tal cachorro, porque ele e os demais não tinham vindo

ali para dar prejuízo ao amigo, e sim se divertirem. Seu Luiz agradeceu e disse que a

fazenda dele estava à disposição nossa e, quando tivermos pegado o último tatu da fa-

zenda, ele nos levará à fazenda vizinha de um amigo dele, cheia de tatus. Isso foi uma

conversa entre meu pai, Zé Jorge e o proprietário. Voltando ao ponto da conversa no

tocante ao cachorro, saímos numa noite para caçar, eu, Manoel e papai. Nós estávamos

no pé de umbu e saímos em direção ao mato. Lá, na frente, mais perto da lagoa, papai

parou e, nessa hora, vimos que o gado estava um pouco mais adiante. Foi aí que o ca-

chorro correu, conforme já lhe contei. Eram quatro cachorros e o que puxava na frente

os demais era o cachorro maior. Papai se aperreou e deixou os cachorros voltarem.

Quando esse cachorro grande chegou, papai disse a mim: “Arreda um pouco daqui de

junto de mim”. Nessa hora, ele deu um tiro e matou o cachorro. Mandou que eu o jogas-

se numas touceiras de macambira ali perto. Isso foi presenciado por mim e Manoel Jor-

ge. Papai, então, ordenou que não falássemos nada daquilo na barraca enquanto ele não

conversasse com Seu Luís. Bem entendido, nossa barraca era o umbuzeiro. Tá bem. Só

tinha eu e o Manoel para descobrir o segredo, porque ele mesmo não contaria a nin-

guém. E nós ficamos todos de bico calado. Foi, então, que naquela hora do café, na bar-

raca, ele perguntou a Seu Luís se algum cachorro tinha maltratado as vacas dele. Quan-

do nós jogamos o cachorro na macambira após papai ter atirado nele, Manoel disse as-

sim a mim: “Sabe quem vai descobrir isso aqui? É pai, quando ele vier amanhã cedinho

pra caçada dele...” E Manoel repetiu: “Se ele vier para o lado de cá, vai descobrir...” É

que, às vezes, a gente ia em direção ao sul, outras para o nascente, etc. Não deu outra.

Logo cedinho, Zé Jorge tomou o café dele, pegou a espingarda calibre vinte e se man-

dou. Nesse momento, Manoel piscou o olho para mim, vendo que ele ia em direção ao

banco de macambira. Lá pelas onze horas, onze e meia ou meio dia, chegava Zé Jorge;

vinha vermelho de sol voltando da caçada. Um sol quente que encandeava aquela areia

branca! Ele chegou e tirou logo a camisa. Olha, ver Zé Jorge tirar a camisa na vista do

povo era algo muito difícil. Ele tirou a camisa, se abanou, e eu então perguntei: “Ô Seu

Zé, quer comer um feijãozinho?” Ele respondeu que não queria e preferia tomar um

cafezinho. Servi o café, ele tomou, acendeu o cigarro... E estava louco para saber se ele

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tinha ido em direção ao Serrote Redondo... Mas, calei (rindo). Aí, então, ele disse as-

sim: “Ô, meninos, tem um cachorro morto lá dentro da macambira; por acaso é de al-

gum de vocês?” (rindo muito). Eu olhei para Manoel, baixei a cabeça... Meu pai, Ca-

boclo Lulu, não ouviu isso porque ele estava lá no outro pé de umbu. Nós ficamos ali

sem ter o que responder e dissemos logo que não era nosso. Quando papai encontrou

Seu Luís e falou a ele tudo sobre o cachorro, ele queria ter certeza de que o cachorro

tinha ou não estragado o gado do homem. Mas não aconteceu isso.

Antônio – Louro, durante as caçadas como é que vocês se orientavam naqueles

ermos do sertão? Alguns de vocês nunca se perderam na imensidão daquelas ter-

ras despovoadas?

Louro – Não, não havia isso não. Manoel andava muito, a verdade seja dita. Antônio,

no meu pouco entendimento, ele não precisava andar aquilo tudo. Bastaria ficar um

pouco mais perto, e ele ou qualquer outro do grupo conseguiria caçar veado sem preci-

sar andar aquilo tudo que ele andava. Um dia, ele deu uma desgarrada e, pelo que Seu

Luis contou como proprietário, ele andou mais ou menos umas três léguas, o que equi-

vale a uns dezoito quilômetros do nosso rancho. Antônio, ele saiu de manhã, logo de-

pois de tomar café, e já pelas três horas da tarde Manoel não aparecia de volta da caça-

da. A essas alturas, a gente já estava muito preocupado com o que tinha acontecido com

Manoel. Lá pelas tantas, vimos um vulto que se aproximava e, felizmente, era Manoel

que chegava em paz, graças a Deus. Como se deu isso? Aconteceu de Seu Luís estar

conosco no momento em que ele chegou. Manoel, então, contou que andou até umas

alturas em que ouviu um motor desfibrando caroá. Seu Luís perguntou se Manoel tinha

chegado até o local do motor do caroá. Manoel respondeu que não foi até o local, mas

chegou muito perto. Pela zoada do motor, ele concluiu que o rancho era na direção con-

trária. Foi, então, que ele conseguiu encontrar o caminho da volta. Depois de muito an-

dar, avistou, de longe, a Serra Grande, que ficava ao sul de nosso rancho. Duas serras se

encontravam e, nesse encontro, formavam um boqueirão. Esse boqueirão era o nosso

ponto de orientação. A gente podia andar por onde quisesse; avistando o boqueirão, a

gente sabia onde estava. Por esse motivo, ninguém se perdia por lá, e quem chegou mais

perto de se perder foi Manoel, devido ao motivo que eu lhe expliquei.

Antônio – Louro, vamos falar dos bichos que vocês caçavam por lá nessa época.

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Louro – A gente caçava veado, ema, cutia, gato, tatu, porco-do-mato... Seu pai matou,

numa caçada só, um porco-do-mato e uma cutia. A essa caçada eu não compareci; quem

acompanhou foi aquele meu cunhado, irmão de Nena. Contou ele que Zé Jorge chegou

com a caça nas costas e o ombro dele já estava em carne viva. Acontece o seguinte.

Quando se mata um animal como porco, veado, seja lá o que for, o caçador tem que

prender o animal apenas pelas mãos e amarrá-las de corda de tal maneira que possa

suspendê-lo nas costas, deixando livre os dois braços para qualquer defesa. Distribuir,

portanto, o peso por igual. O que fez Seu Zé Jorge? Amarrou os pés do porco e juntou

com as mãos, fazendo aquela bola, e enfiou um pau na corda dependurando no ombro

dele. Deu no que deu.

Ricardo – Louro, tinha onças lá pelo sertão daquele tempo?

Louro – Ricardo, em nossas caçadas nem a gente viu e nunca o proprietário falou em

onça por lá. Aconteceu uma cena que, até hoje, eu, que estou vivo, nunca vi nada igual.

Manoel, parece que dessa vez não estava por lá (traz uma foto das caçadas). Esse ca-

chorro daqui (mostra o retrato) pertencia a meu pai, juntamente com esse outro preti-

nho. Na noite desse acontecido, eu estava com papai. Foge-me da memória o nome do

outro colega que estava com a gente. Não era Manoel, era outro. Nós estávamos cami-

nhando em direção ao Boqueirão das Serras, na direção sul. Aproximadamente a uns

quinhentos metros do nosso rancho, tinha um riacho. Nós íamos cruzar o riacho. Quan-

do chegamos à margem do riacho, o cachorro passou por nós e atravessou o rio. Ao al-

cançar a outra margem, ele dá um ganido, só um ganido rápido. Pronto, foi a última vez

que nós vimos e ouvimos esse cachorro, até a data de hoje. Se fosse no Mato Grosso, a

gente ia dizer que foi uma cobra sucuri. Mas era no sertão. Depois, a gente contou a Seu

Luis essa história, e ele nos tranqüilizou dizendo que o pessoal dali da região mora lon-

ge uns dos outros, mas trazem sempre as informações para repassar nos dias de feira. E,

caso houvesse qualquer sinal do cachorro, a notícia lhes seria repassada. E assegurou

que, da parte do pessoal que ele conhecia por ali, estivesse o cachorro onde estivesse,

ele garantia a volta dele para as nossas mãos. Até a data de hoje, nunca apareceu um

caçador que desse notícia do cachorro, e perdemos por completo o paradeiro dele. Lá

tinha gato-do-mato, mas não se pode confundir o gato-do-mato com uma onça. Nunca

ouvi falar de onça por lá.

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Antônio – Louro, o que vocês faziam da carne dos animais nessas caçadas? Vocês

salgavam e comiam lá? Ou traziam pra casa?

Louro – A gente tratava a carne, salgava, comia assada, guisada; comia de todo jeito.

Lembro que eram dez ou doze homens almoçando e jantando; portanto, comia-se à von-

tade; o que sobrava trazia-se pra casa... Algumas vezes, a carne chegava estragada. Ma-

noel, seu irmão, numa dessas caçadas, no dia de viajar de volta, com todas as coisas já

em cima do caminhão, era o único que não aparecia. Todo mundo de roupa trocada e lá

vai passando o tempo... Nada de Manoel chegar. Daqui a pouco lá vem chegando Ma-

noel com uma ema nas costas. “Mas Manoel?!”, dissemos. Fazer o quê? Uma carne

ruim como é a da ema! O que tem ela de grande, tem de ruim. Eu sei que Manoel pediu

que fôssemos tirando o couro da ema enquanto ele passava água nos braços e sugeriu

que se colocasse a carne da ema dentro de uma lata,. Como a lata era aberta, ele acredi-

tava que a carne continuaria arejada até a chegada na casa dele. Ah! Que ilusão! Assim

fizeram. Manoel trocou de roupa, botaram a carne dentro da lata e pé na estrada. Quan-

do chegou à Santa Luzia, em Sertânia, logo que parou o carro, era um cheiro de carniça

de juntar urubu. Perdeu-se a ema com lata e tudo; até a lata teve que ser jogada no mato.

A ema era uma carne perdida. Eles lá, Manoel com os outros meninos, mataram várias

emas; mas eu, não. Matei veado, atirei em gato, mas ele foi embora; estava numa dis-

tância razoável.

Ricardo – Você voltou mais recentemente a esses lugares onde fizeram essas caça-

das?

Louro – Voltei, sim, uns seis anos depois, e isso hoje deve fazer uns vinte ou vinte e um

anos que eu lá estive. Quando eu estive lá, o antigo proprietário e nosso amigo, Seu Lu-

ís, não era mais vivo. Estava como dono um sobrinho dele. Quando chegamos lá, fala-

mos com ele, e ele se negou a permitir que nós passássemos para o nosso rancho no pé

de umbu, onde estávamos acostumados ir todo ano, entendeu? Nesse momento, eu tirei

uma foto do bolso e apresentei a ele. Nela, aparecia papai, Seu Luís e Dr. Valdemar

Lins, que, nessa época, era um alto escalão do governo aqui no Recife. Era secretário

não sei de que... Tinha uma função pública aqui no Recife. Ele, então, permitiu que a

gente fosse para o pé de umbu. Mas a fazenda estava em quarenta por cento do que foi

naquela época passada. O pessoal já transitava de bicicleta por dentro daquelas matas.

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Antônio – Tem uma história de rabos de tatus... Que história é essa?

Louro – Tem umas histórias de rabo de tatu, porque quem fala muito como eu é menti-

roso. (Rindo muito) Esse Zuza aqui (mostrando a foto) é o Zuza Caboclo, cujo nome

era José; mas era conhecido apenas como Zuza. Ele era louco para prender uns pebas e

trazer pra casa no intuito de criá-los. Acontece que ele era preguiçoso por demais. Zé

Jorge sai um dia de manhã para caçar e volta de tarde morrendo de fome (rindo). Vinha

com as bochechas vermelhas, em tempo de estourar o rosto. Aquela pele branca, fina,

naquele sol quente... Tomou um gole de água, depois café. Aí o Zuza perguntou a ele

como tinha sido a caçada. Ele disse que “tinha visto alguns pebas por ali”. Foi nessa

hora que Zuza disse que estava louco para pegar uns dois pebas a fim de levar pra casa

para criar. Zé Jorge disse que isso era bem possível porque tinha um bom número deles

ali. Zuza ficou admirado, porque ele mesmo já tinha dado tantas voltas e não havia con-

seguido nada de peba. Zé Jorge disse-lhe, então, que tinha visto no mínimo uns oito

pebas na caçada daquele dia. Zuza admirou e disse que não acreditava naquilo que ele

estava lhe dizendo. Zé Jorge virou-se de lado, pegou o bisaco dele e foi tirando a ponti-

nha da cauda que cortou de cada um dos pebas e foi contando: um, dois, três, quatro,

cinco, seis, sete e oito. E mostrou a Zuza, dizendo: “Quando um homem que é homem

lhe contar uma história, é verdade”. Zuza teve tanta vergonha que saiu de perto dele e

foi embora. Mas não foi bem feito? Ele podia ter ouvido a história e ficar calado ou a-

penas se informar onde é que poderia pegar um ou outro peba... Mas, não! O que o seu e

meu pai gostavam era de contar uma história e você ir atrás e poder comprovar que a-

quilo foi verdade mesmo. Aqui mesmo, em Gravatá, contei uma história a um rapaz, e

ele não acreditou. Eu mandei vir de Serra Talhada um livro no qual você mesmo part i-

cipa como colaborador quando foi entrevistar um pesquisador de lá. Pois bem, a exata

história que eu contei a ele eu mostrei no livro, inclusive indiquei a página onde consta-

va o que eu tinha dito a ele. E o mandei ler. Seu pai e o meu tinham vergonha de contar

uma história para a gente ir atrás e não confirmar.

Antônio – Louro, pediria para você falar do seu pai: a imagem que tem dele, as

lembranças mais fortes...

Louro – Um homem rude, honesto, trabalhador, homem de palavra e um bom pai. For-

mou duas famílias e terminou já na terceira, onde não teve filhos. Dessa terceira, criou

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um filho adotivo (mostrando a sua perna). Ele morreu recostado nesta perna aqui, eu

que sou da segunda família. Da primeira família, teve cinco filhos, entre eles esse Zuza

da caçada, do qual já falamos. Enquanto precisaram dele, lhes foi dado alimento até os

vinte anos de idade. Em casa, convivendo com ele, nunca o vi bater em nenhum filho,

nunca o vi maltratar minha mãe. Essa é a imagem que tenho e que guardo de meu pai.

Antônio – Vocês eram originariamente da região do Agreste pernambucano, não?

Louro – Eu nasci no município de Pesqueira. Papai morou trinta anos em terra dos ou-

tros. É o caso da propriedade em Pesqueira, Fazenda Cachoeira, cujo proprietário cha-

mava-se Elias Cordeiro. Essa propriedade ficava localizada entre os municípios de São

Bento do Una e Pesqueira, mas pendendo mais para o lado de Pesqueira. Foi aí nesse

torrão que eu nasci, já na segunda família. A primeira família também foi no município

de Pesqueira. Muitas pessoas entendidas em leis e familiarizadas com os cartórios da-

quela época aconselhavam meu pai a não sair mais de Cachoeira, tendo em vista que ele

morava aí por mais de trinta anos. Diziam que a Cachoeira era dele, porque ele tinha

mais de trinta anos de serviços ali dentro. Mas ele sempre respondia que a Cachoeira

pertencia à família de Elísio Cordeiro. Meu avô, pai de meu pai, tinha um terreninho ali,

entre Sanharó e Pesqueira, por nome de Sítio Nazara. Com a morte de meu avô, meu pai

herdou aquele sítio. Meu pai vendeu Nazara a Zuza. Zuza, então, falou com o sogro dele

no sentido de levantar o dinheiro que seria pago a meu pai. Meu pai, então, compra o

Sítio Primavera, já no município de São Bento do Uma. No ano de 1952, nós mudamos

para o Sítio Primavera e, em 1958, mudamos para Sertânia, Fazenda São Francisco. Eu

casei em março de 1957 e, em janeiro de 1958, a gente mudou para Sertânia. A aquisi-

ção dessa fazenda, em Sertânia, foi toda intermediada por Felino Cavalcante, pai de

Rosalmo, de Robério e de Rejane, sua cunhada. Foi ele quem fez tudo. Foi ele quem

levou papai para conhecer a São Francisco e conversar com o proprietário dela. O nome

dele era Feliciano Morais, que já havia sido prefeito da cidade. Por meio dessas inter-

mediações, papai veio, gostou do lugar e fechou negócio, de boca, como se dizia. De-

pois da conversa, meu pai perguntou se o negócio estava fechado e se poderia desfazer-

se das coisas que ele tinha em São Bento. Seu Morais, então, disse que o negócio estava

fechado e que ele podia vender o que possuía. E assim foi. Vendeu o Sítio Primavera ao

vizinho dele, Joaquim Gabriel, e nós viemos para o sertão. Foi um tempo bom esse que

vivemos em Sertânia. Na chegada, eu achei muito ruim. Nós chegamos em janeiro de

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1958, que foi um ano de seca na região e, em 1959, houve umas chuvinhas muito pou-

cas. Tanto que, naquele sufoco inicial, eu ameacei voltar para São Bento. Falei com meu

pai, e ele me perguntou o que eu iria fazer por lá. Eu respondi que ia viver em qualquer

pedaço de terra dos outros. Meu pai aconselhou que eu esfriasse a cabeça e botasse um

roçado maior do que eu havia feito naquele ano de 1959. Dizia ele que nem todos os

anos ali seriam de seca. Em alguns anos, a chuva chegava. Eu botei o roçado para o ano

de 1960 e, daí até o ano de 1970, quando o bicudo infestou os algodoais do sertão, pos-

so dizer que foi um tempo bom. A fonte do sertão foi o algodão, enquanto não deu o

bicudo, que veio da Paraíba para lá. Naqueles tempos, em Sertânia, tinha três indústrias

ligadas ao algodão. Quando chegava o mês de maio, os corretores estavam batendo nas

portas, distribuindo dinheiro. Ali ganhavam dinheiro o apanhador de algodão, o cami-

nhão que transportava o algodão, o dono do hotel que hospedava os produtores e os

vendedores... Hoje, não tem mais nada. Das três indústrias que havia, resta apenas o

lugar onde cada uma delas existia.

Antônio – Fale dos seus irmãos, especialmente da segunda família.

Louro – A irmã mais velha tinha o nome de Lídia, e você não a conheceu. A segunda

era Alaíde, que era esposa de Abdoral, que morou aqui em São Bento do Uma. Eu, Lí-

dio, fui o terceiro filho. O nome de Louro foi por causa do f.d.p. de um gangarra que a

mamãe criava lá em casa (rindo). Ela me botava num braço e, no outro, o louro; e fica-

va dizendo: “Olha os dois lourinhos da mamãe!” Pronto, aí ficou esse nome de Louro

(rindo muito). Ah, Antônio, tu mexeste lá longe, e agora eu me perdi todinho... Ah,

sim, os nomes dos irmãos. Lídia, Alaíde, eu e Iva. Depois, vieram Inaldo, Rubem, Gil-

berto (Mano), Suely e Selma. Éramos sete mulheres e quatro homens. Exatamente o

inverso da sua família, que tinha onze filhos, sendo sete homens e quatro mulheres. Na

nossa família, duas dessas mulheres já morreram.

Antônio – Como é que se deu a aproximação da família de Caboclo Lulu com a de

Jorge Siqueira?

Louro – A aproximação maior se deu quando papai procurou Seu Zé Jorge para com-

prar palma a ele para o gado. Você lembra que seu pai tinha aqueles roçados lá pro lado

do Riacho Queimado, nos quais ninguém conseguia ver uma rês dentro dele; fosse

mesmo dez, cinquenta ou fosse o que fosse... Num desses anos, botou tanta fruta de

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palma, que o mundo ficou amarelo. Então foi através dessa compra da palma que nós

nos conhecemos e nos aproximamos. Quando meu pai falou a Seu Zé Jorge a compra da

palma seu pai respondeu que não tinha palma para vender. Que ele, meu pai, trouxesse o

gado dele e soltasse no roçado. Meu pai agradeceu, mas não aceitou a oferta do seu pai.

Terminaram conversando e, arreda e vai, chegaram a um acordo. Nessa ocasião, eu su-

geri a meu pai que cada um de nós – eu, ele, Inaldo e Lula, que era o marido de minha

irmã Lídia, sendo nós primos, porque eu casei com Nena, que é irmã do Lula, tá enten-

dendo? – cada um de nós daria a Seu Zé Jorge uma garrota, uma novilhota para ele fazer

semente de gado pra ele. Porque já estava claro que ele não queria receber o dinheiro da

palma. Meu pai concordou e disse que iria falar com ele para ver se ele aceitaria essa

proposta. Falou com ele, e ele disse que trouxesse o gado. Meu pai disse que traria o

gado nessa condição de lhe dar as quatro garrotas. E, de fato, deu as quatro novilhas pra

ele. A que pertencia a meu pai - para ser bem sincero - era a maior delas. A minha, de

Inaldo e a de Lula eram medianas. Mas foram as quatro que a gente prometeu. Daí co-

meçou a aproximação da gente pra lá, pra cá... Anísio nos ajudou muito. Chegou mesmo

a limpar a nossa casa velha e brincava sempre com papai. E assim se fortaleceu a nossa

amizade, que dura até hoje, graças a Deus.

Ricardo – Voltando ao assunto da caça, você não falou no nome do tio Anísio. E

olha que ele era o grande caçador da família...

Louro – Olha, Ricardo, Anísio nunca foi com a gente para as caçadas de Ourimamã.

Acredita nisso? Claro, nesses anos ele esteve grande parte do tempo em São Paulo. A-

gora, de Anísio, eu posso falar uma coisa de caçada que lembro bem. Aconteceu ali nas

serras de Izauro Torres, que você deve lembrar. Ele chegou pra mim – ele me chamava

de Nego! – e me convidou para matar uns mocós. Eu disse: vamos! Combinamos de ir

lá pra minha casa a fim de sairmos bem cedinho para a caça. Ele chegou e fomos dor-

mir. Mais tarde, ele começou dizendo: “Ô veia!” Eu disse: “A ‘veia’ daqui só tem a mi-

nha!” (rindo). É que ele chamava Enedina, mulher dele, de “Veia”. Ele, então, pediu

mil desculpas, na maior brincadeira, imagina (rindo). Então, partimos nós pra uma des-

sas caçadas em Izauro Torres. Saímos os dois de jumento. O dele era um jumento que

vocês chamavam de “Muafo”; lembra de Muafo? O meu era “Carretel”, um jumentinho

pequeno. Cada um no seu jumento. Saímos ali pelos Damião, pelos Pocinhos e subimos

a serra. Quando se descambava no outro lado da serra dos Torres, primeiro encontrava-

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se uns tanques, que chamavam de Tanques da Mariquinha, e, depois, se via um olho

d’água que tinha lá embaixo. Numa dessas caçadas com Anísio, foi aí que ficamos. O

caminho na serra era muito difícil. A gente tinha que descer do jumento e tangê-los pela

trilha, que era muito íngreme. Chegou a noite, e fomos caçar tatu. Saímos, demos uma

volta, e logo o cachorro acuou um [inaudível] numa raiz de barriguda; pegamos a caça

e viemos embora. Na chegada, ficamos nos perguntando onde íamos esconder a caça.

Eu sugeri que a deixássemos dependurada dentro do aió. Terminamos cavando um bu-

raco e a deixamos enterrada com o aió e tudo. Quando chegamos de manhã, encontra-

mos apenas o aió com um rombo deste tamanho (rindo). “Mas nego, o que foi isso?!”

Logo depois disso ele me falou que ia sair pra matar uns mocós, mas que eu devia ficar

ali naquele lugar, sem sair pra muito longe, porque enquanto ele conhecia ali pedra por

pedra, eu não conhecia nada. Pediu para ter cuidado com os bicos de pedras que eram

perigosos e poderiam nos ferir. Eu fiquei ali sozinho, num esquisito que só vendo. Pra

todo lugar que eu olhava e botava o pé, estava vendo uma cascavel. Isso só na imagina-

ção, porque não havia nada disso. Ele saiu para a caçada de mocó. Deu nove horas, dez,

onze, meio-dia, uma hora da tarde, e eu pensando comigo: “Minha nossa senhora, onde

é que está o Anísio?” Como é que eu saberia para onde ele foi? Como poderia rastejar

num lugar que só tinha pedra? Na terra, todo mundo rasteja, mas lá só tinha mesmo pe-

dras e serrotes. Eu já estava me desesperando. Porque, de qualquer maneira, estando

sós, nós dois, eu teria de dar notícia de Anísio. Foi quando, com a ajuda de Deus, eu me

abaixei e pude perceber que era ele que se aproximava. Chegou com um bisaco de mocó

deste tamanho... Eu disse: “Mas Anísio!...” Ele perguntou se tinha café. Eu disse que

sim. Danei lenha no fogo e quando estava aquela labareda terminei o café e acabamos

de almoçar. Ele pegou o saco de mocó, tirou todos e passou cada um no borralho. A

gente, primeiro molha e depois passa o bicho naquela cinza quente... Enquanto eu trata-

va um, ele tratava quatro, cinco... Logo tratamos todos eles, dependuramos no sal e no

outro dia viemos embora. Caçar com Anísio foi muito pouco e, quando acontecia, a

gente ia lá para os Torres. Aquelas caçadas de Urimamã ele não foi a nenhuma delas.

Fiz outra caçada com Anísio – quando encontrar com ele, certamente ele lembrará pra

você – na Fazenda Jerimataia, entre os municípios de Sertânia e Custódia, propriedade

de Tércio Rafael. Aconteceu algo ali que até hoje não sei o porquê nem como foi; não vi

nada e vi tudo ao mesmo tempo. Fui caçar tatu com o Anísio. Lá pela madrugada, a gen-

te vinha voltando em direção à casa que o velho nos cedeu para nos arranchar. Eu na

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frente e, atrás de mim, vinha o Anísio. Nesse instante, desceu uma tocha clara diante de

mim. Uma luz avermelhada que desceu de uma vez e eu parei espantado, ali, parado.

Quando eu levanto os olhos e olho, não vejo mais nada. A gente caçava à noite com luz

de um candeeiro aceso, e não com lanternas, como hoje. Nesse instante, a luz do cande-

eiro ficou amarela como gema de ovo. Depois de caminhar uns cinquenta ou sessenta

metros, nós paramos e eu disse: “Mas Nêgo, o que foi aquilo?” Nem eu nem ele sabía-

mos. Não senti calor, não senti frio, não senti nada. Apenas aquela luz que desceu ali,

naquele momento exato. Não tinha trovão, não tinha relâmpago, não tinha nada. Até

hoje, não sei explicar o que foi aquilo. Nem mesmo chegou a apagar a luz do candeeiro,

nada. Em outra caçada de Urimamã, não sei se foi nessa ou em outra, seu pai estava

com a gente; quer dizer, comigo e com Lula. Ao passar pela casa de Seu Luís, ele nos

entregou a chave de uma casa velha, insistindo que fossemos para lá porque, segundo

ele, o tempo estava de chuvas. E uma noite de trovoadas naquele sertão poderia nos

colocar em risco. E, de fato, fomos para a dita casa. Era um casarão meio abandonado,

mas as telhas ofereciam proteção da chuva. De noite, saímos para caçar, nós três. Seu

José dificilmente saía à noite para caçar. Saindo da casa, logo adiante a gente pegava o

caminho do serrote. Lá vai, lá vai, quando a gente chegou ao topo, passamos por baixo

de um pé de umbu. O cachorro, nesse momento, acuou um peba no sentido do nosso

lado direito. Nós puxamos pra lá. Ao chegar junto do cachorro, pudemos ver o relâmpa-

go que estava “cortando” no lado do nascente. Nós começamos a cavar o buraco, o tem-

po passando, o buraco afundando e o relâmpago vindo em nossa direção. A gente já

ouvia o ronco do trovão. E o peba se enfiando no buraco. Lula insistia para a gente não

desanimar, a despeito de todos os demais quererem voltar. “Nós vamos tirar essa gota

daqui”, dizia ele. E, de fato, conseguimos tirar o peba. Nessa hora, os pingos grossos da

chuva já nos molhavam. A gente tinha subido pela direita do serrote. Quando Lula tirou

o peba, ele e Seu Zé Jorge queriam voltar pela esquerda. E quem convencia essas duas

criaturas do equívoco deles? Teimosos! Uns diziam “é pra cá”, outros “é pra lá”... Eu

disse: “Seu José, o senhor está aí com seu relógio”? Ele disse “Sim, estou”. Eu propus a

ele um acordo segundo o qual ele me acompanharia durante dez minutos, findo os

quais, deveríamos chegar ao pé de umbu. Caso não alcançássemos o pé de umbu nesse

período de tempo, eu então acompanharia ele a noite inteira, aonde quer que ele fosse...

Ele olhou para Lula e concordou, convidando-o para me seguir. Antes dos dez minutos

de caminhada, nós chegamos ao pé de umbu. Eu disse, “Seu Zé, esse é o pé de umbu,

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esse é o caminho!” Ele disse “Tá certo, você tem razão”. Nessa altura do campeonato,

nossas camisas já estavam ensopadas e coladas no corpo, e lá vamos nós descendo para

a casa. A chuva arrochou. Eu voltava na frente, Seu José no meio e Lula atrás, num ca-

minho só. De repente, deu um relâmpago, seguido de um trovão, na minha frente. Eu

estava com um enxadeco debaixo do braço, e quando deu aquele relâmpago eu fui joga-

do para a frente e caí com o rosto na lama da chuva. Eles me levantaram, me balança-

ram e foram me chamando. Eu comecei a ouvi-los como se estivessem falando lá da

Prefeitura. Pegamos o enxadeco e jogamos no mato; no outro dia, fomos atrás dele. E

foi um susto horroroso.

Antônio – Voltando um pouco atrás na entrevista, assim como você respondeu qual

a imagem que guardava de seu pai, gostaria que dissesse qual a imagem que guar-

da do meu pai, Zé Jorge.

Louro – Ah! Muito boa pessoa. Honesto, sincero, trabalhador, homem de respeito e

bom colega de caçada. Um bom colega de viagem, um cidadão de bem... Jogamos mui-

tas cartas, muita sueca. Agora, ele era como meu pai em busca do caminho certo; pau é

pau, pedra é pedra e acabou-se. Foi um grande amigo de meu pai. De tal maneira que,

quando do falecimento de Zé Jorge, foi muito difícil convencer meu pai do acontecido.

Foi difícil, estou lhe dizendo. Nesse tempo, meu pai já estava paralítico, em cima de

uma cama. A toda hora perguntava por Zé Jorge, por que ele não aparecia para lhe fazer

uma visita... Olha que tristeza. Eu não podia dizer nada. Tinha que alinhavar umas his-

tórias de que ele tinha viajado etc. Acredito que meu pai tenha vivido uns quatro anos

após o falecimento de Zé Jorge. Não é data firme, não; é aproximado.

Ricardo – Seu pai morreu lúcido?

Louro – Morreu. Não tão lúcido quanto se possa dizer; também nem tão “desorientado”

como se pode falar. Ele me pedia para levá-lo para o curral. Nós, então, o carregávamos

na preguiçosa e colocávamos na sombra. Daqui a pouco, ele pedia para voltar para casa

e a gente fazia o caminho de volta, trazendo-o para o quarto dele. Durante esses quatro

anos em que ele ficou paralítico, houve apenas um dia no qual ele insistiu comigo que o

gado havia ido embora. E ele alegava isso, afirmando que tinha ouvido o chocalho do

gado. Eu fiz ver a ele que aquilo não havia acontecido e que o gado se encontrava todo

no curral. Ele não acreditava no que eu dizia. Foi só nessa ocasião. Durante esse tempo

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da paralisia dele, eu largava meus dois filhos com Nena e ia dormir com ele, lá na casa

dele. A minha mãe, com aquele corpão que só podia com ela mesma, nada podia fazer.

Durante esses quatro anos, meu pai só me impediu de dormir uma única noite. Nessa

noite, ele me pedia para virá-lo de lado, e eu, após atendê-lo, sentava na minha cama,

em frente à dele. Aí ele pedia: “Louro, me vire aqui”. Eu virava, desvirava, virava, des-

virava... Assim passei a noite toda. Essa foi uma única noite em que não dormi. No

mais, dormia a noite toda. Algumas vezes, dava banho, limpando-o. Mas nada mais que

uma ou outra vez.

Ricardo – Louro, qual a lembrança que você tem de vó Verônica?

Louro – Ave Maria! Era mesmo que mãe para a gente. Ela tinha uma consideração à

gente que era demais. E nós a ela. Ela brincava muito com João Mateus (mostra a figu-

ra dele no retrato da caçada). Sabe o que ela pediu a ele, certa vez? Que ele adquirisse

uma peça de corda fina e, quando eles chegassem ao rancho do umbuzeiro, ele amarras-

se com essa corda meu pai e Zé Jorge, pelo mocotó. E o curioso é que ele realmente

levou a corda e amarrou os dois. (Risos) Bem entendido, de brincadeira e no bom senti-

do. Pediu licença a um e outro e os amarrou pelo mocotó. A minha admiração por Dona

Verônica é muito forte. Ave Maria!

Ricardo – E Manoel Jorge?

Louro – Era boa pessoa, também. Manoel Jorge era doido varrido, mas era gente muito

cara. O mesmo digo de Severino e Anísio. Manoel passava lá várias vezes, vindo do

mato, e tal e coisa. Era gaiato demais e gente muito fina. Gostava de dançar forró e era

meu parceiro de sueca.

Antonio – A diversão de vocês naqueles sítios era só jogar sueca?

Louro – A principal diversão era jogar sueca. E tanto a gente gostava que, quando Aní-

sio fez uma operação de hemorróida, eu tive que paralisar um pé por conta de uma es-

trepada. E o pior era sair pra Santa Luzia, de noite, em pleno escuro, pisando com um pé

e aliviando o outro: “Vinte e nove, trinta! Vinte e nove, trinta! (risos). Uma vez, nessas

idas, eu vi um lobisomem na estrada, maior do que essa casa. Vocês sabem o que era?

Eu vi aquilo e disse comigo: correr eu não posso. Estava estropiado do pé. Se ficar, o

bicho me pega. O que é que eu faço? Aí tive a ideia de me abaixar e olhar por baixo o

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que diabo era aquilo. Era uma jumenta comendo capim na escuridão da noite, na beira

da estrada (risos). Antônio, eu tenho saudades daqueles tempos. Tem que ter. Há mo-

mentos que a gente não pode esquecer, ao contrário de outros, que a gente dá graças a

Deus para não lembrar. São os momentos mais difíceis que a gente atravessa na vida.

Mas outros, não. A gente tem que lembrar. E relembrar é viver.

Antônio – Você conheceu o padrinho meu, Zé Antônio?

Louro – Demais. Dei tantas carreiras atrás de bode do Zé Antônio naquelas serras, que

só vendo. Eram boas pessoas; vieram do agreste pernambucano, de Lajedo. Lembro

bem de Dona Ester...

Antônio – Louro, como é que você veio parar aqui em Gravatá? Atrás de peba e de

tatu, não foi!...

Louro – Foi atrás da minha boia e da dos meus filhos. Antônio, você morar num setor –

e não vou botar a culpa só no setor! – mas também na época. E a época ruim de lá co-

meçou com a praga do bicudo no algodão, conforme lhe falei há pouco. Antônio, não é

fácil você ver chegar um dia de sábado e saber que sua renda é apenas dois quilos de

queijo coalho. E eu com dois filhos e minha esposa, Nena, além de três sobrinhos que

eu me encarreguei de criar com a morte de minha irmã... Com dois quilos de queijo dá

pra você fazer uma feira? Agora, tinha ainda no terreiro, cachorro, porco, galinha, gado;

tudo isso pra comer da feira. E como o Louro ia fazer essa feira com dois quilos de

queijo? Chegou a um ponto em que esse meu irmão mais novo, formado em engenharia,

Gilberto – que nós chamamos de Mano –, foi quem me segurou. Porque nós não tínha-

mos mais palma nem mandacaru e nós passamos a viver muitas dificuldades. Não de-

morou chegar o momento em que o próprio Mano me mandou vender aqueles possuídos

de lá e confiamos que Deus não iria permitir que morrêssemos de fome. Nesse entre-

tempo, Lenildo, meu filho mais velho, me avisou que Lucilo tinha uma casa pra vender

aqui em Gravatá. Acertamos e, com a ajuda de Mano, terminei comprando isto aqui.

Espero ter respondido o que você me pediu...

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Pedro Nunes Filho65

Antônio – Pedro, você pode falar daqueles sertões do Cariri da nossa Paraíba?

Pedro Nunes – Sou fascinado pela história dos nossos sertões e, mais ainda, pela histó-

ria dos nossos Cariris Velhos. Por isso, há alguns anos, comecei a ler e pesquisar sobre

o sertão da Paraíba. É uma região que começou a ser povoada a partir de 1690; bem

tardiamente, sabendo-se que o Brasil foi descoberto em 1500. Antes da chegada do

branco, o Cariri já era povoado pelos índios tarairius, nação indígena formada por di-

versas etnias, entre elas os sucurus que habitavam o território que vai da Serra do Tei-

xeira, passa por Sumé e se estende até Monteiro. Eles eram os verdadeiros donos daque-

las terras todas. Essa gente primitiva veio provavelmente dos sertões do São Francisco

caçar. Como se tratava de uma terra muito boa, parte daqueles caçadores acabou ficando

na região.

Na época, havia uma Lei colonial proibia criar gado no litoral, para não competir

com a cultura da cana-de-açúcar, que era produto de exportação. Foi então que os cria-

65

Pedro Nunes, advogado e tributarista, é um consagrado escritor do Cariri paraibano. Integra a Família

Nunes, onde a Família Siqueira viveu como arrendatários na Fazenda Matarina, de Cícero Nunes. Entre-

vista realizada no dia 26 de agosto de 2010, em Boa Viagem, Recife, onde mora.

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dores de gado começaram a penetrar nos sertões para criar. Cada um partia com sua

semente de gado, meia dúzia de vacas, um touro, etc. Eram pessoas que tinham posses.

Traziam consigo alguns serviçais e índios-mansos, porque era muito difícil penetrar

naqueles sertões sozinho, enfrentando os nativos arredios, onças bravias, cobras perigo-

sas e, sobretudo, desconhecendo os caminhos primitivos que encurtavam as distâncias.

Não há dúvidas de que a ocupação dos nossos sertões foi uma epopéia marcada por

muitos lances de bravura. É lamentável a crueldade utilizada contra as populações indí-

genas. Os colonizadores vinham andando a pé, geralmente seguindo o leito de rios, se-

cos na sua maioria. Quando encontravam terras que lhes caíam no agrado, geralmente

na beira de rios ou de riachos onde pudessem dispor de água para beber e matar a sede

dos animais, aí, eles se instalavam e começavam a construção do que historicamente

passou a se chamar curral-de-gado. Era um conjunto de casas de taipa, que abrigavam

os donos e os serviçais, além de compartimentos feitos de cerca pau-a-pique para tran-

car o gado. No sertão, existem três tipos de cerca: rabiada, que é cerca deitada; faxina,

onde as varas ficam em pé; e pau-a-pique, que é feita com toras grossas de madeira en-

terradas no chão. Esta última é a mais resistente para trancar gado. A partir dos currais-

de-gado, os povoadores iniciaram suas fazendas. Alguns chegavam de Portugal pobres.

Em menos de uma década, passavam a ser donos de vastas propriedades. Após o decur-

so de três anos, requeriam aquelas terras à Coroa portuguesa, por intermédio do Capi-

tão-Mor, autoridade que representava o rei de Portugal. Para receber uma sesmaria, bas-

tava argumentar que as ditas terras eram habitadas por gentios brabos e que o requerente

delas precisava para criar gado e aumentar os lucros da Coroa. Não demorava aqueles

valentes desbravadores tornarem-se donos de grandes fazendas e rebanhos de gado tão

numeroso que era difícil até contar. Os índios atrapalhavam o processo de ocupação,

porque não trabalhavam na agricultura braçal, nem sabiam lidar com animais. Eram

andarilhos, não tinham habilidade de montar em cavalos, nem se sujeitavam a trabalhos

pesados. Só sabiam caçar e pescar, vivendo em liberdade. Era assim a cultura deles.

Como não se submetiam ao branco povoador, estes começaram a enxotá-los, porque

eram um elemento atrapalhador do progresso. Os colonizadores espantavam os índios a

dente de cachorro e com tiros de mosquetes, que os amedrontavam, porque aquela po-

pulação nativa desconhecia a pólvora e ficava assustada com os estragos que as armas

dos brancos faziam. Uma parte dos índios fugiu para lugares distantes, outros resistiram

e sucumbiram. Outros tantos se renderam ao poder do branco, tiveram que aprender

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ofícios para os quais não tinham vocação e, enfim, foram escravizados. Os brancos que

penetraram nos sertões normalmente eram solteiros e começaram a casar com as índias.

A partir desses acasalamentos, aconteceu a mistura do branco com o elemento indígena,

resultando daí a civilização dos vaqueiros, de que nós todos somos descendentes. Houve

também miscigenação do índio com o negro que para lá era levado e vendido como es-

cravo. Nos sertões, a relação do branco com o negro era branda, o que não ocorria na

zona canavieira do litoral, onde a violência e a tortura imperavam sob o estatuto da es-

cravidão. No sertão, essa relação era diferente, porque lá o negro sentava à mesa com o

patrão e saía com ele para campear. Meu tataravô era português e foi caçar mocó na

Serra do Jabre. Lá, seu cachorro correu em perseguição a um vivente. Quando ele se

aproximou, viu que se tratava de uma indiazinha de apenas doze anos. Ela estava em

cima de uma árvore. Ao retirá-la à força, ela urinou-se com medo. Ele tomou-a pela

mão, levou para casa, amarrou no pé de uma mesa, amansou-a e, depois de batizada,

com ela se casou. É de lá que vem a descendência de todos os Nunes de Farias. Histó-

rias assim aconteceram com muitas outras famílias. Foi desse jeito que aconteceu o po-

voamento do nosso Cariri paraibano.

Antônio – Pedro, fale da memória dos lugares de sua infância...

Pedro Nunes – Eu nasci em 1944, na Fazenda Bonfim, município de São José do Egito,

nas águas do Pajeú. A Fazenda Bonfim era do meu avô, Antônio Nunes de Farias, que

era dono, também, das fazendas Boa Vista, Matarina, Mugiqui, Barra e Duas Barras,

esta última em Pernambuco. Com a morte de Antônio Nunes, em 1943, as propriedades

foram divididas entre os herdeiros. As fazendas Boa Vista e Matarina ficaram para meu

tio Cícero Nunes de Farias. Mugiqui ficou para meu pai, Pedro Nunes de Farias; a Bar-

ra, para Luiz Nunes de Farias. A Fazenda Bonfim, para um tio meu, Dr. Tonheira, que

era promotor público. A Fazenda Duas Barras ficou para minha tia Maria do Carmo,

casada com Antônio de Souza. Minha tia Teonas, casada com Tércio Rafael, herdou

terras que vendeu. Com a morte de Cícero Nunes, a Fazenda Matarina foi herdada por

Eugênio Nunes de Farias, que é meu primo carnal e é casado com minha irmã Priscili-

nha. Eles moram lá na Matarina desde a década de 50, quando casaram.

Antônio – Pedro, gostaria que você nos falasse como eram as relações de trabalho

naquelas fazendas do Cariri paraibano na primeira metade do século passado.

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Pedro – As relações de trabalho se davam da seguinte maneira: Os moradores pediam

morada e se instalavam numa determinada fazenda. O patrão oferecia casa para morada

e roçado extenso para plantar algodão, milho e feijão. O regime trabalhista era muito

informal, porque não existia naquela época nem a CLT, nem salário mínimo. O patrão

fazia um empréstimo no Banco do Brasil, a juros subsidiados, e, semanalmente, adian-

tava ao agregado o valor para as despesas de sua feira. Adiantava, adiantava... E ia ano-

tando numa caderneta. No final do ano, depois de o trabalhador apanhar e ensacar o

algodão, este era vendido e, do apurado da venda, metade era do patrão e a outra metade

do morador, posto que era meeiro. Daquela metade do morador, o patrão descontava o

que havia adiantado no transcorrer do ano. O milho e o feijão eram lucros do morador e

descareciam de partilha. Depois de acertar as contas, o morador ficava com uma boa

soma de dinheiro que, amealhado, findava sendo suficiente para ele comprar sua própria

terra. Naquele sistema, o morador era um sócio do patrão; de certa forma, era um regi-

me de trabalho mais adiantado do que o de hoje. Os vaqueiros das fazendas de gado

tinham participação: de três crias, eles tinham uma e o patrão, duas. Dessa forma, mora-

dores e vaqueiros transformavam-se em sementeira de futuros fazendeiros. Toda aquela

riqueza provinha do algodão, que era um bem maior, o “ouro branco”, que azeitava o

comércio e dava sustentação à economia da região.

Antônio – Fale um pouco de sua família...

Pedro Nunes – Minha família era grande. Nasceram 17. Três deles morreram ainda

“anjinhos”, como se diz. Mas com o benefício do batismo; porque quando acontecia

uma criança morrer sem ser ungida com os santos óleos era enterrada na própria zona

rural. Nós éramos, portanto, quatorze irmãos, e eu era um dos mais novos, o quarto, de

baixo para cima. Hoje eu tenho sessenta e sete anos de idade. A maior parte de meus

irmãos e irmãs casaram com primos e primas. A endogamia existente lá no sertão era

uma herança judaica.

Minha família, como já falei, havia se mudado para a Fazenda Mugiqui. Os ir-

mãos mais velhos casaram, e os mais novos ficaram lá em casa morando com meus

pais, Pedro Nunes de Farias e Priscila Nunes de Farias. Minha mãe era filha de Valen-

tim Monteiro, um almocreve que saiu de Gravatá de Bezerros e, em companhia de ami-

gos, foi almocrevar na região do Cariri paraibano. Lá, conheceu Priscila Virtusosa do

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Espírito Santa, filha de um fazendeiro dono da Fazenda Ipueira do Poço, perto de São

Tomé. Casaram-se, compraram as terras onde hoje fica a cidade da Prata, e lá geraram

extensa parentela: os Monteiro, os Neri, os Nunes e os Aleixo. Pelo que sei a avó de

vocês pertencia à família Feliciano, da Prata. Ela casou-se com José Jorge, um moço

nascido e criado no Amparo. Casados, foram morar na Fazenda Matarina, que pertencia

ao meu tio Cícero Nunes de Farias.

Antonio – Fale agora de suas lembranças da Fazenda Mugiqui e da Matarina

Pedro – Como eu já lhe falei, meu pai herdou a Fazenda Mugiqui e se mudou para lá no

ano de 1944. Quando eu abri os olhos para a existência, estava contemplando os céus

azuis do município de Alagoa do Monteiro. Na época, a fazenda pertencia a Monteiro;

Prata era apenas distrito de Monteiro. Nessa fazenda, eu vivi uma infância muito feliz

no meio de passarinhos, tomando banho de açude, sentindo cheiro de terra molhada,

mato verde, ouvindo riachos gemendo e vendo céus azuis... Coisas assim, maravilhosas.

A época mais feliz de minha vida foi na simplicidade daquela fazenda. Com quatorze

anos de idade, fui estudar no seminário diocesano de Campina Grande. Mas, nas férias,

eu sempre voltava para o Mugiqui e lá revivia os quadros de minha infância. Ainda

hoje, depois de tanto tempo, quando eu chego lá é como se eu voltasse à minha infância.

As fazendas Mugiqui e Matarina são contíguas.

Respondendo sua pergunta, as lembranças que eu tenho da Fazenda Matarina

são também as melhores possíveis. Eu lembro que a Matarina tinha cerca de 50 morado-

res, ao todo, quase 200 almas. Era, portanto, uma fazenda densamente povoada, com

moradores muito operosos, todos vivendo do cultivo do algodão. Eu me lembro muito

bem de Seu Bento, Seu Preto, Amaro Galdino, Otaviano e Brasil, que era um dos mora-

dores mais antigos. Ele morava num sítio chamado Barra. Na frente da casa, tinha uma

várzea muito bonita plantada de fruteiras. Ele era um negro, alto, magro, trabalhador e

muito direito. Na divisão das terras, ele saiu de lá e não sei que destino tomou. Todos

aqueles moradores da Matarina me trazem muitas lembranças. Lembro-me da família

Porfírio, que era do Cachorro Morto e de Sebastião do Mato, cerqueiro de primeira qua-

lidade. Ele era filho de Manoel do Mato, que foi cabra e homem de confiança do Dr.

Augusto Santa Cruz. Além de valente, gozava de muita confiança do Doutor, porque era

direito e muito religioso. Andava sempre com um rosário dependurado no pescoço. Ho-

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je, os descendentes dele moram na Prata. Realmente, a Fazenda Matarina me traz lem-

branças e recordações muito antigas. Dessas lembranças, recordo uma história, contada

por meu pai. Ele dizia que, em 1915, ano de seca terrível, seu pai, Antônio Nunes, botou

uma retirada de gado para a Fazenda Matarina, que havia sido comprada por ele ao Dr.

Santa Cruz, naquele mesmo ano. Aconteceu que um dia uma onça pegou um garrote, ali

onde hoje é o açude, e arrastou o bovino para cima daquela serra grande e alta. No meio

do trajeto um casco do garrote ficou enganchado numa fresta de pedra. A onça puxou o

animal com tamanha força e violência, que desprendeu o casco do garrote, e ela termi-

nou levando a sua presa para o alto da serra, onde a devorou. A Matarina é um lugar

lindo, pontilhado de esculturas de pedras gigantes. No coração da terra tem preguiças

gigantes, fossilizadas, e isso é uma coisa que me fascina muito. Meu pai contava outra

história, segundo a qual um morador de tio Cícero foi escavar um tanque numa pedra

para ajuntar água. Na escavação, o morador encontrou um enorme osso do fêmur de um

animal; o osso era tão grande que ele o levou para casa, e dele fez um pilão. Essa histó-

ria me fascinou. Um dia, eu e meus irmãos saímos à procura dos vestígios desses ani-

mais e, efetivamente, no lugar denominado Balanço, a gente encontrou um desses tan-

ques que haviam sido cavados por trabalhadores e nele encontraram ossos de uma pre-

guiça fossilizados. Ageu também encontrou a ossada inteira de uma preguiça gigante.

Elas iam beber água naqueles tanques, caíam dentro e terminavam morrendo afogadas;

com o passar dos séculos, ficaram fossilizadas, isso há quinze mil anos.

Antônio - Nessa altura da entrevista, eu pergunto a Pedro se ele tem conhecimento

do nome de alguns tanques e de serras na Matarina que comumente são nomeados

pelos mais velhos de minha família, como Serra Preta, Tanque da Viúva, etc...

Pedro Nunes – Na Serra da Matarina, tem o Tanque da Ventania. Sua irmã Virgínia

refere-se a Tanque da Viúva, mas creio que é o Tanque da Ventania. É um lugar muito

bom para lavar roupas, porque nunca seca e tem muitos lajeiros bons para botar as rou-

pas para quarar e enxugar. Temos também a Serra Preta, que fica defronte da casa onde

vocês moraram. É um conjunto de serras muito fechadas. Lá em cima é muito bonito.

Tem uma lagoa no topo da serra e, muitos tanques, também. Tem madeiras de lei: ce-

dros, pereiros, umburanas, cumarus etc. E lá de cima se descortina aos olhos do visitan-

te uma paisagem belíssima que se estende para o Norte. Lá, nessa serra, tem muita caça:

gato maracajá, mocó, preás, pebas, tatus, veados... O que não mais existe lá são as on-

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ças. Quando falo da Matarina, me vêm à mente todas essas recordações maravilhosas

dos tempos passados, que eu vivi apenas em parte, porque somente a partir de 1950 é

que comecei a andar pela Matarina, época em que minha irmã Priscilinha casou. Ela tem

nove filhos. São sobrinhos que eu adoro.

Antônio – Pedro, gostaria que você me falasse do seu amor pelo sertão e pelo ho-

mem do sertão, especialmente daquelas paragens do Cariri paraibano, seu e nos-

so...

Pedro Nunes – Eu tenho um profundo amor pelo sertão. É uma terra muito rica cultu-

ralmente. Celeiro de poetas, de cantadores, violeiros, cordelistas famosos, como Lean-

dro Gomes de Barros, Chagas Batista – esses os maiores –, que faziam os seus folhetos

de cordel e os distribuíam para serem vendidos nas feiras. As pessoas liam os folhetos e

por meio deles se informavam de tudo porque os poetas-cordelistas faziam uma verda-

deira cobertura jornalística do que acontecia na região: brigas políticas dos coronéis,

refregas entre polícia e cangaceiros, histórias de amor, de traições, pegas de bois brabos,

vaquejadas, apartações e festas religiosas... Tudo eles descreviam nos folhetos de cor-

del, que eram lidos pela população, porque naquela época não chegavam às mãos do

povo nem livros, nem revistas e muito menos jornais. As notícias chegavam mesmo era

pelos folhetos de cordel. Por isso, a população nasceu e cresceu com a musicalidade nos

ouvidos. É por isso que hoje as pessoas da região têm uma capacidade muito grande de

versejar. Elas falam com ritmo e cadência. Têm alma poética. Os exemplos são muitos:

Zé Marcolino, compositor nascido em Sumé e criado na Prata. Compôs para Luiz Gon-

zaga. É tão bom quanto Humberto Teixeira e José Dantas. Pinto do Monteiro, a cascavel

do repente... Firmo Batista, que eu nem sabia que era primo dos Siqueira! Firmo escre-

veu muitas coisas bonitas sobre a Serra do Jabitacá, onde nasce o Rio Paraíba. Terra de

um povo trabalhador, corajoso, valente, determinado, honesto, cujas histórias me encan-

tam. É uma região de clima excepcional, terras boas, de água escassa, mas de qualidade.

Lá, o gado chegava arrepiado, cheio de carrapatos, vindo das zonas canavieiras e, em

pouco tempo, comendo ramas de mororó, aroeira e outras forragens protéicas que exis-

tem em abundância na região, de repente, os carrapatos caíam, afinavam o pelo, come-

çavam a agradecer e reproduzir-se em quantidade. Região muito boa para o criatório

aquela! O gado vivia solto nas terras de ninguém, haja vista que as fazendas não tinham

cerca como temos hoje. Uma fazenda fazia divisa com a outra, sem cerca, apenas mar-

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cos de pedras indicavam os limites. O gado vivia solto, e os vaqueiros campeavam para

tomar conta dos rebanhos. Pinto do Monteiro tem um verso bonito, que diz assim: “O

gado brabo bebia//No olho d’água do Cunha//Descia devagarinho//Bem na pontinha

da unha//Descia, mas não bebia//Quando notava que havia//Vaqueiro por testemunha”.

Os vaqueiros ficavam nos olhos d’água esperando o gado chegar para beber. Era o mo-

mento em que eles olhavam se tudo estava bem com os animais de sua vaqueirice. A

certa altura do ano, quando o sol começava a dourar as folhas do marmeleiro, nos meses

de agosto, setembro e outubro, os vaqueiros se juntavam para fazer a “festa de aparta-

ção”. Em que consistia a festa? Matava-se um ou dois bois e a festa rolava com dança,

muita comida e bebida. Na oportunidade, os vaqueiros ferravam os bezerros. Cada pa-

trão tinha um ferro. Depois de ferrados os bezerros eram soltos nas caatingas. Por falar

em ferro, quando um animal se perdia ninguém se apossava do animal. Existia o ferro

da família e um segundo ferro, que era do dono daquela fazenda específica. Por exem-

plo, a rês trazia o ferro da família Nunes que era um S e logo abaixo o ferro das fazen-

das, ou Boa Vista, ou Mugiqui, ou Matarina, ou Bonfim. Quando acontecia de um ani-

mal se perder, facilmente era localizado. O ferro era anotado num livro de registro, na

Prefeitura do município. Era uma coisa muito bem organizada. Todo mundo respeitava

o alheio e ninguém ficava com animal de ninguém.

Antônio – Para terminar nossa entrevista, gostaria de saber se, entre as suas lem-

branças da Matarina, você tem alguma relativa à casa [de taipa] onde nossa famí-

lia morou na qualidade de agregados de seu tio Cícero Nunes...

Pedro - Quando eu comecei a andar na Fazenda Matarina, os Siqueira não moravam

mais lá. Por isso mesmo, eu não recordo de nenhum de vocês, nem também dos nomes

dos seus pais, Seu José Jorge e Dona Verônica. Mas a casa existia, e eu me lembro de-

mais dela. Ficava na beira da estrada. Outras pessoas devem ter morado lá depois que

vocês saíram. Eu vi tantas vezes aquela casa de taipa e não sabia que ali tinha morado

uma família que deixou uma história de coragem, bravura, exemplo de luta e de enfren-

tamento dos revezes da vida. Uma família que migrou para o Sul, e todos os filhos ven-

ceram na vida. Uma família que se destacou com você, Jorge, que é orgulho dos irmãos.

Eu não sabia que aquela casa tinha abrigado pessoas com uma história tão bonita, retra-

tada neste livro que está sendo organizado com muita sabedoria. É uma história de emo-

ção. Logo que comecei a folhear o livro, tive vontade de contar a história de minha fa-

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mília, mas confesso que não tenho coragem. Meus irmãos e minhas irmãs não consegui-

riam dar depoimentos como esses de suas irmãs e irmãos. São testemunhos que cortam

a alma da gente, esses que foram dados pelos filhos de Jorge e Verônica. São narrativas

muito fortes, muito verdadeiras... Algo que emociona e engrandece. Não sei como con-

seguiram falar de suas vidas. É um trabalho que exige coragem, porque mexe muito

com o passado e com as emoções. Atrás dessas emoções de vocês e do choro de cada

um, eu percebo, também, um sentimento felicidade em cada um. São pessoas que sofre-

ram e hoje são felizes. Vocês saíram de uma situação de pobreza, lutaram e venceram.

A pobreza não os tornou infelizes; ao contrário, os fez pessoas fortes e generosas. Na

vida, todos lutam para vencer, e a maior vitória do ser humano é a felicidade.

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QUARTA PARTE

000000000

ENTREVISTAS

DA

TERCEIRA GERAÇÃO

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Encontro natalino de parte da Família Siqueira na residência de Anísio e Enedina, no

Sítio São Marcos (Arapuá - MS) (Foto do acervo da Família)

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Maria Irene dos Santos66

Antônio – Irene, por gentileza, seu nome completo, lugar, data de nascimento e as

lembranças de sua infância.

Irene – Maria Irene dos Santos, nasci no dia 1º de maio de 1955, aqui em São Paulo.

Minha infância foi muito feliz. Fui criada junto com meus primos na Vila Carioca, que

eram os filhos dos irmãos dos meus pais. É o caso de Donizete, e lembro assim que a

mãe trabalhava e me deixava na casa da vó paterna, vó Joana. Eu ficava lá no período

da manhã e, na parte da tarde, a mãe saía da firma – ela trabalhava na Talheres Radio, e

ela me buscava. Essa infância que eu tive no período em que eu ficava na casa da vó,

era num cortiço, onde toda a família morava junto. Esse período foi muito bom porque

era uma união de família. E a vó Joana era uma vó especial. Ela juntava todos nós numa

66 Maria Irene dos Santos, filha de José Batista Torres (Zeca) e Floriza Verônica Torres (Flora). Viúva de

José Guilherme dos Santos Filho (Jacaré), vinte e oito dias após dar esta entrevista na Vila Ema, em São

Paulo, aos 30 de novembro de 2009. Jacaré era seu primo legítimo e faleceu em Paranaguá, após trágico

acidente que envolveu a própria Irene.

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mesinha dela, levando em conta que era uma casinha bem pequena, e então ela fazia

aquele mingau de farinha de trigo e nos servia naqueles pratinhos de ferro. Eu lembro

que era muito gostoso. E ela ficava de pé, olhando a gente comer. Então eu tenho isso

na minha lembrança e não apagou nunca. Eu também era muito travessa, judiava dos

meus primos (rindo). Minha mãe contava que eu era muito maldosa, derrubava os pri-

mos na lama, sujava todos eles. Ela me vestia como uma bonequinha, e quando eu re-

tornava pra casa voltava toda preta de lama de brejo (rindo muito). Nesse período, eu

deveria ter uns três ou quatro anos, deveria ser algo assim. Depois disso, nós fomos mo-

rar em outro cortiço, na Rua Lício de Miranda, que já era de outro nível. Não era aquele

barraquinho da vó Joana. Lá eu fui crescendo e, já com a idade de uns cinco seis anos,

eu lembro realmente de muitas e diferentes coisas. Lá eu tinha minhas amiguinhas, e o

pai gostava de convidar aqueles repentistas do Nordeste que vinham a São Paulo, e foi

nesse ambiente que aprendi a gostar desse tipo de música naquele tempo. Ele juntava

aqueles vizinhos, cuja maioria era de nordestinos, e os repentistas ficavam cantando a

tarde toda. Eu pegava uma cadeirinha e ficava ali observando aquele movimento. Não

lembro bem o nome desses repentistas, mas Firmo Batista, que era nosso primo, ele veio

cantar algumas dessas vezes. E tinham outros que eram convidados, e eu nem sei onde o

pai encontrava aqueles repentistas. Isso era aos domingos, e era uma festa. A família se

juntava, todos os irmãos da mãe eram solteiros. A minha vida de estudante começou

numa escola que ficava na Rua Silva Bueno, ali perto do morro do Ipiranga. Foi a mi-

nha primeira escola. Era meio longe, a mãe era quem me levava, e o nome da minha

primeira professora era Maria. A gente passava no bar que ficava na esquina da rua de

nossa casa, levava um sanduíche de mortadela com guaraná para servir de lance na es-

cola. Lembro que, algumas vezes, o guaraná derramava e se misturava com o lanche...

(rindo). E não era nada agradável comer aquele lanche todo molhado. Você acredita

que, até hoje, eu sinto o cheiro daquele lanche! Mas a mortadela era muito boa. Como

disse, a mãe era quem me levava à escola. Sempre muito atenciosa. Recordo que, numa

dessas vezes que ela me levou - nessa época ela estava grávida do Edson –, ela engan-

chou os pés numa correia que estava no chão e levou um grande tombo. E lembro, as-

sim, ela caída na rua, reclamando. Minha infância foi isso aí, até os seis ou sete anos. A

casa na Lício de Miranda era uma casa boazinha, nossa! Era uma casa alegre. Os primos

da mãe: o Zé Maria, o Nane, o João Feliciano, toda essa turma ia lá pra casa; e no sába-

do e domingo era uma festa. Isso me marcou muito. A tia Virgínia, a Conceição, o Se-

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verino, Anísio, todos eram solteiros. Foi uma infância vivida no meio dos meus tios, e

eu não esqueço nunca67

. Logo em seguida, nós viemos morar na Vila Ema. Havíamos

adquirido um terreno. Uma grande dificuldade porque tivemos que construir a nossa

casa, e a mãe passou a ser marreteira nas feiras livres. Nesse período, 1962-1964, ela

costurava aquelas gravatinhas de escolas de antigamente. Eu ajudava ela, colocando

colchetes e acompanhando-a nas feiras. E foi assim que ela começou a construir a casi-

nha dela, a nossa casa. Mas eu sempre estava ali com ela e vendia aquelas toalhinhas de

plástico; eu estava metida no comércio. Ela até que era liberal comigo: deixava-me

brincar com minhas amiguinhas; mas, primeiro, precisava arrumar a casa (rindo mui-

to!). Primeiro a obrigação, depois a diversão. Na Vila Ema, eu tinha muitas amiguinhas

e muitos amigos. Mas até jogava bola, participando da brincadeira dos meninos. Empi-

nava pipas, e quando a minha pipa era “cortada” os outros meninos iam buscar pra mim

(ri muito).

Antônio – Irene, diga-me uma coisa. Anísio conta uma história que, talvez, um

pouco antes dessa época, Flora o teria deixado tomando conta de você. E, segundo

ele, você desabou num choro incontrolável, e ele teve de lhe bater com uns cordões

bentos... Você lembra isso?

Irene – Era, ele era um pouco malvado comigo. A história é a seguinte. A mãe tinha um

“tique-tique nervoso”. Isso era na Lício de Miranda. Um dia minha mãe teve uma crise

dessas. E o pai foi levá-la no hospital para ser medicada. O tio Anísio chegou cansado

67 Nesta altura da entrevista eu pedi licença a Irene para recordar que, nessa casa da Lício de Miranda, foi

onde eu fiquei hospedado quando de minha primeira viagem a São Paulo, nos finais da década de cin-

quenta. Lá encontrei minha mãe, que veio a São Paulo fazer um tratamento da vista... E recordo que

quando Flora e Zeca iam para o trabalho, em casa ficávamos eu, Verônica e ela, Irene. As casas desse

“cortiço de luxo” eram de alvenaria e dividiam parede e meia com outros moradores. Flora e Zeca dividi-

am a casa deles com uma senhora italiana (Irene ri muito!) e essa senhora passava o dia todo ouvindo as

radionovelas da época, na Radio Nacional, Tupi de São Paulo, etc... E ouvia numa altura incomum. Aqui-

lo me aborrecia por demais. Só resolvi esse problema quando um dia descobri que o chuveiro elétrico do

nosso banheiro estava ligado na mesma rede elétrica que alimentava as duas casas. E quando se ligava o

chuveiro a interferência nos aparelhos elétricos era imediata. Não se ouvia mais nada até que o chuveiro

fosse desligado. Tão logo as radionovelas iniciavam, eu então plugava e desplugava a tomada do chuvei-

ro. Era uma interferência desgraçada. A velha italiana ficava uma arara de irritada, no outro lado. E es-

bravejava pra todo lado, dando tapas no aparelho de rádio, julgando ser mau contato das válvulas. E sem-

pre reclamava que o rádio só fazia aquilo no começo das novelas dela... Mas logo, logo ela desistia de

ouvir porque simplesmente era impossível continuar ouvindo. Era o meu sossego. Flora via aquilo e fica-

va meio cabreira. Zeca é que dava risadas e mais risadas... Isso é apenas um detalhe da memória ligada à

casa da Rua Lício de Miranda, na Vila Carioca.

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do trabalho, como era de se esperar. E eu queria porque queria ir junto com o pai e a

mãe. Como não deu pra ir, tive que ficar na companhia do tio. Caí num berreiro sem

tamanho. E o tio logo fechou a porta, dizendo: “Cale a boca, minha filha, cale a boca...

Sua mãe logo volta”... Aí é que eu chorava, gritava e esperneava. Não tinha jeito. Ele,

então, pegou um cordão da Ordem Terceira de São Francisco que tinha dependurado lá

na parede e me deu umas lapadas muito das boas (rindo muito). Aí eu tive mesmo que

ficar quietinha. Quando meus pais voltaram, ele então disse pra mim: “Conte a história,

minha filha, diga a eles o que foi que aconteceu”... Eu só fazia choramingar, não conse-

guia contar nada. E hoje ele conta isso com muita graça, porque na realidade ele nunca

esqueceu isso aí. Mas o tio Anísio é também muito especial pra mim.

Antônio – Você tinha uma relação muito especial com Zeca, não? Ele lhe mimava

muito? E sua relação com Flora?

Irene – Com meu pai, eu tinha uma relação muito especial. Ele era o “paizão” mesmo.

Ele trazia o chocolate todas as noites. Colocava-me no colo, me beijava na hora de dor-

mir, contava aquelas histórias dele; ensinou-me matemática, ajudando a somar, subtrair

e multiplicar. Ele foi meu primeiro professor. Tinha uma paciência enorme. Meu pai era

muito querido, era um pai verdadeiro. Sabia educar, sabia amar, sabia corrigir na hora

certa; sem bater. Era uma pessoa que tinha a palavra certa na hora certa. Ele foi sempre

assim. Já com a mãe, as coisas mudavam. Ela era mais rigorosa. A mãe era mais “capi-

tão”, “sargentona” (rindo muito). “Sem vergonha, tu tás fazendo isso?” Mas a maneira

dela ser “sargentona” é que me fez ser gente. Era a maneira dela de educar, ensinando o

que era o certo e o que era errado e como se deveria fazer. A mãe também foi uma

“mãezona”.68

É, tio, o pai queria sempre ajudar. Ele não media esforços. Sempre era

68 Antônio - Novamente eu peço permissão a Irene para testemunhar meu profundo reconhecimento desse

papel de exemplar conduta e enorme desprendimento desempenhado por Flora e Zeca para nós, os irmãos

mais novos e, enfim, para todos da nossa família. Lembro que, naqueles anos, eu estudava filosofia no

Seminário de Viamão, preparando-me para me ordenar padre católico. E eles sempre me deram o apoio

afetivo e material de que eu tanto necessitava. Sempre me receberam com carinho nas ocasiões de minhas

férias quando eu vinha de Porto Alegre para São Paulo. A maneira acolhedora como recebiam meus cole-

gas de seminário. Sobretudo fornecendo roupa e outros apetrechos para eu poder enfrentar aquele frio

duro do inverno sul riograndense. Dava-me a impressão de que eles tiravam do que não tinham para nos

ajudar. E, no entanto, eu nunca vi Zeca fazer cara feia pelas decisões de Flora em ajudar alguns dos ir-

mãos, irmãs e sobrinhos. Fico comovido quando me lembro dessas coisas. Que isso sirva de exemplo para

as novas gerações da família. E que esse seja um testemunho que fique para sempre na memória de nossas

famílias. Um testemunho de gratidão e de solidariedade humana e familiar. Virgínia, a despeito das “doi-

dices” dela, foi outra que muito ajudou a família e sempre foi muito generosa com os irmãos e sobrinhos.

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uma casa cheia, onde havia sempre uma cama para alguém que chegasse. Nunca fecha-

va a porta aos da família e apoiou todos. Então, eu acho que os dois foram um exemplo

de vida para todos nós, principalmente para mim como filha. Aprendi muito com eles a

receber as pessoas em minha casa, a dividir o que possuo e a ser honesta. E isso veio

deles. Eu lembro que era pequena e via a mãe costurando para ajudar em casa, comprar

uma mistura, com uma enorme dificuldade. Eu lembro mesmo ela costurando, e eu ali

no pé daquela máquina, vendo-a ouvir a música da dupla Cascatinha e Inhana... Isso é

um detalhe que eu não vou esquecer. Ela sempre foi costureira. Mas o ganho era muito

pouco; é o caso das gravatinhas de uniforme de escola que a gente vendia nas feiras.

Muitas vezes, o ganho dessa costura só dava pra comprar banana e, por conta disso, não

foram poucas as vezes que nossa refeição era arroz, feijão e banana. Mas nunca faltava

o essencial, e ela nunca desanimava. Com esse dinheirinho curto assim, ela construiu a

casa, ajudava os irmãos que vinham pedir um trocado. Ela sempre tinha o trocadinho

dela de reserva.

Antônio – Retomemos, então, a chegada de vocês na Vila Ema. Como isso influiu

na sua vida, na escola, por exemplo.

Irene – Na Vila Ema, eu frequentei uma escolinha particular. A escola do prof. José,

onde frequentei até o quarto ano primário. De lá, eu sai para uma escola do Parque São

Lucas, uma escola da rede estadual. Naquela escola particular, a mãe é que tinha de pa-

gar. Uma escola muito boa, por sinal. Da minha convivência na escola, não consigo

mais lembrar o nome dos coleguinhas e das coleguinhas. Mas lembro que, numa festa

de São João, a mãe fez um vestido pra mim, a coisa mais linda. Um vestido rodado e eu

era a pessoa mais satisfeita do mundo. Já para o ensaio da quadrilha, eu fui com esse

vestido novo. E a mãe já estava me prevenindo que eu não fosse com aquele vestido

novo para não sujar ou mesmo rasgar. Eu insisti em ir com o tal vestido. No ensaio,

numa dessas brincadeiras, uma menina veio com força, puxou meu vestido e terminou

rasgando. Mas rasgou mesmo (rindo muito). E a preocupação minha de chegar com o

vestido rasgado em casa. Cheguei e contei a ela o acontecido: tinha rasgado o meu ves-

tido. “Eu não te falei, danada, que era para tu não ir com esse vestido pro ensaio”? (rin-

do muito). Aí ela remendou e deu um jeitinho de ficar novo.

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Antônio – E a Vila Ema daquele tempo, como era? Era asfaltada? Como vocês

brincavam?

Irene – Naquele tempo, a Vila Ema era só barro. Asfalto não existia. As sandálias fica-

vam cheias de um quilo de barro. As nossas brincadeiras na época foram como eu ex-

pliquei. Eu brincava muito de brincadeira de menino: quadrado, bolinha e, à noite, nós

brincávamos de esconde-esconde. Em frente à nossa casa, tinha um terreno baldio e

tinha mato e ali era onde a gente se escondia. Ali a gente ficava até às nove, dez horas,

não tinha violência naquela época e era uma brincadeira saudável. Ou, então, nós brin-

cávamos de bicicleta. Lembro que um meu vizinho tinha uma bicicleta, e essa bicicleta

era para todos. Cada um dava uma voltinha, e era assim... A minha infância foi muito

boa, minha juventude, minhas colegas eram todas muito sadias e não tinha esse proble-

ma de drogas. Nós fazíamos as tarefas juntas, cada dia era em casa de uma amiga e a-

prendíamos juntos. Minhas colegas eram Lisa, Regina, Nena, Vera, Ezenilda... Essas aí

me acompanharam toda a juventude. Da adolescência, eu quase não aproveitei porque

eu comecei a namorar o Zé; tinha muita vontade de ir aos bailinhos... Quer dizer, tive

namoradinhos antes do Zé (rindo). Um deles foi meu vizinho Rui. Apaixonei-me por

ele aos nove anos... Aliás, o Zé sabe dessa história! (rindo muito). Não é novidade, não

é segredo. Aos nove anos, achava que estava apaixonada e escrevi uma carta bem gran-

de, que era pra entregar pra ele, não é? Namoro antigamente era assim. Peguei essa carta

e pus aqui, no elástico da calcinha. De noite, fui ao banheiro fazer xixi, e o que aconte-

ceu? A carta caiu. E quem a encontrou? Dona Flor! (Flora) (rindo muito). De manhã,

logo que acordei, ela me perguntou: “Irene, tu tás de namorado?” E eu: “Não, mãe!” E

ela: “E essa carta aqui, sem-vergonha? Com dez anos, tu ainda mijando na cama e já

falando em namorado?” E foi aquela briga. Esse namorado tinha uns quatro anos mais

que eu, que tinha nove ou dez anos. Eu queria pedir permissão ao pai para nos deixar

namorar em casa. Eu e o pai íamos assistir filmes na casa do tio Anísio e voltávamos as

dez, onze horas. No caminho de volta, aquela ideia vinha e palpitava no meu coração,

porque, afinal, eu queria era conversar com o meu namorado, né? Um dia, eu criei cora-

gem e falei. Ele, então, muito educado, aquele paizão, disse assim pra mim: “Minha

filha, está muito cedo; você é muito nova, você é uma criança, não pense em namoro!

Não faça isso, filha, você está começando agora e vai estragar o seu estudo!” Pois é,

esse foi o meu primeiro namorado. Essa paixão durou um bocado de tempo, até que o

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Zé apareceu. Mas eu ainda tive umas paquerinhas no colégio, alguns caras queriam bei-

jar, né? Dava uns beijos escondidos, sem dona Flora saber (rindo). Foi muito bom. A

mãe não abria a guarda. Eu tinha vontade de conversar com ela sobre essas coisas de

namoro, de sexo, mas ela não queria. Era um assunto que a gente não podia falar. Ter-

minava conversando isso com as colegas, que, por sua vez, tinham os mesmos proble-

mas. Muitas vezes, eu queria me abrir com minha mãe, mas ela me negava esse espaço.

Ela se fechava mesmo. Muitas vezes, eu conversava com o pai. Essas coisas de primei-

ras regras foram normais, porque no colégio já se ensinava isso, e nós, meninas sabía-

mos e ficávamos até mesmo numa certa ansiedade esperando a menstruação. De tal mo-

do que, quando veio, eu fiquei muito feliz porque sabia que já tinha ficado mocinha.

Falei pra mãe e ela disse que eu, a partir daquele momento, me cuidasse. Tivesse cuida-

do, porque todos os meses aquilo viria, e eu tinha que me manter limpa, não sujar a rou-

pa... Isso aí ela me passou. Essa coisa da menstruação foi uma coisa tão boa e desejada

que, quando ela vinha, eu me acalmava e ficava bem relaxada, uma tranquilidade. Eu

gostava muito. Não era como muitas mulheres que tinham problemas de cólicas, de do-

res de cabeça, nada! O segundo dia, então, pra mim era maravilhoso.

William – Você falava que brincava com os meninos, de soltar pipa, etc. Como era

sua relação com Edson? Ele brincava com você nessa época?

Irene - Ele não brincava comigo porque ele era muito de menor, enquanto a minha ida-

de era de doze a treze anos. Ele era pequenininho nessa época. Eu era a “mãezona” dele

e cuidava dele. Eu lembro que uma vez ele me xingou, e eu então peguei a sandália e

agi como mãe. A minha amiga Nena estava vendo isso do portão e comentou que eu

agia igual à mãe do Edson. Eu, então, disse o motivo: ele não tinha o direito de me xin-

gar, ainda mais naquele tempo. Nós fomos criados assim, a mãe não permitia o uso de

palavrão, especialmente de um irmão com outro. E só passei a tomar liberdade com o

Edson depois dele casado. Antes, a gente não costumava usar maiores palavrões... Antes

disso, era o maior respeito. Então, com o Edson era assim. Era mesmo a mãezona dele:

dava banho, ia buscar na escola, ia buscar na rua, e ele não participava de minha brinca-

deira não. Eu o enrolava nessa história de ensinar a soltar pipa. Era assim: minha mãe

me mandava comprar cândida (água sanitária) numa vendinha próxima. No caminho, eu

o encontrava empinando pipa. Eu, então, mandava-o ir comprar a cândida e ficava “to-

mando conta da pipa dele”, veja só! Ele ficava furioso e louco da vida com isso.

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Antônio – Voltando aos namoricos da Vila Ema, vem a pergunta: como foi o na-

moro com Jacaré?

Irene – O namoro com Zé foi o seguinte. Como eu gostava de namorar, o primeiro que

me aparecia na paquera (rindo) eu enfrentava. Ele morou com a gente e aí começou

esse namorico bobo de criança, e terminei me apaixonando por ele. Apaixonei-me, e a

gente começou a namorar, embora o pai e a mãe não aprovassem o namoro. Eles alega-

vam que ele era primo e, sobretudo, porque ele era preguiçoso e feio. Perguntavam co-

mo era possível eu namorar um tipo como Jacaré, “um cara com aqueles ‘beições’!”

Mas eu não me importei com aquilo, gostei dele e me apaixonei; foi um namoro meio

atropelado, porque as tias e os tios não queriam mesmo. No entanto, sabe-se que, quanto

mais proibido, aí é que a gente enfrenta. Só sei dizer que meu namoro com ele foi muito

gostoso e foi bom mesmo. Um namoro saudável. A gente saía pra cinema, pra bailinhos,

aprontava... O cinema era no Ipiranga, e o nome da sala era “Cine Anchieta”. Os filmes

que a gente assistia eram Mazzaropi, esses filmes inocentes. Aliás, a gente nem assistia,

ficava era namorando (rindo muito). A gente nem assistia... O tio Elias, também ia com

a Dora e a gente para o cinema, aos domingos. Só pra namorar. A gente não ia pra esses

ambientes de inferninho; era proibido. Nem nos bailes a gente podia entrar, porque éra-

mos menores de idade. A gente ia pra esses bailinhos de área, de casa de família, fundo

de garage. Eram bailes da moda da época. Por falar nisso, a modo da época era minis-

saia, calça boca-de-sino, boné, tipo Roberto Carlos. Pulseira, tipo “jovem-guarda”: calça

branca ou jeans com camisa branca. Essa era a roupa da época. Dinheiro no bolso, ne-

nhum. Não tinha nada de dinheiro. Aquela dureza. Tanto é que tanto eu quanto o Zé

nunca fomos a um restaurante ou uma lanchonete. Nós não tínhamos dinheiro. Nossos

passeios eram assim... Bailinhos, visita à casa da família, à casa da tia Virgínia, na Vila

Carioca... Aí eu adorava, saía com o meu namorado, era muito bom. A reação do lado

da família do Zé foi um pouco diferente. A tia Madia foi muito sincera e, um dia, ela me

perguntou se eu ia namorar mesmo com o Jacaré. Porque, em caso positivo, eu tinha

que me preparar. Dizia ela que ele não era muito de trabalhar, gostava de bailes, adorava

beber... Se eu fosse casar com ele, eu tinha de saber como era ele. Quanto ao tio José

Guilherme, ele nunca foi assim de me falar alguma coisa, apenas disse pra mãe o se-

guinte: “Segure sua cabrita que o meu bode está solto”! (rindo muito). Mas eu fiquei

danada da vida com essa afirmação, porque de fato ele pegou pesado. Mas a tia Madia

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apenas me fez esse alerta. Mas a gente, quando quer, enfrenta. Porque foi exatamente

como ela disse, mas a gente superou isso.

William – E os primos, o que eles falavam?

Irene – Os primos não eram contra, afinal a gente namorava todos juntos, aquela pane-

linha, sabe? E aquilo era gostoso. Nos finais de semana, a gente reunia na casa da tia

Madia todos os da nossa idade, e ficávamos ali na rua conversando horas e horas... Era

muito bom, uma conversa gostosa, sem perigo de assalto, todos éramos amigos, e nin-

guém tinha malícias. Essa foi a nossa juventude, e as coisas correram dessa forma.

Antônio – Irene, parece que o casamento de vocês foi mais turbulento que o namo-

ro, não?!

Irene – Foi. O casamento foi o seguinte. Eu já tinha quinze anos e queria casar. Eu que-

ria ter minha casa; sonhava em ter a minha casa. Esse era mesmo um sonho meu. Acon-

teceu que, durante o carnaval, no mês de fevereiro, a minha menstruação atrasou. Só

que eu e o Zé, a gente “brincava”, né? Sentar na perninha... Eu tomei conhecimento de

que, por conta disso, podia-se engravidar. Não precisava ter relações sexuais completas.

Eu encuquei com aquilo. Como aquele era um mês de vinte e oito dias e minha mens-

truação era certinha e não atrasava, óbvio que nesse mês atípico ela atrasaria, como de

fato atrasou uns três ou quatro dias. Eu me apavorei e pensei que estivesse grávida. Fi-

quei desesperada. Como eu e o Zé nos comunicávamos através de bilhetes – o pombo-

correio era o Erasmo (rindo), porque ele trabalhava perto de casa e trazia os bilhetes do

Zé pra mim e levava minhas cartas -, eu fiz um bilhete pra Zé com o seguinte dizer:

“Graças a Deus, Zé, desceu”! Eu peguei aquele bilhete e coloquei no bolso de uma blu-

sinha vermelha que eu tinha. Dona Flora foi passar a roupa e (rindo muito) sentiu que

aquele bolso tinha alguma coisa de diferente... (rindo muito). Isso foi no sábado, e eu

estava namorando lá na casa do Zé, né? E ela encontrou aquele bilhete. Quando eu che-

guei de volta, lá pelas cinco horas da tarde, encontrei-a braba, braba, transtornada... “I-

rene, o que quer dizer isso aqui?”. Aí eu me apavorei e disse pra ela que aquilo não era

nada... “Nada o que, sua sem-vergonha! Tu vai casar!” Ora, era exatamente isso o que

eu queria, né? (ri muito), “Tu vai casar! Vamos juntar todo mundo pra marcar o dia do

casamento!” A minha preocupação não era nem com minha mãe, e sim com o meu pai.

Nossa! Eu senti demais. Eu sabia que ele iria sofrer. A mãe eu nem liguei muito, mas o

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pai... Ele trabalhava de hora extra aos sábados e vinha sempre com aquele buquezinho

de flor. Nesse dia, ele chegou lá pelas seis da tarde. A mãe já tinha ido lá à casa do tio

José com a Madia, né? Fez aquele bafafá, dizendo pra eu voltar logo pra casa por conta

da “sem-vergonhice”. Quando o pai chegou, eu estava sofrendo; como eu estava arre-

pendida! Eu sabia que ele ia ter uma decepção muito grande. Enquanto isso, já sabiam a

tia Enedina, a tia Virgínia e a Maria, que morava lá embaixo, no térreo... Ela era recém-

casada. A mãe já havia contado, e ficou no ar aquele clima pesado. Quando o pai che-

gou, ai meu Deus, aí eu sofri! Ele chegou com aquele botão de rosa e disse: “Olha, filha,

o que eu trouxe pra você!” E me deu também os docinhos, porque ele sempre me trazia

chocolates. E eu sofrendo com a decepção que ele teria ao saber do acontecido. A mãe

terminou contando pra ele; ele ficou triste. E me perguntou por que eu tinha feito isso...

Disse que eu tinha estragado a minha vida. Foi então feita uma reunião com os tios. Era

o Valdeci, o Elias, o tio Anísio – este pegava pesado, e me dá vontade de esganá-lo até

hoje! – tia Virgínia, a Maria. A, então, puseram-me no meu quarto, fizeram uma mesa

redonda pra eu contar o que fazia com o Zé. O que eu ia contar? Nunca que eu ia falar.

E o Zé junto. Eu apenas falava que a gente tinha brincado e só falava isso. Então, se

decidiu que o casamento seria realizado no dia 12 de junho, e nós estávamos mais ou

menos nos meados de abril. O Zé não gostou muito porque o apertaram muito, né? Foi

realmente uma situação bem desagradável. Marcou-se o casamento, e eu já tinha minhas

pecinhas de enxoval dentro de uma caixa de papelão. Todos os dias, eu olhava aquele

enxoval imaginando como eu iria arrumar meu quarto, usando aqueles “baby-dolls”,

nossa! Era muito bom. O Zé foi pego de surpresa e ficou meio assim... Porque a gente

estava só namorando e, de repente, ter de casar em quatro meses. Eu tive que parar de

estudar e expliquei pro meu diretor, Luís. Muito amigo, conversou comigo que se eu

fosse casar, tudo bem; mas que não parasse de estudar. Mas estava difícil, porque onde

eu ia morar ficava muito longe desse colégio. Marcado o casamento no prazo de feve-

reiro pra junho, no dia 12 de junho de 1971, uma decisão rápida e tudo muito corrido. E

há uma coisa que me magoou mais ainda. É que, a partir daquele momento, minha mãe

passou a me olhar de um modo diferente. Simplesmente ela me desprezou. Toda a mi-

nha vida eu a ajudei a fazer as coisas em casa e nem precisava ela me mandar fazer as

coisas. Ela, então, passou a dizer que, por conta de minha vagabundice, a partir daquele

momento ela me pagaria para eu fazer os serviços da casa, a fim de comprar as minhas

coisas do casamento. Aquilo pegou pesado, e eu engoli a seco. No dia do meu casamen-

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to, eu estava me arrumando no quarto, onde tinha um espelho bem grande. Eu estava

toda arrumada e meu pai chegou, ficou atrás de mim, muito triste, e chorou. Eu tive que

me arrumar sozinha, e minha mãe não me ajudou em nada. Mas eu estava tão feliz, por-

que a coisa que eu mais queria era me casar. E eu me realizei mesmo, vendo a possibili-

dade de arrumar a minha casa com o maior prazer, o quarto da noiva... Aquela cena do

pai me deixou triste, porque eu sabia que ele estava sofrendo. Ele não queria aquilo para

mim, e sim que eu estudasse, fosse alguém na vida – conforme ele mesmo dizia – sem-

pre. Que ele me dava todas as oportunidades e eu iria jogar fora e estragar a minha vida.

Outra coisa que me marcou foi quando eu fui tomar o banho para a minha lua-de-mel.

Meu pai ficava só me olhando e não dizia nada. Naquele momento, antes do meu banho,

ele apenas chegou, me deu um abraço e saiu. Eu fui para a lua-de-mel, e era a pé. Eu e o

noivo na frente, tia Edite, Maria – e eu não lembro se tia Madia estava junto -, só sei que

tinha mais uma mulher. Nós íamos a pé, e elas atrás. Íamos para a nossa casa, onde ha-

veria a lua-de-mel. Não tinha carro, não tinha táxi, era a pé. Não tínhamos botijão de

gás. A casa ficava ali perto da casa da tia Madia, na Rua Gomes Pinto. A gente pagava

aluguel por uma casa que era apenas quarto e cozinha. Era pintada de azul, os móveis

azuis, o rádio vermelho... Os primos deram presentes: liquidificador - dirigindo-se a

William: teu pai nos deu um relógio, faqueiro, etc. Presentes eu ganhei muito. E eu ar-

rumava meu quarto do modo que ficava realizada. Não sei se o Zé estava realizado; eu

sei que ele não estava realizado porque muitos dos sonhos dele foram podados ali. Eu,

como mulher, estava realizando os meus sonhos. Com relação à nossa lua-de-mel, vesti

a camisola do dia; toda satisfeita, esvaziamos a cama dos presentes – olha o sacrifício! –

, aí eu fui pro quarto me arrumar e o noivo ficou na cozinha. Afinal, nossa casa era

quarto e cozinha. Eu, então, falei: “Pode vir” (rindo muito!). Um detalhe: eu casei vir-

gem! Eu era virgem! Num desses dias, eu cheguei junto da Madia e disse que tinha ca-

sado virgem, eu e o Jacaré, a gente só brincava. Não tinha acontecido nada. Ela ainda

ficava olhando pra mim meio desconfiada. A minha noite de mel foi muito boa, o Zé foi

muito calmo. Nossa, nesse ponto o Zé foi dez. Eu é que era afoita. E ele dizia: “Calma!”

A gente levou um mês para ter um relacionamento completo. Nisso aí ele foi um mari-

dão mesmo. Foi companheiro, amoroso, namorado. Então valeu a pena.69

69 Nessa altura da entrevista, ela faz uma longa pausa e pergunta: “e agora”?...

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Antônio – Nós estamos muito atentos ao seu relato, Irene. Acho que ele fecha um

ciclo importante em sua vida, onde ficam evidentes as fortíssimas amarras da es-

trutura familiar, a falta de adequação aos padrões do tempo numa cidade como

São Paulo e no que concerne aos padrões afetivos e de relacionamento amoroso dos

jovens. E, de igual modo, a precariedade da vida de vocês, na maior e mais rica

cidade do Brasil, sem um táxi para conduzir vocês ao ninho de uma noite de lua-

de-mel, uma cozinha onde nem sequer havia um botijão de gás... Acho que esse seu

relato fecha um ciclo importante na sua história. Um período eloquente para se

resgatar a memória das vivências de uma geração da família e as condições em que

elas foram gestadas. E a coragem e raça de vocês dois.

Irene – Eu concordo, tio. Naquela época, a moça que não mais fosse virgem era taxada

de “sem-vergonha”, alguém que “não valia mais nada”. Essas eram as expressões de

que se fazia uso na época. Ela “não valia mais nada”, porque ela “se entregou” a um

homem. Esse, pelo menos, era o conceito de minha mãe. Um detalhe, apenas voltando

ao início do nosso namoro. O Zé, no início, era muito “sem-vergonhinha”. Às vezes, eu

dormia na casa dele. Numa mesma cama, dormíamos eu e a Ezenilda. E, muitas vezes,

de noite, ele vinha namorar, ele vinha “bulir” (rindo muito). Era o bode de Zé Gui-

lherme com a cabrita que estava ali. Quanto à Ezenilda, não sei se viu; mas o fato é que

ele vinha com aquela mãozinha boba, me pegando... E eu deixando... Mas era bom e,

olha, não me arrependo de nada, foi uma época muito gostosa.

William – Voltando a retomar o novo ciclo do pós-casamento, como é que foi esse

período para vocês? Um período tão sonhado por você!

Irene – Nesse período, o Zé trabalhava, eu não; parei de estudar. O que passou a acon-

tecer? Eu dormia até tarde, não tinha o que fazer; com a casa arrumada, aquilo foi fican-

do meio vazio pra mim. Dormir até nove, dez horas... Almoçar, às vezes nem almoçar,

porque ficava sozinha... Detalhe: no início, não tinha nem um botijão de gás e eu ia al-

moçar lá na casa da tia Madia. Nem faca tinha. A tia Madia me deu uma faquinha que

eu tenho até hoje. Uma faquinha pequena, de sobremesa. Essa era a faca da casa. Eu

afiava essa faquinha no cimento da entrada e fazia as compras fiadas na venda do seu

Ariston. Fazia uma compra e pagava no outro mês. O Zé chegava do serviço às sete ou

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sete e meia. Eu, como dona de casa – nessa época, já tínhamos comprado o botijão –,

preparava aquela jantinha caprichada... Não tínhamos televisão, só o rádio. A gente jan-

tava e ficava na mesa batendo um papo e ia dormir lá pelas oito e meia, nove horas da

noite. E foram assim os primeiros meses de nossa vida de casados. A partir daí, fomos

crescendo. Ele saiu da firma onde trabalhava para outra onde ganhava mais. Nessa épo-

ca, a Maria morava com os meus pais, e eu morava de aluguel nessa casa junto da tia

Madia. Resolvemos trocar as casas, porque a tia Madia podia tomar conta dos filhos da

Maria, e eu já passava a não mais pagar aluguel, não é? Então, já começava a sobrar o

dinheiro que era do aluguel. O Zé ainda trabalhou uns dois ou três anos e ele resolveu

montar uma oficina de costura, e foi aí quando eu comecei a trabalhar. Nessa altura, eu

já tinha engravidado. Depois do casamento, passei dois meses sem engravidar porque

nós fomos seguir aquela tabelinha; eu coloquei errado o ciclo menstrual ali e terminei

engravidando. Também terminei por perder a gravidez de seis meses, de uma menina

que iria ser chamada de Tânia. Eu já tinha o enxovalzinho encomendado. Eu perdi, e

nessa época a mãe teve que viajar para Pernambuco porque o vô Zé Jorge ficou grave-

mente doente. Ela viajou quando eu tinha abortado; quando ela voltou, eu já estava grá-

vida de novo. Ela ficou muito braba. “Sem-vergonha, grávida de novo? Tu não tem jei-

to, acabaste de perder uma menina e já está buchuda de novo?” Aquilo me deixou meio

apagada, meio sem jeito, porque eu não tinha muita experiência. O que acontecia é que

minha mãe tinha uma visão de gravidez diferente. Eu não sei se ela tinha vergonha...

Parece que ela tinha vergonha porque coincidia com o ditado popular que diz assim:

“trepou, tá grávida!” Passava essa impressão. Para se ter uma ideia, aquelas toalhinhas

higiênicas ela escondia, ela não gostava de mostrar. Quando a gente tinha relação e la-

vava aquela toalha, colocando-a no varal, todo mundo sabia que a gente tinha tido uma

relação sexual. E ela via aquilo ali, e eu observava que ela ficava danada da vida. Como

mãe, eu tinha perdido uma menina e, logo em seguida, eu engravidar? Eu entendo um

pouco a preocupação dela. Mas depois veio a Patrícia, muito branquinha, bonitinha, e

era a segunda filha. A mãe já viu com outros olhos, era a neta. Logo que nasceu, era

bem pretinha, parecia uma bonequinha. E eu ficava admirando assim a mãe, o modo

como ela me olhava. Algo assim que talvez passasse pela cabeça dela: “será que ela vai

mesmo saber criar?” Eu percebia esse detalhe, assim... Quando eu estava amamentando,

ela me olhava, sem comentar nada, ela não era de falar. Mas eu tinha comigo que ela

estava se perguntando se eu saberia criar a minha filha. E com certeza era isso. Mas eu

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já tinha consciência de que eu queria ser mãe, como eu disse; eu desejava casar, portan-

to, minimamente eu já estava preparada, não e? Nessa época, eu tinha dezoito anos e, de

casada, eu já tinha um ano e meio, porque tinha que contar com o aborto de seis meses

que eu tive. Mas a gravidez foi uma experiência muito boa, muito linda, eu sentia a Pa-

trícia bulir na barriga... Quando nasceu, que coisa gostosa sentir o filho da gente nos

braços. O parto foi normal, ela nasceu às nove horas da noite. O Fábio é que nasceu na

parte da tarde. Quando ela nasceu, meu pai é quem mais ficava encantado e dizia: ela é

linda, é uma bonequinha... Eu acho que ele lembrava os tempos em que eu fui bebê, não

era? Deve ter voltado aquela memória dele. Eu amamentei pouco tempo, uns quatro

meses só. E isso mesmo por falta de experiência. Porque a mãe dizia que o meu leite era

fraco e, mesmo eu tendo muito leite, o peito vazando leite, ela fazia com que eu substi-

tuísse o seio por mamadeira. E Patrícia se alimentava bem. Quando o Fábio nasceu, a

mãe continuava dizendo que o meu leite não amamentava. E eu me via obrigada a tirar

o leite do peito e jogar fora, de tanto leite que eu tinha... E muitas vezes eu tirava do

meu seio o leite e dava para as crianças de algumas mães a quem faltava leite. Leva para

elas, dizia eu.

Antônio – Irene, posteriormente a gente pode voltar a essa experiência sua da ma-

ternidade – que você julga como muito positiva em sua vida. Retomando um pouco

a vida do casal, Jacaré deixou a fábrica e veio trabalhar na confecção. Você come-

çou também a trabalhar nessa época?

Irene – Isso, ele saiu da fábrica, onde pediu as contas, e nós montamos a oficina de con-

fecção. Eu não tinha experiência de trabalhar com ele nesse ramo. Mas nós começamos

a trabalhar de sociedade com a mãe, posto que ela já tivesse muita experiência. Com-

pramos uma máquina, começamos, e eu aprendi a trabalhar no “overloac”. Ficamos

juntos com a mãe durante mais de um ano e pouco, e a partir daí passamos a trabalhar

por conta, só nós dois mesmos. Minha mãe começava no serviço às seis horas da manhã

e queria que a gente estivesse lá no batente. Batia na laje para nós acordarmos, não fazia

horário de pausa para almoço. Você sabe que trabalhar era com ela mesma. Não dava

mesmo, porque ela ficava bastante aborrecida. A gente já tinha condições de colocar

alguns funcionários. A mãe continuou sozinha na confecção dela. Nessa confecção, nós

passamos um bocado de anos, não me lembro bem quantos. Lembro apenas que, quando

vendemos as nossas máquinas foi com o intuito de ir para Paranaguá, em 1986. Por essa

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época, nós já tínhamos bastante máquinas. Nós trabalhávamos lá embaixo, no porão. E

minha mãe em cima, na casa dela. Nesse momento, nós já tínhamos nosso dinheiro,

tínhamos estabilizado a nossa vida própria, o que era muito bom, não é? Nós éramos

quem mandava em nosso dinheiro. Com a mãe era diferente.

William – Um detalhe, eu era bem pequeno e lembro que por essa época havia

muitas festas. Numa dessas, no Natal, apareceu um Papai Noel. Pergunto se ele era

você mesma. Porque, naquele momento, ficou em nós a maior dúvida: será mesmo

Papai Noel?

Irene – Ah, é, tem razão! Festeiros, todos nós fomos, não é, William? Foi muito bom.

Eu sempre gostei de ter muita gente em minha casa. Aprendi isso com o pai e a mãe.

Isso aí eu vou levar pro resto da minha vida e passo para os meus filhos. O Felipe, meu

neto, sempre comenta para a gente fazer festa... É sinal de que está havendo continuida-

de, não é? Naquela festa que você comentou, surgiu a ideia de nos vestir de Papai Noel,

compramos uns presentinhos bem baratinhos... Tinha muitas crianças, todos vocês eram

muito crianças! E o Zé foi o Papai Noel.

William – Vamos falar do Fábio. Em que ano ele veio e como foi essa sua segunda

gravidez?

Irene – O Fábio foi programado. A Patrícia tinha seis anos, e ele veio em 1976. A gente

não queria que houvesse uma diferença de idade muito alongada. O Fábio veio de oito

meses, e eu, mesmo grávida continuei trabalhando. Quando senti as dores do parto, as

contrações, eu estava na máquina. Fui levada para a maternidade e lá fiquei por mais de

uma hora. O médico disse que não era a hora e me mandou para casa. Voltei e retomei o

trabalho. No outro dia, o Fábio nasceu. Nossa, muito bonitinho; foi aquela alegria, por-

que se tratava de um menino, e nós já tínhamos a Patrícia. Entã, completou, ne? Ele

nasceu com problemas de respiração, foi posto na incubadora. Sendo de oito meses,

ainda não tinha completinho o pulmão dele, né? Com três dias, ele foi para casa. Aí foi

bom demais. Eu queria porque queria colocar ele no meu colo. Nós já tínhamos aquele

fusca verde, e ele veio nele, no fusca; o pai é quem foi buscá-lo na maternidade. Depois

de seis meses, apareceu nele aquele problema nos olhos, ficou de olho trocado (rindo

muito). Fábio foi dez como bebê, era lindo, gordinho. Você lembra, não é, tio? Uma

vez, eu o deixei no berço e fui trabalhar. Na volta, encontrei Fábio todo cagado; tinha

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feito cocô e se lambuzou todo de merda, na boca, no rosto, na cortina, no berço, olha, só

vendo... E você estava com a gente e viu esse espetáculo todo. De repente, o senhor

disse pra mim que aquilo era bom e importante para a saúde psíquica dele. E eu fiquei

me perguntando: como é que é bom tanta merda espalhada? (rindo muito). Era merda

pra todo lado, e não sei que cagada danada de grande foi aquela, pois ele espalhou mer-

da pra todo lado. Portanto, acho que esse momento de nossa vida foi muito bom porque

nós tínhamos autonomia e éramos donos de nossas vidas. Viajava quando queríamos,

Foi uma época em que viajamos para o Nordeste num sacrifício, viajando de fuscão, de

Brasília, de ônibus, de todo jeito. Mas foi muito bom.

William – Por que escolheram morar em Paranaguá?

Irene – Porque o pai e a mãe foram morar lá em 1979; creio eu e eu fiquei aqui com a

turma. E eu sentia muita falta deles. Acho que foi em 1982, porque, quando o senhor

defendeu sua tese de doutorado na USP, eles estavam aqui em São Paulo, e lembra que

fizemos uma festinha, com bolo? O pai quis ir pra lá porque ele tinha a família dele em

Paranaguá, e eu resolvi também ir com o Zé tentar a vida lá. O Zé teve a oportunidade

do Branco oferecer a padaria dele para nós. Mas, justamente naquela semana que ele

nos ofereceu a padaria, nós havíamos comprado um sobradinho na Vila Formosa, bem

perto da casa do Erasmo. Era pra mim a coisa mais linda. Só tive tempo de ir lá, lavá-lo

e limpá-lo. Quando a gente já estava para nos mudar, o Branco ligou oferecendo a pada-

ria. Foi uma coisa que aconteceu assim de modo muito rápido. Nós vendemos em pouco

tempo as máquinas, o nosso sobradinho para dar o dinheiro de entrada no negócio da

padaria. Foi assim que nós decidimos mudar, porque gostaria de morar com os meus

pais, que tinham ido pra lá. Eu sentia muita falta deles e do Edson, que já tinha ido em-

bora com eles. E deu certo, não é? O Edson ficou como sócio, foi muito bom, a gente

vendia muito pão naquela época. Ganhamos muito dinheiro e até fomos a um congresso

de padeiros em Natal, naquela época. Ficamos dez dias num hotel, em Natal, chamado

Hotel Jacumã, comendo carne seca, dentro de uma piscina, água batendo na bunda...

Isso era vida de marajá, né? Mas a nossa vida em Paranaguá não foi fácil. Não vou dizer

que fui cem por cento feliz lá, não! Não fui. Porque a vida de panificador é só trabalho:

levantar cedo, trabalhar o dia inteiro... Mas eu sou muito grata porque com a padaria nós

formamos o Fábio, a Patrícia... Não foi uma luta em vão, né? Temos hoje um prédio

nosso, que é fruto desse nosso trabalho, aprendi a conhecer muitas pessoas, sou muito

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benquista na cidade de Paranaguá, onde temos muitos contatos. O serviço é dificultoso,

mas tem também suas vantagens. E agora nós estamos pensando parar com a padaria; se

Deus quiser, vamos parar; vender, para com isso vivermos mais com a nossa família.

Para poder passear, estar juntos na comemoração da festa de um parente. E a gente não

pode curtir isso porque tem que trabalhar. Agora mesmo, a gente vindo para cá, a Patrí-

cia teve que ficar no nosso lugar; e, num feriado como este, era para ela estar descan-

sando. Mas a padaria prende e exige que toda a família trabalhe. Queira ou não queira,

todo mundo se envolve. Até o Felipe também está ajudando. Hoje, trouxe para o Willi-

am o pão “bundinha” da nossa padaria. O meu sonho em termos de uma padaria era ter

algo assim igual às de São Paulo. As de lá são mais simples, e as daqui são lindas. Sem-

pre pensei montar uma padaria bem bonita, moderna; não deu, e estou encerrando mi-

nha carreira por aqui.

Antônio – Irene, com que idade Patrícia e Fábio chegaram a Paranaguá?

Irene – A Patrícia tinha algo assim como treze anos e o Fábio tinha três anos a menos.

Eles sofreram com a mudança, porque lá é bem diferente no modo de vida; as pessoas

falam bem diferente e, até que eles formassem outras amizades, eles sofreram. Eles t i-

nham muita saudade daqui. Patrícia teve um namoro aqui quase igual ao meu. Como

você vê, a história se repete, não é? (rindo). Ela conheceu o Elói, que é um capixaba, de

uma família muito grande e numerosa, que mora em Paranaguá e em Matinhos há muito

tempo. Ela começou a namorar o Elói. Ele se apresentava como um executivo, e aquilo

chamou a atenção dela. Ela começou o namoro com ele aos quinze anos e logo engravi-

dou; e aí eu repeti a mesma história que fizeram comigo. Eu disse pra ela que ela tinha

de casar. Incrível, né? Eu não sei se agi bem ou mal, porque o que hoje eu tenho são os

meus netos: o Tiago e o Felipe. Eu acho que eu interrompi a vida dela, pois ela ia muito

bem no estudo. E é interessante que nós soubemos também através de um bilhete que

ela escreveu e caiu na casa da tia Madia. Num dia de domingo, a gente estava lá almo-

çando, e eu peguei esse papel e não imaginava nada do que fosse e, nele, ela dizia que

estava grávida. Ela dizia pra mim que estava com dores nos rins e eu nunca que imagi-

nava que Patrícia estivesse grávida. Eu, com minha experiência, não imaginava isso.

Porque ela sempre foi magrinha e me dizia que estava com dores nas costas, não sabia

se era nos rins. Eu, então, disse pra ela que devíamos passar no médico. Fomos ao mé-

dico, e ela entrou sozinha, e aí o médico falou pra ela que ela estava grávida. Mas eu

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notei que, assim que o médico olhou pra mim, olhou pra ela também. Eu fiquei cismada

e perguntei: “Está tudo bem, Patrícia”? Ela disse que sim e que o médico tinha pedido

uns exames. Nesse negócio de exames foi quando nós fomos almoçar na tia, e ela levou

esse bilhete, dizendo pro Elói que estava grávida. E a mãe estava ao meu lado na hora

que eu li o bilhete. Eu, então, disse pra ela: “É mãe, a história se repetiu”. Ela disse:

“Repetiu o quê?” Eu contei, então, que a Patrícia estava grávida. Ah, ela mudou... Tan-

to que, a partir daí ela desprezou a Patrícia e ficou muito revoltada. Eu cheguei mesmo a

discutir, dizendo-lhe que ela não podia agir daquela forma, desprezando a Patrícia. Eu

falei pra ela que a Patrícia era minha filha.

Antônio – Se eu entendo bem, você reagiu igual a Flora fez com você, obrigando

Patrícia a casar, apenas nisso; mas não desenvolveu um sentimento que ela teve

com relação a você, de desprezo, não?

Irene – Exatamente. Quando eu soube, logo perguntei para a Patrícia se ela amava o

Elói e queria casar. Ela disse que sim, então eu confirmei: “Você vai casar”. Caso ela

dissesse que não, eu não iria forçá-la a casar com ele. Isso foi um choque muito grande

e desagradável. O Zé, igualmente a mim, ficou triste. Quando nós decidimos que ela iria

casar, eu disse pra ela que ela mesma iria em São Paulo informar a turma que estava

grávida e iria casar; porque eu mesma não iria de jeito nenhum. Você aproveita e com-

pra seu enxoval, disse eu. O cara não tinha nada, nem emprego, nada. Só tinha mentira.

Por causa disso, a gente não tinha com ele uma relação muito boa, e fiquei decepciona-

da com ela por esse lado. Eu digo que o simples fato de ela ter engravidado, isso não

representava o fim do mundo. Mas o problema era com quem ela iria se casar. Eu já

tinha visto que o cara era um mentiroso. Uma vez, em nossa casa, eu o fiz sentar no sofá

e passei pra ele como era a nossa família. Que não era de mentira, ao contrário dele, que

era mentiroso. Ele engravidou Patrícia e não tinha como assumir a responsabilidade

dele, porque nem emprego tinha. Eu disse pra ele nessa ocasião que o cara que mente

também mata e rouba, porque ele não tem vergonha nem tem caráter. Ele dizia que não,

não era assim... Aquele cara tem uma lábia que só vendo! Eu disse pro Zé que a Patrícia

ia casar, mas que iria se dar mal. Eu e o Zé viemos aqui pra São Paulo e compramos

todo o enxoval dela; naquela época, a gente estava em condições razoáveis, né? Com-

pramos os móveis, a despeito do Elói dizer que tinha uma casa de seis peças [cômodos],

toda montada e que morava na Avenida Costeira. Um dia, de tarde, eu decidi ir ver onde

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era essa casa. Meu Deus, lá chegando vi que a casa era um barraco... Foi nessa oportu-

nidade que eu o chamei de mentiroso. Eu perguntei, então, para a Patrícia se a casa em

que ela iria morar era naquele barraco. Se aquilo ali eram as seis peças que o Elói dizia

ser. Eu disse que aquilo era um barraco. Ela, então, alegava que ele jurava que iria sair

um dinheiro do porto... Eu voltei a insistir que aquela conversa era fiada, porque de fato

ele não tinha era nada. Fizemos o casamento, tudo direitinho. A casa dela ficou boniti-

nha... Uma casinha que ele construiu através de um empréstimo feito ao pai e à mãe. A

casa ficou bonitinha. Como ele é muito grande, a cama que eu comprei não acomodava

ele direito, e os pés ficavam fora da cama, sem caber direito (rindo). Eu falei: “Patrícia,

acho que teu marido vai ficar com os pés fora da cama” (rindo). Sei que casaram. A

nossa família de São Paulo todinha foi lá pro casamento... Foi uma festa boa, não foi,

William? Mas eu sentia que Patrícia não estava feliz. Veio o Tiago, um menino muito

saudável até hoje. Um menino lindo. Tanto eu quanto o Zé nos apegamos muito a ele,

porque ser avô é bom demais... O amor da gente com os netos é diferente; não sei se é

porque a gente tem mais tempo, mas acho diferente. Foi passando o tempo. O Elói nun-

ca trabalhou. Depois dessa casa em que eles moraram, eles foram morar lá no barraqui-

nho da mãe, lá onde ela tinha a lojinha, até porque ali eles não pagavam aluguel. E a

situação era a mesma, ele não arranjava nada, não mudava em nada, e eu e o Zé ajudan-

do em tudo, roupa, comida, escola... Ela ficou casada com ele quatorze anos, até que um

dia ela se decidiu separar. Eu nunca disse pra ela largar dele, apesar de eu desejar muito

isso. Mas achava que seria ela quem devia decidir, como de fato aconteceu. O que acon-

tece é que a gente chegava lá e não a via feliz, vivia deprimida. Ora, ela era uma menina

que estudava e teve que parar de estudar. Depois do primeiro filho, engravida de novo,

como foi o caso do Felipe. Com dois filhos para criar, sem viajar, sem passear... Depen-

dia do que eu e o Zé levássemos pra ela: alimentação, roupa... Só tinha um salário que a

mãe dava pra ela pela ajuda que ela dava na lojinha. Diante disso, ela decidiu separar do

Elói. Quando ela me confidenciou que iria separar dele, eu perguntei se ela estava segu-

ra do que estava fazendo. Ela disse que sim e ponto final. Perguntou se poderia morar

comigo. Nessa época, a gente estava construindo um primeiro andar em cima da padari-

a, para onde fomos, saindo de uma casinha que a gente tinha nos fundos. Fábio já mora-

va ali, antes da gente terminar. Ciente de que era isso o que ela queria, nós fomos buscar

a mudança dela. Foi uma decisão em que ela acertou na hora exata. Logo que ela sepa-

rou, voltou a estudar, terminou a faculdade dela. Quando ela nos disse de sua decisão de

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estudar, nós apoiamos, dizendo que achávamos que naqueles quatorze anos passados ela

não tinha aproveitado nada. Fora os dois filhos, que são uma bênção e que fazem a ale-

gria de nossa vida de avós, o resto foi regresso. Ela se formou, hoje trabalha e ajuda o

Fábio. O sonho da vida dela, que foi realizado, também foi o nosso sonho. Hoje, eu vejo

Patrícia de outra forma: feliz, aberta... A Patrícia não sorria mais, ela vivia trancada,

deprimida, ela não sabia mais sorrir. Era aquele sorriso preso, que não saía pra fora.

Hoje, ela tem outra visão e está muito ajudando o Fábio. Quanto ao neto mais velho,

filho da Patrícia, o Tiago, este nós tivemos uns probleminhas com ele. Quando a Patrí-

cia se separou, e até hoje, ele acha que ela é a culpada disso, dizendo que ela não segu-

rou o casamento, que mandou o pai dele ir embora etc. Como é que ele se vingava? Ele

queria ter o tênis mais caro, as roupas todas de marca... E é obvio que a gente não podia

fazer todos os caprichos dele. Era mesmo impossível. Aí o Zé achou por bem mandá-lo

morar com o pai dele. Ele ficou com o pai, e a Patrícia com o Felipe, lá em casa. Mas,

hoje, ele já está melhorando o relacionamento com a mãe e a gente percebe que está

havendo uma mudança. Mas, no início, ele ficou bem revoltado. Eu dei uma boa surra

nele e não me arrependo (ri). Por quê? A gente fala com um diabinho desses... “Não dá,

Tiago, não dá pra comprar... Você espere, pois você já tem um tênis novo”... E ele insis-

tindo. E você sabe qual era uma coisa que me irritava? É que eu trabalho na padaria e,

como sou eu que cozinho, eu fazia tudo correndo: macarrão, arroz, feijão, essas coisas.

Ele chegava do colégio – e já pra me atingir -, levantava a tampa da panela e dizia: “Só

tem essa merda pra comer? Vó, você só sabe fazer isso? Vó, você está manchando a

minha roupa quando a lava no tanque!”... Eu respondi que ele parasse com aquilo e,

caso não quisesse comer, ele ia ficar com fome. Um dia desses, num bate-boca comigo,

ele falou mais alto e mais veemente do que falava no normal; falou que eu não sabia

fazer nada, só sabia fazer aquela merda de comida... Aí eu me irritei. Peguei um cabo de

vassoura e dei um pé de carreira atrás dele e terminamos correndo pelo corredor que

leva para a produção da padaria. Aí eu bati com gosto. Dei pelo que ele fazia com a

mãe, pelas palavras com que ele se referia a minhas comidas... Hoje, ele me obedece.

Olha, valeu a pena. Mas dei com vontade. Até que o meu padeiro pediu para que eu

parasse. Afinal, tudo tem limites. A gente explica porque não pode comprar isso e aqui-

lo , no entanto, ele partia prá esse lado? Tome cacetadas! Eu acho que foi educativo,

porque hoje eu brinco com ele, bato na perna dele... Ele é muito lindo. Eu pergunto: “E

aí, cara, tá tudo bem? O que é que você tem pra me contar” E ele: “Pô, vó, o que é que

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você quer saber?”, ele fala assim... Eu digo: “Conta alguma coisa...” Ele diz que não

está a fim de falar nada. “Tá bom”, digo eu! Hoje, ele chega na padaria, ele vai se abrin-

do, vai conversando. Eu sei que hoje posso lidar com ele e ele aprendeu a me obedecer.

William – E a relação com a sua família, lá em Paranaguá, seu pai, sua mãe? Eu

lembro que Seu Zeca gostava de ir de bicicleta até a padaria e aí ficava fazendo o

jogo do bicho. Batia um papo, especialmente com o tio Severino quando ele esteve

lá. Gostaria que você comentasse um pouco das relações com o Duda, a Naninha, o

Branco...

Irene – O pai e a mãe foram as minhas pérolas. É até difícil falar deles, porque eles fo-

ram tudo de bom. Eles representam experiência, amor, responsabilidade, educação, ho-

nestidade, esforço, exemplo e trabalho. Eles foram tudo isso. O pai sempre foi o ami-

gão. Nas horas difíceis, ele sempre tinha aquela palavra amiga. Sabia falar, sabia cha-

mar a atenção, não se alterava, não gritava nem falava palavrão. E, olhando assim, ele

foi um exemplo de homem para toda a família. Do meu ponto de vista, eu acho que ele

foi o pai de todos os que estão aqui. É o que eu creio e vejo do meu lado. Meu pai apoi-

ou e aconchegou todos em casa. O que ele tinha dividia e nunca foi mesquinho, escon-

dendo algo ou mesmo proibindo minha mãe de agir desse ou daquele modo, não! Ao

contrário, ele trazia do bom e do melhor que ele podia. Eu lembro mesmo dessa passa-

gem do pai pela padaria, como você acenou. Ele falava pra mim no sentido de eu com-

prar uma bicicleta, porque ele adorava fazer umas caminhadas comigo. Ele era meu

companheiro. E até lembrava que eu estava meio gordinha e que necessitava dar umas

pedaladas por aí para emagrecer... (rindo). Eu terminei comprando essa bicicleta. Mas,

tio, ele inventou de ir até o sítio do Branco, que era muito longe. E eu estava sem trei-

namento e experiência de pedalar... Lá pelas tantas, eu disse pra ele que não estava a-

guentando mais e que a bunda estava doendo muito (rindo muito). E ele respondia que

não era nada e que logo chegaríamos. Esse “chegar logo” dele equivalia a uma hora de

pedalada. Ele tinha dessas travessuras. Com relação ao jogo, ele chegava dizendo:

“Vamos ganhar hoje na Loteria! Risca aí teu joguinho que eu vou pagar”. Eu dizia pra

ele entrar com o pé direito na lotérica, e ele logo rebatia dizendo que ia entrar com os

dois pés. Ia entrar num pulo só (rindo muito). Outra coisa que ele gostava de fazer era

comer pão escondido, porque ele era diabético. Então, de vez em quando ele sumia... E

chegava em casa limpando a boca. Mas deixa que tinha farofa até o canto da boca (ri).

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E a gente dizia: “Pai, o que é que você está comendo?” E a boca dele toda melada de

farofa... Ele costumava ir lá para minha casa, pegava a laranja e dividia em quatro par-

tes, igual o jeito que tio Severino também fazia. Aí ele sujava pia, sujava chão, se sujava

todo e saia batendo as mãos. Comia laranja e banana, tudo isso escondido. No almoço –

e ele gostava muito de almoçar lá em casa –, quando comia uma macarronada, ele suja-

va o nariz, a boca e o queixo. Ficava feliz da vida quando a gente chamava a atenção

dele que a cara estava toda cheia de molho. Ele pegava um garfo e fazia dele guardana-

po, esfregando de um canto a outro da boca. Nessas horas minha mãe falava que ele era

sem jeito e parecia nunca ter visto comida na vida. Quanto a dona Flora, esta foi uma

guerreira. A mãe chegava assim de mansinho e me perguntava se eu queria dinheiro.

Muitas vezes eu estava precisando, mas respondia que não precisava. E ela insistia para

que eu pegasse trezentos, quinhentos reais. Eu sempre resistia, dizendo que tudo estava

certinho comigo. Mas ela não se contentava. Ela ganhava o dinheirinho dela com as

costuras. Uma bainha de vestido custava apenas um real. Mas você chegava lá no final

do dia e tinha trinta ou quarenta reparos terminados. Ela também fazia venda de roupas

novas, além de consertos. Certa vez, eu presenciei uma cena lá na lojinha dela. Chegou

uma freguesa com uma sacola e perguntou se ela reformaria aquele conjunto de peças.

Ela abriu a sacola, olhou as roupas, tirou as medidas e despachou a cliente. Quando essa

freguesa saiu, ela pegou a sacola com as roupas e disse assim: “Essa gota serena”... E

zupt... Jogou a sacola lá no canto da parede. Apesar de eu ter dito que não entendia a-

quela reação dela depois de ter atendido tão bem a freguesa, ela disse, “Aquela puta de

seiscentos diabos me traz uma sacola de roupa dessa qualidade; deixa essa porcaria aí...”

Alguns dias depois, eu voltei lá e perguntei pelas roupas da freguesa. Ele me respondeu

que já tinha feito o serviço, e ela já tinha ido embora. Era assim que ela agia para em-

bolsar o dinheiro dela. Mas a mãe era mãe mesmo. Nunca faltava nada. Lembro muito

bem que aqui em São Paulo, às vezes, o tio Anísio não tinha uma moeda para ir traba-

lhar. Ele e todos os demais estavam duros. Nessas horas, ela dizia: “Espera aí um pouco

que eu vou ver o que tenho”. Mas ela sempre tinha as economias dela. Ela dizia que o

dinheiro dela era abençoado. E como rendia! Quando o pai faleceu, depois de ter dado

entrada no INSS, ela foi receber os meses da pensão dele e, junto, o décimo terceiro. Ela

queria que com esse dinheiro eu desse entrada para comprar um carro pra mim, porque

naquele momento nós estávamos sem carro. Eu me recusei a aceitar, dizendo que ela é

que tinha direito a ter aquele dinheiro, e eu não queria de modo algum. Ela insistiu para

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eu ficar ao menos com trezentos reais, o que também eu não aceitei. Eu sentia nessas

iniciativas dela muito amor, dizendo sempre que de modo algum aquilo iria fazer falta a

ela... Ela ajudava todo mundo. Quando o pai ficou doente, tudo ficou difícil para nós.

Veio um câncer e judiou muito dele. Tanto eu quanto o Edson tínhamos que correr a

qualquer hora para Curitiba, atendendo chamados dele. Ele dizia que nós éramos os

anjos da guarda dele. Eu falei mesmo pra ele que, se eu pudesse dar uma parte do meu

corpo para ele melhorar, eu ia dividir. Mas, é o que Deus quer, não é?! Nós nada pode-

mos fazer. Mas o pai foi exemplo de alegria. Lembro aquelas viagens que a gente fazia

pro Nordeste, esses momentos eram maravilhosos. Aquelas brincadeiras dele, com uma

batata escondida, e quando se afirmava qualquer coisa ele mostrava aquela batata, di-

zendo: “Na batata!”, ou “Que pena!” quando se tratava de uma reclamação qualquer...

Na viagem, chegando em Minas, ele comprava aquelas barras de queijo, afinal era aque-

la fartura. A faca dele cortar o pão e colocar aquelas lascas de queijo eram os quatro

dedos da mão dele... (rindo). Fazia aqueles sanduíches e depois entregava um por um a

todos nós. Mas ele fazia aquilo com tanto humor que a gente comia com mais prazer

ainda aquele pão com queijo preparado por ele. A gente levava frango com farinha –

que piquenique, aquele! –, e ele, muito “delicadamente”, metia mão no saco de farofa

e... “zupt”, levava à boca aquele bom bocado de frango cheiroso. Óbvio que a mãe pe-

gava no pé dele e, às vezes, pegava pesado, porque ele era meio extravagante. Lembro

que uma vez ele resolveu pintar a casa e comprou um garrafão de vinho São Roque, de

cinco litros. Ah, aqueles garrafões de vinho dele deram em muita confusão com a mãe.

Tomou uns tantos goles e, na hora de misturar a tinta para aplicar na parede, ficou aque-

la coisa horrorosa. Minha mãe ficou braba, dizendo que a parede tinha ficado igual à cor

de burro quando foge (rindo muito). Aí ela dizia: “Tu já tás, não é, Zeca, tu já tás en-

chendo o rabo de vinho, não é?!” E ele respondia: “Nada, velha, é só um aperitivo”! É

claro que os dois brigavam às vezes, mas se amavam muito. No final, depois da morte

dele, é que me dei conta como a mãe amava o pai. Ela sentiu demais. Quando ela prepa-

rava a comida, colocava o prato dele na mesa e conversava com ele. Eu não sabia, mas

as vizinhas dela é que me contaram isso. Chamava o pai para a mesa, dizendo que o

almoço ou o jantar já estava pronto. Dizia frequentemente que gostaria de ter “ido” com

o Zeca. Foi aí que a gente viu que aquele amor era verdadeiro, especialmente depois de

tanta luta que vivenciaram. Foi um casamento que durou cinquenta e dois anos. Foi um

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casamento muito lindo. Olhando o exemplo deles é que nós estamos seguindo no nosso

casamento. Na tolerância que aprendemos com os dois.

Antônio – Durante esses anos de Paranaguá, vocês eram visitados pelos parentes

de São Paulo, não? Sua vó Verônica também passou uma temporada lá, com Flora,

não? Eu soube que foram tempos difíceis. É verdade?

Irene – Foi difícil, mas foi gostoso. Foi muito bom, porque a vó era aquela bonequinha

cheirosa, né? Com a vó a gente curtiu muito. Logo no início da ida dela, ela era normal,

não tinha ainda aquele problema do esquecimento dela. Ela fazia a comida, era quem

preparava a comida dos padeiros, fazia a marmita... Ela era ativa mesmo. Ela tinha mui-

to dó do nosso trabalho, reclamando que nós trabalhávamos demais. Sempre nos est i-

mulava a economizar, a guardar para não faltar mais adiante. Tinha uma nítida preocu-

pação de ver a gente com um “pé de meia” para comprar a nossa casinha... Eram esses

os conselhos que ela nos dava. A vó ficou boa de saúde com a gente durante muitos

anos. Depois que ela ficou “caduquinha”, aí ficou mais gostoso porque a gente brincava

com ela. Eu brincava muito com ela. Ela podia estar muito malhumorada com as pesso-

as, mas logo que eu chegava ela dava aquele sorriso. Eu dizia: “Como vai, Dona Catôca

[era assim que o Severino a chamava!], tudo bem?” Ela dizia: “Tudo bem, minha fi-

lha! Deus te abençoe, minha filha!” Muitas vezes minha mãe chegava e falava com ela

de maneira seca. E ela ficava com a cara meio emburrada. Aí eu entrava na conversa e a

entretinha para tomar o leitinho dela, com a mão dela mesma. Ela segurava a canequi-

nha, dava aquela mexidinha no copo e tomava direitinho. Ficava toda satisfeita. Todo

mundo gostava da vó, é interessante. A vó foi muito especial, ela também foi uma guer-

reira. Com a minha vó eu aprendi a levantar cedo, me organizar na minha casa, organi-

zar o horário, incluindo a comida. Se a gente não organiza bem o horário da casa, o dia

fica todo atropelado. E a Dona “Catôca” era um exemplo dessa organização no dia-a-dia

da casa dela. Cedo ela levantava, já ia cuidar dos bichos, pegava o feijão e colocava de

molho... Hoje, em minha casa, eu sigo o exemplo dela. As minhas coisas rendem, a co-

mida sai rápido - como a vó fazia. Ela passou muito do exemplo de vida para a gente.

Eu posso dizer hoje que a vó foi aquela mulher perfeita, na preocupação dela em educar

os filhos, em não jogar nada fora, em ser uma boa administradora.

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Antônio – Lá em Paranaguá, estava também a família de Zeca, a mãe, Dona Joana,

a irmã, Naninha... Você lembra essas pessoas?

Irene – E como lembro! Vó Joana era a “vozona” que acolhia todos os netos junto dela.

Como eu e meus primos éramos todos da mesma faixa de idade – acho que nós éramos

oito –, ela juntava nós todos, dividia a comida com todos, bem certinha... Era muito

carinhosa, o tipo da vó que todo mundo deseja ter. Sem falar do amor que os filhos ti-

nham por ela. Quando ela morreu, lembro que foi mesmo um luto sério, uma tristeza

profunda. A vó Joana me propiciou uma alegria. Quando eu fui a Pernambuco, numa

dessas viagens eu tinha muita vontade de visitar e conhecer o lugar onde ela viveu, na

Paraíba, criando os filhos todos. E eu sabia que a vida dela tinha sido de muitas priva-

ções. O lugar lá se chamava Mocó. Tinha o Mocó de Baixo, do Meio e de Cima. Ela

morava no do Meio. Eu implorava ao pai para me levar lá nesse lugar, mas o pai nunca

me deu essa chance. Certa vez, lá em Pernambuco, eu pedi a tio Valdeci, que me levou

lá no Mocó do Meio, onde ela viveu. Fui com Rejane e tia Virgínia. Propus ao tio pagar

a gasolina, contanto que ele me proporcionasse essa alegria. O tio Valdeci estranhou

esse interesse meu em visitar o Mocó: “Que diabo tu vais fazer lá nesses lugares?” Eu

disse: “Tem muita importância, sim. São as minhas raízes, a história do lugar onde vi-

veu a minha vó”. Eu fui e realizei o meu sonho. Lá, é só morro e pedra. Quando eu che-

guei lá, encontrei uns parentes, uns primos meus, que moram no Mocó de Baixo. Fui lá

onde era a casa da vó e trouxe um pedaço do tijolo do fogão da vó, que eu ainda hoje

tenho lá em casa. Um tijolo de barro, grosso, meio tosco. Vi onde era o lugar do fogão-

zinho dela. Nessa viagem, eu tive o sentimento de eu mesma ter vivido aquela época, de

tanto ouvir o pai falar. De maneira que eu realizei esse sonho. Vi a árvore onde ela cos-

turava. Era um umbuzeiro muito antigo, meio torto. Os vizinhos de lá me informaram

que era debaixo daquele umbuzeiro que ela costurava. Tirei fotos do lugar e ainda hoje

tenho essas fotos. Tirei a foto da porteira da casa deles [dos filhos], que ainda hoje exis-

tem. A casinha não existe mais, já derrubaram tudo. Vi uma prima minha que ainda não

conhecia. Soube que ela faleceu no ano passado. Eu vivi a época do meu pai quando ele

e os irmãos eram criança, passando aquelas dificuldades que mal tinham o que comer.

Meu pai contava que a grande alegria deles era comer um pão doce, nos sábados. Eu

falava pra ele que aquilo me doía, vendo hoje tantos pães fabricados por nós, a mesma

comida que lhes faltava na mesa. O pai deles faleceu muito cedo, e toda a família pas-

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sou fome, mal comendo feijão e farinha, sem mistura, sem nada. Voltando a Paranaguá,

lembro que nossa convivência com os primos era muito gostosa. Eu sempre fui muito

festeira, e os Natais foram sempre lá na nossa casa. Era um momento em que nos reuní-

amos todos. Vizinhos, primos; era uma festança de mais de trinta pessoas. Na casa da

tia Naninha, tinha também muita festa: final de ano, almoços, aniversários etc. Naquela

época, todos eram vivos, a família era muito grande. Tio Duda já era uma festa. Ele

chegava e logo a gente começava a tirar um sarro dele. O Zé falava besteira comigo, e

ele me defendia: “Tenha vergonha, não fale isso com a bichinha!” (rindo muito). Olha,

tio, foi uma época de muita festa boa e que deixou muitas recordações. Tenho muitas

fotografias, que o senhor depois vai ver e ficará certo de quanta gente se reunia lá em

casa. Nesses momentos, a mãe e o pai se realizavam. A tia Naninha sempre participou

muito e me ajudava a preparar a mesa. Ela chegava sempre às quatro ou cinco horas da

tarde para ajudar na decoração. Igualmente, compareciam o Branco, o pai dele, tio João

Calado, as meninas do tio Duda... Cada um levava um pratinho e compunha aquela me-

sa completa de comida. Era muito amor um pelo outro, e eu lutei muito por isso, porque

eles não tinham o hábito de se juntar. Geralmente, curtiam mais a praia. Eu sou muito

família, gosto do abraço, do beijo, do olho no olho. Isso tudo aconchega a gente, não é?

Antônio – E a sua relação com seu irmão Edson em Paranaguá?

Irene – Não foi fácil não. Edson é uma pessoa difícil. Ele é muito mais materialista; eu

não sou. Eu não me apego a carro, a casa; o Edson, não. Então, a maioria de nossas dis-

cussões tem-se originado nisso. Quando do falecimento do meu pai e, logo depois, da

minha mãe, eu sugeri a ele que ficasse com a casa da mãe e a lojinha, onde existia um

terreno bem grande. Em troca, ficaria encerrada a sociedade nossa na padaria, que pas-

saria a me pertencer. Eu levei desvantagem, indo para a ponta da caneta. Eu propus ele

ter um tempo para pensar e, caso concordasse, estaria tudo certo. Ele pensou e depois

falou pra mim que eu ia perder. Mas eu disse que isso não era importante para mim.

Não estava preocupada nem com ganhos nem com perdas. O que eu queria mesmo eram

a separação e o fim da sociedade. Era uma coisa difícil, porém, com o acontecido da

morte do pai e da mãe, eu achei que este era o momento de resolver isso e foi resolvido

dessa maneira. Ele também é um lutador. E a esposa, Bernadete, essa, sim, é uma guer-

reira, e eu bato palmas para ela. Adoro-a. É uma mulher disposta, enfrenta aquela pada-

ria... Ela é mais corajosa do que eu. Eu sempre falo para ela que ela é uma guerreira.

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Têm uma casinha na praia; ele me disse que agora vai me dar uma cópia da chave para

eu ir à hora em que queira ir. Eu e ela nos damos muito bem. Nunca tivemos nenhum

problema. Ela é uma guerreira. A filha deles, a Priscila, minha sobrinha, também teve

uns probleminhas. Aprontou uma, que só vendo. Arranjou um pilantrinha, adolescente

também. O Edson não gostou dele, e foi uma briga feia. Ela saiu de casa e foi morar

num barraco, bem longe... Logo ela, que tinha uma vida de princesa e jogou tudo fora.

Mas, também, como a madrinha, ela tinha o sonho dela de casar e brigou por isso. Eles

montaram uma primeira padaria, que não deu certo. Montaram a segunda, e está indo

bem. Mas, hoje, o Edson está mais maneiro com o genro. Teve que se adaptar; se ela

quis assim, vai-se fazer o quê? Tem mais é que quebrar a cara e aprender. Eu muitas

vezes falei pra ele que não podia desprezar a Bernadete; ela é sua filha, dizia eu. É uma

fase dela e deverá passar, sei lá.

William – Irene, eu gostaria que você falasse do Severino; do tempo que ele passou

lá com vocês, trabalhando, morando com você, nos almoços, naquela cozinha atrás

da padaria...

Irene – Falar do Juquinha... (fica em silêncio e os olhos marejam). O Juquinha repre-

sentava assim o amor que tenho por todos vocês, meus tios. Ele tinha um carinho espe-

cial por mim (chora). Desde que eu era criança, ele me pôs esse apelido com que ele me

chamava: “Expressinho Satélite” (rindo). Chamava assim porque eu não parava em

momento algum. Eu era elétrica. Numa hora, eu estava na casa do tio Anísio, dali a

pouco me procuravam e eu já estava na casa da tia Madia, daqui a pouco eu já estava

empinando pipa... E essas coisas, essa atividade, ele estava vendo, não era? Eu, como

moleca que era, nem percebia que fazia isso. Por isso, ele me batizou de “Expressinho

Satélite”, porque não parava. Olha, o Juca nunca me respondeu nada, nunca foi agressi-

vo, nunca alterou o tom de voz comigo; toda a vida foi carinhoso. E eu, toda a vida,

amei demais a ele. Coitado, ele sempre foi um homem muito sofrido e eu ajudava muito

a ele e ajudava por amor. O que eu tinha eu dividia com ele. Naquela situação que ele

viveu com a Tida (Erotides), muitas vezes ele chegava lá em casa com aquela marmiti-

nha seca, apenas com arroz e feijão. Aquilo me cortava o coração. Como na minha casa

sempre sobrava da janta para o almoço, graças a Deus nunca me faltou, eu enchia a

marmita dele. Nessas frias e imensas avenidas de São Paulo, na hora do almoço, ele

parava e dizia que ia comer a comida de “Expressinho Satélite”. Eu perguntava a ele: “E

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a comida tava boa, Juca”, ao que ele respondia com a maior alegria: “Tava boa de-

mais!”. Na hora do lanche, eu caprichava e fazia com o maior carinho. Fritava um ovo

com um ou dois pães, e ele se fartava. Eu tinha muita pena do tio, porque ele não conse-

guia vencer e subir na vida. Logo ele, que era um homem trabalhador, honesto... Em

matéria de honestidade, então, eu acho que ninguém consegue ultrapassá-lo. Eu me

lembro dele fuçando naqueles carros velhos, sujos de graxa, e ele com aquela paciência.

Com aqueles dedos bem grossos que ele tinha, catava aqueles parafuzinhos bem peque-

nos, com os óculos levantados na cabeça, já que ele não enxergava de perto com os ócu-

los... Eu me impressionava como ele tinha paciência, limpando aquelas peças... E ele

trabalhava com tanto prazer naqueles carros velhos de nossa padaria. Quando ele arru-

mava – e normalmente dava certo, porque ele era um bom mecânico –, nossa! Ele ficava

numa alegria imensa. Ele dizia: “Graças a Deus deu certo!”. “Liga a chave aí, Expressi-

nho”... Há uma passagem que aconteceu com a gente, lá em Paranaguá, e que eu nunca

esqueço. Nós fomos fazer umas cobranças numa daquelas Kombi velhas, a diesel. Era

uma Kombi velha improvisada que tinha lá (rindo muito). E nós fomos fazer a cobran-

ça. A danada da Kombi velha danou-se prá fumaçar. E ele então dizia: “Expressinho,

ela vai pegar fogo!” (rindo muito). E não é que quase pegou fogo mesmo! No desespe-

ro, eu disse pra ele encostar-se à ciclovia. Ele parou, mas não interrompeu o espaço para

os ciclistas passarem; havia espaço suficiente. Nós estávamos naquele sufoco de correr

e pegar água, abrindo a tampa de trás e jogando água no motor quando acontece de pas-

sar uma senhora e reclamou, chamando a nossa atenção que aquilo ali era uma ciclovia.

Eu, praticamente, explodindo de raiva falei prá ela: “Vai tomar na tua ciclovia!” (rindo

muito). O Juca quase morreu de rir e dizia: “Expressinho, como é que pode? Você

mandou a mulher tomar na ciclovia dela!...” Que coisa, a gente numa agonia daquela, e

a mulher atrás de encher o nosso saco. Olha, nunca mais o Juca esqueceu aquilo. Con-

seguimos botar água na Kombi, que esfriou, e nós então partimos. Juca tinha essas his-

tórias cheias de graças. De manhã, ele me pedia para fazer o lanche dele. O lanche era

uns três pães picotadinhos, que ele colocava num prato e enchia de leite até as bordas do

prato. O leite era bem quente. Daqui a pouco, ele dizia, “Danou-se, Expressinho! Deu

um calor de repente!” (rindo muito). E a madeira para a padaria? Ele saía naquelas

Kombi velhas, que só de uma acelerada saía um chumaço de fumaça. Ele saía para bus-

car lenha. Quando acontecia de ele encontrar uma lenha boa, ele voltava todo entusias-

mado, dizendo a Jacaré: “Jucurés, achei filé mignon!” (rindo muito). Ele nos ajudou

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muito lá em Paranaguá. Mas depois ele se cansou e ficou estressado, dizendo a toda

hora: “Vou-me embora para São Paulo”. Como ele era nosso assalariado, nós juntamos

uns troquinhos e ele se mandou. Ele morava com a mãe. E a mãe e o pai tiveram umas

desavenças com ele. Porque ele era muito sistemático. Tinha hora de dormir: às oito

horas da noite. Ora, essa era a hora que meu pai queria ver o Jornal Nacional. Como ele

não conseguia dormir com o barulho, olha aí o tamanho da encrenca. Terminou voltan-

do para São Paulo, e ficou lá um vazio imenso, porque ele era de grande ajuda para nós.

Ele fazia falta, realmente. Pegava ventilador sujo da poeira danada que tem por lá e dei-

xava aquilo zerinho. Limpava, limpava e tinha que mostrar o serviço dele: “Vem ver se

tá bom! Olha, ficou brilhando!” O Juca foi, assim, um tio exemplar.

William – Em poucas palavras, do começo ao fim, como foi o Givaldo?

Irene – O Gi... Ele é o segundo Juca, ou o primeiro, sei lá... O Givaldo, quando ele saiu

do Paraná e veio morar com a mãe e o pai, naquele tempo eu era bem moleca e ele mo-

lecão, gostava de jogar futebol. A mãe me fazia ir ao campo das peladas para chamá-lo.

Lá ia eu chamar o Givaldo ou pra almoçar ou outra qualquer coisa. Isso era no tempo

em que moramos na Vila Carioca. Alguns anos depois, o Gi morou conosco na Vila

Ema, num quartinho ali ao lado da escada. Nessa época, ele pegou uma caxumba e teve

que ficar uns dias de repouso. Nessa época, ele já tinha começado a trabalhar e já ga-

nhava alguns trocados. O Givaldo era batalhador e não conseguia ficar parado. Ajudava

o pai e a mãe nuns troquinhos. O Givaldo foi, assim, um irmão para mim, e eu tinha um

carinho especial por ele. O Gi era assim... No começo eu tinha medo dele. Ele pegava

pesado. Não gostava de brincadeiras, não falava palavrões, ele era bem sério e a gente

ficava assim com certo receio. A gente tinha que saber o que falar, e ai de nós se falás-

semos uma brincadeira. Ele não ria, ficava sério. E com isso travava, não é? Com esse aí

não tem jeito, a gente dizia. Mas, o tempo foi passando e ele foi frequentando mais o

nosso meio e ficou sendo “sem-vergonhinha”. Ele foi se soltando, e eu disse: “Givaldo,

tu tás ficando tão safadinho, né?” A partir de certo tempo, a gente sempre saía junto:

restaurante, churrascaria, pizzaria, era uma festa. A Vila Ema, ali embaixo tornou-se o

nosso passeio, não é, William? Certa vez, saímos eu e o Zé, a Vera e o Erasmo, o Gi-

valdo e a Tereza. Fomos jantar fora e depois resolvemos parar num motel. Isso foi o

meu segundo motel, porque o primeiro foi aqui embaixo, na Vila Ema. Nessa noite, nós

procuramos um outro aqui na Sapopemba – o Jumbão. E Givaldo nunca tinha ido a um

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motel. O Erasmo era sem-vergonha e era ele quem nos levava para o “mau caminho”.

Ele era o “pilantrão”, e a gente o “inocentão”. “Vamos ao motel”? A Tereza ficou toda

envergonhada, o Gi também, afinal era a primeira vez. E entramos. No outro dia, na

saída (rindo muito) – a cama era redonda –, aí o Givaldo, muito do sem-vergonha, con-

tou que a Tereza deitou e pensou que ele ia ficar rodando do mesmo jeito que a cama

(rindo muito). Aí o Givaldo disse pro Zé: “Jacaré, você acredita que a Tereza pensou

que eu ia ficar com ela rodando na cama?!”. No mais, não vou falar exatamente como

ele falou. E ela toda envergonhada... “Mas Tereza, você queria rodar no pino, era?” Isso

foi uma alegria muito grande. O Gi era muito sério, depois é que ele ficou mais leve... O

Givaldo era exatamente como o Seu Zeca e Dona Flora: “Está precisando de alguma

coisa”? Ele nem precisava saber a resposta da gente. Simplesmente ele deixava o di-

nheiro embaixo de uma toalhinha, às vezes um cheque... Quando ele chegava a casa,

telefonava e perguntava a Jacaré se tinha encontrado alguma coisa em algum lugar. Ele

ajudou toda a família, seguindo assim o exemplo de seu Zeca e de Dona Flora. E está

aí... Ele foi embora e, ontem, nessa festa maravilhosa, todo mundo se juntou, mas falta-

va ele, né? O Givaldo é assim um exemplo de caráter, de superação...

Antônio – Irene, não ouvi você falar numa pessoa que nem sei se você lembra dele

ou se o viu alguma vez: o vô Zé Jorge.

Irene – Lembro. Recordo de uma vez que fomos ao Norte, por sinal, a primeira viagem

em que os dois (mãe e pai) fizeram de volta, após o casamento “fugido”. Na saída, a

mãe me fez mil recomendações. “Você não vai fazer bagunça na casa de seu avô porque

ele é brabo”. Eu já fiquei com medo. “Você não passe na frente dele sem pedir licença,

você não vai invadir a mesa...” Mas eram tantas recomendações que eu me disse: vou

encontrar uma fera, não é? Chegando lá, que nada! O vô tão amoroso! Ele dizia: “Venha

aqui”! E com aquele dedão do pé prendia e beliscava. A gente ficava presa nos dedos

dele. Na primeira vez, eu ficava assim com medo; não é medo, é respeito. Eu me lembro

dele sentado na cabeceira da mesa, toda arrumadinha, com os pratos que a vó colocava

para o almoço, com muito xerém. Foi aí que me ambientei e aprendi a comer a comida

do Norte. Parece que na outra geração eu já era nordestina. Afinal, eu nunca estranhei a

comida da vó. Aquele xerém gostoso... Dava-me a impressão de que ele ficava bem

satisfeito vendo aquela mesa posta e cheia de gente. Havia disciplina. Todos tinham que

sentar à mesa juntos, nada de comer sozinho. E a conversa dele... Eu observava o respei-

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to que todos os filhos tinham pelo vô. Numa dessas viagens, eu lembro que meu pai

levou um rádio de pilha para o vô, acho que foi na primeira vez. Nossa, ele ouvindo

aquelas cantorias... Ninguém ousava fazer bagunça nessas horas. Eu gostava daquilo e

fui me habituando a gostar dessas coisas do Nordeste, da comida principalmente. Na

segunda viagem, eu já estava mocinha, e o vô me vestia naquelas roupas, não sei se era

matulão... Era de couro. Gibão de couro. Eu ia pro mato com tio Valdeci pegar carneiro,

com tio Elias, com tio Manoel – muito especial também! Êta cabrinha bom! O vô fica-

va satisfeito em me ver vestida naquela roupa. Ele recomendava que eu levasse água no

cantil e me ajeitava toda, recomendando cuidados ao montar no cavalo. Pena que eu

tenha convivido com ele poucos dias dessas viagens. O tio sabe do carinho e do benque-

rer que o vô Zé Jorge tinha com o meu pai, especialmente depois da reaproximação dele

e da vó Verônica com a mãe e o pai. Logo o meu pai, que fez a primeira viagem mor-

rendo de medo de levar um tiro do velho... Eu acho isso interessante. Eu vejo neles – no

vô e na vó – um esteio para a família. Graças a eles a gente está aqui, hoje, dando se-

quência a esse modo de viver. Eu passei isso para os meus filhos e meus netos. E acho

que todos somos beneficiários dessa educação dos avós. O modo como eles dividiram

tudo aquilo e como administraram todas as pendências. Eles acolheram em Santa Luzia

todos os Guilhermes, todos os Torres, e é preciso que se diga que eram famílias enor-

mes.

Antônio e William – Irene, só para terminar, você gostaria de falar de alguma coi-

sa que não lhe foi perguntado? Ou mesmo alguma consideração final para esta

entrevista?

Irene – Gostaria de falar um pouco de tio Manoel. Ele se foi e deixou muita saudade,

principalmente alegria. A marca dele era a alegria. Não tinha tristeza com ele. Quando

ele pegava aqueles carneiros para matar, a gente ficava ali ao lado dele aprendendo, e eu

sentia que ele fazia aquilo com enorme prazer de nos servir e agradar. Tio Manoel dei-

xou também muita saudade. Sem-vergonha! Numa daquelas viagens ao Norte, ele fica-

va me vigiando se eu tinha feito “rampa” (expressão dele) com o Zé... Olhava minha

roupa e dizia: “Tu fosse no mato fazer rampa, não é?” (rindo muito). Então, tio Manoel

é mesmo muito especial, como todos vocês, meus tios, são muito importantes na minha

vida. Adoro vocês de paixão e agradeço a Deus por vocês existirem. Vocês são exem-

plos mesmo de família, de luta. A gente venceu graças ao exemplo de vocês. Quanto às

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consideração finais, eu gostaria de lhe agradecer por esse seu trabalho lindo que está

fazendo. Meus netos e meus bisnetos vão ler esse livro e ver essas imagens. O que acon-

tece é que nós, muitas vezes, nessa loucura da vida, não contamos nossa história para

eles. E é uma história bonita. O Felipe, meu neto mais novo, de vez em quando pergun-

ta, e ele se interessa. Mas a gente nem pensa em contar nossa história para eles. E esse

trabalho registra toda a nossa vida, toda a nossa árvore familiar, cujos frutos estão aí. E

espero que todos aqueles que vão ler o livro e ver as imagens no futuro, que serão nos-

sos netos e bisnetos, deem continuidade a essa união de família e que isso não acabe,

tendo a família como exemplo. Gostaria de agradecer e dizer meu muito obrigada. Ali-

ás, voltando um pouquinho no ritmo da entrevista, gostaria de lembrar a Edilnete. Eu

tenho muitas saudades da Edil (emociona-se). A Edil, tio Antônio, representa para mim

a festa de Natal. E sabe por que o Natal? Eu a vejo, hoje ainda, linda do jeito que ela

era. Com a Edil, eu aprendi a me vestir. Eu observava como ela se vestia e achava lindo,

especialmente com aqueles detalhes dela; simples, sem luxo, mas onde tudo combinava.

Uma saia com um brinco e com uma pulseira. Ela era uma mulher muito bonita. E o

Natal, todo Natal, pode ter certeza, eu lembro a Edil. Dela, eu lembro a festa, a organi-

zação, o capricho que ela tinha em embalar aqueles presentes. Na primeira vez que nós

fomos lá pelo fim do ano, o Fábio e a Patrícia eram pequenos. Eu lembro uma decora-

ção que vocês fizeram com uma cesta no meio da sala, composta de três peneiras sobre-

postas. É tão marcante que nem Patrícia nem o Fábio esquecem. Então, a Edil é tão es-

pecial quanto o Natal. Onde a Edil estiver, Jesus esteja com ela, porque ela nos deixou a

imagem da alegria. Ela nos deixou o bom gosto na decoração de pratos, o sabor da

combinação entre o doce e o salgado, que eu não sabia, e até mesmo o jeito dela de se-

gurar os copos. A Edil não é realmente especial? Uma mulher fina, sem ser afetada, e

muito natural. E eu observava tudo isso na Edil e aprendi muito com ela. Posso dizer

que ela faz parte de nossa vida, da nossa família. Ela foi tudo isso para mim. Que no

futuro todos tenham nas mãos esse livro, e com muito carinho, para que o leiam e pas-

sem adiante essa memória familiar. Não adquiram apenas para colocar na prateleira. Aí,

afinal, está a nossa vida. Para encerrar com chave de ouro, deixe-me falar um pouqui-

nho de você também. Olha tio, o seu exemplo para mim é diferente. O seu exemplo é de

estudo e crescimento, de seriedade. Quando você cruza os braços e olha assim, sai de

perto! Nesse instante, você está observando... Aquele tempo que você passou lá em ca-

sa, eu o vivi com o maior carinho e era o que me de melhor eu podia lhe oferecer. Eu

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lhe via estudando e eu dizia pra mim: eu tenho um tio professor. E eu falo até hoje, o

meu tio professor ele mora em Recife. Olhe, eu falo com orgulho, porque vindo de onde

você vem e sendo o que é você hoje, respeitado, isso para nós é um orgulho imenso,

pode ter certeza. Eu te vejo assim com amor. Você é lindo. Lindo por fora e lindo por

dentro. Esse é o meu tio Jorge. Você é muito especial.

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Maria das Graças Siqueira70

Antônio – Gracinha, vamos começar falando de sua infância.

Gracinha – Eu nasci em 1956 e o que eu lembro é a partir de 1962. O que eu lembro é

que nós tínhamos uma vida boa, uma vida de sítio, né? Então, nossa infância, acho que

ela foi muito saudável. Embora a gente não tenha tido o pai e a mãe como pessoas que

nos orientassem do modo que precisávamos, mesmo assim nós tivemos na vó Verônica

70 Maria das Graças Siqueira (Gracinha) – Filha de Manoel Jorge Siqueira e Anísia Florindo Siqueira,

ambos falecidos. Com a morte dos pais e de mais três membros da família – uma irmã, (Marlene) dois

irmãos, (José Carlos [o mais velho dos irmãos] e Francisco de Assis) – coube a ela representar a família

nesta entrevista feita na Vila Ema, em São Paulo, na data de 12 de setembro de 2009.

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e no vô José Jorge, que, na época, nos acompanharam de perto na nossa infância, lá em

Sertânia, todo apoio necessário. E eles foram muito bons, eles foram verdadeiros pais

para nós. Eles nos orientavam e nos davam muito carinho. Por isso mesmo, para mim,

eles são muito especiais. A mãe sempre foi uma pessoa que nunca teve uma força mai-

or, uma firme determinação no sentido de fazer o melhor para a gente. E o meu pai tam-

bém, né? O pai, no entanto, sempre teve aquele jeito dele de ser. A vó Verônica, em

1968, época em que eu tinha dezoito anos, deu muita força para que eu viajasse pra São

Paulo e ficar morando com a Tia Virgínia. Isso foi muito bom para mim também. A

partir daí, e através dessa iniciativa, vieram os outros meus irmãos. A tia Madia trouxe o

Reginaldo, todos eles adolescentes.

Antônio – Logo mais a gente retoma essa saga da vinda de vocês para São Paulo.

Gostaria que voltássemos ao início da entrevista para você falar mais um pouco

dos seus irmãos, especialmente da idade cronológica deles.

Gracinha – Justo. O mais velho era o Zé Carlos. Ele era muito sapeca e não gostava de

estudar. Se hoje ele estivesse vivo, iria completar cinquenta e quatro anos. A gente ia

pra escola lá no Sítio São Francisco, mas ele não gostava de estudar. E o pai exigia mui-

to isso dele. Entretanto, ele nunca conseguiu aprender a ler e a escrever. Quem se dedi-

cava mais aplicadamente ao estudo era eu, a Marlene, o Reginaldo, exatamente os mais

velhos. Quando nós vivíamos lá no sítio, não nos incomodava de vencer uma grande

distância para ir à escola. Aquilo era muito gostoso e foi algo maravilhoso. E o Zé Car-

los, talvez imitando o exemplo de Seu Manoel (o pai), terminou sem aprender a ler e a

escrever. Ele tinha um pouco a cabeça de Seu Manoel. Mas foi uma infância muito boa

e maravilhosa, tio, sabe? A gente brincava ali naquela ponte que existia perto de nossa

casa; nós pescávamos naquele rio e curtíamos muito aqueles pés de manga, aqueles pés

de frutas que o vô Zé Jorge plantou e que existem até hoje. Especialmente aqueles co-

queiros e os pés de manga. E a gente curtia muito, pulava na ponte, brincava na areia.

Foi um período muito bom. Então, retomando a ordem de idade: das mulheres, a mais

velha fui eu, depois a Marlene, depois a Margarida e, finalmente, a Fátima. Quanto aos

homens, o primeiro foi Zé Carlos, depois o Reginaldo, logo após o Francisco e o mais

novo deles foi Edinaldo. Na ordem de nascimento da família: nasceu primeiro Zé Car-

los, depois eu; em seguida, vieram a Marlene, o Reginaldo, a Margarida, o Francisco, a

Fátima e o Edinaldo. O nosso relacionamento sempre foi saudável entre nós. Nós nos

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gostávamos como irmãos, como, aliás, até hoje. Nós gostávamos muito de estar na casa

de vó Verônica e do vô Zé Jorge. Não fazíamos diferença com a nossa casa. As duas

casas eram uma só. E isto nos fazia felizes. O pai, infelizmente, ele praticamente não

ficava na nossa casa; ele ficava direto na casa da vó Verônica. Hoje, a gente consegue

perceber que isso se dava porque a vó o apoiava muito lá. Isso estragou bastante, e ele

deixou de ser um pai mais presente e especial pra gente. Isso gerou transtornos porque

algumas vezes ele chegou mesmo a maltratar não a mim, porque eu saí de lá muito ce-

do, mas ele maltratou muito o Francisco e o Zé Carlos, né? Então, isso aí pra mim foi

uma coisa marcante e jamais eu vou esquecer, né? É possível que o Francisco já tivesse

seus problemas e, naquelas condições de lá, não havia possibilidade dele ser encami-

nhado para uma orientação ou mesmo um tratamento. Mas creio que a falta de carinho

na relação com ele certamente deve ter sido um agravante para as dificuldades de rela-

cionamento dele com os pais, irmãos e todo mundo. E olha que não faltava quem o aler-

tasse (a meu pai) contra aquele hábito e aquela atitude dele de ser um dono de casa o-

misso e ausente. O vô Zé Jorge, por exemplo, inúmeras vezes chamou a atenção para as

responsabilidades dele como pai, marido e dono de casa. Inclusive para o trabalho, as-

pecto que o pai pouco ligava e incomodava demais o vô Zé Jorge. Já a vó Verônica não

se incomodava muito com isso; ela sempre o apoiava muito, fazia muito do que ele que-

ria. Por conta disso, ele ia pra casa quando bem queria e deixava de ir quando não que-

ria. O pai tinha assim um ar de moleque irresponsável. Mas, apesar disso, eu sempre o

considerei como meu pai. O que acontece é que as pessoas se habituaram a esse jeito

dele, e desse modo ele não teve como mudar. Mostrou para todo mundo, não apenas

para os pais dele, que ele não tinha como mudar. Na realidade, durante toda a vida, ele

sempre gostou de viver um estilo de vida moleque, palhaço... Ele viveu setenta e seis

anos assim. Como dizemos sempre, ele era o “palhacinho da família”.

Antônio – E sua mãe, Anísia...

Gracinha – Eu acho, assim, que a mãe era uma pessoa sofredora, sabe? Ela não tinha

uma atitude para reagir contra o marido, Manoel Jorge. Ele sempre foi uma pessoa mui-

to frágil nesse lado das coisas. Ela não o conseguiu conquistar para uma forma de con-

vivência que caberia melhor para uma mulher, uma mãe e uma dona de casa. Ela não

conseguiu isso dele. Então, no meu julgamento, ele teve o domínio da situação contra

ela. Ela foi, de certo modo, dominada a vida toda, não somente por ele como pelos ou-

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tros. Ela não tinha uma atitude pra nada, nem na casa dela para ser a dona da casa, co-

mandando e organizando a família, como cabe a uma esposa e mãe. Apesar disso, ela

era muito carinhosa e foi uma pessoa muito especial para a gente. E, até hoje, isso em

nada mudou na vida dela. Além do mais, ela nunca deixou de cuidar da gente da forma

que ela podia. O que estava ao seu alcance ela fazia pra gente. Ela nunca nos desprezou.

E acho mesmo que a gente só veio para São Paulo porque não tínhamos condições de

ficar lá.

Antônio – E alguma trela de vocês, lembra?

Gracinha – Olha, tio, eu só apanhei uma única vez, porque eu, o Zé Carlos, a Marlene e

o Reginaldo pegamos um monte de papel e fizemos cigarros e fomos fumar. Meu pai

botou a gente numa fila e deu um bolo de palmatória em cada um. Ele contou que viu

um monte de papéis queimados e cada um de nós com a cara bem pálida... O Zé Carlos

e o Francisco devem ter feito muita trela, porque apanharam muito. O Reginaldo, muito

pouco, porque ele logo veio para São Paulo. O meu vô Jorge até podia ser uma pessoa

muito rígida, mas adorava a nós, os netos, que vivíamos ali no sítio. Ele sempre foi mui-

to carinhoso com a gente e nunca nos desprezou. Gostava demais do Zé Carlos. Ele

nunca nos castigou; e quando ele não queria uma coisa bastava um olhar. E olha que eu

fiquei um bom tempo com os dois lá, você sabia? Foi numa época em que os dois fica-

ram sozinhos, e eu fui lá pra casa deles para dar uma assistência. Especialmente, ajudar

a vó Verônica que naquele tempo já estava ficando idosa e precisava carregar lata

d’água. Eu saí da casa da vó Verônica quando eu vim para São Paulo. No meu lugar,

ficaram as meninas: Marlene e Margarida. Aí o senhor lembra, não? Elas contavam que

quando o Ricardo, que era pequeno, ia lá para o sítio com vocês, elas contavam histori-

nhas para ele dormir. Eu lembro disso...

Antônio – Como foi a decisão de vir para São Paulo? E a viagem?

Gracinha – Eu fui a primeira a vir para São Paulo. A tia Virgínia é quem me trouxe.

Numa viagem que ela fez lá ao Nordeste, vendo a nossa situação precária por lá, sem

perspectivas de melhoras, ela decidiu trazer-me para ficar com ela e me oferecer um

futuro melhor em São Paulo. A vó foi quem tomou a iniciativa de que eu viesse. A tia

Virgínia se ofereceu para me trazer. Eu vim com ela. Ficamos seis dias dentro de um

ônibus, numas estradas todas esburacadas, tio. Eu passei muito mal nessa viagem e che-

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guei toda sapecada (rindo). Era um banco só para duas pessoas, porque o pai comprou a

minha passagem e eu a perdi. Quando eu cheguei aqui fui muito bem-recebida. Na épo-

ca em que eu saí para cá, lá ficaram o tio Severino e o tio Anísio. Aqui, em São Paulo,

estavam a tia Virgínia, a tia Madia, a tia Flora e a tia Conceição. Dos homens, estavam

tio Barbeiro, tio Elias e tio Valdeci. Essas pessoas todas foram muito maravilhosas co-

migo e me acolheram bem, especialmente a tia Virgínia com o Aldir. Fiquei morando

com eles e recebi deles mais do que recebia em minha casa. Colocaram-me na escola e

me deram, da parte deles, do bom e do melhor que eles podiam e tinham para me dar. A

tia Virgínia nesse tempo trabalhava muito e eu ficava na casa dela cuidando das meni-

nas, a Débora e a Rosângela. Ainda hoje, eu as considero como minhas irmãs. Inclusive

quando eu fui morar com a tia; ela ainda não tinha tido nenhuma das filhas. Por isso,

falam que eu sou a primeira filha deles. E esse carinho que eu tenho por elas jamais será

esquecido. Tanto à Débora como à Rosângela, porque elas têm também muito carinho

comigo e com meus filhos. Do mesmo modo, a tia Flora foi uma pessoa maravilhosa;

ela ajudou muito a mim e à minha mãe, em todos os sentidos, apoiando no trabalho, no

estudo, em trazer os outros irmãos para cá. Com a ajuda dela, eu consegui arranjar um

emprego. Foi a partir daí que eu tive a iniciativa de chamar a Guida e a Marlene, porque

o Reginaldo já estava aqui com a tia Madia. Nós, então, alugamos uma casa e ficamos

morando em quatro, não é? Essa casa ficava aqui no Parque São Lucas, próximo da Vila

Ema. Meu primeiro emprego registrado foi nas Linhas Corrente, e isso permitiu que a

gente pudesse morar vários anos nessa casa alugada. Lá consegui emprego para Marga-

rida e Marlene, que ficaram áli até o casamento. Eu, igualmente, fiquei até meu casa-

mento, e foi lá que eu conheci o Volneci. Ele trabalhava à noite e eu durante o dia. A

vinda do Reginaldo aconteceu com uma ida lá ao Norte da Madia. Ela foi lá e puxou

Reginaldo para morar com ela. Ele praticamente se criou lá na casa dela. Ela arranjou

escola, emprego. Foi a Tereza quem arranjou o primeiro emprego para o Reginaldo. E

essa tia Madia é também uma pessoa maravilhosa. É outra mãe. Para ele, a Madia e o Zé

Guilherme foram seus pais; e os filhos da Madia, primos dele, ele os considera como

irmãos. Ele tem um amor muito puro por eles. Eles sempre se deram muito bem e foram

muito especiais para o Reginaldo. Jamais ele esquece isso. Quanto ao Edinaldo, tio, foi

assim. Eu era casada de pouco tempo quando ele veio para São Paulo. O Zé Carlos tinha

acabado também de casar lá em Pernambuco. A vó mandou o Edinaldo para São Paulo,

ele tendo a idade de oito anos. A mãe, nesse período, estava aqui em São Paulo, e ela

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não queria deixá-lo aqui; o desejo dela era levá-lo de volta. Ela ficou muito destruída e

chorou muito. Mas, depois, percebeu que, dentro do coração dela, levá-lo para o Nor-

deste não seria o melhor para ele. Naquele momento, ela nos viu todos aqui trabalhando,

com um salário, boas condições de vida... Ela achou por bem deixá-lo aqui. Mas eu sen-

ti que ela lamentava muito a falta dele por ser ainda muito criança, né? O Edinaldo veio

e a gente foi buscá-lo lá na Rodoviária do Glicério. Chegou mancando, igual a um pas-

sarinho com a perna avariada. Veio com a Severina e o Zé Carlos. Oito anos de idade

apenas. Ele ficou morando conosco. As irmãs é que cuidamos dele. Ficou o tempo todo

na minha casa e só saiu de lá quando casou. E está aí, hoje tem os filhos dele... O Fran-

cisco, na época em que ele veio, a gente deu o maior apoio a ele. Logo o Aldir arranjou

um emprego pra ele e começou a trabalhar. Estava indo muito bem. Mas, depois, deci-

diu não ficar mais em São Paulo. Foi morar sozinho numa pensão e arrumou um colega

lá que roubou todas as coisas que ele tinha. Ele comprou uma passagem de volta para o

Norte, onde viveu até oito meses passados, ocasião em que ele faleceu. Viveu trinta

anos lá em Pernambuco, com a mãe e o pai. Não quis mais saber daqui de São Paulo. Eu

senti muito, porque se ele estivesse aqui creio que tinha se dado melhor. O Zé Carlos é

outro que migrou para cá. Logo que ele casou, meu pai vendeu umas vacas por lá e deu

um certo dinheiro a ele. Veio para cá com a Severina e alugaram uma casa, compraram

uns móveis. Mas, antes disso, logo que ele chegou aqui ficou morando um tempo com

as minhas irmãs solteiras, Fátima, Margarida e Marlene. Demoraram um ano até arru-

mar um serviço e depois que a Severina e ele arrumaram um emprego eles alugaram a

casa. Nesse tempo, a Severina teve o Zé Carlos e o Leonardo. A Severina sempre se

revelou muito trabalhadora e esforçada. Só que Zé Carlos complicou a vida de trabalho

dele, porque se meteu a beber demais. Ele já bebia muito lá no Nordeste. E o sr. sabe

que quando as pessoas se viciam começam por perder o emprego. A vida dele não mais

deu certo,até que um dia eles não tinham mais dinheiro para pagar o aluguel da casa

deles. A Severina conseguiu o favor de um conhecido, botou todas as coisas dela em

cima de um caminhão e foi embora para Sertânia, de onde havia saído. Até hoje, depois

de dezessete anos da volta dela, prá mim e pra nós isso foi muito triste porque se ele

tivesse tido a disposição e a força de vontade dela, sem se deixar vencer pelo alcoolis-

mo, certamente hoje eles estariam muito bem aqui.

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Antônio – Como era a vida de vocês fora do trabalho? Vocês se divertiam, tinham

namorados?

Gracinha – Não, tio. Os nossos tios tinham muito ciúme da gente. Quando nós aluga-

mos a nossa casa, nós tínhamos muito cuidado de não nos aventurar em namoros com

rapazes que a gente não conhecesse. O fato é que nós vivíamos para o trabalho e não

aproveitamos bem a nossa juventude como devia ser. Na chegada do nosso trabalho, nós

íamos cuidar da nossa casa. Eu, por exemplo, nos finais de semana cuidava da cozinha,

a Guida limpava a casa e a Marlene lavava a roupa. Praticamente, a gente não saía nem

passeava. Nós, infelizmente, não curtimos nossa juventude, tio. O Volneci foi o meu

primeiro namorado, com o qual estou casada há trinta anos (rindo). A Marlene teve um

namorado que não deu certo. Aí ela arranjou outro, o João, com quem casou e, infeliz-

mente, ela teve muitos problemas com ele por conta de alcoolismo. Viveu vinte e três

anos com ele e teve dois filhos. Eles conseguiram viver bem até o ponto em que ele

mergulhou no alcoolismo. Aí o casamento deles foi destruído. Ela passou a ter uma vida

muito estressada, e creio mesmo que isso tenha contribuído para o enfarte que a vitimou

de morte. A morte dela foi uma das maiores dores que eu senti na minha vida. A perda

da minha irmã me doeu muito. A Marlene era uma pessoa maravilhosa, e digo isso não

pelo fato de ela ter morrido. Quando morávamos solteiras, nós nos dávamos muito bem.

Nunca discutimos e nos dávamos maravilhosamente. Mesmo depois de casadas, nunca

faltou esse carinho entre nós. Sempre nos visitávamos. A Guida casou e foi morar lon-

ge. Separou do primeiro marido, porque realmente não deu certo. Arrumou um segundo

casamento e, igualmente, também não deu certo. Agora ela já arranjou um terceiro e

parece que agora está dando certo. Ela teve três filhos: George, que foi do primeiro ma-

rido,Justino, meu cunhado, irmão do Volneci; tem o Jefferson e a Shirlei, que foi do

segundo marido, cujo nome é Osvaldo. O terceiro marido chama-se Paulo e eles moram

em Campinas. Interessante, os filhos da Marlene não eram muito chegados a nos visitar

e a ir em nossa casa. Mas depois que a Marlene faleceu, eles já foram umas três vezes

em nossa casa. Quando um deles, o Alexandre, casou, nos convidou para o casamento.

Convidou-nos também para a festa de aniversario do filho dele. Quem nos frequenta

mais é o George, filho da Margarida. Ele sempre vai lá em casa. O Volneci mais os dois

irmãos, os três, casaram com três irmãs. Porque a Fátima é casada com um irmão dele, o

Joel. E tem o Reginaldo, que casou com uma prima de Volneci. É quase um caso de

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incesto familiar. Os nossos primeiros anos de casados foi difícil, tanto no relacionamen-

to como no trabalho de sobrevivência. Mas, com o passar do tempo, a gente foi apren-

dendo a aceitar as situações com que a gente se defronta, não é? Depois que vêm os

filhos, o casal tem o amadurecimento e outro olhar sobre a vida. Foi difícil, porque nós

não tivemos tempo de estudar. A gente sempre trabalhou em fábrica para ter um salário

e, com ele, o dinheiro da casa, do aluguel, do carrinho. Quando, na década de oitenta,

nós fomos dispensados das Linhas Corrente, pegamos o dinheiro da indenização e com-

pramos um terreninho. Com o meu dinheiro, dei início à construção da minha atual ca-

sa, em Diadema. Fiz dois cômodos e deu para pagar o pedreiro. Depois que saí da fábri-

ca, fui cuidar dos meus filhos, que eram pequenos, e ele foi trabalhar na Mercedes, onde

ficou nove anos. Conseguimos construir um sobrado muito bom lá em Diadema. Nosso

primeiro carro foi uma Brasília, na época; uma Brasília amarela (rindo muito). Mas

tudo isso foi maravilhoso. Foi um esforço muito grande de nossa parte. Depois, com-

pramos outro terreno, onde construímos a casa em estamos hoje, e montamos ali uma

doçaria, que é hoje o comércio de nossa sobrevivência. Isso tudo é muito bom, não é,

tio? Estamos terminando de construir nossa casa, em Diadema, e compramos um bom

terreno em São Bernardo, onde a gente vai construir outra casa.

Antônio – Fale de seus filhos.

Gracinha – Depois de dois anos de casada, eu engravidei. O primeiro filho foi o Ronal-

do. Logo que eu engravidei, tive que sair do serviço para cuidar dele, pois naquele tem-

po não existia estrutura de creches como hoje em dia, né? E eu queria cuidar do meu

filho, acompanhar o crescimento dele até um determinado tempo. Isso foi uma coisa que

eu tive como propósito dentro de mim, ou seja: cuidar dos meus filhos, na infância deles

até certa idade. Depois de um ano, eu engravidei da Fabiana. E foi a mesma coisa em

termos de disponibilidade para o crescimento dela. Quando eles já tinham uns seis anos,

eu comecei a trabalhar num bar que adquirimos como comércio, e eles ficavam juntos

vendendo balinhas. Depois, evoluímos para uma doçaria, e eles sempre estavam conos-

co nos ajudando. Eu queria que eles sentissem que a vida é dura e não é tão fácil como

se possa imaginar. Isso pra eles foi muito bom, e pra mim também. Depois de dez anos,

eu engravidei de Rafael, que também é um amor de garoto. Agora mesmo, minha mãe

teve um AVC e, como eu necessitava de um tempo para cuidar dela, ele se ofereceu

para ajudar o Volneci em meu lugar. Então, eu o acho um filho maravilhoso, não é? O

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Ronaldo estudou até a sétima série e parou de estudar. Ele, hoje, só trabalha. Está com

vinte e oito anos e é meio cabeça dura; não quis dar continuidade aos estudos. A Fabia-

na, só ela se dedicou a estudar. Cursou a faculdade, formando-se em matemática. Fez

recentemente pós-graduação e, agora, está dando mais um tempo, trabalhando para

comprar o carrinho dela. Ronaldo está construindo a casa dele. O Rafael está estudando,

mas ele ainda não está definido com relação ao curso que pretende estudar. São três

filhos, tio, mas cada um com uma cabeça diferente. A Fabiana tem um namorado, Ale-

xandre. Mas ela não quer ouvir falar em casamento. Primeiro, ela quer estabilizar a vida

dela, comprar o carro dela, o apartamento... Vou abrir um parêntese para falar de meu

irmão Edinaldo. Ele chegou aqui em São Paulo, morou muitos anos comigo e casou

ainda muito moleque, muito novo. Ele tinha dezoito anos quando casou. No início, ele

estava muito bem, porque quando ele morava comigo só bebia água e refrigerante, né?

Casou e viveu uns treze anos com a esposa; teve dois filhos: o Caíque e Felipe, duas

crianças maravilhosas. Arrumou um amigo e começou a trabalhar por conta dele. Foi

nessa época que ele começou a beber, e isso interferiu no casamento dele, terminando

por separar. O vício tomou conta do Edinaldo e ele separou da mulher. Os filhos dele

vão muito em minha casa e nos adoram. Ao passo que uma vez na vida é que Edinaldo

vai lá em casa. O vício dele o impede de ir. A gente fala para que ele venha ver a mãe, e

quando ele vem está geralmente alcoolizado. Ele se dedica mais à bebida do que à famí-

lia. Ele tem uma mulher, chamada Mila, que vive atualmente com ele. Ela tem cinquen-

ta e poucos anos. Ele mora com ela num apartamento, em São Bernardo, que não fica

longe de mim. Ela vive reclamando dele a mim, dizendo que ele não está muito bem. Eu

o internei duas vezes numa clínica de tratamento, mas não resolveu nada. Profissional-

mente, ele é eletricista de automóveis. Um profissional de mão cheia, todos os clientes

gostam dele, mas o alcoolismo já está afetando seu desempenho profissional. É uma

pena, porque as coisas se repetem na família. O Zé Carlos era um exímio profissional

soldador mecânico, muito trabalhador, mas infelizmente morreu dominado pelo alcoo-

lismo. Parece que o Edinaldo copia o irmão nesse aspecto.

Antônio – Gracinha, eu tenho uma boa notícia para lhe dar. É que Severina conse-

guiu a pensão de Zé Carlos na Justiça do Trabalho.

Gracinha – É mesmo? Que bom, tio! Olha, que maravilha! Ela merece, porque sempre

cuidou muito bem dos filhos. Por causa do vício, também o Zé Carlos foi igual ao pai.

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Não foi um pai carinhoso e atencioso com os filhos. O que os filhos dele precisaram na

infância ele não deu. Inclusive eu gostaria de registrar aqui o carinho que o senhor teve

com relação a eles. Isso é uma coisa que o pai não deu, e eles encontraram no tio Antô-

nio. E eu agradeço muito essa atenção e esse carinho. Eles são meus sobrinhos, e eu os

tenho como meus filhos também. Eu amo meus primos. Então, eu agradeço muito esses

favores que foram prestados a eles. A Severina foi uma mãe exemplar pra eles; ela foi

uma excelente mãe, e pai também.

Antônio – E Reginaldo? Como é que está ele? Você não falou dele...

Gracinha – O Reginaldo, tio, logo cedo conheceu a Lina, que é prima do Volneci. Na-

moraram doze anos e (rindo) terminaram casando, e assim continuam até hoje muito

bem. Reginaldo foi uma pessoa que trabalhou muito e sempre foi uma pessoa maravi-

lhosa. O Reginaldo, tio, é um dos irmãos que eu tenho como maravilhoso. Ele é um ir-

mão que eu não tenho nada de mal a falar dele; só tenho a falar de bem. O Reginaldo é

uma moça (rindo). Se eu falar mal dele, eu estou pecando; por aí, o senhor vê. O Regi-

naldo, depois que saiu da casa da tia Madia, veio morar junto com a gente. E ele nunca

maltratou a nós. Sempre nos ajudava e contribuía em todos os sentidos, sobretudo para a

casa. O Reginaldo casou e também teve que enfrentar transtornos. Ele trabalhou muitos

anos de empregado, como torneiro mecânico, e iniciou e terminou a construção da casa

dele. Depois vendeu a casa, passou a pagar aluguel e ficou numa situação muito difícil.

Montou uma padaria, formando uma sociedade. Perdeu tudo o que tinha. Não teve mais

emprego e foi o Seu Justo, o sogro dele, que lhe deu uma oportunidade. Como ele tinha

um bufê na casa dele, o Reginaldo foi trabalhar lá. Depois disso, eles decidiram montar

um restaurante, e ele passou a contar com a colaboração da Lina, que, mesmo sem ser

cozinheira, teve que aprender na marra. Eles abriram um restaurante. Ela começou a

fazer comida e, assim, eles conseguiram novamente ter a casa deles. Hoje eles estão

muito bem e têm uma linda casa construída com o esforço dos dois. Os filhos deles são

muito lindos

Antônio – Dizem as más línguas da família que, quando você se junta com o Regi-

naldo, ninguém mais fala e ninguém mais ouve ninguém... É verdade isso?

Gracinha – Olha, tio (rindo), eu conheci um homem, no Nordeste, que se chamava

meu pai, e o apelido dele era Mané Badalo. Contam que, quando da construção daquela

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BR 110, que passa lá na propriedade, o pai deu pouso aos operários, e eles ficaram lá no

nosso sítio, à beira da estrada em construção. E o pai também foi contratado para traba-

lhar. Naquela oportunidade, ele foi apelidado pelos peões como Mané Badalo, porque

falava sem parar. O Reginaldo e a Gracinha não podem deixar de serem filhos de Ma-

noel Jorge. E são uns badalos, obviamente. Mas, assim mesmo, o Reginaldo toda sema-

na vai na minha casa, e a gente sempre inventa um churrasquinho ou qualquer coisa

para se encontrar. Eu sinto que ele gosta muito de mim. É um querer muito especial. É

uma pessoa que não ofende ninguém e tem um coração puro, o Reginaldo.

Antônio – Fale um pouco do sentimento e das lembranças que você tem com rela-

ção aos familiares da sua mãe.

Gracinha – Tio, você tem uma cabeça boa, lembra de todo mundo. E uma pessoa inte-

ligente! Os irmãos da mãe são muito boa gente. Eles sempre demonstraram gostar de

mim e dos demais irmãos e irmãs. Quando eu morava em Diadema, eles sempre iam à

minha casa. Eu sinto, hoje, muita falta deles. Ontem mesmo, o tio João, com oitenta e

dois anos, esteve na minha casa. Lúcido, lúcido... O senhor pode perguntar o que quiser

pra ele que ele lhe responde. Com toda essa idade, vem lá do outro lado da cidade de

São Paulo, toma não sei quantos ônibus e tróleibus, mas chega na minha casa sempre.

Só que ele, hoje, anda igual a Emiliano. O senhor lembra do Emiliano? (rindo muito).

Tio, eu vou ter que falar. Anda igual ao Emiliano, com aquela cabecinha assim, aquelas

pernas meio cambaleantes... Pelo menos duas vezes por mês, ele vem à minha casa. Ele

anda muito junto com o tio Júlio. Esse aí tem oitenta anos, mas já não está muito legal.

O tio Júlio bebeu muito quando era mais jovem – até hoje ele ainda toma algumas bica-

das –, ele não parece muito legal para acompanhá-lo. Ele não tem mais a disposição de

sair, igual à do tio João. Quando eu fui lá ao Nordeste, eu vi o tio Elísio, que também já

esteve na minha casa com o tio Otacílio. Só quem faleceu foi o tio José, que morava em

Cubatão. Um doce de pessoa. Eu adorava aquele tio; ele gostava muito de juntar a famí-

lia na casa dele. Ele faleceu de enfarto, faz dez anos. Inclusive o pai e a mãe estavam

aqui quando do falecimento dele. Faleceu também a tia Maria, irmã da mãe. Ela era

doente de chagas e faleceu lá em Pernambuco. Tem ainda a tia Quitéria, que tem oitenta

e cinco anos e recentemente também sofreu derrame, como minha mãe. Um mês após

ter visitado minha mãe com o derrame, ela também teve a mesma coisa. Só que ela não

foi muito afetada. Ela anda bem de bengalinha e não sofreu nada na cabeça. Tem tam-

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bém outra irmã, chamada Irene, que mora em Pernambuco; e, aqui em São Paulo, a tia

Quitéria, conforme lhe falei. Com os meus primos aqui de São Paulo, a gente mantém

contatos, mas é mais por telefone. Mas, na semana passada, eles estiveram em minha

casa em visita a minha mãe. Os sobrinhos da mãe são também maravilhosos e adoram a

mãe. Eu tenho dois primos que moram próximos de nós: o filho do Elísio e o do Otací-

lio. Na semana passada vieram quatro primos, entre eles a Rosilda, filha da tia Maria, e

também uma cunhada de tio Elísio. Foi uma turma boa, tio. Toda semana temos paren-

tes de minha mãe lá em casa. Daqueles irmãos que moravam lá em Pernambuco, no

sítio da família, são o Otacílio e o Elísio. Dizem que eles têm mais de oitenta e um anos

e eles ainda pegam da enxada e vão trabalhar na roça. Só dois moram lá, e o Otacílio

ficou viúvo. Já a mulher do tio Elísio mora em Sertânia. Ah, tem lá em Pernambuco

também a Irene, que era a irmã caçula da mãe, não sei se o senhor já ouviu falar. Ouvi

dizer que o marido dela também está muito mal, com um câncer de próstata.

Antônio – Gracinha, logo antes de Manoel falecer você se deslocou até Pernambu-

co para dar assistência a seu pai. O que ficou na sua cabeça desse período?

Gracinha – Apesar de eu ter falado que ele não foi o pai ideal para nós no período da

infância, eu não guardei nenhuma mágoa disso aí. Eu fui lá porque, acima de tudo, eu

amava meu pai e sempre o tive como pai no meu coração. Eu fui cuidar dele, porque as

coisas muito especiais que eu tive na minha vida foram o meu pai e minha mãe. E, num

momento como aquele, jamais eu, como filha, poderia faltar com ele. E aqui, neste mo-

mento, eu queria mais uma vez agradecer a sua ajuda. Embora fosse seu irmão, agrade-

ço muito o seu carinho por ter recebido ele lá junto comigo. Naquele momento, eu pro-

curei ser muito forte, né? Depois que caiu a ficha, eu fiquei um pouco fraca, com pro-

blemas de depressão. Tinha havido a perda da Marlene e, em seguida, a dele. Então,

isso mexeu muito comigo. Mas eu tenho dentro de mim que todos aqueles momentos

que aconteceram foram marcantes para sempre. Ele morreu nos meus braços. Na hora

que o senhor tinha saído, eu percebi que ele teve a hemorragia e gritei por socorro, so-

corro. E ele estava tão lúcido que olhava para a porta a fim de ver se vinha alguém para

socorrê-lo. Até o momento em que faltou sangue no cérebro, ele parou e ficou com os

olhos abertos, parecendo um bonequinho, e eu com ele em meus braços. Esse momento,

para mim, é inesquecível, e eu não vou esquecer nunca. Não só para mim, mas para

muitas pessoas ele foi maravilhoso. Naquele velório del, compareceu tanta gente que eu

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nunca vi na minha vida. Tinha muita gente jovem, inclusive uma moça do posto de saú-

de que cuidava dele lá no sítio. Ela me disse que nunca tinha visto e conhecido uma

pessoa como meu pai. E ela chorava muito. Tinha gente de todas as idades, e isso me

emocionou muito. Tinha gente conhecida, aquelas moças parentes do Caboclo Lulu,

todas homenageando o pai... Ele teve muito boas amizades e foi uma espécie de palha-

cinho, no bom sentido. Eu acho que ele viveu uma vida boa, uma vida feliz, ele viveu a

vida que ele gostava. Eu dizia pra ele não fumar, porque tinha passado a hora dele fu-

mar e aquilo matava. E ele me respondia que, a partir dos setenta anos, as horas eram

“extras”, e ele estava fazendo hora-extra. Quando eu fui a Sertânia para cuidar dele, na

hora em que cheguei e disse que chegava para vê-lo, ele me disse assim: “Gracinha,

tanto que você falava prá mim, não era? Agora, veja como estou!”. Eu respondi que não

era mais hora de lastimar. Mas eu vi que ele sentiu

Antônio – A morte de Zé Preto e de Chico, como repercutiu em vocês, irmãos?

Gracinha – Tio, há momentos assim em que as tragédias e perdas se sucedem uma em

cima da outra. Nós éramos dez e praticamente eu perdi quase a metade, entre meus pais,

irmãos e praticamente a minha mãe. E isso em seguida, um próximo do outro. Isso me-

xeu muito comigo e com o resto dos irmãos. Em poucos mese, eu perdi o Chico e a

mãe, porque ela não morreu por milagre e vive uma vida vegetativa. A Fátima sofreu

muito e ficou muito mal. E ainda continua mal, porque ela era muito apegada com Fran-

cisco. Ela fazia perna com ele quando eram pequenos. O mesmo se passou com a Guida.

Se o pai tivesse tido um pouco mais de cuidado, ele poderia ainda estar vivo. O Zé Car-

los, a mesma coisa. A morte existe, mas tem gente que morre antes da hora. O Francisco

era outro que nunca cuidou da saúde dele. Mais ainda, além das perdas na minha família

restrita, houve no resto da família de vó Verônica toda uma série de perdas que nos dei-

xaram tontos. Foi a vó, o tio Severino, a tia Flora, a Edilnete, o tio Zeca, o tio José, o

Givaldo... São muitas perdas numa família que absolutamente não tinha a experiência

de óbitos durante décadas e décadas... Isso mexeu com todos nós que estamos vivos.

Antônio - Gracinha, você teve muitas alegrias e muitas tristezas, não?!

Gracinha – Olha, tio, uma das grandes alegrias de minha vida foi ser mãe, foi poder ter

os meus filhos. Essa foi a maior alegria. Eu os adoro, não os deixo por nada, e eles são

maravilhosos pra mim. Por isso que eu sou assim, alegre, porque fomos criados no meio

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de muita gente, uma família imensa como a dos Jorge. E a minha maior tristeza foi a

perda dos meus parentes, todos e cada um deles, incluindo primos, tios e tias.

Antônio – Para terminar, pergunto se você gostaria de dizer algo que ainda não

lhe foi perguntado.

Gracinha – Ah, sim! Gostaria de dizer que todo este trabalho que você está fazendo

sobre a família vai ser também trabalho inesquecível. Ele vai ficar pro resto da vida. Vai

ficar para a memória de todos, sobretudo dos que vão vir. É um dos trabalhos mais be-

los e lindos que o meu Tio Jorge vai deixar para a família. Eu gostei, adorei. Eu amo

essa família, tio.

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Sílvio Roberto Siqueira71

Antônio – Sílvio, gostaria que você falasse das lembranças que você tem de seu pai,

principalmente aquelas lembranças mais antigas...

Sílvio – Meu pai, lembro-me dele quando eu me entendi por gente, principalmente nos

momentos em que nós fizemos algumas viagens a Pernambuco, e algumas dessas via-

gens foram muito difíceis. Numa dessas, a madrinha Virgínia veio com a gente. Ela

gosta muito de mim. Meu avô paterno também gostava muito. Essas viagens também

eram divertidas. As passagens que me lembro do meu pai, quando ele estava junto com

a gente, é que ele gostava de unir a família. Ele andava com a gente, passeava com a

gente de carro... Não só conosco, mas também com a tia Enedina e com os filhos dela,

meus primos. Isso era muito gostoso. Em todo lugar que ele levava a família, ele com-

partilhava também com a família da tia Enedina, o que era muito bom. Muitas vezes,

nós participamos assim de reuniões da família com os outros familiares, e olha que a

71

Sílvio Roberto Siqueira – filho mais velho de Severino Jorge Siqueira (falecido) e Erotides da Silva. Em

razão da morte do pai e da ausência da mãe, Sílvio foi entrevistado em Tamandaré - PE –, na data de 13

de fevereiro de 2009.

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nossa família era muito grande. No entanto, de algum tempo para cá, ela se espalhou.

Mas meu pai continuou fazendo aquelas visitas e nos levava para visitar outros parentes.

Era muito bom, eu gostava muito dessa parte. Tanto que hoje, eu gosto de cultivar esse

hábito. Quanto à lembrança de criança, ela se refere ao momento em que nós viemos

morar em Sertânia. Lembro que eram situações muito difíceis e também recordo que o

vô gostava muito de mim, e ele fazia tudo por nós e gostava também de estar junto do

pessoal. Pena que meu avô morreu cedo, para mim... Mas a lembrança que eu guardo

dele é muito boa. E quando eu tinha mais ou menos a idade de doze anos, eu vim para

Pernambuco, juntamente com a minha tia, digo, com a minha madrinha. E lembro que

meu avô pagou a minha passagem, porque queria que queria que eu viesse. E isso eu

achei muito interessante. Tão logo aqui cheguei, ele me deu uma bezerra de presente.

Lembro bem que era uma bezerra muito bonita, e ela se destacava por ter uma cara

branca. E eu gostava muito dela. Quem a criou foi o tio Manoel. Ele não se desfez dessa

novilha, que se tornou vaca, enquanto eu não o autorizasse dela se desfazer. E isso para

mim foi muito gratificante, muito gratificante mesmo. Lembro também que, algumas

vezes, houve desentendimento entre mim e meus primos. Meu avô gostava muito de

mim, da minha pessoa. Eu gostava muito dos momentos em que ele brincava – e brin-

cava muito! – comigo. Mais tarde, nós tivemos que sair de Sertânia, indo morar em Ca-

ruaru. Nesse momento, houve algumas separações entre meu pai e minha mãe. Mas

sempre meu pai tentando reconciliar e juntar a família. Daí, voltamos a morar em São

Paulo novamente. Morávamos perto da casa de tia Virgínia. Lembro também que a tia

nos ajudou muito nesse retorno...

Antônio – Como é que o Severino se relacionava com vocês, seus filhos...

Sílvio – Para mim, meu pai às vezes se comportava como um bom pai, mas às vezes

passava a ser muito duro e até mesmo carrasco. Por algumas vezes, levei algumas surras

não merecidas! – outras merecidas. Lembro de uma vez em que eu brincava com Zenil-

do, com o Inaldo e o Hélio e, nessa brincadeira, um dos meus primos me deu um tapa e

eu revidei com uma tijolada na cabeça dele. Por conta disso, ele me bateu, e bateu de-

mais. Mas eu sempre gostei de meu pai, sempre gostei. Também sentia que isso era re-

cíproco da parte dele comigo e, ao longo do tempo, como eu casei, ele passou a me dar

a maior força. Aceitou a condição em que eu estava, me ajudou...

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Antônio – Como é que foi esse casamento?

Sílvio – Foi meio apressado, eu “adiantei” as coisas, não é? Mas, graças a Deus, num

curto período eu consegui casar, ter a minha primeira filha, muito bonita, por sinal, e

meu pai me auxiliou até que eu tivesse o meu apartamento, onde moro até hoje. Tive

auxílio dele com algumas coisas para a casa. Sempre visitava meu pai, e ele ia também

ia à minha casa... foi bom. Muito bom. Gostava muito dele e da presença de meu pai em

casa. Às vezes, ele vinha para almoçar, outras vezes eu ia à casa dele. Preparava um

frango que ele gostava muito. Eu preparava um frango bem cozido, e aí ele chupava até

os ossos. Puxa vida, isso era uma coisa que eu tinha a maior satisfação de fazer para o

meu pai. Com o Edilson e a Sônia, também. Ele gostava muito de ir à casa da Sônia

quando ela passou a morar na COHAB-2. Ela sempre o convidava, e ele participava

sempre. Já nos últimos anos da vida, ele passou a conviver mais com a Sônia. Mas teve

dias em que ele foi até a minha casa e conversamos muito. Nessa oportunidade, eu repe-

li algumas ações dele, avaliando algumas ações dele...

Antônio – E os últimos dias da vida dele, como vocês viveram?

Sílvio – Para mim, meu pai sempre foi um grande homem. Sinto saudades. Com aquela

animação dele, começou a fazer visita aos parentes. Também estava sozinho e por isso

foi morar com a Sônia, lá em Lençóis Paulista... Eu sinto saudades! [se emociona]. O

desfecho da morte de meu pai foi muito repentino. Lembro que tinha trabalhado à noite

e, por volta das treze horas, recebemos uma notícia de Lençóis Paulista, por meio de

minha irmã. E, de pronto, eu senti que tinha de ir lá prestar um socorro, dar um auxílio.

Ao contrário do meu pensamento, o meu irmão fez que tudo isso não acontecesse. Eu

estava muito cansado do trabalho. Fui para casa dormir. E naquele dia choveu muito.

Insisti várias vezes com meu irmão para irmos até lá. Até que Edilson, meu irmão, por

volta de meia-noite ligou falando que ele estava ruim. Eu continuei insistindo para que

nós fôssemos buscá-lo para oferecer um melhor socorro médico. Mas meu irmão não se

interessou muito. Saiu para a balada... Quando foi na parte da manhã, eu ainda insisti

com ele para vir me buscar para a gente poder ir para lá. Saímos de carro por volta de

sete horas da manhã; peguei o carro lá na marginal. Ficamos com o celular ligado, espe-

rando alguma notícia. Quando estávamos chegando a Sorocaba, tivemos notícia de mi-

nha irmã confirmando que ele estava ruim. Mais à frente, chegando a Porto Feliz, rece-

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bemos a notícia de que ele tinha falecido. Para mim, foi um grande choque, um grande

choque mesmo, porque não esperava que aquilo fosse acontecer com o meu pai, de mo-

do tão rápido, de maneira tão repentina. Aquilo, para mim, foi brutal. Edilson e minha

sobrinha começaram a chorar em desespero, sem saber o que fazer. Eu, naquele momen-

to, fiquei sereno, procurando aceitar aquele baque muito grande. Chegamos a Lençóis

Paulista, meu irmão já foi brigando com todo mundo, brigando com as enfermeiras,

com os médicos, acusando-os de terem maltratado meu pai, acusando que meu pai tinha

uma doença e que eles haviam tratado de outra. Acusou o médico, dizendo que ia pro-

testar civilmente. Falava que não ia aceitar aquela situação; fez um verdadeiro carnaval.

Nessa hora, eu procurei ver com a enfermeira o que poderia ser feito. Fui ver o corpo do

meu pai - ainda quente! -, e naquele momento, com um minuto apenas de reflexão que

tive sobre a vida e a morte, o corpo do meu pai esfriou. Foi aí que eu percebi que não

haveria mais vida. Providenciamos o enterro e o retorno do corpo para São Paulo. Na-

quelas circunstâncias, reuniu-se a família, mas para mim ficou aquela impressão de algo

muito repentino [emocionado].

Antônio – Voltando um pouco à vida do seu pai, como lhe marcou a vida profissio-

nal dele?

Sílvio – Olha, o que eu mais gostei de meu pai como profissional do volante foi quando

ele colocou dezessete pessoas dentro de sua Kombi e, contrariamente ao pensamento

dos demais familiares que pensavam que nós iríamos para Peruíbe, nós viemos para o

Norte, para Pernambuco. Puxa vida, que situação! Era gente dormindo no chão, era gen-

te dormindo em cima das malas. Lembro bem que meu tio, o Máximo, combinava com

um e outro, trocava ideias, fazendo de tudo para não se dormir e tornar a viagem rápida,

alegre e prazerosa. Era muita gente, mas foi prazeroso. Quando nós chegamos a Sertâ-

nia, foi muito bom. O Máximo foi até a casa de minha vó, como se não conhecesse nin-

guém, mas já conhecia todo mundo. Só que o pessoal que estava lá não o conhecia mui-

to bem, pois já fazia muito tempo que ele tinha ido lá. Chegando lá, ele especulou e fa-

lou que estava todo mundo esperando na Kombi. Ah... ao chegar na casa foi aquela fes-

ta! O que aconteceu foi o seguinte: o pessoal de Sertânia aguardava os parentes que vi-

nham de São Paulo. Era a tia Flora, que vinha de ônibus, o Jacaré e a Irene, que vinham

de carro, o Givaldo com a Tereza... Esse pessoal de São Paulo sabia que a gente tinha

viajado para Peruíbe e, agora, sem que soubessem de nada, estávamos em Sertânia espe-

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rando por eles. Ah... quando eles chegaram foi uma correria danada. E a Célia, que es-

tava conosco, sobrou na hora de se esconder; ficou meio perdida no corredor da casa.

Quando a madrinha Flora chegou e percebeu a Célia no corredor, ela quase desmaiou.

Mas aí todos nós saímos dando as caras e foi aquela festa maravilhosa. Foi bom demais!

Meu pai gostava e adorava essa situação de estar com a família. Para mim ele foi sem-

pre um ótimo motorista. Hoje, eu sou o que ele não conseguiu ser. É que cheguei ao

auge da minha carreira como motorista profissional. Ele, mesmo tendo muita habilida-

de, não conseguiu ter carteira assinada em empresa de transporte. Mas eu sempre me

espelhei nele. Ele era muito bom motorista, atencioso, gostava demais do carro dele e

sempre tratou muito bem da Kombi para a gente fazer essas viagens. Meu pai passou

muito tempo em São Paulo, fazendo entregas. Era um serviço duro. Durante muito tem-

po entregava resmas de papel e, algumas vezes, tanto eu quanto Daniel fomos fazer en-

trega juntamente com ele. Meu irmão também. Só que ele tinha uma vergonha danada.

Quando ele estava comendo as marmitas dele lá na Kombi, meu irmão colocava uns

papelões para esconder o almoço. Mas era muito bom, eu gostava de ajudar o meu pai,

eu gostava... Meu pai era uma pessoa muito alegre. Adorava botar apelidos e, assim,

chamar as pessoas. Era ele e a tia Conceição, gostavam muito de colocar apelido. Eu

acho até que o único que escapou foi o Ricardo, por não ter tido apelido. Mas o resto da

família, todos eles têm um apelido colocado pelo meu pai: é Jacaré, Cacareco, Expressi-

nho Foguete, Hélio Húlio, Compadre Parreira, Dr. Sujeira... Todos esses apelidos foi

meu pai que colocou. Eu gostava muito de o ver fazer isso. E achava muito divertido,

muito divertido. A tia Conceição tem essa mania também, ah tem, a velhinha gosta mui-

to quando a gente vai lá na casa dela e ela trata cada um com um apelido. Eu acho isso

interessante.

Antônio – Sílvio, fale da relação de Severino e Erotides. Parece que foi um casa-

mento meio difícil, não?

Sílvio – Muito conturbado. Eu nunca entendi aquela relação entre meu pai e minha mãe.

Era difícil. Minha mãe acusava meu pai de alguma coisa; por outro lado, meu pai re-

clamava muito da minha mãe. O fato é que eu nunca entendi muito bem a relação deles.

Houve algumas separações, alguns anos de separações, mas sempre se tentava unir a

família. Algumas vezes, meu pai deixou a gente e foi viver em São Paulo, atrás de ser-

viço; outra vez, minha mãe puxou a gente com o tio Inácio, que tinha um caminhão.

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Isso no tempo em que a gente morava em Caruaru. Ela jogou as coisas em cima do ca-

minhão e fomos para Petrolina, morar lá. E meu pai ficou em Caruaru e logo seguiu

para São Paulo. Passados alguns anos, ele voltou a Petrolina e conseguiu levar a gente

para São Paulo, novamente. Essa época foi meio complicada, porque nós chegamos lá

praticamente com uma mão na frente e outra atrás, buscando recomeçar a vida, não é?

Mas... conseguimos.

Antônio – Severino gostava muito de, repentinamente, viajar para o “Norte” (Nor-

deste). Você lembra alguma história que ele tenha contado desse tipo de viagem-

aventura?

Sílvio – Olha, eu lembro bem que, em 1996, nós viemos para o Norte, de novo. Aí já

viemos eu, minha mãe, o Edilson, a Sônia mais o marido dela e o Edinaldo, de tio Ma-

noel. Essa viagem foi muito boa com a vinda para cá. Nós ficamos na casa do tio Val-

deci, e a Sônia ficou na casa do tio Manoel. Eu sei que ele gostava muito de estar naque-

le ambiente. Gostava de passear e comer uns doces, tomar leite, comer cuscuz com lei-

te... Gostava demais de ficar nesse ambiente daqui do Nordeste. Eu sei também que nes-

sa viagem houve um desentendimento entre mim e o marido de Sônia, o José Carlos, e

meu pai ficou brabo com isso. Nós estávamos na casa do tio Manoel. Minha sobrinha

pequena dava um certo trabalho, junto com a minha filha. Eu sei que houve um desen-

tendimento com a Sônia por causa da menina, e o Zé Carlos tomou as dores. Aí saímos

na porrada (ri...). Meu pai ficou revoltado com essa situação e resolveu viajar de volta.

Pegou as coisas, jogou na Kombi e não teve conversa, tivemos que vir embora. Mas,

mesmo acontecendo isso, foi muito boa a nossa vinda aqui porque tivemos a oportuni-

dade de recordar algumas coisas e vimos a situação do povo daqui, muito acolhedor, e o

pessoal que veio com a gente não entendia muito bem o que é família junto com outra

família. Isso para mim foi marcante.

Antônio – Gostaria que você falasse de sua relação com os seus irmãos: Sônia, E-

dilson e Silvestre...

Sílvio – A relação minha com meu pai foi muito boa. Com a Sônia, também. A Sônia,

até no momento de dor, esteve sempre ao lado dele. Fez tudo por ele. Inclusive ela se

encontra meio adoentada, hoje, por esse motivo. Ela gostava muito dele, e ele gostava

demais das netas: da Ellen, Thais, Gustavo, ele gostava muito. O Silvestre teve uma

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relação muito conturbada com o meu pai. Mais ou menos no ano de 1978, a casa onde a

gente morava, na Vila Ema, era o fundo de uma casa, cujo proprietário morava na fren-

te. Mas a nossa morada era muito conturbada; muita inveja, promiscuidade e intromis-

são com as coisas que a gente tinha. Era turbulento, porque esse pessoal, proprietário,

não deixava a gente em paz. Nós morávamos numa casa de dois cômodos e tínhamos

que dividir um quarto com todo mundo. Era uma dormida meio sofrida. Mas era muito

boa, pena que o pessoal da frente às vezes conturbava o ambiente e, por algumas vezes,

minha mãe teve atrito com a mulher do proprietário da casa. Numa dessas vezes, a mu-

lher tentou matar minha mãe, jogando-a lá de cima da lage de cobertura. Eu não fiquei

sabendo ao certo o que aconteceu, mas resolvemos sair de lá, pois a situação estava in-

sustentável. Saímos de lá e fomos morar em Itaquera. A relação entre pai e filhos era

boa, só com o Silvestre é que tinha alguns problemas. Com o Edilson, não. Nos últimos

anos de vida de meu pai, Edilson o acolheu bem, cuidou bem dele e, algumas vezes,

levou-o a um posto de saúde porque ficou sabendo que ele sofria de arritmia, ou sopro

no coração. E ele começou a tratar do meu pai, levando-o aos médicos, ao posto. Meu

pai gostava de ficar com o Edilson. Agora, com o Silvestre, a relação era por demais

complicada, e eu não entendia o porquê, mas nos últimos anos de vida de meu pai ele

conseguiu obter o perdão. E houve esse perdão entre eles. Eu acredito até que, depois

disso, a relação ficou boa. Mas foi muito repentina a perda do pai.

Antônio – Sílvio, fale de sua família. Você é casado há quanto tempo, tem filhos?

Sílvio – Ah, sim! Sou casado... a minha filha nasceu antes de acontecer o casamento.

Ela agora vai fazer 23 anos. Tenho três filhos, que nasceram um após o outro. O mais

novo, Vinícius, vai ser pai agora. A garota com quem namora é muito bacana; aliás,

nem sei se estão namorando agora. Tem o filho do meio, que é o Renan, e para mim ele

é uma bênção. É um filho dedicado, está na igreja evangélica que eu frequento, toca

baixo, toca guitarra, toca bateria, e isso para mim, é gratificante porque ele não me dá

trabalho. Já o Vinicius me dá um pouco de trabalho, mas agora ele está trabalhando no

SENAC e acredito que em algumas horas eu tenho que puxar o freio dele porque ele é

atirado a fazer as coisas, né... Mas, finalmente, é muito boa a relação entre eles e mim.

Gosto muito deles e procuro dar assistência a eles naquilo que eu posso. Pelo lado da

mãe, eles também têm muito aconselhamento e respeitam a nossa autoridade. Quanto à

Erica, está para casar. Ela namora um policial, e eu gosto muito dele, do Leandro, da

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Lea e da Carol... gosto muito deles. Não há uma relação de aparência, eu gosto de fato

muito deles. Essa é a minha família.

Antônio – Para terminar, gostaria que você falasse de sua mãe, Erotides.

Sílvio – A minha mãe, devido a ela ter tido essa relação conturbada com meu pai, por

algumas vezes ela nos abandonou. Mas, sempre que havia uma conversa, ela se retrata-

va e nos tratava muito bem. Foi muito batalhadora, trabalhei junto com ela de “marretei-

ro”, corremos muito do comando da prefeitura. Minha mãe sempre nos ajudou. Hoje,

ela mora em Batatais e está satisfeita com a casa que ela adquiriu junto com o Edilson.

Gosta muito do local, está muito bem. Eu acho muito gratificante o envelhecimento

dela, afinal ela está com saúde, come que é uma beleza, come bem... Pra comer, a velhi-

nha é terrível. Quando nós vamos lá, ela nos trata muito bem, faz uma festa com os ne-

tos... faz uma festa formidável. Gosta de um forró que não é mole. No ano retrasado, eu

estive aqui no Nordeste. Passei lá na casa dela e, a peguei, juntamente com um velho

com quem ela estava lá e viemos para o Nordeste. Chegamos aqui e fizemos uma farra

danada. Um dia ficava na casa de um, no dia seguinte ficava combinado de ir à casa de

outro, e assim foi. O velho gostou também muito do lugar. Só que, na volta, quase que

ele morre. Foi muito sofrida a volta do homem, ele quase morreu. Mas minha mãe gos-

tou demais de ter vindo aqui. Pena que não houve mais tempo para a gente poder visitar

o resto dos parentes, tanto da parte do meu pai quanto da parte dela. Tenho uma tia, es-

posa do tio Anísio, que é a tia Enedina. Gosto muito da tia Enedina, como também gos-

to muito do tio Anísio. No ano passado estive lá com eles, no Mato Grosso do Sul. Foi

também uma viagem repentina. Peguei o ônibus em São Paulo, chegamos lá, em Arapu-

á, tomei uma chuva danada até encontrar um rapaz que tinha lá uma casinha na beira da

estrada e que nos serviu um café. Aí eu liguei para a tia e ela avisou para o tio vir nos

buscar, o que ele fez. A gente ficou esperando na beira da estrada. Gosto muito da mi-

nha tia, gosto muito mesmo, gosto mesmo de verdade. Ela é minha segunda mãe. Ela

também gosta muito dos meus filhos. É a madrinha do Vinícius. Gosto do tio Anísio,

um grande pescador. Nós fomos pescar por lá; ele larga tudo para fazer uma pescaria e

uma caçada. Larga tudo, esquece que tem filho, esquece que tem mulher, só pra fazer

essa parte aí que toca muito a ele. A nossa relação de tio e sobrinho é muito boa.

Antônio – E sua relação e lembranças com os demais tios e parentes?

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Sílvio – Eu gostava muito de tio Barbeiro, que era outro que apreciava muito colocar

apelido. Ele me botou um apelido e me chamava de “o santo”. “Fala, santo”! Esse era o

modo dele falar comigo. Eu sempre gostei do tio Barbeiro. Era ele quem cortava o meu

cabelo. Gosto também do Zenildo. Da tia Conceição, gosto demais dela. Ela se sente

muito bem e feliz quando nós vamos lá visitá-la, eu com os meus filhos. Da madrinha

Virgínia, também, gosto muito. Só que está faltando tempo para rever os parentes, e é

uma coisa de que eu gosto sempre. Ainda tem o pessoal que mora na Vila Ema, tem o

Givaldo, aliás, tem agora a casa do Givaldo, tem os filhos dele, a esposa. Tem o Elias e

tenho ido à casa dele. Estive no casamento da filha dele, minha prima, recentemente, e

foi muito bom e muito bonito... Só que o tio está deixando a desejar com a saúde dele.

Ele não está se cuidando, apesar do pessoal cuidar muito bem dele. Tratam dele muito

bem, mas ele não está se cuidando. Está deixando a saúde se debilitar cada vez mais. A

tia Madia, de vez em quando eu vou à casa dela; a Maria, da tia Madia, também. Ela

mora relativamente perto lá da gente. Outro dia, estive lá com o meu filho mais novo, o

Vinícius. È uma relação muito boa, e gosto sempre de estar visitando os meus parentes.

Quanto aos demais parentes do Nordeste, tenho aqui o Senhor e, agora, só o tio Valdeci.

Estive aqui no ano retrasado e larguei tudo para trás com o objetivo de ver o tio Valdeci,

tia Nieta, o Chico... Gostei muito de ter vindo e achei tudo muito diferente do que era

antes. O Zé Preto tinha falecido, havia pouco tempo. Ficamos, uma parte na casa do Tio

Valdeci, e outra, na casa da tia Anísia. Mas, lá na casa do tio Manoel, achamos tudo

muito abandonado, a casa caindo, mal-cuidada... O Chico não cuidava bem nem da casa

nem da tia. Diferentemente de quando o tio Manoel era vivo, tudo era cuidado lá, o ma-

to em volta da casa era cortado. Hoje, está tudo abandonado, lá. A casa do tio Valdeci,

ele reformou e nos recebeu muito bem. Tá tudo muito bem-cuidado. Mas achei meio

solitário, sentindo a falta de todo aquele pessoal lá, que vivia e convivia ao redor da

casa. Muito solitário. Mas eu tinha que vir aqui e matar essa saudade. Eu gosto muito

disso.

Antonio – E você agora, neste momento?

Sílvio – Eu estou gostando muito de estar nessa situação de poder viajar para onde eu

tenha de fazer o meu trabalho. Nesta oportunidade, eu tinha que vir aqui à casa do tio

Antônio. Não conhecia o Recife, nem o bairro dele, não conhecida a cidade. Mas eu

tinha de vir na casa do tio nem que fosse por algumas horas. Estou muito bem recepcio-

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nado. Eu também quero conhecer o Ricardo, que eu não conheço. Quando o vi, ele tinha

a idade de doze anos, me parece; lembro que ele tinha um cabelo loiro, liso. Mas não o

conheço. Hoje, estou sabendo que ele tem família, tem duas filhas, e eu o quero conhe-

cer. Eu estou aqui de passagem, mas, esta oportunidade não quero que passe em branco.

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José Guilherme dos Santos Filho (Jacaré)

72

Antônio – Jacaré, aqui estamos fazendo um trabalho para resgate da memória da

família Siqueira. E isso deverá ficar como um tributo aos nossos filhos e netos. Seu

nome completo...

Jacaré – José Guilherme dos Santos Filho, filho de Maria Verônica dos Santos e de

José Guilherme dos Santos. Atualmente, tenho cinquenta e nove anos e nasci no dia 21

de outubro de 1950. Na família, eu sou o terceiro. A primeira que nasceu foi Maria

(Guirra), depois o Givaldo (Giva) e, antes de mim, houve uma irmã mais velha do que

eu, que faleceu; o nome dela era... (busca lembrar). Deixa pra lá, logo mais eu lembro.

Depois, fui eu. Depois de mim, vieram o Toinho, o Osvaldo, o Erasmo, a Geni. Não, tio

72 José Guilherme dos Santos Filho (Jacaré), filho de José Guilherme dos Santos (Zé Guilé, falecido) e

Maria Verônica dos Santos (Madia). Vinte e oito dias após conceder esta entrevista o mesmo veio a fale-

cer em consequência de trágico acidente em Paranaguá, onde residia. A decisão de entrevistar o Jacaré se

deu em razão do mesmo ter uma prodigiosa memória e se apresentar como um grande narrador dos casos,

fatos e acontecimentos da família. Especialmente no período bastante turvo dos anos sessenta e setenta no

Brasil. Foi uma rara felicidade entrevistá-lo dias antes do seu falecimento, copiosamente pranteado por

todos da família.

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Antônio, estou confundindo as coisas. A primeira foi Maria, depois Giva, eu, Toinho,

Osvaldo, Geni, Erasmo, Reginaldo e Inaldo. Esses foram os vivos, porque teve umas

perdas no caminho aí, algumas das meninas faleceram.

Antônio – Jacaré, gostaria que você falasse de suas lembranças da infância lá no

Riacho Queimado. Não precisa nem chegar até Santa Luzia...

Jacaré – Não lembro muitas coisas, mas lembro que eu e o Toinho íamos buscar água.

Era num jeguinho, a gente colocava o caçuá neles com quatro latas cheias de água, duas

de cada lado e nós íamos pegar água lá na cacimba da avó, ali na Santa Luzia. Isso eu

lembro que nós fazíamos. No mais, eu e o Toinho, a gente já botava comida pro gado,

pegava berdoega... [tipo de erva sertaneja que brota nas várzeas durante o inverno

e que serve de alimento para os animais]. Lembro bem que a avó Onca (Verônica,

avó materna) pegava aquele queijinho dela e, naquela situação difícil, ela dividia tudo

com a mãe. Lembro bem de vê-la na mesa dividindo o queijinho; retirava um pouco de

leite e mandava a gente levar para a nossa casa. Isso aí eu lembro bem. E depois que a

gente veio morar ali onde morou a velha Traquinada e a Mãe Velha (avó paterna, Ma-

ria Guilherme), a gente (eu o Toinho) tinha como incumbência buscar o gado lá no

Riacho Queimado, especialmente quando o Givaldo não podia fazer esse trabalho. Nós

tínhamos umas cabecinhas de gado. Pai, nessa época, acho que já não estava mais lá e já

tinha vindo para cá. De fato, eu não tenho uma lembrança firme de pai, ali no momento

em que nós morávamos naquela casinha da Santa Luzia. Minha lembrança é um pouco

vaga. Com relação a nossas casas, nós tivemos uma de taipa, ali no pé da serra, junto da

várzea do açude. Aí acho que eu nem era nascido. A outra casa é a que pai construiu,

uma casa de tijolo, lá no Riacho Queimado. É daí que tenho lembranças, de buscar á-

gua... Eu acho que nasci ali naquela casa. Era para essa casa que eu e o Toinho carregá-

vamos água no jumentinho.

Antônio – Nessa época da casa do Riacho Queimado, você e Toinho faziam pernas

com Elias e Valdeci?

Jacaré – Eles já eram uns meninos maiores do que eu, né? Eles já eram mais “troncudi-

nhos” do que a gente; eram maiores do que eu. O Givaldo, que era mais velho, fazia

companhia com os dois, Elias e Valdeci. Eu apenas os acompanhava e ia atrás deles...

Levava a pior. Pra matar corôca [nome popular das lagartixas no sertão de Pernam-

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buco], eles mandavam a mim. “Vai, mata ali, vai tu, vai tu...” Eu subia em cima de uma

cerca e via aquelas bichonas balançando a cabeça; eu aí, “póf” na cabeça delas! No dia

seguinte, a gente abria aquelas bocas na borracha do estilingue para marcar quantas co-

rocas nós tínhamos matado...

Antônio – Jacaré, você lembra algumas trelas que Givaldo tenha feito por lá, nessa

época, com vocês?

Jacaré – Olha, uma trela de Giva comigo eu não lembro. Não tenho lembrança de ele

ter brigado ou judiado da gente. A única passagem dele, uma arte braba dele, foi botar

fogo numa cerca. Isso está na minha lembrança, e eu fiquei com muita pena dele, sabe?

O coitado ficou isolado, teve que fugir com a cara toda cheia de carvão... Ele tentou

apagar o fogo e não conseguiu. Com certeza, ficou com medo de pai, da reação dele. E

se amoitou lá na vizinhança, eu me lembro disso. E lembro que fiquei com dó dele, mas

foi um sufoco para apagar o fogo. Pois é, tio, o que a gente fazia lá no Norte quando

pequeno era carregar água, matar passarinho, juntava aqueles ossos de bois; eles eram o

nosso brinquedo. Brincava de boi, de fazer curral. Quando chovia, o que era raro, os

açudes enchiam e aí era aquela alegria, vinha muito peixe, o pessoal vinha tomar banho,

era aquela alegria danada, não era? Antes da chuva, apareciam aqueles insetos da bunda

grande, como é que elas eram chamadas? As tanajuras... Lembro que o pessoal gostava

de comer aquilo como tira-gosto. Torravam, botavam sal e tomavam com cachaça. Isso

eu lembro, o pessoal fazendo aquela festa...

Antônio – Como era a relação de Zé Guilherme com vocês? Ele era muito rude,

brabo e bruto com vocês?

Jacaré – Não, pai não era uma pessoa, um pai bruto com a gente. Somente quando a

gente aprontava algumas trelas. Mas era um homem justo, e eu não tenho nenhuma má-

goa assim... Briguei com ele, assim, alguma coisa, mas lá no Paraná. Não tenho nenhu-

ma lembrança de judiação de pai com a gente, não. Nunca vi maus tratos dele com a

gente e nunca vi também pai brigar com mãe lá, no Nordeste... De jeito algum! Eles se

davam bem. Quanto à relação de mãe com a gente, não tenho nem o que falar. Era uma

pessoa muito paciente, vivia sempre ajeitando a gente... Largava uma bronquinha na

gente, mas era bronca de mãe mesmo. Uma pessoa muito maravilhosa.

Antônio – O que você lembra do seu avô Zé Jorge?

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Jacaré – Do vô, eu tenho assim uma vaga lembrança. Mas lembro que era uma pessoa

que a gente respeitava muito. Por isso, a gente tinha até certa timidez de nos aproximar

dele. Mas eu gostava dele. Era aquele respeito por alguém meio sisudo, mas eu gostava

dele. Ele era uma pessoa que estava acima da gente. Mas não me parecia ser um homem

mau; eu não achava. Ele gostava muito de brincar comigo: “Venha cá, caboclo!” Ele,

então, estendia a perna e abria aqueles dedões do pé, prendia o dedo da mão da gente e

dizia: “Agora, escape!” A gente puxava, puxava e nada de escapar. E ele ria muito com

aquilo. Ele tinha essa brincadeira comigo. A gente tinha um respeito meio “amedronta-

do” por ele e procurávamos não desagradá-lo.

Antônio – E da vó “Onca”?

Jacaré - Nossa, nem me fale dela [emociona-se]. “Onca”, para mim, era mãe duas ve-

zes. Não consigo nem lembrar as broncas que ela dava na gente. Se for, foi insignifican-

te... [emociona-se...].

Antônio – E a escolarização de vocês? Onde se deu e quem era a professora?

Jacaré – Ah, tio, eu lembro muito vagamente que a gente ia lá, ao Vicente, como era

mesmo o sobrenome dele? Vicente... Cabral, não?! Eu cheguei mesmo a frequentar a-

quela escola dele, que ficava lá em cima, perto do açude do Estado. Mas como eu era

muito pequeno, eu tenho apenas vaga lembrança. O que aconteceu é que eu comecei a

estudar e, logo em seguida, nós mudamos para o Sul do país. Quando eu saí de Pernam-

buco, eu não tinha sete anos completos. Apenas começávamos a estudar, e por isso não

lembro de alguma professora assim que tenha me marcado. A única coisa que me mar-

cou a lembrança é que, um dia, nós estávamos voltando da escola e vinha com a gente,

eu e o Elias, um dos filhos do velho Valdevino, o mais novo deles; era Bia. Nós vínha-

mos voltando e aí a gente correu até uma pedrinha que tinha no caminho, onde sempre a

gente aproveitava para descansar. Só sei que uma cobra jararaca pegou na mão dele e

picou. Lembro que ele a levantou, assim, ainda dependurada no dedo dele. Ele, então,

passou mal... Danaram leite nele, só sei que ele escapou do veneno da bicha, mas o coi-

tado passou feio. Escapou de morrer por pouco. Pois é, da escola tenho uma vaga lem-

brança, porque apenas eu começava a frequentar. Eu acho, tio, que naquela época a gen-

te começava a frequentar a escola com a idade de sete anos, não era?

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Antônio – Se você tivesse a possibilidade de desenhar ou descrever hoje uma foto-

grafia do Riacho Queimado, fale de três coisas que você colocaria nela...

Jacaré – O que eu colocaria em primeiro, talvez porque isso me marcou muito, seria pai

vendo o fogo que Givaldo ateou à cerca. Eu não sabia onde estava o Givaldo e só lem-

bro o pai na porta de casa olhando aquele fogo arder... A segunda coisa que eu colocaria

na foto é a imagem de uma irmã minha, morta, em cima da mesa. Isso me marcou mui-

to, vendo aquele corpinho dela ali. A terceira coisa, tio, é a gente passando por aquele

caminho perto de onde a mãe velha morava, ali perto da casa da velha Traquinada. Mãe

Velha morou ali, não? Eu lembro que a gente passava ali, pedia água pra ela e me mar-

cou muito. Recordo que, antes de chegar à casa dela, tinha uma árvore – não sei se era

aroeira - e nela tinha um ninho de “casaca-de-couro” [ave passeriforme da família dos

furnariídeos (Pseudoseisura cristata), encontrada no Brasil (NE e C-O), Paraguai e

Bolívia; com cerca de 21 cm de comprimento, topete alto, olhos amarelos e colori-

dos ferrugíneo-claros uniforme; carrega-madeira-do-sertão, carrega-madeira-

grande], e o canto deles ficou na minha mente até hoje, acredita? A gente chegava à

tardinha e, lá da porta de casa, víamos quando elas disparavam a cantar. Essas são as

três coisas mais marcantes que eu consigo lembrar. Depois que a gente veio morar ali,

na Santa Luzia, lembro que eu e o Toinho fomos buscar o gado lá no Riacho Queimado,

e quando a gente estava ali naquela manguinha do fio do telégrafo, verificamos que uma

novilha tinha dado cria e tinha furado a cerca. Rapaz, essa novilha não queria se juntar

ao gado e bem nesse local estava o “f. d. p.” do carneiro Malaquias. Brabo, que nem o

satanás. Ah, miserável! E quando eu e o Toinho tentávamos juntar a novilha com o ga-

do, lá vinha ele e, nessa hora, nós tínhamos que correr e subir em cima da cerca. Pode

um negócio desses? E o danado do carneiro rodeando, a hora passando e a noite che-

gando. Olha que sacrifício. Eu sei que nós tivemos de ir embora, deixando a vaca lá e

trazendo a outra do Barbeiro que tinha tido cria. É aí que passamos ali pela casa da ve-

lha Traquinada, que morou lá no Riacho Queimado e, como já era noite, ela nos deu um

facheiro para a gente voltar até o bebedouro ali de Zé Bernardo, pertinho da casa do tio

Manoel. Ali, naquele corredorzinho da estrada, antes da ponte do Tio Manoel, o bezerro

da vaca do Barbeiro escapou. A vaca também era braba que só a peste. Daqui a pouco,

lá vem a vaca atrás do bezerro, e aí eu tive que subir numa cerca e o Toinho ficou es-

condido atrás de uma touceira de ariú [rindo muito]. Um sufoco danado. Nisso, vem o

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Givaldo e o Valdeci e nos ajudaram. Era um escuro danado! E a gente era tudo uns ca-

beçudinhos, uns sambudos.

Antônio – Vocês saíram lá do Riacho Queimado e vieram pra Santa Luzia morar

ali naquela casinha da bodega que o Zé Guilherme construiu?

Jacaré – A gente morava ali naquela casinha de baixo e tocava a bodega. Foi a nossa

última morada lá em Sertânia. Mãe era quem tocava a bodeguinha e lá ela vendia pão,

não sei quem era o padeiro em Sertânia, não sei se era Zé Morais. Ela vendia uns pães e

também uns docinhos pequenos, umas “mariolas”. Eu dormia com mãe para evitar rou-

bo à noite. Logo que ela dormia, eu roubava aqueles docinhos e também um pão bem

grande, que era feito de massa de péssima qualidade, meio trigo, meio xerém. E eu ia

comer aquilo escondido lá longe no curral [rindo muito]. Eu roubava aquilo da coitada.

E o pior era que, no dia seguinte, ela perguntava: “Tu não mexestes nisso aqui?” Eu

dizia: “Não mãe, eu não mexi não!”. Só sei que num dia desses ela foi viajar e a Mãe

Velha ficou tomando conta da bodega. Eu não sei se Mãe Velha morava com a gente ou

morava na casa que foi do Barbeiro. Eu sei que ela ficou tomando conta da bodega. Eu

lembro, então, que num certo dia ventou bastante e apagou a lamparina, né? [rindo

muito]. Aí eu vi o tempo de roubar... Mãe Velha rodando os braços e gritando “Sai da-

qui, cabra safado”! E ficou com as mãos em cima do balaio... [rindo muito] Eu acho

que Deus me ajudou a aprender a fazer pão, mas não tinha explicação. A Mãe Velha

preocupada com a lamparina apagada para que não se roubasse o pão da padaria.

Antônio – Jacaré, o que você lembra dos seus tios mais velhos que Elias e Valdeci...

Porque tinha acima deles eu, Anísio, Severino, Conceição... Que tipo de lembrança

você tem de nós?

Jacaré – De vocês todos eu tenho pouca lembrança, do Anísio, por exemplo. Do senhor

eu lembro quando ia estudar. Lembro que ia e voltava, era uma festa, muito gostoso

quando o senhor voltava, era grande a alegria do pessoal. Isso eu lembro. Eu lembro

também daquelas colheitas que o vô fazia, naquele tempo, acho que era de algodão, né?

Tenho também uma lembrança de Conconha (Conceição) tentando namorar não sei

quem diabo era. Só sei que era uma paquera. Ela ficava ali naquela janelinha da sala, e

os caras pesando algodão, aquelas arrobas de algodão e ela na paquera. Mas não lembro

o cara que ela tentava paquerar. Não sei se era Luís Gomes, filho de Maria Gomes. Luís

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Gomes foi meu padrinho. Lembro que um irmão dele roubou um sapato. Sei que esse

irmão de Luís Gomes roubou um par de sapatos em Sertânia e o irmão dele ficou puto

da vida com o cara. O vô, então, ficou indignado. E esse cara terminou se amoitando ali

naquela manga que fica lá pro lado de tio Manoel; como era que se chamava? Zé Ber-

nardo. Era Zé Bernardo. Eu sei que o cara se amoitou lá nos pés de bananeira, e a polí-

cia veio catar ele e catou. A Virgínia deve se lembrar disso. E certamente deve lembrar

a paquera da Conconha. Do tio Anísio, eu não lembro as danadas das caçadas que ele

fazia nem das pescarias... Não tenho nem vaga lembrança, assim, dessas coisas. Do

Barbeiro, eu lembro assim com a tia Edite. E do senhor, eu lembro quando vinha para as

férias. Era uma festa, era muito animado quando o senhor vinha. Do Juca (Severino), eu

lembro quando ele chegava com a camionete dele, aquele cheirinho gostoso de carro a

gasolina. Era um zelo danado que ele tinha com aquele carro dele.

Antônio – Bem, aqui a gente encerra essa fase de sua infância lá em Sertânia; você

era apenas um garoto com a idade de sete anos incompletos. Muito novo para lem-

brar tanta coisa como as que lembrou. Agora, vem a pergunta: e depois disso?

Jacaré – Agora vem a viagem para o Sul.

William – Jacaré, uma curiosidade minha: o que aconteceu no dia em que vocês

souberam que vinham embora para o Sul? Como vocês receberam essa notícia?

Jacaré – Eu tenho assim uma vaga lembrança que a mãe falou para o vô que queria vir

embora para cá. E pai já estava certo de voltar do Sul para o Nordeste. Quando a mãe

soube da notícia que ele estava para voltar, aí ela apressou a viagem da gente. Ela falou

para o vô, e ele não impediu ela de viajar. Disse “Você é quem sabe!”. Nessas alturas,

eu e os outros ficamos muito alegres. Primeiro, pela viagem, pensou? Sabia que íamos

de pau-de-arara, mas nem pressentíamos o sofrimento que iríamos enfrentar. Minha mãe

se juntou com Zé... Zé Miguel, sei lá, juntou uma turma lá... Não me lembro de ter fica-

do com pena de ter deixado amigos e colegas. Fiquei, sim, com pena de ter de deixar o

vô e a vó. Isso aí a gente sentia muito. Mas, enfim, o normal era que você, enquanto

criança, diante da possibilidade de uma viagem... A gente ficava era excitado.

Antônio – Dessa viagem, o que ficou em sua memória desde o primeiro dia em que

vocês saíram lá da Santa Luzia?

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Jacaré – Sofrimento teve muito. Agora, enquanto criança a gente não consegue enten-

der a extensão desses sofrimentos... Eu lembro que, no primeiro dia, ou no segundo - e

não sei qual o local onde a gente estava –, os bancos do pau-de-arara começaram a se

quebrar. Quebrou um e ralou o couro do meu pé, aqui [aponta o local no calcanhar].

Eu estava no lado, assim, do lastro do caminhão e um cara escarrou de lá e veio me pe-

gar aquela patoca de catarro. Aí começaram os sofrimentos. Rodamos, rodamos e ter-

minamos parando num lugar lá da Bahia, não sei qual era o lugar, só sei que era mesmo

na estrada. O negrinho Liro, que vinha com a gente, juntou-se com outros homens lá e

foram pegar um bode pra gente comer. Entraram lá na caatinga e cataram dois bodes.

Eu lembro que, em Tucano, na Bahia, nós comemos esses bodes em praça pública, no

meio da rua. Foi montada lá uma tenda num dos caminhões, e aí nós comemos esses

bodes. Eu acho que foi em Tucano. A viagem continuou e, antes de chegar a Minas Ge-

rais, tinha na viagem um moleque que fumava que só a gota serena e ele começou a

judiar de mim. Ele me bateu e aí eu contei para o Giva. O Giva, então, lhe deu uma “en-

costada” boa, e ele parou de me incomodar. O bicho era marrudinho, mais forte do que

eu, e acho que ele me deu um soco. Em Minas Gerais, eu lembro que nós paramos, e

mãe não tinha mais dinheiro. Ela tinha um bauzinho, uma mala pequena. Ela, então,

vendeu essa mala para pegar um dinheirinho e comprar comida pra gente. Eu sei que era

uma lama danada. Muitos dormiam em umas redes armadas no caminhão... Ali, nós

comemos farinha e cebola, aquele pirão, sabe, tio? Eu me lembro que nós comemos isso

aí. Eu sei que foi um sufoco danado a partir daí. Tivemos que sair à noite atrás de um

caminhão para nos levar até o final da viagem, na Imigração. Os caras do pau-de-arara

nos abandonaram, não sei em qual lugar. A polícia, então, foi atrás deles e os obrigaram

a nos trazer até Vitória da Conquista ou Governador Valadares, em Minas, acho. Aí

nesse lugar é que o Osvaldo, que estava brincando com outros meninos, caiu dentro de

uma boca-de-lobo. A mãe de seu Terto puxou, então, o Osvaldo pensando que era o

filho dela, e mãe só percebeu que era o Osvaldo quando foi lavar aquela lama preta de

esgoto que melou ele todo... “Não é o teu filho, não, mulher! É o meu mesmo!” Dali,

chegando a São Paulo, nós fomos pegar um transporte, creio que era o setor da Imigra-

ção. Essa viagem que fizemos do Norte até São Paulo foi feita num velho caminhão

FNM (abreviação da Fábrica Nacional de Motores). Foi aí que o Givaldo adoeceu e

ficou morrendo de febre. Deitou-se na porta de um bar abandonado, que estava fechada,

e ele ficou lá, dormindo. Depois de andar um bom pedaço, a gente se deu conta de que o

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Givaldo não estava mais com a gente. “Cadê o Givaldo, cadê o Givaldo”... Tivemos que

voltar, e o encontramos deitadinho ali na porta do bar. Em São Paulo, a lembrança que

tenho é que nós chegamos à rodoviária. Aquela luminosidade, aquela claridade! Aí já

não vimos mais mãe. “Cadê mãe?” O fato é que o Erasmo vinha mais do que ruinzinho

de saúde, e aí uma cafetina, vendo aquela preocupação de mãe, pegou um taxi e a levou

com o Erasmo para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Nós ficamos alojados lá

numa pensão... Um pernilongo do satanás, né? Gente tossindo, outros com caganeira,

um calor infernal... Logo que a gente chegou à Estação da Luz, acho que nos deram

melancia. A gente era muito pequeno e não sabia que decisão tomar, não era? Quem

ficou mexendo no primeiro dia foi Zé de Melo. Lembro que, no segundo dia, acho, vi

uma camionete passar e dentro dela estavam o tio Severino e o tio Anísio. Foi aquela

alegria!

Antônio – A partir desse momento, o que você consegue lembrar na sequencia des-

sa sofrida viagem?

Jacaré – Nós fomos trazidos para a casa da tia Flora, na Vila Carioca. E ali nós ficamos

por uns dois ou três dias; talvez uma semana, tio. Acho que ficamos aí uma semana.

Lembro também que nos fundos da casa tinha assim uma água, muita lama de esgoto,

uma terra preta onde a gente passou a jogar bola e ficamos brincando ali. Lembro de

nessa ocasião ter visto o Branco e o Sebinha, filhos da tia Naninha, irmã de Zeca. Eles

também eram pequenos, e a gente ficava ali junto, conversando e brincando naquela

água. Só isso, o que lembro é só isso. Dali, lembro da nossa saída no trem da Imigração.

Aí o pai já tinha vindo nos buscar, e eu o lembro viajando com a gente no trem, indo

para o interior do Paraná, até Maringá, acho. Daí em diante, não me lembro como che-

gamos ao lugar onde iríamos morar, Cafeeiros.

Antônio – Vamos nos concentrar agora no oeste do Paraná, em Cafeeiros. Como

foi a infância ali? Vocês frequentavam a escola? O que se lembra dessa época da

escola?

Jacaré – Eu lembro que a gente trabalhava e ia ali para aquela escolinha. Tinha um se-

nhor que possuía como patrimônio uma fazenda de café. E pai recebeu um pequeno

pedaço de terra para plantar e colher café. E nós nos danávamos a cultivar e colher café.

Depois de certo tempo - não sei quanto –, lembro que a tia Flora foi até lá nos visitar.

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Ela ficou uns dias com a gente, conversou com mãe e levou o Givaldo com ela para São

Paulo. Isso aí depois que conversaram um pouco entre eles, meu pai, mãe e tia Flora; a

gente não sabia do que se tratava, nós éramos ainda molecotes. Nós não ficamos muito

tempo ali em Cafeeiros, acho que ficamos apenas um ano e meio, dois anos quando

muito. Nosso trabalho ali era rastelar café: eu, Toinho e mãe. Mãe apanhava o café e

depois limpava o café na urupema. Com aqueles saquinhos de café, fomos economizan-

do e juntamos um pouco de dinheiro. Pai trabalhou muito ali. Daí saímos de lá para Pé-

rola. Ele comprou um sitiozinho lá, que distava uns trinta quilômetros de Cafeeiros. Em

Pérola, o sítio ficava no meio de uma mata virgem. Conosco, foi para lá também o Liro

de Xéu. Aí eles fizeram uma derrubada de um hectare e vinte e pai fez uma casinha de

madeira, inclusive as telhas eram de cedro e de peroba. E foi pai quem fez. Daí eu lem-

bro que nós mudamos de Cafeeiros para esta casa em Pérola. As condições eram difí-

ceis. Toco por tudo quanto é lado, roça nova, não é? Foi um sufoco danado. Frio pra

cacete; a gente ia a pé para a escola, numa distância de seis quilômetros, eu e o Toinho.

Era frio mesmo, e a gente vestido naquele guarda-pozinho do cacete... Numa distância

de seis quilômetros pra ir e seis prá voltar. Minhas professoras, puxa vida, tio! Eram

pessoas maravilhosas. Uma era Maria Helena, e a outra, gorda, já de idade. Estou ten-

tando lembrar o nome dela. Era... Esqueci o nome dela... Até um ano e meio atrás, eu

fui lá com Irene visitar Pérola e perguntei por ela e me disseram que ainda era viva. Ma-

ria Helena e outra... Japonesa. Eram muito boas essas professoras. A escola era uma

casa de madeira, um nível de escolaridade muito bom no Paraná daquela época. Nei

Braga era o governador do Estado. Uma escola muito boa. Aprendi bastante lá. Lembro

que foi lá, onde tinha uma igreja ao lado da escola, que uns irmãos coadjutores que vie-

ram de Minas Gerais procuraram saber quem é que tinha vocação para ser padre. Eu não

tinha vocação. Minha mãe, então, falou: “Meu filho, você topa ir para o seminário?” Eu

respondi: “Eu topo, mãe; nem que seja pra pegar estudo, eu vou”. Ela foi, então, conver-

sar com aqueles padres, e eles deram uma listinha do que era necessário. Sabendo das

nossas dificuldades, eles sugeriram meu pai vender um porco para adquirir aqueles ob-

jetos. Não sei se pai, ou por covardia, ou mesmo com medo de me perder, eu sei que ele

não quis ir adiante. Era para estudar em Minas Gerais. Mas eu tinha vontade de enfren-

tar aquilo, afinal eu queria estudar, né? O dia-a-dia da gente era acordar cedo; algo as-

sim como às seis horas a gente tinha que levantar. Geada, frio pra cacete... Você via

aquela graminha, assim, coberta de gelo, mas gelo mesmo... As orelhas queimavam, os

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beiços rachavam. Às sete horas, a gente ia para a escola. O caminho da escola era um

areião danado. Um dia, eu e o Toinho estávamos no caminho da escola e ainda faltava

muito pra chegar. E aí vimos um ônibus de empresa Garcia. Eu, então, fiz sinal para o

ônibus e ele parou. Nós entramos de porta adentro. Ai o motorista falou prá nós: “Vocês

têm dinheiro para a passagem?” “Não, senhor!” “E como é que vocês para um ônibus

para viajar sem ter dinheiro?” (rindo muito). A gente, então, disse prá ele: “Tá muito

frio, a gente não aguenta mais esse frio”. Ele disse: “Tá bem, dessa vez eu vou perdoar,

mas na próxima vez não façam mais isso” (rindo muito). Só sei que nos levou até per-

tinho da escola... Tá louco, como fazia frio naquele dia! As aulas acabavam às onze, as

onze e meia... A gente com uma fome daquelas e sem um tostão. Lembro que a gente

passava defronte de um restaurante, ainda lembro o nome: “Tio Barole”. Aquele cheiro

de comida, e a gente ainda tinha que andar seis quilômetros a pé. Areião, sol quente. No

caminho da volta, tinha uma mata e no meio dela tinha jatobá. A gente comia jatobá e

chegávamos a casa por volta de uma hora e meia. Comíamos aquela comidinha e aí, por

volta de duas e meia, três horas, tínhamos que ir para a roça. Nós ficávamos lá até o

“polvinha” atacar a gente. Era um mosquitinho bem pequeno que entrava na orelha da

gente; ele entra onde tiver buraco e morde. Era um inferno, tio! Nossas brincadeiras era

jogar bola, com bola de meia, caçar passarinho, tomar banho numas cachoeirinhas que

tinha lá perto, cuidar dos porcos. Essa era a nossa vida no dia-a-dia do Paraná.

Antônio – Jacaré, nesse mesmo período a que você se refere, recordo que numa de

minhas férias de fim de ano – eu estudava no seminário de Viamão, na grande Por-

to Alegre, creio mesmo que era em dezembro de 1961 – eu, Duda e Givaldo fomos

de São Paulo a Pérola fazer uma visita a vocês. O que você lembra dessa visita?

Jacaré – Lembro, Nossa Senhora, foi um dos melhores acontecimentos tidos por lá.

Antônio – Nessa ocasião, lembro bem que o calor era insuportável. E nós tínhamos

a opção de nos banhar numas cachoeiras lá perto - eu, Duda e Givaldo. Lembro

também que nós dormíamos num quartinho lá na casa onde Zé Guilherme guar-

dava feijão em vagem, seco e, à noite, os guabirus vinham comer do feijão, passan-

do por cima de nós, das camas... Duda ficava todo crispado com aqueles ratões

passando por cima dele, e eu dizia que ele estava era com saudades de Terezinha.

Ele, então, respondia: “Ôxe, ôxe, ôxe”... Lembro também que Madia estava com

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uma ferida braba na perna que teimava em não sarar. Aquilo me encheu de pena

dela. Fui à farmácia, comprei água oxigenada, um pó cicatrizante, - acho que era

de nome “Anaseptil” -, esparadrapo etc. Dei a ela. Não sei se você recorda disso...

Jacaré – Lembro, lembro bem disso tudo... Inclusive, falando desse quartinho onde pai

guardava cereais, lembro que tinha rato pra cacete. Os guabirus subiam no telhado, des-

ciam pelo caibro e ficavam em cima da parede comendo o cereal. Um dia, eu disse prá

mim: vou pegar este “f.d.p.” Era cada catitão... Um escuro, meu. E eu ficava só na espe-

ra que ele passasse. Numa dessas horas, fechei as mãos e catei o catito velho, crau!... O

lazarento danou-me o dente no dedo, cortou, assim a ponta do dedo. Eu, então, esma-

guei o condenado e terminei enforcando o miserável (rindo muito). Era um catitão da

gota de grande.

Antônio – Numa dessas vezes em que Zeca e Flora foram a Pérola, Zeca parece

que matou uns frangos de Madia imaginando que estivesse vendo jacus...

Jacaré – (rindo muito). Essa tragédia aconteceu em Pérola, onde você nos visitou. Foi

aí que ele perpetrou essa tragédia. De manhã cedo, acho que nós estávamos colhendo

milho e mãe fazendo o café. Lembro que ele falou assim pra mãe: “Eu vou matar uns

jacus. Não vou nem lavar a boca e escovar os dentes para ir com todo o veneno”... (rin-

do muito). De fato, naquelas matas tinha muito jacu. Eu o lembro contando que chegou

assim no aceiro do mato e viu aquele pássaro preto... Disse, então: “É um jacu”. Nesse

meio tempo, viu que tinha outro. Ele, então, contou que ia esperar para emparelhar os

dois num só tiro (dá risada). Eu sei que ele sapecou fogo e matou os dois frangos de

mãe. Voltou pra casa e, ao chegar com aqueles dois frangos, foi logo contando pra mãe:

“Madia, olha aqui o que eu matei de um tiro só...” E a mãe: “Cabra safado, tu mataste

meus frangos que eu estava deixando pra galo, que diabo de jacu que nada...” Foi uma

bagunça e uma festa da gente, dando muitas risadas. O seu Zeca era cheio de arte, de

vez em quando ele aprontava cada uma, que só vendo.

Antônio – Como é que foi essa coisa de deixar o Paraná e vir aqui para São Paulo?

O Givaldo já estava aqui, não?

Jacaré – Olha, tio, nesse meio tempo em que estivemos no Paraná o vô Guilherme nos

procurou lá, não sei de onde ele estava vindo, parece que de São Paulo ou mesmo do

norte do Paraná. Eu lembro a imagem dele: uma camisinha suja, surrada... E foi muito

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boa a estada dele lá com a gente. Ele ficou conosco um bom tempo, até que o pai conse-

guiu um sítio do vizinho para ele tomar conta, e ele ficava ali, na casinha do vizinho.

Gostava de futebol. Nos domingos, se mandava para Pérola e ficava o dia todinho lá, só

voltando de noitinha. Foi uma passagem boa do velhinho na casa nossa lá. De noite, ele

nos chamava para jogar baralho, truque. Eu lembro que eu e o Toinho corríamos lá, e

pai, chegando a casa, sem ver a gente, o pai ia até o roçado e gritava:“Toinho”?! Ele não

gostava que a gente pisasse na bola. Aí o vô dizia: “Vão embora, o pai de vocês está

chamando”. A gente parava o truque e corria prá roça. O vô naquela época, creio que

tinha uns cinquenta e poucos anos. Era fortinho o danado. Lembro que ia para os jo-

gos... Certa feita, ele veio jantar lá em casa e comumente ele já vinha chutado de vinho.

Ele tomava sempre um vinhozinho. Por causa disso, ele danava-se a cochilar. Mãe, en-

tão, dizia: “Pia, pia...” E a baba do vô pingava... (rindo). Eu adorava ver ele comer. Ele

comia aqueles pratões de comida e ia comendo pelas bordas do prato, arrumando a co-

mida bem arrumadinha... Ele chegava a esconder vinho no mato pra mãe não ver. O fato

é que ele chegava bonzinho em casa e, de repente, ficava meio chumbado. Acho que ele

tomava aquele copão. Nessas horas, mãe dizia: “Pia, o danado deve ter enterrado vinho

nessas beiradas de mato por aí”... Mas foi muito bom a passagem dele com a gente lá.

Nesse intervalo, pai comprou uma chácara perto, chamada Santa Elisa, distante uns seis

quilômetros da nossa. A gente ia a pé até lá e, às vezes, ficávamos uma semana toda lá.

Pai plantava arroz, e no rancho eu fazia a comida. O rancho ficava na beira da mata e

tinha muita onça por lá. Pai construiu umas tarimbinhas, e a gente dormia em cima des-

sas tarimbas. Eu ficava com ele por lá e já devia ter uns dez anos de idade. Terminei

vindo aqui para São Paulo com treze anos.

Antônio – Jacaré, seu sobrinho Cláudio lamentou muito não poder vir para parti-

cipar dessa entrevista, onde ele gostaria de lhe fazer algumas perguntas. Por conta

dos afazeres profissionais dele, não pôde comparecer, mas organizou aqui uma

lista de questões que mandou pela internet para o Williams colocar para você no

lugar dele. Lê aí, Williams, a primeira dessas questões que Cláudio lhe dirige...

Williams – Algumas questões já foram colocadas. Outras, não sei. Aqui vai uma

primeira pergunta: o que você sabe sobre a fazenda Matarina ou algumas histórias

referentes às famílias Guilherme, Batista Torres e Siqueira?

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Jacaré – Da Matarina, sei poucas coisas, a não ser o que comentam mãe, tia Virgínia,

tia Conceição. Eu sempre soube que, enquanto estiveram lá, tiveram uma vida dura.

Mas eu nunca fui lá, nem de visita. Dos Guilherme, não sei nada. Dos Batista Torres, sei

o que Seu Zeca comentava, que a família trabalhava lá na Paraíba para um coronel e que

a vida lá também tinha sido muito difícil. Eles perderam o pai deles lá e viveram uma

situação muito difícil. O Seba, sendo o mais velho, tomou conta dos irmãos e irmãs, já

como moradores do vô, em Sertânia.

William – Tio, outra pergunta: quem foram os seus padrinhos e onde o Sr, foi bati-

zado?

Jacaré – Devo ter sido batizado em Sertânia. Os meus padrinhos de batismo foram tio

Umbelino e madrinha Celina; o de crisma foi Carlos Gomes, filho de Maria Gomes e

João Manoel, que moravam com o vô em Santa Luzia.

William – Você sabe dizer em que igreja seus pais casaram e quando?

Jacaré – Não sei. (Antônio: Jacaré sabe lá disso coisa nenhuma! A Virgínia é quem

deve saber. Na entrevista, ela falou que Madia e Zé Guilherme casaram em Sertâ-

nia, inclusive disse que lembrava que o vestido de casamento dela, da Madia, era

muito bonito. Mas acredito que Madia pouco tenha comentado sobre esse assunto

para os filhos. Acho que é isso que o Cláudio queria saber, não?)

William – Tio Antônio, vamos retomar a memória dele sobre o Paraná. O Senhor

encerra as suas perguntas e eu vou vendo o que Cláudio colocou aqui sobre o Pa-

raná que ainda não foi abordado...

Antônio – Ok. Tá certo. Jacaré, você gostaria ainda de falar algo sobre o Paraná,

nesse período em que você estava em trânsito para São Paulo? Seu Guilherme, por

exemplo, onde ele ficou? Teria vindo com vocês para São Paulo?

Jacaré – Ele veio com a gente para São Paulo. Como ele era separado de Mãe Velha,

eles se viram aqui; mas como eles nunca se “bicaram”, ela ficou morando com o Barbei-

ro e ele com a gente. Mas separados. Lembro que ele ficou um bom tempo com a gente.

Ocupava-se em vender pipoca num carrinho que ele tinha. A gente até roubava uma

pipoquinha dele e ele então dizia: “Cabra sem-vergonha...” Ele era brincalhão com a

gente. Ele pegou uma pneumonia dupla e foi internado no Hospital São Paulo, onde

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veio a falecer. Tanto a vó quanto o vô eram muito amorosos para com a gente. Eu, pelo

menos, tive muita sorte com meus avós. Não tenho de que reclamar.

Antônio – Como é que foi a sua vinda para São Paulo? Vocês saíram do Paraná,

por quê? Como é que foi a viagem? (William: novamente, uma boa notícia: vamos

viajar!... Lembra do dia? [todos riem])

Jacaré – Acho que mãe sempre foi uma mulher iluminada. Ela veio a São Paulo fazer

uma visita a tia Flora – que era o carro-chefe da família – e possivelmente a tia aconse-

lhou ela a migrar para São Paulo. Givaldo já estava em São Paulo, trazido pelas mãos da

tia Flora e do Seu Zeca. Mãe voltou para o Paraná e voltou encantada com as coisas que

viu por aqui. Ela contava que os caipiras que nós tanto gostávamos de ouvir e tínhamos

de andar até a casa de uma comadre dela, à noite, no escuro de cinco quilômetros para

ouvi-los pelo rádio, em São Paulo - dizia ela -, a gente podia ver e ouvi-los ao vivo. A

gente ficou deslumbrado. Um mundo novo e diferente. Chegou decidida a ir embora

para São Paulo e logo falou pro pai: “Vamos vender isso aqui e vamos embora para São

Paulo, porque aqui nós não temos futuro, esses meninos não têm futuro”. Eu sei que ela

fez a cabeça do pai, e nesse intermédio apareceu um problema no meu pé que rachava e

sangrava, doendo muito. Por isso, foi antecipada minha vinda. Vim e fiquei morando na

casa da tia Virgínia, morando juntamente com o Valdeci e a tia Conconha, ali no Ipiran-

ga. Tão logo cheguei, a Conconha me levou lá no Hospital das Clínicas, e os estagiários

de medicina me tomaram como um estudo de caso, receitaram uma pomada, e sei que

logo fiquei sarado, me curaram. Nesse espaço de tempo, fiquei com a Conconha, naque-

la rua... Auriverde. Era eu, o Chico (Valdeci), Conconha e a tia Virgínia. Dali eu fui

ficar com tio Duda, na Rua Brás de Pina. Fiquei um tempinho ali com ele. Ele sempre

vinha trabalhando ali na Petersen. Tanto ele quanto a Terezinha me acolheram muito

bem. Nesse intermédio, pai conseguiu vender lá o sitio e vieram embora para São Paulo.

Aí foi mais uma luta danada, né? Pai conseguiu vender lá, e nós terminamos comprando

aquele terreninho ali no Jardim Tealha, na Vila Ema. Não lembro o dinheirinho que ele

tinha, não tinha a menor noção, apesar de já estar com treze anos, né? Eu e Givaldo - ele

já morava com a tia Flora, e eu me juntei a ele - começamos a trabalhar juntos na firma

dele. Nós dormíamos naquele porãozinho, ali embaixo da descida da escada da casa de

Seu Zeca.

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William – Em algum momento, você ficou na casa do Anísio enquanto a casa de

vocês ficava pronta?

Jacaré – Acho que ficamos, sim. Logo que chegou a mudança, ficamos. Estávamos

com a tia Flora, eu e o Givaldo. E, quando da vinda do pai, nós ficamos ali no quintal do

Anísio, sim. Entre a casa do Anísio, que morava na frente, e a do Barbeiro, que ficava

nos fundos do terreno.

Antonio – Qual era o sentimento de vocês, os irmãos menores, ao saberem que o

Givaldo já estava em São Paulo, como rapazinho, trabalhando, jogando futebol,

bem-vestido... Qual era a sua sensação?

Jacaré – Quando você foi lá com ele, no Paraná, meu Deus, a saudade dele era grande,

e nós sonhávamos vir morar numa cidade grande. Quando alguém ia lá, a gente tinha a

sensação de uma eternidade de tempo que não passava. A gente sonhando com alguém

que voltasse lá. A nossa esperança era de um dia vir embora para São Paulo. Foi ai que

mãe teve essa ideia. Sair daquela vida lá e, como falava-se bem da cidade grande, nosso

sonho era sair de lá.

Antônio – Jacaré, Givaldo falava a vocês de algum sentimento dele com relação a

Flora e Zeca?

Jacaré – Para ele, eram pai e mãe. Tinha que respeitá-los. A tia para ele, então, era mãe,

era amiga, era tudo. Deram-lhe escola, trabalho, tudo. Ele tinha muito respeito também

pelo Seu Zeca. Também ele era um cara disciplinado, não é, tio? Cuidava de mim. Foi

ele quem um dia comprou aquela brilhantina de nome Glostora e passou na minha ca-

beça, tentando botar os meus cabelos para trás. Eu dizia: “Meu Deus, tá doendo no co-

co...” E ele: “Aguenta, eles têm que ir pra trás...” (rindo). Givaldo foi muito especial

(enche os olhos de lágrimas).

William – Você lembra o dia em que mudaram para a casa nova, lá no Jardim Te-

alha?

Jacaré – Olha, eu lembro que o tio Anísio – ele era um guerreiro danado, Givaldo tam-

bém, e ate nós que já ajudávamos – estava à frente de tudo. Foi uma trabalheira danada.

Quando nós mudamos, eu lembro que não tinha vitrô nas janelas, não tinha nada. Nós

cobrimos aquilo com papelão, o chão era de cimentado rústico. Mas, fazer o quê? Nós

mudamos. Com o tempo, nós todos, meninos, fomos cada um para o seu cantinho, né?

Não tínhamos televisão e a gente, para assistir, tínhamos de ir lá, no Jarita (tio Anísio),

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incomodando a Nega (Enedina). Precisava ver nos dias de chuva, aquele barro vermelho

nos sapatos; acredito que a Nega não gostava nada daquilo (rindo). A gente querendo

ver aqueles filmes de guerra, de combate, enquanto a tia Enedina tinha aqueles progra-

mas de auditório dela, da Hebe, não sei mais quem... Mas ela colocava os nossos pro-

gramas para a gente poder assistir. Um barro danado... “Menino, limpa esses pés...” E

nós todos, aqueles cabeçudos. Ai começou nova fase na vida da gente.

Antônio – Com a chegada de vocês a São Paulo, vocês foram colocados na escola?

Jacaré – Colocou, sim. Eu já vinha com um nível relativamente bom, não sei se era o

quarto ano primário. Meu nível era tão bom, tio, que eles me colocaram no Ciclo Operá-

rio, algo assim como um Supletivo, sei lá... Algo de início, até organizar as coisas. Eu

até ajudava a minha professora, porque ela sabia menos matemática do que eu. Aí eu já

tinha minhas amizades e comecei a fazer os meus amigos, né?

William – São perguntas do Cláudio, que pede para o Senhor falar dos amigos, de

como foi sua adolescência na Vila Ema, na escola, das namoradas... (todos rindo

muito). Fale da sua geração.

Jacaré – Na escola onde fiz o admissão, era aqui na Vila Diva, eu fui muito bem. Sem-

pre fui muito dedicado e tinha muita vontade de estudar. O problema era conciliar o

trabalho com o tempo da escola. Terminei o admissão, iniciei o Ginasial e, quando fal-

tava um ano, casei com Bisaco (Irene). Tive, então, que me danar a fazer horas extras e

terminei não dando mais conta dos meus estudos. Quanto às namoradas, eu era meio

tímido. Na época do ginásio, tio, a gente se sentia assim meio pra baixo por causa da

roupa, da situação financeira. A gente via chegar aquelas meninas bem-cuidadas, aque-

les jovens vestidos com camisas de gola olímpica, de carro... Tudo isso botava a gente

meio pra baixo. Na minha idade, a gente se divertia nos bailinhos dos fundos de quintal.

A gente se reunia e fazia aqueles bailinhos, comia aquelas batatinhas não sei com que,

aqueles ponchezinhos. O sucesso na época era o Elvis, Golden Boys, então, Roberto

Carlos... Tinha o sucesso de umas musiquinhas francesas que eu já começava a dançar.

Era a época também das músicas italianas do festival de San Remo. Eu curti muito os

bailinhos. Eu trabalhava na Regan e já tinha dezesseis anos. A moda naquele tempo

(rindo muito) era meio ridícula: cabelo longo, calças carrapeta e boca-de-sino. E, no

caso da gente, uma lama danada, que sujava o sapato e até a boca do embainhado da

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calça... (rindo muito). Era a coisa mais horrível do mundo. Eu lembro que roupa era o

que menos a gente tinha. Eu tinha duas mudas, para falar a verdade. Com uma eu traba-

lhava a semana inteira e deixava a outra para o final de semana. Mãe, então, lavava a-

quela com a qual eu ia aos bailinhos. Calçava aquele sapato... Um barro da gota serena!

Imagine transitar dentro dos ônibus, passando aquele sapato na perna do povo, melando

a roupa das pessoas, as mulheres reclamando... Era um sufoco. Não sei se por falta de

experiência da mãe ou mesmo da gente, eu ia trabalhar e levava a marmita minha e do

Giva, porque muitas vezes o Giva dormia na firma, onde ficava fazendo horas-extras.

Eu, então, de manhã, levava a minha marmita e a do Giva embrulhadas em jornal. Lem-

bro que, num dia de chuva, eu tomei o ônibus da Estrada de Vila Ema. Chovia muito e

então o barro campeava. Caíram as duas marmita no corredor dentro do ônibus, que

estava entupido de gente. Eu peguei as duas marmitas e empurrei para debaixo do as-

sento do ônibus. Eu tinha dezesseis anos, e olha a vergonha que eu tive de pegar essas

marmitas no chão, debaixo das cadeiras, e passar nas roletas com elas embrulhadas em

jornal... Mas eu disse comigo: não vou deixar aí nossa comida. Eu passava muita vergo-

nha. Não tinha sequer a iniciativa de arranjar uma pasta para levá-las dentro. Era pobre

até de inteligência na época. Eram as dificuldades.

William – Como era essa vida em família numa casa com sala, dois quartos, cozi-

nha e banheiro para onze pessoas? Cláudio gostaria de saber isso em detalhes.

Jacaré – (rindo). Não era fácil a vida da gente, mas... Tinha assim as encrenquinhas

entre irmãos, mas tolerava-se. Eu dormia numa cama com Giva. Nós sempre fomos par-

ceiros de cama, sempre dormimos juntos. Eu chegava da escola às onze e meia, ou mei-

a-noite, e ele já estava dormindo porque ele chegava do trabalho lá pelas nove ou dez

horas. Eu me lembro que, às vezes, eu estava duro de dinheiro e sem um cigarro. E ele

fumava uma marca chamada Capri. Eu ia até o criado mudo e roubava uns cigarrinhos

dele. Algumas vezes, quando eu estava pegando o cigarro ele dizia bem baixinho: “Seu

ladrão sem vergonha!” Mas ele não se importava com isso. De manhã, a gente acordava

logo cedo e ia trabalhar na Regan. No quarto, eu e o Giva dormíamos na cama de casal.

Tinha um beliche onde dormiam mais três; sei que no nosso quarto dormiam cinco. Os

demais dormiam na sala. E éramos bastante felizes. Tinha bastante harmonia na casa;

mãe conseguia disciplinar a todos nós. É claro que às vezes havia aquela ciumeira de

irmãos com briguinhas e ciúmes. Eu mesmo cheguei a ter ciúmes da Maria e do Giva,

porque eles, por serem mais velhos, eu achava que mãe cuidava melhor deles. Até na

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mistura, né? (rindo muito. Eu às vezes ficava revoltado, porque na minha marmita ti-

nha apenas um ovo, enquanto na do Givaldo e da Maria tinha carne. Aí, então, eu rou-

bava o pedaço de carne (rindo muito). Eu confesso que fui o jovem de casa um pouco

revoltado com a mãe, mas muito por culpa dela. Lembro que, nalguns finais de semana,

ela lavava nossa roupa, e eu só tinha aquela roupa de sair e trabalhar. Num desses finais

de semana, eu falei pra ela não esquecer a lavagem da minha roupa de sair. Ela não la-

vou e passou a roupa suja. Eu fiquei brabo! Eu brigava às vezes com ela por causa dis-

so, mas nada assim de ficar com mágoas.

Antônio – Como é que Irene apareceu no seu caminho e na sua vida?

Jacaré – Eu tive algumas namoradas antes dela. Mas algo assim passageiro, namoradi-

nhas, bailinhos... A Irene, eu não gostava dela, eu até tinha raiva da Irene. Ela era chata,

a gente estava assim em pé e ela empurrava; ela era danada, né? Pra falar a verdade, o

que me despertou em mim por parte da Irene é que, um dia, ela estava lavando roupa, e

eu vi as coxas dela (ri). Aí aquilo me chamou a atenção, mas passou. Ela tinha os namo-

radinhos dela. Com o passar do tempo, a gente começou a frequentar os mesmos baili-

nhos, e aquilo favoreceu o aumento da intimidade entre a gente. E aí eu passei a gostar

dela.

William – E quando começou esse namoro, qual foi a reação da família?

Jacaré – Não foi boa a reação, devido ao que aconteceu, né? Não que eu tenha avança-

do o sinal. O que houve é que, nas nossas intimidades, aconteceram os primeiros toques

entre nós, e aí a Ezenilda entregou. Foi assim que a tia Flora e o Seu Zeca ficaram sa-

bendo. Óbvio que eles vieram em cima, não é? Pai ficou na dele, mãe também. Ela deu

aquelas broncas; agora, o Seu Zeca foi mais duro, né? Não era nem o caso de nos fazer

casar, porque eu não tinha a menor condição de casar. Eu pensei, pensei muito preocu-

pado com ela. Naquela época, em casos como esses, se a menina não casasse ficava

“malfalada” no meio da família. Eu me deixei levar por esse lado, e o Givaldo também

me apoiou nesse aspecto, ou seja: assumir, né?

Antônio – Mas vocês se sentiram tão pressionados assim, Jacaré? Você mesmo dis-

se que não houve nada demais entre vocês...

Jacaré – Houve, houve muita pressão, Seu Zeca fez muita pressão: “Você vai ter que

casar com minha filha!...” Tanto eu como a Irene, nós insistimos que não aconteceu

nada, ela mesma disse que eu não tinha feito nada com ela, mas a pressão continuou e

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foi muito forte. Por outro lado, acho que ela também gostou do fato de eu aceitar e... Aí

não tive como recuar. A tia Flora, Virgem Maria! A reação da tia foi muito mais violen-

ta do que a de Seu Zeca. Ele era maneiro... Mas a tia, santo Deus! Naquela época, eu

tinha dezenove anos, e a Irene quinze para dezesseis anos. A Ezenilda falou pra tia Ene-

dina que a gente tinha transado e acho que fez isso com ciumeiras. Tia Enedina deu o

sinal de alerta e passou o “acontecido” para tia Flora, e aí, já viu... Durou esse negócio

mais ou menos um ano e, como nós não tínhamos condições, eles ajudaram no casa-

mento. Logo que casamos, fomos morar bem perto da casa da mãe, numa casa alugada.

Aluguei a casa, pintei, e a tia Flora, Zeca, mãe, todos ajudaram. Eu já trabalhava nessa

época. Mas, quando fomos morar, não tínhamos nem botijão de gás. A gente não tinha o

que comer e íamos comer lá na casa de mãe (rindo). Foi um período meio danado. A-

cho que faltou mais juízo, porque, a gente bem que podia assumir o compromisso de

casar, porém sem interromper os estudos e arrumar as condições de manter uma família.

Com certeza, não havia como prejudicá-la. Talvez tenha havido a pressão da estrutura

da família. É tanto que, na nossa noite de núpcias, ocasião em que ela perdeu a virgin-

dade, ela levou o lençol manchado de sangue para mostrar à tia Flora, que ficou quieta e

passou a fazer outro julgamento dela. Aquilo havia marcado muito ela. A tia não aceitou

a nossa versão dos fatos. Dizia pra Irene: “Você é isso, você é aquilo”... Foi realmente

falta de experiência dos dois, não é tio? A gente sabe que os jovens, nessa idade, o fogo

é demais, e eu nem os condeno quando acontece alguma coisa. Mas, no caso da gente,

nem isso. Eu recordo que um dia eu ia acompanhando Irene e “alguém” da minha famí-

lia seguia logo na frente com tia Flora. Essa pessoa diz pra tia: “Aí, comadre Flora, mais

um na família pra tu sustentar”. Foi bom que essa pessoa tenha falado isso, sabe? Eu

disse comigo: “Tu vais ver, ‘f.d.p.’ vai ser muito diferente do que tu tás dizendo”. Até

hoje eu nunca esqueci, sabe? Mas aquilo me serviu de alento e mexeu com meus brios.

Ajuda eu sempre precisei, mas ser sustentado a vida inteira pela tia, não! Graças a Deus,

acho que não foi mesmo preciso.

Antônio – Jacaré, deixando um pouco de lado esse capítulo Irene X Jacaré, vamos

falar do restante de tua parentela, em São Paulo. Você tinha meio mundo de pa-

rentes, de tios aqui, não? Como era sua relação com eles e o que você lembra de-

les?

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Jacaré – Eu tenho muitas lembranças dos meus tios: Anísio, Juquinha (Severino), Bar-

beiro (José), sempre foram muito bons comigo. E você! Lembro que, logo depois do

meu casamento, você veio fazer o doutorado aqui em São Paulo. Aquela foi uma fase

muito boa. Logo após o casamento, continuamos trabalhando muito. A Irene foi empre-

gada doméstica; eu, que já trabalhava, parei meus estudos, talvez por falta de experiên-

cia e maturidade. Mas eu precisava fazer horasextras e lembro que somente em um mês

eu cheguei a fazer mais de duzentas e quarenta horasextras. Isso equivale a trabalhar

dois meses dentro de um. Eu começava às sete da manhã e saía mais de dez horas da

firma, e durante um mês inteiro, incluindo sábado e domingo. Tudo isso pra gente poder

ter alguma coisinha, e a Irene chegou a trabalhar como doméstica nessa época. Tam-

bém, nesse período de dificuldade, eu comecei a me relacionar melhor com tio Anísio e

com Givaldo. Esses aí foram pessoas que a gente seguiu de perto pelo exemplo de vida

deles. Eles foram uma luz, um guia seguro, que só nos mostrava o melhor. Afinal, eu

queria trabalhar, assumir as minhas responsabilidades, e eles foram muito importantes

para nós; pra mim, com certeza.

Antônio – Com o casamento, você se separou da sua família: de Maria, dos meni-

nos, seus irmãos...

Jacaré – É, eu casei, aliás, nem sei se a Maria ainda era solteira... O primeiro que casou

fui eu, e o Givaldo casou um mês depois. A Maria foi a terceira, ela casou com Pedro.

Aí ficaram em casa o Osvaldo, a Geni... Eu fui tocar o meu barquinho. Trabalhei junto

com eles, né, tio?

Antônio – Quando eu cheguei a São Paulo, no ano de 1977, para cursar o meu dou-

torado na USP, me dava impressão que a família morava apenas na Zona Leste de

São Paulo e, mais ainda, na Vila Ema. Não se podia dizer que morava em São Pau-

lo, uma cidade quase desconhecida para vocês, não?

Jacaré – Ah, sim! A gente não tinha a menor noção do que era aquele mundo ali da

Avenida Paulista, da Consolação... Também nós não tínhamos a menor condição de

conhecer melhor e usufruir de uma cidade como São Paulo, indo a um teatro, por exem-

plo. Condições financeiras curtas. O nosso dinheiro nem nos permitia tomar cerveja. Era

uma vida dura. O que nos restava era tomar cachaça, pinga. Em razão disso, o nosso

lazer era pescar. O Anísio adorava pescar e tanto me chamava para pescar com ele que

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terminou motivando brigas de Irene comigo por conta dos convites do tio. Íamos pescar

na Chimboca, de ônibus, ninguém tinha carro, nada! Levava umas panelas velhas para

fazer o pirão, o Anísio era terrível. Acompanhar ele era um divertimento. Muitas vezes

fomos caçar tatu. Frequentar a noite de São Paulo, ninguém tinha condições, de modo

algum. A gente, praticamente, convivia com os parentes. Na juventude, tínhamos uns

poucos amiguinhos, Idalécio, poucos... Quando rapazinhos, com Idalécio, a gente pas-

sava as noites jogando baralho e só depois íamos para uns bailinhos. Nosso divertimen-

to era esse. Mas devo dizer que São Paulo foi importante na minha vida, porque me a-

briu bastante a minha mente. Logo aprendi que, não tendo muita instrução, a minha saí-

da era enfrentar os desafios do comércio. Comecei, então, a buscar daqui e dali o que eu

poderia fazer. Como eu tinha aprendido a profissão de frezador, fiquei mudando de em-

prego aqui e ali e até que ganhava um dinheirinho a mais. Foi quando, então, surgir a

possibilidade de fazer uma sociedade com a tia Flora numa oficina de costura. Ela sem-

pre gostou de fazer costura. Como o Idalécio tinha uma oficina de costura, eu me inte-

ressei pelo trabalho e fui lá conversar e aprender com ele. Eu disse pra tia Flora que

gostaria de deixar de ser empregado e queria ter meu próprio negócio. Compramos u-

mas máquinas e, então, começamos: eu, Irene e ela. A Irene era muito jovem, meio ca-

beça dura, mas eu não a condeno por isso aí. O problema mesmo começou na dificulda-

de que a gente tinha em pagar as prestações das máquinas. Em razão disso, deixei a Ire-

ne trabalhando na costura e voltei a trabalhar no meu antigo ramo de metalúrgica. Foi

assim que conseguimos pagar as prestações e, então, voltei de novo para a oficina de

costura. Retomamos o trabalho. Só que com a tia Flora não era fácil de acompanhar o

ritmo de trabalho dela. Tanto eu como a Irene, novos que éramos, muitas vezes a gente

queria dar uma saidinha, descansar um pouco de manhã... Enquanto isso, ela, tia Flora,

às cinco horas da manhã já estava no batente, diante das máquinas. Nós dois, muito jo-

vens, começamos a chegar ao trabalho lá pelas sete e meia. E a tia Flora já não estava

gostando daquela folga e começou a ficar de cara feia. Mas, tio, a Flora chegava à ofici-

na às cinco horas e só saía às onze horas da noite. Pode?! Ninguém a acompanhava não

(rindo muito). Lembro que, num desses dias, decidimos ir pra Santos. Não sei se foi

com o Tião ou a Iolanda, do Idalécio... Fomos num sábado e voltamos num domingo.

Aí, pronto, a sociedade foi pro pau, terminou (rindo muito). Nós, então, fizemos um

racha na sociedade. Eu disse pra ela ficar com algumas máquinas que eu ficaria com

outras. Ela tocou o barquinho dela, no ritmo dela, e eu montei a oficina, separado dela.

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Aí eu trabalhei bastante. Ganhava um dinheirinho bom. Comprei um carro, viajava pra

Recife, passando trinta dias de férias. Que momentos gostosos aqueles que passamos

juntos lá no Nordeste. Ainda hoje, lembro aquelas musiquinhas do Ray Coniff. Ah, meu

Deus! Pouco a pouco, fomos nos habituando à sua influência de nos levar à zona sul,

frequentar algumas churrascarias, ouvir uns chorinhos, frequentar uns barzinhos... Já

estávamos ficando malandrinhos! Você nos ensinou o caminho de umas boas coisas.

Vez por outra, um teatro, que nos fazia muito bem. Vou lhe dizer: foi para nós uma épo-

ca de ouro, aquela de conhecer com você outro lado da cidade. Isso é inesquecível e nos

ajudou bastante. O Givaldo, quando era vivo, comentava com a gente a importância da

convivência com vocês naquela época. Porque nós não tínhamos a experiência que vo-

cês tinham e, com relação a nós, você era uma pessoa que tinha uma experiência lá na

frente. Com certeza isto influenciou e nos ajudou muito, passando a ideia do que era

bom, do que era importante. Ajudou bastante.

Antônio – E Juca (Severino)?

Jacaré – Ah, o Juca era aquele cara assim muito especial. Sabe, eu não sei nem como

descrever o Juca. Faz-me muita falta, sabe? Com toda aquela truculência dele, sabe?

Mas era um tio... (enche os olhos de lágrima). Ele era... Com aquela simplicidade de-

le... Ele era tão respeitador da gente, tio! Era de um temperamento difícil, como o da tia

Flora. Algumas horas eles até faziam a gente ficar com uma raivinha deles, não era?

Mas passava.

Antônio – E Jara (derivativo de Jarita – como a Madia chama Anísio)?

Jacaré – Nossa! Ele é muito especial. É tio, é irmão, é pai... Inteligentíssimo, um cara

que vê lá na frente. É um cara que sabe o que é o valor de família, de como ajudar. Veja

quantas casas aqui foram construídas por ele, não é? O Jarita foi uma lição de vida pra

gente aqui e de fundamental importância. Gostava de cachaça, mas nunca extrapolou os

limites. Nunca a cachaça o impediu de trabalhar. Quando bebíamos com ele, a gente às

vezes exagerava, e muitas vezes ele recomendava: “Cara não é assim, manéra, cuida-

do!” Sempre aquele alerta dele. Dele e do Givaldo. Para mim, os dois foram fundamen-

tais. Já o Balba (José, o Barbeiro, como os sobrinhos passaram a chamá-lo) teve o seu

relevante papel. Foi um cara que sempre gostou de mim, e eu sempre o respeitei. Tinha

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as limitações dele, mas para mim o importante era que ele me respeitava. Foi um cara

que teve o seu peso também.

Hélio – Eu gostaria de destacar aquele momento em que você e a Irene saíram de

São Paulo e foram para Paranaguá. Acho mesmo que foi o momento da dispersão

da família, cada um buscando o seu espaço. Eu era moleque naquela época e senti

muito a ausência sua e da Irene. Afinal, a gente no final do ano sempre se encon-

trava e, com a saída de vocês, ficou certo vazio. Nós imaginando como é que vocês

estavam por lá, sem nos ver com frequência, pois naquela época era bem mais difí-

cil viajar do que hoje...

Jacaré – Foi, foi bem difícil aquele período. Nós sentimos muito naquele período. Acho

que a dispersão começou com a tia Flora, que, juntamente com o Zeca, foram os primei-

ros a sair de São Paulo. E a Irene começou a querer ir pra lá. Surgiu o Branco, que pre-

tendia vender a padaria. Ele precisava de dinheiro, e aí Seu Zeca me sugeriu comprar.

Eu disse pra ele que achava difícil, pois eu não tinha o dinheiro... O Edson estava lá,

sem emprego, sem ocupação e com a vidinha dele por lá. Isso incomodava muito Seu

Zeca. Eu, então, sugeri a ele que eu iria e me juntaria com o Edson num negócio lá, con-

tanto que ele vendesse a casa deles aqui na Vila Ema. Ele concordou em vender e pas-

sou a procurar comprador. Nesse meio tempo, eu falei para o pai, buscando saber se ele

não queria vender a casa... Quando Deus põe a mão, as coisas vêm rápido. Aí eu disse:

“O senhor dando cento e vinte mil cruzeiros pela casa de Seu Zeca já vale um bom ne-

gócio. Veja se consegue pelo menos uns oitenta mil cruzeiros na sua casa. A gente passa

esse dinheiro pro Seu Zeca e o resto se completa depois. Em menos de um mês, conse-

guimos vender aquela casa ali. Com o dinheiro, comprou a casa de Seu Zeca e foi com

esse dinheiro que nós começamos. Ele emprestou metade pro Edson, e eu consegui ven-

der minhas máquinas, as roupinhas que eu tinha; vendi também um sobradinho que eu

tinha lá na Vila Formosa. Levantei a minha parte e começamos a montar a padaria lá em

Paranaguá. Tia Flora e o Seu Zeca já moravam muito tempo lá em Paranaguá. Eu paga-

va aqui um aluguelzinho pra ele, e assim eles começaram a construir lá a casinha deles

também. E assim foi nossa ida para junto deles em Paranaguá. Nós compramos a pada-

ria do Branco, a que era dele. Nossa ida foi pra acompanhar eles também. Lá chegando,

tivemos muito trabalho, mas foi compensador, né? É pena que a gente foi tarde pra lá,

pois naquela época o pãozinho ainda dava um bom lucro. Se tivéssemos ido mais cedo

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teríamos nos dado bem melhor. No início, tivemos que vencer muitas dificuldades; a

convivência com o Edson não foi nada fácil, enfim, foi aquela luta danada. Mas foi uma

boa coisa, e ao final a gente não pode reclamar dos resultados, né?

Antônio – Voltando um pouco no tempo, você casou e como é que foi o nascimento

de Patrícia e de Fábio? Vocês planejavam ter filhos logo no início do casamento?

Jacaré – A Irene engravidou e teve a Pretinha (Patrícia), em 1973. Já o Fábio nasceu

em 1976. Não sei se a gente estava preparado, mas o fato é que vieram, né? Nós nem

tínhamos intenção de ter filhos logo após o casamento. Mas o fato é que vieram e acho

que não nos atrapalharam não.

Hélio – Jacaré, uma curiosidade, o seu relacionamento com a Irene, posto que vo-

cês são primos, causou algum tipo de reação na família?

Jacaré – Causou... E causou bastante... A tia Flora, Seu Zeca, a tia Virgínia, o pessoal

acho que não gostou não. Não aceitaram facilmente, o que não deixa de ser normal, né?

Hoje, com a distância no tempo, a gente vê que é normal para a época, não é, tio? Quan-

to aos irmãos e primos, houve mesmo alguns que me parabenizaram pelo fato de eu ter

decidido casar com a Irene, assumindo minhas responsabilidades. Mas, com certeza, a

família não gostou não.

William – O Zé Guilherme foi para Paranaguá e lá ficou morando com a vó. Você

lembra em que ano ele foi? Como era o convívio de vocês lá?

Jacaré – William, o ano eu não sei bem não. O ponto de partida da ida dele foi um de-

sejo meu, sabendo que ele estava aqui em São Paulo com mãe, meio sozinhos. Nós

compramos aquele terreninho lá nos fundos da padaria e adquirimos outro terreno com

uma casinha. Nós combinamos com o Edson qual terreno e casa ele queria. Ele escolheu

o terreno onde hoje ele tem a casa dele. Eu pensei, então, em trazer pai pra perto de

mim, tirando-o de São Paulo, e fazer uma casinha naquele terreno que nos sobrou da

partilha com o Edson. Com muito carinho mesmo, fiz aquilo ali, e o Reginaldo me aju-

dou a comprar os móveis. Daí ele foi pra lá e foi muito feliz por lá... Plantava o milho,

as verduras e as frutas dele, curtiu bastante. O Edson comprou uma chacrinha, e ele gos-

tava muito de ir com Seu Zeca e Duda para a chácara. O tio Duda, lá nesse terreno de

Edson, plantou uma roça ao lado da roça de pai. Nasceu um pé de jerimum. Duda, en-

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tão, puxava a rama do jerimum que ultrapassava o terreno dele para o de pai, temendo

que as abóboras nascessem no terreno alheio (rindo muito). De certo modo, foi uma

virada de cento e oitenta graus na vida da gente, saindo de São Paulo para morar em

Paranaguá. Meu Deus do céu... Mesmo sabendo que estava tocando a vida por minha

conta, fazendo o que eu queria, mas a saudade... Eu chorava, tio! Eu chorava com sau-

dade da família, dos meus irmãos, de Giva. No final de semana, então, era um tédio do

cacete, e o coração apertava mesmo. Fui me adaptando aos poucos, fui, fui... Um sono

da peste, dado que a cidade fica ao nível do mar, a mil metros da serra. Saía pereba,

dava coceiras, eu não dormia direito, olha não foi fácil. Um calor do cacete. A gente

dormia num biombinho – o Givaldo ria prá cacete quando ia lá e via aquilo! De noite,

quando dava vontade de mijar eu colocava o pinto num buraco que havia na tábua, no

biombo, e mijava... (rindo muito). Tinha pulga e pernilongo que só a desgraça. Peguei

uma infecção no dedo de um daqueles bichos-de-pé e tive que ir ao médico para me

tratar. Sei não! Agora essa situação melhorou, porque aqueles bairros cresceram, fica-

ram sem menos água empoçadas, foram saneados... Mas outro dia, ali perto da padaria

eu fui acertar com a mulher a questão das escrituras para vender o terreno e tive que

correr de lá, cara! Os pernilongos picando os braços, por cima da roupa; tá louco, cara!

Mas, foi sofrido, tio. Hoje eu sei que Paranaguá está melhor e eu não troco Paranaguá

por São Paulo. São Paulo mudou para pior. A qualidade de vida, nem se discute. Hoje,

estou tendo a possibilidade de desfrutar melhor de Paranaguá. Hoje, tenho condições de

sair pra ilha para pescar; vou de dia e volto, a natureza é de uma rara beleza, fantástica,

muito bonita e a gente tem hoje muitas amizades.

Antônio – Então, Jacaré, fique à vontade para falar. Mas eu pergunto se a socieda-

de com Edson deu certo ou não deu...

Jacaré – Deu certo enquanto durou. Não digo que não deu certo, porque afinal vivo até

hoje com meu negócio, e ele continuou também a vida dele, está criando os filhos dele.

Deu certo até enquanto durou. Mas o relacionamento foi difícil no começo. Hoje, nós

estamos bem. Até porque sociedade para dar certo é uma coisa difícil. Sociedade é um

casamento. O Fábio, hoje, está montando a sociedade dele. Eu disse a ele que era com-

plicado; sociedade é como um casamento. Você tem que ser muito claro e não deixar

dúvida nenhuma. Se houver uma dúvida, tem que sentar e conversar, pois do contrário,

lá na frente, estoura.

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Antônio – Jacaré, na sua vida de família, você tem dois filhos. Um é advogado, a

outra é administradora, todos formados e encaminhados na vida. O que isso repre-

senta para você como pai?

Jacaré – Uma vitória. É muito importante. Faz bem ao meu ego pelas dificuldades que

nós passamos. Ainda hoje, estou atravessando dificuldades, mas está tudo caminhando

para elas terminarem. Mas, para mim, foi uma vitória. A vitória do meu filho representa

a vitória que eu não consegui, sabe? Foi um período muito difícil; mas, graças a Deus,

cheguei ao final e me faz muito bem. Sinto-me como sendo eu mesmo. O Fábio está

indo muito bem. Tem um “q.i.” que eu não conhecia. Graças a Deus, está sendo muito

abençoado o trabalho dele. As portas estão se abrindo assim... E que Deus continue com

a bênção dele. Eu esperava o sucesso do Fábio aí nos dois ou três anos, sabe tio, e ele

está conseguindo as coisas antes de um ano. Está maravilhoso.

William – O que representam os seus netos?

Jacaré – É um sentimento assim... Eu me sinto um cara realizado humanamente, por

estar deixando uma herança de seres humanos que não vão atrapalhar a sociedade. Eu

acho até que vão mais contribuir com algumas coisas boas. Então, eles representam

muita coisa boa para mim.

Antônio – O casamento de Patrícia foi meio tumultuado...

Jacaré – Infelizmente, a gente fez com ela a mesma cagada que fizeram comigo e a

Irene (rindo muito!). Sabe, a mesma coisa, tio. Eu ainda falei pra minha filha: “Olha

Patrícia, não foi tão perdido o que aconteceu com você porque pelo menos tem dois

seres humanos maravilhosos aí. Mas você perdeu muito tempo na sua vida”. Mas ela

está agora acordando para a vida, inclusive ela está querendo agora fazer o curso de

Direito. Eu disse: “Faça, minha filha, você é uma menina nova, está em parceria com

seu irmão aí”... Mas ela é uma menina feliz, graças a Deus. Às vezes, ela fala que não

quer mais casar, no entanto eu digo sempre que ela, por ser uma menina tão jovem, trin-

ta e poucos anos, não deve desesperar que um dia virá. Às vezes, ela saía para bailinhos,

para baladas... eu dei uma freada, aconselhando que ela desse uma seguradinha. Afinal,

não via como boa coisa ela chegar das festas às cinco ou seis horas... Aproveite, vá es-

tudar... Mas ela é uma menina muito dócil. Meus netos são Felipe e Tiago. O Tiago so-

freu muito com a separação dos dois e se tornou um menino assim muito arredio. Inclu-

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sive, eu tive que mandá-lo para a casa do pai dele, não é? Quando houve a separação, os

três foram lá para casa. O Tiago, então, passou a ser muito marrudo, batendo no irmão,

reclamando da comida da vó, exigente com roupa... Eu falei: “Carinha, vai ficar com o

teu pai”. E dei um castigo, olhe que nós ficamos quatro anos sem conversar com o Tia-

go. Agora, que ele entrou para a faculdade, ele falou pra vó se a gente não permitia que

ele nos desse uma ajuda na padaria para ele ganhar uns trocos e ajudar a pagar a facul-

dade. Aí eu disse: “Pode, claro!” A partir daí, ele passou a ser o neto que eu queria que

ele fosse. O Felipe, o Felipe é dócil. É um molequinho interessado e tem futuro, porque

hoje já faz dois cursos e estuda muito, está na oitava série e quer crescer. Não incomoda

a mãe, adora a mãe. A vó, então, nem se fala. Ele é muito dócil e educadinho. Ele puxou

mais para o lado dos Guilherme e quer ser advogado também (rindo muito).

Antônio – Jacaré, e a morte de Zeca e de Flora? O que representaram para você

essas perdas?

Jacaré – Nossa! Foi terrível pra nós. Meu Deus! A morte é uma coisa inevitável, não é,

tio? Mas a perda deles nos deixou num vazio em Paranaguá, inclusive porque para nós

eles eram pessoas mestras. Principalmente para a família, porque depois que eles parti-

ram ninguém mais vai lá em Paranaguá. É raro o pessoal ir por lá. Por aí a gente entende

o valor deles. Não há uma festinha onde a gente esteja que eu não os lembre. Foi real-

mente uma perda muito grande para a gente. Tia Flora era uma pessoa muito especial e

morreu trabalhando. Parece que ela estava se despedindo. Ela saiu daqui de São Paulo

animada, chegou a Paranaguá e jantou na nossa casa aí pelas oito horas da noite e, en-

tão, chamou mãe para ir com ela para a casa dela. A mãe deu uma desculpa e disse que

não podia ir. Até hoje, ela se arrepende de não tê-la acompanhado. Tia Flora disse que

ia preparar uma rabada. Coitadinha, começou a preparar essa rabada, não conseguiu

terminar. Depois, a gente comeu essa rabada que ela começou a preparar. E deu aquele

negócio nela e ela foi embora. Não sei se tivéssemos levado em outro lugar... Mas acho

que não, tio. É a hora. Esse aneurisma na vida dela foi fulminante. Acho que era a hori-

nha dela. Aliás, ela já estava pedindo. Na morte do Seu Zeca, me surpreendeu a reação

da tia. Ela era uma mulher forte, e nós pensávamos que ela ia tocar a vida como mãe

que continuou na dela depois da morte do pai. Já com ela foi o contrário. Vivia dizendo

“meu amor, meu amor, porque você me deixou”? Vivia pedindo para que Deus a levas-

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se, então... Ela desistiu da vida. Era uma mulher tão cheia de vida, de luta, de garra, né?

De muita moral.

William – E a perda do seu irmão?

Jacaré – Ah! Falar do Giva não é fácil... É como eu te disse, eu dividia com Giva até a

cama. Givaldo foi pai, irmão... Giva era muito especial (muito emocionado). Não tenho

palavras.

Nesta altura da entrevista, falou-se da sucessão de perdas na família, o que tem

causado muita tristeza e sofrimento. Recordou que nesses sete anos perdemos Zé

Guilherme, a nossa sobrinha e prima, Marlene (filha de Anísia e de Manoel), de-

pois Severino, a matriarca Verônica, Zeca, Edilnete [esposa de Antônio], Flora,

Manuel, Zé Preto [filho de Manoel], José Barbeiro, Givaldo e Chico [filho de Ma-

noel]. Sem falar em pessoas quase da família, como Duda [irmão de Zé Guilher-

me]. E chamou-se a atenção que isso representa muita dor, considerando-se que na

nossa família praticamente não se lamentava óbitos há décadas e décadas... Diante

dessas considerações, Jacaré concordava com a tristeza de cada uma dessas per-

das, dizendo:

“Vem sendo muito forte para a gente da família, né? Lembro que o Duda, quando a gen-

te ia à casa dele, ele não sabia o que fazer... Era um ser humano legal pra caramba. Res-

peitador ao extremo, né? Um exemplo de pessoa, de pai, de tio, de amigo”.

____________________________

Não sabíamos, obviamente, que essa estaria sendo a última entre-

vista de Jacaré que, infelizmente, menos de um mês depois, seria

vitimado por um grave acidente que lhe roubou a vida em Para-

naguá causando imensa e profunda tristeza em nós todos da fa-

mília. Descanso e repouso para você, Jacaré! Que a unção das nos-

sas lágrimas transforme as saudades em um sono de paz, e sua a-

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legria contagiante exale um bálsamo para nossa dor de mortais e

humanos, como você!

_____________________________

Antônio – Então, Jacaré, essa é uma trajetória de memória que se inicia no Riacho

Queimado e termina no porto de Paranaguá. Uma longa trajetória. Uma longa

viagem. O que ela representa para os seus filhos e seus netos?

Jacaré – É uma viagem e que representa assim o lugar de onde viemos e as dificuldades

que passamos. E que sirva de exemplo para os nossos primos, sobrinhos e netos. A nos-

sa família, Siqueira e Guilherme, são uma família exemplar, muito exemplar. Isso vem

de nossos avós, que foram pessoas sérias e de rara integridade moral. Claro que aqui e

acolá tem algumas exceções, mas elas são mínimas como exceções. Eu me orgulho mui-

to, muito mesmo, disso, dessa competência. Então, eu deixo alguma coisinha aí, uma

semente que plantei aí na sequencia desse exemplo de família. Espero que meus netos

sigam o exemplo. É tanto que sinceramente eu procuro inscrever no nome dos meus

filhos e netos o nome “Guilherme” para que ele não se apague. Acrescentem, mas não

apaguem o nome “Guilherme” (enche os olhos de lágrimas). O meu vô paterno, que

você não conheceu, era uma pessoa boa; era boêmio, mas era uma pessoa dócil. Ele até

tinha traços do ator falecido Antony Quinn.

Antônio, William e Hélio – Jacaré, para terminar esta entrevista, você gostaria de

dizer alguma coisa mais sobre algo que não lhe foi perguntado?

Jacaré – (Depois de muito pensar...) Ah, tio, eu queria agradecer. Agradecer a Deus

por estar inserido nessa família. Acho que essa família, sabendo-se de onde ela veio e

onde ela chegou... Hoje, nós temos nela professores, já temos doutores. Nós viemos do

pó. Eu terminaria agradecendo a Deus pela família onde ele me colocou. Acho que é

isso. (William encerra declarando que agradece tudo quanto ele ensina como pa-

drinho... Ao que Jacaré respondeu: “É tão pouco!”.)

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