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Revista da

Academia Judicial

Revista da

Academia Judicial

Ano II – Nº 1 – Jul/2011ISSN 2179-3751

Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo. A violação dos direitos autorais é punível como crime, previsto no Código Penal e na Lei de direitos autorais (Lei nº 9.610, de 19.02.1998).

© Copyright 2011 Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Catalogação na Publicação: Bibliotecária Cristina G. de Amorim CRB-14/898

Data de fechamento: 15 de julho de 2011.

Editora CONCEITO EDITORIAL

Conselho EditorialAndré MaiaAdriana MildartAline de C. M. Maia LiberatoCarlos Alberto P. de CastroCesar Luiz PasoldDiego Araujo CamposEdson Luiz BarbosaFauzi Hassan ChoukrFernando Fernandes de AquinoJacinto CoutinhoJerson Gonçalves C. JuniorJoão Batista Lazzari

Jonas Machado RamosJosé Antônio Peres GedielJosé Antônio SavarisLenio Luiz StreckMarcelo AlkmimMartonio Mont´Alverne B. LimaRenata Elaine SilvaSamantha Ribeiro Meyer PflugSérgio Ricardo F. de AquinoTheodoro Vicente AgostinhoVicente BarretoWagner Balera

CoordenaçãoEditorialMarijane R. S. Santos

CapaAna Maria Lima

DiagramaçãoJonny M. Prochnow

PresidenteSalézio Costa

Editora ChefeMaria Raquel Duarte

EditoresOrides MezzarobaValdemar P. da Luz

Editora CONCEITO EDITORIALRua Barão de Jaguara, 194 - Mooca, CEP 03105-120 - São Paulo/SP

Fone (11) 3105-0573 / 3104-9774www.conceitojur.com.br

Comercial – [email protected]ção – [email protected]

Editorial – [email protected][email protected]

Revista da Academia Judicial. Ano II, n. 1 (2011) – São Paulo: Conceito Editorial, 2011; 17 cm

Semestral

Organizador: Academia Judicial

ISSN 2179-3751282 páginas

1. Jurídica 2. Revista 3. Tribunal

Composição do Tribunal de JusTiça de sanTa CaTarina

Desembargadores

Des. JOSÉ TRINDADE DOS SANTOS – PresidenteDes. JOSÉ GASPAR RUBICK – 1º Vice Presidente

Des. JOSÉ MAZONI FERREIRA – 2º Vice PresidenteDes. ANTÔNIO DO RÊGO MONTEIRO ROCHA – 3º Vice Presidente

Des. SOLON D’EÇA NEVES – Corregedor Geral da JustiçaDes. CÉSAR AUGUSTO MIMOSO RUIZ ABREU – Vice Corregedor Geral da Justiça

Des. CARLOS PRUDÊNCIODes. PEDRO MANOEL ABREU

Des. CLÁUDIO BARRETO DUTRADes. NEWTON TRISOTTO

Des. SÉRGIO TORRES PALADINODes. IRINEU JOÃO DA SILVADes. LUIZ CÉZAR MEDEIROS

Des. VANDERLEI ROMERDes. ELÁDIO TORRET ROCHA

Des. NELSON J. SCHAEFER MARTINSDes. JOSÉ VOLPATO DE SOUZA

Des. SÉRGIO ROBERTO BAASCH LUZDes. FERNANDO CARIONI

Des. JOSÉ ANTÔNIO TORRES MARQUESDes. LUIZ CARLOS FREYESLEBEN

Des. RUI FRANCISCO BARREIROS FORTESDes. MARCO AURÉLIO GASTALDI BUZZI

Des. MARCUS TÚLIO SARTORATO

Desª. SALETE SILVA SOMMARIVADes. RICARDO OROFINO DA LUZ FONTES

Des. SALIM SCHEAD DOS SANTOSDesª. MARIA DO ROCIO LUZ SANTA RITTA

Des. CID JOSÉ GOULART JÚNIORDes. HILTON CUNHA JÚNIOR

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Des. NEWTON JANKEDes. LÉDIO ROSA DE ANDRADE

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Desª. MARLI MOSIMANN VARGASDes. SÉRGIO IZIDORO HEIL

Des. JOSÉ CARLOS CARSTENS KÖHLERDes. JOÃO HENRIQUE BLASIDes. JORGE LUIZ DE BORBA

Des. VICTOR JOSÉ SEBEM FERREIRADesª. REJANE ANDERSEN

Des. JOEL DIAS FIGUEIRA JÚNIORDes. CLÁUDIO VALDYR HELFENSTEINDes. RODRIGO ANTÔNIO DA CUNHA

Des. JÂNIO DE SOUZA MACHADODesª. SORAYA NUNES LINS

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Juizes de Direito de Segundo Grau

Juiz TÚLIO JOSÉ MOURA PINHEIROJuiz RONALDO MORITZ MARTINS DA SILVA

Juiz RICARDO JOSÉ ROESLERJuiz DOMINGOS PALUDO

Juiz PAULO ROBERTO SARTORATOJuiz ROBSON LUZ VARELLA

Juiz PAULO HENRIQUE MORITZ MARTINS DA SILVAJuiz CARLOS ALBERTO CIVINSKI

Juiz RODRIGO TOLENTINO DE CARVALHO COLLAÇOJuiz DENISE VOLPATO

Juiz CARLOS ADILSON SILVAJuiz STANLEY DA SILVA BRAGA

Juiz NEWTON VARELLA JÚNIORJuiz ALTAMIRO DE OLIVEIRA

Juiz SAUL STEILJuiz GILBERTO GOMES DE OLIVEIRA

Juiz RODOLFO CEZAR RIBEIRO DA SILVA TRIDAPALLIJuiz ODSON CARDOSO FILHO

Juiz JOSÉ EVERALDO SILVAJuiz VOLNEI CELSO TOMAZINI

Juiz LEOPOLDO AUGUSTO BRÜGGEMANNJuiz JÚLIO CÉSAR KNOLL

Juíza JANICE GOULART GARCIA UBIALLIJuíza CLÁUDIA LAMBERT DE FARIA

Juiz FRANCISCO JOSÉ RODRIGUES DE OLIVEIRA NETOJuíza CÍNTHIA BEATRIZ DA SILVA BITTENCOURT

Juiz JORGE LUIS COSTA BEBERJuiz GUILHERME NUNES BORN

Juiz EDUARDO MATTOS GALLO JÚNIORJuíza MARIA TEREZINHA MENDONÇA DE OLIVEIRA

CenTro de esTudos JurídiCos – CeJur

Conselho Técnico-Científico

Des. JOSÉ TRINDADE DOS SANTOS – PresidenteDes. JOSÉ GASPAR RUBIK – 1º Vice-Presidente

Des. SOLON D’EÇA NEVES – Corregedor-Geral da JustiçaDes. JAIME RAMOS

Des. LÉDIO ROSA DE ANDRADEDes. HENRY PETRY JÚNIOR

Des. JAIME LUIZ VICARI

Conselho Editorial

Des. LÉDIO ROSA DE ANDRADE – PresidenteDes. LUIZ CÉZAR MEDEIROSDes. JOÃO HENRIQUE BLASIDes. HENRY PETRY JÚNIOR

Des. JAIME LUIZ VICARIJuíza ANA CRISTINA BORBA ALVESJuiz ALEXANDRE MORAIS DA ROSA

Academia Judicial

Des. JAIME RAMOS – Diretor-ExecutivoDes. LÉDIO ROSA DE ANDRADE – Vice-Diretor-Executivo

Des. HENRY PETRY JÚNIOR – Vice-Diretor de Cursos Acadêmicos e Orientação Pedagógica

Des. JAIME LUIZ VICARI – Vice-Diretor de Serviços Judiciários

ediTorial

É com muita alegria que a Academia Judicial do Poder Judiciário de Santa Catarina lança a segunda edição de sua Revista Científica. Manter uma publicação periódica e de qualidade não é tarefa fácil. Mas o sucesso do número comemorativo da revista demons-trou que o Poder Judiciário de Santa Catarina possui magistrados e servidores capazes não só de manter a boa qualidade na prestação jurisdicional, mas de superar o trabalho-fim e adentrar na produção científica. Vários foram os artigos remetidos, e a Academia Judicial já possui material suficiente para as próximas edições. Além da produção da casa, convidados internacionais colaboram para a qualificação e a excelência da publicação.

Não é novidade o fato de que a sociedade cobra, cada vez mais, atitudes do Poder Judiciário. Também é fato conhecido o grande volume de trabalho realizado por magis-trados e servidores. Já é público e notório ser o Poder Judiciário catarinense um dos me-lhores do Brasil, considerando-se a qualidade da prestação jurisdicional e sua agilidade. Isso é tão real que advogados tentam trazer para solo barriga-verde lides que deveriam tramitar em outras unidades federativas. Diante de quadro laboral tão exigente, é de fato gratificante ver a superação profissional de nossos magistrados e servidores. Além de cumprirem com suas obrigações funcionais, conseguem arrumar tempo para produzir ciência. E não é qualquer produção. São textos de qualidade, comprometidos com a me-lhora da interpretação e da aplicação do Direito.

Nossa Revista Científica está se consubstanciando em uma publicação periódica re-ferencial, capaz de influenciar a prática jurídica em nosso Estado e em todo o País, pois sua distribuição é nacional. Enfim, nossa Revista Científica já é um orgulho da Academia Judi-cial e do próprio Poder Judiciário de Santa Catarina, instituição que insiste na busca de me-lhorias na sua prestação jurisdicional, na permanente procura de realizar Justiça Social.

Des. Lédio Rosa de AndradePresidente do Conselho Editorial do CEJUR

sumário

As Ideologias Jurídicas da Época da Globalização e Pós-ModernidadeOscar Corrêa .............................................................................................................................. 15

direiTo ConsTiTuCional

A Transcendência dos Motivos Determinantes e a Modulação Intertemporal dos Efeitos das Decisões no Controle de ConstitucionalidadeLeandro Ambros Gallon ........................................................................................................... 37

Perspectivas da Aplicabilidade da Eficácia Horizontal do Direito Fundamental ao Meio Ambiente Sustentável: Mais Um Desafio para o Século XXI em Prol da Vida IntergeracionalElizete Lanzoni Alves – Orlando Luiz Zanon Junior ............................................................ 59

direiTo Civil e direiTo proCessual Civil

Racionalização e Agilização dos Procedimentos JudiciaisErli Rose Fonseca – Emanuel Schenkel do Amaral e Silva .................................................. 75

Virtualização Processual no Poder Judiciário de Santa Catarina: O Futuro Já ComeçouCarlos Prudêncio – Elizete Lanzoni Alves – Juliana Pasinato ............................................. 89

Processo Civil com Nova EstratégiaPedro Madalena ....................................................................................................................... 107

Processo Coletivo e a Coisa Julgada Erga Omnes nos Limites da Competência Territorial do Órgão ProlatorRafael Brüning – Fernando Francisco Alfonso Fernandez ................................................ 127

As Principais Modificações Decorrentes das Leis nº 11. 232/2005 e nº 11.382/2006 diante do Princípio da Celeridade Processual: Vinculação do Poder LegislativoRachel Bressan Garcia Mateus ............................................................................................... 141

HermenêuTiCa JurídiCa

Aonde Está o Direito?Yhon Tostes .............................................................................................................................. 165

Direito e Moral em Kant e Kelsen: possíveis distinçõesFelipe de Farias Ramos ........................................................................................................... 179

direiTo penal e direiTo proCessual penal

O Princípio da Eficiência e as Funções Oficialmente Declaradas da Pena CriminalJoão Marcos Buch .................................................................................................................... 203

Acesso à Justiça Penal e a Lei n. 11.719/2008: Avanços e RetrocessosLuiz Felipe Siegert Schuch ...................................................................................................... 211

Análise do Posicionamento Técnico-Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina em Julgados Criminais de Homicídio Culposo de TrânsitoCarla Fornari Colpani ............................................................................................................. 223

Uma Nova Interpretação do Artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Cumulação de Medidas SocioeducativasJuliana Furlani Musco ............................................................................................................. 233

Minoração da Maioridade Penal: Uma Medida InócuaVanderlei Ribeiro da Rosa ...................................................................................................... 241

O Art. 28 da Nova Lei de Drogas: Despenalização ou Descriminação do Uso de Entorpecentes?Jaison Borsatti Moreira dos Santos ....................................................................................... 247

direiTo adminisTraTivo

A Terceirização na Administração Pública e a Importância da Responsabilidade à FiscalizaçãoRaquel de Limas Niedezieslki Santana ................................................................................. 255

Agências Reguladoras: A Ilegitimidade da RepresentaçãoAlexandre Pereira Hubert ...................................................................................................... 267

* A Revista Científica da Academia Judicial – Cejur não se responsabiliza pelas opiniões emitidas pelos autores, nem as endossa, pois elas não representam, necessariamente, o pensamento do Poder Judiciário de Santa Catarina.

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AS IDEOLOGIAS JURíDICAS DA ÉPOCA DA GLObALIzAçãO E PÓS-MODERNIDADE

Oscar Corrêa1

1. As Expectativas Jurídicas da Pós-Modernidade

“Pós-modernidade” é um termo famoso, que, por força de não dizer nada, e servir para quase tudo, ficou relegado à bagagem de metáforas e de recursos vazios. Com esta palavra, tentou-se realizar um movimento diversionista: por uma parte, seu uso denota – ao seguir sendo utilizado– a ideia de uma forma de organização humana que superou a sociedade moderna; por outro, quando se usa, deixa transparecer, como que ao descuido, a ideia de que a superação da sociedade burguesa não exige uma organização socialista do mundo humano: basta de adaptar-se às “novas” formas culturais da pós-modernidade, que lentamente, mas de maneira segura, levarão aos homens e mulheres do mundo atual a uma vida superior. E se não for a eles, ao menos aos seus filhos; a questão é não desesperar.

Alguns nessa tentativa, outros caladamente e outros ainda sem nem perceber, o caso é que muitos dos juristas dos dias atuais, socialistas a seu tempo, tendo compreendi-do naquele então as irrefutáveis verdades do pensamento da esquerda, principalmente o marxista, hoje entregam tranquilamente suas armas, as que consideram “pré” modernas, para adotar as ideologias jurídicas de seus velhos adversários. E a via de claudicação foi a porta aberta pelo pensamento pós-moderno, que se apresentou como uma superação do velho socialismo. De fato, a queda do muro de Berlim lhes proporcionou pretexto e autoabsolvições.

Pois bem, os juristas progressistas, assim como os laboralistas britânicos, os socia-listas franceses, os democráticos da Itália, os felipistas espanhóis ou os sociodemocratas da Alemanha, hoje nos explicam que o mundo melhor virá assistido no seio da mãe de-mocracia partidocrática, sem nenhuma necessidade de expropriar aos expropriadores, sem que a terrível revolução mostre sua face, tendo “como se” a burguesia, que recém mostrou-se planetária, ou seja, “global”, encabeçará o caminho para uma vida melhor,

1 Centro de Investigações Interdisciplinares de Ciências e Humanidades, da Universidade Nacional Autônoma do México – UNAM. Dados sobre o autor em: http://www.oscar-correas.com.mx/

– As Ideologias Jurídicas da Época da Globalização e Pós-Modernidade –

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sem exclusões, onde reinará o pleno emprego, e todo o orbe será um grande mercado, mas, agora sim, justo. Basta de ouvir os porta-vozes da burguesia gritarem aos quatro ventos toda a felicidade que trarão ao mundo. O melhor exemplo, seu porta-voz mun-dial, hoje Bush – mas até ontem, Clinton -, o “sócio-democrata” companheiro de Blair no caminho da terceira via, com apoio de egrégios sociólogos de fama mundial. E não é necessário fazer qualquer outra coisa, senão deixá-los falar: tudo está ali, tudo o que a burguesia mundial tem para o mundo, está ali: democracia, liberdade e mercado livre. E os mortos? E os famintos? Nada. Para eles está Deus com seu exército de anjos que os transportará aos céus dos mártires.

2. Ideologias Jurídicas da Pós-Modernidade

As ideologias bases do novo pensamento jurídico são várias. O estado de direito, o garantismo, a democracia partidocrática, o parlamentarismo, o progressismo judicial, as vias da hermenêutica e a argumentação jurídica, a racionalidade jurídica. Todas entrela-çadas, cada uma tem seu tempo e lugar diferentes para o desenvolvimento.

2.1. O Estado de Direito

A ideologia do estado de direito, por si, sem qualquer comentário adicional, sem se referir ao estado social de direito, é bastante pobre, mas, muito efetiva. Sustenta que existe “estado de direito” em um país onde as leis são efetivas. Ou seja, que as condutas previstas pelo direito são cumpridas. A ideologia diz algo mais: o “estado de direito” existe quando os funcionários públicos cumprem as leis. No entanto, não diz que os cidadãos devam cumprir as leis para que exista o “estado de direito”. Todavia, também costuma dizer-se às vezes, abusando do sentido coloquial desta expressão, que os delinquentes, em especial os rebeldes, violam o direito, e, portanto, tornam impossível a existência do estado de direito desse país. Agora bem, num abuso da linguagem mais absurda, no México, tornou-se po-pular a ideia de que o estado de direito pode ser violado. Diz-se por toda parte, tanto na mídia como no parlamento, que “devemos impedir que o estado de direito seja violado”. Foi inútil tentar convencer estes abusadores da linguagem que somente é possível violar o direito. Não o estado. Ainda que seja “de direito”.

O que no fundo existe nesta ideologia, é uma vontade apologética do ordenamento burguês. Como a palavra “direito” vende bem, tem prestígio, unindo-a à palavra “estado”, empresta àquele seu prestígio. Dá a impressão de que, se o estado é de direto, é um estado melhor. Mais ainda: soa bem que exista “estado de direto”. É conveniente. A felicidade será generosa com o povo que disponha de um ”estado de direito”. De tal forma que os funcio-nários públicos se sentem legitimados se cumprem com o direito. E isso, mesmo que as leis sejam aquelas que mantêm a metade da população abaixo do nível de miséria. Claro que muitos não se sentem legitimados, nem lhes interessa: basta-lhes ser os cidadãos que possuem – ou estejam possuídos por – essa ideologia, de tal modo que sua inconformi-

– Oscar Corrêa –

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dade diminua. Em suma: é uma ideologia de estado, que melhora as perspectivas do exer-cício do poder por parte das classes dominantes. Não importa que a injustiça seja atroz. Basta com que pareça que os poderosos cumprem com a lei.

2.2. O garantismo

O garantismo é uma atraente ideologia que desloca a panaceia pós-moderna em direção ao direito constitucional. Não se trata mais de esperar que a burguesia faça o que não pode fazer o pseudossocialismo que caiu junto com o muro de Berlim. Embora em alguns casos pareça realmente se tratar disso: os estados partidocráticos, mais plutocra-cias que democracias, pouco a pouco, no furor da luta pela efetivação das garantias cons-titucionais, irão colocando em prática as concessões que as belas constituições, pouco a pouco, vieram prometendo aos menos favorecidos.

O garantismo propõe uma pintura bucólica do mundo burguês, pintura cujos tra-ços principais são as garantias ou os direitos e obrigações que as constituições modernas colocaram ao alcance dos olhos de todo aquele que saiba ler: basta ler, para saber o que se deve fazer – pouco mais que nada – e que se deve esperar – tudo, obviamente.

O desenho começa com uma redefinição do estado de direito. Não se trata mais do claro conceito de Kelsen: todos os estados são de direito porque estado e direito coinci-dem. Ou, ainda, o claro conceito, duro: existe estado de direito onde os funcionários cum-prem a lei. Não. Agora essa expressão conota um sistema jurídico onde os funcionários cumprem suas obrigações, mas, além disso, as normas do sistema organizam os velhos direitos liberais e ainda, outorgam direitos sociais. Imediatamente se verifica aqui a ideo-logia das “gerações” dos direitos humanos. Ou seja: somente existe estado de direito se o conteúdo das normas constitucionais, além de garantir os direitos à liberdade – liberdade de opinião, de reunião, de militância política, de intimidade e correspondência, de não haver condenação sem julgamento baseado em lei anterior ao fato a que dê causa, não ser culpado por declaração em prejuízo próprio – estabelece obrigações, aos funcionários públicos de outorgar alimentos, educação e saúde.

Ao resultado da soma destes benefícios que deverão ser concedidos se denomina estado de direito, expressão a qual se agrega um “sobrenome”: social. E o garantismo não é outra coisa senão esse mesmo sistema jurídico. “Garantismo” vem a ser um adjetivo apropriado para as virtudes do sistema. Avançando ainda um pouco, por vezes aparece como a efetividade das normas do sistema garantidor com o qual numa reviravolta talvez sequer pretendida, surge que nenhum estado do mundo atual é um estado de direito. Ex-ceto Cuba, único lugar no mundo onde as crianças têm garantidas todas as necessidades, e onde se percebe uma notável vontade política de continuar a garantir isso. Claro, para os ideologistas do garantismo, Cuba não é um estado de direito porque não há liberdade para atentar contra o socialismo. Os estados de direito são os capitalistas, onde, sim, se permite atentar contra o ordenamento burguês. Como na Suécia, Dinamarca, Estados Unidos ou

– As Ideologias Jurídicas da Época da Globalização e Pós-Modernidade –

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Espanha. Ou no Chile, onde Salvador Allende acreditou na possibilidade de atentar con-tra o capitalismo pela via legal. Quer dizer, pela via do estado social de direito.

Vejamos a forma que adquire o garantismo no pensamento de um dos seus mais importantes teóricos. Para Ferrajoli, o garantismo é, em primeiro lugar, o estado de direi-to – assim ampliado seu conceito - mesmo reconhecendo a necessidade de se distinguir entre o direito e sua efetividade (pg. 852). Em segundo lugar, uma teoria e uma crítica do direito. Trata-se de uma teoria crítica porque não confunde o direito com sua efetividade. Nada relacionado com crítica marxista da sociedade capitalista e seu direito, a qual não lhe cabe senão anotações pejorativas revestidas de má fé. Ferrajoli não critica a sociedade da injustiça, senão que critica a ideologia que confunde as normas com sua efetividade. Em terceiro lugar, o garantismo é uma filosofia do direito e uma crítica da política. Como tal, é uma filosofia política que

Impõe ao direito e ao estado o compromisso da justificativa externa de acordo com os bens e interesses cuja tutela e garantia é precisamente a finalidade de ambos. Neste último sentido, o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, ou seja, entre o “ser” e o “dever ser” do direito (pg. 853).

Logo, a finalidade do estado é a tutela e a garantia de certos interesses, e o autor pensa que esses interesses não são os das classes dominantes, senão os de toda a popula-ção, interesses jurisdicionados aos que chama direitos fundamentais. E isso implica: ou que o estado tem tais objetivos, ou que devesse tê-los. Todos sabem que não os tem. Ainda que tenhamos a esperança de que algum dia os tenha. Mas ocorre que, algumas linhas mais adiante, o autor diz que sua teoria separa o ser do dever. Se for assim, não cabe dú-vida de que sua filosofia seja aquela do direito que fala do dever e não do ser. Somente assim pode se entender o garantismo como uma filosófica jurídica que não é cínica: todos nós sabemos que os estados existentes na atualidade não têm como objetivo a defesa dos direitos humanos, senão os interesses das classes dominantes. Então “são estados ou não”. Porque se não fazem o que deveriam, merecem esse nome? Se o direito não protege os ci-tados direitos, é direito? Segundo o positivismo jurídico, sim: o direito, ainda que injusto, é direito de qualquer maneira. Isso permite pensar o estado como a gerência geral dos negócios da burguesia. A doutrina garantista não o permite, ao menos assim formulada: “o direito não deve ser a gerência geral dos negócios da burguesia”. Mas esse não é o caso. Não interessa se deve ou não ser isso. Interessa que o é. Em verdade, o estado moderno é sim a gerência geral dos negócios da burguesia.

O garantismo deste autor cai em uma série de dicotomias, como ao formular entre princípio da legalidade e da legitimidade (pg. 856). De acordo com este par, o garantismo é sinônimo de estado de direito. Por uma parte – legalidade -, este “Modelo de estado nascido com as modernas Constituições” propõe que todos os poderes estejam –“devam”- estar subordinados a leis gerais e abstratas e que, por outro lado - legitimidade -, todos esses poderes devem ser – “devem” – atuar em função da garantia dos direitos fundamen-

– Oscar Corrêa –

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tais. É um “modelo”, ou seja, não é real, surgido das constituições que organizam a orde-namento burguês. Como pensar que um estado que organiza tal ordenamento ao mesmo tempo possa em algum momento chegar a oferecer garantia de direitos – os sociais - que apontam contra os fundamentos do ordenamento próprio, tais como o direito à saude, à educação e à alimentação para todos igualitariamente? (Ou não é disso que se trata quan-do falamos sobre os direitos “fundamentais”?). E isso dá lugar a outro “para” nos questio-namentos: legitimação formal ou substancial. O primeiro termo da dicotomia se iguala à legalidade e o segundo à legitimidade. Conforme este último.

No estado de direito não existem, poderes sem regulamentação nem atos de poder incontroláveis: nele todos os poderes se encontram limitados por deveres jurídicos, relativos não só a forma, mas também aos conteúdos de seu exercício, cuja violação é causa de invalidade dos atos por ação judicial e, ao menos na teoria, de responsabilidade aos causadores (pg. 857).

“Ao menos na teoria”, claro. Se os funcionários públicos não cumprem a lei, que inclui a obrigação de tornar efetivos os direitos sociais, para os quais “deveriam” existir ações próprias, então “deveriam” ser responsabilizados criminalmente. Ou seja, que o es-tado de direito “deveria ser”, mas na verdade não é. Qual a intenção de mudar o sentido prestigioso do discurso “estado de direito”? Até onde conhecíamos, este existe quando os funcionários cumprem com seu dever. E sabemos que, sequer cumprem com os direitos da liberdade, quem dirá dos direitos sociais. Não seria melhor deixar as coisas tal como estavam e deixar claro que tais estados, se não existem, e por outro lado, o direito, a mar-gem do que “deveria dizer”, é um instrumento de controle social, utilizado como tal pelas classes exploradoras? A quem concretamente lhe serve uma teoria do direito que parece sugerir que é através do direito, mas de um direito que ainda virá, que as crianças, todas, terão o necessário para se desenvolver em sua plenitude? Essa teoria do direito se enfrenta a uma teoria crítica do direito, para quem a esperança das crianças do futuro - as atuais não mais - está sim em novo formato, mas de tal conteúdo que sejam o contrário das atuais normas que formam o ordenamento burguês. Sem a superação, radical, deste or-denamento, não surgirá outro, um que realmente possa oferecer garantias de efetividade dos direitos sociais.

A ideologia garantista mostra-se cabalmente quando enumera os direitos funda-mentais. Ao menos em 4 ocasiões, o autor oferece uma lista de tais direitos (pg. 858, 861, 915 e 917). Entre os liberais ou de liberdade, os velhos direitos que todos estudamos em Direito Constitucional. Esses que nós, latino-americanos, sabemos que não existem em verdade: liberdade, vida, imprensa, religião, circulação, greve - note-se que a greve apa-rece entre os direitos de liberdade e não entre os direitos sociais – informação, reunião, associação e similares.

Note-se que, no elenco dos direitos, não aparece o da propriedade. Certamente, o autor não quis dar qualidade de direito fundamental à propriedade, mas sim, ao direito à moradia. Ao contrário, faz esforços consideráveis para diferenciar o direito à propriedade com relação aos direitos humanos – que ele chama de “fundamentais”. A principal dife-

– As Ideologias Jurídicas da Época da Globalização e Pós-Modernidade –

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rença que se encontra é que o direito da propriedade é alienável enquanto que os funda-mentais não. E tal inalienabilidade não se origina do direito por si, senão de convicções morais. E, quanto a isso, a crítica do direito não tem nada contra: de fato, trata-se de um assunto moral. Mas pela própria repugnância moral que se afinca no estudo da sociedade capitalista: a propriedade assunto da sociedade mercantil é a via de exploração dos traba-lhadores. E sobre o tema não trata nada o autor.

Mas o notável é que este garantismo coloca o direito a um trabalho justo, entre os direitos fundamentais. Dito de outra forma, o lugar preciso onde se assenta a exploração capitalista, é colocado como “direito”. Quer dizer, nem mais nem menos que os trabalha-dores têm direito a serem explorados. O assunto é central. O garantismo aceita como justa a exploração capitalista. A teoria crítica do direito, inspirada no pensamento socialista, especialmente no marxista, denuncia especificamente a relação do trabalho capitalista, como o lugar onde ocorre a exploração, isto é a injustiça. Não existe salário “justo” porque a forma salarial é injusta. No capitalismo - e não em outra sociedade - a relação salarial implica a troca desigual entre patrão e trabalhadores, em virtude da qual, o primeiro se apropria sem compensação da plusvalia criada pela força do trabalho. Isto é irremediá-vel no ordenamento burguês. Somente no ordenamento socialista poderia ser diferente. Colocar, portanto, entre os direitos sociais, o direito a um salário justo, é o ponto que leva o garantismo sob a forma que é apresentada por este autor. E é o ponto no qual o garantimos mostra a ideologia que o sustenta e que se opõe de frente com a ideologia cujo objetivo é propor a superação do ordenamento burguês.

Por outra parte, quando o garantismo fala do direito a moradia, refere-se ao fato de que as pessoas tenham onde morar, ou que os trabalhadores possam comprar uma casa bem miserável que o estado do bem-estar imaginou para os pobres? Trata-se de viver em uma casa descente ou do direito a trocar seu salário por uma mercadoria através da qual outro capitalista ganhara por ter construído os edifícios? Veja-se que o salário com o qual o trabalhador compra uma casa já é produto da exploração do patrão. E aquilo que o estado do bem-estar oferece, e que outro patrão, que explora outros trabalhadores, os da construção civil, lhe cobre esse salário por uma habitação dessas que vêm povoando a periferia das cidades do welfare state. Quando o garantismo fala de direito à moradia, do que fala em verdade?

Quando o garantismo fala de direito a educação, do que fala? Do direito dos traba-lhados pagarem pela educação de seus filhos? Da educação mercadoria? Ou das escolas destinadas aos pobres que todos conhecemos? Ou, por acaso, fala que as crianças têm de crescer como cidadão educado, em primeiro lugar conhecendo a injustiça da que são vitimas seus próprios pais?

Quando o garantismo fala de saúde, do que fala? Que as pessoas devem estar sãs ou que devam ter salário que lhes permita comprar a saúde dos mercadores de clínicas e empresas farmacêuticas? Fala do direito à saúde ou do direito de comprar saúde, ou seja, o direito a um salário suficiente para que os trabalhadores possam realizar a plusvalia

– Oscar Corrêa –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 21

que essas outras empresas obtêm de outros trabalhadores. Do que fala? De justiça ou de mercadorias?

Não obstante, esse garantismo não é tampouco a reles apologia do capitalismo a que nos acostumaram os juristas tradicionais. Este autor viveu a luta política, principal-mente a italiana, e não entrega suas armas a qualquer ideologia jurídica apologética de qualquer estado. Ao contrário, busca, como já o fizeram outros autores, inclusive latino-americanos, uma diferença essencial entre o estado liberal sonhado pelos espíritos adoles-centes e o estado “social” proposto pelos juristas de boa vontade no século XX. A diferen-ça é encontrada por este autor nas normas de direito público que organizam – “deveriam organizar?”- um ou outro estado:

Podemos, portanto caracterizar o estado liberal limitado por normas secundarias negativas, ou seja, por proibições dirigias a seus órgãos de poder, e ao estado social ou socialista, como um estado vinculado por normas secundárias positivas, ou seja, por mandatos igualmente dirigidos aos poderes públicos (pg. 862).

Sendo assim, o estado social inclui o estado liberal – que proíbe atentar contra as liberdades, mas o supera ao impor aos funcionários fazer efetivos os direitos sociais. Nor-mas positivas e normas negativas. E, como se vê, o autor retorna ao antigo prestígio do socialismo, para nomear o estado social de direito que o garantismo vê como ainda não realizado, e, portanto, em estado de utopia. Claro em uma nota (pg. 895) o autor nos faz saber que usa

Com certa dúvida a expressão estado de direito socialista, em vez da, menos comprometedora, estado de direito social, a causa de seus muitos significados – desde o socialismo “utópico” ao “cientifico” de Marx, dos “reais socialismos” do Leste às socialdemocracias européias e os diversos socialismos mais ou menos reformistas – já evocados pela palavra “socialismo”, a qual, entretanto, ao menos para fins de uma teoria do direito, me parece redefinível precisamente como um sistema que consiste na garantia dos direito que chamei de “direito social” e em sua efetiva e igualitária satisfação (pg. 895).

Com efeito, o socialismo ficou redefinido. Não e mais uma sociedade na que não existe exploração capitalista - também em estado de utopia- senão uma sociedade na qual, entre todos, o direito ao salário deve ser efetivo. O garantismo, assim, dá seu traço com relação à teoria crítica do direito de cunho socialista e especialmente, marxista.

Possivelmente essa redefinição não pareça extravagante ao autor, pois

As prestações positivas do estado em benefício dos cidadãos tiveram certamente um enorme desenvolvimento como crescimento neste século de welfare state e a multiplicação das funções pública do tipo econômico social (pg. 863).

Pode-se imaginar que quem teve a experiência de um enorme desenvolvimento do bem-estar dos trabalhadores, pode sentir-se autorizado a crer no estado social de direito, que neste trecho aparece como de “enorme” desenvolvimento e não como utopia, é socia-lismo. Nós, latino-americanos, sabemos o que esperar, no caso de querer, não o enorme,

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senão apenas o simples bem-estar socialista para os trabalhadores, como no Chile dos anos 70 ou Cuba com bloqueio mercantil dos últimos quarenta anos.

O garantismo não só mostra esses vícios de uma teoria progressista, senão que aca-ba reconhecendo que suas propostas não estão em condições de ser, senão de dever. E, nesse caso, não existe avanço deste ser ao dever, senão a luta organizada dos cidadãos - ao que não enxerga, claro, como dividido em classes antagônicas. Em algum momento (pg. 862) propõem uma tipologia de estados, segundo prevaleçam princípios liberais e socia-listas. Dos modelos antagônicos, surgiram: os estados liberais profundamente antissociais e os estados sociais profundamente antiliberais. É possível adivinhar onde e quando: os primeiros - “paleo capitalistas”, ou seja, que existe um capitalismo moderno de signo di-ferente - no século XIX, e os segundos no Leste Europeu, certamente pensa na China ou Cuba também e estados antiliberais e antissocialistas ao mesmo tempo, como muitas ditaduras do primeiro e do terceiro mundo e,

Enfim, estados ao menos normativamente tanto liberais como sociais conquanto enunciam e garantem os direitos fundamentais e prestações negativas e os assim mesmo fundamentais a prestações positivas (pg.862-3).

“Estados ao menos normativamente”, ou seja, estados constituídos com normas não efetivas. Que são, sem lugar a dúvida pelo sentido do texto, os que usam como exem-plo o garantismo. Impondo aos latino-americanos a pergunta: se os europeus, os italia-nos da democracia de outrora sempre ameaçada pelo avanço do PCI, os sindicalistas que buscam petróleo no Iraque, é de se imaginar que para melhorar a classe trabalhadora, se os socialistas espanhóis que destruíram com o estado social para entregá-lo limpo para a direita, se os socialistas franceses não puderam menos do que retroceder com as conquis-tas sociais, enquanto que os polacos se fizeram liberais para terminar mandando soldados para massacrar iraquianos, se os social-democratas alemães também acabaram com o bem-estar de seus trabalhadores, porque nós os latino-americanos devemos ver nesses estados “normativamente liberais” tanto como sociais “um modelo a imitar”? Porque de-vemos adotar como teoria jurídica aquela que propõe isso como panaceia?

De todas formas, o garantismo tão pouco é uma doutrina apologética do capita-lismo, ainda menos do “selvagem”. Mesmo quando o que propõe não é a superação do ordenamento burguês. No fim ocorre que

A experiência ensina que nenhuma garantia jurídica pode sustentar-se exclusivamente sobre as normas; que nenhum direito fundamental pode sobreviver concretamente sem o apoio da luta por sua realização por aquele que é seu titular e da sociedade com ela de forças políticas e sociais; que, em suma, um sistema jurídico, inclusive tecnicamente perfeito, não pode por si só garantir nada (pg. 942).

A isso não resta opção senão aceitar. Que seja assim. O que, à primeira vista, parece colocar novamente o poder e a luta das classes na mira da teoria social. E se, por acaso em

– Oscar Corrêa –

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outros parágrafos não pareça assim, não parece que fala de luta de classes, duas páginas antes de terminar a obra, o autor coloca ideias que merecem reflexão, e longa:

A luta pelo direito acompanha todos os momentos da vida dos direitos: não apenas sua conservação, senão também seu surgimento e transformação. Sua manifestação mais extrema é o exercício do direito à resistência, que representa ao mesmo tempo, com aparente paradoxo, uma negação do direito vigente e uma garantia externa de efetividades (...) é justo rebelar se quando a lei é injusta (pg. 945).

O que, realmente, já sabíamos desde, pelo menos, Tomás de Aquino. Mas, a seguir, agrega algo mais:

Então o “direito” volta a ser “fato”, relação de força, e se inicia no renascimento de um novo direito (idem).

E, nesta penúltima folha, o garantismo pareceria reencontrar-se com esse parente pobre que é a teoria crítica do direito: os direitos são fruto da batalha, e o direito é resul-tado das relações pré-jurídicas do poder. Isto é: aquilo que conseguir uma classe social oprimida, de forma indefectível será intragável pela classe dominante. E, por isso, parece não haver outro caminho a não ser a ruptura do ordenamento burguês. Mas disso não fala o garantismo, mesmo quando, sem duvidar, fala do “novo” direito. Existe novo direito sem ruptura do ordenamento burguês?

2.3. O Parlamentarismo

A terrível experiência das ditaduras fez com que os latino-americanos desejassem a volta da democracia a qualquer preço. Claro: a democracia parlamentar, aquela do parla-mentarismo onde atuam os partidos. Ou seja, a democracia partidocrática. Mas qualquer coisa parecia melhor do que as ditaduras. O castigo foi tão atroz que todos aplaudimos estas democracias que conduziram os povos a uma falência ainda maior do que aquela que já suportavam. Estas democracias venderam os países. Empobreceram ainda mais os agricultores. Quebraram a mais importante fonte de emprego: a pequena e média empre-sa. Desativaram as proteções que o direito do trabalho havia conquistado pra os trabalha-dores. Venderam os bancos. Venderam o petróleo ali onde puderam. E querem vendê-lo onde ainda não puderam. Venderam as maiores minas do mundo. Privatizaram a saúde e a educação, e ali onde não puderam fazê-lo completamente, as prostraram de tal forma que os jovens e enfermos pobres ficaram de mãos vazias. Mas, isso sim, tudo isso foi rea-lizado na mais pura democracia.

O ponto do nó destas democracias é o sistema de partidos. O povo enganado é representado por parlamentares escolhidos pelos partidos políticos. A representação, que sempre foi uma ficção, ficou reduzida a ser uma dupla ficção: no parlamento não es-tão os representante do povo, senão os dos partidos. E os partidos demonstraram, não só ineficácia, senão a facilidade com a que traíram os interesses dos eleitores. Por isso, os parlamentos latino-americanos sofrem amplo descrédito: aprovaram todas as leis que conduziram os povos ao estado em que se encontram atualmente. Aprovaram desde a

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impunidade para os torturadores até a venda de bens nacionais para as mais vorazes em-presas estrangeiras. Aprovaram a socialização da dívida privada, que agora deve ser paga pelo povo que “representam”. E ainda, aceitaram que os recursos obtidos com as vendas do patrimônio nacional fossem dilapidados até desaparecer na corrupção, com a qual, não pode deixar de ser dito, que conseguiram o silêncio e, às vezes, a cumplicidade dos próprios prejudicados.

Entretanto, a ideologia segundo a qual a discussão parlamentar é a panaceia para a felicidade dos oprimidos mantém-se viva. Curiosamente, os dois convencimentos convi-vem: os políticos do parlamento são corruptos e traidores de seus representados, e o parla-mento é o lugar onde vive a democracia. E o que a ideologia parlamentar diz que deva ser feito é radicalizar a democracia de tal forma que o parlamento seja o contrapeso do outro peso – a ideologia garantista fala de poderes e contra poderes constitucionais para impedir o autoritarismo - e, isso se consegue “garantindo” eleições limpas e competitivas - a ideo-logia mercantil se insere por todas as partes - entre partidos democráticos. Uma ideologia jurídica, sem dúvida: tudo depende da constituição e dos meios para fazê-la efetiva.

Mas o parlamentarismo é uma presa das eleições que se ganham na televisão. As empresas de marketing ganham as eleições. Aconteceu com os socialistas espanhóis. Aconteceu com Lula três vezes. Não se pode duvidar de como são ganhas as eleições nos Estados Unidos. O que a ideologia não diz é que, na sociedade em que impera a ordena-mento burguês, as eleições são também processos mercantis, e seus personagens usam técnicas de marketing para ganhar. Deve-se ter um estranho conceito de democracia par-lamentar para assim chamar as atuais plutocracias.

2.4. O progressismo judicial

A falta de saídas viáveis para a situação de nossos povos, ou dito de outra forma, a inviabilidade momentânea da saída revolucionária ao estilo cubano conduziu ao desen-volvimento de uma ideologia que principalmente fez refém aos juristas. Sendo impossíveis as mudanças radicais no ordenamento burguês, os olhares esperançosos se voltaram para o parlamento e o poder judiciário. Certamente, na Argentina, por exemplo, no começo da democracia pré-Menen, alguns juízes deram importantes passos em uma direção que entusiasmou muitos juristas dignos e progressistas, críticos e inegavelmente comprometi-dos com a mudança social. Entretanto, ao mesmo tempo em que o parlamento prostituía seu caráter representativo dos interesses do povo, os mais renomados juízes protegeram e legalizaram a total entrega das riquezas nacionais durante a democracia menemista. Enquanto isso, no México, juízes do mesmo nível legalizavam o anatocismo, permitindo que os bancos cobrassem juros sobre juros, numa sentença legendária demonstrativa da preferência de classe do poder judiciário. Sentença com a qual se beneficiavam algumas famílias mexicanas e a grande burguesia financeira internacional em prejuízo de milhões de devedores que não tiveram outro caminho senão a bancarrota.

– Oscar Corrêa –

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É que a magistratura não esta à margem da luta das classes, nem pode se subtrair-se à dura realidade dos interesses econômicos. E quando tiveram que fazê-lo, não escolhe-ram proteger aos mais humildes. A ideologia do progressismo judicial oculta o simples dado de que nossa sociedade é divida em classes. De forma que a independência plena do poder judiciário não garante nenhuma mudança social. Ao contrário: a atuação dos juízes coincide com o ordenamento burguês. E, de resto, os juízes também pertencem ou vêm de uma classe social. Além do que nem sempre protegem aos setores aos quais pertenceram quando suas famílias não dispunham de seu nível salarial atual.

A ideologia do progressismo judicial sustenta que, claro, dependendo da ideologia dos juízes, paulatinamente se podem conseguir avanços sociais, entendendo por este últi-mo, a proteção e promoção das classes subalternas. Mas os reais avanços são tão menores, e tão prontamente compensados com as sentenças dos juízes de superior instância, que os entusiasmos decaem com grande rapidez.

No Brasil, em 1990 apareceu fazendo estardalhaços o movimento do direito alter-nativo, protagonizado por um amplo espectro de juristas, e com o apoio de alguns juízes, em número impensado em outros países latino-americanos. O entusiasmo gerado pelo movimento entre juristas jovens e estudantes não decaiu nos dez anos posteriores. No entanto, seus resultados e perspectivas não levam a crer em alguma forma de mudança do ordenamento burguês através da ação dos juristas.

Não obstante isso, as reservas teóricas, o entusiasmo de jovens juristas, a militância de advogados nas lutas populares, a defesa de pobres e oprimidos, a firme defesa dos direi-tos humanos, fica ali como testemunho da resistência ao estado e aos direitos burgueses. E fica como porta-estandarte de uma causa que busca melhores tempos. Os juristas não podem transformar o mundo, mas podem colaborar com aqueles que podem fazê-lo. E, finalmente, as reformas jurídicas progressistas não têm por que ser descartadas. Lutar por elas é parte do combate por um mundo melhor.

2.5. A nova hermenêutica jurídica (A visão hermenêutica do direito)

Os juristas críticos não possuem tampouco a ideia clara de que o ponto forte do mundo jurídico sejam os tribunais. Contra a imagem que foi forjada durante séculos pelos juristas apologéticos do poder, nós, críticos, pensamos que os juízes têm a sua frente, quan-do estudam um caso, um enorme campo argumentativo para pode encaixar sua ideologia própria nos amplos moldes da lei. Os eternos apologistas do poder criaram uma imagem que pretende fazer crer que os juízes julgam “conforme o direito”, e esse “conforme” signifi-ca que as sentenças dizem a verdade. Os juízes mexicanos dizem que atuam “apegados ao direito”. Como se a palavra “apego” tivesse algo a ver com a realidade dos tribunais.

É assim que se desatou uma nova batalha jurídica; ou, melhor, de ideologia jurídica. Velhos e novos apologistas do poder lutando para fazer crer, principalmente a seus alu-nos, que existe uma única interpretação possível das leis. Os críticos, por mostrarem que

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na verdade o momento da interpretação jurídica permite aos juízes resolverem se assim quiserem de acordo com a melhor aproximação aos interesses dos oprimidos. Posto que, ao final, nos tribunais se confrontam interesses de classes e setores sociais. Os juristas ita-lianos chamaram essa forma de entender a magistratura de uso alternativo do direito.

Este combate por conseguir dos juízes um rol social de acordo com os interesses dos dominados permeou as discussões atuais na Filosofia e a Teoria do Direito. A hermenêu-tica jurídica se transformou em um campo de batalha ideológica. E aqui está a questão: na verdade, a interpretação do direito, sendo, como é, uma porta que permite aos juristas ampliar os horizontes da lei, de todas as formas não pode ir mais além do ordenamento burguês. Os juízes não poderão ir mais além dos fundamentos normativos da sociedade capitalista sem arriscar sua própria carreira.

Não obstante, a amplidão das portas hermenêuticas se apresenta como um espaço de confronto, um lugar de combate, de crítica e demanda. Os juízes têm de responder às expectativas populares e à crítica dos setores agredidos pelo ordenamento burguês. Será essa então a crítica, forte, das ruas e, às vezes, violenta a que terão que enfrentar os juízes. Isso deveria permitir legitimá-los ou deslegitimá-los conforme fosse sua atuação.

2.6. A argumentação racional

Ao lado da anterior, a Retórica Jurídica também apareceu no horizonte da luta ideológica. A lei, além de ser interpretada, deve ser a base das decisões dos juízes, mas também de todos os funcionários públicos. E trata-se aqui de que a argumentação dos funcionários, então, deve ser convincente. E deve ser dirigida aos cidadãos, entre os quais, como maioria, estão aqueles agredidos pelo ordenamento burguês. Esta é uma exigência da luta política na qual estamos imersos, nestes tenebrosos dias quando o poder da grande burguesia parece não ter limites. E justamente por isso, os agredidos pelo ordenamento podem ver como direito cidadão a obrigação dos juízes de argumentar plausivelmente, de maneira principal quando suas sentenças claramente agridem aos agredidos.

Mas, de todos os modos, a retórica jurídica não pode conseguir a autêntica e final transgressão do ordenamento burguês. É uma fantasia, uma ideologia que tomou conta de muitos juristas progressistas e dignos, a ideia de que podem conseguir transformações importantes no ordenamento burguês através da atuação dos tribunais, aos que se tenta obrigar a que argumentem de maneira convincente quando suas decisões favorecem aos favorecidos. A luta, claro, se dará.

Que argumentem e se atenham à crítica. É parte da crítica geral ao ordenamento burguês. Mas não é o caminho que conduz à transgressão final desse ordenamento.

– Oscar Corrêa –

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3. A Elisão da Luta de Classes

A teoria contemporânea do direito, na redação da maior parte de seus defensores, deixou de lado um assunto fundamental para entender os sistemas jurídicos para estudar os quais pretende oferecer conceitos teóricos. Fez elisão do tema das classes sociais e seu antagonismo radical. Esta à vista em qualquer jornal, mas os juristas tradicionais olharam para outro lado “distraidamente”. Ali, nas ruas, nos ministérios, nas juntas de conciliação do direito do trabalho, na quebra de produtores pequenos e médios no calor da globaliza-ção, no suicídio de granjeiros ou empregados de terno e gravata, na revolta dos indígenas, nas escolas e nas lutas estudantis pela educação gratuita; por onde se olhe, desde que se queira ver, a luta de classes é evidente. Mas a teoria jurídica não quer ver. Fala de tipo de normas, mas não a quem estas beneficiam ou prejudicam. Falam de sistemas normativos, mas não de que forma se tornam eficazes ou a quem beneficia sua eficácia. Falam da vali-dade das normas, mas não de quem determinam sua validade ou invalidade, e de a quem prejudicam com a aparentemente inocente questão. Falam de direitos sociais, mas não de como se conquistam – o que, na verdade - o garantismo analisado faz; mas quando o ensinam esquecem as últimas páginas que comentamos.

Uma teoria desta qualidade, em verdade, não pode falar do direito realmente exis-tente. Mas, verdade seja dita, tampouco podem as teorias sociais que mudaram a luta de classes capitalista pela complexidade da sociedade moderna. E, em verdade, as teorias jurídicas são tributárias das teorias sociais. E, por ora, parece ter vencido a elisão da luta de classes, tanto das teorias sociais, como das jurídicas. E, enquanto estas forças teóricas não mudem, por obra, das próprias relações sociais, uma teoria crítica do direito só terá uma presença “enquanto isso”.

4. O Ordenamento Burguês

Assombrosamente, as teorias sociais contemporâneas deixaram de falar de temas que pareciam clássicos: a existência de classes sociais antagônicas, a hegemonia de uma delas tradicionalmente chamada burguesia, e o combate cotidiano entre classes, frações de classes, setores sociais e grupos de interesses. Não é de se estranhar, portanto, que a Teoria do Direito hegemônica e tradicional tenha tentado passar por alto tais assuntos, para se centralizar em falar exclusivamente de conceitos que acredita fazer funcionar à margem do espetáculo social. Claro, no fundo trata-se de um excelente serviço ao ordenamento burguês: pode-se estudar o direito sem nenhuma referencia a exploração de milhões de seres humanos. E pode dizer-se que os teóricos tradicionais o conseguiram. Possuem cla-ra hegemonia nas escolas, congressos, editoras e revistas. Qualquer referência ao mundo social “real” é reprimida imediatamente, sob a forma da exclusão dos juristas críticos. Quando menos, quando e onde podem fazê-lo.

O que se elidiu, deixou-se de lado, é a reflexão acerca do ordenamento burguês. Em primeiro lugar, porque mencionar esta classe social com este nome é imediatamente proi-

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bido; quem o fizer deverá carregar com a acusação de marxista amanhecido, ignorante da queda do muro de Berlim, e de querer instaurar um ordenamento socialista ao estilo da extinta URSS – coisa que se repete - e dos fracassados regimes da anteriormente chamada Europa Oriental (Agora não é mais “Oriental”, mas simplesmente Europa, que será unida em volta da OTAN).

Mas o ordenamento burguês existe, ali está e se oferece obscenamente a quem de-seje vê-lo, apesar de que, por outro lado, se oculta por trás das ideologias funcionais como a da pós-modernidade.

4.1. Um ordenamento para a burguesia

No que consiste a ordenamento burguês? Porque é “burguês”? O que é um or-denamento? As respostas sempre estiveram aí. Mas foram conveniente e exitosamente ocultadas.

Um “ordenamento” é um conjunto de normas. O hegemônico no mundo hoje é o “burguês”, porque ter sido larga e cuidadosamente preparado para promover, favorecer, apoiar, desenvolver um mundo no qual uma classe minoritária consegue tomar posse da maior parte do produto social. Porque esta classe foi chamada, desde que surgiu, burgue-sia, seu ordenamento próprio foi chamado burguês. O que foi exitosamente escondido pelas ideologias sociais contemporâneas que suprimiram não apenas as classes, mas tam-bém os nomes com os quais eram reconhecidas. O ordenamento burguês foi construído pelos burgueses, pacientemente desde que surgiu na Europa no final da Idade Média. Isso é facilmente constatado por qualquer um que leia as boas das muitas estórias do direito moderno. Está claro que não teria existido direito burguês sem o poder da burguesia; tanto como está claro que não se teria desenvolvido o capitalismo sem o ordenamento burguês. A eficácia do direito moderno consiste, nem mais nem menos, na existência do capitalismo tal qual o conhecemos e sofremos.

4.2. Uma classe para um ordenamento

O ordenamento burguês, portanto, permitiu o desenvolvimento da burguesia. Mas, além disso, a aparição e desenvolvimento de setores sociais afins e funcionais à classe hegemônica como o setor social dos juristas, encarregado de pilotar o ordenamento. E os políticos profissionais que, sem haver nascido no seio de famílias burguesas, pilotam desde o parlamento e os ministérios, bem pagos obviamente, as vicissitudes cotidianas do capitalismo. Claro que, e assim temos vivenciado nos últimos anos, respeitáveis membros da burguesia desceram para a arena da política plutocrática com o fim de fazer cargo do controle político de seus negócios.

Mas o que nos interessa aqui é o papel dos juristas na administração do ordena-mento burguês, sem a efetividade pela qual os negócios da burguesia não poderiam se desenvolver “normalmente”. Esta necessidade do ordenamento, de ser administrado por

– Oscar Corrêa –

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experts, é o que explica a posição dos juristas, que lhe são majoritariamente favoráveis. Mas é que foram educados, formados, para pilotar o ordenamento. É nas escolas de direi-to que se transmitem as ideologias jurídicas tradicionais, tais como a segurança jurídica, a racionalidade do direito, a interpretação verdadeira, a necessidade do estado de direito, os argumentos “ “estritamente jurídicos”, a igualdade acima das classes sociais, a autono-mia da vontade – isto é: a vontade livre do economicamente poderoso – a sistemática do direito, a soberania e o monismo jurídico.

E é estas ideologias que os juristas críticos combatem, ainda quando o atrativo de alguma delas possa eventualmente desconcertar alguns poucos. O mais frequente é que a crítica jurídica combata algumas convicções muito profundas, como o estado de deito , o monismo jurídico, a segurança dos negócios da burguesia, a liberdade de contratação, a interpretação verdadeira ou a argumentação racional.

4.3. Os interesses de classe

Os juristas tradicionais se atrapalham com os interesses de classes, mas costumam surgir apenas de forma distorcida. Na maioria das vezes, a ideologia da “técnica jurídica” ou dos argumentos “estritamente jurídicos” ocultam classes e setores sociais. A igualdade jurídica “que ninguém poderia negar posto que o código outorgue os mesmos direitos a todos”, é tão “evidente” que os interesses de classe não costumam estar à vista. Entretanto, ali estão eles. É uma questão de aprender a vê-los. Mesmo que isso, claro, requeira conhe-cimento que não se brindam ao jurista tradicional, e buscam os juristas críticos. Mas fora das faculdades de direito.

4.4. As normas fundamentais do ordenamento burguês

Mas, finalmente, no que consiste o ordenamento burguês? Em primeiro lugar, tratando-se de um ordenamento, é um conjunto de normas. Mas, o que caracteriza as normas do ordenamento burguês? Em primeiro lugar, certo conteúdo das normas. Não se trata, como alguns têm sustentado, de que o que caracteriza as normas deste ordena-mento seja sua “generalidade”, isto é, a amplidão do âmbito pessoal de validade, como dizem os juristas. Trata-se do que proíbem, ordenam ou permite. Trata-se das condutas que tais normas promovem ou proíbem. Não se trata da quantidade de seres humanos obrigados – âmbito pessoal de validade - do lugar onde vigoram – âmbito territorial de validade - senão das condutas reprimidas ou obrigadas.

Para descobrir quais normas necessariamente integram o ordenamento próprio de um tipo de sociedade, ou , como se dizia, de formação econômico-social, é necessário co-nhecer as relações sociais que integram a descrição dessa sociedade. Dito de outra forma: uma sociedade se descreve, descrevendo-se as relações que seus integrantes estabelecem entre si para reproduzir sua vida material e sua cultura. Conhecer uma sociedade, então, é conhecer essas relações.

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Por outra parte, toda sociedade precisa garantir, assegurar, que seus integrantes cumprirão essas e não outras relações quando se trate de reproduzir a sociedade. O direito cumpre esse objetivo: assegura que os membros da sociedade produzam as condutas que integram as relações que permitem a reprodução dessa sociedade. As normas garantem certas condutas, reprimindo as condutas que impediriam a reprodução. Ou então, pro-movendo a produção dessas condutas que reproduzem a sociedade.

Assim, uma sociedade comunitária, para se reproduzir, requer que os membros pro-duzam certos e não outras condutas. Por exemplo, requer que todos participem nos seus cargos ou funções a que nós chamamos “públicos”. Também requer que nenhum membro atente contra os bens comunitários. E que as famílias obedeçam aos idosos. E muitas outras condutas. Pois bem, as normas dessa comunidade devem garantir castigo para as condutas que impeçam sua reprodução, e promover as condutas que alentem essa reprodução.

A sociedade capitalista, não menos que qualquer outra, requer a mesma coisa: nor-mas que garantam castigo a condutas anticapitalista, e a promoção de condutas capitalis-tas. Nisso consiste o ordenamento burguês, no conjunto de normas que proíbem condutas atentatórias ao capitalismo, e que promovam as condutas capitalistas.

4.4.1. O direito da troca

Com disse Marx, a sociedade capitalista se apresenta, primeiramente, como um imenso conjunto de mercadorias. Agora vejamos, para que esses objetos sejam mercado-rias, e não outra coisa, é necessário que tenham sido produzidos com o objetivo da troca, isto é,que não sejam produzidos para uso do produtor. Mas também é necessário que as mercadorias tenham circulação, por um preço cujo fundamento é seu valor. E, para que se circulem pelo seu valor, é necessário que os produtores a coloquem no mercado, e que en-tão falem por elas próprias, para que comparem seus valores e possam intercambiar-se.

Pois bem, o ordenamento burguês, consiste, em primeiro lugar, nas normas que permitem que essa troca equivalente de mercadorias, e nas formas que prometem casti-gos para aqueles que atentam contra esse intercâmbio. E, por muito menos que pense-mos, entender-se-á que o ordenamento burguês, em primeiro lugar, está integrado pelo chamado direito privado; isto é, nosso direito civil e comercial.

O ordenamento burguês, portanto, contêm todas as normas que promovam a troca e que proíbam as condutas que possam afetá-la. Assim, esses ordenamentos contêm a re-gulamentação das pessoas – os possuidores de mercadorias – os contratos – os intercâm-bios e as coisas – as mercadorias. Mas também contêm todas as normas necessárias para que os possuidores possam reconhecer-se entre si, quem são aqueles que podem oferecer mercadorias no mercado. Isto é a propriedade: a garantia de que no mercado somente um dos possuidores pode falar por elas.

– Oscar Corrêa –

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O que pode assegurar-se, e que toda sociedade mercantil capitalista, necessita de tais normas. Ou, dito de outra maneira, em toda sociedade mercantil capitalista encontra-remos as mesmas normas: as que garantem a reprodução do intercambio equivalente.

Por outro lado, é possível afirmar que o ordenamento burguês negará qualquer norma que não lhe pertença. Por exemplo, uma norma que impeça a colocação da terra no mercado. Norma que, até existiu no México, até que o ordenamento burguês, através de certa composição no parlamento, expulsou a norma do sistema.

O ordenamento, contudo, não expulsará normas que não atentem contra a circula-ção mercantil. Assim se faz possível a existência da defesa do consumidor ou que ela não exista, pode ser que as normas permitam eleger, perante um inadimplemento, entre exigir o pagamento ou rescindir o contrato coma devolução do que foi entregue – quaisquer das duas soluções respeitam a equivalência no intercâmbio -: pode ser que as sociedades sejam concebidas de várias formas e classes – enquanto disponham de um dispositivo que permita saber quem levará as coisas da sociedade para o mercado -: pode ser que se aceite a imprevisão ou a lesão. E o direito processual civil e comercial pode ter as mais diversas formas. E, por certo, ao ordenamento não lhe importa se existe ou não o divórcio; que alguém possa dispor de todo seu patrimônio em testamento, ou que somente possa fazê-lo considerando uma parte dele; que os herdeiros sejam os filhos ou os sobrinhos, os pais ou os tios, que a esposa herde ou que deva conformar-se com sua parte na sociedade conjugal, que existam certas regras sobre a tutela, ou que não haja – sempre que existe um dispositivo que evite a imobilidade dos bens dos menores. E sabemos que os beneficiados pelo ordenamento recorrerão à força que se achem necessária, para impedir que o orde-namento seja ferido em algum ponto estratégico. Ainda que não seja o direito privado onde o ordenamento seja atacado com maior frequência. E, sendo este texto redigido após 30 anos dos fatos, maior prova disso ainda se terá ao simplesmente recordar a quantidade de força despendida pelos beneficiários do ordenamento no Chile em setembro de 1.973.

4.4.2. O direito do trabalho

Outro local estratégico do ordenamento burguês é o da compra e venda da força de trabalho. Como é sabido, no capitalismo, a burguesia encontra no trabalho a mercadoria especial que lhe permite apropriar-se da plusvalia: a força do trabalho custa menos do que aquilo que pode produzir, de modo que, basta com privar os trabalhadores de qualquer outra possibilidade de subsistência, para que o capital possa contar com eles. É o grande presente para o capital: a diferença entre o preço da força trabalhadora e o valor do que produz, gera o lucro. De forma que o ordenamento burguês deve garantir que o processo capitalista de produção se reproduza constantemente. E isso se consegue com as normas do direito do trabalho. Não importa se existe ou não sindicatos, se são ou não democrá-ticos – melhor se não o são - se os dirigentes são honestos ou corruptos, se a jornada é de 40 ou 60 horas – melhor se for de 60 – semanais, se os menores podem ou não trabalhar –

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melhor seria que sim - idosos, crianças ou mulheres – melhor se pudessem ganhar menos, ou se existe direito a greve ou não - melhor não. Trata-se de que ninguém possa impedir os trabalhadores de oferecer seus esforços aos “fornecedores de trabalho”. E podemos ter certeza de que o ordenamento rechaçara normas que impeçam a “livre” contratação e negociação entre trabalhadores e patronal. No caso dos sindicatos, o ordenamento os re-chaçara ou conseguirá neutralizá-los. Haverá períodos, como nas ditaduras latino ameri-canas, quando os sindicatos desesperarão. E poderá ser constatado que justamente nesses anos a exploração de trabalhadores foi maior. E, se acaso, em função das circunstâncias da luta de classes os trabalhadores avançarem na conquista de seus benefícios, também sabemos que os beneficiados pelo ordenamento burguês usaram a máxima violência para “colocar as coisas em seu devido lugar”. E sabemos até quem os ajudará. Mais uma vez, basta com recordar Salvador Allende.

4.4.3. O direito econômico

O ordenamento burguês é coroado ainda pelo chamado direito econômico: o con-junto de todas as normas que promovem as condutas necessárias, mas que não são as do comercio ou a compra e venda da força de trabalho. O capitalismo precisa que sejam produzidas determinadas, e não quaisquer mercadorias utilizáveis para a produção de outras. São as integrantes dos meios de produção. Se a sociedade produz automóvel, mas não dispõe de aço, o ordenamento procurará, através de normas, claro, que de disponha desses insumos facilmente e ao menor preço possível. Se a sociedade precisa petróleo, mas não há, como na França, ou não existe o suficiente, como nos Estados Unidos, o ordena-mento procurará o petróleo, seja por quais meios tenha, inclusive “ intervindo” em países petroleiros, claro que com o animo de levar a paz e a ordem a esses lugares.

Igualmente, o capital requer trabalhadores educados, tecnicamente e não poli-ticamente, claro. De modo que o ordenamento obrigará aos funcionários públicos a oferecer educação. Claro, se existem capitalistas dispostos a ganhar dinheiro com isso, a legislação procurará que a educação também seja uma mercadoria. E igualmente acon-tecerá com a saúde.

Mas o capital necessita também vender as mercadorias. Diminuir o tempo que transcorre entre a produção e a venta. Para isso, o ordenamento procurar o crédito atra-vés da legislação bancaria. A princípio os bancos serão pagos pelos fundos estatais, ou seja, os capitalistas conseguirão crédito a baixo custo a custas do povo. Mas depois serão favorecidos com a “venda” desses bancos, e o credito continuará sendo barato para os capitalistas e caro para os trabalhadores. E, se for o caso, como no México, esvaziarão os bancos e depois exigirão do estado que os resgate, o ordenamento burguês encontrará os meios legislativos e judiciais para que a burguesia realize seus abundantes negócios.

As possibilidades do ordenamento burguês nestas questões são muitas. O que não se poderá mudar é a existência dos bancos, de saúde, de educação de negócios interna-

– Oscar Corrêa –

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cionais – importação (entrada de insumos) e exportação ( venda de mercadorias). E os beneficiários do ordenamento utilizarão de toda a violência existente para impedir qual-quer mudança no núcleo estratégico do ordenamento burguês. Os exemplos históricos se multiplicam: Chile - não se podia admitir o socialismo, nem sequer pela via eleitoral; Venezuela - a burguesa quer o controle do petróleo de forma mais “correta”; Bolívia - o império requer seu gás.

4.4.4. O Estado

A ideologia jurídica corrente sustenta que o tipo de governo apropriado para o pro-gresso do capitalismo é a democracia parlamentar. Falso. Estados Unidos é uma plutocracia. O capitalismo se formou em sociedades completamente ditatoriais com os trabalhadores, e a liberdade de impressa e associação era para os burgueses e não para os trabalhadores. E a ditadura – não necessariamente militar, como no México – foi o tipo de estado escolhido pelo capitalismo na America Latina. Os parênteses democráticos, se falarmos de democra-cia de acordo com a “teoria” nunca existiu. Ao contrário, a democracia como participação do povo, e própria de uma forma não burguesa de organização econômica.

Mas o ordenamento burguês também tem suas exigências para a organização do estado. Não a democracia. Mas sim o monopólio da força na mão do exercício e da po-lícia. O controle da imprensa, pela via da repressão, via da propriedade protegida dos meios. O monismo jurídico. O controle econômico. E se nesta fase do capitalismo pa-rece que o estado não controla a economia, trata-se apenas de uma manobra diversa: a burguesia jamais permitirá que escape do estado o controle do ordenamento burguês, que por sua vez, garante a reprodução do capital. Qualquer um pode perceber que para “desregular” é necessário re–regular. E para dar impulso ao maior esgotamento de que se tenha memória, ou imaginação, é necessário garantir a repressão dos prejudicados. E isso será defendido com a máxima violência pelos beneficiários do ordenamento.

5. As ideologias jurídicas e o ordenamento burguês

As ideologias jurídicas que se apoderaram de parte do setor progressista e crítico do setor social formado por juristas – unidos de outros intelectuais, como estudiosos sócio-políticos – deixaram totalmente de lado a existência evidente de um núcleo estra-tégico fundador do ordenamento burguês. Por isso, o garantismo pode ser pensado com um pensamento transformador, e ao mesmo tempo postular o trabalho como um direito “fundamental”. O trabalho, no ordenamento burguês, aparece é claro como direito. Mas significa a injustiça em seu estado mais puro; a violência em seu estado original. E com relação a outros direitos “sociais”, como a moradia. O que querem dizer? A viver em uma casa decente ou ao “direito” de que a burguesia faça negócios fabulosos com a construção civil, e que seja vendido aos trabalhadores, pago com o salário destes, um lugar onde dormir e cuidar de seus filhos? Quando falam da saúde, refere-se a que os trabalhadores

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sejam bem assistidos ou que lhes seja vendida saúde paga com seus salários, ou com os descontos que fazem em seu salário?

As ideologias jurídicas progressistas, enquanto esquecerem a existência do ordena-mento burguês, não estão em condições de oferecer uma mudança social que implique a desconstrução desse ordenamento.

direiTo ConsTiTuCional

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A TRANSCENDêNCIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES E A MODULAçãO INTERTEMPORAL DOS EFEITOS DAS DECISõES NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

THE TRANSCENDENCE MEMORANDUM INTERTEMPORAL DETERMINANTS AND MODULATION OF EFFECTS OF

DECISIONS IN CONSTITUTIONALITY CONTROL

Leandro Ambros Gallon1

RESUMO: Verdadeira revolução atinge o controle de constitucionalidade no or-denamento jurídico brasileiro, razão por que se objetiva averiguar os benefícios e prejuízos advindos da adoção das novas concepções. A clara importância do tema consiste no fato de que não se pode adentrar em nenhuma discussão infraconstitu-cional se o sistema de controle das leis (lato sensu) não é coerente e seguro, máxime em Estado Democrático de Direito. Tipicamente conhecido por seu caráter inciden-tal, eis que constitui o modo pelo qual o próprio Magistrado de Primeira Instância analisa a constitucionalidade ou não de uma norma jurídica que afronte texto cons-titucional, dogmaticamente, detém classificação e efeitos predeterminados. Todavia, a inexorável evolução por meio da qual atravessa o Direito traz implicações não somente na seara processual, mas também e primacialmente na perspectiva consti-tucional. O Egrégio Supremo Tribunal Federal, em razão da infinidade de processos que aguardam julgamento, vê-se obrigado a direcionar seu leque de atuação, restri-tivamente, para solução de litígios de grande impacto social, outorgando aos demais Tribunais a missão de analisar questões peculiares e subjetivas.PALAVRAS-CHAVE: Controle. Efeitos. Difuso. Abstrato. Modulação. Temporali-dade. Vinculação. ABSTRACT: Revolution affects the control of constitutionality in the Brazilian legal system, why it is objectively determine the benefits and losses from the adoption of

1 Técnico Judiciário Auxiliar do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Assessor de Gabinete do Desembargador Substituto Dr. Jaime Luiz Vicari. Especializando em Direito Público e Direito Tributário pela Universidade Anhanguera/UNIDERP. Graduado magna cum laude em Direito pelas Faculdades Integradas da Rede de Ensino Univest – FACVEST.

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new designs. The clear importance of the issue lies in the fact that you can not enter into any discussion infra if the control system of the laws (broadly) is not consistent and safe, the maxim in a democratic state of law. Typically known for his incidental character, behold, is the way in which even the Magistrate of First Instance considers the constitutionality of a legal rule that will tackle the constitutional text dogmatically holds classification and pre-determined effects. However, the inexorable evolution through which crosses the law has implications not only in the harvest procedure, but is primarily in constitutional perspective. The Eminent Supreme Court, because of the multitude of cases awaiting trial, he is compelled to direct its scope of action, strictly, to solve disputes of great social impact, giving the other courts to consider issues peculiar and subjective.KEYWORDS: Control. Effects. Diffuse. Abstract. Modulation. Temporality. Linking.

Introdução

O Supremo Tribunal Federal vem consolidando significativa mudança na análise da constitucionalidade das normas no direito brasileiro, rompendo com os modelos clás-sicos já pacificados e sedimentados pela doutrina ao longo de várias décadas. Isso ocorre através da criação de mecanismos que busquem, sem prejudicar a Justiça, celerizar a so-lução das demandas.

Em decisões recentes, a Corte Suprema, como guardiã da Constituição, tem in-troduzido inovações significativas no controle de constitucionalidade brasileiro, gerando calorosos debates acerca da legitimidade e extensão da jurisdição constitucional. Com a finalidade de assegurar a Força Normativa da Constituição, tem-se observado uma tenta-tiva de releitura da abstrativização do “controle concreto” de constitucionalidade.

Tecnicamente, o provimento jurisdicional, em controle difuso, vale apenas para as partes envolvidas (inter partes). No entanto, ao julgar principalmente o Habeas Corpus n. 82.9592 e o Recurso Extraordinário n. 197.9173, o Órgão guardião da Constituição conso-lidou a nova dimensão atribuída a tal espécie de controle das normas (difuso), ao aplicar eficácia erga omnes4 à decisão, além de estabelecer a espécie do efeito ao caso concreto, inclusive modulando-o temporalmente.

Noutra senda, o Efeito Vinculante consubstancia-se na obrigação que é imposta, tanto aos órgãos da Administração Pública – em todas as esferas –, quanto aos do Poder Judiciário, de seguirem objetivamente os ditames exarados em julgados do Supremo Tri-bunal Federal, a fim de evitar repetição de casos idênticos e assegurar incidência da Força Normativa da Constituição.

2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 82.959. Paciente Oséas de Campos e Coator Superior Tribunal de Justiça. Relator Ministro Marco Aurélio. 23 de fevereiro de 2006.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 197.917. Recorrente Ministério Público Estadual e Recorrido Câmara Municipal de Mira Estrela. Relator Ministro Maurício Corrêa. 06 de junho de 2002.

4 Expressão latina que significa “extensível a todos”.

– Leandro Ambros Gallon –

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Quanto à transcendência dos motivos determinantes, cabe registrar que o fenôme-no, típica técnica decisória, visa estender o efeito vinculante do dispositivo também para a fundamentação, no fito de que as razões que embasaram a conclusão da questão (ratio decidendi) sejam igualmente por ele atacadas.

O objetivo geral do presente estudo é analisar a evolução pela qual atravessa o enten-dimento do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade das normas.

Tal evolução sobreveio em virtude da necessidade de julgamento de milhares de feitos, problema sabidamente crônico no país. Busca-se a sistematização do processo.

Faz-se imprescindível análise detalhada do tema, porquanto eventual excesso de poder da Suprema Corte acabaria por consolidar a atuação do guardião da Constituição como autêntico “legislador positivo”, usurpando frontalmente o pacto da separação dos poderes, e a violar até mesmo as atribuições do Constituinte Originário.

1. Do Efeito Vinculante

Em síntese, efeito vinculante é aquele por meio do qual tanto a Administração Pú-blica (em todas as esferas), quanto os demais órgãos do Poder Judiciário (exceto próprio o Supremo Tribunal Federal) estão obrigados a cumprir, com rigor, tudo aquilo que foi exarado em decisão do Supremo Tribunal Federal na qual se estabeleceu referido efeito, aos casos pendentes e futuros, devendo eventual descumprimento ser impugnado à Corte Suprema via Reclamação Constitucional.

Ademais e se necessário, deverão os órgãos vinculados editar atos normativos à luz dos ditames da decisão vinculativa, tal qual desfazer atos que divirjam do exposto pela Corte Suprema.

1.1. breve histórico da incorporação do efeito vinculante ao controle abstrato de constitucionalidade no direito brasileiro

No direito brasileiro, a concessão dos efeitos vinculantes às decisões no controle abstrato foi instituída pela Emenda Constitucional n. 03/1993, que acresceu o § 2º ao artigo 102 da Constituição da República de 1988:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

[...] § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (g. n.).

Apesar de trazida por emenda constitucional, a inovação sofreu muitos ataques da doutrina pátria.

– A Transcendência dos Motivos Determinantes e a Modulação Intertemporal dos Efeitos das Decisões no Controle de Constitucionalidade –

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Mas nada disso impediu que o Supremo Tribunal Federal declarasse, em questão de ordem suscitada no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 01, a validade do efeito vinculante criado pela Emenda Constitucional n. 03/19935:

AÇÃO DECLARATORIA DE CONSTITUCIONALIDADE. INCIDENTE DE INCONSTITUCIO-NALIDADE DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 03/93, NO TOCANTE A INSTITUIÇÃO DESSA AÇÃO. QUESTÃO DE ORDEM. TRAMITAÇÃO DA AÇÃO DECLARATORIA DE CONSTITUCIONALIDADE. INCIDENTE QUE SE JULGA NO SENTIDO DA CONSTITUCIO-NALIDADE DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 3, DE 1993, NO TOCANTE A AÇÃO DECLARATORIA DE CONSTITUCIONALIDADE.

Entretanto, a Emenda Constitucional n. 03/1993 só previu efeitos vinculantes às “decisões definitivas de mérito” proferidas em Ação Declaratória de Constitucionalidade, o que deixava dúvidas quanto à eventual vinculação, seja das liminares em Ação Decla-ratória de Constitucionalidade, seja da generalidade das decisões proferidas em Ação Di-reta de Inconstitucionalidade. Nada obstante, na Medida Cautelar em Ação Declaratória Constitucionalidade n. 046, a Suprema Corte entendeu que também as decisões liminares da Ação Declaratória de Constitucionalidade contavam com efeitos vinculantes, elaste-cendo mero texto legal da Carta Magna de 1988.

Para o STF, radica no poder geral de cautela – de que se acham investidos todos os órgãos judiciários – a justificativa para reconhecer efeitos vinculantes às decisões liminares da ADC, independentemente de expressa previsão constitucional, como forma de conferir tutela efetiva e garantia plena ao resultado que deverá emanar da decisão final a ser proferida no processo objetivo de controle abstrato. (g. n.).

Nesse ínterim, ao processar questão de ordem suscitada no Agravo Regimental em Reclamação n. 1.8807, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade da extensão do efeito vinculante estabelecida pelo legislador ordinário, por considerar que a vinculação é qualidade inerente à própria natureza da jurisdição constitucional exercida em tese.

Já na Reclamação n. 2.2568, o Supremo atribuiu efeitos vinculantes às cautelares proferidas em Ação Direta de Inconstitucionalidade, o que permite concluir que o mesmo raciocínio vale para as liminares concedidas em Arguição de Descumprimento de Precei-to Fundamental.

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 1. Requerente: Presidente da República, Mesa da Câmara dos Deputados e Mesa do Senado Federal. Relator Ministro Moreira Alves. 27 de outubro de 1993.

6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4. Requerente Partido Democrático Trabalhista (PDT) e Requerido Presidente da República. Relator Ministro Sydney Sanches. 07 de março de 1991.

7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Reclamação n. 1.880. Agravante Município de Turmalina e Agravados Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Izabel de Freitas Francisco, Valdir Simplício da Silva e Nilce Santana. Relator Ministro Maurício Corrêa. 07 de novembro de 2002.

8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 2.256. Reclamante Estado do Rio Grande do Norte e Reclamado Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Relator Ministro Gilmar Mendes. 11 de setembro de 2003.

– Leandro Ambros Gallon –

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Pela importância da análise, vale colacionar a seguinte ementa:

Reclamação. 2. Garantia da autoridade de provimento cautelar na ADI 1.730/RN. 3. Decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte em Mandado de Segurança. Reenquadramento de servidor aposentado, com efeitos ex nunc. Aposentadoria com proventos correspondentes à remuneração de classe imediatamente superior. 4. Decisão que restabelece dispositivo cuja vigência encontrava-se suspensa por decisão do STF, em sede de cautelar. 5. Eficácia erga omnes e efeito vinculante de decisão cautelar proferida em ação direta de inconstitucionalidade. 6. Reclamação julgada procedente. (g. n.).

Portanto e em síntese, inexorável é a possibilidade de se aplicarem efeitos vinculan-tes tanto às decisões finais quanto às decisões cautelares proferidas em todas as demandas de controle concentrado.

1.2. Implicações materiais do efeito vinculante

A opção pela adoção do efeito vinculante por parte da Corte Suprema encontra diversas consequências jurídicas.

No ponto, cabe alvitrar as palavras de Bernardes9:

Com base, sobretudo, na doutrina alemã, autores nacionais e o STF (a partir da ADC 1/DF) concordam que a vinculação determina as seguintes obrigações por parte de quem esteja vinculado ao conteúdo da decisão vinculante:a) o dever de aplicar a decisão aos casos pendentes e futuros, o que inclui a chamada “proibição de repetição” – i.e., o dever de abstenção de eventuais comportamentos que contrariem a decisão vinculante;b) o dever de desfazer os atos que impliquem inobservância da decisão vinculante, sempre que fática ou juridicamente ainda possível.c) o dever de editar os atos normativos regulamentares que eventualmente se façam necessários à fiel observância da decisão vinculante.

De outro lado, o próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu importante limi-te ao efeito vinculante.

No julgamento do Agravo Regimental em Reclamação n. 1.13210, a Corte recusou-se a cassar decisão que não observou a vinculação, pois, no mérito, tal decisão ajustava-se, com “integral fidelidade”, à jurisprudência do Tribunal:

[...] - Não se justifica a concessão de medida liminar, em sede de reclamação, se a decisão de que se reclama - embora não observando a eficácia vinculante que resultou do julgamento de ação declaratória

9 BERNARDES, Juliano Taveira. Efeito vinculante das decisões do controle abstrato de constitucionalidade: Transcendência aos motivos determinantes? In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de direito constitucional – controle de constitucionalidade. Salvador: Editora Juspodivm, 2007, p. 118.

10 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Reclamação n. 1.132. Agravante Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul (IPERGS) e Agravado Juiz de Direito da 2ª Vara dos Feitos da Fazenda Pública da Comarca de Porto Alegre – 1º Juizado. Relator Ministro Celso de Mello. 23 de março de 2000.

– A Transcendência dos Motivos Determinantes e a Modulação Intertemporal dos Efeitos das Decisões no Controle de Constitucionalidade –

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de constitucionalidade (CF, art. 102, § 2º) - ajustar-se, com integral fidelidade, à jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal no exame da questão de fundo (auto-aplicabilidade do art. 40, § 5º, da Constituição11, na redação anterior à promulgação da EC nº 20/98, no caso). - A eventual outorga da medida liminar comprometeria a efetividade do processo, por frustrar, injustamente, o exercício, por pessoa quase nonagenária, do direito por ela vindicado, e cuja relevância encontra suporte legitimador na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Observa-se, nesse contexto, que só não se concedeu a medida liminar porque, in casu, mais vantajoso para a parte (pessoa quase nonagenária) era a efetividade da questão de fundo, que já pôde ser decidida em virtude de a Corte possuir posição pacificada sobre a autoaplicabilidade do artigo 40, § 5º, da Magna Carta de 1988.

1.3. Extensão subjetiva do efeito vinculante

No âmbito subjetivo, o efeito vinculante abrange os “demais órgãos do Poder Judiciá-rio” e a “administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”.

Assim, embora não tenham integrado a relação processual, consideram-se vincula-dos à decisão do Supremo Tribunal Federal todos os “demais” órgãos jurisdicionais, bem como os órgãos e agentes administrativos da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios.

Todavia, vale registrar que a amplitude subjetiva do efeito vinculante é menor do que a da eficácia erga omnes, pois não atinge nem o próprio Supremo Tribunal Federal, tampouco o Poder Legislativo de quaisquer das esferas federativas.

1.4. Extensão objetiva do efeito vinculante

Além do relatório, toda decisão dotada de efeito vinculante conta, necessariamente, com (a) uma parte dispositiva; e (b) uma parte na qual se expõe a fundamentação utiliza-da pelo órgão julgado para chegar á conclusão traduzida pela parte dispositiva.

Assim, destaca Bernardes12:

11 Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo. [...] § 5º - Os requisitos de idade e de tempo de contribuição serão reduzidos em cinco anos, em relação ao disposto no § 1º, III, “a”, para o professor que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio.[...] § 1º Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma dos §§ 3º e 17:[...] III - voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições:[...] a) sessenta anos de idade e trinta e cinco de contribuição, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se mulher;

12 Ibid., p. 124.

– Leandro Ambros Gallon –

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Há dois tipos de fundamentação. Em primeiro plano de importância estão os chamados “motivos determinantes” da decisão, ou seja, as razões de decidir (rationes decidendi) num ou noutro sentido; em segundo plano, os simples obiter dicta, isto é, os argumentos dados como simples reforço às razões de decidir, já que desprovidos de motivação suficiente para, autonomamente, determinar ou alterar o sentido da parte dispositiva (g. n.).

Inexistem dúvidas, portanto, de que o efeito vinculante: (a) deve recair sobre a parte dispositiva da decisão; e (b) não deve incidir sobre obiter dicta (fundamentos secundários das decisões judiciais e que servem apenas para reforçar os principais).

É importante a conclusão a que se chega, porque, na eventualidade de se considerar que o efeito vinculante também incidiria sobre o obter dictum, haveria um extenso tra-balho por parte do julgador, consistente na definição, expressa, daquilo que seria motivo determinante da sua decisão, bem como o que seria o fundamento secundário.

Indo além, nem se cogita a hipótese de tal ressalva não vir determinada expressa-mente. Daí porque constitui análise por demais trabalhosa a aferição, pelo jurista e intér-prete, do fragmento da fundamentação que é motivo determinante e do outro, verdadeiro fundamento secundário. As discussões seriam intermináveis e em nada contribuiriam para o aperfeiçoamento do sistema.

Contudo, e voltando ao ponto principal, é bastante controverso se a vinculação alcança ou não as razões determinantes, conforme se examinará a seguir.

1.5. Transcendência do efeito vinculante às razões decisórias determinantes?

1.5.1. Teoria extensiva

Pela teoria extensiva, o efeito vinculante estende-se não só à parte dispositiva, mas também aos motivos determinantes da decisão judicial.

A propósito, a correta dimensão do tema encontra amparo nas preciosas palavras de Roger Stiefelmann Leal, parafraseadas pela Ministra Cármen Lúcia, quando do julga-mento do Agravo Regimental na Reclamação n. 5.70313:

[...] Ante a recalcitrância dos demais poderes, sobretudo mediante a reiteração material de atos e condutas declarados inconstitucionais, é possível constatar certa insuficiência na eficácia das decisões proferidas pelos órgãos de jurisdição constitucional. A limitação da autoridade da decisão apenas à sua parte dispositiva, a exemplo do que ocorre com as demais decisões jurisdicionais, não observa tais implicações. Em regra, essa parte do julgado cinge-se, no máximo, a declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinado ato normativo [...]. Em alguns países europeus [...] percebeu-se a necessidade de reforçar a eficácia das decisões prolatadas no âmbito da jurisdição constitucional, de modo que os demais poderes do Estado, inclusive os tribunais e a administração pública, estivessem

13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Reclamação n. 5.703. Reclamante Afrânio João Gera e Reclamado Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Relatora Ministra Cármen Lúcia. 16 de setembro de 2009.

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vinculados não só à parte dispositiva da sentença, mas também aos motivos, princípios e interpretações que se serviram de fundamento, ou, como preferem Bocanegra Sierra e Klaus Vogel, à norma concreta de decisão. A imposição da ratio decidendi que presidiu a decisão aos demais poderes teria como efeito normativo necessário a proibição do uso do expediente da reiteração do comportamento julgado inconstitucional, bem como a obrigação de eliminar os demais atos que encerram o mesmo vício apontado.

Assim, inclusive os princípios contidos nas razões determinantes da decisão do Su-premo Tribunal Federal vinculariam, em casos futuros, todos os demais órgãos judiciais e as autoridades administrativas.

Para Mendes14: “conforme a jurisprudência alemã, o efeito vinculante deve colher também os fundamentos determinantes da decisão”15.

Logo, ressoa fácil concluir que, segundo o Tribunal Constitucional alemão, alem do dispositivo, os motivos determinantes são atingidos pelo efeito vinculante.

1.5.2. Teoria restritiva

A teoria restritiva, como o próprio nome diz, é aquela segundo a qual os efeitos vinculantes estariam consagrados tão somente no dispositivo, pois não adentrariam na fundamentação.

É a posição majoritária.No direito comparado, anota Sampaio16:

Em regra, o alcance da decisão não contempla a ratio decidendi. Em outras palavras, somente a parte dispositiva da decisão torna-se juridicamente vinculante, o que não impede, porém, o valor altamente persuasivo dos motivos dados pelo tribunal constitucional, nem que se analisem as razões determinantes do julgado sempre que houver dúvidas quanto ao alcance da parte dispositiva do ato decisório.

14 MENDES, Gilmar Ferreira. A ação declaratória de constitucionalidade: a inovação da Emenda Constitucional n. 3, de 1993. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. (Org.). Ação declaratória de constitucionalidade. 1. ed. 2. tir. São Paulo: Editora Saraiva, 1995, p. 320.

15 JÚNIOR, Edilson Pereira Nobre. O direito processual brasileiro e o efeito vinculante das decisões dos tribunais superiores. Revista do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Pernambuco, n. 41, 2000, p. 13.50. MORAES, Alexandre de. Jurisdição constitucional e tribunais constitucionais: garantia suprema da constituição. São Paulo: Editora Atlas, 2000, p. 277-278. MORAES, Guilherme Peña de. Direito constitucional: Teoria da constituição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003, p. 241. FERREIRA, Olavo Alves. Controle de constitucionalidade e seus efeitos. São Paulo: Editora Método, 2003, p. 136.

16 SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2002, p. 225.

– Leandro Ambros Gallon –

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Na doutrina brasileira, concordam que o efeito vinculante só abrange o dispositivo, entre outros: Slaibi Filho17, Ferrari18, Palu19, Clève20, refletindo, desse modo, a maioria entre os estudiosos.

1.5.3. Análise crítica das teorias extensiva e restritiva

O presente capítulo é por demais interessante, uma vez que são rebatidos os argu-mentos das correntes acima narradas.

Destaca-se a significativa divergência entre Bernardes e Mendes. Aquele, defensor da tese restritiva, procura traçar diversos argumentos favoráveis, desde parafrasear Cano-tilho até afirmar ser a tese extensiva minoritária.

Já o Ministro Gilmar Mendes, por seu turno, além de ressaltar que a limitação do efeito vinculante apenas ao dispositivo tornaria despiciendo o próprio instituto, cita como adeptos à corrente extensiva os Ministros Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.

Não é difícil concluir que a tese extensiva confere ao Guardião da Constituição, maior autonomia, razão pela qual é tão venerada pelos eminentes julgadores daquela Corte.

Não se pode olvidar, entrementes, que em determinado caso concreto a tese exten-siva poderia até mesmo harmonizar a melhor solução.

Porém, a vasta liberdade conferida ao Tribunal Constitucional, aliada às diversas críticas, inclusive advindas do país no qual nasceu o efeito vinculante, faz da adoção da corrente restritiva o melhor caminho a seguir nesse estudo, notadamente por conter argu-mentos bem traçados e acompanhar tão sólida maioria doutrinária.

Aos argumentos, pois.Não é por ser minoritária no direito comparado que a tese extensiva mereça críticas.Assim, esclarece Martins21: “mesmo no país onde foi inicialmente adotada, ela ga-

nhou mais repulsa do que concordância”.

17 SLAIBI FILHO, Nagib. Ação declaratória de constitucionalidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998, p. 178.18 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 4. ed. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 1999, p. 254.19 PALU, Oswaldo Luiz. Controle de constitucionalidade: conceitos, sistemas e efeitos. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 1999, p. 229.20 Ibid., p. 229.21 MARTINS, Leonardo. Introdução à jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. In: SCHWABE, Jürgen

[et al.]. Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Montevideo: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 118.

– A Transcendência dos Motivos Determinantes e a Modulação Intertemporal dos Efeitos das Decisões no Controle de Constitucionalidade –

46 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

A doutrina alemã, lastreada em Schlaich22, rebate a transcendência por entender que: “caso vinculantes também as razões que levaram o Tribunal Constitucional a decidir num certo sentido, a Corte converte-se, indevidamente, em intérprete autêntico da constituição”.

Nessa linha, Schlaich e Häberle23 arrolam várias objeções formuladas por doutrina-dores alemães à chamada “canonização” das frases e motivos usados pelo Tribunal Cons-titucional em suas decisões.

Destacam-se as seguintes críticas:

a) Passado algum tempo, não se sabe claramente quais os motivos formaram verdadeiramente a base de uma decisão (são as declarações logicamente obrigatórias para a decisão ou são aquelas que o Tribunal considera obrigatórias?);b) a opção do Tribunal Constitucional mostra-se em desacordo com o caráter necessariamente aberto da interpretação constitucional;c) a tese extensiva promove o engessamento da significação dos direitos fundamentais, que passam a ser traduzidos como “concepções jurídicas gerais”;d) a tese extensiva impede o estabelecimento de um “colóquio jurídico”, fazendo com que os juízes percam a coragem de avançar por interpretações diversas, além de bloquear o surgimento de eventuais opiniões divergentes, o que termina por obstruir, ao menos em parte, “a sociedade aberta dos intérpretes da constituição”.

De acordo com o acima exposto, o raciocínio adotado é o de que a vinculação dos motivos determinantes provocaria um “engessamento” da análise jurídica daquele assunto, pois inviabilizaria novas discussões, sob outros enfoques e lastreadas noutros argumentos.

Não bastasse isso, a tese extensiva suscita ainda mais problemas no direito brasilei-ro, o que seguramente conduz ao raciocínio de que é inconstitucional.

Aduz Bernardes24:

[...] se adotada a tese extensiva, surgem anomalias de outra ordem. É que passa a ser então necessário distinguir as verdadeiras razões de decidir dos simples obiter dicta (que nada mais são do que motivos afirmativos da fundamentação). Ademais, como a ratio decidendi usada para assentar a constitucionalidade de uma norma implicaria, necessariamente, juízo negativo acerca de outra (e vice-versa) independentemente de nova ação, surge ainda o problema da interpretação da extensão das razões de decidir em face de outros casos, o que demandaria, em prejuízo à segurança jurídica, novo esforço interpretativo por parte daqueles agentes sujeitos à vinculação. Num país onde vigora o princípio da causa petendi aberta em sede de controle abstrato e onde felizmente se concede autoridade de coisa julgada até mesmo ao julgamento pela “constitucionalidade” do ato impugnado, a vinculação aos fundamentos da decisão implica mais adversidades: o STF pode concluir pela constitucionalidade da norma impugnada, mas, em outro precedente, utilizar fundamento eficiente pelo qual se poderia inverter a primeira conclusão. Daí surgiria a questão de saber se os fundamentos do último julgado comprometem a coisa julgada advinda do primeiro.

22 SCHLAICH, Klaus. El Tribunal Constitucional Federal alemán. In: FAVOREU, Luchaire [et al.]. Tribunales constitucionales europeos y derechos fundamentales. Madrid: Centros de Estudios Constitucionales, 1984, p. 212.

23 HÄBERLE, Peter. La Verfassungsbeschwerde nel sistema della giustizia constitucionale tedesca. Milano: Giuffrè, 2000, p. 71.

24 Ibid., p. 126.

– Leandro Ambros Gallon –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 47

Como se vê, diversas consequências surgem com a adoção da tese extensiva.Além das acentuadas diferenças entre os institutos da coisa julgada, dos efeitos erga

omnes e dos efeitos vinculantes, sabe-se que a grande novidade trazida pelo efeito vincu-lante, em termos de garantia de eficácia das decisões judiciais, radica é mesmo no reco-nhecimento de que todos passam então a deter direito subjetivo para anular atos judiciais ou administrativos que estejam a descumprir o julgado vinculante. Para tanto, as pessoas eventualmente prejudicadas pelo descumprimento poderão não somente ajuizar reclama-ções ao Supremo Tribunal Federal como também utilizar as vias judiciais tradicionais.

Nada obstante, Bernardes25 ressai que:

Ademais, poder-se-ia sustentar que o efeito vinculante não deve adstringir-se ao dispositivo da decisão, pois isso causaria dificuldades na aplicação da técnica de declaração de constitucionalidade mediante interpretação conforme a constituição. Todavia, nada obsta que os fundamentos determinantes sejam utilizados para elucidar o alcance do dispositivo da decisão, sem que eles próprios se tornem vinculantes.

É recomendável essa diretriz até porque não exige a lei sejam publicadas as razões de decidir, bem assim, embora o controle abstrato de constitucionalidade se faça mediante processos de natureza especial, faz parte da própria tradição processual brasileira a ideia de que os fundamentos da sentença não fazem coisa julgada (artigo 469, inciso I, do Código de Processo Civil26), motivo pelo qual eis mais um argumento contrário à tese extensiva.

1.5.3.1. Posição favorável à tese extensiva

Conforme já mencionado no presente trabalho, a despeito de se concordar com a tese restritiva, mister traçar alguns argumentos daqueles defensores da corrente oposta, a fim de abrilhantar o debate.

Adiante-se, de antemão, que os argumentos são tentadores.Certo sobre as desvantagens da corrente restritiva, acentua Mendes27 que:

O efeito vinculante seria inútil se não atingisse os fundamentos determinantes, pois nada acrescentaria aos efeitos de coisa julgada e erga omnes. A limitação do efeito vinculante à parte dispositiva da decisão tornaria de todo despiciendo esse instituto, uma vez que ele pouco acrescentaria aos institutos da coisa julgada e da força da lei. Ademais tal redução diminuiria significativamente a contribuição do Tribunal para a preservação e desenvolvimento da ordem constitucional.

25 Op. cit., p. 129.26 Art. 469. Não fazem coisa julgada: I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva

da sentença; II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.

27 Op. cit., p. 322.

– A Transcendência dos Motivos Determinantes e a Modulação Intertemporal dos Efeitos das Decisões no Controle de Constitucionalidade –

48 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

Nessa linha, explicita o ilustre Ministro que a contribuição do Tribunal Constitu-cional estaria mais bem legitimada se adotada a tese extensiva, uma vez que os fundamen-tos teriam mais força jurídica.

Dessarte, cabe examinar as palavras de Pertence: “Quando cabível em tese a ação declaratória de constitucionalidade, a mesma força vinculante haverá de ser atribuída à decisão definitiva da ação direta de inconstitucionalidade”28.

De outra sorte, ratifica Mendes29:

[...] Assinale-se, nessa mesma linha, que o STF não estará exorbitando de suas funções ao reconhecer efeito vinculante a decisões paradigmáticas por ele proferidas na guarda e na defesa da Constituição. Em verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais.

Segundo Gilmar Mendes, o efeito vinculante extensível aos motivos determinantes seria elemento concretizador do papel político da Corte Suprema, necessário para decidir demandas de grande repercussão social.

2. A Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Acerca da Transcendência do Efeito Vinculante às Razões Decisórias Determinantes

Muito bem resume o tema Bernardes30:

Num primeiro momento, quando reputou constitucional o § 2º acrescido ao art. 102 pela EC 3/93, o STF adotou a tese restritiva, para entender que somente o dispositivo do acórdão vincula (ADC 1/DF). Disse o voto vencedor do Min. Moreira Alves que o efeito vinculante não abrange os motivos determinantes, até porque a Emenda Constitucional 3/93 só atribuiu efeitos vinculantes à própria decisão definitiva de mérito.

Nada obstante, consta da ementa da Reclamação n. 1.98731 que o Supremo Tribunal Federal teria abandonado a orientação sugerida por aquele ministro, para abraçar a ideia segundo a qual o efeito vinculante atinge também os fundamentos determinantes da de-cisão do controle abstrato de constitucionalidade.

[...] A decisão do Tribunal, em substância, teve sua autoridade desrespeitada de forma a legitimar o uso do instituto da reclamação. Hipótese a justificar a transcendência sobre a parte dispositiva dos motivos que embasaram a decisão e dos princípios por ela consagrados, uma vez que os fundamentos

28 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 167. Reclamante Jerônimo Jesuíno Raposo da Câmara e Reclamado Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. Relator Ministro Néri da Silveira. 26 de setembro de 1984.

29 Ibid., p. 323-324.30 Op. cit., p. 130.31 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 1.987. Reclamante Governador do Distrito Federal e Reclamado

Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. Relator Ministro Maurício Corrêa. 01 de outubro de 2003.

– Leandro Ambros Gallon –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 49

resultantes da interpretação da Constituição devem ser observados por todos os tribunais e autoridade s, contexto que contribui para a preservação e desenvolvimento da ordem constitucional.

No julgamento dessa Reclamação n. 1.987, porém, o problema da extensão do efei-to vinculante aos fundamentos determinantes não foi apreciado explicitamente.

Só houve manifestação expressa quanto à vinculação ou não dos motivos determi-nantes nos votos de seis ministros, dos quais apenas três se posicionaram a favor (Maurí-cio Corrêa, Nelson Jobim e Gilmar Mendes), enquanto os Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio e Carlos Velloso o fizeram expressamente de forma contrária.

Todavia, em nova composição plenária, o Supremo Tribunal Federal, no julgamen-to da Reclamação n. 2.36332, em histórica decisão, deu por certo que a Reclamação n. 1.987 consagrou que o efeito vinculante transcende a parte dispositiva, para abranger os motivos determinantes, razão pela qual vale colacionar a decisão monocrática da lavra do Ministro Celso de Mello na Medida Cautelar em Reclamação n. 2.98633:

[...] Cabe registrar, neste ponto, por relevante, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no exame final da Rcl. 1.987/DF, expressamente admitiu a possibilidade de reconhecer-se, em nosso sistema jurídico, a existência do fenômeno da ‘transcendência dos motivos que embasaram a decisão’ proferida por esta Corte, em processo de fiscalização normativa abstrata, em ordem a proclamar que o efeito vinculante refere-se, também, à própria ‘ratio decidendi’, projetando-se, em conseqüência, para além da parte dispositiva do julgamento, ‘in abstracto’, de constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Essa visão do fenômeno da transcendência parece refletir a preocupação que a doutrina vem externando a propósito dessa específica questão, consistente no reconhecimento de que a eficácia vinculante não só concerne à parte dispositiva, mas refere-se, também, aos próprios fundamentos determinantes do julgado que o STF venha a proferir em sede de controle abstrato, especialmente quando consubstanciar declaração de inconstitucionalidade. Na realidade, essa preocupação, realçada pelo magistério doutrinário, tem em perspectiva um dado de insuperável relevo político-jurídico, consistente na necessidade de preservar-se, em sua integralidade, a força normativa da Constituição, que resulta da indiscutível supremacia, formal e material, de que se revestem as normas constitucionais, cuja integralidade, eficácia e aplicabilidade, por isso mesmo, hão de ser valorizadas, em face de sua precedência, autoridade e grau hierárquico. Cabe destacar, neste ponto, tendo presente o contexto da questão, que assume papel de fundamental importância a interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função institucional, de ‘guarda da Constituição’, confere-lhe o monopólio de última palavra em tema de exegese das normas positivadas no texto da Lei Fundamental. (g. n.).

Verifica-se, pois, que, na trilha dos argumentos expostos, o Supremo Tribunal Fe-deral admitiu, neste julgamento, a adoção da eficácia vinculante não só à parte dispositiva do julgamento, sob o argumento de preservação da força normativa da Constituição.

32 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 2.363. Reclamante Município de Capitão Poço e Reclamado Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região. Relator Ministro Gilmar Mendes. 23 de outubro de 2003.

33 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Reclamação n. 2.986. Reclamante Estado do Sergipe e Reclamado Juíza do Trabalho da 5ª Vara do Trabalho de Aracaju. Relator Ministro Celso de Mello. 11 de março de 2005.

– A Transcendência dos Motivos Determinantes e a Modulação Intertemporal dos Efeitos das Decisões no Controle de Constitucionalidade –

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Cumpre transcrever, no ponto, as bem lançadas palavras da Ministra Cármen Lú-cia, no Agravo Regimental em Reclamação n. 5.70334:

[...] É certo que, em algumas oportunidades, o Supremo Tribunal Federal tem-se firmado no sentido de que os fundamentos ou os motivos determinantes adotados em decisões proferidas em processos de controle concentrado de constitucionalidade são dotados de eficácia vinculante, e, portanto, capazes de ensejar o ajuizamento de Reclamação, na hipótese de serem desrespeitados por outros órgãos do Poder Judiciário ou da Administração Pública. Nesse sentido, os seguintes precedentes: Rcl 2.363, Rel. Min. Gilmar Mendes, Plenário, DJ 1º.4.2005; Rcl 4.692-MC, Rel. Min. Cezar Peluso, decisão monocrática, DJ 14.11.2006 [...]

No entanto, é fundamental expor que tal linha de posicionamento não se en-contra pacificada na Corte Suprema, conforme se extrai das palavras do Ministro Eros Grau, ao julgar recentemente o Agravo Regimental na Reclamação n. 6.204, em 6 de maio de 201035:

[...] O Plenário deste Tribunal ainda não fixou entendimento no sentido de afirmar a transcendência das razões de decidir nas ações constitucionais: “AGRAVO REGIMENTAL EM RECLAMAÇÃO. SUPOSTA AFRONTA AO DECIDIDO POR ESTA CORTE NA ADI 3.580/MG. TEORIA DA TRANSCENDÊNCIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES. INAPLICABILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. I - O caso em exame não afronta a autoridade da decisão proferida por esta Suprema Corte nos autos da ADI 3.580/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes. II - Não é aplicável à espécie a teoria da transcendência dos motivos determinantes. III - Agravo regimental improvido. (Rcl 4448 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 25/06/2008 [...].

Assim, pela atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a aplicação da transcendência dos motivos determinantes vem sendo de modo geral afastada, devendo ser analisada cum grano salis, e somente aplicada em casos estritamente excepcionais.

3. Pressupostos da Transcendência do Efeito Vinculante

Adotada pela atual jurisprudência da Corte Suprema, a transcendência dos efeitos vinculantes pressupõe que o provimento jurisdicional ou administrativo impugnados:

a) tratem da mesma questão jurídica da decisão vinculante;b) contrariem o parâmetro interpretativo fixado na decisão vinculante.Contudo, também pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, caso haja

conflito entre os fundamentos e o dispositivo da decisão, prevalece o conteúdo do dispo-sitivo (conforme voto do Ministro Carlos Velloso no julgamento da Reclamação 55636).

34 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Reclamação n. 5.703. Reclamante Afrânio João Gera e Reclamado Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Relatora Ministra Cármen Lúcia. 16 de setembro de 2009.

35 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 6.204. Reclamante União e Reclamado Juiz Federal da 7ª Vara Federal da Seção Judiciária de Alagoas. Relator Ministro Eros Grau. 6 de maio de 2010.

36 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 556. Reclamante Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e Reclamado Governador do Estado do Tocantins. Relator Ministro Maurício Corrêa. Pleno. 11 de novembro de 1996.

– Leandro Ambros Gallon –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 51

4. A Transcendência dos Motivos Determinantes no Controle Abstrato

O plenário do Órgão guardião da Constituição admitiu a possibilidade de reconhe-cimento, em nosso sistema de fiscalização abstrata de constitucionalidade, da existência do fenômeno da “transcendência dos motivos” que embasaram sua decisão, proclamando que o efeito vinculante estende-se, também, à própria ratio decidendi, projetando-se, em consequência, para além da parte dispositiva do julgamento de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade.

O fenômeno da transcendência reflete uma preocupação doutrinária com a força normativa da constituição, cuja preservação, em sua integralidade, necessita do reconhe-cimento de que a eficácia vinculante se refere não apenas à parte do dispositivo, mas estende-se também aos próprios fundamentos determinantes da decisão proferida pela Corte Suprema, especialmente quando consubstanciar uma declaração de inconstitucio-nalidade em sede de controle abstrato.

5. A Modulação Intertemporal dos Efeitos no Controle de Constitucionalidade

A modulação intertemporal dos efeitos, em suma, é a possibilidade – expressa-mente prevista na legislação (artigo 27, Lei 9.868/99) –, conferida ao Guardião da Cons-tituição de decidir, mediante 2/3 dos votos dos ministros, qual será o período em que determinado julgamento iniciará a produção de seus efeitos.

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Como cediço, com relação às normas ditas pré-constitucionais, deve-se avaliar se foram recepcionadas pelo texto constitucional, pois materialmente compatíveis com ele, ou não recepcionadas, se incompatíveis materialmente, pouco importando análise quanto à sua forma.

Assim, se uma norma qualquer, anterior a 05/10/1988, tiver conteúdo contrário à Constituição da República de 1988, será revogada por esta, ou não recepcionada. Nesses termos, não há falar em constitucionalidade ou não das leis anteriores à Magna Carta de 1988, mas sim em leis recepcionadas ou não.

Conforme elucida Prado37:

37 PRADO, Leandro Cadenas. A modulação temporal dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade. Disponível em: www.pontodosconcursos.com.br. Acesso em: 02 dez. 2007.

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Nesse caso, em que a lei antiga é não-recepcionada, diz-se que houve juízo negativo de recepção. Assim, “a não-recepção de ato estatal pré-constitucional” não implica “a declaração de sua inconstitucionalidade - mas o reconhecimento de sua pura e simples revogação” (grifos no original).

Por outro lado, nas decisões, em controle abstrato, acerca da inconstitucionalida-de de leis ou ato normativo, pode o Supremo Tribunal Federal, por dois terços de seus membros, restringir os efeitos da declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado (artigo 27, Lei nº 9.868/9938). Nesses termos, pode a Corte Suprema alterar o efeito normal da declaração de inconstitucionalidade (“ex tunc”), fixando outra data qualquer para que tal declaração passe a produzir efeitos.

Ressalte-se que essa possibilidade é prevista legalmente apenas no âmbito do con-trole abstrato de normas, tanto para Ação Direta de Inconstitucionalidade, quanto Ação Declaratória de Constitucionalidade e Arguição de Descumprimento de Preceito Funda-mental (artigo 11, Lei n. 9.882/9939).

No entanto, o Supremo Tribunal Federal já decidiu, por analogia, que é possível, em casos excepcionais, alterar a data da produção dos efeitos da decisão que declara inconstitucional uma norma também no controle difuso. É o caso do Recurso Extra-ordinário n. 197.91740, que tratou do número de vereadores e a proporcionalidade com relação à população.

Destaque-se, ainda, que muito bem sistematiza a questão Dôliveira41:

Cabe destacar, entretanto, que de forma “autêntica” e polêmica, o Supremo Tribunal Federal passou, recentemente, a modular os efeitos das decisões que lhe são submetidas em sede de controle difuso de constitucionalidade. Para isso, os fundamentos utilizados são (I) a necessidade de garantir a segurança jurídica diante de mutações jurisprudenciais drásticas dos Tribunais – requisito fundamental para aplicação destes efeitos; (II) as previsões infraconstitucionais para modulação dos efeitos temporais em controle concentrado, aplicadas por analogia em decisões judiciais em sede de controle difuso (como, por exemplo, o artigo 27, da Lei 9.868/1999, que regula as Ações Diretas de Inconstitucionalidade, ou, ainda, (III) argumentos como a redução dos impactos econômicos e sociais que estas decisões teriam se a elas fosse aplicado o efeito retroativo (grifos no original).

38 Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

39 Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

40 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 197.917. Recorrente Ministério Público Estadual e Recorrido Câmara Municipal de Mira Estrela. Relator Ministro Maurício Corrêa. 06 de junho de 2002.

41 DÔLIVEIRA, Paola Rodrigues. A aplicação de efeitos prospectivos: Da segurança jurídica à insegurança jurisdicional. Disponível em: www.jusnavegandi.com.br. Acesso em: 02 dez. 2007.

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Portanto, no controle difuso, segundo o Supremo Tribunal Federal, também é pos-sível a “modulação temporal dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade”.

Conclusão

Em linhas gerais, é cediço que, na modalidade difusa, qualquer magistrado poderá enfrentar a questão da compatibilidade entre o ato normativo e a Constituição em um caso concreto, para solucionar um conflito de interesses levado a juízo. A constitucionali-dade ou não da norma é analisada como questão prejudicial para a solução da lide.

Especificamente quanto às teorias que versam sobre o alcance dos efeitos vincu-lantes nas decisões judiciais de controle de constitucionalidade, em que pese a dinâmica encontrada na Teoria extensiva, conclui-se que a mais coerente é a Teoria restritiva, eis que possibilita sejam realizados novos debates sobre os fundamentos principais que de-terminaram o julgamento de determinada causa.

Aliás, a Teoria restritiva proporciona a dialética jurídica, na medida em que o Di-reito, com ciência social que é, está em constante evolução e novas discussões surgem diuturnamente.

Ainda que assim não fosse, a adoção da tese extensiva do efeito vinculante contri-buiria para verdadeiro engessamento de uma infinidade de matérias, pois todos os moti-vos determinantes estariam acobertados pela vinculação.

Não se olvida que é inexorável a conclusão de que a Suprema Corte deve direcionar suas manifestações às causas de significativo impacto social. Todavia, deve ela se valer de instrumentos adequados para tanto (como a súmula vinculante, a repercussão geral etc.), e não por meio da adoção da teoria extensiva do efeito vinculante.

Ademais e com isso, é relevante refletir na assertiva de que, com a nova ordem jurídico-constitucional, estaria o Supremo Tribunal Federal com excesso de poder não outorgado pelo Poder Constituinte. No entanto, sob outro enfoque, conclui-se que se trata de meio decisório cujo objetivo consubstancia-se na prestação mais célere ao postulante.

No tocante à teoria da transcendência dos motivos determinantes, volta-se ao mes-mo cerne: a teoria extensiva (aquela por meio da qual o efeito vinculante extrapola o dispo-sitivo para também englobar a fundamentação) confere maior autonomia à Corte Supre-ma, ao passo que a teoria restritiva é mais cautelosa e, dogmaticamente, mais coerente.

Em que pese a crítica daqueles que afirmam ser, a utilização de tais institutos, a petrificação do Poder Judiciário, algo precisa ser feito contra a morosidade judicial. Ou subsiste ordenamento célere, ou por demais flexível, no qual a segurança jurídica esteja significativamente afetada.

Assim, pela atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a aplicação da transcendência dos motivos determinantes vem sendo de modo geral afastada, devendo ser analisada cum grano salis, e somente aplicada em casos estritamente excepcionais.

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PERSPECTIVAS DA APLICAbILIDADE DA EFICáCIA HORIzONTAL DO DIREITO FUNDAMENTAL

AO MEIO AMbIENTE SUSTENTáVEL:MAIS UM DESAFIO PARA O SÉCULO XXI EM PROL DA

VIDA INTERGERACIONAL

PROSPECTS OF APPLICABILITY OF THE EFFECTIVENESS OF HORIZONTAL FUNDAMENTAL RIGHT TO SUSTAINABLE

ENVIRONMENT: ANOTHER CHALLENGE FOR THE FOR CENTURY XXI LIFE IN FAVOR OF LIFE INTERGERACIONAL

Elizete Lanzoni Alves1 Orlando Luiz zanon Junior2

RESUMO: O presente artigo analisa o conceito e evolução histórica dos direitos fundamentais em conexão com a questão ambiental como parte desses direitos e sua interface com a eficácia horizontal ao meio ambiente sustentável, no sentido de verificar a viabilidade da efetiva participação do particular na proteção ambiental e no desenvolvimento da sustentabilidade.PALAVRAS CHAVE: Direitos Fundamentais. Meio Ambiente Sustentável. Eficácia Horizontal.ABSTRACT: This article analyzes the concept and historical development of fundamental rights in connection with environmental issues as part of those rights and their interface with the horizontal effectiveness to the sustainable environment in order

1 Doutoranda em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Pedagoga pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Jurista e professora universitária. Membro do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental na Sociedade de Risco – GPDA/UFSC. Membro do NEP – Gestão Ambiental – Academia Judicial de Santa Catarina.

2 Doutorando em Direito pela UNIVALI. Mestre em Direito pela UNESA. Pós-graduado em Preparação à Magistratura Federal pela UNIVALI. Pós-graduado em Direito e Gestão Judiciária pela UFSC. Juiz de Direito. Membro do NEP – Gestão Ambiental – Academia Judicial de Santa Catarina.

– Perspectivas da Aplicabilidade da Eficácia Horizontal do Direito Fundamental ao Meio Ambiente Sustentável: Mais Um Desafio para o Século XXI em Prol da Vida Intergeracional –

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to verify the effective participation viability of the private person in the environmental protection and in the sustainability development.KEYWORDS: Fundamental Rights. Sustainable Environment. Horizontal Effectiveness.

Introdução

O presente texto propõe o reconhecimento da eficácia horizontal do direito funda-mental ao meio ambiente sustentável, de modo a ultrapassar a relação meramente vertical (Estado-particular) na tutela do ecossistema.

Com este desiderato, a primeira sessão do estudo aborda os conceitos de direitos humanos, de direitos e de deveres fundamentais, bem como explicita a construção histó-rica das prerrogativas humanísticas, de modo a compor o substrato básico sobre o qual repousa o restante da investigação.

Na segunda parte, é desenvolvido especificamente o conceito de direito fundamen-tal ao meio ambiente saudável, enquadrável na terceira dimensão dos direitos humanos, de modo a estabelecer os contornos da discussão.

A terceira sessão, por sua vez, aproveita as balizas teóricas delineadas nos trechos anteriores para, com base nelas, desenvolver uma proposta de resposta ao questionamento proposto, no sentido de justificar a eficácia horizontal (particular-particular) do direito fun-damental ao meio ambiente saudável, ultrapassando as vertentes clássicas verticalizadas.

A conclusão traz de forma sintética os elementos teóricos desenvolvidos e de forma exposta a respectiva proposta de aplicação prática, em atenção à função social da pesquisa científica.

Por fim, para o desenvolvimento da pesquisa e relato, o método utilizado foi o in-dutivo, e o resultado foi apresentado com bases predominantemente indutivas.

1. Notas Introdutórias sobre Direitos Humanos e Fundamentais

Os direitos humanos são aqueles inerentes à personalidade humana, ou seja, incor-porados à esfera jurídica do homem de forma a efetivamente torná-lo uma pessoa (ZA-NON JÚNIOR, 2008, p. 37). Trata-se das prerrogativas mais importantes do ser humano, que devem ser respeitadas para promoção de sua dignidade (FERNANDEZ, 1991, p. 78).

A maior dificuldade, contudo, não reside em conceituar os direitos humanos, mas sim em identificá-los, pois tal tarefa importa na discussão de seu conteúdo, mediante aná-lise antropológica das necessidades humanas (FERNANDEZ, 1991, p.79).

Sem embargo, há uma dicotomia de cunho qualitativo, no sentido de que nem to-dos os rights são enquadráveis na categoria dos direitos humanos, mas apenas aqueles es-senciais à existência e evolução da espécie humana. Tal distinção é importante exatamente porque os direitos humanos, em face de seu caráter essencial, merecem uma proteção mais ampla, devendo prevalecer sobre interesses acessórios.

– Elizete Lanzoni Alves – Orlando Luiz Zanon Junior –

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Muito embora o próprio conceito de direitos humanos contenha parâmetros de identificação, estes apresentam caráter amplamente axiológico, exatamente porque se referem à proteções e faculdades com conteúdo valorativo, no sentido de preservarem interesses admitidos politicamente, nos âmbitos internacional e interno de cada país (SARLET, 2008, p.70). Porém, esta falta de critérios objetivos dificulta a classificação dos direitos dentro ou fora do rol dos direitos humanos.

Visando superar tal dificuldade, Luigi Ferrajoli aponta três critérios axiológicos para delimitação do campo de abrangência dos direitos humanos. O primeiro critério consiste na verificação da importância do direito para promoção e manutenção da paz, consoante estabelecido no preâmbulo da Declaração de 1948. O segundo parâmetro é a relação entre o direito analisado com o postulado basilar da igualdade, no sentido de preservar as diferenças individuais, de tolerar o exercício lídimo da personalidade e de reduzir as iniquidades sociais. Por fim, o terceiro critério reside na característica de o di-reito questionado visar à proteção da pessoa contra abordagens negativas e limitações de entidades mais fortes, como o Estado, as grandes corporações ou, simplesmente, alguém em situação de vantagem, ainda que momentânea (2006, p.117-118).

Com base em Eusebio Fernandez, pode-se acrescentar um quarto critério axioló-gico, consistente na relação direta e imediata do direito com o princípio da dignidade da pessoa, no sentido de que somente devem ser consideradas essenciais as prerrogativas que sejam imprescindíveis para o pleno desenvolvimento da humanidade (1991, p. 78).

Logo, adota-se um conceito material (conteudístico) de direitos humanos, apesar das dificuldades para fixação dos critérios para seu enquadramento, até porque uma con-cepção meramente formal se revelaria inútil para o estabelecimento de quais prerrogati-vas são efetivamente essenciais e, por isto, merecem especial atenção.

Fixado este primeiro ponto, cabe referir também que os direitos humanos pres-supõem deveres contrapostos de similar natureza, exigíveis perante o Estado ou outras pessoas, os quais lhe são complementares (FERNANDEZ, 1991, p.79-80).

Tal correlação entre prerrogativas e exigências não se apresenta somente na forma de abstenções, porquanto, além dos limites inerentes ao respeito e à tolerância, percebe-se a existência de direitos que demandam uma conduta proativa do outro para sua realiza-ção. Justamente por isto, a análise dos aspectos referentes aos direitos humanos não se foca isoladamente no titular dos rights, pois não se podem desconsiderar seus efeitos ante aqueles sobre os quais recaem as contraprestações respectivas.

Outrossim, o segundo aspecto a ser destacado neste tópico é que os direitos huma-nos pressupõem obrigações (ou deveres) contrapostos de igual estatura, cujo respeito são elementares para sua preservação e promoção.

Apresentado o conceito material de direitos humanos e esclarecido quanto às obri-gações contrapostas, cabe lembrar que o conceito de direitos fundamentais, por sua vez, é meramente formal, na medida em que apenas indica aquelas prerrogativas já devidamen-te reconhecidas por determinado ordenamento jurídico, conforme o acordo semântico

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acima traçado. Corroborando tal definição, José Joaquim Gomes Canotilho ensina que “direitos fundamentais são os direitos do homem jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente” (2003, p. 393).

Esclarece-se que ambos os conceitos (direitos humanos e fundamentais) são rele-vantes por diferentes motivos, haja vista que o primeiro esclarece quais os critérios para de-finir o conteúdo jurídico das prerrogativas essenciais, enquanto o segundo especifica quais os rights já são devidamente reconhecidos e protegidos por determinada ordem jurídica.

A diferenciação é também importante no contexto brasileiro, haja vista que o elen-co de “direitos e garantias fundamentais” da Carta Política Brasileira não é exaustivo, jus-tamente porque o § 2º do seu art. 5º amplia o quadro das prerrogativas essenciais para além daquelas constantes do seu Título II (arts. 5° a 17), ao prever que não estão excluídos outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que adota, ou dos trata-dos internacionais em que a República Federativa do Brasil seja signatária. Notadamente, o referido preceito constitucional estabeleceu o “conceito materialmente aberto de direi-tos fundamentais no direito constitucional positivo brasileiro” (SARLET, 2008, p. 90-96). Daí a relevância, também no âmbito jurídico brasileiro, de se estabelecer parâmetros para o debate acerca de quais direitos, em razão de seu conteúdo, merecem ser incluídos na categoria dos fundamentais.

Portanto, o conceito de direitos humanos (e das respectivas contraprestações) é ma-terial, porque refere o conteúdo das prerrogativas essenciais segundo critérios axiológicos, enquanto o conceito de direitos fundamentais, por outro lado, é meramente formal, pois diz respeito ao reconhecimento jurídico de alguns destes rights em rol positivado, median-te produção legislativa ou construção jurisprudencial lastrada em cláusula de abertura.

A abordagem teórica do conceito e da fundamentação dos direitos fundamentais, na forma antes exposta, perpassa pela análise das chamadas gerações de direitos huma-nos, que destacam a progressiva acumulação histórica de conquistas jurídicas no processo civilizatório, embora seja preferível a expressão “dimensões de direitos”, para ressaltar o seu aspecto acumulativo (SARLET, 2008, p. 43).

Com efeito, os direitos fundamentais são mais bem compreendidos se apresentada uma retrospectiva histórica de sua evolução ao longo do processo civilizatório antes da formulação de um conceito. O entendimento de como foram construídas as bases teóricas das prerrogativas humanas elementares permite uma melhor percepção da sua forma e do seu conteúdo.

Importa ainda ressaltar que a reivindicação social é a pedra de toque do reconheci-mento dos direitos humanos, pois estes “emergem gradualmente das lutas que o homem trava por sua própria emancipação e das transformações das condições de vida que essas lutas produzem” (BOBBIO, 1992, p. 32).

Quanto aos direitos de primeira dimensão, estes foram inspirados pelo ideal bur-guês de liberdade, que compõe o lema da Revolução Francesa (BONAVIDES, 2002, p. 517). Tal assertiva pode ser sustentada historicamente, uma vez que os franceses emer-

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gentes da revolução estavam amplamente empenhados no desenvolvimento de um regi-me novo, no qual o sujeito estaria o mais livre possível das amarras impostas pelo abso-lutismo monárquico. E daí se podem aferir as duas principais características dos direitos fundamentais de primeira dimensão: a) São direitos subjetivos individuais, pertencentes a cada pessoa, como ente civil e político, independentemente de seu meio social; e, b) São direitos de defesa, pois implicam respeito a uma esfera de liberdade do indivíduo perante o Estado. Na legislação, destacam-se os clássicos direitos de liberdade de loco-moção (art. 5º, caput, da CRFB) e de pensamento (art. 5º, IV, da CRFB), bem como a garantia do habeas corpus (art. 5º, LXVIII, CRFB), regulada nos arts. 647 e seguintes do Código de Processo Penal (CPP).

Se os direitos fundamentais de primeira dimensão estão ligados à classe burguesa e à Revolução Francesa, os de segunda dimensão se relacionam com as classes trabalhadoras e com a Revolução Industrial, apresentando afinidade com o preceito valorativo de igualda-de (BONAVIDES, p. 518-519). Assim, se os primeiros pressupõem uma não ingerência do Estado na esfera privada, os segundos, em contraposição, necessitam da imposição estatal positiva para serem concretizados. Exatamente por este motivo, os direitos fundamentais de segunda dimensão, mesmo constando formalmente das Constituições promulgadas após as grandes guerras, não se realizam plena e concretamente, dada a insuficiência de re-cursos para que o Estado lhes confira eficácia, porquanto mais custosos que os de primeira dimensão (embora estes também imponham atuação estatal, como criação de estrutura de Segurança Pública, por exemplo). De todo modo, pelo exposto, podem-se aferir as duas características básicas desta dimensão de direitos: a) São direitos de cunho social, pois a sua efetivação ocorre somente mediante a atuação positiva do Estado, que deve interferir para balizar a igualdade dos cidadãos em sociedade; e, b) São geralmente relegados à esfera programática, pois sua efetivação é custosa. Na legislação, destacam-se os diversos direitos sociais dos trabalhadores (arts. 6º e 7º da CRFB), todos regulados na legislação esparsa (na qual se destaca a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT).

Os direitos de terceira dimensão, apesar de sua difícil implementação no plano concreto, assim como os de segunda dimensão, superam os anteriores quanto à sua uni-versalidade, pois se expressam não apenas como direitos do homem perante o Estado, mas como prerrogativas das coletividades, ou direitos difusos, inclusive no sentido de garantirem uma existência condigna para as populações futuras. Paulo Bonavides ressalta que esta “nova universalidade procura, enfim, subjetivar de forma concreta e positiva os direitos da tríplice geração na titularidade de um indivíduo” que, antes de pertencer a um determinado país, “é pela sua condição de pessoa um ente qualificado por sua perti-nência ao gênero humano, objeto daquela universalidade” (2002, p. 527). Na legislação, destacam-se precipuamente o direito ao meio ambiente, na forma do art. 225 da CRFB, bem como sua tutela jurisdicional por intermédio das Leis da Ação Civil Pública e da Ação Popular.

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Não é ocioso lembrar que alguns dos chamados novos direitos são somente adapta-ções das prerrogativas clássicas às novas exigências. Notadamente, verifica-se que “alguns dos clássicos direitos fundamentais da primeira dimensão (assim como alguns da segun-da) estão, na verdade, sendo revitalizados e até mesmo ganhando importância e atuali-dade, de modo especial em face das novas formas de agressão” (2008, p. 61). Porém, sua conformação mais moderna permite enquadrá-los nesta nova fase de reconhecimento e promoção dos direitos do homem.

Por fim, destaca-se que, além das três dimensões de direitos anteriormente men-cionadas, há doutrinadores que sugerem uma ruptura na construção dos direitos de ter-ceira dimensão, propondo que alguns dos novos direitos sejam classificados em uma nova quarta ou, até, em uma quinta dimensão.

Todavia, tal divisão classificatória entre os novos direitos não se justifica no plano histórico. As reivindicações da atual conjuntura política e social enquadram-se perfei-tamente no rol integrante da terceira dimensão, porquanto as raízes dos novos direitos repousam todas sobre a mesma convergência de causas determinantes. Tampouco a natu-reza do bem jurídico (democracia, acesso à informação ou paz mundial) enseja a mencio-nada nova quebra dimensional, porque a razão fundamental da classificação em exame é o desenvolvimento social histórico, não só as peculiaridades das prerrogativas inseridas em cada contexto. Ademais, muitas das faculdades jurídicas elencadas nesta suposta nova etapa de direitos humanos não passa, “por ora, de justa e saudável esperança com relação a um futuro melhor para humanidade, revelando, de tal sorte, sua dimensão (ainda) emi-nentemente profética, embora não necessariamente utópica” (SARLET, 2008, p. 59).

Portanto, o exercício teórico da atualidade sobre os novos direitos, pautado nas reivindicações deste momento do processo civilizatório, ainda encontra pertinência na terceira dimensão dos direitos do homem, mormente por estar calcado no reconheci-mento das novas facetas da personalidade carentes de proteção em face dos progressos tecnológicos e das novas conformações políticas e econômicas (marca da terceira dimen-são). Logo, embora não se possa afirmar que a terceira é a última dimensão dos direitos humanos, as discussões que ultrapassam a análise do contexto histórico são meramente hipotéticas (ainda que possuam caráter científico) e, desta forma, não autorizam o reco-nhecimento de uma dimensão posterior.

Fixadas estas premissas, cabe focar especificamente o direito fundamental ao am-biente sustentável, enquadrável na terceira dimensão, de modo a prosseguir na investiga-ção do tema proposto.

2. Direito Fundamental ao Meio Ambiente Sustentável

A polêmica que existia a respeito da adequação da categoria “meio ambiente” como um direito fundamental foi dissipada pela própria resposta da natureza à intervenção hu-mana desmedida que provocou e provoca a degradação ambiental, a irreversibilidade da

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reposição dos recursos naturais, a aniquilação de espécies animais e vegetais, poluição da água, terra e ar, entre outras alterações que incidem diretamente sobre a vida no planeta e que exigiram do Estado uma atenção mais acurada com a consequente inserção da prote-ção ambiental no sistema normativo no âmbito nacional e internacional.

O antropocentrismo3 exagerado afastou o ser humano da sua própria essência (ser), cedendo lugar aos interesses econômicos (ter) que fundamentaram o desenvolvimento industrial sob a justificativa de que o progresso da sociedade tem seu núcleo na economia e no consumismo. Édis Milaré (2009, p. 67) explica:

O mero crescimento econômico, calcado na mutilação do mundo natural e na imprevisão das suas funestas consequências, dada a falta de doutrina filosófica e ordenamento jurídico capazes de direcionar corretamente os rumos desse mesmo crescimento, acabou por criar um antagonismo artificial e dispensável entre o legítimo desenvolvimento socioeconômico e a preservação da qualidade ambiental.

O Direito Ambiental, assim, desperta para uma consciência voltada à preservação e não rompe a conexão com a questão econômica, mas busca provocar a reflexão sobre a compatibilização entre os interesses econômicos e ecológicos com base em políticas concretas públicas e privadas que tornem possível o desenvolvimento sustentável e, con-sequentemente, um ambiente saudável.

O ambiente saudável e equilibrado como direito fundamental do ser humano e de todas as outras espécies – levando em conta que o ser humano é um dos elementos constitutivos do meio ambiente – representa forte justificativa para que seja promovida ampla proteção pelo ordenamento jurídico. Mas, isso não basta. É preciso que ações ad-ministrativas públicas e privadas, programas, pesquisas e atitudes ecopedagógicas sejam desenvolvidas. Neste contexto, a observância dos princípios ambientais, como da pre-venção, precaução, poluidor pagador, da solidariedade, da informação, entre outros, é imprescindível para a consecução de esforços no sentido da preservação ambiental, pois evitar “o máximo de danos ambientais, cessar a exploração dos recursos naturais de reper-cussão irreversível, criar mecanismos legais e sociais de proteção ambiental representa os maiores desafios do presente século” (ALVES et BALTAZAR, 2010, p. 125).

A proteção normativa do meio ambiente, como tutela da vida, sob o ponto de vista teleológico, direciona-se à sadia qualidade da vida humana — o que não exclui outras for-mas de vida — por meio do equilíbrio ecológico, representando, assim, um direito funda-mental constitucionalmente previsto, esclarecendo-se, entretanto, que o Direito Ambien-tal, conforme explicitado no item anterior, é considerado de terceira dimensão, “para além dos direitos individuais e sociais clássicos” (MILARÉ, 2009, p. 107), o que vale dizer que

3 “Antropocentrismo é uma concepção genérica que, em síntese, faz do Homem o centro do Universo, ou seja, a referência máxima e absoluta de valores (verdade, bem, destino último, norma última e definitiva etc.), de modo que ao redor desse “centro” gravitem todos os demais seres por força de um determinismo fatal. Tanto a concepção quanto o termo provêm da Filosofia”. Conceito operacional extraído de: MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco. 6. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2009, p.100.

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faz parte dos direitos difusos e, conforme Édis Milaré, “nada mais difuso do que o meio ambiente, tudo aquilo que vai à nossa volta, ou seja, a biosfera inteira” (2009, p. 107).

Enquanto direito fundamental é elemento da terceira dimensão de direitos huma-nos, o meio ambiente ecologicamente equilibrado possui proteção constitucional (art. 225 e seus parágrafos) e acompanha outros direitos fundamentais, a exemplo do artigo 5º, que trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, artigos 6º; 7º; 8º; 9º, 10 e 11, que cuidam dos Direitos Sociais, 12 e 13, relativos aos Direitos de Nacionalidade; 14, 15 e 16, que determinam os Direitos Políticos e o 17, que trata dos Partidos Políticos.

Por representar um direito material, com aplicabilidade imediata e eficácia plena, por força do § 1º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, a instrumentalidade é im-prescindível para a viabilidade da sua efetividade, no entanto, o seu vetor não se direciona somente ao Estado como realizador ou detentor da capacidade de concretizar essa efetivi-dade, porquanto as relações privadas não excluem a obrigação de observar o princípio da dignidade humana, por representar a base da sociedade, da cidadania, da fraternidade e das relações, sejam elas com o Estado ou entre indivíduos e por que não dizer da própria vida?, pois, “ter uma vida sadia é ter uma vida com dignidade” (FIORILLO, 2009, p. 110).

Assim, vê-se expandir a eficácia, inicialmente vertical (indivíduo - Estado) para uma eficácia horizontal (indivíduo - indivíduo) em situações em que o Estado interfere nas relações privadas para salvaguardar um direito fundamental ameaçado.

De acordo com a teoria da “Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais”, o Estado que até então se posicionava antagonicamente na relação indivíduo/poder público, agora passa à categoria de defensor dos direitos fundamentais, constitucionalmente garantidos.

Não se trata aqui de um novo direito e sim de uma hermenêutica diferenciada de uma situação já existente, pois a dignidade humana defendida na cultura ocidental desde concepções religiosas culminando com inserção nas mais diversas formas normativas ga-nhou força, no Brasil, com a Constituição de 1988, mas que, em razão do tradicionalismo que historicamente marcou o Direito, impedia, muitas vezes, de interpretar as liberdades públicas fora da exegese do mero domínio público.

Os direitos fundamentais e, consequentemente, a dignidade da pessoa humana, até então escudo de defesa do indivíduo contra as práticas abusivas estatais ou limitado-res de suas ações, passa a ocupar nas relações jurídicas privadas um lugar de destaque pela importância que tem em uma sociedade democrática pautada em valores como a cidadania e justiça.

Essa forma horizontalizada de interpretar a eficácia dos direitos fundamentais ge-rou um movimento denominado neoconstitucionalismo, que encontra aderentes tanto na doutrina como na jurisprudência, ganhando pauta nas discussões jurídicas pelo diferen-cial que imprime na interpretação da interferência estatal nas relações privadas nos mais diversos âmbitos do Direito, entre eles o Direito Ambiental pela transversalidade e pelo caráter interacional que possui no que concerne à proteção da vida no Planeta.

– Elizete Lanzoni Alves – Orlando Luiz Zanon Junior –

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3. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais ao Meio Ambiente Sustentável

Como já exposto, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais ganhou contor-nos mais robustos com a Constituição Federal de 1988, mas tem sua origem em um mo-vimento europeu que passou a rediscutir questões que envolvem a dicotomia entre direito público e privado, bem como a viabilidade de aplicação da eficácia horizontal entre parti-culares e não somente nas relações com o Estado.

Encontrada na doutrina e jurisprudência também com outras denominações, como explica Ingo Sarlet (2005, p. 201): “eficácia privada”, “eficácia em relação a terceiros” (Drit-twirkung ou “eficácia externa”) e “eficácia horizontal” dos direitos fundamentais, sofreu influência, principalmente, da doutrina alemã que inicia sua discussão na seara de sua vinculação imediata e mediata com base nos estudos de Hans Carl Nipperdey e Günther Dürig, respectivamente.

H. C. Nipperdey, citado por Ingo Sarlet (2005, p. 110-111), cria a expressão Drit-twirkung der Grundrechte, para caracterizar uma eficácia de direitos fundamentais entre privados, sustentando a tese de que a vinculação é direta e imediata dos particulares aos direitos fundamentais, por entender que o Estado não é o único sujeito ativo na ruptura ou desrespeito dos direitos fundamentais em relação ao indivíduo, mas entre esses últimos também, sendo, portanto, direitos protegidos constitucionalmente, minimizando, assim, as desigualdades que, porventura, advenham das relações entre particulares em face da superioridade econômica, política ou social de uma das partes, impondo ao Estado uma interferência no sentido de garantir o direito ameaçado.

As relações entre particulares mesmo regidas pela liberdade e autonomia das par-tes não podem deixar de observar os direitos fundamentais em nome da prevalência da dignidade da pessoa humana sobre qualquer outro interesse, principalmente de cunho econômico. A pretensão aí é a de assegurar, nas relações entre particulares, as mesmas ga-rantias constitucionais de justiça, igualdade e de respeito à dignidade humana que ocor-rem nas relações com o Estado.

Assim, os direitos fundamentais, por representarem também princípios de obser-vância imprescindível nas relações sociais gerais, propagam o direito reivindicatório ao Estado no sentido de pleitear a tutela judicial no caso de prejuízo causado por indivíduo a outro indivíduo na hipótese de sua violação. Por isso se diz que sua eficácia é horizontal, por propagar às relações entre particulares, o que até então somente se aplicava na relação vertical com o Estado.

A teoria de Nipperdey desperta críticas por parte dos defensores da ideia de que, em uma sociedade onde impera o direito à liberdade e a individualidade, o Estado não pode interferir de forma tão direta e incisiva que possa limitar essa liberdade nas relações entre particulares.

– Perspectivas da Aplicabilidade da Eficácia Horizontal do Direito Fundamental ao Meio Ambiente Sustentável: Mais Um Desafio para o Século XXI em Prol da Vida Intergeracional –

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Em oposição a essa corrente doutrinária, surge a da eficácia “mediata”, também denominada “indireta” dos direitos fundamentais, tendo como ícone Günther Dürig, que preconizava, segundo citação de Sarlet (2005, p. 211), a ideia de que “o reconhecimento de uma eficácia direta no âmbito das relações entre particulares acabaria por gerar uma estatização do direito privado e um virtual esvaziamento da autonomia privada”.

A oposição de Dürig, também citado por Sarlet (2005, p. 212), tem como justifi-cativa a consagração da autonomia nas relações entre particulares, sendo que a aplica-bilidade dos direitos fundamentais nessas relações deve ocorrer por meio da atividade legislativa e judicial.

Em última análise, isso significa que os direitos fundamentais não são segundo essa concepção diretamente oponíveis, como direitos subjetivos, nas relações entre particulares, mas, que carecem de uma intermediação, isto é, de uma transposição a ser efetuada precipuamente pelo legislador e na, ausência de normas legais privadas, pelos órgãos judiciais, por meio de uma interpretação conforme aos direitos fundamentais e, eventualmente, por meio de uma integração jurisprudencial de eventuais lacunas, cuidando-se, na verdade de uma espécie de recepção dos direitos fundamentais pelo Direito Privado.

Se, por um lado, historicamente a dicotomia entre o direito público e privado tenha demonstrado uma supremacia do primeiro sobre o segundo pela própria ordem impe-rativa que possui, vê-se, por outro, que ao direito privado foram incorporados conceitos próprios do direito público e constitucionalmente previstos, entre eles a questão dos direi-tos humanos e dignidade da pessoa humana demonstrando que o direito privado não está em paralelo com o direito público, mas, em convergência quando se trata de princípios fundamentais.

Após essa breve síntese sobre as posições doutrinárias a respeito da eficácia direta (imediata) e da eficácia indireta (mediata) no sentido da vinculação da relação entre par-ticulares aos direitos fundamentais, verifica-se que é possível sua aplicabilidade quando da violação desses direitos.

A justificativa para essa interpretação tem seu núcleo na importância que adquiriu o princípio da dignidade da pessoa humana no contexto social e jurídico mundial como valor fundamental em toda e qualquer espécie de relação entre pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas de direito público ou privado.

Os direitos e princípios existentes na Constituição Federal devem servir de parâme-tro para toda e qualquer relação em um Estado Democrático de Direito, pois desempenham o papel de estabelecer valores sociais, como afirma Luis Roberto Barroso (2005, p. 15).

A constitucionalização do meio ambiente remete a uma abordagem tanto sob o ponto de vista da dignidade da pessoa humana como também ao marco de um Estado Ambiental de Direito, em que a proteção aos bens ambientais exige tanto do Poder Pú-blico como a sociedade ações coletivas e solidárias, o que inclui a interpretação do Poder Judiciário, o esforço do Poder Legislativo e atitudes do Poder Executivo. Como explica Antônio Herman Benjamin (2008, p. 64), a “ecologização da Constituição não é cria tarde

– Elizete Lanzoni Alves – Orlando Luiz Zanon Junior –

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de um lento e gradual amadurecimento do Direito Ambiental, o ápice que simboliza a consolidação dogmática e cultural de uma visão jurídica de mundo. Muito ao contrário, o meio ambiente ingressa no universo constitucional em pleno período de formação do Direito Ambiental”.

A Constituição, desta forma, é explícita quanto ao reconhecimento do meio am-biente como um direito fundamental e bem comum do povo, recepcionando o conteúdo do art. 2º da Lei 6938/81, que estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente e deixa claro que essa norma tem por objetivo “a preservação, melhoria e recuperação da quali-dade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico [sic], aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana [...]” (original sem grifos).

Normas de caráter internacional também reconhecem dignidade à vida como um direito, a exemplo da Declaração do Meio Ambiente, fruto da Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, no ano de 1972. Esse documento consagra em seu Princípio 1 que o ser humano tem “[…] direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna […]” (sem grifo no original).

Em seu Princípio 19 estabelece ainda:

É indispensável um trabalho de educação em questões ambientais, visando tanto às gerações jovens como os adultos, dispensando a devida atenção ao setor das populações menos privilegiadas, para assentar as bases de uma opinião pública, bem informada e de uma conduta responsável dos indivíduos, das empresas e das comunidades, inspirada no sentido de sua responsabilidade, relativamente à proteção e melhoramento do meio ambiente, em toda a sua dimensão humana. (sem grifo no original).

A partir de então, o meio ambiente passou a ter um contexto de essencialidade para a vida e dignidade do ser humano e, portanto, considerados direitos humanos fundamen-tais. Por conseguinte, e até mesmo por força de um raciocínio lógico as relações entre particulares que envolvem questões ambientais também são contempladas pela teoria de uma eficácia horizontal para sua proteção.

A Declaração de Estocolmo inspirou, ainda, outros encontros mundiais e do-cumentos internacionais, como do Rio de Janeiro, no ano de 1992, Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento - Rio 92, reafirmando, como dito em seu preâmbulo, a referida declaração e inaugurando uma nova consciên-cia ambiental no Brasil.

O direito a um ambiente ecologicamente equilibrado e sadio é intergeracional e re-presenta um mínimo essencial para a sobrevivência dos seres no Planeta, portanto, deixar de reconhecer que incidir nas relações privadas é retroceder no tempo e no espaço ante as conquistas normativas, administrativas e sociais nesse campo.

– Perspectivas da Aplicabilidade da Eficácia Horizontal do Direito Fundamental ao Meio Ambiente Sustentável: Mais Um Desafio para o Século XXI em Prol da Vida Intergeracional –

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O direito a um ambiente sadio tem em contrapartida o dever de manter um ambien-te sadio como corolário do princípio da solidariedade no qual Estado e coletividade são responsáveis pelo equilíbrio ecológico, o que abrange as atividades e negócios privados.

Um particular pode exigir judicialmente do outro o cumprimento do direito fun-damental ao ambiente quando um negócio, um contrato, uma conduta representar uma transgressão a esse direito difuso e constitucionalmente previsto.

Reconhecer que existe uma eficácia horizontal do direito fundamental ao ambiente significa que o particular pode buscar a tutela judicial contra outro particular e não somen-te em relação ao Estado quando se trata, usualmente, dos direitos subjetivos públicos.

Há legitimidade ativa e passiva, nesse contexto, bem como um equilíbrio de forças entre as partes, o que geralmente não ocorre nas relações em que o Estado ou outro ente privilegiado economicamente encontra-se no polo passivo, por isso, a defesa da viabilida-de da eficácia horizontal ao ambiente como um direito fundamental como uma garantia de equilíbrio entre sujeitos desiguais.

O meio ambiente como assunto transversal no campo jurídico e fora dele envolve a responsabilidade do particular pela preservação ambiental tanto quanto a do Estado.

Nada mais justo, portanto, em relação ao meio ambiente, do que ampliar cada vez mais sua defesa e preservação, o que justifica não somente a irradiação da eficácia dos direitos fundamentais, mas toda e qualquer ação pública ou privada na luta para ver ga-rantido o direito à vida das atuais e futuras gerações.

Conclusões

Os direitos fundamentais, previstos e garantidos na Constituição Federal/88, abran-gem os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana como base de uma sociedade onde a cidadania e a justiça social são reconhecidas como bandeiras de um Estado De-mocrático de Direito.

A Constituição garante à sociedade o direito fundamental à vida, à liberdade, à propriedade, entre eles o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, sem desconectá-lo do direito ao desenvolvimento, o que envolve o aspecto econômico como consequência da trajetória histórica da sociedade industrializada e voltada ao mercado. O que se busca, nesse contexto, é o equilíbrio entre esses direitos, todavia, pela urgência em frear a degradação ambiental que coloca em risco a própria vida humana, a ampliação protetiva do ambiente se torna prioridade.

Embora exista uma colisão aparente de direitos fundamentais (liberdade e desen-volvimento econômico), o que deve pautar os critérios de ponderação é a condição de vida das atuais e futuras gerações diante do que vem ocorrendo com o meio ambiente por ação direta ou indireta do ser humano, que deflagrou o problema e agora deve encontrar soluções adequadas de reversão.

– Elizete Lanzoni Alves – Orlando Luiz Zanon Junior –

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O direito à autonomia e liberdade, conquista política, econômica e legal do ser humano, ainda que fruto de lutas lavadas à sangue, não pode se sobrepor ao direito à vida como consequência de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, pois de nada adianta ter liberdade sem condições de exercê-la pela ausência de condições de vida.

O reconhecimento da aplicabilidade do direito fundamental ao ambiente no âmbi-to das relações entre indivíduos incide sobre a equidade de pressupostos constitucionais do desenvolvimento econômico e proteção ambiental.

Possibilitar sua aplicabilidade não coloca em perigo a autonomia da vontade que rege as relações privadas, apenas a equilibra diante de um interesse coletivo que é preser-vação do ambiente, ou seja, pondera a igualdade de condições na relação jurídica.

Sob o manto da proteção dos direitos fundamentais, constitucionalmente garanti-dos com aplicabilidade imediata, o meio ambiente tem irradiada sua proteção para além das relações com o Estado, ganhando campo também nas relações entre privados.

O Estado, nesse sentido, não é mais o único sujeito passivo na relação jurídica, como não é solitário também no dever de proteção ambiental. A responsabilidade é soli-dária entre ele e a coletividade.

Ao Estado cabe a garantia e observância dos direitos fundamentais, sejam quais forem os sujeitos passivos e ativos, pois o interesse e bem-estar social, o que inclui o di-reito intergeracional a um ambiente sadio e equilibrado, representam a sua finalidade, lembrando que o dispositivo constitucional em que a proteção ambiental é mencionada e garantida (art. 225 e seus parágrafos) está inserido no Título VIII, que trata da Ordem Social, o que vale dizer que todos são titulares do direito e do dever de proteção ambiental remetendo à irradiação da possibilidade da eficácia horizontal dos princípios fundamen-tais às relações entre particulares.

A constitucionalização do direito a um ambiente sadio e equilibrado é o pano de fundo para o reconhecimento da ampliação de seu direito de defesa incorporando-o aos direitos fundamentais, denotando um estreitamento entre o direito público e privado quando se trata da dignidade da pessoal humana.

A aplicabilidade da eficácia horizontal dos direitos fundamentais ao meio ambien-te merece especial atenção do Poder Judiciário, a quem incumbe sua proteção diante de qualquer violação, seja por ato do Estado contra particular ou entre particulares, sem eximir a responsabilidade também em igual patamar de importância do Poder Legislativo e Poder Executivo.

Em que pese as divergências doutrinárias sobre eficácia imediata ou mediata, o que deve prevalecer é a proteção ambiental como fator primordial para a garantia da vida e da saúde no Planeta.

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direiTo Civil e direiTo proCessual Civil

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RACIONALIzAçãO E AGILIzAçãO DOS PROCEDIMENTOS JUDICIAIS

RATIONALIZATION AND SPEEDY JUDICIAL PROCEEDINGS

Erli Rose Fonseca1 Emanuel Schenkel do Amaral e Silva2

RESUMO: Toda vez que se pensa em processos judiciais, lembra-se de interminá-veis delongas, de anos de espera e incerto deslinde. Busca-se com ânsia a justiça para rever o imóvel perdido, o ressarcimento de grave dano, a satisfação ou o término dos conflitos. Com o passar do tempo e acomodados a ânsia e o desespero, resta a espe-rança. Mais tarde, ainda e não raro, sem resposta ao pleito, muitos retomam cabisbai-xos suas vidas, em completo descrédito para com a justiça. Só então se tem a certeza de que o Mestre e imortal Rui Barbosa estava certo ao afirmar que “justiça atrasada não é justiça, senão mera injustiça, flagrante e manifesta”. O Poder Judiciário detém um papel fundamental, com a função de estabilizar as condutas desregradas das pessoas, observando e aprimorando sua função social, com o primordial objetivo de diferenciar pessoas, ações e situações, promovendo, assim, na desigualdade, a real justiça. O estudo e objetivo deste artigo é demonstrar possibilidades. Comprovar que existem alternativas e métodos que, sendo seguidos e uniformizados, trocarão morosidade e ineficiência por celeridade e prestação jurisdicional de excelência. PALAVRAS-CHAVE: Racionalização de Processos. Informatização. Credibilidade do Judiciário Catarinense. Valorização das pessoas. Novos Instrumentos Processuais. ABSTRACT: Whenever you think of lawsuits, recalls endless delay, years of waiting and uncertain demarcation. The aim is to urge the court to review the property lost, compensation for serious damage, satisfaction or termination of conflict. With the passage of time and settled for yearning and despair, there is hope. Later still, and often with no response to the election, many downcast resume their lives in utter disbelief of justice. Only then there is the certainty that the immortal Master and Rui Barbosa was right in saying that “justice delayed is not justice, but sheer injustice, blatant and obvious”. The Judiciary has a key role, with the function of stabilizing the unruly

1 Especialista em Controladoria e Administração Pública. E-mail: [email protected] Juiz de Direito. Professor e Palestrante. E-mail: [email protected]

– Racionalização e Agilização dos Procedimentos Judiciais –

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behavior of the people, observing and improving its social function, with the primary goal of differentiating people, actions and situations, thus promoting inequality, the real justice. The study and aim of this paper is to demonstrate possibilities. Check that there are alternatives and methods being followed and standardized, exchange delays and inefficiency in rendering speed and judicial excellence.KEYWORDS: Rationalization Process. Computerization. Credibility of the Santa Catarina’s Judiciary. Valuing people. New Instruments Procedure.

1. Introdução

Conta, uma história extraída da mitologia grega, que o Deus do tempo chamava-se Cronos e que, sendo um Deus mau, devorava seus filhos ao nascerem, com receio de que viesse a ser, por eles, destronado. Ao nascer Zeus, a mãe Réia o salvou, escondendo-o e entregando ao marido uma pedra envolta em pano, a qual Cronos engoliu. Quando adul-to, Zeus destrona seu pai e o faz expelir todos os filhos pela boca, quando assume o poder. Nova era temporal surgiu. As filhas de Zeus foram chamadas de horas, representavam as estações do ano e interpretavam a figura do tempo. Receberam os nomes de Eunômia, personificando a justiça, Dike, a disciplina e Irene, a paz. A partir de então, a justiça ca-minhava no mesmo compasso do tempo.

Não em passado distante, lembramo-nos da expedição de uma carta, através do correio, e a espera ansiosa pela resposta. Certamente nossos jovens não conseguem en-tender essa demora aviltante. Para eles, quando confortavelmente sentados em frente ao computador, conversam com amigos ou parentes, escutando suas vozes, trocando infor-mações e fotos, não raro praticando esta relação social com pessoas que estão no outro lado do mundo.

A morosidade que havia nas comunicações, atualmente confronta-se com sua ve-locidade, porém, ainda nos deparamos com a letargia e a demora no andamento de pro-cessos judiciais, com entraves burocráticos e a notória resistência da maioria das pessoas envolvidas, incapazes de efetuar a mudança, decorrente de um sistema equivocado, cujos operadores utilizam, muita das vezes, instrumentos processuais e métodos antigos.

2. Poder Judiciário Catarinense Diante do Desafio de uma Entrega Jurisdicional Célere

A informatização do Poder Judiciário Catarinense estabeleceu um marco divisório inimaginável, quando em um espaço muito curto, comparativo aos anos de atuação sis-temática e retrógrada, acelerou a prestação de serviços aos jurisdicionados, “aposentou” em definitivo a máquina de escrever manual e também a elétrica; os enormes livros de capa preta para registros de todos os atos do cartório e também de sentenças; acelerou as intimações e outros procedimentos; diminuiu ou extinguiu páginas datilografadas; enfim, elevou o judiciário catarinense ao patamar de exemplo para muitos outros da federação,

– Erli Rose Fonseca – Emanuel Schenkel do Amaral e Silva –

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surpreendendo até mesmos os operadores do direito, não acostumados com a velocidade e melhoria trazidas em uma nova era, digital e informatizada.

Ao perguntarmos se esse ideal ou sonho de uma justiça ágil e eficaz foi atingido; através do avanço tecnológico e da informatização de grande parte dos procedimentos; a resposta que recebemos, com o clamor das pessoas que buscam seus direitos através do judiciário, é simplesmente desoladora.

A voz do povo reflete desilusão e desesperança diante da delonga dos processos ju-diciais e da interminável espera na solução dos conflitos. Na maioria das vezes, ao térmi-no da lide, o tempo foi tão longo que a resposta ou satisfação do pedido já não satisfaz; não mais é necessária ou então, ainda pior, não é eficaz. No entender do ilustre jurista Rui Barbosa, em sua impagável Oração aos Moços: “Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade” (BARBOSA, 1961, p. 47).

Seguindo o mesmo raciocínio, afirma o advogado e mestre em direito, Lúcio San-toro de Constantino: “Um processo judicial atormentado pela delonga, no máximo será simples aplicação do direito, mas jamais da justiça!” (SANTORO, 2008, p. 11-12).

E prossegue, o mestre Lúcio, em sintética análise acerca das razões objetivas e subje-tivas da demora na tramitação dos processos, depois de observado o necessário tempo des-tes que, segundo o autor, não pode se traduzir em morosidade processual, concluindo:

Na tentativa de se formatar o que significa adequada duração processual, emergiram diversos critérios sugestivos para estabelecer a aferição do excesso. Daí restou acolhida pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, bem como pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, a teoria dos três critérios: a) complexidade do caso; b) atividade processual do interessado (imputado);c) a conduta das autoridades judiciárias. (SANTORO, 2008, p. 11-12).

Poderíamos ainda acrescentar que nosso sistema não é racional. Há real importância em uma sistemática moderna que consiga abreviar o tempo

de tramitação dos processos, extinguindo-se a burocracia e racionalizando o tempo, por-quanto estas questões são fundamentais. A espera de uma decisão judicial só se justifica na esperança de que o final seja breve e que, de um modo ou de outro, realize o direito. Há diversas normas regrando o tempo do processo, cujos prazos se diferenciam: a) pelo tem-po (dependendo de cada instrumento processual); b) pelo sujeito do prazo; c) pela forma de contagem do prazo; d) pela sua forma (estipulados em lei ou não, prazos próprios e prazos impróprios); e) pelo rito do processo.

A fatalidade dos prazos para o advogado e seu constituinte não o é para os outros membros que atuam no processo. Daí advém uma das causas da morosidade, porquanto não existe sanção alguma pelo não cumprimento destes prazos. O que ocorre são situações das mais verídicas e razoáveis às absolutamente injustificáveis. Explico: falta de estrutura

– Racionalização e Agilização dos Procedimentos Judiciais –

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cartorária, de pessoal, capacitação, equipamentos, volume de processos completamente desproporcional ao número de juízes e de servidores e, de outro lado, má administração do cartório, através do juiz da unidade jurisdicional e do chefe de cartório, desinteresse no aprendizado e modernização, desinteresse em seguir novas regras ou fórmulas para racionalizar e agilizar procedimentos.

Desta forma, perpetuam-se a “mesmice”, o comodismo e a consequente descrença da população na atuação do Judiciário.

Porém, em benefício da justiça e em prol de elementos que busquem uma real mu-dança em toda a sistemática do Poder Judiciário, notadamente catarinense, onde atuamos e queremos ver nosso povo satisfeito, mister se faz salientar que: toda essa situação envol-vendo a morosidade do judiciário não é somente da responsabilidade de uma má admi-nistração do próprio judiciário. Há uma característica muito real e de fácil comprovação, justificadora da morosidade propalada. Constata-se uma situação anômala no sistema processual e no Poder Judiciário, quando não somente os juízes, mas os técnicos judiciá-rios trabalham como máquinas, ou robôs, carimbando, perfurando folhas, alimentando o sistema SAJ com informações processuais, inúmeras vezes em processos que tratam de ações extremamente semelhantes, para não se dizer iguais, de autores diferentes, mas com os mesmos requeridos e a mesma causa de pedir.

Elucido: milhares de pessoas buscam o judiciário para fazer valer seus direitos atin-gidos pelos desmandos, cobranças abusivas, falta na prestação de serviços contratados e pagos pelo cliente, contra empresas, como a Brasil Telecom, as operadoras da telefonia móvel (campeãs), empresas de comunicação e, sem dúvida alguma, contra todas as insti-tuições financeiras (bancos).

Temos em diversas comarcas, como a de Blumenau, uma unidade judiciária com-petente exclusivamente para ações bancárias.

Ora, se a empresa errou contra um cliente e foi chamada “à atenção” pelo Poder Ju-diciário e necessitou ressarcir a falta, porque ela persiste contra outros milhares de clien-tes, com a mesma falta, o mesmo erro?

Acredito que seja pela ineficácia das leis.

Pode-se usar de uma analogia, em que um fiel confessa ao pároco de sua aldeia o furto de cinco feixes de lenha do vizinho. Perguntado como fez para carregar todos, res-pondeu: - Não, senhor Padre, levei apenas dois, os demais carregarei ao retornar da missa.

Conclui-se que não há meios eficazes para coibir estes abusos. Há necessidade ur-gente de que o Poder Judiciário, através de seus agentes, trabalhe mais com o social, ate-nha-se às causas merecedoras de auxílio e solução; que os juízes atuem pensando, criando, inovando, e não substituindo apenas os nomes das pessoas em milhares de sentenças repetitivas, dizendo a todos que sim, têm razão e foram lesados..., mas, e os infratores, causadores destas lesões ao direito, por que motivo persistem no erro?

– Erli Rose Fonseca – Emanuel Schenkel do Amaral e Silva –

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Permanece a pergunta e conjectura-se que a razão disso seja porque, mesmo com algumas punições, ainda lucram muito com suas ações maléficas.

Como se podem coibir estas situações?Com duras punições aplicadas pelo Poder Judiciário, elevando-se as multas na

mesma proporção em que se volta a tratar de ações contendo a mesma ofensa.Certamente o volume de processos cairia em proporções significativas, culminan-

do com prestações mais céleres dos serviços do judiciário, mais tempo para a análise das situações sociais críticas e valorização das funções, criadas para missões importantes e delegadas a meros operadores de carimbos e canetas para assinar papéis contendo as mes-mas situações.

2.1. Escola de Serviços Judiciário Catarinense

Buscando adequar-se ao novo modelo moderno e tecnológico, o Tribunal de Justi-ça Catarinense, através da Escola de Serviços Judiciários, aprimorou procedimentos, por meio do Manual de Procedimentos do Cartório Judicial Cível, cuja realização contou com a coordenação do juiz Emanuel Schenkel do Amaral e Silva.

O manual cível caminha de “mãos dadas” com as inovações do sistema de auto-mação (SAJ-PG) e certamente introduziria uma nova sistemática nos cartórios cíveis do estado catarinense se fosse seguido à risca por todos e ensinado, com acompanhamento de equipe treinada para tal mister (SILVA, 2004).

Ao apresentá-lo, disse o Des. Solon d’Eça Neves, Vice-Diretor da Academia Judi-cial, em pensamento que ora sintetizo: que houve uma demanda elevada diante das novas competências instituídas pela Carta Magna de 1988, exigindo reformulação do judiciário brasileiro. Criticou a centralização e burocracia exercida por muitos magistrados, que sacrificam a celeridade processual. Elegeu como perfil de novos juízes o de verdadeiro di-retor do processo, garantindo tempo hábil para os julgamentos como missão primordial, e entregando aos analistas judiciários e técnicos judiciários o desenvolvimento formal dos feitos que, além do mais, tramitarão sobre o leito seguro das normas processuais e das diretrizes da Corregedoria Geral da Justiça.

Justificou o juiz Coordenador da Escola de Serviços Judiciários, Emanuel Schenkel do Amaral e Silva, na entrega do Manual, que não existiam mecanismos, ao longo de anos, para informar adequadamente os operadores, tendo por finalidade o Manual de Procedimentos do Cartório Judicial Cível tornar-se instrumento de capacitação e orga-nização cartorária (SILVA, 2004).

Pela relevância do tema ora tratado, reproduzo parte da resposta do juiz aposen-tado Pedro Madalena, na entrevista formulada pelo Informativo Quid Novi (periódico informativo do sistema SAJ). Perguntado em quais áreas se devem concentrar esforços na busca da modernização do judiciário catarinense, respondeu:

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Em administração estuda-se as quatro colunas que sustentam esta ciência: planejamento, execução, controle e coordenação. Assim, no Poder Judiciário, não basta um eficiente quadro de juízes e de auxiliares desenvolvendo (execução) a sua atividade final – prestação jurisdicional/decisão/sentença. Surge a obrigatoriedade do funcionamento de um órgão de Planejamento, não simplesmente constituído por operadores do Direito, mas também por outros técnicos de áreas afins (informática, administração, economia, contabilidade, etc.) (MADALENA, 2009, site).

3. Cartórios Judiciais da Comarca de Blumenau Diante da Crescente Demanda e Necessidade de Prestar Serviços Eficazes e Céleres

Tendo atuado por mais de vinte anos à frente da administração do Fórum da co-marca de Blumenau, da memória da autora deste trabalho estão quase apagadas as lides cartorárias dos tempos idos da comarca de Concórdia, em que “datilografava” longas au-diências e longas sentenças interminavelmente corrigidas e refeitas, porque, sob a lavra do Des. Newton Trisoto, então juiz daquela comarca, não podia haver falhas ou erros em suas sentenças muito bem elaboradas e com brilhantes decisões.

Na verdade, nem seria necessária a lembrança, porquanto a realidade atual é com-pletamente divergente. A era tecnológica chegou, os procedimentos são outros, com difi-culdades passíveis de resolução e, de outras, mais complexas, em virtude de maior volume de processos, entre outros fatores, como repetição de ações, pela não observância das leis e da ética por parte de diversas empresas e pela contumaz falta de servidores.

Observado o volume gigantesco de processos, diante do reduzido número de técni-cos que se desdobram para dar conta do trabalho, e após uma ampla pesquisa e leitura de métodos já elaborados que poderiam proporcionar racionalização e agilização das ações, pareceu-me que os cartórios judiciais catarinense carecem tão somente de incentivo e aprendizado para usar as ferramentas disponíveis, advindos de treinamentos ministrados em todos os fóruns, com servidores e juízes, objetivando uniformizar procedimentos, racionalizar ações, reduzir o trabalho, sem deixar a observância dos preceitos legais.

Essa assertiva não é de modo algum utópica.É a inteligência no trabalho. O uso da tecnologia associada ao pensamento crítico,

discernimento e administração eficaz de tempo disponível.O Manual de Procedimentos do Cartório Judicial Cível guia os operadores judiciais

para todos os caminhos que levam o processo ao seu final, juntamente com o sistema de automação do judiciário catarinense. Objetiva a celeridade dos procedimentos.

Quando da elaboração do manual, em entrevista à Quid Novi (Boletim do SAJ), na resposta aos questionamentos acerca do Projeto de Racionalização, o juiz Emanuel Schenkel do Amaral e Silva asseverou que o projeto se relaciona intimamente com o aper-feiçoamento do SAJ, cuja meta foi automatizar ao máximo o sistema, diminuindo passos do funcionário com a feitura de expediente, através de diversos atos ordinatórios, cujos modelos já se encontram inseridos no sistema (SILVA, 2005).

– Erli Rose Fonseca – Emanuel Schenkel do Amaral e Silva –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 81

Anteriormente, cada cartório seguia um modelo diferenciado, de tal modo que im-pedia o programa de atender a todos de forma uniforme. Surgiu daí a necessidade de pa-dronizar, desburocratizar e simplificar as rotinas do cartório, assim como caracterizou-se como fundamental o treinamento dos funcionários, segundo garantiu o juiz coordenador.

Esclareceu, ainda, o juiz Emanuel, em sintética, porém elucidativa análise da real condição dos cartórios judiciais, que, observados in loco, concluiu-se pela urgência e ne-cessária padronização, simplificação e desburocratização, sendo primordial um trabalho científico para equacionar todos os problemas que surgiram, abrangendo outros setores, como contadoria, distribuição, oficiais de justiça etc.

Mencionou a real importância do sistema de automação do judiciário, sem o qual seria muito difícil implantar qualquer forma de racionalização, em função da quantidade de processos, comparativamente ao número reduzido de servidores e de juízes.

Por conseguinte, o programa de automação do judiciário catarinense foi criado especificamente para o desenvolvimento das ações em cartórios judiciais. É um sistema que traz à maioria dos procedimentos as seguintes vantagens: informa falhas ou omissões, auxilia a abreviar procedimentos, diminui o tempo da lide, informa a todos os envolvidos sobre o que acontece no processo, em que fase se encontra, além de cientificar os advoga-dos e interessados (partes no processo) acerca do andamento do processo.

Não há na legislação nada que mencione o tempo do processo que não esteja inseri-do nestes prazos. Sendo assim, dependendo da sua complexidade e de seus atos em geral, não deveria ultrapassar o tempo de 90 (noventa) dias para sua conclusão.

4. Utilização do Manual de Procedimentos e Métodos Diferenciados Usados pelo Cartório da 4ª Vara Cível de Blumenau

A eficaz administração de uma empresa, de uma casa ou de qualquer ambiente em que conviva um grupo de pessoas é o diferencial entre o sucesso e o fracasso. Para isso, são necessários trabalho, disciplina e abnegação das pessoas.

Através de uma verve disciplinadora e tino administrativo, instituiu-se, no cartório da 4ª Vara Cível de Blumenau, não somente a observância do Manual de Procedimentos do Cartório Judicial Cível, como se foi além: com reuniões periódicas, o juiz titular da unidade judiciária, em parceria com os servidores, através da expedição de ordens de serviços e por-tarias, estabeleceu diversos e diferenciados critérios para a agilização dos procedimentos.

Entre as medidas administrativas, reservaram-se as duas primeiras semanas dos meses de julho e dezembro para a realização de correição, objetivando a localização física e identificação de todos os processos da vara e outros procedimentos organizacionais.

Normatizaram-se atos ordinatórios não utilizados no sistema de automação. Estes atos têm o condão de “cortar caminho” à finalização dos processos, como nos exemplos citados a seguir:

– Racionalização e Agilização dos Procedimentos Judiciais –

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DOS ATOS ORDINATÓRIOS:

a) Doc. 01: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08, fica intimado o autor para manifestar-se sobre a contestação e documentos, no prazo de 10 (dez) dias. Fi-cam intimadas as partes, ainda, para especificarem provas que ainda preten-dam produzir, devendo mencionar qual a sua utilidade para o deslinde da causa (TJSC, Ap. Cív. 2003.020348-6, de Itajaí, Rel. Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, j. 05.05.2005). No caso de prova oral, resumidamente, os fatos que com ela preten-dem esclarecer. No caso de prova pericial, a utilidade do expediente, indicando a especialidade requerida e quesitos correlatos, sob pena de indeferimento, no prazo sucessivo de 10 (dez) dias”.

b) Doc. 02: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08, fica intimado o autor para manifestar-se sobre a contestação e documentos, no prazo de 10 (dez) dias. Fi-cam intimadas as partes, ainda, para especificarem provas que ainda preten-dam produzir, devendo mencionar qual a sua utilidade para o deslinde da cau-sa (TJSC, Ap. Cív. 2003.020348-6, de Itajaí, Rel. Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, j. 05.05.2005). No caso de prova oral, resumidamente, os fatos que com ela pretendem esclarecer. No caso de prova pericial, a utilidade do expediente, indicando a especialidade requerida e quesitos correlatos, sob pena de indeferi-mento, ressaltando que o prazo dos litisconsortes passivos é comum”.

c) Doc. 03: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08, tendo em vista que a parte ________ mudou de endereço (AR de fl._____), não tendo informado o atual, quando era de seu dever essa informação, fica desnecessária outra forma de cientificação, motivo pelo qual dou seguimento ao processo”.

d) Doc. 04: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08, certifico que procedi a co-municação da citação de ______ ocorrida em ______ (data da intimação feita pelo oficial), com juntada do mandado em _______. ao Juízo deprecante, nos termos do artigo 738, §2º, do CPC, a qual é feita por meio eletrônico (regra dentro do Estado - art. 91 do CNCGJ), ou por ofício (Comarca fora do estado), para fluência do prazo de embargos”.

e) Doc. 05: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08, certifico que o executado não apresentou embargos. Em razão disso, comunico ao Juízo deprecado e faço o arquivamento administrativo dos autos”.

f) Doc. 06: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08, fica intimado o devedor para pagar a quantia de R$ (completar o valor) relativa à sentença de fls. (com-pletar os números das páginas) no prazo de 15 dias, sob pena de multa de 10% sobre o valor do débito e, caso não faça o pagamento, já fica intimado para, no mesmo prazo, indicar bens penhoráveis ou explicitar a impossibilidade de fazê-lo, sob pena de se considerar ato atentatório à dignidade da Justiça, aplicando-se multa de 20% sobre o valor do débito atualizado”.

– Erli Rose Fonseca – Emanuel Schenkel do Amaral e Silva –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 83

g) Doc. 07: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08: Fica intimado o embargado para manifestar-se sobre os embargos à execução, no prazo de 15 (quinze) dias”.

h) Doc. 08: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08: fica intimado o credor para juntar aos autos o cálculo atualizado da dívida ( ) e fazer as retificações conforme ( ) sentença ( ) acórdão”.

i) Doc. 09: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08: Fica intimado o executa-do, na pessoa de seu procurador, quanto à penhora de fls ____”.

j) Doc.10: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08, certifico que não havendo advogado constituído nos autos, faço a intimação do executado quanto à pe-nhora de fls.____, via ofício (AR)”.

l) Doc. 11: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08: Fica intimado o credor para juntar comprovante da propriedade do bem indicado à fl___., no prazo de 10 (dez) dias”.

m) Doc. 12: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08: Certifico que expedi o termo de penhora dos créditos do contrato (fl._____), ficando o ______ (banco, terceiro, financeira...) como depositário. Após, será expedido ofício à instituição (banco/financeira/terceiro...) para que forneça o contrato e os va-lores dos pagamentos realizados, do que será intimado o exeqüente para se manifestar, no prazo de 05 (cinco) dias. Fica intimado o executado da penhora realizada, bem como para oferecer ___________(preencher conforme o caso: embargos - na execução antiga/impugnação - na execução de sentença), no prazo de 15 (quinze) dias”.

n) Doc. 13: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08, certifico que devidamente intimado para assinar o termo de penhora, não compareceu, motivo pelo qual faço a intimação do credor para que indique depositário e forneça os meios para remoção no prazo de 10 dias. Após, será expedido o respectivo mandado de penhora e intimação, mediante o depósito da diligência do oficial de justiça”.

o) Doc. 14: Ato Ordinatório: “Conforme Portaria 05/08, ante a não interposição de embargos monitórios, converto em título judicial, fazendo a intimação do devedor para que pague a quantia de R$ (valor da dívida), no prazo de 15 dias, sob pena de multa de 10% sobre o valor do débito ou indicar bens penhoráveis ou explicitar a impossibilidade de fazê-lo, sob pena de se considerar ato atentatório à dignidade da Justiça, aplicando-se multa de 20% sobre o valor do débito atualizado”.

p) Doc. 15: Ato ordinatório: “Conforme Portaria 05/08, certifico que o perito re-quereu dilação do prazo para apresentação do laudo pericial, sendo-lhe conce-dido o prazo de ____ dias”.

q) Doc. 16: Ato ordinatório: “Conforme Portaria 05/08, fica intimado o ________ para efetuar o pagamento dos honorários do perito, sob pena de multa de 20%, no prazo de 05 (cinco) dias”.

– Racionalização e Agilização dos Procedimentos Judiciais –

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Na observância do plano social, na 4ª Vara Cível estabeleceram-se diferentes mé-todos para a celeridade de ações de fundamental importância para as pessoas, em que a demora é por demais perniciosa, infligindo penoso sofrimento a quem depende da resposta judicial. Por exemplo, havendo um caso de acidente grave, em que a vítima encontra-se paralisada e incapaz, a ação seguirá mais rapidamente do que a de um pro-cesso de cobrança.

Além das tarjas instituídas pela legislação do Tribunal de Justiça, como preferencial aos idosos, esta unidade judiciária identifica os processos com etiquetas diferenciadas para agilizar o trâmite:

a) Fita preta para processos urgentes;b) Fita vermelha para marrom para processos com mais de 5 anos e em cumpri-

mento de sentença; c) Fita vermelha para processos em que participe o Ministério Público;d) Fita crepe marrom, para processos de execução de sentença ou que tramitam há

mais de cinco anos (preferenciais);e) Fita amarela para processos repetitivos e onde será analisada a tutela antecipa-

da/cautelar após a resposta.

Observações:1) A fita será localizada na parte direita, embaixo, transversalmente;2) Etiqueta do idoso: preferenciais, devendo ser localizada na parte inferior do

processo, mais precisamente na capa, lado esquerdo.

Os servidores da 4ª Vara Cível fazem rodízios de funções, inclusive atuando no ga-binete. Vige a colaboração mútua. Não ocorre despacho em nenhum processo corrigindo atos ou chamando a atenção dos profissionais que atuam na serventia. Todos se ajudam. Havendo um equívoco do gabinete, o servidor do cartório que verificar, comunicará ao juiz; da mesma forma ocorre com o contrário: os possíveis equívocos do cartório são alertados pelo juiz. Desta forma, acontece o aprendizado, não se atrasa o processo com despachos que a ninguém interessam e não se cria animosidade entre os servidores e o magistrado, com a consequente agilização das ações.

Ocorre, em todas as reuniões, um planejamento para o ano todo, estabelecendo metas e prazos para realização das tarefas mais importantes da unidade judiciária, como por exemplo, cadastramento de processos para envio ao Arquivo Central; relocalização e movimentação de todos os processos da vara, com identificação dos processos em trâmite há mais de 5 (cinco) anos, assim como a determinação de análise e movimentação de todos os processos parados há mais de 3 (três) meses.

– Erli Rose Fonseca – Emanuel Schenkel do Amaral e Silva –

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5. Uniformização de Procedimentos em Todos os Fóruns do Estado – Utilização de Manuais de Instrução

Embora não esteja sendo usado sistematicamente, o Manual de Procedimentos do Cartório Judicial Cível encontra-se disponível em cada unidade judiciária deste estado.

Sendo assim, resta a pergunta do porquê de algumas unidades judiciárias, al-gumas vezes na mesma comarca, contando com igual número de processos e de ser-vidores, andarem a passos lentos, e em outras unidades, agirem com agilidade e com presteza dos serviços?

Certamente necessitaremos frisar alguns pontos importantes para o entendimento da questão, fugindo do senso apenas crítico (de modo algum é o objetivo), e, ao final, co-locando sugestões que poderão uniformizar os cartórios judiciais catarinenses:

Situações problemáticas:a) falta de treinamento dos servidores e dos juízes no uso do manual e do SAJ;b) má administração do cartório pelo juiz e pelo chefe de cartório;c) formação não adequada de móveis no espaço do cartório;d) distribuição de serviços de forma não adequada. Enquanto um servidor conhe-

ce todos os procedimentos e os pratica, em contrapartida, outros pouco fazem ou desconhecem procedimentos;

e) não cumprimento de prazos e de entrega de autos pelos advogados;f) servidor gastando horas do expediente perfurando folhas para juntada, carim-

bando-as e numerando-as;g) falta de valorização do serviço cartorário;h) desperdício de trabalho com tarefas dispensáveis (não inteligentes).

Sugestões para uniformização dos cartórios judiciais e resolução dos problemas:a) a Escola de Serviços Judiciários, da Academia Judicial, deverá concluir todos

os manuais de procedimentos, não somente das varas criminais, mas da dis-tribuição, oficiais de justiça, contadoria e também de um manual para serviços administrativos da secretaria do Fórum. Concluídos os livros, capacitar servi-dores formando uma equipe de instrutores (de preferência consultando novos servidores que ainda não atuaram em programas de capacitação, mas aguardam a oportunidade); levando-os para todas as comarcas do estado, onde instruirão os servidores e os juízes acerca da nova sistemática; a partir de então, somente as sentenças seguirão um método específico de cada juiz, de dizer às partes o direito de cada um; os procedimentos cartorários serão mais ágeis, menos tra-balhosos, uniformes em todo o estado;

– Racionalização e Agilização dos Procedimentos Judiciais –

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b) a administração direta do cartório se deve ao chefe de cartório ou analista ju-rídico, e a indireta, ao juiz titular da unidade judiciária. Muita das vezes, nem um dos dois profissionais é um bom administrador. Para exemplificar, quando o juiz se desloca do gabinete e vai até o cartório para assinar despacho de an-damento processual, ocorrem situações importantes: não é necessária a carga dos processos no SAJ, evita-se que um estagiário ou servidor sair do cartório carregando um carrinho de processos para o gabinete; agiliza-se o andamento dos feitos; proporciona-se ao juiz uma proximidade com seus servidores e co-nhecimento dos atos dos funcionários, do atendimento das partes, das dificul-dades existentes etc. Há, ainda, um fator preponderante ao andamento mais ágil dos processos: que os juízes tornem-se especialistas nos julgamento, deixando de burocratizar os procedimentos, simplificando-os. Alguns magistrados insistem em metodologias retrógradas, em formalidades desnecessárias. Devolvem “pi-lhas” de processos ao cartório para que se alinhem as folhas ou se refaçam ofícios por insignificâncias. Ao consumidor final dos serviços do judiciário, que espera, muitas vezes, anos pela sua finalização, não interessa saber se as folhas do pro-cesso encontravam-se religiosamente alinhadas; a ele não faz diferença se o ofí-cio de devolução de Carta Precatória finalizava com “respeitosas saudações” ou com simples “cordialmente”. Por isso, frisamos a necessidade de os treinamentos abrangerem os juízes, com uma aula preparada especificamente a eles, trazendo à tona essas situações e a obrigatoriedade de serem eliminadas ou corrigidas;

c) há necessidade de adequação dos móveis aos serviços cartorários, ou seja, me-sas padronizadas, colocadas de tal forma que simplifique a comunicação entre os servidores; atendimento às partes e advogados em área separada do local onde atuam os demais servidores, para que não ocorra interferência no traba-lho; computadores mais ágeis e com mais memória também estão fazendo falta e atrasando os serviços;

d) os técnicos devem conhecer todos os procedimentos e deve-se estabelecer uma linha de trabalho como sistema de produção, ou seja, um servidor recebe os pro-cessos, efetua a devida atualização no SAJ, passa para a próxima mesa para cum-primento de uma medida, o colega ao lado cumpre a próxima e assim por diante, até os processos “chegarem à mesa” do analista judiciário, que corrigirá possí-veis falhas, assinando o que lhe compete e colocando em escaninhos próprios. Após certo período, deve-se efetuar um rodízio de funções entre os profissionais: quando um servidor faltar, os demais saberão suas funções e as realizarão;

e) periodicamente há necessidade de cobrança de autos aos advogado. Muitas das vezes, os processos foram levados em “carga rápida” e, dias depois, simples-mente ainda não foram devolvidos. O Código de Normas estabelece a cobrança inicial por telefone e certifica-se o procedimento nos autos. O advogado não devolve o processo. Intima-se este através DJ eletrônico, sem efeito. Então se

– Erli Rose Fonseca – Emanuel Schenkel do Amaral e Silva –

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procede à busca através de oficial de justiça, não antes de oficiar a OAB para designar pessoa para acompanhar o meirinho, porque o escritório do advogado é local “inviolável”. Simplesmente os juízes têm o poder de expedir portaria e penalizar os advogados que chegam ao último recurso para devolução do pro-cesso: suspender-lhes a entrega de ações em carga, por um certo período, comu-nicando tal decisão à OAB;

f) Através de alguma norma da CGJ, solicitar à Gráfica do TJ a perfuração de pa-péis A/4, que receberiam outro nº para o código, assim como a impressão do carimbo de fls. Essa medida simplificaria o trabalho dos cartórios, eliminando a função de uma pessoa. As demais folhas deveriam ser recebidas na forma de petições, recursos etc.. Deve-se orientar os servidores para somente numerar e rubricar, sem a necessidade da colocação do carimbo;

g) Anualmente a serventia, envolvendo todos, efetuar uma correição, na forma de um balanço geral, analisando possíveis equívocos e consertos necessários para o ano vindouro, deixando o cartório arrumado;

h) Nova estrutura processual para evitar ou coibir ações repetitivas.

6. Considerações Finais

Ao discorrer sobre temas e sua importância, os professores de Metodologia do Tra-balho Científico enfatizavam a necessidade de que, ao término do curso, tratássemos, em nosso artigo científico, de assunto que nos inquietasse, nos instigasse em busca de mudanças e melhorias.

Em momento algum encontrei dificuldade em estabelecer que o tema a tratar seria, necessariamente, sobre a racionalização e agilização de procedimentos judiciais.

Em determinada aula de Planejamento Urbano, preocupada com alguns edifícios inacabados de minha cidade, perguntei à professora se sabia o motivo disso. Recebi como resposta que no fórum da comarca tramitava, havia anos, um processo concernente a pelo menos um dos prédios inacabados, razão pela qual tal obra estava se deteriorando ao longo do tempo.

Fazendo parte do judiciário catarinense como servidora da área administrativa, sempre me preocupei em buscar subsídios, razões, métodos para que o judiciário cata-rinense pudesse modernizar-se, servindo de exemplo aos demais estados da federação e satisfazendo à população que busca dirimir conflitos, satisfazer anseios, minorar dores.

Analisa-se, no dia a dia dos fóruns, que há uma certa dormência e letargia no acom-panhamento da modernidade de setores privados, empresas públicas e alguns setores da justiça, como o da eleitoral e o trabalhista, por exemplo. Somos capazes intelectualmente e temos potenciais humanos e capacidade de administrar recursos para nos igualar na ex-celência da prestação de serviços judiciários a qualquer outro órgão do poder judiciário.

– Racionalização e Agilização dos Procedimentos Judiciais –

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Penso que o caminho seja o aperfeiçoamento educacional de todos os operadores do direito, ocupantes de cargos do judiciário.

Ficou claro ao longo da história de povos e de civilizações que, através do investi-mento na educação e cultura das pessoas, atingiu-se o ápice de projetos e realizações, com maior sucesso do que aqueles que investiram em qualquer outra esfera.

Aliada ao projeto de educação e aprendizado, a valorização do servidor, culmi-nando com o aperfeiçoamento dos juízes e capacitação nas áreas administrativas e de recursos humanos, farão o judiciário catarinense “dar um salto para o futuro”, atingindo, por conseguinte, a satisfação da população catarinense com a entrega célere e eficaz da prestação jurisdicional.

7. Referências

BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. 7. ed. Rio de Janeiro: Elos, 1961.

MADALENA, Pedro. Entrevista. In: Boletim Quid Novi Informativo do SAJ. Florianópolis: 2006. Disponível em: <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em: 14 jul. 2009.

SANTORO DE CONSTATINO, Lúcio. O adequado tempo do Processo. In: Revista Justiça e Cidadania, Porto Alegre, p. 11/12, 2008.

SILVA, Emanuel Schenkel do Amaral e. Manual de Procedimentos do Cartório Judicial Cível. 1ª Versão. Florianópolis: 2004. In: Boletim Quid Novi Informativo do SAJ. Florianópolis: 2005.

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VIRTUALIzAçãO PROCESSUAL NO PODER JUDICIáRIO DE SANTA CATARINA: O FUTURO Já COMEçOU

VIRTUALIZATION PROCEDURE IN THE JUDICIARY OF SANTA CATARINA: THE FUTURE ALREADY BEGUN

Carlos Prudêncio1 Elizete Lanzoni Alves2

Juliana Pasinato3

RESUMO: A Academia Judicial de Santa Catarina, por meio do Núcleo de Estudo e/ou Pesquisa – NEP, que incentiva investigações científicas voltadas à aplicabilidade para a melhoria e o aprimoramento dos serviços prestados pelo judiciário catari-nense, tem entre seus projetos o de “Modernização do Poder Judiciário: a justiça do futuro”, que trata, especificamente da virtualização dos procedimentos processuais e administrativos, consolidando a tendência nacional em prol da transparência e agilidade da prestação jurisdicional. O presente artigo visa mostrar alguns aspectos da virtualização processual como parte de um processo de modernização do Poder Judiciário catarinense pela perspectiva da pesquisa. Utilizando o método indutivo e a pesquisa exploratória, o trabalho aborda o assunto à luz da literatura pertinente e, principalmente, do que está sendo realizado. Destaca-se, nesse sentido, o serviço prestado ao cidadão como efetividade da justiça na perspectiva de uma administra-ção pública mais comprometida, mais ágil e mais dinâmica.

1 Desembargador e Presidente da Primeira Câmara Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Coordenador do Grupo de Pesquisa – Modernização do Poder Judiciário, que integra do NEP – Academia Judicial, Coordenador Nacional do Projeto de Modernização do Poder Judiciário, promovido pelo Instituto dos Magistrados do Brasil – IMB no período de 2001 a 2003. [email protected]

2 Doutoranda em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Pedagoga pela Universidade de Santa Catarina UDESC. Analista Jurídico do Tribunal de Justiça de Santa Catarina – Gestão Ambiental. Membro do Grupo de Pesquisa em Direito Ambiental e Ecologia Política na Sociedade de Risco– UFSC e pesquisadora do [CNPQ]. Membro do NEP- Gestão Ambiental – Academia Judicial de Santa Catarina. [email protected]

3 Bacharel em Direito, Especialista em Direito Público, Servidora de carreira e Assessora de Gabinete no Poder Judiciário de Santa Catarina. [email protected]

– Virtualização Processual no Poder Judiciário de Santa Catarina: O Futuro Já Começou –

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PALAVRAS-CHAVE: Modernização do Poder Judiciário catarinense – Virtualiza-ção Processual – Academia Judicial de Santa Catarina.ABSTRACT: The Judicial Academy of Santa Catarina, through the Core for Study and / or Research - NEP, which encourages scientific research focused on the applicability to the improvement and enhancement of the services rendered by the Judiciary of Santa Catarina, has among its projects for the “Modernization of the Judiciary: justice of the future” which deals specifically with the virtualization of administrative and procedural requirements consolidating the national trend towards transparency and agility of the jurisdiction. This article aims to show some aspects of procedural virtualization as part of a modernization process of the Judiciary of Santa Catarina from the research perspective. The paper addresses the issue in light of relevant literature and especially what is being done, using inductive and exploratory research. The service provided to citizens, stands out, as the effectiveness of justice in the perspective of an administration that is more committed, more agile and dynamic.KEYWORDS: Modernization of the Judiciary of Santa Catarina - Virtualization Procedure – Judicial Academy of Santa Catarina.

Introdução

O presente ensaio é parte integrante de uma pesquisa mais ampla que se encontra em realização na Academia Judicial de Santa Catarina, sob o título de “Modernização do Poder Judiciário: a justiça do futuro”. Trata, especificamente, da importância da virtualiza-ção dos procedimentos processuais e administrativos e sua aplicabilidade como elemento da dinâmica imprescindível aos serviços prestados pelo Poder Judiciário à Sociedade. Ob-jetiva, portanto, mostrar alguns dados e aspectos sobre o processo de modernização do Poder Judiciário catarinense pela perspectiva da pesquisa.

O método indutivo foi o escolhido para a elaboração do artigo em razão da pers-pectiva da investigação, com técnica da pesquisa bibliográfica tanto em obras especia-lizadas como em normas do próprio Poder Judiciário. A análise pluridisciplinar se fez necessária, motivo pelo qual o embasamento teórico da pesquisa fundamenta-se em dois pontos: a compreensão da crise do poder judiciário na atualidade e na utilização das no-vas tecnologias como fundo para as proposições que serão feitas a respeito da virtualiza-ção processual como aprimoramento do acesso ao Poder Judiciário.

O trabalho está estruturado em quatro tópicos, iniciando-se pela inserção em al-guns aspectos destacados da crise do Poder Judiciário no presente momento histórico que vivencia a humanidade, passando pela formação do profissional do direito, com uma abordagem da educação jurídica no desenvolvimento da concepção de uma moderniza-ção com a permanente visão voltada para as questões sociais e humanistas.

Outro aspecto a ser tratado é Virtualização processual: uma realidade a serviço do aprimoramento da efetividade da justiça e, por fim, a conexão do estudo apresentado como uma das linhas de desenvolvimento de pesquisa da Academia Judicial de Santa

– Carlos Prudêncio – Elizete Lanzoni Alves – Juliana Pasinato –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 91

Catarina, que concebe por meio do NEP – Núcleo de Estudos e/ou Pesquisas um marco histórico diferencial em sua trajetória como instituição formativa e informativa.

1. A crise do Poder Judiciário: uma questão emblemática

A crise do Poder Judiciário é uma questão emblemática que persegue historica-mente toda sua trajetória como se fosse uma característica intrínseca de sua própria existência. Entretanto, em muito já se avançou em matéria não somente de celeridade na prestação jurisdicional como também nos aspectos administrativos e formativos dos agentes que o compõem.

Sem um marco inicial definido, acabou se “eternizando” principalmente pela mo-rosidade que até hoje lhe é atribuída, aliada à distância do aspecto social participativo, marca forte da verdadeira democracia, mas que desponta timidamente na atualidade. A crise exige uma contrapartida de mudanças profundas no Poder Judiciário tanto pela re-levância de sua função precípua de prestação jurisdicional como também por representar uma das principais fontes na produção do próprio Direito.

Sucede que o fortalecimento do Poder Judiciário dentro de uma nova concepção da constitucionalização da Justiça deflagra uma consequência lógica de modernização, ma-terializada por uma política permeada por valores que abrem passagem para a ampliação de seu acesso.

Tudo isso ganha ainda mais importância quando se percebe o fenômeno do de-senvolvimento do que Melucci (1999) chama de sociedade complexa em que se verifica a transformação de comunidade em sociedade, ou seja, as relações interpessoais passam a ceder lugar às relações impessoais, culminando com as relações virtuais. Ainda que não se consiga descortinar com nitidez uma conceituação adequada para o processo de globalização, certo é que as características típicas de uma sociedade moderna denotam o abandono de identidades individuais para adesão a uma identidade política e cultural superdimensionada pelas facilidades advindas dos meios de comunicação em massa e em tempo real. As barreiras meramente físicas deixam de fazer sentido e o Direito não pode deixar acompanhar tal evolução.

Nesse sentido, as mudanças sociais fazem refletir no Poder Judiciário o seu estágio de crise que vem sendo superada pelas ações efetivas rumo a uma mudança que está, por esta via, pondo em causa sua própria identidade na perspectiva de confrontar com a ne-cessidade de dar uma rápida resposta aos conflitos a ele submetidos.

Em realidade, pode se afirmar que o Poder Judiciário empreende uma luta contí-nua contra suas limitações e a questão passa a ser aberta à exigência de uma nova postura e uma nova mentalidade.

Falar em modernização do Poder Judiciário é crer que a virtualização processual seja apenas a ponta de um iceberg, cuja base encontra submersa nas questões verdadeira-mente sociais. Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer todo o esforço que vem

– Virtualização Processual no Poder Judiciário de Santa Catarina: O Futuro Já Começou –

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sendo feito para aprimorar os serviços prestados à Sociedade, diminuindo a morosidade e facilitando o acesso à justiça.

2. A Concepção Social da Educação Jurídica como Fator Condicional para a Modernização do Poder Judiciário

As reforças administrativas, as alterações de rotina de trabalho, as modificações implantadas que interferem no cotidiano das organizações têm uma fase de preconcep-ção motivada seja pela necessidade de melhora das ações cotidianas, seja pelo interesse em se fazer algo diferente, o que nem sempre representa algo bom, ou mesmo pela obri-gatoriedade normativa. No entanto, seja qual foi a fonte motivadora, o núcleo gerador são as novas ideias.

Fato é que a modernização do Poder Judiciário depende também da alteração na forma de pensar e agir daqueles que o administram, e isso conduz à percepção de uma reconfiguração da própria base de formação, ou seja, é preciso considerar três elementos essenciais. O primeiro é a compreensão de que aquela formação jurídica voltada aos in-teresses e ideologias meramente políticas já não se concebe mais, posto que os interesses sociais sejam mais relevantes e representem a verdadeira razão de ser de um Estado. O segundo diz respeito ao acolhimento das novas tecnologias em matéria de governança pú-blica e, por derradeiro, a necessidade de investimentos não somente no campo material, mas, sobretudo, no aprimoramento do conhecimento e capacitação das pessoas.

Os cursos jurídicos no Brasil, cuja implementação foi estritamente relacionada à ideologia jurídico-política ligada à consolidação do Estado Imperial, preocupava-se com a formação de juristas com as características das contradições e expectativas das elites brasileiras.

Após essa vinculação ao imperialismo colonizador, como explica Aurélio Wander Bastos, (2000, p.2) “em volto ao processo de independência, o ensino jurídico toma novas formas, a fim de compor os quadros jurídicos em desenvolvimento”. Assim, a formação do bacharel revestia-se de grande importância para o processo de independência do Brasil, e investia-se no Direito como a forma de legitimação da própria independência, visando assegurar garantias e direitos do Estado.

Tal influência política acarretou a formação de cursos de graduação em Direito es-pecialmente focados em atender às razões e aos interesses do Estado e não às expectativas e aos anseios da sociedade brasileira. Acabou por gerar aspectos muito negativos, posto que consolidasse um ensino codificado, dogmático e formalizado, despreocupado em ensinar a formulação de um raciocínio crítico e reflexivo voltado às questões sociais, engessando o estudo de técnicas de interpretação ou hermenêutica jurídica e, também, a necessidade de se amoldar a ciência jurídica com o constante movimento dinâmico da sociedade.

Dessa feita, com o intuito de deixar para trás essa visão bitolada de compreensão do Direito, José Eduardo Faria (2002, p. 26) sugere uma reformulação do ensino jurídico

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brasileiro, com a superação da cultura técnico-profissionalizante e a consequente introdu-ção de um conhecimento crítico, reflexivo, multidisciplinar e sensível à função social do direito e à dinâmica da realidade social, o que influenciaria a cultura jurídica brasileira; a forma de compreender e perceber o direito em sua pluralidade de manifestações e com-plexidade; a sociedade; as diferenças; as igualdades; os conflitos; os abismos sociais e os demais aspectos relacionados à vivência do homem em sociedade.

Por certo, isso gera mudança na forma de operar a ciência jurídica, mudança esta, necessariamente, voltada para a modernização e democratização do Poder Judiciário.

3. Virtualização Processual: uma realidade a serviço do aprimoramento da efetividade da justiça

Sem adentrar de forma mais aprofundada na questão de uma conceituação da ca-tegoria Justiça, mas vinculando-a à ideia de realização da expectativa de quem está sujeito à prestação jurisdicional, para fins deste trabalho, a quantificação do fluxo processual em muito interfere no sentimento de quem espera por uma resposta do Estado.

Uma justiça mais ágil e dinâmica é um direito da Sociedade e um dever do Estado, pois, em tempos de globalização das comunicações e das informações, não poderia ser diferente. Perante os avanços dos instrumentos tecnológicos que orientam para uma pos-tura diferenciada em relação aos trâmites internos e externos que envolvem o processo, um aspecto chama bastante a atenção, a virtualização.

Não há dúvida de que a virtualização processual é um caminho sem volta diante tanto dos aspectos crescentes da tecnologia voltada a essa área de atuação da administra-ção pública, que deve buscar a realização constante do interesse público, como também da exigência da própria Sociedade em relação à celeridade.

A consagração de lei como fundamento das ações administrativas encontra-se lado a lado com o desenvolvimento de outras que caracterizam a modernização para melhor prestação de serviço à Sociedade.

Busca-se, assim, com uma concepção de Modernização do Poder Judiciário uma reforma conceitual e estrutural de readequação do sistema judiciário, ou seja, além de um aprimoramento tecnológico, deve-se avançar na elaboração, exegese e aplicação dos dispositivos legais de modo a, principalmente, tentar diminuir as diferenças sociais exis-tentes e solucionar os litígios mais rapidamente.

Nesse sentido, a Modernização do Poder Judiciário é a concretização de uma trans-formação que objetiva adotar

novas tecnologias e aprimorar as já existentes, em especial a informática, visando a qualidade na prestação jurisdicional à Sociedade, proporcionando a informação, celeridade processual e a interação do cidadão por meio do pleno acesso à Justiça, no exercício da cidadania e da democracia participativa, bem como as necessárias reformas do direito positivo vigente e do ensino jurídico até a sua efetiva prestação jurisdicional (PRUDÊNCIO et alii, 2003, p. 59).

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Esta transformação deve ter como ponto de partida a própria educação jurídica, ou seja, já no momento de formação, a questão social e humanista deve permear todas as atividades acadêmicas de maneira a desenvolver o sentido de sua representação como alvo a ser atingido diariamente pelo profissional do direito, não somente em razão dos aspectos legais e constitucionais, mas, sobretudo, pelo fato de que, como elemento de transformação social, esse profissional deve estar amplamente comprometido com as mudanças sociais.

Aliada a essa reforma estrutural da própria educação jurídica, a adaptação do Po-der Judiciário às novas tecnologias, em especial a informática, “é de crucial relevância para o funcionamento de uma justiça moderna e democrática, tanto pela qualidade de informação que pode ser assegurada à sociedade, como pela agilidade que se pode imple-mentar na tramitação processual” (PRUDÊNCIO et alii, 2003, p. 42).

Tem-se na tecnologia um apoio instrumental importante para o alcance das me-tas de um plano de gestão, gerando a otimização da prestação jurisdicional, bem como um meio eficaz de modernização de ações que permite uma interação melhor e maior com a Sociedade.

A Modernização do Poder Judiciário no aspecto tecnológico é uma necessidade ante as exigências desse mundo moderno, o que representa uma forma de sobrevivência da própria instituição que tem na sociedade seu escopo de existência em razão da busca por uma democracia mais participativa. A tecnologia da informação, nesse contexto, ad-quire contornos e dimensões essenciais ao processo de modernização, pois a informática atualmente é a ferramenta adequada para viabilizar a virtualização processual, o acesso às informações via internet, além de propiciar uma ampla integração de sistemas da ad-ministração pública e contribuir para um judiciário transparente e mais célere, refletindo uma justiça menos endógena e mais democrática e participativa.

É importante ressaltar também que toda e qualquer implementação tecnológica que envolva a sistemática processual, assim como a inclusão da informática na moderni-zação do poder judiciário, deve estar pautada pelos princípios do devido processo legal, isonomia, contraditório e ampla defesa, publicidade, economia processual, celeridade e acesso à justiça.

Portanto, não há dúvidas de que a ciência moderna disponibiliza as condições tec-nológicas necessárias para a virtualização do Judiciário, entretanto, em razão de uma má distribuição social das conquistas científicas, não são todas as pessoas que têm acesso à informática, muito menos acesso à Justiça. Assim, “proporcionalmente à implementação da processualística virtual, há de se estender a toda a sociedade o acesso à justiça e aos seus meios virtuais” (PRUDÊNCIO et alii, 2003, p. 47), sob pena de gerar uma maior eli-tização do Sistema Judiciário.

Do ponto e vista procedimental, como prática cotidiana, a virtualização é o que se pode pensar de melhor em termos de alteração essência, pois representa, como enfatiza Prudêncio (2003, p. 42):

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[ ] a possibilidade de realização do processo judicial sem papel, disponível às partes e aos procuradores, vinte e quatro horas por dia, nos trezentos e sessenta e cinco dias de cada ano, e acessível de qualquer parte do planeta, cujos procedimentos serão efetuados de forma automática e sem intermediário (eliminação, quase total, em curto prazo, dos oficiais de justiça, contadores, distribuidores, com expressiva diminuição de funcionários em todos os graus de jurisdição, etc.), inclusive as audiências, tudo em tempo real e com garantia absoluta.

O objetivo é o de que qualquer cidadão, por meio de um advogado que tenha acesso a uma instrumentalização razoável, possa ingressar com uma demanda judicial e acom-panhá-la de qualquer lugar e a qualquer tempo. Tudo é realizado com o acesso à internet de qualquer computador disponível, seja em uma biblioteca, livraria, ou até mesmo em um bar, ou então via notebook, conectado a um telefone celular.

O próprio sistema impulsiona a tramitação processual, por meio da oficialidade do processo virtual. Somente em casos raros os procedimentos serão impulsionados pelo escrivão, e a participação do Magistrado fica restrita à decisão de incidentes.

As audiências realizam-se por videoconferência, com voz e imagem, possibilitando “a permanência dos advogados, das partes e das testemunhas nos escritórios dos procu-radores ou em outro local previamente fixado; e do juiz, na sala de audiência” (PRUDÊN-CIO et alii, 2003, p. 42).

Somente quando indispensável, determinar-se-á a realização de provas. Os demais atos, como alegações finais e sentenças, serão praticados virtualmente, com as intimações realizadas automaticamente pelo programa.

O procedimento no segundo grau de jurisdição seguirá o mesmo rito virtual. Pode-se dizer, portanto, que o processo virtual é aquele em que todas as fases, atos e decisões são tomados por meio eletrônico por um sistema de processamento digital que armazena as informações dos autos processuais.

Logo, com a virtualização dos processos, em poucos minutos haverá o recebimento, registros, autuações, classificação e distribuição aos relatores. Além da segurança, economia e rapidez, a remessa virtual garante mais transparência à atividade jurídica, já que o arquivo digital pode ser acessado pelas partes de qualquer lugar do mundo, por meio da internet.

No âmbito do Poder Judiciário catarinense, alguns projetos estão em desenvolvi-mento no sentido de virtualizar os processos, e o primeiro passo nessa direção foi a im-plantação do SAJ - Sistema de Automação do Judiciário.

Especificamente sobre o Processo Virtual, o Poder Judiciário Catarinense possui um planejamento estratégico para aplicação desta tecnologia, sendo que o processo ele-trônico já foi implantado nos seguintes setores:

a) Execução Fiscal: nas comarcas de Lages, Capital, Biguaçu (só municipal) e Blu-menau (só estadual) e mais 25 comarcas até o final do semestre de 2010. Todas usando o CREPE - Cartório Remoto do Processo Eletrônico (Resolução Con-junta 4/2009-GP/CGJ, DJE 17.07.2009);

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b) Juizado Especial Cível: no fórum criado no Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina, no fórum do Norte da Ilha, na comarca de Blumenau e, até o final deste ano será implantado na comarca de Criciúma e Joinville;

c) JEF: na comarca da Capital;d) Turmas de Recursos - da Capital, sendo que até o final do ano de 2010 em todas

as Turmas de Recursos.

A Gravação de Audiência, em módulo integrado ao SAJ, já está implantada em 70 salas de audiência, devendo ser concluída a implantação em todas as salas de audiência do Estado até o final do ano de 2010 e está se buscando ferramenta para reconhecimento automático de voz, ou seja, de gravação automática.

Nos locais em que o processo eletrônico já está disponível existe o AR DIGITAL, que, por meio de um WS, permite aos Correios imprimir e envelopar o expediente, além de retornar imagem digital do AR em que foi lançada assinatura – os metadados transi-tam entre os sistemas do SAJ e correio.

Segundo o Conselho Gestor de Tecnologia da Informação do Tribunal de Justiça de Santa Catarina – CGInfo, há um grupo desenvolvendo um projeto piloto de Execução Penal Eletrônica, para iniciar seus trabalhos até o final deste ano de 2010, bem como um Grupo de Trabalho para atualizar o SAJ 2º Grau, e com relação ao SAJ 5 versão CNJ, ou seja, que usa as tabelas de classe, assunto e movimentação especificadas pelo CNJ, foi im-plantado no início do mês de agosto do corrente ano e a previsão é que seja implantando em todo o Estado Catarinense até o final do ano de 2011. A perspectiva é de que até 2013 a maioria dos processos será eletrônica no Poder Judiciário de Santa Catarina.

A título de informação, apresentam-se, a seguir, alguns dados interessantes relacio-nados à questão da informatização do Poder Judiciário catarinense e que foram forneci-dos pela Diretoria de Tecnologia e Informação – DTI e Diretoria Judiciária.

Em 1996, o judiciário catarinense contava com 83 comarcas instaladas, 27 Desem-bargadores, 214 Juízes de 1º Grau, protocolizados 366.526 processos no 1º Grau / Julgados 201.064, protocolizados 16.345 processos no 2º Grau / Julgados 11.869.

Nesse período, houve a aquisição de Sistema Corporativo (SAJ) com grande inves-timento em capacitação e ampliação da equipe de Tecnologia de Informação, bem como a criação da Criação da Comissão de Gestão da Informatização O SAJ – Sistema de Au-tomação do Judiciário possui várias versões desde o momento de sua implementação em 1996, sua escala evolutiva ocorreu da seguinte forma: 1996 - início da implantação (em Lages); 1998 - término da implantação da versão 1.0 em todas as comarcas; 2001 - versão 1.6 com correções e melhorias; 2003 – início da implantação da versão 3.0 informatizando todos os setores do Fórum e não apenas nos cartórios como as anteriores; 2006 - término da migração da versão 1.6 para a versão 3.2 em todas as comarcas; 2007 - versão 3.2 com correções e melhorias; 2007 - piloto da versão 5.0 na unidade do Cesusc e na Execução Fiscal da Capital e em Lages; 2008/2009 - Novas unidades piloto de Execução Fiscal e

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Juizados especiais; 2010 - Implantação da versão 5.1.3 (tabelas do CNJ) e 5.1.4 (nº único) nas unidades com processo digital.

Em uma análise quantitativa, da estrutura de 1996 até 2010, é possível verificar:

Dados 1996 2010 Percentual evolutivo

Comarcas com sistema 5 11 2,120%

Microcomputadores* 1000 10.050 915%

Servidores de rede 10 169 1.590%

Banco de dados 08 156 1.850%

Serviços na Internet 0 276 -* Escala evolutiva: 1996 - 211, 1997 - 973, 1998 - 1.340, 1999 - 1.509, 2000 - 1.891, 2001 - 3.166, 2002 - 3.477, 2003 - 5.649, 2004 - 6.546, 2005 - 7.664, 2006 - 8.061, 2007 - 8.742, 2008 - 8.891, 2009 - 9.816, 2010 - 10.756.

Entre outros dados interessantes, apresentam-se os serviços mais procurados (da-dos jan/10): consulta 1º Grau - 1089.970; consulta 2º Grau - 254.071; consulta à Jurispru-dência - 165.423. E ainda em 1996, não havia o serviço de correio eletrônico (e-mail); atualmente são mais de 11.000 contas administradas pela DTI, São recebidos aproxima-damente 20 milhões de mensagens/mês.

Com o serviço de correio eletrônico, houve uma economia expressiva em relação à telefonia, com redução aproximada de R$ 400.000,00 por ano, em função da implantação da VOIP e de concentração de ligações para celular, embora esse valor ainda não seja exato, considerando o atual estágio de levantamento de dados e o aumento dos valores tarifários. Houve, outrossim, uma evolução em relação à velocidade da internet :1996 - 65 Kbps; 1998 - 2 Mb; 2000 - 4 Mb; 2002 - 8 Mb; 2005 -14 Mb; 2007 - 30 Mb; 2009 - 52 Mb; 2010 - novo link de 28 Mb para conexão com o Cyber Datacenter. Nas comarcas houve uma evolução de 9,6 a 65 Kbps em 1996 e hoje há conexões de 512 Kbps a 4 Mbps.

Somente a título exemplificativo, a movimentação Processual Digital nos últimos anos apresenta-se da seguinte forma: Juizado Especial Blumenau (início 19/10/2009): Ati-vos - 2.202; Arquivados Definitivamente – 580; Remetido a outro foro – 260; Em Grau de Recurso – 25; Suspenso – 79, num total de 3.146. Execução Fiscal do município e do Es-tado (Capital e Lages): Ativos - 116.170; Arquivados Definitivamente - 8.039; Arquivados Administrativamente – 138; Remetido a outro foro – 15; Suspenso - 8.435; Em Grau de Recurso – 3, num total de 132.800.

Dentro ainda da perspectiva quantitativa, foram 11.041 ARs Digitais (Avisos de Recebimentos Digitais) postados em 2010. O Poder Judiciário Catarinense tem efetuado alguns planos de ação em continuidade aos projetos já em andamentos e outros que cons-

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tam de seu planejamento estratégico futuro. Entre os planos de ação estabelecidos para 20104, encontram-se:

a) Planos de ação para o ano de 2010 em relação ao sistema de informatização: migração do sistema SAJ3 para o sistema SAJ5, implantação do processo digital nas Turmas de Recursos, ampliação do Projeto de Execução Fiscal virtual para as 20 comarcas com maior demanda na área, ampliação do Projeto de Juizado Especial Digital (em funcionamento em Blumenau) para as comarcas de Crici-úma e Joinville e criação do Juizado Especial Fazendário na comarca da Capital, finalização e implementação do projeto piloto da Execução Penal Virtual na comarca, de Curitibanos, disseminação para todas as comarcas do projeto de gravação de audiências, integração dos sistemas SAJ (Poder Judiciário) e SIG (Ministério Público Estadual), atualização do parque de informática, sistema que atende às exigências das Resoluções CNJ (Res. n°65) - numeração única e padronizada, Res. n° 46 – tabelas padrão de classe assunto e procedimento, au-mento da produtividade na execução das atividades cartorárias, compatibilida-de com o processo digital e práticas automatizadas, substituição das assinaturas reais por assinaturas digitais, atualização e conversão no TJSC, em dezembro de 2010 com finalização prevista para o 1º Grau em dezembro de 2011.

b) Plano de ação referente à implementação do processo digital nas Turmas de Re-cursos: digitalização dos recursos aptos à apreciação pelas Turmas Recursais do Estado, estabelecimento de rotinas para processos virtuais no Segundo Grau de Jurisdição, aprendizado e consolidação do sistema, implementação no primeiro semestre de 2010, extensão às 7 Turmas de Recursos distribuídas pelo Estado (1ª TR da Capital [junho], 2ª TR de Blumenau, 3ª TR de Chapecó, 4ª TR de Cri-ciúma, 5ª TR de Joinville, 6ª TR de Lages, 7ª TR de Itajaí).

c) Plano de ação em relação a Projeto de Execução Fiscal Virtual: parceria da Procuradoria do Estado, do TJ e da Fazenda com funcionamento a partir de setembro de 2009 em Florianópolis e Lages e, posteriormente, em Blumenau, extensão até o final do ano de 2010, para as 20 comarcas com maior demanda na matéria, inclusão das procuradorias municipais, abandono do uso de papel com a adoção de petições online - despachos online - expedição automática de do-cumentos com observação das orientações gerais para a gestão ambiental, bem como considerável ganho de tempo na consecução e prestação dos serviços.

d) Plano de ação referente à ampliação do Projeto de Juizado Especial Digital e criação do Juizado Especial Fazendário na comarca da Capital, extensão da ex-periência do Juizado Especial Digital de Blumenau para as comarcas de Crici-

4 Dados sobre os planos de ação foram extraídos da palestra proferida no dia 27-8-2010 pelo Desembargador Jorge Schaefer Martins por ocasião do 54º Encoge – Encontro do Colégio de Corregedores Gerais dos Tribunais de Justiça na cidade de Florianópolis.

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úma e Joinville (setembro e outubro 2010, respectivamente), implantação do Juizado Especial Fazendário na comarca da Capital (agosto de 2010).

e) Plano de ação para o Projeto de Execução Penal Virtual visando: agilizar o acompanhamento dos processos de execução penal, padronização de procedi-mentos/decisões atinentes à matéria, interligação das Varas de Execução Penal e Presídios, controle automático dos prazos e benefícios, agilidade no trato com a execução penal e controle efetivo da situação individual da massa carcerária, implementação do Piloto em novembro de 2010, na comarca de Curitibanos.

f) Plano de ação referente ao projeto de gravação de audiências objetivando: ade-quação à nova realidade legislativa, otimização da produtividade e de fidelidade ao teor da prova, atendimento à necessidade de padronização do sistema e aper-feiçoamento da qualidade, viabilidade de realização de maior número de atos processuais, disseminação por todo o Estado até dezembro de 2010.

g) O Plano de ação para o projeto de Integração dos sistemas SAJ (Poder Judiciá-rio) e SIG (Ministério Público Estadual): atendimento à necessidade de intera-ção pelo elevado número de processos com participação do Ministério Público, visando ainda à integração entre informações processuais e acesso às peças jurí-dicas, alem do controle de carga automático e aprimoramento dos serviços.

h) Plano de ação para o Projeto de atualização do parque de informática: aten-dimento à necessidade de disponibilização de equipamentos compatíveis com novos sistemas e o aumento de velocidade e eficiência. Para tanto, fará a atua-lização dos computadores no TJSC até o mês de julho de 2010 e atualização do parque de informática das comarcas até dezembro de 2010.

Em continuidade aos planos de ação para a Modernização do Poder Judiciário de Santa Catarina, prevê, ainda, a estruturação do Setor de Informática, a criação de equipes de inteligência, digitalização e virtualização de processos no 2º Grau, criação de rotinas para utilização em processos de massa e implantação de cartórios remotos.

4. A Pesquisa como Pano de Fundo para a Valorização das Contribuições Voltadas para a Modernização do Poder Judiciário Catarinense

A Academia Judicial, Instituição de Ensino, credenciada pelo Conselho Estadual de Educação (Parecer nº 289 – CEE/SC e Resolução nº 86/07 – CEE/SC.), é parte integrante da estrutura do Centro de Estudos Jurídicos do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que foi criado em 1991, por meio da Resolução nº 14/91-TJ e Portaria nº 557/91-GP, ano de comemoração do centenário do Poder Judiciário catarinense.

O principal objetivo da Academia Judicial, de acordo com o seu ato de criação, era o de promover, através de curso específico ao desempenho da função judicante, a prepa-

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ração dos Juízes empossados em fase de vitaliciamento, bem como a especialização e o aperfeiçoamento dos magistrados em geral. Com a Resolução nº 29/08-TJ, a Academia Judicial, atualmente, “constitui-se em serviço auxiliar responsável pelo desenvolvimento humano e profissional dos magistrados e servidores do Poder Judiciário, e tem por fina-lidade aprimorar o atendimento à sociedade catarinense, garantindo-lhe uma prestação jurisdicional qualificada e eficiente” (art. 2º da Resolução nº 29/08-TJ).

Verifica-se, portanto, uma alteração significativa na atribuição formativa e infor-mativa da Academia Judicial, porquanto, por meio de seus órgãos, busca estabelecer uma “política institucional relativa ao aprimoramento e ao desenvolvimento pessoal e profis-sional dos magistrados e servidores” (art. 3º, I da Resolução nº 29/08- TJ) e, para tanto, oferece cursos de curta, média e longa duração, palestras e capacitações, conforme art. 8º da referida norma que estabelece:

Compete à Academia Judicial: I – contribuir para o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da administração da Justiça do Estado de Santa Catarina; II – promover a capacitação, a formação, o aperfeiçoamento e a especialização dos magistrados e servidores, mediante a realização de cursos, treinamentos e outros eventos e atividades de aprimoramento técnico e intelectual; III – promover a preparação dos juízes em fase de vitaliciamento; IV – promover a realização de cursos de formação para ingresso na Magistratura Catarinense; e V – promover estudos destinados à apresentação, pelo Tribunal de Justiça, de sugestões aos demais Poderes para a adoção de medidas ou para a elaboração de normas tendentes à melhoria da prestação jurisdicional.

Assim, a qualificação profissional de magistrados e servidores refletem-se no apri-moramento do serviço público prestado e na eficiência administrativa dentro de uma perspectiva não somente da modernização do Poder Judiciário, mas, sobretudo, do cum-primento funcional de seus objetivos perante a Sociedade.

A formação e a informação, nesse contexto, têm um papel fundamental como ação voltada ao incentivo ao comprometimento em relação ao desenvolvimento de bens e ser-viços públicos e a consequente melhoria do sistema judiciário.

A Resolução nº 29/08-TJ ainda insere em seu texto a possibilidade do desenvolvi-mento e supervisão de atividades científicas, acadêmicas, promovendo estudos e pesqui-sas, o que pode ser feito por meio de projetos internos ou por convênios com entidades e a Escola Superior da Magistratura – ESMESC. Entre essas possibilidades, a Academia Judicial, no ano de 2009, instituiu o NEP – Núcleo de Estudos e/ou Pesquisas (edital nº 05/09-AJ), concretizando a ideia prevista no art. 13 da Resolução nº 29/08-TJ, ou seja, a “realização de pesquisas técnicas e/ou científicas na área jurídica e da administração pública, consideradas de grande relevância para o Poder Judiciário”, cujos projetos foram apresentados por magistrados e servidores.

Entre as linhas de pesquisa sugeridas pela Academia Judicial, encontra-se a “Mo-dernização do Poder Judiciário” que tomou forma sob a apresentação de um projeto cujo escopo é tratar da questão da virtualização de processos e procedimentos consolidando, assim, a tendência nacional em prol da transparência e agilidade da prestação jurisdi-

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cional. A estrutura do projeto conta com a abordagem voltada a contextualizar o Poder Judiciário no âmbito do processo evolutivo e trajetória histórica do Estado Contempo-râneo, analisar os fatores que influenciam as perspectivas de acesso a Poder Judiciário, verificar a utilização das novas tecnologias e sua aplicabilidade no Poder Judiciário no sentido de otimizar o acesso e a prestação de serviços à Sociedade, finalizando com a proposta de ações que visem aprimorar a modernização do Poder Judiciário prospectan-do o Judiciário do Futuro.

O desenvolvimento da pesquisa, nesse sentido, levou em conta que a sociedade complexa exige cada vez mais uma maior interação com a administração pública e com referência ao poder judiciário, respostas rápidas do ponto de vista da prestação jurisdi-cional. Como sinal de atendimento às expectativas sociais, a administração pública, nos mais diversos níveis, tem utilizado as inovações tecnológicas para informar, interagir e melhorar o acesso aos serviços públicos. Considerando que o judiciário, como poder do Estado, em sua função específica, deve buscar o aprimoramento de seus serviços como forma de facilitar o acesso à justiça, a delimitação do tema voltado à modernização do Poder Judiciário busca prospectar o judiciário do futuro, pretendendo-se, assim, analisar sua dimensão histórica para compreender a importância da atualização de suas ações no sentido de aprimorar a prestação de serviços à sociedade, proporcionando não somente mais celeridade, mas, principalmente incentivando a interação como fortalecimento do acesso a uma justiça mais transparente e democrática.

O trabalho é desenvolvido em duas etapas. A primeira, eminentemente teórica, visa realizar uma incursão histórica sobre a organização estatal, especificamente em re-lação ao poder judiciário, perpassando pelo ensino jurídico até a prestação jurisdicional. A segunda tem como objetivo analisar as ações já realizadas e os projetos tecnológicos implementados que alteraram positivamente, de alguma forma, a prestação de serviços à sociedade e, por fim, a pretensão gira em torno da apresentação de algumas proposições que contribuam para a continuidade da modernização do poder judiciário prospectando um judiciário do futuro.

Para atingir os objetivos propostos, necessário se faz: 1. Discutir o ensino jurídico para adequação com as novas transformações e avanços paradigmáticos das ciências ju-rídicas (novas práticas forenses e jurisdicional); 2. Debater a produtividade da atividade jurisdicional (funcionamento, organização, administração, poderes, deveres e responsa-bilidades); 3. Investigar a necessidade de uma ampla reforma legislativa (Constitucional e Infraconstitucional); 4. Debater e apontar nova concepção de cidadania e de dignidade da pessoa humana e, como consectário, o acesso à justiça.

Mas, o que se espera da justiça do futuro como fruto da modernização do Poder Judiciário?

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Essa questão, entre outras importantes que abrangem o tema, somente pode ser respondida com base no pensamento, conforme defende José Eduardo Faria65, de que a modernização do poder judiciário passa pelos aspectos processuais e estruturais, ou seja, transcende a análise quantitativa, porquanto necessário se faz a aplicabilidade de meca-nismos de interação com a sociedade à luz de categorias qualitativas que demonstrem a efetividade e a eficiência como paradigmas da cidadania e do acesso à justiça.

4.1. Novas Tecnologias a serviço da cidadania e da interação entre a Sociedade e o Estado

O avanço tecnológico é uma realidade que não admite retrocesso, pois faz parte da vida de todas as pessoas, direta ou indiretamente. O Poder Judiciário que tem como missão criar mecanismos para o acesso à justiça tem o dever de contemplar programas, projetos e ações, bem como estabelecer metas de modernização para atender melhor a sociedade em sua função originária, contribuindo para a concretização de um Estado Democrático de Direito.

No mesmo norte, encontra-se o entendimento dos autores da obra Modernização do Poder Judiciário, a Justiça do Futuro:

Neste momento histórico de fortes tensões, os autores atribuem ao Poder Judiciário a função de garantir um Estado Democrático de Direito, o que supõe cumprir o Direito Positivo de forma compromissada com os interesses da população brasileira, colocando o respeito à Constituição como o norte de toda a prestação jurisdicional. Daí resultará, então, um Poder direcionado à efetivação de Direitos e não ao abandono dos cidadãos e cidadãs a sua própria sorte (PRUDÊNCIO et alii, 2003, pp. 31/32).

A ideia de justiça encontra-se atrelada a essa necessidade de aprimoramento da prestação jurisdicional e como pressuposto e “exigência de igualdade”, conforme ensina Alf Ross (2003, pp. 314/315).

O papel da sociedade na construção do Estado Democrático de Direito é fundamen-tal sob o ponto de vista da modernidade e o que representa o indivíduo e sua relação com as organizações, neste caso, especificamente a administração pública. Se por um lado há a perspectiva do cidadão em relação às organizações públicas quanto a um melhor atendi-mento, por outro, há a exigência de mecanismos de informação e comunicação para a efe-tivação da interação com o Estado e um acesso mais célere e mais justo. Habermas (2002) defende assim a ideia de que a comunicação e a linguagem promovem o desenvolvimento social numa proposta de posicionamento potencial do sujeito como foco das relações com o Estado, o que não é observado em sua totalidade, já que os instrumentos tecnológicos utilizados trabalham muito mais em eixos de informação do que de interação.

5 Dentre as obras do autor a serem utilizadas na pesquisa, destacam-se: PRUDÊNCIO, Carlos; ANDRADE, Lédio Rosa; FARIA, José Eduardo. Modernização do Poder Judiciário, a Justiça do Futuro. Tubarão: Editorial Studium e FARIAS, José Eduardo. Direito e Justiça. 3. ed. São Paulo: Ática, 1997.

– Carlos Prudêncio – Elizete Lanzoni Alves – Juliana Pasinato –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 103

4.2. Modernização como prospecção do Poder Judiciário do Futuro

O dinamismo dos acontecimentos, a globalização e as necessidades veementes da sociedade ocorrem em velocidade espantosa, o que obriga a um acompanhamento em ritmo semelhante sob pena de tornar obsoletas as ações que até então eram consideradas modernas. Isso quer dizer que o avanço da tecnologia é proporcional às exigências de aperfeiçoamento das instituições públicas. Como afirma Rover (2006), “Tudo é muito dinâmico. O tempo voa e o jeito é aprender a pilotá-lo.

Na era digital, a urgência caracteriza o relacionamento entre profissionais e seus clientes e o aperfeiçoamento diário tornou-se uma obrigação”.

O acesso à justiça depende cada vez mais desse dinamismo e da participação para sua efetivação. Desta forma, a categoria Justiça, no que diz respeito ao acesso, será ana-lisada com base na consideração de Melo sobre a viabilidade de conceitos racionais de Justiça (1994, p.136), interpretada à luz da categoria “Acesso à Justiça”, na percepção de Cappelletti (1998, p. 8):

A expressão ‘acesso à Justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado.

Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produ-zir resultados que sejam individual e socialmente justos. (...) Sem dúvida, uma premissa básica será a de que a justiça social, tal como desejada por nossas sociedades modernas, pressupõe o acesso efetivo.

Acesso à justiça e a cidadania andam juntas na direção de uma sociedade mais atuante e participativa. Para tanto, necessário se faz discutir a estrutura da formação do profissional do direito, preparando-o para o enfrentamento das transformações tecnoló-gicas e dos novos direitos. Em ação paralela, urge o debate de alterações legislativas que promovam melhor a acessibilidade e o exercício da cidadania e da democracia partici-pativa. Assim é que a “formação de um padrão de atitudes democráticas nos operadores jurídicos exige reformulação do ensino jurídico, condição para a criação de uma nova concepção profissional e uma moderna prática forense e jurisdicional” (PRUDÊNCIO et alii, 2003, p. 33).

É preciso romper com a ideia de que a tecnologia apenas assume dimensões racio-nalizadas. Ao contrário, por meio dos avanços tecnológicos é possível modificar as rela-ções entre Estado e indivíduo, o que significa que as alterações comportamentais devem estar vinculadas a uma nova postura interna e externa, ou seja, desde a formação do pro-fissional, perpassando pelo investimento na capacitação de funcionários e magistrados, adotando-se técnicas administrativas modernas e atuais de forma a demonstrar eficiência e transparência, pois, a verdadeira missão do Poder Judiciário é a de simplificar o acesso à justiça, de melhorar a prestação jurisdicional e de interagir com a Sociedade.

– Virtualização Processual no Poder Judiciário de Santa Catarina: O Futuro Já Começou –

104 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

Conclusões

A Modernização do Poder Judiciário é imperativa diante das inúmeras possibili-dades tecnológicas a serviço da humanidade. A abordagem feita sobre alguns aspectos da virtualização processual parte da premissa de que, realmente, é um caminho sem volta e representa parte integrante da verdadeira modernização do Poder Judiciário.

Partindo de uma visão geral sobre a modernização do Poder Judiciário, o artigo procurou demonstrar a articulação com a necessidade de uma negociação com o ensino jurídico voltado para uma concepção social que, efetivamente, possa contribuir para o al-cance dos objetivos de um judiciário mais moderno e ágil, fugindo de modelos repetitivos para dar lugar a uma nova mentalidade. Em continuidade, abordou aspectos importantes da virtualização dos procedimentos processuais e administrativos em Santa Catarina.

E especificamente em relação à realidade local, é importante demonstrar que a res-ponsabilidade social não diz respeito somente à prestação jurisdicional, mas, também como ela é feita e aperfeiçoada. Nesse caso, pela perspectiva da pesquisa oportunizada pela Academia Judicial de Santa Catarina, por meio do Núcleo de Estudo e/ou Pesquisa – NEP, propiciando a realização de investigações científicas que têm como objetivo contri-buir de forma pragmática para a melhoria e o aprimoramento dos serviços prestados pelo judiciário catarinense como forma de beneficiar a população que direta ou indiretamente utilizam seus serviços.

Assim, o projeto de pesquisa “Modernização do Poder Judiciário: a justiça do futu-ro” busca colocar Santa Catarina no cenário da necessária virtualização dos procedimen-tos processuais e administrativos, consolidando a tendência nacional, como já dito, em prol da transparência e agilidade da prestação jurisdicional.

Referências

BASTOS, Aurélio Wander. O Ensino Jurídico no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen, 2000.

CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

FARIA, José Eduardo. O Judiciário e o desenvolvimento econômico. São Paulo: Malheiros, 2002.

HABERMAS, J. Racionalidade e comunicação. Lisboa: Edições 70, 2002.

MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor/CPGD UFSC, 1994.

MELUCCI, Alberto. Acción colectiva, vida cotidiana y democracia. México, El colégio de México, Centro de Estúdios Sociológicos. México, 1999.

– Carlos Prudêncio – Elizete Lanzoni Alves – Juliana Pasinato –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 105

PRUDÊNCIO, Carlos; ANDRADE, Lédio Rosa; FARIA, José Eduardo. Modernização do Poder Judiciário, a Justiça do Futuro. Tubarão: Editora Studium, 2003.

ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003.

ROVER, Aires José. A democracia digital: algumas questões de base. IBDI, 2006.

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 107

PROCESSO CIVIL COM NOVA ESTRATÉGIA

CIVIL PROCEDURE WITH NEW STRAT

Pedro Madalena1

RESUMO: A estatística em números divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ revela a existência de alta taxa de congestionamento dos processos judiciais em todos os graus de jurisdição, o que caracteriza o estado lamentável da morosidade do serviço judiciário, percebido com certo descontentamento pela comunidade ju-rídica, pela população, pela administração pública e pelas instituições privadas. Isso deu ensejo à pretensão de se modernizar o vigente código de processo civil brasilei-ro, a partir de iniciativa do Presidente do Senado. Aproveitando o curso atual dessa necessária e louvável aspiração, inclusive da magistratura nacional, foi pensado aqui em articular o presente trabalho, mediante breve esboço, acerca de determinada es-tratégia que, se aplicada escorreitamente pelos gestores da administração judiciária, poderia, quem sabe, servir de redutora da supracitada taxa, desde que se faculte ao juiz reformar e alterar a sentença primitiva, ou até proferir outra substitutiva, dentro de uma nova perspectiva procedimental bem definida, antes mesmo da subida de eventuais recursos à instância superior.PALAVRAS-CHAVE: Código de processo civil. Modernização do processo judicial. Sentença judicial. Conciliação. Estratégia processual. Embargos de declaração.ABSTRACT: The statistical figures released by the National Justice Council (CNJ reveals high rate of congestion of litigation in all levels of jurisdiction, which characterizes the sorry state of the slowness of judicial service, perceived by some discontent with the legal community, by the people, by government and by private institutions. This gave rise to the wish to modernize the current Brazilian Code of Civil Procedure, from the initiative of President of the Senate. Taking advantage of the current course of this necessary and admirable aspiration, including the national judiciary , was thought here in this joint work by brief sketch about a particular strategy that, if implemented smoothly by the managers of the judiciary, could perhaps serve as a reduction of the aforementioned fee, provided they provide the court reform and change original sentence, or even utter

1 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e graduado pela Faculdade de Direito de Porto Alegre da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Juiz de Direito aposentado da Justiça Estadual de Primeira Instância, do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

– Processo Civil com Nova Estratégia –

108 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

another replacement, within a new well-defined procedural perspective, even before the rise of any appeals to higher court.KEYWORDS: Code of Civil Procedure. Modernization of the judicial process. Judicial decisions. Conciliation. Procedural strategy. Requests for clarification.

1. Introdução

A intensidade dos recursos judiciais submetidos aos tribunais estaduais, regionais e superiores, é fator decisivo para a ocorrência dessa apontada lentidão da atividade judi-ciária em todos os graus de jurisdição.

Interposto recurso ao segundo grau de jurisdição, as partes e seus procuradores se distanciam da possibilidade de reconciliar perante o seu juiz local.

Foi daí que nasceu a ideia de se permitir, por meio de norma específica dentro da legislação codificada, a realização de audiência conciliatória, depois de publicada a sen-tença, antes mesmo da subida de recurso à instância superior.

Esse pensamento foi norteado com base no mesmo princípio adotado aos juizados especiais cíveis, em se permitir o julgamento recursal no primeiro grau de jurisdição por uma turma de juízes.

Quando foi editada a legislação dos juizados especiais, grande parte dos operadores do direito se opôs, com o principal argumento de que a magistratura de primeiro grau podia não ter a necessária prática e cultura jurídicas suficientes para realizar exame ou reforma de sentença, no exercício de elevada função que é própria de desembargador ou ministro. Repertórios jurídicos, contudo, já demonstram o contrário, ao publicar sen-tenças de juízes de primeira instância, apresentando também notável saber jurídico, pro-feridas tanto no juizado comum quanto no especial cível. Nota-se uma plêiade de novos magistrados assumindo com galhardia e sucesso os misteres da judicatura local.

O procedimento a ser adotado é o que consta abreviadamente a seguir.

2. Desenvolvimento

2.1. Conciliação e Reforma de Sentença

A comissão de juristas instituída pelo ato nº 379, de 2009, do Presidente do Senado Federal, destinada a elaborar anteprojeto de novo código de processo civil, já entregou o resultado de seus trabalhos à presidência do Senado (MIGALHAS, 2010).

O anteprojeto entregue pelo Ministro e Presidente da Comissão, Luiz Fux, se com-põe de 970 artigos. O de número 476 tem a seguinte redação:

Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la:I – para corrigir nela, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais ou lhe retificar erros de cálculo;

– Pedro Madalena –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 109

II – para aplicar tese fixada em julgamento de casos repetitivos;III – por meio de embargos de declaração.

E o Código de Processo Civil vigente (Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 e Lei 11.232, de 22 de dezembro de 2005), pelo seu artigo 463 dispõe:

Art. 463. Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la: (Redação dada ao caput pela Lei nº 11.232, de 22.12.2005, DOU 23.12.2005)I - para lhe corrigir, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais, ou lhe retificar erros de cálculo;II - por meio de embargos de declaração.

Conforme se nota, a norma proibitiva de alteração da sentença é praticamente a mesma, tanto no anteprojeto quanto no Código vigente, com apenas uma importante adição de norma que é a de se aplicar tese fixada em julgamento de casos repetitivos.

Mas essa adição normativa ainda é pouco e se poderia acrescentar outra, com al-cance maior visando melhoria da produtividade/celeridade do serviço forense.

Com efeito, o artigo 476 do anteprojeto poderia conter a seguinte redação:

Art. 476. Publicada a sentença, o juiz poderá reformá-la com nova redação de inteiro teor, depois de realizada audiência conciliatória que entender por conveniente. § 1º Apresentados os recursos, os procuradores serão intimados para comparecimento à audiência conciliatória, acompanhados ou não das partes;§ 2º Obtido êxito, será proferida a respectiva sentença nos termos do acordo;§ 3º Não obtido êxito o juiz terá a faculdade de reformar ou manter a sentença, com aplicação de tese fixada em julgamento de casos repetitivos;§ 4º Não sendo conveniente a realização de audiência conciliatória, mesmo assim, o juiz, de ofício ou a requerimento formulado, decidirá sobre obscuridade, contradição ou omissão, e fará correção de inexatidões materiais ou lhe retificar erros de cálculo, com redação de inteiro teor em nova sentença;§ 5º Publicada a nova sentença, as partes, depois de devidamente intimadas, apresentarão, querendo, novos recursos, os quais serão recebidos no efeito determinado no julgado e encaminhados à instância superior, imediata e independentemente de conclusão.

Com a adoção e implantação dessa nova estratégia, tudo estaria a indicar que gran-de parcela do imenso volume dos recursos que seria enviada ao segundo grau ficaria sub-traída no primeiro de jurisdição, desde que exitoso o segundo ato de conciliação (Artigos 333 e 476 do anteprojeto).

Ultimamente a adoção do princípio processual da conciliação está sendo seguida e necessária a promover celeridade da prestação jurisdicional, tanto que aqui em Santa Catarina, membros do egrégio Tribunal de Justiça do Estado estão marcando presença em audiência conciliatória na Comarca, em relação aos recursos dela advindos e ainda dependentes de julgamento.

RESOLUÇÃO N. 10/2004-GPInstitui Comissão Permanente destinada à organização de Mutirões da Conciliação e da Cidadania.

– Processo Civil com Nova Estratégia –

110 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

O Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, CONSIDERANDO o aumento extraordinário do número de ações judiciais;CONSIDERANDO a necessidade de implantar ações capazes de minimizar o retardamento na entrega da prestação jurisdicional;CONSIDERANDO a busca de soluções capazes de prevenir ou restaurar o entendimento entre as partes e a harmonia nas relações individuais e coletivas;CONSIDERANDO a existência do Instituto da Conciliação como forma eficiente e eficaz de composição de interesses,R E S O L V E:Art. 1º – Instituir Comissão Permanente destinada à organização de Mutirões da Conciliação e da Cidadania no Tribunal de Justiça e na Justiça de Primeiro Grau.Parágrafo único – A Comissão estará vinculada ao Gabinete da Presidência.Art. 2º – A Comissão será presidida por um magistrado, coordenada por um assessor da Presidência e composta ainda por três servidores, todos designados pelo Presidente do Tribunal de Justiça.Art. 3º – Incumbe à Comissão planejar e implantar, em caráter definitivo, no Tribunal de Justiça e na Justiça de Primeiro Grau, as ações concernentes aos Mutirões.Art. 4º – Cumpre à Comissão apresentar mensalmente ao Presidente do Tribunal de Justiça relatório referente às atividades planejadas e executadas.Art. 5º – No prazo de 60 (sessenta) dias, a Comissão apresentará programa de trabalho ao Presidente do Tribunal de Justiça.Art. 6º – Esta Resolução entrará em vigor na data da sua publicação, revogando-se todas as disposições em contrário.Florianópolis, 27 de abril de 2004.Desembargador Jorge MussiPRESIDENTE.(TJSC, 2004).

Mas não é só! A mesma Corte também já implantou Câmara Especial de julgamen-to no interior, com essa e outras finalidades.

TIPO: RESOLUÇÃO N 26/09-TJ ORIGEM: TJ DATA DA ASSINATURA: 21.10.2009 PRESIDENTE: DES. JOÃO EDUARDO SOUZA VARELLA DISPONIBILIZAÇÃO NO DIÁRIO DA JUSTIÇA ELETRÔNICO N. 801 PÁG 01 DATA:. 30.10.2009. OBS.: Amplia a competência da Câmara Especial Regional de Chapecó prevista no art. 1o da Resolução n. 38/08-TJ e no art. 1 da Resolução n. 13/09-TJ e estabelece outras providências. Revoga as disposições do art. 1 da Resolução n. 38/08–TJ e a Resolução n. 13/09–TJ. VIDE: Resolução n. 02/09-CERC. RESOLUÇÃO N. 26/09–TJ Amplia a competência da Câmara Especial Regional de Chapecó prevista no art. 1o da Resolução n. 38/2008-TJ e no art. 1 da Resolução n. 13/2009-TJ e estabelece outras providências. O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, por seu Tribunal Pleno, considerando expediente firmado por diversos senhores Desembargadores, RESOLVE: Art. 1 Redistribuir à Câmara Especial Regional de Chapecó todos os processos pendentes de julgamento nas Câmaras Isoladas de Direito Civil e de Direito Comercial desta Corte, oriundos das comarcas integrantes da VIII Região Judiciária, relacionadas no art. 2 da Resolução n. 38/2008–TJ, excetuados aqueles distribuídos até 2005, que compõem a denominada “Meta 2” do Conselho Nacional de Justiça, e os já pautados. § 1 Fica estabelecido o prazo de 20 (vinte) dias para que os Gabinetes dos Desembargadores que integram as Câmaras Isoladas de Direito Civil e de Direito Comercial remetam os processos referidos no caput deste artigo à Diretoria Judiciária. § 2 A Diretoria Judiciária registrará no SAJ/SG as informações necessárias e enviará os processos, mediante entendimento com a Secretaria da Câmara Especial Regional de

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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 111

Chapecó, que providenciará sua redistribuição. Art. 2 Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário, especialmente o art. 1 da Resolução n. 38/2008–TJ e a Resolução n. 13/2009–TJ. Florianópolis, 21 de outubro de 2009. João Eduardo Souza Varella DESEMBARGADOR PRESIDENTE.(TJSC, 2009).

Por seu turno, o Conselho Nacional de Justiça está efetivamente envolvido no sis-tema de conciliação, por meio do “Movimento pela Conciliação – Conciliar é Legal”, e apresenta o seguinte conceito:

O que é conciliação?Conciliação é um meio alternativo de resolução de conflitos em que as partes confiam a uma terceira pessoa (neutra), o conciliador, a função de aproximá-las e orientá-las na construção de um acordo. O conciliador é uma pessoa da sociedade que atua, de forma voluntária e após treinamento específico, como facilitador do acordo entre os envolvidos, criando um contexto propício ao entendimento mútuo, à aproximação de interesses e à harmonização das relações.Movimento pela ConciliaçãoO Movimento pela Conciliação teve início no dia 23 de agosto de 2006. Naquele ano, o dia 8 de dezembro foi dedicado à mobilização do Dia Nacional pela Conciliação. A primeira Semana Nacional pela Conciliação ocorreu no ano seguinte, em 2007, de 03 a 08 de dezembro. Mais de três mil magistrados e 20 mil servidores e colaboradores se empenharam e mais de 300 mil pessoas foram atendidas.Para consolidar o Movimento pela Conciliação, o CNJ e seus parceiros realizam uma série de medidas. Uma delas foi a edição da Recomendação número 8, do Conselho, que sugere aos tribunais o planejamento e a viabilização das atividades conciliatórias.[CNJ, 2010).

Conforme referência acima, assim que enviado o recurso ao segundo grau, os pro-curadores e partes se distanciam fisicamente do seu juiz local (juízo a quo), inviabilizando na prática o ato conciliatório, porque um tanto longe onde se localiza (em Capitais) o novo órgão julgador (juízo ad quem).

Por isso mesmo, talvez fosse aconselhável atribuir ao juiz a faculdade de, mesmo depois de julgar a ação e receber os respectivos recursos, marcar, conduzir pessoalmente audiência conciliatória e proferir nova sentença, evidentemente, ficando o novo julgado sujeito a recurso ao segundo grau de jurisdição.

Na verdade, o juiz pode, diante dos argumentos expendidos pelas partes, reconhe-cer que a sua decisão é perfeitamente justa, ou injusta e até carecedora ou não de reparos, inclusive em relação ao mérito (meritum causae), notadamente por quem está bem pró-ximo dos fatos, das partes, dos detalhes e das provas coligidas durante o procedimento da ação judicial.

Na realização dessa tarefa de promover abertura da possibilidade de conseguir acordo seguido de nova sentença, parece ter funcionado uma câmara ou turma especial em primeiro grau, composta, conforme o tipo de ação, de juiz, promotor e advogados, não para julgar, mas para a exposição de interesses, argumentos e proposições, os quais ficarão ao exame e à livre resolução pelo magistrado, a quem cabe finalmente decidir

– Processo Civil com Nova Estratégia –

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segundo a sua consciência e sabedoria jurídica, como verdadeiro e real pacificador de conflitos sociais ocorrentes em sua jurisdição.

Com a realização de audiência conciliatória em dois momentos (artigos 333 do anteprojeto e 476 com redação acima sugerida), é bem possível que os vários conflitos sejam resolvidos definitivamente no primeiro grau de jurisdição, livrando-se o segundo do espantoso e crescente volume de recursos para julgar.

Note a afirmação do Desembargador Marco Aurélio Gastaldi Buzzi, do TJSC, em palestra proferida no longínquo Estado do Maranhão, sobre o movimento de conciliação no Brasil:

Marco Aurélio Buzzi explicou que existem formas alternativas de entregar à Justiça a pacificação dos conflitos, sendo, uma delas, a conciliação. “A sentença não resolve o conflito, ao contrário do acordo, que pode não resolver integralmente, mas as chances são muito maiores”, explicou o palestrante.O desembargador Marco Aurélio Buzzi afirmou, ainda, que o acordo é uma alternativa salutar de solucionar conflitos por meio de estratégias não adversativas, cujos resultados são mais perenes, abrangentes e satisfatórios.(AMMA, 2007).

É verdade, não se nega! O primeiro grau assumiria grande parcela de serviço fo-rense. Mas, no contexto geral, quem sabe se obtenha lucratividade, sucesso e celeridade da prestação jurisdicional? Fatores de micro e macroeconomia, de organização e de méto-dos produtivos dos ritos procedimentais, para afins de avaliação, seriam detalhadamente examinados na fase de planejamento, implantação e execução dessa nova estratégia, caso venha a ser insculpida no artigo 476 do anteprojeto.

Com o passar do tempo, os tribunais estaduais, regionais federais e superior de justiça têm aumentando gradativamente o número de desembargadores e de ministros, inclusive o de servidores, o que tem sido decisão sensata, ante o aumento das demandas judiciais, principalmente, depois de assinada a carta da primavera – a cidadã -, criadora que foi de múltiplas necessárias tutelas jurídicas e de tantos procedimentos essenciais ao bem-estar comum e à paz social.

Sob certa perspectiva, os valores decorrentes da diminuição dos recursos humanos, materiais e financeiros em segundo grau seriam repassados ao primeiro, em princípio, parecendo haver certa compensação, mas só um exame meticuloso de planejamento po-deria revelar o respectivo efeito daí decorrente.

Com essa nova medida estratégica, três efeitos proveitosos seriam certos em decor-rência de:

a) Diminuição da taxa de congestionamento dos processos judiciais em todos os graus de jurisdição;

b) Resoluções definitivas de grande parte dos litígios no primeiro grau de jurisdição;

c) Mecanismo ou sistema propulsor de celeridade da prestação jurisdicional.

– Pedro Madalena –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 113

É apresentado a seguir o fluxograma dessa nova medida, como forma de melhor compreensão da teórica estratégica desenvolvida.

2.2. Embargos de Declaração: Sua Extinção

Aceita essa sugestiva redação para o artigo 476 e simplesmente mantida a do 907, IV (embargos de declaração), é certo que comprometeria a sistematização do Código. Isto porque os embargos de declaração, elencados entre os demais tipos de recursos, obe-decem a um procedimento, conforme pode ser visto no artigo 937 do anteprojeto.

DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃOArt. 937. Cabem embargos de declaração quando:I - houver, na decisão monocrática ou colegiada, obscuridade ou contradição;II - for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal.

Para se evitar conflito na sistematização, o recurso de embargos declaratórios po-deria ser extinto do Código de Processo Civil.

A sua extinção se justificaria porque nos processos judiciais em quaisquer instân-cias, a parte pode dispor do direito de se manifestar por simples petição escrita ou assen-tada em ata de audiência, o inconformismo sobre a ocorrência dos requisitos que com-portariam a interposição do recurso de embargos de declaração.

– Processo Civil com Nova Estratégia –

114 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

O conteúdo dessa discordância expressa pode ser examinado imediatamente pelo magistrado, e se a decisão exigir tomada de medida urgente pela parte que se sente preju-dicada, nada a impede de interpor o recurso de agravo (Art. 929 do anteprojeto).

Todavia, se não for caso da aplicação de medida acauteladora, o exame do incon-formismo será examinado e decidido posteriormente em sentença ou acórdão, num só momento.

A arguição do desacordo não seria somente em relação aos requisitos que compor-tariam o manejo de embargos declaratórios aqui sugeridos à extinção, mas também a to-dos os atos do juiz, do promotor de justiça, do advogado, do escrivão e dos serventuários, que poderiam constituir gravame aos direitos de quem pede a prestação jurisdicional.

No momento está se tratando de revisão, reforma, alteração ou até da criação de um novo Código de Processo Civil. Tudo então pode ser planejado, desde que o le-gislador não se afaste dos princípios e ditames que podem nortear a aplicação do bom direito e dê prioridade a sistema processual que conduza à melhoria da administração judiciária brasileira.

Parece que chegou o momento de se deixarem de lado certas praxes, orientações e alguns dogmas que até então deviam ser seguidos pelos operadores do direito, mas, com o passar do tempo e pelo advento de modernas tecnologias destinadas à produção de serviço público, cabe ao legislador tomar o rumo que permita adotar métodos jurídicos altamente técnicos, de modo a promover o bem-estar comum, segurança jurídica e social, com rapidez e eficiência.

Nos últimos tempos, observa-se a criatividade incessante e expansiva do desen-volvimento tecnológico pelos construtores da ciência jurídica, principalmente por meio de livros, revistas, jornais, artigos, dissertações e teses, em que os estudiosos do direito, doutrinadores e julgadores, disponibilizam à leitura impressa e virtual, verdadeiras obras jurídicas de profundo interesse cultural e alcance científico.

Na área do direito processual, muitos escritores do passado procuraram, e alguns modernos insistem em efetuar novas descobertas que possam gerar mecanismos destina-dos ao aperfeiçoamento do processo, mas ao que parece, sem pensamento inteiramente voltado a produzir serviço com eficiência, celeridade e com baixo custo operacional, tal como se estaria a propor pelo sistema de planejamento estratégico – da intenção aos re-sultados (CHIAVENATO; SAPIRO, 2010).

Acontece que o excesso nessa empreitada intelectual, muitas das vezes eivada de disputa e vaidades pessoais desaconselháveis, pode comprometer sobremaneira a eficácia e celeridade do processo judicial, assim que sugeridos procedimentos, ritos, fluxos e ro-tinas que devem ser expungidos da atividade judiciária, principalmente quando podem compor o tão combatido rol de formalismos. Conforme consta do Aurélio, a burocracia, quando excessiva, complica ou torna moroso o desempenho do serviço administrativo (Novo dicionário eletrônico).

– Pedro Madalena –

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Tomara que o anteprojeto não esteja contaminado por vários excessos de normas e formalismos inúteis. Nota-se nele que, para uma multiplicidade de situações, sempre existe um bom remédio jurídico, seguindo-se, assim, a mesma orientação dada ao Código no decorrer do tempo, no sentido de conduzi-lo à perfeição, por parte dos doutrinadores produtores de fantásticas obras de direito processual. Essa regra técnica de aperfeiço-amento, em princípio, é digna de louvor. Contudo, quando se pensa em produtividade de serviço que deva ser praticada com eficiência, rapidez e com baixo custo operacio-nal, num grande universo de demandas, quem sabe o direcionamento filosófico reclame melhor avaliação por quem planeja serviço público. Voltando-se um pouco no tempo, lembra-se de que, quando entraram em vigor os juizados especiais cíveis, ocorreu muita insurreição por parte de advogados, em não poder, por força da lei 9000/05, interpor os então usuais recursos perante tribunais. Essa restrição recursal, todavia, não causou grave prejuízo ao jurisdicionado. Desse jeito, é possível, também, entregar-se ao povo brasileiro um novo Código, sem excessos ou redundâncias de normas procedimentais, e que tenha por objetivo precípuo eliminar a morosidade do serviço judiciário, sem, entretanto, cau-sar injustiça a quem pede a prestação jurisdicional.

Sobre estatística forense, vejam alguns dados divulgados pelo CNJ nesta primeira quinzena de setembro de 2010, em relação à justiça catarinense, inclusive à de outros Estados, em 2009:

2º GRAU – CNJ – JUSTIÇA EM NÚMROS

LITIGIOSIDADE

1 – Casos novos

77.323 SC – Número superado pelo dos Estados SP, RS, RJ, MG e PT.

2 – Pendentes

67.938 SC - Número superado pelo dos Estados SP, RS, MG e CE.

3 – Baixados

102.017 SC - Número superado pelo dos Estados SP, MG e RS.

4 – Taxa de congestionamento

28,8% SC - Taxa de 13,4% no MA e 89,9% no CE.

1º GRAU – CNJ – JUSTIÇA EM NÚMEROS

5 – Casos novos

287.691 SC - Número superado pelo dos Estados SP, MG, RS, RJ, PR e BA.

– Processo Civil com Nova Estratégia –

116 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

6 – Pendentes 704.052 SC - Número superado pelo dos Estados SP, RJ, MG, PE, PR, BA e CE.

7 – Baixados 319.016 SC - Número superado pelo dos Estados RJ e MG

8 – Sentenças 268.437 SC - Número superado pelo dos Estados SP, RJ, MG, RS e PR.

9 – Taxa de congestionamento na fase de conhecimento67,8 % SC - Taxa de 16,4% no AP e 86,9% no PI.

Estão aí dados preocupantes e que melhor podem ser examinados no saite do CNJ. Tudo indica que a atividade judiciária precisa da melhoria de produção. Como conseguir a diminuição da taxa de congestionamento, levando-se em conta os processos pendentes e os que serão protocolados, é o grande desafio para o CNJ, a partir de 2011. Formas má-gicas não existem. Mas um Código de Processo Civil bem estruturado é a solução que se apresenta, conquanto produzido com ideias não só de juristas, mas também de detentores de dom e tino em planejamento de produzir serviço com aproveitamento tecnológico simultâneo do direito e da administração judiciária.

Nestes tempos modernos em que, para o desenvolvimento da atividade pública se reclama maior velocidade, por questão de ordem econômica e social num mundo globa-lizado, o direito processual, notadamente nesta oportunidade de reforma, precisa ser re-visto com profundidade, sob a ótica da administração, a partir do ensinamento de Vicente de Paula Ataíde Junior.

Quem sabe não se possa incorporar ao estudo do processo a pesquisa de campo, o material estatístico e outras técnicas de investigação científica, aprimorando a percepção da realidade impactada pelas normas jurídicas? Será que o “purismo” que ainda contamina a ciência do direito continuará a impedir a utilização desses métodos? O trabalho do cientista do direito não pode mais ser resumido a exercícios de lógica jurídica. O desafio agora é construir uma Teoria Geral do Processo que não se esgote nas abstrações da lógica e que descubra o quanto pode contribuir se reconhecer a administração da justiça como objeto de estudo.(ATAÍDE JÚNIOR, 2008).

Consequentemente, para que não ocorra conflito de sistematização do Código de Processo Civil, em princípio, artigos, itens e parágrafos a seguir apontados, entre outros por ora não indicados, seriam eliminados/alterados do anteprojeto, assim:

A – Eliminação: “Dos embargos de declaração”, do Sumário;B – Eliminação: “III - por meio de embargos de declaração”, do artigo 476;C – Eliminação: “IV – embargos de declaração”, do artigo 907;

– Pedro Madalena –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 117

D – O parágrafo único do artigo 907 passaria a ter a seguinte redação: “Os recursos são interponíveis em quinze dias úteis”;

E – Eliminação: “Capítulo V Dos embargos de declaração”, do Título II Dos Re-cursos, Livro I Parte Geral;

Salvo melhor entendimento, não se vê nenhuma heresia jurídica na área do direito processual civil em se extinguir o recurso de embargos de declaração, e se permitir ao juiz a reabertura de audiência de conciliação (artigos 333 do anteprojeto e 476 com a redação ora sugerida) seguida de sentença homologatória de acordo, de manutenção ou de refor-ma da sentença anterior.

O reforço sobre o pensamento de se eliminar os embargos declaratórios do codex processual se resume no fato de que os elementos processuais obscuridade, contradição e omissão poderão ser objeto de simples e oportuna decisão na fase de conhecimento, com possível ato instantâneo de retratação pelo juiz, independente de embargos, e se re-manescer a insurgência, o posterior socorro, depois de sentença, será manejado pela via de recurso processual adequado, inclusive podendo conter arguição destinada a corrigir inexatidões materiais e erros de cálculo.

É bem possível que alguns leitores divirjam de sugestões aqui apresentadas, ao en-tenderem que a reabertura de conciliação e prolação de nova sentença (artigo 476), ao invés de suprimirem a quantidade dos fluxos procedimentais, de modo contrário até, pro-vocariam o aumento do serviço judiciário no primeiro grau. Num exame perfunctório, com razão! Entretanto, outros fatores de produtividade precisam ser analisados.

Com a adoção dessa nova ideia, quem sabe o resultado seja proveitoso, porque:1. Eliminar-se-ia das instâncias um recurso (embargos declaratórios) a princípio

desnecessário;2. Pelo êxito da conciliação se poria fim ao litígio na instância a quo;3. A possível retratação do juiz por via de nova sentença suprimiria, pelo menos

em parte, o inconformismo da parte;4. Seriam estabelecidos com maior clareza os pontos controvertidos do litígio para

apreciação na instância ad quem;5. Suprimir-se-ia o volume recursal no segundo grau;6. Evitar-se-ia tempo e custo pelo deslocamento ao interior, por agentes do Tribu-

nal, a fim de promover conciliação em processos pendentes no segundo grau.

3. Conclusão

O esboço ora apresentado com texto e gráfico revela com clareza que o procedi-mento poderia ser acolhido para compor a redação do artigo 476 do anteprojeto ora ainda em fase de estudo neste início de setembro de 2010.

– Processo Civil com Nova Estratégia –

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Sendo aceita essa proposição como ajuda à modernização do Código de Processo Civil, é de se presumir que tenha natureza estratégica para proporcionar a melhoria da atividade forense nacional.

É presumível que impediria o crescimento do alto índice de recursos nos tribu-nais pátrios e, em contrapartida, aumentaria em parte o volume do serviço judiciário no primeiro grau de jurisdição. Todavia, os recursos financeiros possivelmente diminu-ídos no segundo grau de jurisdição seriam repassados ao primeiro, em que este poderia aumentar a sua estrutura funcional, através de unidade judiciária com gabinete de juiz provido de cultos assessores e de gerência dinâmica de cartório ou secretaria auxiliada por treinados servidores.

Mas a grande vantagem e o esperado sucesso dessa estratégia estariam consoli-dados com a presumida eficácia da conciliação promovendo talvez a extinção da maior parte dos litígios já no foro do ajuizamento da ação.

O exemplo do possível encerramento definitivo da prestação jurisdicional no pri-meiro grau de jurisdição é dado pelo atual bom funcionamento dos juizados especiais (Lei 9.099/95) impulsionados por seus próprios procedimentos legais.

Ao encerrar, vale lembrar o ensinamento do magistrado Luiz Guilherme Marques:

Parece-me que o ponto mais alto que poderíamos alcançar com a estrutura que tínhamos já foi alcançado, e, a partir daí, o volume de processos é superior às nossas forças. Agora, a solução é partirmos para outra etapa, diferente, num outro patamar, como aconteceu com o Direito depois dos Códigos Napoleônicos.Entendo que ou escolhemos o caminho do “novo” ou ficaremos na posição equivocada de um Savigny, brilhante, eruditíssimo, mas que “perdeu o trem da História”, porque não enxergou o futuro (MARQUES, 2009).

A principal justificativa da imperiosa necessidade de se efetuar ampla reforma do Código de Processo Civil, com aplicação de estratégicas modernas de gestão administra-tiva que possam baixar a alta taxa de congestionamento dos processos em todos os graus de jurisdição, está alicerçada nas palavras da ministra Eliana Calmon, ao tomar posse funcional de corregedora nacional, quando destacou (veja anexo) que a justiça é cara, confusa, lenta e ineficiente.

Bibliografia Referida e Consultada

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AMMA. Site. Movimento pela Conciliação é debatido por operadores do Direito do MA. Notícia de 21/09/2007. Disponível em: <http://www.amma.com.br/noticias~1,650,,,movimento-pela-conciliacao-e-debatido-por-operadores-do-direito-do-ma>. Acesso em: 15 set. 2010.

– Pedro Madalena –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 119

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– Processo Civil com Nova Estratégia –

120 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

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MATSURA, Lílian. Número de ações na Justiça ordinária aumentou 25%. Notícia publicada em 24.01.2009 na revista jurídica CONJUR. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jan-24/tres-anos-numero-acoes-primeira-segunda-instancias-subiu-25#autores#autores. Acesso em: 06 set. 2010.

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Anexos

1 – Brasília, 09/09/2010 - A ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Jus-tiça (STJ), foi empossada, nesta quarta-feira (8), no cargo de corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em seu discurso de posse, ela lembrou que, com a criação do CNJ, pela primeira vez, em dois séculos, a Justiça brasileira foi avaliada, em números e em custo. “Pela primeira vez, foram feitos diagnósticos oficiais do funcionamento da prestação jurisdicional, dos serviços cartorários. Pela primeira vez, veio a conhecimento de todos, até dos próprios protagonistas da função judicante, o resultado de uma justiça cara, confusa, lenta e ineficiente”, destacou.

Ao prestar o juramento de posse, a ministra Eliana Calmon afirmou que pendura a surrada toga, que usou durante 32 anos, para enfrentar o maior desafio da sua vida profis-sional. “Estou pronta para, pela primeira vez, deixar a atividade judicante e assumir a função de fiscalizar a distribuição da justiça e o andamento dos serviços forenses, funções estatais divorciadas dos mandamentos constitucionais. A Constituição Federal garante a razoável duração do processo e dos meios de celeridade de sua tramitação. Mas sabemos todos, pro-fissionais do direito e cidadãos, o descompasso da realidade com a ordem constitucional. Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=20533>. Acesso em: 10 set. 2010.

JUSTIÇA EM NÚMEROS2 – Número de ações na Justiça ordinária aumentou 25%Por Lilian Matsura

– Pedro Madalena –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 121

O número de processos judiciais não para de crescer. E a Justiça não está dando conta do recado. Em 2007, tramitavam na primeira e segunda instâncias do Judiciário – Estadual, Federal e Trabalhista – 67,7 milhões de ações. No ano anterior, eram 63,3 mi-lhões. De 2004 para 2007, o número de ações na Justiça aumentou 25%.

Durante todo o ano de 2007, foram protocolados nos cartórios de todo o país 23 mi-lhões de novas ações. Os juízes e desembargadores conseguiram julgar, no mesmo período, 20,4 milhões. Ou seja, 2,6 milhões de processos não tiveram qualquer resposta do Judiciá-rio durante o ano. Já 1,8 milhão teve decisão, mas continua em tramitação na Justiça.

– Processo Civil com Nova Estratégia –

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As varas estaduais são as mais congestionadas do país. Estados nordestinos enca-beçam o ranking — às avessas — ocupando as quatro primeiras posições. A taxa de con-gestionamento do Maranhão, o mais lento, foi de 92,7% em 2007. Em seguida, aparecem Alagoas (92,4%), Pernambuco (91,7%) e Bahia (90%), de acordo com levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça. A média de congestionamento na primeira instância dos estados foi de 80,5%, o que significa que, a cada 100 processos, 80 continuavam sem solução até o final de 2007. A taxa de congestionamento é a razão entre o número de sentenças proferidas e o número de processos em tramitação e é um dos números mais significativos para aferir o sufoco do Judiciário.

Os juízes mais ágeis, ou com menor número de processos, estão em Rondônia, onde o índice de congestionamento não chega a 35%. São Paulo encontra-se na nona posição, com taxa de 84,3%.

Os dados são uma prévia da pesquisa conhecida como Justiça em Números, divul-gada todo ano pelo CNJ. A pesquisa deste ano, com dados de 2007, ainda está em fase de conclusão. Deve ser divulgada no começo de fevereiro.

Na Justiça Federal, a taxa média de congestionamento em 2007 foi de 78%. As varas da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo) são as mais lotadas: 89,6% de congestiona-mento. São Paulo e Mato Grosso do Sul, que compõem a 3ª Região, ficaram em segundo lugar, com 81,7% de congestionamento.

– Pedro Madalena –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 123

Na Justiça do Trabalho, as varas nordestinas também são as mais demoradas. A taxa de congestionamento mais alta é de 63,5%, em Alagoas. A Justiça do Rio Grande do Norte vem em segundo lugar, com 61,6%.

Campinas é a terceira colocada no ranking dos mais lentos na prestação de Justiça (59,4%), seguida por Piauí (59%). Na quinta posição, empatadas, estão as varas do Mara-nhão e Rio de Janeiro (57,9%).

Trabalho intensoA carga de trabalho dos juízes estaduais foi uma das mais pesadas do Judiciário em

2007. Cada um tinha em seu gabinete 5.102 processos, segundo o CNJ. Na Justiça Federal, cada juiz ficou responsável por 1.894 ações.

Quando se analisam os dados de segunda instância, a situação se inverte. Os de-sembargadores federais tinham, em média, 8.108 ações à espera de uma resposta naquele ano. A taxa de congestionamento nos Tribunais Regionais Federais chegou a 60,5%. Nos Tribunais de Justiça, a média foi 45,4%.

Em todo o país, a Justiça Estadual tem 11.118 juízes e desembargadores. Na Fede-ral, 1.447 magistrados estão distribuídos pelas cinco regiões.

Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jan-24/tres-anos-numero-acoes-primeira-segunda-instancias-subiu-25#autores#autores. Acesso em: 06 set. 2010.

3 – Justiça federal não conseguiu reduzir estoque em 2007Por Priscyla CostaEm 2006, os juízes federais foram os únicos no país que conseguiram julgar mais

processos do que receberam. A média, entretanto, não foi mantida em 2007. É o que in-dica o Justiça em Números, levantamento produzido pelo Conselho Nacional de Justiça com estatísticas do Poder Judiciário.

– Processo Civil com Nova Estratégia –

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O mau diagnóstico começa a ser percebido nos Juizados Especiais. Em 2006, todos comemoravam a queda na taxa de congestionamento — de 52,51% em 2005 para 36,57% em 2006. Em 2007, a proeza não se repetiu e o que era um modelo de agilidade nos jul-gamentos registrou 42,2% de taxa de congestionamento. Isso significa que, para cada 10 processos, quatro ficaram sem solução.

O mesmo aconteceu nos Tribunais Regionais Federais. Em 2006, o número de de-cisões foi maior do que o número de novos processos — 438,7 mil julgados X 378,4 mil casos novos. Os TRFs, entretanto, não mantiveram a tendência. O Justiça em Núme-ros mostra que, em 2007, foram proferidas menos decisões do que o total de recursos que chegaram ao tribunal. Foram 442,1 mil contra 443,9 mil novos recursos. Cerca de 675 mil casos ficou pendente de julgamento. A taxa de congestionamento na segunda instância da Justiça Federal ficou em 60,5%. Em 2006, era um pouco menor — 60,39%.

O número de processos pendentes de julgamento na primeira instância aumentou. Em 2006, os fóruns tinham 1,6 milhão de casos pendentes. O número em 2007 subiu para 1,7 milhão.

Por conta do trabalho dos magistrados em 2006, ano em que conseguiram reduzir o estoque, a carga de trabalho diminuiu. Em 2006, cada juiz de primeira instância tinha 2.349 processos para julgar. Em 2007, cada um teve 2.264. No TRFs, aconteceu o contrá-rio. A carga de trabalho aumentou de 8.026 por desembargador em 2006 para 8.108 em 2007. O mesmo aconteceu nos Juizados Especiais Federais. Em 2006, a carga de trabalho era de 9.021. Em 2007, o índice ficou em 9.433.

A mais congestionadaOutro número que merece destaque é a taxa de congestionamento na fase de exe-

cução. A primeira instância da Justiça Federal registrou, em 2007, média de 93,2% de congestionamento. É campeã no ranking a Justiça Federal da 2ª Região — 96,7% de con-gestionamento na fase de execução. Em segundo lugar está a 1ª Região, com 93,7%; em

– Pedro Madalena –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 125

terceiro lugar, a 2ª Região, com 93,3%; em quarto lugar, a 5ª Região, com 92,6%; e em quinto lugar, a 4ª Região, com 82,9%.

Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-fev-23/justica-federal-nao-redu-zir-estoque-processos-2007#autores#autores. Acesso em: 06 set. 2010.

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 127

PROCESSO COLETIVO E A COISA JULGADA ERGA OMNES NOS LIMITES DA COMPETêNCIA TERRITORIAL

DO ÓRGãO PROLATOR1

COLLECTIVE PROCESS AND THE RES JUDICATA ERGA OMNES WITHIN THE TERRITORIAL JURISDICTION OF THE

BOARD PROLATOR

Rafael brüning2 Fernando Francisco Alfonso Fernandez3

RESUMO: O tema objeto deste artigo científico diz respeito ao alcance dos efeitos relacionados às pessoas consideradas submetidas às sentenças proferidas em ações civis públicas (destinadas a tutelar interesses difusos, coletivos e individuais homo-gêneos), tendo em vista a limitação de tal alcance, introduzida pela alteração feita na redação original do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.343/85), no sentido de considerar que a sentença civil fará “coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator”. Tanto na doutrina como na jurisprudên-cia, há divergências quanto à eficácia e à validade da alteração mencionada, de modo que, após ser feita uma exposição dos motivos que levam à divergência sobre o tema, pretende-se abordar o aspecto da validade da alteração, embora na prática a sua eficácia possa ou não ocorrer, a depender da natureza do direito tutelado (se difuso, coletivo, ou individual homogêneo) e da relação jurídica existente entre as partes (se uma relação de consumo ou outro tipo de relação). A escolha do tema deveu-se à enorme importância prática que os processos coletivos possuem, seja porque se

1 Artigo Científico apresentado para a conclusão do Curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil da UNIDAVI (Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí).

2 Acadêmico do Curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil da UNIDAVI. Graduado em Direito pela UNIVALI, em 2001. Ex-Promotor de Justiça substituto. Juiz de Direito do Estado de Santa Catarina. Professor Universitário (UNIVALI, Campus Tijucas) das Cátedras Juizados Especiais, Direito do Consumidor, e Tópicos Especiais de Direito Civil.

3 Orientador, graduado em Direito e Mestrado em Ciência Jurídica pela UNIVALI. Escritor. Professor Universitário das Cátedras Processo Penal e Direito Penal, na mesma instituição. Autor do Projeto e Coordenador do Curso de Pós-graduação, pela CESUSC, Assessoria Parlamentar. Advogado militante. Presidente da Subseção da OAB/SC Itapema. Juiz Leigo, desde o ano 2000, nas Comarcas de Tijucas, Itapema, Camboriú e Porto Belo. Tradutor Judicial para a língua espanhola.

– Processo Coletivo e a Coisa Julgada Erga Omnes nos Limites da Competência Territorial do Órgão Prolator –

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destinam a tutelar direitos transindividuas4, pertencentes à toda a coletividade, seja porque permitem a solução, num só processo, de causas que, do contrário, teriam que ser ajuizadas individualmente5 aos milhares em todos os órgãos do Poder Judi-ciário, contribuindo ainda mais para o congestionamento da Justiça. PALAVRAS-CHAVE: processo coletivo, efeitos da coisa julgada, limites territoriais do órgão prolator.ABSTRACT: The object of this scientific article concerns the scope of effects related to persons subject to the considered judgments in civil government (to protect interests, collective and homogeneous) in order to limit such scope, introduced by the amendment made the original wording of art. 16 of the Public Civil Action Law (Law No. 7.347/85), to consider that the civil verdict will “res judicata erga omnes, within the territorial jurisdiction of the prolator court. Both in doctrine and jurisprudence, there are differences in the effectiveness and validity of the amendment mentioned, so that, after being made and explanation of the reasons that lead to divergence on this issue, we intend to demonstrate that the change is valid, although in practice the effectiveness of such a change may or may not occur, depending on the nature of the protected right (if diffuse, collective or homogeneous individual) and of the legal relationship between the parties (if a consumer relationship or other relationship). The theme reflected the enormous practical importance of the collective processes that have, either because they are intected to protect rights transindividual, belonging to the whole community, either because they allow the solution in one process, from causes that otherwise would have to be filed by the thousands in all organs of the judiciary, further contributing to the congestion of Justice.KEYWORDS: collective process, res judicata effect, territorial limits of the prolator organ.

Introdução

O processo civil coletivo é um instrumento relativamente novo no Direito Brasi-leiro. O Código de Processo Civil (CPC) vigente, de 1973, foi moldado para atender à prestação da tutela jurisdicional em casos de lesões a direitos subjetivos individuais, me-diante demandas promovidas pelo próprio lesado. Deste modo, o art. 6º do CPC previu, como regra, que “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.”

Exceto nos casos de litisconsórcio ativo (ainda assim sujeito a limitações, quanto ao número de litisconsortes, para não comprometer a defesa do réu e a rápida solução do litígio – art. 46, parágrafo único, do CPC), o CPC não previu instrumentos para a tutela coletiva de direitos, principalmente para os direitos transindividuais, de titularidade in-

4 Entendidos como sendo os direitos difusos e coletivos, conceituados nos incisos I e II do parágrafo único do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).

5 No caso dos direitos individuais homogêneos, conceituado no inciso III do parágrafo único do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).

– Rafael Brüning – Fernando Francisco Alfonso Fernandez –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 129

divisível e indeterminada, como são chamados os interesses difusos e coletivos (art. 81, incisos I e II, do Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/906).

Foi principalmente a partir de 1985 (antes se manejava - e ainda se pode manejar, para essas questões, a Ação Popular – Lei nº 4.717/65, que trata apenas da tutela coletiva ao patrimônio público), com a edição da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85)7, que o processo civil brasileiro passou a prever a tutela de direitos e interesses transindividuais, ou seja, a admitir o uso de demanda judicial com o fito de assegurar direitos da coletividade.

Desde então, inúmeros avanços ocorreram, sendo inquestionável que as demandas coletivas representaram (e representam) um importantíssimo instrumento para a efetiva-ção dos direitos da sociedade, além de contribuir para um melhor funcionamento da Justi-ça, na medida em que torna desnecessário o ajuizamento de milhares de ações individuais para dar solução a um problema que poderá ser dirimido numa única demanda, atingindo a prestação jurisdicional, por essa via, tanto o direito individual como o coletivo.

Tal avanço decorreu, entre outras previsões legais, da disposição contida no art. 16 da LACP, no sentido de que a sentença civil proferida numa ação civil pública faria coisa julgada “erga omnes”, significando que os seus efeitos se estenderiam para todos os titula-res dos direitos tutelados em cada uma dessa espécie de ação.

Tamanho foi o avanço, porém, que o legislador, aparentemente, com a nítida in-tenção de restringir o alcance das pessoas que poderiam ser beneficiadas com as ações coletivas (e, portanto, reduzir ou restringir a eficácia prática da resolução judicial dos conflitos em massa, julgados em sede de ação civil pública), alterou a redação original do art. 16 da LACP, através da Medida Provisória nº 1.570/97, convertida na Lei nº 9.494/97, prevendo que a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, mas “nos limites da compe-tência territorial do órgão prolator”.

Com isso, a intenção do legislador, como antes mencionado, parece ter sido a de limitar o alcance das pessoas que poderiam ser beneficiadas com a ação civil pública, no sentido de beneficiar, apenas, aquelas sujeitas à jurisdição territorial do órgão judicial prolator da sentença.

Sucede que, desde essa alteração, iniciou-se importante e profunda discussão dou-trinária e jurisprudencial acerca da eficácia e validade da modificação, sendo que atu-almente os debates continuam pujantes e não há entendimento pacífico acerca de tão importante questão.

Para vários doutrinadores8, a alteração foi inócua, pois, como o legislador não alte-rou a sistemática do CDC, de nada teria adiantado modificar somente o art. 16 da LACP, haja vista que o CDC, ao tratar da coisa julgada nas ações coletivas (art. 103), não esta-

6 Doravante usaremos a expressão CDC para se referir ao Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). 7 Para se referir à Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), doravante utilizaremos a sigla LACP. 8 Entre os quais podemos citar: GRINOVER, Ada Pellegrini. Da defesa do consumidor em juízo. In: ____ et al. Código

brasileiro de defesa do consumidor. 7. ed. Rev. ampl. atual. São Paulo: Forense Universitária, 2001, p. 848 e segs.; MAZZILLI,

– Processo Coletivo e a Coisa Julgada Erga Omnes nos Limites da Competência Territorial do Órgão Prolator –

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beleceu limites territoriais, sendo que as duas leis (nº 7.347/85 e 8.078/90) formam um mesmo sistema, em razão da remissão a este último diploma citado, contida no art. 21 da LACP. Além disso, ao estabelecer limites territoriais à eficácia da coisa julgada erga omnes, o legislador teria confundido limites subjetivos da coisa julgada com temas rela-cionados à jurisdição e competência dos órgãos judiciais.

Contudo, há autores9 que, se de um lado entendem que essa alteração significa um retrocesso (feita de maneira inteiramente consciente pelo legislador), sustentam, por outro norte, a validade da alteração, eis que a lei foi editada com observância do processo legislativo, não havendo, portanto, juridicamente, ineficácia nem invalidade.

No presente artigo, buscar-se-á conferir a melhor interpretação que poderia ser dada ao dispositivo em comento, no sentido de dotar as ações coletivas da necessária eficácia que devem ter por conta de sua própria natureza, mas ao mesmo tempo submeter a atuação judicial ao império da lei, sem, contudo, ter a deliberada intenção de esgotar o assunto.

Tendo como premissa que vivemos num Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CF), isto é, regulado e submetido à lei, buscar-se-á refutar as teses contrárias à aplicabilidade da modificação legislativa, evidenciando, tanto quanto possível, a inexis-tência de qualquer ineficácia ou invalidade no art. 16 da LACP.

Estabelecida a premissa de que a alteração seja válida, buscar-se-á, em decorrência, delinear como ficam os efeitos das sentenças proferidas em ação civil pública, levando-se em conta a espécie do interesse tutelado (difuso, coletivo, ou individual homogêneo), bem como a natureza da relação jurídica trazida à apreciação do Poder Judiciário (se relação de consumo ou outro tipo).

Desenvolvimento

Importante registrar, inicialmente, que, embora por razões jurídicas, não se vis-lumbra ilegalidade, ineficácia ou invalidade, não se concorda (no sentido de apoiar) com a alteração feita no art. 16 da LACP, pois, como frisado anteriormente, parece nítido o retrocesso, sendo, por isso, compreensíveis, inclusive, as tentativas dos doutrinadores em refutar a nova proposição legislativa. Contudo, como bem observa Juliano Taveira Ber-nardes10, “a tarefa de definir os limites da coisa julgada ainda pertence ao legislador”, de modo que apenas não sendo válida ou eficaz a alteração, juridicamente, é que se poderia negar aplicabilidade à nova redação do art. 16 da LACP, pouco importando, por essa ópti-ca, as opiniões discordantes de cada operador do Direito, a partir do pressuposto de que, sendo lei, sua observância é obrigatória.

Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 16. ed. Rev. ampl. atual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 458; NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil comentado. 8. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 1456.

9 Citamos BERNARDES, Juliano Taveira. Art. 16 da Lei da Ação Civil Pública e efetiso “erga omnes”. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, nº 916, 5 jan. 2006. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/7791 . Acesso em: 6 dez. 2010.

10 Conforme obra citada no rodapé anterior.

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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 131

Dito isto, tem-se que, primeiramente, é preciso definir o que pretendeu o legislador ao utilizar a expressão coisa julgada “erga omnes”, eis que, no caso, a interpretação teleo-lógica parecer ser a mais apropriada para se estabelecer o sentido do texto.

É que a doutrina, fundamentadamente, critica a alteração mencionada, aduzindo que o legislador, ao estabelecer limites territoriais à eficácia da coisa julgada erga omnes, teria confundido, como antes mencionado, limites subjetivos da coisa julgada com temas relacionados à jurisdição e competência. Para exemplicar, é comum a doutrina11 citar casos de determinada ação civil pública objetivando interromper a poluição de um rio provocada por certa indústria, no sentido de que a limitação territorial implicaria que a procedência do pedido somente teria eficácia no trecho do rio que cruzasse a área de jurisdição terri-torial do órgão prolator. Com isso, a indústria poluente poderia driblar a decisão judicial, bastando que mudasse suas atividades para local diverso, não abrangido pela jurisdição territorial do órgão prolator da decisão, mesmo em se tratando do mesmo curso d’água.

Os doutrinadores mencionam, também, o caso de ação civil pública buscando com-pelir empresa aérea a instalar poltronas especiais para deficientes físicos em seus aviões, sublinhando que, a valer a alteração do art. 16 da LACP, a empresa aérea só estaria obri-gada a observar a decisão judicial com relação às aeronaves que sobrevoassem o território inserido no âmbito da jurisdição do órgão jurisdicional respectivo.

Parece certo que a redação do art. 16 da LACP estaria a merecer críticas, pois, não se afigura apropriado afirmar que existe um tipo “erga omnes” de coisa julgada, já que o efeito “erga omnes” não tem a ver com a qualidade da coisa julgada. A esse respeito, a expressão coisa julgada “erga omnes” seria simples artifício jurídico para se delinear a ex-tensão dos limites subjetivos (isto é, quais pessoas/sujeitos estariam abrangidos pela deci-são judicial) que, naturalmente, decorrem da coisa julgada, pois no processo civil clássico (criado para solucionar lides de cunho individual) a coisa julgada atinge apenas as partes que integraram a lide. Neste sentido, a imposição de limites territoriais trazida pelo art. 16 da LACP não prejudica a obrigatoriedade jurídica da decisão judicial em relação aos participantes da relação processual originária, onde quer que se encontrem. Por isso é que uma sentença pela qual se decreta o divórcio, por exemplo, gera efeitos em todo o terri-tório nacional em relação às partes que tiveram o casamento dissolvido, e não apenas nos limites territoriais do órgão prolator da sentença respectiva. Em caso oposto, seria como se os cônjuges fossem considerados divorciados, apenas, no território onde foi decretado o divórcio, e casados quando não estivessem dentro desse limite jurisdicional.

Em sua obra Instituições de Direito Processual Civil12, Cândido Rangel Dinamarco salienta que, em direito processual, coisa julgada é imutabilidade. Diz o mesmo doutrina-dor que “(...) é prudente condicionar em tese a eficácia da sentença à sua imutabilidade,

11 Conforme menciona BERNARDES, Juliano Taveira, na obra citada. 12 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Volume 3. São Paulo: Editora Malheiros, 4. ed.

2004, p. 295/329.

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mas essa correspondência não é necessária nem constante porque há também razões para liberar a primeira, em alguns casos, antes que ocorra a segunda. Eficácia e imutabilidade são conceitos distintos.”

Vê-se, pois, que a coisa julgada não é um efeito da sentença, mas um estado de se-gurança, estabilidade e imutabilidade jurídica entre os que litigaram no processo. A coisa julgada incide sobre os efeitos da sentença, mas não é, ela também, um efeito desta. Como diz o próprio Dinamarco, a coisa julgada é somente “uma capa protetora”, que imuniza esses efeitos, tornando-os imutáveis. Não se trata de acrescer efeitos à sentença, mas de imunizar seus efeitos.

Após explicar o que consiste a coisa julgada, o jurista antes referido, na obra citada, comenta a expressão coisa julgada “erga omnes”, dizendo que, em verdade, a questão diz respeito, em primeiro plano, ao âmbito subjetivo da eficácia da sentença e não da coisa julgada em si mesma.

Em decorrência desse posicionamento, vê-se que, embora a expressão “coisa julga-da erga omnes”, aparentemente, não possa ser considerada, de fato, de boa técnica legisla-tiva e processual, não é pretensioso entender que, o que pretendeu o legislador foi estipu-lar os sujeitos que ficam abrangidos pelos efeitos da sentença civil proferida em ação civil pública. Por esse ângulo, parece apropriado interpretar, portanto, que tal expressão deve ser recepcionada nesses termos. A propósito, Luiz Guilherme Marinoni13 discorre que o correto seria o legislador ter utilizado a expressão eficácia erga omnes, pois neste caso, o que se pretende tratar são os efeitos da decisão.

D’outra banda, cuidou o legislador de fixar escrupulosos limites à abrangência dos sujeitos, deixando sua vontade, cristalina, na redação do art. 16 da LACP, dizendo que, embora faça coisa julgada erga omnes, esta será nos limites da competência territorial do órgão prolator.

Estabelecidos o sentido e a finalidade da expressão “coisa julgada erga omnes”, pas-saremos, então, a analisar se a alteração do art. 16 da LACP é eficaz e válida.

Os que sustentam a ineficácia da alteração14 argumentam que esta foi inócua, pois como o legislador, conforme antes mencionado, não alterou a sistemática do CDC, de nada teria adiantado modificar somente o art. 16 da LACP, haja vista que o CDC, ao tratar da coisa julgada nas ações coletivas (art. 103), não estabeleceu limites territoriais, sendo que as duas leis (CDC e LACP) formam um único sistema, em razão da remissão ao pró-prio CDC contida no art. 21 da LACP.

13 “Coisa Julgada Erga Omnes e Eficácia Vinculante”. Disponível em http://ufpr.academia.edu/LuizGuilhermeMarinoni/Papers/149256. Acesso em: 10 dez. 2010.

14 Entre os quais podemos citar, como vimos: GRINOVER, Ada Pellegrini. Da defesa do consumidor em juízo. In: ____ et al. Código brasileiro de defesa do consumidor. 7. ed. Rev. ampl. atual. São Paulo: Forense Universitária, 2001, p. 848 e segs.; MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 16. ed. Rev. ampl. atual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 458; NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil comentado. 8. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 1456.

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Embora se reconheça que a LACP e o CDC se aplicam reciprocamente, tem-se que não seja possível afirmar que ambas as leis formam um único sistema, e sim que os refe-ridos diplomas legais são recíproca e subsidiariamente aplicáveis, vigorando de maneira independente.

Isto porque o art. 21 da LACP dispõe que “Aplicam-se à defesa dos direitos e inte-resses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título IIII da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor” (sem grifo no original).

Assim, ao mencionar “no que for cabível”, parece restar claro que a aplicação do CDC é subsidiária (ou, quando concorrente, limita-se ao que não contrariar a LACP).

Por outro lado, o CDC, no seu art. 90, estipula que “Aplicam-se às ações previstas neste Título as normas do Código de Processo Civil e da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas dispo-sições. (sem grifo no original).

Novamente, a lei foi categórica em prever que a aplicabilidade da LACP ocorre naquilo que não contrariar as disposições do CDC.

Portanto, embora os sistemas estejam interligados, como acima mencionado, tem-se que esses diplomas jurídicos (LACP e CDC) são recíproca e subsidiariamente aplicá-veis, porém vigorando de maneira independente, de modo que o se pode aparentemente pensar é que, para o microssistema em que se aplica o CDC de maneira principal, e não subsidiária, a modificação do art. 16 da LACP não surte efeitos jurídicos, porquanto a alteração da legislação geral não repercute no âmbito da legislação especial que disponha em sentido contrário. Da mesma forma, quando não se estiver diante de direitos coletivos que se caracterizam como relação de consumo, aplica-se de maneira principal a LACP, e o CDC subsidiariamente, isto é, “no que for cabível”.

Há autores, por outro lado, conforme se mencionou anteriormente15, que susten-tam que a invalidade do art. 16 da LACP decorre de sua inconstitucionalidade, pois, pelo aspecto formal, a MP nº 1.570/97, posteriormente convertida na Lei nº 9.494/97, não atenderia aos requisitos de urgência e relevância, e no aspecto material teria reduzido indevidamente a garantia de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, da CF).

É de se registrar que o Plenário do STF entendeu constitucional a nova redação do art. 16 da LACP, conforme Adin 1.576/DF, embora o julgamento tenha sido acerca do pedido liminar, sendo que, posteriormente, a ação acabou sendo extinta por falta de adi-tamento ao pedido. Mesmo assim, porque o debate científico não se esgota com a posição do STF, mostra-se importante oferecer contraponto às teses de invalidade constitucional do art. 16 da LACP.

A esse respeito, a inconstitucionalidade formal estaria na inobservância dos requisi-tos de urgência e relevância necessários para validar a edição da MP 1.570/97. Assim, não

15 Vide notas de rodapé nº 8 e 14.

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haveria razões para alterar a sistemática relativa aos efeitos das sentenças da ação civil pú-blica, já que, em vigor, há pelo menos desde a suposta revogação da redação original do art. 16, por força da mencionada remissão que se implantou, em 1990, no art. 21 da LACP.

Contudo, esse argumento não leva em conta a questão acerca da possibilidade ou não de os vícios formais da medida provisória serem convalidados ante a respectiva con-versão em lei pelo Congresso Nacional. Além disso, no direito constitucional, com base no Princípio da Independência das Funções Estatais, vigora quase um consenso em tor-no da inviabilidade da revisão judicial dos pressupostos constitucionais de urgência e relevância das medidas provisórias, a menos que se utilizem parâmetros objetivos para controlá-los. Medidas provisórias são atos políticos cujo mérito dos respectivos requisitos constitucionais situa-se, com exclusividade, na esfera da discricionária avaliação deferida pela Constituição ao Executivo, sob a posterior fiscalização do Legislativo. Logo, não po-dem ser anuladas pelo Judiciário, por falta de urgência ou relevância, sem que se aponte violação a parâmetros minimamente objetivos a legitimar o controle judicial.

Dessarte, se é que se pode afastar o caráter subjetivo acerca do que se reputa “lon-go” período de vigência da legislação modificada, essa ideia não serviria para invalidar a modificação normativa. Na verdade, a situação de urgência e relevância pode advir, exa-tamente, da inércia do Legislativo em revisar a legislação “antiga” ou mesmo da superve-niência de circunstâncias novas, não consideradas anteriormente. Assim, pode-se cogitar que o Presidente da República tinha motivos para querer modificar o art. 16 da LACP, especialmente para tentar frear a chamada “guerra de liminares” ao tempo dos leilões de privatização, bem como para restringir os prejuízos da União com as ações coletivas mo-vidas em favor de servidores públicos federais.

No que tange ao aspecto material da tese da invalidade constitucional da alteração na redação do art. 16 da Lei nº 7.347/85, encontra-se ligado ao argumento de que a mo-dificação teria reduzido indevidamente a garantia de acesso, do jurisdicionado, à Justiça. Para refutar tal tese, é preciso, primeiramente, ter em mente o já mencionado antes acerca da real dimensão da expressão “coisa julgada erga omnes” (que é estabelecer os sujeitos que estariam abrangidos pelos efeitos da sentença proferida em ação civil pública).

Como visto, para a doutrina que sustenta a invalidade da alteração mencionada, o legislador, ao estabelecer limites territoriais à eficácia da coisa julgada erga omnes, teria, ao que tudo indica, confundido limites subjetivos da coisa julgada com temas relaciona-dos à jurisdição e competência.

Como se pode notar anteriormente, a imposição de limites territoriais trazida pelo art. 16 da LACP não prejudica a obrigatoriedade jurídica da decisão judicial em rela-ção aos participantes da relação processual originária, onde quer que se encontrem. Isso porque as partes originárias que compuseram a lide estão vinculadas pela própria força dos limites subjetivos que decorrem da coisa julgada, independentemente da incidência ou não do efeito erga omnes. Por isso, nos exemplos citados anteriormente, a indústria poluidora e a empresa aérea estariam obrigadas a cumprir a decisão judicial em qualquer

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lugar que exerçam suas atividades, exatamente porque se vinculam à decisão em razão da própria coisa julgada, sem necessidade de abrangê-los pelos efeitos erga omnes. É como, consoante já abordado, no caso de uma sentença de dissolução do casamento: em sendo decretado o divórcio, os ex-cônjuges passam a ter o estado civil de divorciados onde quer que eles estejam, e não apenas nos limites territoriais do órgão prolator, uma vez que não é possível considerá-los divorciados apenas no âmbito jurisdicional onde foi decretado o divórcio, e casados quando estivessem fora dele.

Desta forma, como antes dito, parece apropriado entender que a alteração do art. 16 da LACP deve ser interpretada como sendo válida e eficaz. Contudo, a depender da na-tureza do direito tutelado (difuso, coletivo, ou individual homogêneo) e do tipo de relação jurídica existente entre as partes (se uma relação de consumo ou outra relação), ter-se-á, na prática, a incidência ou não do disposto no artigo em comento.

Por outro vértice, o conceito dos direitos difusos, coletivos, e individuais homo-gêneos estão descritos no art. 81 do CDC. Todos têm, de certa forma, natureza coletiva, mas é preciso verificar se essa natureza coletiva é essencial ou contingente16. Nos direitos difusos e coletivos, o caráter coletivo lhes é imanente, integra-lhes a própria essência, pois o direito apresenta-se indivisível e os sujeitos (titulares do direito) são, em princípio, indeterminados. A diferença específica é que nos direitos difusos, os titulares são indeter-mináveis por estarem ligados ao direito por circunstância de fato. Já nos direitos coletivos, embora também indivisível o direito, é possível determinar o grupo, categoria ou classe dos titulares, já que há uma relação jurídica base (caso em que a eficácia seria, então, ultra partes, conforme art. 103, II, do CDC).

Por outro lado, o direito individual homogêneo, embora tenha larga expressão nu-mérica quanto aos sujeitos que são titulares, são essencialmente individuais, tanto que o próprio conceito legal não o define como transindividual, e sim como individual. Enfim, enquanto os direitos difusos e coletivos são essencialmente coletivos, por conta de sua própria natureza, os individuais homogêneos são essencialmente individuais, embora re-cebam tratamento coletivo pelo modo uniformizado como se exteriorizam, sendo que, por isso, o legislador estipulou a possibilidade de haver tutela coletiva, que seria mais adequada e eficaz.

O mesmo legislador, porém, como dito, aparentemente visando restringir a eficácia prática da resolução dos conflitos através da ação civil pública, alterou a redação do art. 16 da LACP, e, nesse particular, este trabalho visa analisar se essa alteração é válida e se, em sendo válida, em que medida vigora essa validade.

Pois bem, conforme mencionado, os direitos transindividuais propriamente ditos (difusos e coletivos) são indivisíveis, ou seja, não é possível dividir a titularidade do direito em questão. A lesão aos direitos difusos ou coletivos afeta todos os titulares desses direitos,

16 Conforme OLIVEIRA, James Eduardo. Código de Defesa do Consumidor: Anotado e comentado doutrina de jurisprudência. SP: Atlas. 2. ed. 2005. P. 434.

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do mesmo modo que o cumprimento destes beneficia a todos os seus titulares. Por isso é que uma pessoa, isoladamente, mesmo que afetada pelo descumprimento de um direito difuso ou coletivo, não tem legitimidade para defender esses direitos, afinal, pela sua pró-pria natureza, tal direito não pertence apenas a essa pessoa, mas a toda a coletividade (por isso chama-se transindividual, pois transcende ao indivíduo). É por essa razão que se pode entender que, nos casos de defesa dos direitos difusos e coletivos, a legitimidade ativa é do tipo ordinária, como aponta a doutrina17. Por conta disso, eventual limitação territorial a restringir os efeitos erga omnes não tem aplicabilidade prática em relação a tais direitos, pois tanto o autor (que seriam todos os titulares de tais direitos, dada a característica da indivisibilidade) como o réu estão sujeitos aos efeitos da sentença e à autoridade da coisa julgada, não importa onde estiverem, pois, no caso da parte ativa (autor da ação), é como se os titulares dos direitos difusos e coletivos tivessem ajuizado a ação.

Neste sentido, uma sentença proferida em sede de ação civil pública pela qual se determine ao réu, por exemplo, que retire do ar propaganda televisiva considerada nociva às crianças e adolescentes, teria validade em todo o território no qual essa propaganda for veiculada, seja porque o réu fez parte do processo e, neste sentido, submete-se aos efeitos da sentença, esteja onde estiver, seja porque devem ser considerados autores (em face da legitimidade ordinária) todos os titulares de tais direitos, isto é, todas as crianças e adoles-centes que, eventualmente, por uma situação fática, venham a assistir televisão.

O mesmo pode-se mencionar em relação ao caso de uma ação civil pública que vi-sasse anular a prova aplicada no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Está-se diante de direito coletivo (grupo de estudantes de ensino médio). Assim, muito embora a ação viesse a ser proposta em determinada vara da Justiça Federal (bastando que no território de jurisdição dessa vara tivesse havido o dano – no caso, a aplicação da prova), os efeitos de eventual decisão teriam validade em relação a todos os estudantes de ensino médio (ainda mais sendo um exame nacional), inclusive para aqueles não domiciliados no terri-tório do órgão prolator, pois, do contrário, haveria quebra da indivisibilidade de tal direito coletivo, o que não se coaduna com a própria natureza jurídica de tal espécie de direito.

Neste sentido, se o direito pertence a todos (ou ao menos a um grupo determinável de pessoas, conjuntamente), a decisão acerca da situação litigiosa que envolve o direito (transindividual) deve abranger a todos, tornando-se imutável, em princípio, para as par-tes do processo (autor legitimado e réu) e para as partes em sentido material (todos os titulares dos direitos transindividuais).

Parece-nos que foi por conta disso, inclusive, isto é, pelo alcance dos efeitos das decisões proferidas em ação civil pública, que, a fim de evitar decisões conflitantes, a pró-pria LACP, em seu art. 2º, estabeleceu que a competência seja funcional (querendo signi-ficar absoluta), devendo ser proposta no foro do local onde ocorrer o dano (no caso dos

17 MANCUSO, Rodolgo de Camargo. Ação Civil Pública em defesa do Meio Ambiente, do Patrimônio Cultural e dos Consumidores: Lei 7.347/85 e legislação complementar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 8. ed. 2002. P. 122.

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exemplos citados, em todo o local onde a propaganda televisa for exibida, ou em todos os locais onde a prova do Enem for aplicada), sendo que por outro lado, o parágrafo único do artigo mencionado estabeleceu que “A propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto.”

Assim, no caso de direitos difusos e coletivos, a sentença atingirá todos os titula-res de tais direitos, independentemente dos limites da competência territorial do órgão prolator, bastando que neste território também ocorra o dano, resolvendo-se eventuais pedidos idênticos deduzidos em outros juízos com jurisdição territorial diversa pelo cri-tério da prevenção.

De outro norte, no que tange aos direitos individuais homogêneos, parece apro-priado entender que a restrição quanto aos limites territoriais da coisa julgada erga omnes é válida e eficaz, pois, neste caso, tem-se, de fato, uma legitimação extraordinária, já que os titulares são pessoas determináveis individualmente, as quais são substituídas pelas entidades legitimadas à propositura de ações civis públicas por considerar, o legislador, adequada e eficaz a tutela coletiva.

Antes, qualquer pessoa que fosse titular de interesse individual homogêneo e es-tivesse incluída na qualidade de substituída processual, independentemente do local em que residisse, poderia beneficiar-se. Agora, contudo, está em vigor restrição à substituição processual dos titulares de interesses individuais homogêneos, no sentido de apenas be-neficiar as pessoas que estejam na esfera da competência territorial do órgão judicial.

A propósito, para elucidar essa nova restrição à substituição processual é que foi editada a Medida Provisória 2.180-35/2001, que incluiu o artigo 2º-A à Lei 9.494/97, de modo a esclarecer que: “A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator.”

Embora efetivamente tenha havido restrição quanto ao alcance das pessoas que poderiam ser beneficiadas com a sentença coletiva, não se pode deixar de considerar que se manteve a possibilidade de os titulares de interesses individuais homogêneos ajuizarem as ações que entenderem pertinentes, individualmente, sem contar que qualquer dessas pessoas pode ser substituída por entidades a patrocinar ações civis públicas no foro em que tenha domicílio.

Por essa linha de raciocínio, mostra-se apropriado entender que os argumentos que sustentam a tese da invalidade da inovação legislativa por inconstitucionalidade ma-terial (ofensa ao art. 5º, XXXV, da CF) não subsistem, pois como os interesses indivi-duais homogêneos não passam de interesses materiais individualizados que podem ser coletivamente defendidos numa mesma sede processual, a simples restrição a que seus titulares sejam substituídos por alguma das entidades legitimadas a ingressar com ação civil pública não atinge o núcleo essencial da garantia prevista no inciso XXXV do art. 5º

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da Constituição Federal, conquanto integralmente preservado o direito à propositura de ações individuais, tanto que, no caso de o resultado da ação coletiva para a defesa de di-reito individual homogêneo ser desfavorável aos titulares desses direitos (improcedência do pedido), restou assegurada a propositura de ação a título individual, conforme expres-samente prevêem os §§ 2º e 3º do art. 103 do CDC.

Diante de todas essas considerações, pode-se concluir que a alteração do art. 16 da LACP, no sentido de restringir os efeitos da coisa julgada erga omnes aos limites da com-petência territorial do órgão prolator, é válida e eficaz, tendo aplicação concreta, contudo, apenas no que tange aos direitos individuais homogêneos, já que, quanto aos direitos difusos e coletivos, a restrição não se aplica ante a natureza transindividual e indivisível dos titulares de tais direitos.

Ao encerrar, é preciso consignar, ainda, em que casos a restrição se aplica para os direitos individuais homogêneos, ante a existência harmônica, recíproca, mas, como vis-to, independente, dos microssistemas consubstanciados na LACP e no CDC.

É que, como se vê das respectivas legislações, a restrição da coisa julgada erga om-nes aos limites da competência territorial do órgão prolator ocorreu apenas da LACP (art. 16). Quanto ao CDC, o art. 103 não faz tal restrição, limitando-se a dizer que os efeitos são erga omnes ou ultra partes.

Por outro lado, justamente para deixar claros os limites da competência territorial do órgão prolator, o art. 93 do CDC tratou de definir o juízo competente nos casos de dano regional ou nacional, sendo a competência, nestes casos, absoluta, dada a relevân-cia dos efeitos práticos da sentença coletiva e a própria disposição do art. 2ª da LACP (aplicável ao CDC, e esclarecendo que a competência é funcional, com a intenção de torná-la absoluta).

Portanto, embora não haja restrição, no CDC, aos limites territoriais, acaso o dano seja regional ou nacional, e se queira, de fato, beneficiar a todos (erga omnes), é preciso que o ajuizamento da ação ocorra nas capitais dos Estados ou no Distrito Federal, ante o que dispõe o inciso II do art. 93 do CDC.

Desse modo, pode-se compreender que, por não haver restrição aos limites terri-toriais no CDC, em relação aos direitos individuais homogêneos relativos à relação de consumo, também não se aplica a restrição do art. 16 da LACP, de modo que se o ajuiza-mento da ação observar a regra de competência prevista no art. 93 do CDC, beneficiará a todos, mesmo que fora dos limites da competência territorial do órgão prolator, por expressa previsão legal.

Já no caso de outros direitos individuais homogêneos (que não se caracterizam como sendo uma relação de consumo), de fato a restrição do art. 16 da LACP deve ocorrer.

– Rafael Brüning – Fernando Francisco Alfonso Fernandez –

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Considerações Finais

Em síntese da exposição, pode-se concluir que: (a) a expressão “coisa julgada erga omnes”, embora possa ser considerada como não sendo de boa técnica legislativa e pro-cessual, teve o objetivo de delimitar a eficácia da sentença (efeitos) em relação aos sujei-tos que ficam abrangidos por decisão judicial definitiva proferida em ação civil pública; (b) quanto aos sujeitos que compuseram a relação processual da ação civil pública, a obrigatoriedade da decisão provém dos limites objetivos e subjetivos da própria coisa julgada, independentemente dos efeitos erga omnes; (c) a limitação territorial ao efeito erga omnes contida no novo art. 16 da LACP é válida e eficaz (não havendo inocuida-de ou inconstitucionalidade formal ou material), representando restrição à substituição processual em face dos titulares de interesses individuais homogêneos que não tenham domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator, mas não prejudica a eficácia da sentença proferida em ações civis públicas ajuizadas na tutela de interesses difusos ou coletivos, ante a natureza transindivual e indivisível de tais interesses; (d) em relação aos direitos individuais homogêneos, a alteração do art. 16 da LACP não se aplica acaso se trate de relação de consumo, pois neste caso a incidência é do CDC, que não estipulou essa restrição, embora tenha previsto regra diversa da LACP no que tange ao foro competente nos casos de dano regional ou nacional; (f) nos demais casos de direitos individuais homogêneos (não caracterizados como relação de consumo), a alteração do art. 16 da LACP aplica-se integralmente.

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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 141

AS PRINCIPAIS MODIFICAçõES DECORRENTES DAS LEIS Nº 11. 232/2005 E Nº 11.382/2006 DIANTE DO

PRINCíPIO DA CELERIDADE PROCESSUAL:VINCULAçãO DO PODER LEGISLATIVO

THE MAIN CHANGES ARISING UNDER THE LAWS NO 11.232/2005 AND 11.382/2006. BEFORE THE PRINCIPLE

OF PROMPTNESS: LINKING THE LEGISLATIVE BRANCH

Rachel bressan Garcia Mateus1

RESUMO: O presente artigo foi extraído do trabalho monográfico elaborado para obtenção do título de Pós-Graduação em Processo Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL em convênio com a Escola Superior da Magistratura Catarinense - ESMESC. O texto sintetiza as principais modificações decorrentes da Lei nº 11.232/2005 e da Lei nº 11.382/2006 introduzidas no processo de execução cível, e correlacionadas com a busca pela celeridade processual. O objetivo é desta-car quais mudanças introduzidas pelo legislador pátrio estão em consonância com o direito fundamental à duração razoável do processo, direito inserido na Constitui-ção Federal de 1988 pela Emenda Constitucional 45/2004, bem como quais delas em nada contribuíram ou até prejudicaram a efetivação deste princípio. Para se atingir o fim colimado, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, por meio de consulta a livros, periódicos, revistas e à internet. O trabalho incorporou três fases distintas: breve abordagem da atual estrutura política do Poder no país, com ênfase ao Poder Legis-lativo, posterior análise do princípio da celeridade processual e o direito fundamen-tal à duração razoável do processo, finalizando-se com a indicação das principais modificações legislativas no processo de execução ante o princípio da celeridade processual. Do presente estudo, pode-se concluir que algumas modificações proces-suais, introduzidas pelas leis comentadas, estão em consonância com o princípio da celeridade processual, mas outras nada trouxeram de novo ao ordenamento proces-

1 Pós-graduada em Processo Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina em convênio com a Escola Superior da Magistratura do Estado Santa Catarina, Oficial de Justiça na Comarca de Tubarão/SC. Email: [email protected].

– As Principais Modificações Decorrentes das Leis nº 11. 232/2005 e nº 11.382/2006 diante do Princípio da Celeridade Processual:Vinculação do Poder Legislativo –

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sual pátrio, ou pior, constituíram-se em entraves para o regular andamento dos fei-tos execucionais. Dessa forma, o legislador pátrio observou parcialmente o princípio da celeridade quando da elaboração, discussão e aprovação das leis analisadas.PALAVRAS-CHAVE: Poder Legislativo. Princípio da Celeridade. Morosidade do Judiciário. Lei nº 11.232/2005. Lei nº 11.386/2006.ABSTRACT: This article is an excerpt from the monograph work, prepared for the acquisition of the title of Post-Graduate in Civil Studies Procedure by the University of Southern Santa Catarina – UNISUL in partnership with the School of Magistrates of the state of Santa Catarina – ESMESC. The text summarizes the main changes introduced by law no. 11.232/2005 and law no. 11.382/2006, introduced in civil enforcements proceedings and co-related to the search for speedy process. The aim is to highlight what changes introduced by the legislator are patriotic in line with the fundamental right to reasonable process duration, right, that was inserted in the Federal Constitution of 1988 by the Constitution Amendment 45/2004, and which of them contributed nothing and even undermined the effectiveness of this principle. To achieve the desired end, we performed a literature search, by consulting books, newspapers, magazines and the internet. The paper incorporated three distinct phases: a brief overview of the current political structure of power in the country, emphasizing the Legislature, subsequent analysis of the principle of promptness and the fundamental right to reasonable length of process, finally ending with the main legislature changes in the implementation process forward to the principle of promptness. Based on this study we can conclude that some procedural changes introduced by the commented laws, are in line with the procedure of promptness, but others have brought nothing new to the procedure law of the country, or worse, it consisted in obstacles for the smooth executional process. This way the legislature partially observed the principle of promptness in drafting, debating and approving the analyzed laws. KEYWORDS: Legislative Branch. Principle of Speed. Slowness of the System. Law no. 11.232/2005. Law no. 11.386/2006.

1. Introdução

A lentidão dos feitos que tramitam no Poder Judiciário é um dos temas mais dis-cutidos na atualidade. A busca por mecanismos que possam acelerar a resolução dos con-flitos sociais postos em juízo é um dos maiores anseios dos juristas e pesquisadores do direito. Dentro dessa perspectiva, o tema em estudo tem como fundamento a análise da observância do direito fundamental à duração razoável do processo nas mais recentes modificações introduzidas ao processo de execução.

A Emenda Constitucional nº45/2004, acompanhando uma tendência moderna de reforma do sistema jurisdicional como um todo, surgiu no campo constitucional como um importante marco no sistema processual brasileiro e introduziu no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal de 1988, de maneira expressa, o direito fundamental denomina-do “duração razoável do processo”.

– Rachel Bressan Garcia Mateus –

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Porém, para que se consiga efetivamente dar celeridade ao procedimento e finalizar o litígio de forma a satisfazer os interesses das partes num menor espaço de tempo, não basta somente a modificação estrutural do Poder Judiciário. O magistrado, no andamento do feito, aplica as regras estabelecidas por lei aos procedimentos judiciais. Nesse sentido, o Poder Legislativo, ente competente no ordenamento jurídico pátrio pela elaboração das leis, deve fazê-las de forma clara e priorizando mecanismos que possibilitem ao juiz dar maior celeridade ao processo.

Antes mesmo da Emenda nº 45/2004 entrar em vigor, o Código de Processo Ci-vil já vinha sofrendo inúmeras modificações para atender aos princípios constitucionais instituídos desde 1988. Modificações como a tutela antecipada, medidas cautelares ino-minadas, possibilidade de julgamento unitário de diversas ações, julgamento antecipado de recursos, o tratamento dado às nulidades, a informatização do processo judicial, já demonstravam a preocupação do legislador nesse sentido.

Com o processo de execução não poderia ter sido diferente. Excessivamente morosos e travados de recursos e petições, demasiadamente formais, os processos de execução de títulos judiciais e extrajudiciais por anos se arrastavam sem a efetiva satisfação do credor.

Com intuito de modificar esse quadro, surge a Lei nº 11.232/05, regulamentando o sistema de liquidação e cumprimento de sentença e em seguida é aprovada a Lei nº 11.382/06, reformulando o processo de execução de títulos extrajudiciais.

Embora se acredite que os institutos trazidos pelas novas leis aceleraram, como um todo, o processo de execução, há que se analisar se realmente tais modificações trouxe-ram resultados positivos no que dizem respeito ao atendimento do direito fundamental à duração razoável do processo e, com isso, perceber se o Poder Legislativo atentou para tal preceito quando da elaboração e aprovação das referidas leis.

As mudanças estruturais apresentadas pelas novas leis foram de grande monta, ra-zão pela qual o presente estudo elencou, da forma mais didática possível, algumas das principais modificações, visando facilitar a aprendizagem e permitir que todos, sejam ju-ristas ou leigos, possam entender um pouco mais sobre o atual processo de execução civil brasileiro, pois, embora as duas leis em comento já estejam em vigor há alguns anos, mui-tas divergências e dúvidas interpretativas ainda surgem entre os aplicadores do direito.

2. As Principais Modificações Decorrentes das Leis nº 11.232/2005 e nº 11.382/2006 Diante do Princípio da Celeridade Processual: Vinculação do Poder Legislativo

Num Estado Democrático de Direito, as leis que regem as relações entre os parti-cipantes da sociedade são aquelas democraticamente constituídas, nas formas previstas no ordenamento pátrio, elaboradas e discutidas pelo Poder Legislativo, que têm, em sua estrutura, pessoas legitimamente eleitas pelo povo para representar a manifestação de suas vontades.

– As Principais Modificações Decorrentes das Leis nº 11. 232/2005 e nº 11.382/2006 diante do Princípio da Celeridade Processual:Vinculação do Poder Legislativo –

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Por outro vértice, o Poder Legislativo se desenvolve nas três esferas federativas: União, Estados e Distrito Federal, e Municípios. No que diz respeito à competência para legislar sobre matéria processual, a Constituição tratou de elencar a competência privati-va da União (art. 22, I, da CF/88), mas permitiu aos Estados legislar sobre procedimento em matéria processual (art. 24, XI, da CF/88). Dessa forma, todo projeto de lei que tenha como finalidades modificar as disposições concernentes ao código de processo civil brasi-leiro, é de ser aprovado pelo Congresso Nacional, por meio de suas duas casas.

Os passos para o nascimento de uma lei ordinária, espécie normativa que, em re-gra, rege a legislação processual civil, são cinco: iniciativa, discussão, votação, sanção ou veto, promulgação e publicação. Destaca-se, nesse ínterim, o trabalho importante rea-lizado pelas comissões permanentes, as quais examinam o projeto de lei sob o enfoque material, no que diz respeito ao seu conteúdo e ainda sob o enfoque formal, ou seja, se para sua elaboração seguiu-se a forma prevista na Constituição. Importante porque a rea-lização eficaz desse controle prévio evita a edição de normas inconstitucionais e, com isso, impede o repasse da tarefa ao Poder Judiciário. Caso contrário, o Poder Judiciário terá de realizar o controle concentrado ou difuso da constitucionalidade, aumentando o número de processos em seus Órgãos e, consequentemente, o acúmulo de serviço.

O próprio Estado que cria as leis, também se submete a estas, daí advém o termo “Estado Democrático de Direito”. Democrático, pois legitimamente constituído, e de Di-reito, pois regido por normas criadas por pessoas legitimamente eleitas pelo povo, de quem emana o Poder Soberano.

Para Canotilho (apud DUARTE; GRANDINETTI, 2006, p. 31),

[...] existe uma vinculação do legislador, visto que há uma dimensão que veda às entidades legiferantes a possibilidade de criarem atos legislativos contrários às normas e princípios constitucionais, isto é, proíbe a emanação de leis inconstitucionais lesivas de direitos, liberdades e garantias.

Em que pese a Emenda Constitucional nº 45 de 2004 ter recebido o título de “Re-forma do Judiciário”, as modificações introduzidas não dizem respeito somente e esse Poder. É o que se extrai do artigo 7º da referida Emenda, o qual estabeleceu o prazo de 180 dias para o Congresso Nacional, por uma comissão mista, elaborar, entre outros, projetos de lei destinados a promover alterações na legislação federal objetivando tornar mais am-plo o acesso à justiça e mais célere a prestação jurisdicional (WINDT, 2008, p. 129).

Para Silva (apud MEDINA, 2005, p. 97),

[...] a norma contida no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição, pertence à categoria das normas constitucionais de princípio institutivo, tendo caráter impositivo, uma vez que o constituinte, ao estabelecê-la, traçou o leque geral de estruturação do processo, determinando ao legislador ordinário, em termos peremptórios, ‘emissão de uma legislação integrativa desse esquema’.

Assim, não há, pois, como negar a vinculação do Poder Legislativo na árdua tarefa de elaborar e controlar a elaboração de leis infraconstitucionais que venham a modificar o ordenamento jurídico brasileiro, sempre atentando para a constitucionalidade das nor-

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mas, já que, assim como os demais Poderes, está subordinado aos princípios constitucio-nais pátrios, entre os quais o princípio da celeridade processual.

Garantir uma solução judicial célere significa respeitar o direito fundamental de acesso à justiça e ainda efetivar os ditames do Estado Democrático de Direito.

A Constituição Federal, ao estabelecer, expressamente, o direito fundamental à du-ração razoável do processo, não ditou conceitos nem delimitou seu alcance, tarefa deixada para os pensadores, legisladores e aplicadores do direito. Resta, pois, estabelecer breves parâmetros para o termo “duração razoável do processo”.

Em linhas gerais, duração razoável é o tempo suficiente para a completa instrução processual e adequada decisão do litígio e, da mesma forma, capaz de prevenir danos con-sequentes da morosidade da justiça, assegurando a eficácia da decisão (DUARTE; GRAN-DINETTI, 2006, p. 32).

Porém, deve-se atentar para o fato de que o direito fundamental à razoável duração do processo deve ser medido e sopesado com observância ao princípio do devido processo legal. Logo, o devido processo legal e a celeridade processual devem caminhar juntos, já que um é a realização do outro, conforme bem ensina Cortês e Magalhães (2006, p. 86):

A inserção, na Carta Política, do inciso LXXVIII, ao alço expressamente a nível constitucional a exigência da celeridade no acesso à justiça, dá maior importância à garantia, pois, como já visto, esse direito de ação constitucionalmente previsto realiza o devido processo legal no sentido processual.

Na realidade, é necessário que se garantam os direitos processuais fundamentais das partes e se eliminem procedimentos, fases e recursos inócuos, que só emperram o Poder Judiciário e servem para dificultar a solução do litígio num prazo razoável. Os pra-zos estabelecidos por lei devem ser tais que sirvam para cumprimento dos atos a que se destinem, não se prolongando demasiadamente, sem necessidade.

O que deve ser observado é o litígio, caso a caso, e suas peculiaridades. Não se pode considerar um mesmo patamar de razoabilidade para diferentes tipos de procedimentos postos em juízo. Dessa forma, a abrangência do direito à duração razoável do processo deve ser maior ou menor, dependendo do caso concreto:

A partir dessas premissas, o caráter razoável da duração de um processo sem dilações indevidas deve ser apreciado conforme as circunstâncias particulares da espécie concreta em julgamento, levando-se em conta três critérios principais, quais sejam, a complexidade das questões de fato e de direito discutidas no processo, o comportamento das partes e de seus procuradores e a atuação dos órgãos jurisdicionais (DIAS, 2005, p. 120).

Dado isso, tem-se que os processos de cognição sumária, cautelar e execução, por não serem complexos, não comportam dilações indevidas (DIAS, 2006, p. 120).

Mas, mesmo estabelecida a duração razoável do processo como direito fundamen-tal e a celeridade processual como princípio constitucional, resta saber se, sob a proteção constitucional, até que enfim a Justiça cumprirá com o honroso mister de entregar a cada

– As Principais Modificações Decorrentes das Leis nº 11. 232/2005 e nº 11.382/2006 diante do Princípio da Celeridade Processual:Vinculação do Poder Legislativo –

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um o que é seu de maneira célere, questiona Luchezi. Para este doutrinador, “isso só será possível desde que ocorra uma profunda reforma processual, principalmente no Processo Civil e a cultura do recurso seja amenizada (2005, p. 64).

Não há mais como se negar a natureza constitucional do princípio da celeridade processual. Devem-se, pois, a partir dessa declaração expressa, encontrar meios legais para efetivar esse comando tão sonhado, para que não passe de mera “letra morta” no ordenamento constitucional pátrio.

Na seara das modificações processuais por que vinha passando o código de pro-cesso civil, em 22 de dezembro de 2005 foi aprovada a Lei nº 11.232, a qual modificou substancialmente o procedimento para execução de títulos judiciais. Um ano após, em 6 de dezembro de 2006, surge a lei nº 11.382, reformulando todo o processo de execução de título extrajudicial. Tais leis são aqui objetos de uma análise pormenorizada, sob o enfo-que da constitucionalidade de seus dispositivos diante do princípio da celeridade proces-sual e do direito fundamental à duração razoável do processo, a fim de se constatar se o legislador pátrio atendeu a tais preceitos constitucionais quando de suas elaborações.

2.1. Das Modificações Introduzidas pela Lei nº 11.232/2005 na Execução Judicial

No que diz respeito à primeira mudança estrutural no procedimento da execução judicial realizada pela Lei nº 11.232/2005, nada de novidade material introduziu-se ao ordenamento jurídico pátrio. O legislador somente transferiu o rol dos arts. 639 ao 641 do CPC para o Livro I (Processo de Conhecimento), acrescentando-se os arts. 466-A, 466-B e 466-C, permanecendo seus dispositivos inalterados.

Ocorre, porém, que as modificações estruturais trouxeram lacunas aos institutos das obrigações de fazer, não fazer e dar coisa certa, os quais ficaram sem complementos legais indispensáveis, exigindo-se uma interpretação extensiva para aplicação dos dispo-sitivos correlatos.

Sobre essa falta de visão sistêmica do legislador, adverte Bondioli (2006, p. 81):

Destaque-se que os arts. 461 e 461-A são insuficientes para regular o cumprimento da sentença que reconhece obrigação de fazer, não fazer ou entrega de coisa. Eles não tratam da execução provisória, da defesa do devedor, das obrigações reconhecidas fora do processo civil nem da competência para o cumprimento da sentença. E isso acentua a falta de visão sistemática.

Logo, a lacuna do legislador por certo atrapalhará o curso normal destes proce-dimentos, os quais antes tanta agilidade tinham trazido ao processo de execução pela coercibilidade de seus institutos.

Houve também mudanças significativas no procedimento de liquidação: a primeira se trata da transformação da liquidação em uma fase do processo de conhecimento, não mais como processo autônomo; a segunda decorre da mera intimação do procurador do

– Rachel Bressan Garcia Mateus –

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executado acerca da liquidação apresentada, sem a citação do réu para se defender dos cálculos apresentados; a terceira extrai-se de natureza de sua decisão, que agora desafia agravo de instrumento, não mais apelação; a quarta trata-se da possibilidade de realização do processo liquidatório, mesmo na pendência de recurso recebido com efeito suspensi-vo; e, por fim, da quinta mudança, destaca-se a obrigatoriedade de sentenças líquidas em determinados tipos de ação.

Quanto à liquidação na pendência de recurso, a intenção do legislador deve ter sido a das melhores, mas na prática pode ser que aquilo que se quis agilizar nada valha após a decisão do recurso interposto, denotando assim um desperdício de tempo e uso desne-cessário da máquina do Judiciário, desprestigiando a celeridade processual tão almejada pela reforma.

Por outro vértice, não se pode negar que a proibição, em determinados casos, de sentença ilíquida, sem dúvida trará maior rapidez ao procedimento, evitando-se, assim, toda a fase desgastante da liquidação.

Mesmo com as mudanças introduzidas nesse instituto, a liquidação de sentença ainda é alvo de severas críticas pela doutrina, que a reputa uma fase que só conduz a ine-fetividade e morosidade do processo, e que poderia ter sido excluída do plano processual (SANTOS, 2006, p. 124).

Importante ressaltar ainda que as regras do art. 475- I ao art. 475- R, do CPC, não dizem respeito, ao contrário do que uma primeira leitura poderia evidenciar, ao ‘cumpri-mento da sentença’ no sentido de qualquer sentença. As regras aí introduzidas são bem mais restritas. Elas se voltam, basicamente, ao cumprimento de uma específica classe de sentença, aquela que determina o pagamento em dinheiro (BUENO, 2006, p. 74).

Dessa forma, o cumprimento de sentença das obrigações de fazer, não fazer e dar coisa certa far-se-ão nos termos do que dispõem os artigos 461 e 461-A e, tratando-se de obrigação por quantia certa, aplica-se o artigo 475-I e seguintes.

Novamente a falta de conhecimento estrutural do código, pelo legislador, trará in-terpretações equivocadas, ensejando a aplicação errônea do procedimento, permitindo a nulidades de atos, e consequentemente, morosidade ao procedimento.

Mas as críticas à reforma legislativa não são somente dessa ordem. Para muitos doutrinadores, o legislador nada ou muito pouco de novo introduziu à antiga execução de título judicial, que trouxesse a tão almejada celeridade, pois basicamente repetiu todos os seus artigos (THEODORO JÚNIOR, 2006, p. 305).

Poderia o legislador realmente transformar todo instituto para satisfação das obriga-ções de pagar quantia certa se a tivesse feito nos termos dos avanços já trazidos pelas exe-cuções de obrigação de fazer, não fazer e de dar coisa certa (SILVA; XAVIER, 2006, p. 89).

Logo, mesmo que a legislação tenha eliminado a ação autônoma de execução de título judicial, a expropriação ainda permanece como forma de satisfazer o direito do

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credor e, mesmo com algumas mudanças legislativas, o instituto como um todo é moroso à efetividade do processo.

No que tange especialmente ao cumprimento de sentença, estabelece o artigo 475-J, “caput”, do CPC, caso o devedor não pague o valor devido após o trânsito em julgado da sentença no processo de conhecimento, ou o valor fixado em liquidação, no prazo de quinze dias, o montante será acrescido de multa de dez por cento e, a requerimento do credor, expedir-se-á mandado e penhora e avaliação.

Nesse sentido, reconhece-se que tal mudança efetuada pelo legislador ordinário vem ao encontro do princípio da celeridade, já que antes, por vezes, após a sentença de-finitiva, o devedor não era mais encontrado, furtando-se a honrar seus compromissos. A citação pessoal, na execução, sempre foi fator de entrave para a agilidade do processo (AURELLI, 2006, p. 24).

Ainda sobre o referido instituto, o artigo 475-J, “caput”, do Código de Processo Civil Brasileiro, além de outras inovações, trouxe, pela primeira vez ao ordenamento jurídico execucional, a figura da multa coercitiva, ou seja, caso o devedor não efetue o pagamento do valor devido no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa, no percentual de dez por cento.

Boa parte da doutrina defende que a inserção de um meio coercitivo para incen-tivar o devedor a cumprir espontaneamente a obrigação em que restou condenado em sentença, com certeza terá o condão de trazer agilidade e efetividade ao processo, tendo sido esta a intenção do legislador (BUENO, 2006, p. 83).

Mas, em que pese a boa intenção legislativa apresentada, o mecanismo criado não será de todo eficiente, já que o legislador atribuiu a multa um percentual fixo, ou seja, para todo e qualquer caso de inadimplemento, após o transcurso do prazo de quinze dias, se terá um acréscimo de 10% sobre o valor da condenação (ROSA, 2006, p. 494-495).

O estabelecimento de um percentual fixo de multa pelo legislador poderá trazer mais morosidade ao processo, já que, no caso concreto, ao devedor possa ser mais vanta-joso inadimplir e usar seu patrimônio para aplicações diversas que lhe tragam mais renta-bilidade. Por outro lado, para um devedor que tenha um baixo padrão de vida, a aplicação da multa num patamar de dez por cento pode significar o desincentivo em quitar um débito relativamente pequeno.

Ainda acerca dos equívocos legislativos a esse instituto, a doutrina critica o dis-posto no §4º do artigo 475-J, na qual o legislador abriu, ao devedor, a possibilidade de ter uma redução de sua penalidade, caso não queira quitar a dívida por completo, ou seja, o preceito em questão deixa entrever o absurdo, em que, embora deva o executado efetuar o pagamento integral, possa fazer um pagamento parcial, sujeitando-se, então, à incidência de multa de 10% sobre o restante, sobre o qual prosseguirá a execução, com multa redu-zida (ALVIM, 2006, p. 161).

– Rachel Bressan Garcia Mateus –

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Outro ponto de lacuna deixado pelo legislador e que traz severas discussões doutri-nárias e jurisprudenciais diz respeito ao início do prazo de quinze dias para pagamento do valor devido. Ao estabelecer a obrigação de pagar em quinze dias sob pena de aplicação de multa de dez por cento, o legislador ordinário nada se manifestou acerca do início da contagem desse prazo.

Diante dessa lacuna, a doutrina e a jurisprudência dividiram-se em duas posições. Aqueles que defendem que o início do prazo de quinze dias já começa do trânsito em julgado da sentença condenatória ou da decisão de liquidação, e outros que defendem a necessidade de intimação do executado, após o trânsito em julgado, para que inicie o referido prazo (YARSHELL; BONÍCIO, 2006, p. 29).

Outra novidade inserida pela Lei nº 11.232/2005 ao cumprimento de sentença é a concentração de atos. Deferida a execução, expede-se mandado de penhora e avaliação, com a simples intimação do advogado do executado acerca do auto de penhora e avaliação e não mais citação, penhora, e avaliação em momento posterior. Nesse sentido, procurou o legislador evitar a má-fé do executado que, sob o manto da necessidade de intimação pessoal, manipulava o andamento do feito, esquivando-se para não ser encontrado.

Porém, nos casos em que a penhora e avaliação já se dão na presença do executado, claro que sua intimação pessoal será mais célere.

Ainda em sede de celeridade processual, faz-se necessário destacar que, para que se inicie o prazo de quinze dias para impugnação, basta a intimação do procurador ou do executado, conforme o caso, reduzindo-se, assim, o prazo, que antes se iniciava com a juntada do mandado aos autos.

Muito se discute sobre silêncio acerca da possibilidade ou não de nomeação de bens à penhora pelo devedor, quando da expedição do mandado de penhora.

Boa parte da doutrina entende que essa omissão foi proposicional, com vistas a eliminar o instituto do procedimento, pois a nomeação de bens pelo executado era uma forma de burlar-se o cumprimento da obrigação, já que na prática o devedor normal-mente nomeava bens de baixa comercialização, procrastinando o andamento do feito (CARNEIRO, 2006, p. 83). Porém, existem aqueles que ainda defendem a possibilidade da nomeação de bens pelo executado (SILVA; XAVIER, 2006, p. 93).

Não há como negar que a eliminação da nomeação de bens à penhora pelo legisla-dor ordinário se trata de medida que visa exatamente coibir o devedor de procrastinar o feito por meio da nomeação de bens de pouca valia. Até mesmo porque, ao credor, cabe a indicação de bens à penhora e, caso não os tenha encontrado, nem tão pouco o Oficial de Justiça, o magistrado poderá intimar o devedor, para, aí sim, indicar quais são seus bens passíveis de penhora. Nesse sentido, privilegia-se a busca da satisfação do credor, através de sua indicação, até mesmo porque poderá adjudicar o bem penhorado e extinguir de forma célere a execução, indicando assim o bem que lhe tenha maior serventia.

– As Principais Modificações Decorrentes das Leis nº 11. 232/2005 e nº 11.382/2006 diante do Princípio da Celeridade Processual:Vinculação do Poder Legislativo –

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O legislador criou ainda uma nova função ao Oficial de Justiça nas execuções de pa-gar quantia certa, qual seja, a função Avaliador, tal como já ocorria nos Executivos Fiscais.

De Paula (2006, p. 365) defende que tal medida trará mais agilidade aos processos:

Também a celeridade está presente ao determinar que o oficial de justiça fará a penhora e a respectiva avaliação do bem, e que somente não o fará se para tal depender de conhecimento especializado, quando o juiz nomeará um avaliador para tal encargo (art. 475 – J, parágrafo 2). [...] Ocorrendo a avaliação logo após a penhora, terá o oficial de justiça e, em última análise, o credor, a possibilidade de examinar a necessidade de se realizar ou não reforço de penhora, antes de qualquer impugnação pelo devedor, o que significaria que a impugnação poderá abranger eventuais nulidades acerca do reforço da penhora.

Percebe-se que a maior ou menor agilidade do feito em razão da avaliação a ser feita por Oficial de Justiça, dependerá do caso concreto. Tratando-se de bens de fácil ava-liação, com cotação no mercado, a avaliação feita por Oficial de Justiça, já logo depois da penhora, e ainda a conjunta intimação da avaliação e da penhora, diminuirá todo o trâmite processual.

Haverá, porém, bens de grande monta ou de difícil avaliação, que dependam de conhecimento especializado por parte do avaliador. Nesses casos, a lei prevê a devolução do mandado pelo Oficial de Justiça, para posterior nomeação de avaliador, confecção do laudo, e somente depois intimação acerca do valor atribuído ao bem, o que torna o procedimento mais moroso e, com certeza, mais custoso, uma vez que os honorários pe-riciais de profissionais credenciados nos órgãos de classe são sempre valores expressivos, inviabilizando o acesso à justiça. Cabe aos Tribunais dotar a classe dos Oficiais de Justiça de conhecimentos especializados nas áreas de avaliações de bens, a fim de aumentar sua capacidade de avaliação e, com isso, diminuir a necessidade de intervenção de peritos.

Ainda sobre as modificações introduzidas pela lei nº 11.232/05, cumpre ressaltar a eliminação da figura dos embargos à execução. Dessa forma, no procedimento para execu-ção de títulos judiciais, a defesa do devedor não se dá mais por ação autônoma, mas sim por meio de simples impugnação dentro dos próprios autos do processo de conhecimento.

Asseveram Silva e Xavier (2006, p. 97) que “a nova sistemática teve por intuito – novamente! - a celeridade do processo, tendo em vista que a tramitação de uma ação certamente demanda mais tempo do que mero incidente”.

Por outro vértice, no que diz respeito às matérias arguíveis em impugnação previs-tas no artigo 475-L, para Rosa (2006, p. 491), o legislador correu o risco de aumentar a incidência de exceção de pré-executividade, incidente que tinha exatamente a intenção de eliminar com a reforma.

Mas nem tudo são críticas, pois, dentro do rol do artigo 475-L, do CPC, merece destaque a inovação trazida pelo legislador quanto à necessidade de indicação do valor correto, em caso de alegação de excesso de execução, conforme estabelece seu §2º, o que influenciará efetivamente na agilidade do feito.

– Rachel Bressan Garcia Mateus –

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Logo, a lei eliminou a intenção do executado de procrastinar o feito, quando, em matérias de defesa, alegava excesso de execução somente para suspender o feito. Agora, caso se utilize desse meio, já deverá alegar o valor que entende devido, sob pena de inde-ferimento liminar.

Na esteira das mudanças processuais que visaram dar maior celeridade ao proce-dimento expropriatório, inova o legislador ao atribuir a regra do efeito não suspensivo da impugnação, diverso do que ocorria anteriormente, na qual os embargos tinham, como regra, o efeito de suspender a execução.

Agora para que se atribua efeito suspensivo à execução por meio de impugnação, o devedor terá que provar relevantes fundamentos, e, ainda, provar que o prosseguimento da execução será manifestamente suscetível de causar-lhe grave dano de difícil e incerta reparação, nos termos do que dispõe o artigo 475-M, “caput”, do CPC.

As normas que regem a execução provisória estão disciplinadas no artigo 475-O, do CPC. O instituto da execução provisória não é novidade no ordenamento jurídico pátrio, mas algumas modificações introduzidas pela Lei nº 11.232/2005 merecem destaque, quais sejam: a necessidade de caução para atos de alienação e eliminação da carta de sentença.

Essa caução é vista pela doutrina como um entrave à realização da execução provi-sória, pois, conforme bem salientam Silva e Xavier (2006, p. 145):

A exigência da prestação de caução para a alienação de bens ou levantamento de depósito em dinheiro praticamente inviabilizam tais atos em sede de execução provisória, por uma simples e incontestável razão: a maioria dos brasileiros não tem condições financeiras de prestar caução.

Essa regra, porém, não é absoluta, pois, no §2º do artigo 475-O, o legislador se antecipa em algumas medidas ao juízo em torno do caso concreto, e traz duas hipóteses de dispensa de caução (BONDIOLLI, 2006, p. 159): crédito de natureza alimentar ou de-corrente de ato ilícito até o valor de sessenta salários mínimos, e ainda nos casos em que penda agravo de instrumento nos tribunais superiores.

Mesmo considerando as exceções acima mencionadas, estas não abrangem a maio-ria dos objetos das execuções, permanecendo este instituto como um empecilho à efeti-vidade da prestação jurisdicional e à celeridade na tramitação do feito, equivocando-se, o legislador, em mantê-lo na execução provisória.

Ainda dentro da execução provisória, inovou o legislador ao eliminar a morosa carta de sentença para determinar que o procedimento deva se iniciar com simples cópias das peças processuais autenticadas pelo próprio advogado, dispositivo que traz uma fór-mula mais ágil e simplificada para a instauração da execução (BONDIOLI, 2006, p. 177).

Uma última mudança legislativa em destaque neste estudo, introduzida pela Lei nº 11.232/2005 como mecanismo de efetivação do princípio da celeridade processual e do direito fundamental à razoável duração do processo, diz respeito à possibilidade do cre-dor deslocar à execução para onde se encontrem os bens do devedor ou o seu domicílio. É o que estabelece o artigo 475-P, parágrafo único, do CPC.

– As Principais Modificações Decorrentes das Leis nº 11. 232/2005 e nº 11.382/2006 diante do Princípio da Celeridade Processual:Vinculação do Poder Legislativo –

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Sobre a agilidade trazida, comenta Bondioli (2006, p. 174):

A brecha aberta para que as atividades cognitivas e executivas se desenvolvam perante juízos distintos tem razão de ser. Com a permissão para que a execução se desenrole perante o juízo do local dos bens do executado ou do seu atual domicílio, o legislador procura acelerar a satisfação dos direitos, aproximando as atividades executivas de seu objeto, qual seja o patrimônio do devedor.

Resta analisar agora, de forma igualmente sucinta, as mudanças advindas da Lei nº 11.382/2006 à execução de títulos extrajudiciais, a fim de se constatar se a referida lei trouxe a esse procedimento mecanismos que possibilitassem agilizar, de maneira geral, o andamento do feito.

2.2. Das Modificações Introduzidas pela Lei nº 11.382/2006 na Execução Extrajudicial

Alvim (2006, p. 48), já de início, salienta que, com as novas modificações introdu-zidas pela Lei nº 11.382/2006,

O legislador do processo, que durante décadas prestigiou o devedor, estimulando a perpetuação da inadimplência, vem, de um momento para o outro, dando uma guinada de cento e oitenta graus, fazendo supor que, doravante, a execução passa a funcionar no interesse do credor.

A execução das obrigações decorrentes de títulos executivos extrajudiciais sofreu significativas mudanças por conta da aprovação da Lei nº 11.382/2006, das quais alguns pontos merecem especial atenção.

A primeira norma que se destaca na mudança estrutural para agilidade do sistema é a possibilidade de o devedor ser coagido a indicar, no prazo de cinco dias, quais são seus bens passíveis de penhora, sob pena de incorrer em ato atentatório à dignidade da justiça. É o que dispõe o artigo 600, IV do CPC.

No processo de execução, o que mais interessa ao credor é a localização de bens passíveis de penhora em propriedade do devedor, e tal medida tem essa finalidade, pois de nada adiantaria ao credor que o devedor comparecesse a todos os atos processuais, se, ocultando seus bens, não permitisse penhora e atos expropriatórios.

Outra novidade introduzida pelo legislador ordinário diz respeito à possibilidade de averbação da certidão comprobatória do ajuizamento da ação de execução no local onde se encontram registrados os bens do devedor, nos termos do artigo 615-A, “caput”, do CPC.

Essa medida visa, principalmente, evitar fraude à execução ou facilitar a sua compro-vação, já que as alienações após a averbação presumem-se fraudulentas, conforme estabele-ce ao § 3º do artigo em comento, evitando até ação autônoma para sua comprovação.

Com relação aos bens impenhoráveis dispostos no artigo 649, cumpre destacar a impropriedade trazida no inciso X quanto à impenhorabilidade da quantia depositada em caderneta de poupança até o valor de 40 (quarenta) salários mínimos, independente-

– Rachel Bressan Garcia Mateus –

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mente de sua origem, enquanto o inciso II, do mesmo artigo, permite a penhora dos bens móveis que guarnecem a residência e que sejam de elevado valor comercial, acima do padrão médio de vida. Dessa forma, enquanto os valores se encontram em caderneta de poupança, são impenhoráveis, mas assim que aplicados na aquisição de algum bem móvel para o interior da residência, mesmo que abaixo de quarenta mil reais, mas acima de um padrão médio de vida, passam a ser penhoráveis.

Por outro lado, para Alvim e Cabral (2007, p. 70), pecou o legislador também ao perder oportunidade de modificar a regra estabelecida no inciso IV do artigo 649 acerca da impenhorabilidade dos vencimentos do devedor:

O veto permite que situação injusta como a denunciada pelo Senº Fernando Bezerra, em seu relatório, se perpetue. Assim, um devedor que aufira proventos de R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) por mês não pode ter centavo algum de sua renda penhorado para pagar, por exemplo, um cheque de R$ 100,00 (cem reais) que tenha emitido para pagar compras no mercado do bairro. Mesmo que o credor tenha menor capacidade econômica que o devedor, terá que amargar o prejuízo, caso não sejam localizados bens deste suscetíveis de penhora, sendo vedada a penhora de parte do salário do devedor.

Assim, nos casos em que o executado, embora não constitua patrimônio com seus vencimentos, perceba mensalmente uma remuneração vultosa, furta-se legalmente ao pagamento. Poderia o legislador aí ter excetuado outros casos além daqueles referentes à pensão alimentícia.

Quanto ao procedimento em si, tem-se que, pela nova estrutura processual e nos termos do artigo 652, “caput”, do CPC, o executado será citado para, no prazo de três dias, efetuar o pagamento da dívida.

Dessa forma, nem sempre o aumento do prazo configura retrocesso na agilidade do feito. Pelo contrário, a norma em questão dilatou o prazo, que antes era de vinte e quatro horas, com vistas a possibilitar, efetivamente, que o devedor possa levantar o valor e quitar a dívida e, dessa forma, extinguir com brevidade a execução.

E, igualmente como se deu na Lei nº 11.232/2005, o legislador silenciou acerca da nomeação de bens à penhora pelo executado, mas ditando expressamente o direito do credor de, na inicial, indicar os bens a serem penhorados.

Acrescenta-se aqui a possibilidade de dispensa da intimação da penhora, caso o Oficial de Justiça não localize o executado (art. 652, §5º), inovação que certamente vai ao encontro do princípio da celeridade.

Mais adiante, no artigo 652–A, do CPC, mais uma vez inova o legislador ao esta-belecer a possibilidade de redução da verba honorária em caso de pagamento do valor dentro dos três dias, caracterizando um incentivo ao cumprimento da obrigação e à cele-ridade na extinção da execução (FUX apud ALVIM; CABRAL, 2007, p. 80).

Outro ponto a ser destacado diz respeito à mudança na ordem de preferência dos bens levados à penhora.

Sobre a mudança, bem comentam Fida e Albuquerque (2007, p. 64):

– As Principais Modificações Decorrentes das Leis nº 11. 232/2005 e nº 11.382/2006 diante do Princípio da Celeridade Processual:Vinculação do Poder Legislativo –

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Uma das grandes novidades trazidas por esta lei foi, justamente, a modificação da ordem de preferência dos bens penhoráveis, passando os veículos automobilísticos a assumirem, após o dinheiro, a segunda posição, dado a sua liquidez e facilidade de comercialização, andando bem o legislador, a nosso ver. No que tange ao dinheiro, a lei ampliou o conceito prevendo expressamente a possibilidade de se penhorar, em primeiro lugar, valores depositados ou aplicados em instituições financeiras. Por sua vez, em se tratando de crédito com garantia real, sobre a própria coisa dada em garantia recairá a penhora.

Assim, os veículos passam a ocupar a segunda posição, logo após a preferência sobre o dinheiro, o que não poderia ser diferente, pois são de muito fácil comerciali-zação, garantindo uma rápida expropriação, celeridade do feito e satisfação do credor num prazo razoável.

Por outro lado, o artigo 655-A, “caput”, do CPC, prescreveu que o juiz, a reque-rimento do credor, requisitará à autoridade supervisora do sistema bancário, preferen-cialmente por meio eletrônico, informações sobre a existência de ativos em nome do executado, podendo, no mesmo ato, determinar a indisponibilidade, até o valor indicado na execução

Segundo Rosa (2006, p. 477),

[...] quer nos parecer que é extremamente vantajoso para um melhor aproveitamento do sistema, haja visa que se trata de um procedimento que prima pela celeridade e evita que a lentidão e a formalidade dos atos processuais sejam utilizados pelos devedores de forma inidônea e fraudulenta.

E, muito embora se trate de uma medida que tem recebido crítica da doutrina rela-tivamente à sua legalidade e dos abusos que vêm sendo praticados, há que se destacar que se trata de um instituto que efetivamente garante, ao credor, o direito fundamental a uma prestação jurisdicional célere e tempestiva (ROSA, 2006, p. 477).

Ainda dentro desse norte, estabeleceu o legislador no § 2º do artigo 655-A, que ao devedor caberá provar se os valores existentes em conta corrente estão dentro dos bens impenhoráveis, havendo assim, uma presunção, ao menos relativa, da disponibilidade desses bens para penhora.

Destaca-se uma modificação legislativa que não acompanhou a busca pela celerida-de processual e que é considerada um retrocesso processual pela doutrina pátria (ALVIM; CABRAL, 2007, p. 125-126). Trata-se da possibilidade de substituição do bem penhorado, prevista no art. 668 do CPC. Errou o legislador ao ampliar o leque de possibilidade de substituição de bens penhorados, incentivando a repetição de atos processuais já consoli-dados, o que certamente trará morosidade ao feito.

Logo, o devedor utilizar-se-á do instituto para se desfazer de bens que não tenha interesse ou para procrastinar mais ainda o feito, trazendo prejuízos consideráveis ao cre-dor. Mesmo que o magistrado negue a substituição, sob o fundamento de trazer prejuízos ao credor, isso somente ocorrerá após instauração do pedido pelo devedor e a manifesta-ção do credor, o que, por si só, já retarda o procedimento.

– Rachel Bressan Garcia Mateus –

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Dentro das formas de expropriação, trouxe o legislador grandes mudanças, seja inserindo a adjudicação como a primeira forma de expropriação, seja criando o instituto da alienação particular, seja ainda através da previsão em larga escala do uso de meios eletrônicos para agilizar os atos expropriatórios.

Dessa forma, a adjudicação, que antes só ocorreria se o bem não fosse arrematado, o que se tornava excessivamente prejudicial para o credor que tinha que aguardar toda a bu-rocracia da hasta pública e publicação dos editais, enquanto já tinha a intenção de ficar com o bem para sim como forma de quitação da dívida, agora pode se dar imediatamente.

Outra modificação enfatizada dentro do instituto da adjudicação é a ampliação de sua legitimidade, abrangendo agora todo e qualquer credor com garantia real, além de pa-rentes do executado (ALVIM; CABRAL, 2007, p. 143). Tal inovação aumenta as chances de adjudicação e, consequentemente, a satisfação do credor numa menor prazo possível.

A Lei nº 11.382/2006 introduziu, à execução de obrigações decorrentes de títulos ex-trajudiciais, a forma de desapropriação denominada “alienação por iniciativa particular”.

Este instituto faculta ao credor, por sua conta e risco, vender os bens penhorados para satisfação de seu crédito, dispensando a figura do leiloeiro oficial. Essa faculdade conferida ao exequente tem como norte possibilitar a aceleração do procedimento de forma a não se chegar à utilização da hasta pública, que tem o condão de burocratizar e retardar o processo.

Ainda nessa linha de aceleração do feito, estabeleceu o legislador que tal alienação particular pudesse se dar por meios eletrônicos (§3º do art. 685-C).

A alienação em hasta pública ainda permanece no ordenamento processual civil como forma de expropriação de bens do devedor, mas sofreu algumas modificações de-correntes da Lei nº 11.382/2006.

Não há como negar que o procedimento para alienação de bens em hasta pública é moroso e burocratizado. Uma série de dispositivos legais regulamenta a matéria. O le-gislador, com a mudança introduzida, procurou dar mais agilidade ao procedimento, ata-cando principalmente a publicação de editais. Assim, dispensou o legislador a publicação de editais para bens de pequeno valor, e possibilitou ao magistrado a discricionariedade em modificar prazos e formas de publicação dos editais no caso concreto.

Da mesma forma, a alienação em hasta pública pode se dar pela rede mundial de computadores (internet). Para regulamentar o assunto, introduziu o legislador o artigo 689-A ao CPC, o qual preceitua que todo o procedimento previsto para alienação em hasta pública pode ser substituído, a requerimento do exequente, por alienação realizada pela internet.

Nos dias de hoje, na qual o estreitamento das relações está ligado diretamente ao uso da internet, a legislação processual civil não poderia ficar de fora. Na legislação ante-rior, toda e qualquer arrematação precedia de um edital, que deveria ser afixado no átrio do fórum, fazendo-se presumir que a população tomava conhecimento efetivo do leilão

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ou da praça com a consulta a tais editais. Consequentemente, várias eram as praças e lei-lões sem lançadores. Agora, por meio eletrônico, a divulgação atinge pessoas de todas as regiões do país, aumentando consideravelmente as chances de aparecerem interessados na aquisição dos bens ofertados, acelerando o processo e diminuindo o prazo de espera do credor para ter a satisfação de seu crédito.

Ainda dentro da expropriação, o legislador ordinário, por meio da Lei nº 11.382/2006, simplificou o instituto da arrematação.

Conforme já visto nesse estudo anteriormente, o aumento do prazo não signifi-ca necessariamente em dilação processual e morosidade. No presente caso, o legislador ampliou o prazo para arrematação, visando facilitar ao arrematando o levantamento dos valores, aumentando, consequentemente, a quantidade de interessados em adquirir os bens ofertados.

Na mesma linha de raciocínio, o legislador estabeleceu que, nos termos do §1º do art. 690 do CPC, tratando-se de bem imóvel, quem estiver interessado em adquiri-lo em prestações poderá apresentar, por escrito, sua proposta, nunca inferior à avaliação, com oferta de pelo menos 30% (trinta por certo) à vista, sendo o restante garantido por hipo-teca sobre o próprio imóvel.

Destaca-se, ainda, o artigo 694 do CPC, o qual dispõe que a arrematação não se suspende com a pendência de julgamento dos embargos, considerando-se perfeita, aca-bada e irretratável, desde que o Auto seja assinado pelo juiz, pelo arrematante e pelo ser-ventuário da justiça ou leiloeiro. Com essa modificação, nota-se que a sistemática trouxe mais segurança para o negócio jurídico realizado judicialmente, bem como mais rapidez (FIDA; ALBUQUERQUE, 2007, p. 104).

Quanto aos embargos do devedor, a primeira mudança nesse instituto diz respeito à dispensa da garantia do juízo para apresentação de defesa. É o que estabelece o artigo 736, “caput”, do CPC. O legislador também modificou o prazo para apresentação dos Em-bargos, elevando de dez para quinze dias, conforme dispõe o artigo 738, do CPC.

Assim, caso tenha o devedor bens passíveis de penhora e não tendo efetuado o pa-gamento nos três dias de sua citação, terá seus bens constritados provavelmente até o fim do prazo de que dispõe para opor embargos.

O maior motivo da dispensa de segurança do juízo para oposição de embargos teria sido a intenção de se eliminar a figura da exceção de pré-executivade. Porém, no fundo, essa visão é ilusória, pois a exceção de pré-executividade continuará tão presente quanto antes, sempre que o executado tiver algum motivo para opor tal modalidade de defesa, desde que o fale no prazo de três dias que lhe é assinado para o pagamento, evitando a penhora de seus bens (ALVIM; CABRAL, 2007, p. 201).

Novamente diante da falta de técnica processual do legislador, deve-se cuidar para o fato de que a dispensa da segurança do juízo não se estenda à obrigação de fazer, não fazer e dar coisa certa.

– Rachel Bressan Garcia Mateus –

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Destaca-se, ainda, a celeridade decorrente da modificação na contagem do prazo dos embargos para os litisconsortes, pois, nos termos do que determina o §1º, do art. 738, do CPC, havendo mais de um executado, o prazo para cada um deles embargar conta-se a partir da juntada do respectivo mandado citatório, regra que somente não se aplica aos cônjuges (ALVIM; CABRAL, 2007, p. 129). Tem-se, também, o § 3º do referido artigo que proibiu a contagem dos prazos em dobro quando cada um dos litisconsortes tiver pro-curadores diferentes, conforme ocorre na determinação genérica do artigo 191 do CPC (LIVRAMENTO, 2008, p. 130).

Seguindo a linha de evolução já traçada pela Lei nº 11.232/2005, da mesma forma, o legislador pátrio modificou a regra do efeito suspensivo da defesa apresentada pelo de-vedor. Agora, com a mudança introduzida pela Lei nº 11.382/2006, também os embargos à execução terão, em regra, efeito não suspensivo.

Importante mencionar o disposto no artigo 739, do CPC, na qual se encontram elencados os casos de rejeição liminar dos embargos. Logo, andou bem o legislador em estabelecer expressamente os casos de rejeição liminar como forma de evitar a oposição de embargos meramente protelatórios.

Por fim, corroborando a busca pela realização do direito do credor no menor es-paço de tempo possível, tem-se a regra disposta no artigo 745, § 2º, do CPC, na qual o exequente poderá, a qualquer tempo, ser imitido na posse da coisa, mediante certas con-dições, já podendo usufruir da coisa, adiantando a satisfação do provimento final mesmo que a lide ainda esteja em discussão.

Finalizando a análise das reformas processuais oriundas da lei em comento, res-salta-se uma importante modificação no processo de execução, qual seja, a extinção do instituto da remição nos moldes antes previstos.

Assim, a remição, na forma como antes era positivada, permitia ao devedor, até antes da expedição da carta de arrematação, remir a execução. Com a mudança, hoje so-mente cabe a remição até a adjudicação ou a alienação dos bens, reduzindo o desperdício de tempo e uso da máquina judiciária.

3. Conclusão

Na órbita constitucional, encontram-se diversos princípios que regem a edição normativa, entre os quais o da celeridade processual, agora destacado expressamente no inc. LXXVIII, do art. 5º, da Carta Republicana, como direito fundamental à duração ra-zoável do processo.

Há que se destacar que a lentidão na prestação jurisdicional não pode ser somente atribuída à máquina do Judiciário. Os procedimentos seguem fases, atos e prazos estabele-cidos pela lei processual, esta que por sua vez é de responsabilidade do Poder Legislativo. Assim, considerando o controle preventivo da constitucionalidade, ao Poder Legislativo, por meio de suas comissões, cabe analisar se a lei que será submetida à votação está em

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consonância com o princípio da celeridade processual, para, após essa análise, somente introduzir no ordenamento jurídico pátrio normas que busquem a rapidez dos feitos, a fim de realizar o preceito constitucional em comento.

A Emenda Constitucional nº 45/2004, por meio da introdução de mecanismos de aceleração em nível constitucional, foi um avanço na tentativa de tornar o proce-dimento mais célere e aumentar a rapidez na satisfação final da lide. Porém, a tarefa não findou. A própria Emenda determinou a criação de comissões para elaboração de leis que efetivassem o princípio aqui destacado, satisfazendo o direito da parte a uma razoável duração do processo e, ainda, assegurando os meios necessários para que esse direito seja posto em prática.

Em análise precípua quanto às modificações oriundas da Lei nº 11.232/2005 ao processo civil, mais precisamente quanto à execução de obrigação fundada em título ju-dicial, vários foram os posicionamentos doutrinários quanto ao atendimento ou não do princípio da celeridade processual.

No geral, pode-se dizer que algumas modificações vieram trazer mais rapidez ao feito expropriatório e garantir uma agilidade na satisfação do credor, conforme já fun-damentado no discorrer do trabalho. Porém, a falta de clareza e técnica processual do legislador deixou diversas lacunas e omissões legislativas, principalmente na confusão dos institutos das obrigações de fazer, não fazer e dar coisa certa com o procedimento para pagamento de quantia certa, o que certamente trará equívoco na aplicação do procedi-mento, e consequente retardamento do feito.

Outra crítica que se fez ao legislador ordinário diz respeito à tímida modificação de alguns institutos, ou até mesmo somente a renumeração de artigos em outros, nada tendo sido acrescentado de novo ao procedimento, como no cumprimento ou na liqui-dação de sentença.

Destacam-se, ainda, outros equívocos do legislador pátrio. Foram introduzidas mo-dificações processuais que trouxeram mais burocratização à sistemática, desprestigiando a busca pela tão almejada celeridade processual. É o que a doutrina critica sobre a invaria-bilidade da multa de 10%, em qualquer caso de inadimplemento, e ainda a possibilidade de redução da penalidade em casos de pagamento parcial, incentivando o adimplemento somente parcial da dívida.

Já a Lei nº 11.382/2006, editada após um ano da aprovação da Lei nº 11.232/2005, talvez já com os olhos atentos do legislador acerca dos equívocos cometidos, trouxe, em sua maioria, institutos e mudanças que vieram ao encontro do princípio da celeridade processual.

Assim, muitas modificações introduzidas pelo legislador visaram efetivar o direito à duração razoável do processual, simplificando a sistemática e introduzindo mecanismos mais ágeis à satisfação final do credor, conforme se destacou em toda explanação desen-volvida. Mas, ainda assim, o legislador ordinário deixou a desejar em alguns institutos, conforme explanado.

– Rachel Bressan Garcia Mateus –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 159

Em síntese, as modificações introduzidas pelo legislador pátrio no procedimento execucional, decorrentes da Lei nº 11.232/2005 e da Lei nº 11.382/2006, em parte aten-deram ao princípio da celeridade processual e ao direito fundamental à razoável duração do processo, mas, em alguns institutos, o legislador demonstrou o desconhecimento es-trutural do Código de Processo Civil, deixando grandes lacunas que servirão para dar interpretações errôneas e atrasar a marcha processual.

Nesse sentido, não basta, pois, elevar a duração razoável do processo à condição de princípio constitucional e direito fundamental, se a norma infraconstitucional não trou-xer mecanismos que acelerem e garantam efetividade do princípio em questão.

Num Estado Democrático de Direito, todos os Poderes Políticos devem observância aos preceitos normativos legitimamente impostos. Assim, o Poder Legislativo, no exercí-cio de suas funções, também está vinculado aos ditames legais e mais principalmente aos preceitos constitucionais, os quais representam o conjunto de normas hierarquicamente superiores de uma sociedade bem como as diretrizes que vão nortear todo sistema.

Não foi sem propósito que o legislador constitucional determinou, nos termos do art. 7º, da Emenda Constitucional 45/2004, ao Congresso Nacional, a instalação de co-missão especial mista para elaboração de projetos de lei necessários à regulamentação da matéria nela tratada, bem como promover alterações na legislação federal, objetivando tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional.

As reformas no processo civil não serão eficazes se a comissão mista designada para tal fim não se valer de instrumentos para identificar realmente quais os pontos de entrave do processo brasileiro, dentre os quais se destaca o processo de execução, o qual foi objeto deste estudo.

Ao final deste artigo, permito-me acrescentar que o presente estudo ganha uma importância especial no atual cenário jurídico de reformulação por que passa o Código de Processo Civil Brasileiro. O Projeto de Lei nº 166/2010, em tramitação no Congresso Nacional, já traz consigo algumas modificações processuais ao processo de execução, mas ainda permanecem dispositivos a desprestigiar a busca pela tão almejada celeridade pro-cessual, muitos dos quais foram, inclusive, destacados neste estudo.

Quiçá as considerações aqui tecidas possam contribuir, de alguma forma, para tra-zer à tona esses entraves processuais que ainda perduram dentro do processo execucional, com vistas a chamar a atenção dos pesquisadores do direito para a possibilidade de serem revistos a tempo de se incorporarem modificações ao referido projeto de lei, este que, com aplausos, estão oportunizando seu debate em larga escala pelos diversos segmentos da sociedade.

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HermenêuTiCa JurídiCa

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 165

AONDE ESTá O DIREITO?

WHERE IS THE LAW?

Yhon Tostes1

RESUMO: O artigo trata da interação entre o Direito e Economia e sua influência no Brasil, mais especificamente, nas decisões judiciais. Após identificar os concei-tos, instrumentos de aplicação e resistências sobre o movimento conhecido como Análise Econômica do Direito, utiliza-se de uma sentença e dois recursos, visan-do demonstrar a aplicação consciente ou não de seus postulados e consequências, chegando-se a conclusão sobre alguns aspectos positivos e negativos da AED. PALAVRAS-CHAVE: Direito e economia. Análise econômica do direito. Histórico. Conceituação. Análise de julgamentos.ABSTRACT: The article treats about the interaction between the Law and Economics and its influence in Brazil, more specifically, in the judicial decisions. After identifying the concepts, application instruments and resistances about the movement which is knew as Economics Analysis of Law, it is used of a judgement and two appellate reviews seeking to demonstrate the conscious application or not of their postulates and consequences, come to a conclusion about some positive and negative aspects of EAL.KEYWORDS: Law and economics. Economics analysis of law historical. Concepts. Analysis of judgements.

1. Introdução

Este pequeno trocadilho com as iniciais (AED) tem como pano de fundo a inte-ração entre direito e economia, mais precisamente, sobre a aplicação da Análise Econô-mica do Direito e suas implicações conscientes ou não no operador jurídico moderno em todos os campos.

O que vem a ser este fenômeno? Até que ponto algumas escolhas têm sido pautadas pela teoria jurídica da Análise Econômica do Direito ou isto tem sido feito de forma empíri-ca e/ou inconsciente pelo operador jurídico? Quais os riscos desta interdisciplinaridade?

1 Juiz de Direito titular da 1ª Vara de Direito Bancário e Mestrando em Ciência Jurídica na Universidade do Vale do Itajaí – Univali. E-mail: [email protected]

– Aonde Está o Direito –

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Para isto, reportando-se a Morin, que vê “disciplina” como uma categoria organi-zadora dentro do conhecimento científico e que tende à autonomia pela delimitação das fronteiras, da linguagem e das técnicas e teorias que aborda, porém, sem perder de vista que “não basta, pois estar dentro de uma disciplina para conhecer todos os problemas afe-rentes a ela” (MORIN, 2009, p. 5), é indispensável para responder aos questionamentos conhecermos brevemente as disciplinas de Economia e de Direito ou, seguindo mais de perto Posner, a Análise Econômica do Direito e seus fundamentos.

Após realizarmos um breve histórico da Análise Econômica do Direito, passare-mos a uma demonstração das dificuldades até mesmo da conceituação do movimento.

Na sequência, expomos as linhas fundamentais da Análise Econômica do Direito, esclarecendo de forma breve a base teórica do movimento na busca de propiciar uma compreensão maior do tema proposto e, logo a seguir, apresentamos algumas críticas e defesas do movimento.

Passando para um aspecto mais prático, realizamos a ilustração de um caso preto-riano de extinção de ações por conta de seu ínfimo valor, e discorremos sobre algumas particularidades da decisão, tendo como ótica a Análise Econômica do Direito.

Nas considerações finais, pontuamos como de extrema relevância o estudo apro-fundado e sério da análise econômica do direito e as formas como o operador do direito vem se conduzindo conscientemente ou não através de princípios ou utilizando ferra-mentas típicas do movimento.

2. Breve histórico

A relação entre direito e economia não é nova, bastando lembrar que, já no Século XVIII, Adam Smith estudou os efeitos econômicos decorrentes da formulação das nor-mas jurídicas e Jeremy Bentham já associava legislação ao utilitarismo, deixando entrever uma interdisciplinaridade dos fatos sociais entre o direito e economia. Assim, não são poucos os estudiosos que sustentam que o primeiro (direito) está na base do movimento, e, em especial, Bentham.

Mas é a partir da metade final do século XX que começa a surgir um movimento que veio a ser conhecido como “Law & Economics”, por sua origem americana.

O movimento AED tem como precursor Ronald H. Coase, professor da Universi-dade de Chicago com a publicação, em 1961, pelo “Journal of Law and Economics”, do “The Problem of social Cost”, tido como um dos mais importantes artigos escritos até hoje sobre a Análise Econômica do Direito.

Atinge seu ápice com o Juiz Federal e também Professor da Universidade de Chi-cago, Richard Posner, 1973, com “Economics Analysis of Law”, e com a publicação de “ The Cost of Accidents” de Guido Calabresi, de Yale. Inegável contribuição também prestaram ao movimento, com diversas tendências e abordagens, Aaron Director, Henry

– Yhon Tostes –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 167

Manne, George Stigler, Robert Bork, Armen Alchian, Steven Medema, Oliver Willian-son, entre outros.

É importante destacar a falta de unificação até mesmo com as denominações em torno da disciplina envolvendo “Direito e Economia”, que, via de regra, tem como um referencial o movimento Law and Economics, da Universidade de Chicago.

Embora alguns países tenham adotado a expressão “Direito e Economia” (p. ex. Itália, Alemanha), em Portugal, na Espanha e no Brasil, entre outros, preferiu-se o uso da expressão Análise Econômica do Direito, em clara sintonia com a doutrina apregoada por Richard Posner (“Economics Analysis of Law”).

Diante, inclusive, do aspecto visível das distinções de nomenclatura, percebem-se diversas correntes do movimento que aproxima o direito à economia, tratando-se de uma verdadeira escola eclética com diversas tradições e miradas no tocante à aplicação dos ins-trumentos econômicos, entre elas, com maior destaque, a Escola de Chicago e, valendo citar, a Escola de New Haven, Escola do Critical Legal Studies, a Escola Austríaca (berço da Escola Econômica Neoclássica), a Escola Institucionalista, e a Escola Neoinstitucionalista.

Finalmente, destacamos que a Análise Econômica do Direito também não pode ser confundida com a disciplina Direito Econômico, eis que a primeira se trata de uma ferramenta científica e a segunda se ocupa precipuamente da regulação e intervenção do Estado nos mercados.

3. Da Conceituação

A dificuldade de uma conceituação do que vem a ser a disciplina é tão grande que não há sequer uma concordância plena com relação à expressão “Análise Econômica do Direito”, podendo ser caracterizada, em linhas gerais, como um movimento que se desta-ca pela interdisciplinaridade e aplicação da teoria econômica ao direito e suas instituições jurídicas, utilizando-se de instrumentos teóricos como a microeconomia neoclássica e elementos da ciência social econômica como “valor”, “utilidade” e “eficiência”.

Na obra em que realizam uma revisão da Teoria Geral dos Contratos em relação especificamente aos empresariais, sob a ótica da Análise Econômica do Direito, Ribeiro e Galeski Júnior conceituam a Análise Econômica do Direito como sendo:

(...) essencialmente um movimento interdisciplinar, que traz para o sistema jurídico as influências da ciência social econômica, especialmente os elementos valor, utilidade e eficiência. Busca aplicar seu método a todas as searas do direito, apresentando um novo enfoque de forma dinâmica – desde aquelas em que é fácil vislumbrar a inter-relação, como o direito da concorrência e contratos mercantis – até naquelas em que causa maior estranheza para o jurista, como no direito penal e nas relações familiares (RIBEIRO, 2009, p. 69).

O Professor Mackaay, da Universidade de Montreal, citando também Rowley, man-tém como similares a definição da Análise Econômica do Direito ou Direito e Economia,

– Aonde Está o Direito –

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como um método de aplicação da teoria econômica e da econometria para examinar o direito e as instituições jurídicas:

The economic analysis of law, or law and economics, may be defined as ‘the application of economic theory and econometric methods to examine the formation, structure, processes and impact of law and legal institutions’ (Rowley, 1989b, p. 125). It explicitly considers legal institutions not as given outside the economic system but as variable within it, and looks at the effects of changing one or more of them upon other elements of the system. In the economic analysis of law, legal institutions are treated not as fixed outside the economic system, but as belonging to the choices to be explained (MACKAAY, 2009)2.

4. Linhas Fundamentais da Análise Econômica do Direito

Para conseguir entender o que vem a ser e de que forma se realiza a Análise Eco-nômica do Direito, indispensável fazer uma breve incursão sobre alguns conceitos e, em especial, a mudança de paradigmas.

Em sua dissertação, Coelho apresenta os primórdios do Movimento com a Escola de Chicago e Posner e a substituição do conceito de justiça pelo conceito neoclássico de eficiência:

Para conseguir disseminar a Análise Econômica do Direito em meio jurídico, Posner teve que abordar explicitamente o assunto inevitável sobre qual o motivo e quais as vantagens de se avançar nesse tipo de análise. Posner defendeu, então, que a principal, senão única, função do jurista deveria ser a de garantir que a alocação de direitos entre as partes se desse de maneira eficiente e, partindo daí, concluindo que apenas o estudo interdisciplinar de Economia e Direito capacitaria os juristas para o exercício dessa atividade. Daí o surgimento da básica, mas importante questão sobre qual seria o sentido de eficiência. A definição desse conceito passa a ocupar o centro das discussões de juristas e economistas dedicados aos estudos da Análise Econômica do Direito, sendo que as conclusões alcançadas por ambos apontam, em sua maioria, para uma conceituação neoclássica de eficiência econômica (COELHO, 2009).

Destarte, o escopo da AED passa a ser a maximização da eficiência econômica das instituições sociais e também do direito, utilizando, para tanto, como método aplicativo, as conclusões de Pareto e de Kaldor-Hicks.

Sztajn, ardorosa defensora da AED no Brasil, em seu artigo “Law and Economics”, apresenta sucintamente os dois critérios sem deixar também de realizar uma breve crítica:

No que diz respeito à eficiente circulação da riqueza, o critério usual é o proposto por Pareto, segundo o qual os bens são transferidos de quem os valoriza menos a quem lhes dá mais valor. O

2 Numa tradução livre: “A análise econômica do direito, ou direito e economia, pode ser definida como ‘a aplicação de teoria econômica e métodos de econometria para examinar a formação, estrutura, processos e impacto do direito e instituições jurídicas’ (ROWLEY, 1989b, p. 125). Considera explicitamente as instituições jurídicas não como algo fora do sistema econômico, mas como variável dentro dele, e observa os efeitos da mudança de um ou mais deles em outros elementos do sistema. Na análise econômica do direito, instituições jurídicas não são tratadas como algo fixo fora do sistema econômico, mas como pertencendo às escolhas a serem explicadas.”

– Yhon Tostes –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 169

economista considera que a mudança é eficiente, numa sociedade, quando alguém fica melhor do que anteriormente com a mudança de alguma atribuição de bens anterior, sem que ninguém fique pior: Critica-se esse critério, chamado de Pareto, porque depende da alocação inicial da riqueza e porque não induz as pessoas a revelarem suas preferências qualitativas. Outro critério proposto para avaliação da eficiência é desenvolvido por Kaldor e Hicks que, partindo de modelos de utilidade, tais como preconizados por Bentham, sugerem que as normas devem ser desenhadas de maneira a gerarem o máximo de bem-estar para o maior número de pessoas. O problema está na necessidade de maximizar duas variáveis e na dificuldade de estabelecer alguma forma de compensação entre elas. Todavia, refinando o modelo, Kaldor-Hicks chegam à proposta de compensações teóricas entre os que se beneficiam e os que são prejudicados. Comparando agregados entre as várias opções, escolhe-se aquele que resulte na possibilidade de compensação. Ainda uma vez que se refina o esquema reconhecendo haver redes de inter-relações na sociedade e que a utilidade marginal de cada pessoa é decrescente. Este parece ser o melhor critério para as escolhas no que diz respeito à distribuição dos benefícios: o de dar mais a quem em maior utilidade marginal. A racionalidade dos agentes, um dos postulados econômicos, que leva à procura da maximização de utilidades, e a eficiência alocativa, segundo essa visão, vão ao encontro da idéia de solidariedade e geração de bem-estar coletivo (ZYLBERSTAJN, 2005, p. 76).

5. Das Dificuldades e Resistências sobre o Movimento

Há profundas resistências e dificuldades no mundo todo, tanto de aplicação, como também de compreensão, do método Análise Econômica do Direito.

E, mesmo na Europa, ainda são bastante incipientes os estudos e aplicação, con-forme se observa do comentário do Professor Francês Montagné, da Universidade de Montpellier:

The intuitive perception of what is economics, acquired through the multitude of economic acts that they accomplish every day, leads most jurists to believe that they have enough knowledge of economics to fulfill their task. For others, the economic analysis of law is too narrow in its approach, and so must be excluded from legal discussions.Such attitudes are easily explained. A first reason is the separation of the legal and economic disciplines in our academic system; jurists have little knowledge of economic analytical tools. Today, a law student does not receive the basic economic training that he had in the past. Also, the internal division within the legal discipline increases the effect of a separation between law and economics. Thus, the only jurists who use economics are those who follow a training in patrimonial law or in antitrust law.Secondly, the jurist dislikes in modern economics what he perceives as a utilitarian approach. Convinced that economists are motivated only by the study of efficiency, he quickly turns away from their works. This belief is also reinforced by the use of mathematical or rationalistic language in economics, and tools that from the point of view of most jurists are incompatible with social studies. Not having completely mastered the tools of law and economics, legal authors therefore prefer to ignore this challenge.Finally, due to insufficient knowledge of the field and his a priori judgment, the jurist was not in a position to appreciate the latest evolutions in economics (MONTAGNÉ, 2009) 3.

3 Numa tradução livre: “A percepção intuitiva do que é economia, adquirida através da multiplicidade de atos econômicos que eles realizam diariamente, leva a maioria dos juristas a acreditar que eles têm suficiente conhecimento de economia para cumprir suas tarefas. Para outros, a análise econômica do direito é muito reduzida em sua abordagem, e assim deve ser

– Aonde Está o Direito –

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No Brasil, idênticas dificuldades encontramos no tocante ao estudo aprofundado da Análise Econômica do Direito. Tanto pelo preconceito do jurista em relação a uma aproximação com a Economia, que se encontra bastante distante na Academia de Direito, como também pela visão simplista e equivocada de que o movimento AED tem apenas aplicação aos sistemas jurídicos de matriz common law (via de consequência de origem anglo-saxônica), e não nos de civil law, de tradição romano-germânica como o nosso.

Numa matriz mais ideológica, os críticos se insurgem também por entender que a AED possui uma visão restrita da complexidade humana diante da busca da racionalida-de econômica, questionando o fato de que a economia de mercado tenha de estar a servi-ço do homem e de suas necessidades, sob pena de fugir de uma ética que é indispensável para o progresso da humanidade.

Embora reconheça o Direito e Economia como campos complementares em que sempre houve diálogo em pontos em que havia demanda recíproca, Rosa sustenta forte crítica à AED por proporcionar uma proeminência economicista em face do discurso jurídico, transformando o direito em instrumento econômico diante do neoliberalismo (ROSA, 2009, p. 55).

Rosa critica ainda Posner e a questão da velocidade como forma de medição reali-zada pela AED para aferir a eficiência do Judiciário:

O discurso do capital aponta que o Poder Judiciário é por demais lento e burocratizado, incompatível com a rapidez imediata que a dinâmica do mercado exige, constituindo-se num elevado custo acrescido às transações. Pensa-se de regra, somente no aspecto ‘quantitativo’ e que a demora na prestação jurisdicional é um custo de transação incompatível com o ritmo das trocas de um mercado eficiente. Posner sustenta que os problemas da nova economia demandam soluções rápidas e que o Judiciário não está preparado para prover devido a lentidão dos processos, seja pelo princípio do ‘devido processo legal’ – limitador do escopo dos procedimentos sumários – seja pela atuação dos juízes não especializados em questões do campo econômico, ocasionando por estas razões, uma conseqüência nefasta ao bom andamento do mercado (ROSA, 2009, p. 61/62).

Na sequência, anota que a lógica neoliberal produzida pela AED impõe uma ve-locidade inaceitável nas decisões que devem ser imediatas (“relâmpago”), ignorando o processo como “garantia de construção de verdades no tempo” e transformando-o num transtorno a ser suplantado em nome da eficiência e dos custos (ROSA, 2009, p. 62/63).

excluída de discussões jurídicas. Estas atitudes são explicadas facilmente. Uma primeira razão é a separação das disciplinas direito e economia em nosso sistema acadêmico; juristas têm pouco conhecimento de ferramentas analíticas econômicas. Hoje, um estudante de direito não recebe o treinamento econômico básico que ele teve no passado. Também, a divisão interna dentro da disciplina de direito aumenta o efeito de uma separação entre direito e economia. Assim, os únicos juristas que usam economia são aqueles que seguem um treinamento em direito patrimonial ou em lei antitruste. Em segundo lugar, o jurista repugna em economias modernas o que ele percebe como uma aproximação utilitária. Convencido de que os economistas só estão incentivados pelo estudo de eficiência, ele se afasta depressa dos trabalhos deles. Esta convicção também é reforçada pelo uso de idioma matemático ou racionalista em economia e ferramentas que, do ponto de vista da maioria dos juristas, são incompatíveis com estudos sociais. Não tendo dominado as ferramentas do direito e economia completamente, os autores jurídicos então preferem ignorar este desafio. Finalmente, por causa do conhecimento insuficiente do campo e suas prioridades de julgamento, o jurista não está em uma posição para apreciar as últimas evoluções em economia.”

– Yhon Tostes –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 171

De igual forma, para bem demonstrar como as preocupações econômicas com as empresas e propriedades assombram hodiernamente os estudiosos do direito, conduzin-do-os silenciosamente, mesmo que sem referenciar a análise econômica do direito, vale à pena citar o mexicano Katz, que reproduz em muito o discurso da mídia e, até mesmo, de alguns proeminentes membros da Justiça brasileira:

Tener un sistema judicial más eficiente para garantizar el cumplimiento de los contratos es una condición necesaria para lograr un crecimiento económico sostenido. La seguridad de que los derechos privados de propiedad van a ser garantizados por un poder judicial independiente e imparcial permite una asignación más eficiente de recursos y sienta las bases para que los agentes económicos tengan el incentivo para crear riqueza a través del ahorro, la inversión y el intercambio. Adicionalmente, permite una mayor penetración financiera en la economía lo que implica flujos de crédito más accesibles y más baratos, hecho que por sí mismo abarata la inversión y permite el crecimiento de las empresas.La existencia de un poder judicial que garantice que los contratos entre particulares van a ser honrados, permite que las empresas se involucren en contratos más sofisticados y en relaciones con nuevas empresas con las cuales previamente no se había tenido ninguna relación y de la cual su verdadera probabilidad de honrar un contrato es desconocida ya que, con un sistema de justicia imparcial y expedita, el conocimiento previo no es muy importante.Es claro que la sociedad en su conjunto experimentaría una ganancia en ingreso y en bienestar por pasar hacia un estado en el cual el Poder Judicial sea más eficiente y transparente y con acceso generalizado al sistema judicial. De ahí que, particularmente para el caso de México, en donde existe un Poder Judicial caracterizado por su alto costo de acceso para los individuos o empresas de bajos ingresos, su lentitud y falta de imparcialidad en sus juicios, sea indispensable introducir una serie de reformas, encaminadas todas ellas a hacer al poder judicial más independiente y garantizar su imparcialidad y eficiencia, introduciendo mecanismos correctos de rendición de cuentas y un sistema eficiente de incentivos (KAATZ, 2009) 4.

Já numa evidente defesa da aplicação da economia ao direito, Carvalho anota:

A sua superioridade encontra-se no fato da Ciência Econômica ser, de longe, a ciência social com mais êxito até hoje. Seu caráter empírico e sua forte matematização a tornou uma ciência no mais puro sentido da palavra, pois é capaz de não apenas descrever acuradamente o seu objeto, como também

4 Numa tradução livre: “Ter um sistema judicial mais eficiente para garantir o cumprimento dos contratos é uma condição necessária para obter um crescimento econômico sustentado. A segurança de que os direitos privados de propriedade vão ser garantidos por um Poder Judiciário independente e imparcial permite uma atribuição mais eficiente de recursos e estabelece as bases para que os agentes econômicos tenham o incentivo para criar riqueza através da poupança, do investimento e do câmbio. Adicionalmente, permite uma maior penetração financeira na economia, o que implica fluxos de crédito mais acessíveis e mais baratos, feito que, por si mesmo, barateia o investimento e permite o crescimento das empresas. A existência de um Poder Judiciário que garanta que os contratos entre particulares vão ser honrados permite que as empresas se envolvam em contratos mais sofisticados e em relações com novas empresas com as quais previamente não se teve nenhuma relação e da qual sua verdadeira probabilidade de honrar um contrato é desconhecida já que, com um sistema de justiça imparcial e célere, o conhecimento prévio não é muito importante. É claro que a sociedade em seu conjunto experimentaria um ganho com renda e com o bem-estar por passar para um estado no qual o Poder Judiciário seja mais eficiente e transparente e com acesso generalizado ao sistema judicial. Daí que, particularmente para o caso do México, onde existe um Poder Judiciário caracterizado por seu alto custo de acesso para os indivíduos ou empresas de baixos ganhos, sua lentidão e falta de imparcialidade em seus julgamentos, seja indispensável introduzir uma série de reformas, encaminhadas todas elas a fazer o Poder Judiciário mais independente e garantir sua imparcialidade e eficiência, introduzindo mecanismos corretos de prestação de contas e um sistema eficiente de incentivos.”

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prever, com razoável grau de precisão, o comportamento futuro desse mesmo objeto.”, concluindo que “a avaliação de conseqüências através de externalidades, que deve influenciar a escolha por uma ou por outra alternativa, não é critério de índole parcial. Não serve para ‘atender a interesses de poderosos’ ou para ‘proteger os mais fracos’. Dependendo de especificidades do caso concreto, tanto uma quanto outra decisão pode ser a mais eficiente no que tange às conseqüencias acarretadas. Em síntese, o que importa é tornar o Direito mais eficiente, para que se possa então alcançar os seus fins de justiça. E, para tanto, a escolha racional é um potente instrumento na consecução desses valores tão importantes quanto difíceis de implementar (CARVALHO, 2009).

Timm, em seu artigo, quando tenta demonstrar a posição da doutrina e da Justiça brasileira ante o artigo 421, do Novo Código Civil, discorrendo sobre a função social dos contratos, realiza contundente e indisfarçável defesa dos critérios da eficiência trazida pela AED, valendo transcrever:

De acordo com o modelo de Direito e Economia do direito contratual, a proteção dos interesses sociais nem sempre é entendida como interferência em favor da parte mais fraca nos casos em que haja desnível de poder de barganha entre os contratantes. Pelo contrário, exemplos recentes demonstram que a interferência estatal no espaço privado do contrato tem o condão de favorecer os interesses da parte mais faca no litígio e prejudicar os interesses coletivos, ao desarranjar o espaço público do mercado, que é estruturado sobre as expectativas dos agentes econômicos. Outrossim, o benefício da redistribuição via contrato é todo destinado à parte protegida no litígio sem nenhum resultado coletivamente benéfico àqueles que não propuseram demandas judiciais. Ademais, não se pode olvidar que há sempre a possibilidade da ocorrência de repasse dos crescentes custos e da retirada de operações do mercado trazida por esta política pública para os consumidores como um todo.Nesse sentido, a excessiva intervenção judicial nos contratos pode trazer instabilidade jurídica e insegurança ao ambiente econômico, acarretando mais custos de transação às partes, para que negociem e façam cumprir os pactos. Além disso, a excessiva intervenção judicial pode originar externalidades negativas (i.e., efeitos a serem suportados por terceiros), porquanto o risco de perda ou a perda efetiva do litígio pela parte “mais forte” tende a “respingar” ou a ser repassado à coletividade, que acaba pagando pelo mais fraco judicialmente protegido (como ocorre paradigmaticamente com as taxas de juros bancários, com os contratos de seguro e como aconteceu em casos de contratos de financiamento de soja no Estado de Goiás), sem, entretanto, receber o benefício compensatório de maior bem-estar (TIMM, 2009).

6. Um Caso sobre a Aplicabilidade ou Não da AED na Jurisprudência Brasileira

Particularmente interessante trazer à luz um caso jurisprudencial catarinense, no tocante à anulação de uma sentença de 1º grau que julgou extinto um processo de execu-ção, promovido por um Supermercado contra um cliente que não honrou o pagamento de um cheque no valor de R$ 47,86, que não alcançava sequer as custas judiciais iniciais pagas pela parte credora (R$ 53,00).

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A sentença, de minha autoria, proferida nos autos da execução registrada e autuada sob o n. 039.04.005788-5 5, não abordava a questão da análise econômica do direito, mas tão somente indicava os princípios da “bagatela” como um dos suportes teóricos a afastar o interesse de agir e propiciar o decreto de extinção.6

Interessante ressaltar que, na comarca de Lages, onde a decisão foi proferida, exis-tiam diversas outras ações de baixíssimo valor promovidas pela mesma empresa contra seus clientes e, na quase totalidade dos casos, não havia acordo extrajudicial em razão do estado de precariedade financeira das pessoas, e os processos terminavam arquivados administrativamente com base no art. 791, III, do CPC (ausência de bens para penhora), como efetivamente ocorreu neste também.

Entre diversos argumentos e fundamentações doutrinárias, foi citado expressa-mente um aresto do Supremo Tribunal Federal (RE 240.852-1-SP, rel. Min. Moreira Al-ves), para indicar precedente pretoriano no sentido de que é pertinente a extinção de ação de pequeno valor (no caso executivo fiscal), sem que isto constitua ofensa ao princípio constitucional de acesso à Justiça.

Após a extinção, sobreveio acórdão da lavra do Desembargador Paulo Roberto Ca-margo Costa, assim ementado7:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE EXECUÇÃO – CHEQUE – EXTINÇÃO DO FEITO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR – VALOR EXECUTADO TIDO COMO ÍNFIMO – SENTENÇA CASSADA – OFENSA AO DISPOSTO NO ART. 5º, XXXV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – PROSSEGUIMENTO DO FEITO EXECUTÓRIO – RECURSO PROVIDO‘Não compete ao Judiciário proibir a parte de ingressar com a demanda sob o argumento de que o valor perseguido é irrisório. O amplo e irrestrito acesso à justiça é assegurado pelo art. 5º, XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil, independentemente do valor econômico almejado.’ (Apelação Cível n. 2004.015253-1, de Lages, Relatora Desª. Salete Silva Sommariva, j. em 20.10.2005).

Em outro acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, na mesma situação e diante de sentença semelhante (reporta-se na grande parte a sentença de minha autoria com os fundamentos acima colacionados), porém proferida por Juízo diverso (2ª Vara Cível de Lages), houve até mesmo a indicação na ementa de que “Revela-se afrontosa ao art. 5º, XXXV, da Constituição da República, que exalça o princípio da indeclinabilidade da prestação jurisdicional, a decisão que, pela insignificância do quantum excutido, na hipó-tese R$ 30,00 (trinta reais), extingue o feito, com fundamento no art. 267, VI, do Código de

5 Comarca de Lages. 4ª Vara Cível. Execução N.039.04.005788-5. Exequente: N. & Cia. Ltda. Executado: S. R. C. 6 Importante ressaltar que, embora não se vislumbre na sentença nenhuma menção a AED, eis que na época desconhecia

o movimento, de forma até mesmo inconsciente o diálogo com seus princípios já estava presente na decisão. 7 Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação cível n. 2004.034153-7, de Lages, Relator Desembargador Paulo Roberto

Camargo Costa. Órgão Julgador: Terceira Câmara de Direito Comercial. Data da Decisão: 02/08/2007

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Processo Civil, por alegada - e inexistente - falta de interesse de agir.” 8, chegando o desem-bargador relator a anotar no corpo do aresto que “Demais disso, não vejo pertinência no precedente jurisprudencial colacionado pela decisão recorrida, porque dizente com executi-vo fiscal, onde o que está em jogo é o dinheiro público, situação algo diversa da presente em que as despesas processuais concernem a particular que decidiu bancá-las por razões que não vêm a pelo sindicar.”.

Chega-se aqui a uma curiosa situação que tanto os defensores da Análise Econô-mica do Direito reclamam: Além do silogismo racional (causa-efeito), quais ferramentas teóricas foram utilizadas para se chegar a uma conclusão que tem tudo de econômica (trade-off = custo-benefício)?

E, mais ainda, o que leva um julgador a entender que, quando está em jogo o erário público, o interesse de agir deve ser analisado de ofício e, quando está o interesse parti-cular, não pode? E, mais interessante, onde está dito e comprovado que o trade-off do Estado-Juiz numa ação promovida por indivíduo está garantido e numa ação aforada por ente público não?

Embora não tenha também mencionado em nenhum momento a Análise Econô-mica do Direito, há clara indicação de alguns referentes econômicos no acórdão abaixo colacionado, que julgou extinta uma execução fiscal diante de seu valor irrisório:

TRIBUTÁRIO - EXECUÇÃO FISCAL - VALOR IRRISÓRIO - EXTINÇÃO DO PROCESSO - POSSIBILIDADEA teor da Súmula n. 22 deste Pretório, restou pacificado o entendimento de que “a desproporção entre a despesa pública realizada para a propositura e tramitação da execução fiscal, quando o crédito tributário for inferior a um salário mínimo, acarreta a sua extinção por ausência de interesse de agir, sem prejuízo do protesto da certidão de dívida ativa (Prov. CGJ/SC n. 67/99) e da renovação do pleito se a reunião com outros débitos contemporâneos ou posteriores justificar a demanda”.É de se extinguir a ação executiva, outrossim, nos casos em que o valor inscrito em dívida ativa não ultrapasse substancialmente o valor de um salário mínimo, dada a desproporção entre o crédito tributário cobrado e os gastos despendidos pela fazenda pública para a satisfação do débito, mormente quando inúmeras diligências para localizar o devedor ou bens passíveis de penhora restaram infrutíferas.9

Os referentes econômicos (economicidade, utilidade, eficiência) aparecem de for-ma mais cristalina no corpo do aresto, valendo a pena transcrever em parte eis que pre-sente até mesmo uma menção a Bentham, demonstrando um forte e bem exposto refe-rencial teórico economicista na decisão de 2º grau:

Em decisão administrativa, o Tribunal Pleno aprovou o envio de projeto de lei à Augusta Assembléia Legislativa, regulando o procedimento para as execuções inferiores a um salário mínimo. Na ocasião, o eminente Desembargador Volnei Carlin proferiu judicioso voto vista, no qual enfocou a questão sob

8 Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2004.020377-2, de Lages, Relator Desembargador João Henrique Blasi. Órgão Julgador: Quarta Câmara de Direito Comercial. Data da Decisão: 18/12/2008

9 Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2009.004943-2, de Brusque. Relator Desembargador Luiz Cézar Medeiros. Órgão Julgador: Terceira Câmara de Direito Público. Data da Decisão: 21/07/2009

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o prisma dos princípios constitucionais. Pela pertinência e importância dos argumentos expendidos, transcreve-se tópicos do alentado pronunciamento:O processo de execução fiscal de dívida ativa de valor inferior ao respectivo custo processual tem se tornado oneroso ao Poder Público, além de mobilizar, a cada pleito executório, toda a máquina administrativa, bem como o Poder Judiciário. Dentro do esforço desenvolvido no sentido de conciliar o acesso à justiça sem, contudo, comprometer o erário público, foi apresentado Projeto de Lei que dispõe acerca da Dívida Ativa da Fazenda Pública Estadual e Municipal, de valor inferior a um salário mínimo, autoriza a realização de convênios com o Poder Judiciário para a aceleração, descentralização e desburocratização da cobrança judicial de crédito tributário de maior valor e dá outras providências.Com base na lição de John Raws, o tema em debate enseja uma reflexão amadurecida, à qual nos parece impossível renunciar, uma vez que a tarefa da teoria moral consiste em fornecer a explicitação desses posicionamentos (In: Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 378).[...]“Depreende-se, ainda, que ao contexto se aplica o princípio da utilidade, de Jeremy Bentham. Em sede de execução fiscal, referido preceito recomenda que todo processo executivo deve ser útil ao credor, não lhe sendo permitido o uso desse procedimento como forma de punição e/ou sofrimento ao devedor.Assim, pelo primado da utilidade, o magistrado possui o poder jurisdicional de investigar a serventia, a vantagem, a utilidade do ajuizamento de uma execução fiscal na hipótese de existência de norma impeditiva de inscrição na dívida ativa de débito considerado inexpressivo, ou de valor inferior ao custo de sua cobrança.[...]Do exposto alhures, depreende-se que repugna a consciência jurídica do Direito Público e agride os mais comezinhos postulados constitucionais, além de deslegitimar a função do juiz e menosprezar o superior interesse público, exigir do complexo aparelho burocrático do Estado a cobrança de dívidas de particulares, consideradas insignificantes pela lei, doutrina e jurisprudência.O lógico e o razoável seria observar, em caráter geral, o mínimo de bom senso, elemento ínsito e inevitável nas funções jurídicas dos atos estatais, norteados pelos padrões da razoabilidade, economicidade e utilidade. Nesses casos, os juízes têm o dever jurisdicional e competência originária para aplicar, interpretar e transformar o Direito, não significando, com tal postura, que sejam acoimados de legisladores.O que faz de um juiz um bom julgador é a conexão de sua atividade decisória, nos casos concretos, exercida com força moral e independente das pressões externas e políticas, com a necessária interpretação literal, prioridade revelada sem perplexidade e indecisão, mas como fenômeno relacionado ao próprio Direito, resultante de consciência, cultura e correspondendo às expectativas sócio-políticas.Dessa forma, a importância pretendida nos executivos fiscais de valor inferior a um salário mínimo deve ser qualificada como insignificante, melhor dizendo, de valor antieconômico, se comparada ao poder financeiro do Ente Fiscal e às despesas decorrentes da movimentação da máquina judiciária. (grifou-se)

Apenas para fomentar a reflexão e demonstrar a dificuldade do controle e previsão de externalidades na busca da eficiência e maximização de recursos numa ação judicial, nos autos n. 039.04.005788-5, antes mencionado, o processo foi distribuído em 27 de maio de 2004 e realizaram-se cerca de cento e trinta (130) movimentações cartorárias. Vinte (20) do recebimento da inicial até o retorno dos autos do TJSC com a anulação da sentença

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de extinção. As cento e dez (110) restantes foram tomadas para a “resolução” da lide que efetivamente nunca aconteceu, uma vez que, em 1º de outubro de 2009, foi determinado o arquivamento administrativo da execução por falta de bens passíveis de penhora.10

7. Considerações Finais

Vivemos no Brasil num quadrante histórico bastante interessante. Saímos de um longo período da ditadura, as instituições democráticas começam a se consolidar e, de igual forma, o “fim” de um penoso período de inflação nos faz refletir sobre a economia como um todo e, em especial, sobre a melhoria das condições de vida e a necessidade de dinheiro para custear bens de consumo de toda ordem.

Tudo isto projeta inúmeras consequências no cenário judicial. A cada dia mais es-tamos diante de conflitos que, de maneira direta ou reflexa, nos levam ao dilema da prote-ção dos direitos sociais ou da maximização da riqueza, com seu discurso de eficiência.

Até mesmo Posner, ao tecer considerações sobre as concepções dos Juízes, de ma-neira bastante pragmática e contundente, sustenta as dificuldades sobre as oscilações de julgamento e seus discursos diante de fatores políticos ou sociais:

De modo equivalente, como um juiz faz sua escolha entre duas visões sociais antagônicas? Frequentemente, a escolha será feita com base em valores pessoais profundamente arraigados, e quase sempre esses valores serão refratários à argumentação. A persuasão vai estar presente em alguns casos, mas vai tratar-se de persuasão através de retórica, e não das modalidades mais moderadas de exposição motivada. (...). O juiz que deseja ‘vender’ sua visão social a colegas ou futuros juízes assim procede ao apresentá-la – em geral, ao apresentar-se a si próprio (a tática que os retóricos chamam de ‘apelo ético’) – sob uma luz atraente e vitoriosa, com a esperança de converter os leitores a seus pontos de vista (POSNER, 2007, p. 199/200).

A nosso ver, há uma crescente e contínua corrente de consolidação consciente ou não da AED no Brasil, mormente se observarmos toda a retórica da busca da eficiência que vem cercando o Judiciário (Súmulas vinculantes, Resoluções do CNJ etc.).

Por óbvio, de per si, nada é ruim de todo e nada é ideal. Contudo, inegável que o discurso (mal)dito da AED cause apreensão sobre os rumos da Justiça no Brasil, mor-mente pela falta de uma maior atenção aos valores éticos e político-sociais, quando a origem da busca da eficiência se faz ao largo até mesmo dos instrumentos teóricos que a sustentam. Não se controla, não se utiliza eficazmente e nem se limita aquilo que não se conhece muito bem.

A busca e a retórica da maximização dos recursos e da eficiência não podem ser transformadas numa panaceia que ignora os direitos sociais os quais sequer estão conso-lidados no País.

10 Todos os dados citados são públicos e podem ser obtidos na homepage do TJSC: “www.tjsc.jus.br”, no link “consulta de processo”.

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Agora, não se pode jamais negar a importância da AED como uma ferramenta útil à Justiça (tanto no campo judicial como administrativo) diante de um contexto de escas-sez de recursos e, até mesmo, por conta da vulgarização do acesso à Justiça com as lides frívolas que assolam o Judiciário (estão cada dia mais famosas e prósperas as “indústrias” das ações de danos morais por qualquer dissabor almejando ganho fácil; das revisões de contrato de autores que jamais tiveram a intenção de honrar aquilo que conscientemente pactuaram além de sua capacidade de endividamento etc.), evitando-se, assim, desperdí-cios inaceitáveis que em nada contribuem para a consolidação do Estado Democrático de Direito e bem-estar social.

Cabe a cada um agir na constante busca e aperfeiçoamento dos instrumentos te-óricos adequados na luta pela construção e consolidação de uma sociedade mais ética e justa, não sendo possível desconsiderar isto na efetivação dos direitos fundamentais. Neste caminho é que se deve encontrar o direito.

8. Referências Bibliográficas

CARVALHO, Cristiano. Princípios e Conseqüências: a teoria da escolha racional como critério de ponderação – introdução ao problema. Disponível em: <http://www.viadesignlabs.com/lawandeconomics/Principios_e_Consequencias.pdf>. Acesso em: 27 set. 2009.

COELHO, Cristiane de Oliveira. “O Caráter Científico da Análise Econômica do Direito: Uma explicação de sua influência como doutrina jurídica”. Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, área de concentração em Direito, Estado e Economia, dissertação defendida e aprovada em 01 de julho de 2008. Disponível em: <http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=4629>. Acesso em: 27 set. 2009.

GONÇALVES, Everton das Neves; STELZER, Joana. O Direito e a Law and Economics: Possibilidade interdisciplinar na contemporânea teoria geral do Direito. Disponível em: <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/recife/direito_intern_everton_goncalves_e_joana_stelzer.pdf>. Acesso em: 20 set. 2009.

KAATZ, Isaac. “Eficiencia Judicial y Desarrollo Económico: El caso de los juicio”. Disponível em: <http://services.bepress.com/lacjls/vol3/iss1/art6/>. Acesso em: 16 out. 2009.

MACKAAY, Ejan. “History of Law and Economics”. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/239168/0200-History-of-Law-and-Economics>. Acesso em: 20 set. 2009.

MONTAGNÉ, Lionel. Artigo “Law and Economics in France”, da Universidade de Montpellier, publicado no site Scribd. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/239173/0325-Law-and-Economics-in-France>. Acesso em: 20 set. 2009.

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MORIN, Edgar, A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 16. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. 105 p.

POSNER, Richard A. Problemas de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pág. 199/200

RIBEIRO, Márcia Carla Pereira; JUNIOR, Irineu Galeski. Teoria Geral dos contratos: contratos empresariais e análise econômica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 69.

ROSA, Alexandre Morais; LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 55.

TIMM, Luciano Benetti. Ainda sobre a Função Social do Direito Contratual no Código Civil brasileiro: justiça distributiva versus eficiência econômica. Disponível em: <http://www.amde.org.br/joomla/index.php?option=com_docman&task=cat_view&Itemid=10&gid=30>. Acesso em: 20 set. 2009.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Apelação Cível n. 2004.020377-2, de Lages, Relator Desembargador João Henrique Blasi. Órgão Julgador: Quarta Câmara de Direito Comercial. Data da Decisão: 18/12/2008. Disponível em: <http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/acnaintegra!html.action?qID=AAAGxaAAKAAAyncAAB&qTodas=2004.020377-2&qFrase=&qUma=&qCor=FF0000>. Acesso em: 14 out. 2009.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Apelação cível n. 2004.034153-7, de Lages, Relator Desembargador Paulo Roberto Camargo Costa. Órgão Julgador: Terceira Câmara de Direito Comercial. Data da Decisão: 02/08/2007. Publicado no DJEletrônico n. 278, edital n. 798/07. Disponível em: <http://www.tj.sc.gov.br/institucional/diario/a2007/20070027800.PDF>. Acesso em: 14 out. 2009.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Apelação Cível n. 2009.004943-2, de Brusque. Relator Desembargador Luiz Cézar Medeiros. Órgão Julgador: Terceira Câmara de Direito Público. Data da Decisão: 21/07/2009. Disponível em: <http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/acnaintegra!html.action?qTodas=2009.004943-2&qFrase=&qUma=&qNao=&qDataIni=&qDataFim=&qProcesso=&qEmenta=&qClasse=&qRelator=&qForo=&qOrgaoJulgador=&qCor=FF0000&qTipoOrdem=relevancia&pageCount=10&qID=AAAGxaAAHAAA5HRAAC>. Acesso em: 14 out. 2009.

ZYLBERSTAJN, Decio; SZTAJN, Rachel. Direito e Economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005 – 2ª reimpressão, Capítulo 4, artigo “Law and Economics”, pág. 76.

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DIREITO E MORAL EM KANT E KELSEN: POSSíVEIS DISTINçõES

LAW AND MORALITY IN KANT AND KELSEN: POSSIBLE AWARDS

Felipe de Farias Ramos1

RESUMO: Apresentando de modo conciso o pensamento kantiano, e dando ênfase a aspectos decisivos para o direito na obra do autor – como a questão da moralida-de e seus imperativos categóricos, da legalidade e seus imperativos hipotéticos, e os conceitos de autonomia e heteronomia daí decorrentes, bem assim do papel da coação no Direito, entendido este como relação entre arbítrios – faz-se um pequeno alinhavo da concepção de moral e de Direito em Kant, estabelecendo critérios aptos a distinguir um de outro. Do mesmo modo procede-se em relação ao pensamento kelseneano – autor de inegáveis pressupostos neokantianos – na análise de tópicos importantes da obra do pensador, sobremodo no que respeita a relação entre Ciên-cia e Direito, tudo a evidenciar, contraposta então a posição de Kelsen em relação à de Kant, as distinções de que se vale o autor de Teoria Pura do Direito na separação entre Direito e moral, típica problemática por sobre a qual deitaram atenção os ju-ristas durante a história do pensamento jurídico. Por fim, faz-se um cotejo capaz de declinar, já então de modo resumido, os distintos critérios por que ambos os autores separam Direito e moral em seus respectivos pensamentos.PALAVRAS-CHAVE: Direito; Moral; Kant; Kelsen.ABSTRACT: Introducing concisely Kantian thought and emphasizing key aspects to the law in his works - like the issue of morality and its categorical imperatives, legality and its hypothetical imperatives, and the concepts of autonomy and heteronomy arising therefrom, and thus the role of coercion in the law, understood as the relation between wills - it is a small outline of Kant’s conception of morals and law, establishing

1 Graduado em Direito, UFSC (2008), é mestrando do Curso de Pós-Graduação em Direito, CPGD/UFSC. Integrante do Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica – Ius Commune (UFSC/CNPq), é também Professor de Direito Civil – Direitos Reais – da Universidade Bandeirante de São Paulo (UNIBAN). Ademais, é analista jurídico, atualmente ocupante do cargo de Assessor Correcional na Corregedoria-Geral de Justiça, do TJSC.Endereço eletrônico: [email protected].

– Direito e Moral em Kant e Kelsen: possíveis distinções –

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criteria able to distinguish one from another. Similarly, we proceed to Kelsenian thought - author whose assumptions are unmistakably neo-Kantian – in the analysis of important topics of the work of this thinker, greatly as regards the relationship between science and law. All shows that - then contrasted Kelsen’s position in relation to Kant - the distinctions that are used by the author of Pure Theory of Law in the separation between law and morals - typical question addressed by the jurists during the history of legal thought. Finally, we briefly show different criteria by which both authors separate law and morals in their thoughts.KEYWORDS: Law; Morals; Kant; Kelsen.

1. Introdução

A pergunta a ser respondida por este trabalho é esta: pressupondo que seja tradição no pensamento jurídico ocidental distinguir Direito de moral, qual seria o modo por que, em dois autores clássicos como Kant e Kelsen, ditos conceitos são apartados? Por outra: diante da obra deles, quais são as particularidades pelas quais compostos o Direito e a mo-ral, capazes, então, de possibilitar seguro distanciamento entre aquilo que é considerado moral e aquilo que se considera Direito?

Consciente da exata relação entre o pensamento de Kant e Kelsen2, o presente arti-go - sabedor de que se cuida, de um lado, de um jusnaturalista3 e, d´outro, de um jurista

2 De fato, é o próprio Kelsen quem, explicitamente, faz revelá-la quando, na obra Teoria Pura do Direito, destrinça a natureza da norma fundamental: “Na medida em que só através da pressuposição da norma fundamental se torna possível interpretar o sentido subjetivo do fato constituinte e dos fatos postos de acordo com a Constituição como seu sentido objetivo, quer dizer, como normas efetivamente válidas, pode a norma fundamental, na sua descrição pela ciência jurídica – e se é lícito aplicam per analogiam um conceito da teoria do conhecimento de Kant -, ser designada como a condição lógico-transcendental desta interpretação. Assim como Kant pergunta: como é possível uma interpretação, alheia a toda a metafísica, dos fatos dados aos nossos sentidos nas leis naturais formuladas pela ciência da natureza, a Teoria Pura do Direito pergunta: como é possível uma interpretação, não reconduzível a autoridades metajurídicas como Deus e natureza, do sentido subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas descritíveis em proposições jurídicas? A resposta epistemológica (teorética-gnoseológica) da Teoria Pura do Direito é: sob a condição de pressupormos a norma fundamental” (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 225). Realmente, talvez seja esta a grande relação entre os autores: assim como, em Kant, é preciso pressupor as formas puras da sensibilidade (espaço e tempo) e os conceitos puros (categorias) do entendimento para que seja possível o conhecimento – uma das teses centrais de Crítica da Razão Pura -, assim como, ainda nesse autor, deve-se pressupor a liberdade para que seja possível o imperativo categórico, e, assim, a possibilidade de uma verdadeira moralidade – eis aí, pois, a temática de Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, Immanuel. Fundamentação Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintanela. Lisboa: Edições 70, 1990, p. 103-105) –, moralidade est’última que vem a fundamentar a faculdade de coagir de que se compõe o Direito, pormenor este analisado, por sua vez, em outra obra (KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes – Parte I – Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. Trad. Artur Morão. Lisboa. Edições 70, 2004, p. 35-40), bem assim em Kelsen é preciso ter por pressuposto a norma fundamental (é essa a tese exposta em KELSEN, 2006, p. 226/228, mais adiante revista conforme os rigores da filosofia vaihingeriana do “como-se” in Id., 1986, p.328/331), sem a qual inexiste a possibilidade de uma ordem jurídica válida.

3 O esquema jusnaturalista do pensamento kantiano revela-se às escâncaras: existência, ao lado do direito natural de liberdade (KANT, 2004, p. 44), de um direito precário no estado de natureza em relação às coisas exteriores (posse jurídica provisória), manifestado dentro da esfera do direito privado; a passagem deste estado de natureza para o estado jurídico mediante o contrato – passagem esta que acompanha a transmutação: ‘direito privado’ para ‘direito público’ -,

– Felipe de Farias Ramos –

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absolutamente relativista do ponto de vista moral (KELSEN, 2006, p. 72/73), pretende explorar o diferente modo por meio do qual ambos os autores fazem tal diferenciação.

Vale dizer: ciente embora do inegável vínculo entre ambos os teóricos, tencionam estas linhas, ao revés, expor certo particular que só faz acentuar abrupta discordância entre o pensamento desses dois autores igualmente importantes para teoria e filosofia do Direito.

2. Moral e Direito em Kant

Quanto ao pensamento kantiano, o texto desenvolver-se-á num primeiro momen-to com atenções voltadas à moral, como forma de defini-la e descrevê-la. Neste passo, o texto valer-se-á de quatro tópicos – a) autonomia; b) o imperativo de que lança mão a moralidade; c) a pessoa em relação a quem se deve prestar conta na moralidade; e, por fim, d) o motivo da ação moral - que serão utilizados como critérios aptos a esclarecer o que entende o autor por moral. Esses mesmos tópicos, uma vez destrinçado o Direito no pensamento kantiano, serão mais tarde revisitados, como modo de evidenciar a diferença existente entre esses dois âmbitos.

2.1. A Moralidade Kantiana

2.1.1. A Rejeição da Antropologia

O critério para, em Kant, diferenciar a ação que é conforme a moralidade4 daquela que está de acordo com a legalidade, menos do que o seu conteúdo, é, sobretudo, o seu móbil, isto é, o motivo, a razão pela qual se toma determinado agir.

A lei moral, na busca do que metafisicamente é bom em si, não pode ter por funda-mentação, em Kant, a antropologia (isto é, o que se dá no campo do observável, do vivido cotidianamente), mas sim um princípio universal constituído a priori (KANT, 1990, p. 20).

Tal princípio, necessário, é concebido puramente pela razão5 – entendida aí como espécie de estrutura cognitiva transcendental (de que participam todos os homens em

tudo para que, finda então a insegurança daquele estado original, o homem possa, enfim, ser verdadeiramente livre, agora com a completa e peremptória defesa das propriedades de cada qual.

4 Se é que, em Kant, é possível distinguir moral (moralidade) de ética, tal diferenciação pode ser feita por meio da classificação talhada pelo autor em relação às leis, distinguindo, pois, as leis da natureza (capazes de descrever) das leis morais; est’últimas, leis da liberdade que tem por mister prescrever, são a seu turno especificadas em “leis jurídicas” e “leis éticas”: “Estas leis da liberdade, diferentemente das leis da natureza, chamam-se morais. Se afetam ações meramente externas e sua conformidade com a lei, dizem-se jurídicas; mas se exigem também que elas próprias (as leis) devam ser o fundamento de determinação das ações, então são éticas, e diz-se: que a coincidência com e primeiras é a legalidade, a coincidência com as segundas, a moralidade da ação” (KANT, 2004, p. 18, grifo do autor).

5 Razão aí num sentido prático, que se põe a investigar a possibilidade de o homem estabelecer regras para si, e portar-se de acordo com elas. Ao lado desta razão prática – como numa espécie de moeda de duas faces -, há ainda uma razão teórica que se ocupa das leis segundo as quais a natureza se comporta. A primeira faz possibilitar a existência de uma ética – é essa, aliás, a grande discussão presente na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes; a seu turno, a

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sua subjetividade6) -, e está diretamente relacionado com a autonomia da vontade, auto-nomia essa que tem pontual ligação com a liberdade7, porquanto, somente se concebido livre, é que o homem poderá não só estabelecer regras para si (regras essas que, no caso da moralidade, dizem com algo objetivamente bom) como ainda comportar-se em con-formidade com elas.

Esse princípio objetivo tem por representação o que Kant chama mandamento, e a fórmula desse mandamento é por ele denominada imperativo (KANT, 1990, p. 48). Tal fórmula de mandamento, expressos pelo verbo ‘dever’, mostra “[...] a relação de uma lei objetiva da razão para a vontade que segundo a sua constituição subjetiva não é por ela necessariamente determinada” (KANT, 1990, p. 48, grifos do autor)8.

Necessário então precisar – entre as várias espécies destes imperativos – a relação entre eles e a moralidade.

2.1.2. Os Imperativos e a Moralidade

Os imperativos, “fórmulas da determinação da ação que é necessária segundo o princípio de uma vontade boa de qualquer maneira” (KANT, 1990, p. 50), Kant distingue-os em hipotéticos e categóricos, e aqueles primeiros, por seu turno, em problemáticos e assertórico-práticos (KANT, 1990, p. 50-51)9.

segunda concretiza a possibilidade da ciência, e do conhecimento em geral, temática esta presente na obra Crítica da Razão Pura.

6 Quanto ao conceito de liberdade em Kant, observe-se: CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 216-217.

7 Ainda no que toca o conceito de liberdade em Kant, de notar que o autor divide-o em dois sentidos: a) o negativo, o qual, como se dá em outros contratualistas, relaciona-se com a ausência de determinação externa; e b) o positivo, o qual, aproximando-se de Rousseau (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Ensaio sobre a Origem das Línguas. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 78), se relaciona com o conhecimento da lei da razão e com a obediência a est’última. Quer isso dizer: somos livres para, capazes de conhecer a lei da razão (reveladora daquilo que, mais do que segundo os apetites e arbítrios individuais, é bom é si), obedecer àquilo prescrito por aquela mesma lei da razão. Deveras: “Na medida em que a razão pode determinar a faculdade de desejar em geral, o arbítrio - mas também o simples desejo – pode estar contido na vontade; o arbítrio que pode ser determinado pela razão pura chama-se livre arbítrio. O que só é determinável pela inclinação (impulso sensível, estímulo) seria arbítrio animal. (arbitrium brutum). O arbítrio humano, ao invés, é de tal índole, que é, sem dúvida, afectado pelos impulsos, mas não determinados; portanto, não é puro e por si (sem um hábito racional adquirido), mas pode ser determinado às acções por uma vontade pura. A liberdade do arbítrio é a independência de sua determinação por impulsos sensíveis; este é o conceito negativo da mesma. Positivo é: a faculdade da razão pura de ser por si mesma prática. Mas tal só é possível mediante a submissão da máxima de cada ação à condição da aptidão para converter-se em lei universal” (KANT, 2004, p. 18, grifo do autor).

8 Apenas com a finalidade de maior segurança semântica, de atentar para nota do próprio autor a diferenciar máxima de lei (conceito est’último que, na passagem, é tido por equivalente ao de imperativo): “Máxima é o princípio subjetivo da ação e tem de se distinguir do princípio objetivo, quer dizer da lei prática. Aquela contém a regra prática que determina a razão em conformidade com as condições do sujeito (muitas vezes em conformidade com a sua ignorância ou as suas inclinações), e é, portanto, o princípio segundo o qual o sujeito age; a lei, porém, é o princípio objetivo, válido para todo o ser racional, princípio segundo o qual ele deve agir, quer dizer, um imperativo” (KANT, 1990, p. 58. grifo do autor).

9 Os imperativos hipotéticos que têm relação com intenções possíveis – o chamado “princípio problemático” – são denominados por Kant “imperativos de destreza” (KANT, 1990, p. 51). De notar que, nesta espécie de imperativo, que

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Os imperativos hipotéticos são, pois, aqueles que devem ser obedecidos desde que se tencione algo, desde que se queira atingir determinado fim; por sua vez, o categórico é aquele que obriga de per si, independentemente do que possa resultar de sua obediência10, mesmo quando esta implique contradições com as inclinações do agente11.

Perceba-se que, fosse o homem naturalmente bom, ou tivesse ele contornos de um ser perfeito (qual um Deus), seriam desnecessários os imperativos para fins de atuar mo-ralmente, visto que lhe seria bastante, tão só, o próprio querer, já então visceralmente ligado ao “bom” e, por isso, à Lei. Portanto, os imperativos são endereçados ao homem mesmo – de apetites e arbítrios variados -, e estão a representar a coligação entre leis objetivas (que, passíveis de ser conhecidas através da razão, podem ser alcançadas pelo humano) e imperfeições subjetivas de um ser racional.

A moralidade, destarte, expressa-se exatamente nesse ponto, de obediência cogente ao imperativo categórico não em razão de tal ou qual finalidade, mas em decorrência do que ele, em si mesmo, representa. Desta forma, respeitar-lhe a prescrição não é ato que se deve ter por motivação outro movens senão pelo respeito do próprio conteúdo que ele enfeixa. Age-se por dever, em decorrência própria daquilo expresso no imperativo12.

busca alcançar os mais variados fins (se o médico quer curar o paciente de tal doença deve receitar-lhe a medicação adequada), pouco importa o julgamento ético que se possa fazer de tal prescrição, porquanto o que está em jogo é somente a capacidade que a atitude tomada tem de possibilitar a execução da finalidade almejada. Os imperativos hipotéticos - também chamados por Kant de imperativos de prudência - que se ligam a uma intenção real – princípio assertórico-prático - coligam-se em verdade com a felicidade, meta esta que se deve pressupor por todos buscada; cada qual, porém, segundo melhor lhe parecer (afinal a felicidade é algo absolutamente subjetivo). Assim sendo, não é possível nesse segundo caso (dos imperativos de prudência) o estabelecimento de uma regra precisa válida para todos (KANT, 1990, p. 51-52).

10 Neste sentido, destaque-se: “Para tornar bem marcada esta diferença, creio que o mais conveniente seja seria denominar estes princípios por sua ordem, dizendo: ou são regras de destreza, ou conselhos de prudência, ou mandamentos (leis) da moralidade. Pois só a lei traz consigo o conceito de uma necessidade incondicionada, objetiva e consequentemente de validade geral, e mandamentos são leis a que tem de obedecer-se, quer dizer que se têm de seguir mesmo contra a inclinação. O conselho contém, em verdade, uma necessidade, mas que só pode valer sob a condição subjetiva e contingente de este ou aquele homem considerar isto ou aquilo como contando para sua felicidade; enquanto o imperativo categórico, pelo contrário, não é limitado por nenhuma condição e se pode chamar propriamente um mandamento, absoluto, posto que praticamente necessário. Os primeiros imperativos poderiam ainda chamar-se técnicos (pertencentes à arte), os segundos pragmáticos (pertencentes ao bem-estar), os terceiros morais (pertencentes à livre conduta em geral, isto é, aos costumes).” (KANT, 2004, p. 53. grifo do autor).

11 Est’último imperativo - mandamento, então, da moralidade – pode ser expresso assim: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne universal, [...mas como...] a universalidade da lei, segundo a qual certos efeitos se produzem, constitui aquilo a que se chama propriamente natureza no sentido mais lato da palavra (quanto à forma), quer dizer, a realidade da coisas, enquanto é determinada por leis universais, o imperativo universal do dever poderia também exprimir-se assim: Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” (KANT, 1990, p. 59).

12 Confira-se ainda Bobbio, para quem a distinção entre autonomia e heteronomia pode, sim, servir como base para a diferenciação entre Direito e moral: (BOBBIO, Norberto. Diritto e Stato nel Pensiero di Emanuele Kant. 2. ed. Torino: G. Giappichelli, 1969, p. 108-109).

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Cuida-se aqui de algo interno, de uma adesão íntima às suas próprias leis, numa intenção pura que nada a mais pretende (nem mesmo a felicidade13) senão a obediência mesma da legislação moral.

Não há – diferentemente do que se dá com o Direito, onde, campo que se vale de imperativos hipotéticos, tudo se passa no campo externo14 – a mera exigência de cumpri-mento do determinado, com a finalidade, por certo, de evitar a coação; mais do que isso, está-se a exigir que a ação, para ser moral, tenha por motivo o próprio dever15, o respeito mesmo pela lei moral.

2.1.3. Autonomia e Heteronomia, Moralidade e Legalidade

Com essa exigência de obediência à regra em si, é que têm vez não só o conceito kantiano de autonomia – entendida então como “[...] aquela sua propriedade [...proprie-dade da vontade...] graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da na-tureza dos objetos do querer)” (KANT, 1990, p. 85, grifo nosso) -, como ainda a investida do autor contra toda a tentativa de fazer de algo externo à vontade do agente o verdadeiro sustentáculo para legítimos princípios da moralidade (KANT, 1990, p. 86).

Também Norberto Bobbio (1969, p. 105) entende que a distinção kantiana entre autonomia e heteronomia dá, ladeada por critérios outros, sustentação à diferenciação, naquele autor, existente entre Direito e moralidade.

De fato, se é requisito da ação moral a conduta por dever, bem se vê que somente uma vontade autônoma – capaz de ditar para si regras e, em razão dest’últimas, cumpri-

13 Ou seja, não se deve obedecer ao imperativo categórico querendo, com isso, nem satisfazer inclinações advindas da sensibilidade/interesses materiais, nem mesmo ser feliz; tal obediência é devida, tão só, pelo dever mesmo de seguir o enunciado no imperativo categórico. Tal premissa, contudo, não implica que se deva renunciar à felicidade, mas somente quer significar que, quando se trata de imperativo categórico, não é caso de por em questão a felicidade (cf. GOMES, Alexandre Travessoni. O Fundamento de Validade do Direito – Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 70).

14 Essa distinção – de um lado a moralidade (a exigir uma ação por dever, como que aceitando a máxima determinada pela lei) e, d’outro, a legalidade (para a qual basta a mera conformidade entre a ação e a lei) – traz consigo colores ideológicos liberais sublinhados por Bobbio (1969, p. 95-96, grifo do autor): “Dire infatti chi el diritto doveva accontertarsi dell’adesione e esteriore, equivaleva a dire che lo stato, della cui volontà la legge giuridica era la principale manifestazione, non doveva intromettersi nelle questione di coscienza, e pertanto doveva riconoscere all’individuo uma sfera della propria personalità destinata a restar libera de qualsiasi intervento di um potere esterno com’era lo stato.[...] Sollo attraverso una netta distinzione tra leggi che obligano in conscineza e leggi che non obligano in conscienza, e attribuendo allo stato il potere de pretendere l’obbedienza soltato delle seconde, si venne a distinguere lo stato come legislazione esterna, della Chiesa o dalla ragione come sistemi di legislazione interna, e si riconobbe allo stato un âmbito più restretto e più delimitato di efficacia che coincideva com lo ambito della legalità distinta della moralità”.

15 Quanto ao conceito de dever em Kant, são estas as suas palavras: “A moralidade é, pois, a relação das ações com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação universal possível por meio de suas máximas. A ação que possa concordar com a autonomia da vontade é permitida; a que com ela não concorde é proibida. A vontade, cujas máximas concordem necessariamente com as leis da autonomia, é uma vontade santa, absolutamente boa. A dependência em que uma vontade não absolutamente boa se acha em face do princípio da autonomia (a necessidade moral) é a obrigação. A necessidade objetiva de uma ação por obrigação chama-se dever” (KANT, 2004, p. 84, grifo do autor).

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las em virtude do que elas próprias dispõem - pode ser efetivamente moral. De sua parte, todo aquele atuar que não se encaixe nessa caracterização – tendo por base uma finalida-de qualquer – passa a ser heterônomo, porque seu móbil é algo estranho à própria lei, é algo fora dela, como se dá, em função do medo da coação (possível motivo da conduta), com o Direito.

2.2. O Direito em Kant

No que tange à noção de Direito em Kant, a primeira ideia que se deve ter é aquela conforme a qual tal autor não tem por precípua preocupação o que se dá no campo “an-tropológico”, vale dizer, tudo quanto se encontra vicejante no campo concreto da empi-ria - e, no que toca ao Direito, tudo quanto legislado (KANT, 2004, p. 36). Preocupa-se o filósofo alemão16, antes, com a descoberta de princípios de Direito cujos rigores, anterio-res a qualquer legislação, sirvam de inspiração para o Direito legislado17. São esses princí-pios, mais do que qualquer legislação eventualmente existente na história da humanidade (KANT, 2004, p. 35-36), que possibilitam ao homem compreender o Direito como valor, como verdadeira ideia de justiça.

Conforme já mencionado a contrario sensu - quando se destrinçava a moralidade no pensamento kantiano18 -, no âmbito do Direito o que se busca é a coerência externa entre a ação e o dever, sem que se pergunte pelas razões levadas em consideração pelo agente.

De fato, cuidando o Direito de espécie de legislação externa, está-se, aqui, na órbita de regras para cuja obediência é de somenos importância saber se a ideia que embasa o dever seja por si mesma o motivo determinante da vontade do agente.

16 “Aqui nota-se claramente o paralelismo entre a filosofia teórica e a filosofia prática de Kant. No âmbito da razão teórica a questão foi responder ‘como é possível a ciência?’ e não ‘se é possível a ciência’, visto que a existência da ciência (de Newton a Galileu) é fato. O método crítico ou filosofia transcendental consistiu, portanto, na Crítica da Razão Pura, em partir de um fato – a existência da ciência – e, com base nesse fato, buscar os princípios primeiros de sua possibilidade. O método é novamente aplicado no âmbito da filosofia prática: na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Kant preocupou-se em responder à questão ‘como são possíveis os juízos sintéticos a priori práticos?’, ou, em outros termos, ‘como são possíveis os imperativos categóricos?’. A resposta a essa questão está no pressuposto da liberdade, ideia que fundamenta todo o edifício ético kantiano (HERRERO, Francisco Javier. op cit.). No Direito, a questão é paralela. Não se preocupa Kant ‘se’ é possível o Direito, mas ‘como’ é possível o Direito; e, como o Direito faz parte da ética (lato sensu), a resposta é que ele só é possível se o homem pensa a si mesmo como um ser autônomo, capaz de dar a si sua própria lei” (SALGADO apud GOMES, 2000. p. 72).

17 Daí a divisão kantiana da doutrina do Direito, entendida esta como “conjunto de leis para as quais é possível uma legislação exterior” (KANT, 2004, p. 35) em: a) doutrina do direito positivo (quando se cuida de uma legislação real); b) jurisprudência (quando, mais do que com o texto legislado, tem-se preocupação com o a aplicação da norma jurídica aos casos concretos); e c) ciência do Direito, denominação que “corresponde ao conhecimento sistemático da doutrina do Direito natural.” (Ibid., p. 25).

18 Sem dúvida, quando se trata de moralidade em Kant, está-se diante de deveres internos, relativos a uma legislação interna. A fim de não haver confusão acerca do sentido em que ora se toma a expressão “legislação interna” (campo relativo às leis morais), em contraposição à liberdade externa (cadinho referente às leis jurídicas), confira-se Bobbio (1969, p. 99-100), para quem: “legislazione morale è non già quella que prescrive doveri verso se stessi, bensì quella del cui adempimento rispondiamo soltanto fronte a noi stessi; legislazione giuridica è non quella che prescrive doveri verso gli altri, bensì quella del cui adempimento siamo responsabili di fronte alla collettività”.

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2.2.1. Os Elementos Constitutivos do Direito

É est’último característico – seu caráter externo – que Kant vai sublinhar como o primeiro dos elementos constitutivos do conceito de Direito, que é então entendido como relação externa e prática entre pessoas (KANT, 1990, p. 36). A essa primeira referência, Kant vem agregar outra, apontando que não é qualquer relação externa entre homens que pode ser considerada Direito, porque este somente diz com a relação entre arbítrios19, de maneira que não basta, no âmbito do Direito, existir uma relação entre os desejos de dois homens, ou, ainda, entre o desejo e o arbítrio de um deles.20

Quanto a este ponto – Direito como relação externa entre dois arbítrios – importa fazer aqui breve digressão, voltada explicitamente à temática de separação entre Direito e moralidade na obra de Kant21.

Ora, por ser o dever jurídico espécie de dever pelo qual o agente, em seu respec-tivo arbítrio, é responsável externamente perante os outros, é que o Direito encontra, aí também, uma especificidade ausente na moralidade. Como já indicado, esta, em suas obrigações, diz com aquelas ações pelas quais, mesmo direcionadas aos outros, o agente somente é responsável perante a sua própria pessoa, isto é, internamente. Assim sendo, no âmbito moral, ou se cumpre determinada obrigação porque internamente, em função do dever que ela impõe em si ao sujeito, este se sente obrigado, ou moralidade não existe (porquanto aí estaria sendo instado a cumpri-la seja por determinado móbil, seja por terceiro que a tanto o obrigasse).

19 Não é desarrazoado notar: Direito, em Kant, é relação entre o arbítrio dos homens: é só entre eles, é só essa relação - que gera direito e, por conseguinte, obrigação - que pode ser tida por jurídica: tudo quanto não se encontra aí envolvido não pode ser tido por Direito. Então, a relação entre homens e animais, homens e escravos, homens e Deus fica fora da esfera do jurídico (BOBBIO, 1969, p. 101-102), sendo sintomática a explicação kantiana acerca dos direitos reais (tipicamente entendidos como ius in re, ou seja, direto que o homem tem diretamente sobre a coisa): “o direito a uma coisa é o direito ao uso privado de uma coisa, em cuja posse comum (originária ou instituída) estou com todos os outros. O último é, de fato, a única condição sob a qual é possível que eu exclua qualquer outro possuidor do uso provado da coisa (ius contra quemlibet huius rei possessorem) [...] Portanto, em sentido próprio e literal, não há nenhum direito (directo) a uma coisa, mas denomina-se assim unicamente aquele que corresponde a alguém frente a uma pessoa, que está na posse comum com todos os outros” (KANT, 2004, p. 70, grifo nosso).

20 Acerca da distinção kantiana entre desejo e arbítrio, note-se que o desejo liga-se à representação de um objeto posto como finalidade; mais do que isso, o arbítrio é, uma vez colocado aquele objeto como fim, a consciência da possibilidade de alcançá-lo, de produzi-lo (KANT, 1990, p. 17-18). O exemplo de cátedra (BOBBIO, 1969, p. 114-115) apto a distinguir referidos conceitos é o de atos de mera benevolência, como, por exemplo, a esmola. Quem pede esmola nada pode fazer senão pôr-se em sujeição a outrem, escapando-lhe, não a representação do fim almejado (o recebimento do dinheiro em que se materializa a esmola), mas o próprio arbítrio relativo a ele. Ainda nesse exemplo, o pedinte não tem o arbítrio de receber a esmola, tem somente o desejo - submisso, aí sim, ao arbítrio de outrem - de recebê-la.

21 Certamente aqui, mais do que, como indicado nos primeiros parágrafos do artigo, mera distinção formal entre o Direito e a moralidade (de fato, ao distinguir a moralidade da legalidade tendo em vista somente a relação de conformidade existente entre a ação e a lei, bem se vê que, dependendo do seu móbile, a mesma atitude praticada por dois agentes distintos poderá ser abraçada ou pelo Direito ou pela moralidade), está-se a formular distinção entre aquelas duas esferas que diz mais com a constituição de cada uma delas.

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Na moralidade, está-se num âmbito em que tem vez espécie de “liberdade interna”22, isto é, onde a ação (não importa se direcionada ao próprio agente – como se dá com os deveres de virtude relativos à própria perfeição –, ou se apontada para os outros – como ocorre com os “deveres de virtude” relacionados com a felicidade dos outros) deve ade-quar-se às normas dadas pela própria consciência, sem a possibilidade, certamente exter-na, de motivos outros para fins de cumprimento daquela obrigação.

No campo do Direito – campo, outrossim, da ‘liberdade externa’ – aquele móbile passa a ser absolutamente irrelevante: basta o cumprimento externo da obrigação, cum-primento este que, sendo eu obrigado perante terceiro (e não somente perante minha pes-soa), pode dar-se de forma coercitiva. É exatamente essa possibilidade enfeixada por esse terceiro de fazer o arbítrio de outrem, obrigado recalcitrante, proceder de acordo com a obrigação jurídica estabelecida (independentemente do móbile para tal), que confere ao terceiro o direito subjetivo (BOBBIO, 1969, p. 130) àquela prestação.

Então, aí se revela a relação amalgamada presente já em Kant entre direito e dever, relação em que um e outro passam a ser como que faces de uma só e mesma moeda. De fato, se alguém tem direito a algo, é porque outro alguém tem o dever jurídico de prestar esse algo, independentemente da vontade do devedor, e com a possibilidade de est’último ser a tanto obrigado23.

Quanto aos elementos constitutivos do conceito de Direito, de perceber que nesta mesma relação recíproca de arbítrios “não se atende de modo algum à matéria do arbítrio, a saber, o fim que cada qual se propõe com o objeto que quer [...], mas apenas se pergunta pela forma na relação do arbítrio de ambas as partes” (KANT, 2004, p. 36).

Aí notável o formalismo jurídico kantiano, para o qual, bem antes de sindicar o conteúdo do estabelecido pela relação externa entre os arbítrios, o Direito há de limitar-se a envolvê-lo por determinada forma, capaz de desenhar o modo por que determinado arbítrio possa conformar-se com o de todos os outros (BOBBIO, 1969, p. 117)24, vindo à tona aí o terceiro requisito que completa o conceito kantiano de Direito: “[...] o Direito é, pois, o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de um se pode harmonizar com o arbítrio do outro, segundo uma lei universal” (KANT, 2004, p. 36).

22 Tradução literal do que em Bobbio (BOBBIO, 1969, p. 96) está como: libertà interna e libertà esterna.23 “Il fatto che nell’azione giuridica io sia responsabile di fronte agli altri, istituisce um determinato rappporto tra me e gli altri,

che si può chiamare rapporto intersoggetivo [...] In tale rapporto, all’obbligo o dovere di chi se adequa alla legge corrisponde nell’altro o negli altri um potere di costringermi all’adepimento dell’azzione, e questo potere è cio che si chiama comunemente diritto in senso soggetivo. Allora possiamo dire che l’esperienza giuridica è caratterizzata dalla corrispondenza di in diritto a un dovere e reciprocamente di un dovere a un diritto, o dalla presenza simultanea di un dovere de una parte e di un diritto dall’altra: cio che se chiama rapporto guiridico” (BOBBIO, 1969, p. 100-101).

24 “[...] Il diritto prescrive non già ciò che si deve fare, ma come se debba farlo. Ciò che io devo fare per regulare i miei interessi mi viene indicato dall’economia; il diritto con tutte Le sua prescrizioni si limita a dirmi come debbo agire per raggiungere insieme com gli altri o in concorrenza con gli altri i miei scopi; insomma si limita a fare in modo che, qualunque sia l’oggeto del mio desiderio, il mio arbitrio possa accordarsi con l’arbitro di tutti gli altri” (BOBBIO, 1969. p. 117, grifo nosso).

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Estabelecida tal definição, Kant incontinenti passa a transcrever tanto o princípio universal do Direito – “conforme com o Direito é uma ação que, ou cuja máxima, per-mite à liberdade do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos, de acordo com uma lei universal” (KANT, 2004, p. 37) - como ainda sua lei universal – “[...] age externamente de modo que o uso livre do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal” (KANT, 2004, p. 37). Em ambas, aparece a ideia de uma máxima universal – imperativo categórico – cuja obediência fará com que todos os arbítrios, livres que são, possam exercer plenamente a liberdade. O Direito é esse conjunto de condições que, sendo como que um garante das limitações recíprocas da liberdade de cada homem (tudo isso segundo uma lei universal25), dá ensejo à convivência humana, convivência est’última que é abalada quando qualquer um dos membros da sociedade, a pretexto de “fazer uso” sua liberdade em conformidade com a lei universal, ultrapassa tal limite, pondo em risco a liberdade alheia.

2.2.2. Direito e Coação

Neste passo é que a coação26 – ou melhor, faculdade de coagir27 - liga-se com a concepção de Direito.

Com efeito, se certa manifestação da liberdade, como embuste ao seu exercício em conformidade com leis universais, acaba por ultrapassar seus limites, é o Direito – Direito em sentido estrito28 – que deve atuar como força de reação para fins de impedir aquele excesso.

25 De notar que, sim, se trata de uma liberdade limitada; mas de uma limitação que tem por fundamento a lei universal que garante a todos e a cada um o verdadeiro uso livre de sua liberdade.

26 Quanto à relação entre a coação e o direto dentro da história do pensamento jurídico, desde os romanos até, já então no jusnaturalismo moderno, Cristiano Thomasius, de pontuar as palavras de Bobbio (BOBBIO, 1969,p. 128-129): “E dal Thomasius in poi tutti i filosofi del diritto hanno preso posizione di fronte al problema, schievandosi o col Thomasius in favore della coazione come elemento constitutivo della nozione del diritto o contro il Thomasius in favore della dissociazione tra le nozione di diritto e quella di coazione. Kant appartiene indiscutibilmente alla prima schiera: per lui la nozione del diritto é strettamente connessa con quella della coazione”.

27 Neste passo, importa, desde logo, notar: “[...] outra característica importante do texto kantiano é a ligação da faculdade de agir (e não da coação real e efetiva) ao Direito. É sabido que um dos mais fortes argumentos contra as teorias jurídicas que afirmam a coação como nota essencial da norma jurídica é a de que o Direito nem sempre se realiza pela coação efetiva. As pessoas obedecem à norma jurídica, muitas vezes, independentemente da imposição forçada da sanção jurídica. Kant está ciente disso e por isso mesmo não afirma ser a força sempre exercida (embora ela o possa, às vezes, ser), mas ser sempre possível o uso da força. Mesmo quando o Direito é cumprido espontaneamente, ainda assim está presente a coação (enquanto possibilidade).” (GOMES, 2000, p. 74).

28 A ressalva é aqui importante porque, muito embora não seja decisivo para o tema de que se ocupa o artigo, deve ser notada certa classificação do direito dada por Kant (1990, p. 40) que, sim, admite a existência de uma espécie de direito onde coação não existe: trata-se das duas categorias do Direito em sentido amplo (ius latum), i.e., equidade e o direito de necessidade. Quanto à equidade, entendida então como um Direito sem sanção, Kant explica que, em se tratando dela, o juiz não tem as condições de que necessita para determinar em que medida aquele que lhe submete uma reclamação, fundada na equidade, deve ser atendida. Daí, neste particular, mencionar o autor o brocardo jurídico summum ius summam injuria, demonstrando que, embora justa, a pretensão daquele que se funda exclusivamente na equidade não haverá de ser acolhida por um tribunal de Direito em senso estrito. Somente um tribunal da consciência

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O Direito é, pois, o obstáculo ao obstáculo injustamente imposto à liberdade con-forme leis universais. Ou seja, se alguém, a pretexto de usar legitimamente sua liberdade, o faz de modo, todavia, ilimitado é o Direito que vai de encontro a esse uso temerário da liberdade, fazendo por cerceá-lo mediante a coação. Vale dizer: o Direito é a negação da negação àquela legislação universal, motivo pelo qual não há encontrar contradição entre a liberdade e o Direito, ou, por outra, entre a liberdade e a coação característica do Direito, uma vez que

se determinado uso da própria liberdade é um obstáculo à liberdade segundo leis universais (isto é, contrário ao Direito), então a coação que se lhe opõe, enquanto obstáculo perante quem estorva a liberdade, concorda com a liberdade segundo leis universais (KANT, 2004, p. 38).

De notar como tais contornos dados ao Direito por Kant também estão em direta conexão com a distinção entre moralidade e Direito. Com efeito, é por poder ser coação, que o Direito não há de ser confundido com a moralidade (âmbito em que, longe de ter por aguilhão a coação - ou a ameaça dela -, a ação se dá, internamente, pelo respeito in-terno ao mandamento que o imperativo encerra). Vale dizer: a sanção se coaduna apenas com o conceito de Direito, campo em que, independentemente da vontade do agente, a ação é tomada, sendo relevante, apenas, o seu caráter externo.

Para o cumprimento de uma obrigação jurídica não se há, pois, de recorrer à cons-ciência do obrigado para fins de cumprimento, bastará forçá-lo - e assim mesmo contra a sua vontade – ao adimplemento externo daquilo a que ele se obrigou (KANT, 1990, p. 38-39). Perceba-se que não há tal possibilidade no âmbito da moralidade, onde a só indicação de que a atitude teve como móbil – ainda quando em nível de ameaça – a coação, afasta a possibilidade do agir moral.

2.3. Possíveis Critérios de Distinção

Diante desses elementos do pensamento kantiano, podem ser indicados quatro pontos que sirvam para distinguir o Direito da moral: a) o cumprimento do dever no âmbito da legalidade pode ocorrer “heteronomamente”, o que é impossível na moral, onde somente têm vez as ações por dever; b) o Direito vale-se de imperativos hipotéticos (cuja observância só tem razão de ser se levados em consideração os fins a que se pretende che-gar), enquanto a moral só lança mão de imperativos categóricos (a que se deve respeito in-dependentemente do objetivo que se almeje); c) o Direito diz com deveres em relações aos

poderia remediar essa exigência jurídica. No que tange ao direito de necessidade – hipótese em que se teria uma coação sem direito -, Kant menciona o conhecido exemplo dos dois náufragos que disputam a única tábua restante no oceano. Nessa hipótese, estar-se-ia diante de um caso reprovável, mas não punível, até porque a lei que tencionasse penalizar tal ato estaria prescrevendo mal menos certo do que aquele que sofreria o agente caso não disputasse com o outro náufrago o pedaço de madeira. Nesses dois casos – chamados ius aequivocum –, dá-se: “[...] o que alguém com boas razões reconhece por si mesmo como justo não pode encontrar confirmação diante de um tribunal [trata-se aqui da equidade], e o que ele tem de julgar como injusto em si pode alcançar indulgência perante o próprio tribunal [aqui, referindo-se ao direito de necessidade].” (Ibid., p. 42).

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quais tem o agente de prestar contas perante terceiros (que podem, mesmo, obrigar-lhe a cumprir o devido independentemente da vontade daquele), a moral diz com deveres em relação aos quais, mesmo quando envolvidos terceiros em seu conteúdo, é em perante si próprio que o agente será chamado a prestar contas; e d) o Direito diz com ações tomadas meramente conforme o dever, enquanto a moral exige o proceder por dever.

3. Moral e Direito em Kelsen

A existência de duas espécies distintas de lei – qual se dava em Kant - também se encontra na obra de Kelsen, agora permeada por considerações outras que merecem destaque.

Com efeito, Kelsen também parte da premissa da existência de leis naturais – onde incidente o princípio da causalidade29 – contraposta à de “normas sociais” (KELSEN, 1986, p. 67) – onde viceja o princípio da imputação30 - deixando ele mesmo bem clara a distinção entre os tipos de prescrição de que se servem: na primeira, diz-se se ‘A’ é, en-tão, ‘B’ necessariamente será (v.g.: se se esquenta o metal, ele necessariamente haverá de dilatar-se), enquanto as “leis sociais”31 – morais ou jurídicas –, expressam-se pelo seguinte modo: se ‘A’ é, logo ‘B’ deve ser (por exemplo: ocorrendo um homicídio, seu autor deve ser apenado conforme estabelece a lei)32, tudo isso em conformidade com o paradigma kantiano de separação entre ser e dever-ser33.

29 É, pois, através da descoberta das leis naturais que a ciência natural poderá ser capaz de conhecer e descrever a natureza: “a natureza é, segundo uma das muitas definições deste objeto, uma determinada ordem das coisas ou um sistema de elementos que estão ligados uns com os outros, como causa e efeito, ou seja, portanto, segundo um princípio que designamos por causalidade. As chamadas leis naturais, com as quais a ciência descreve esse objeto – como, v.g., esta proposição: quando um metal é aquecido, dilata-se – são aplicações desse princípio. A relação que intercede entre o calor e a dilatação é a de causa e efeito” (KELSEN, 2006, p. 85).

30 Isto é, “na ligação estabelecida por uma norma geral – jurídica ou moral – entre condição e sanção como conseqüência, que é descrita pela ética e pela ciência do Direito nas leis moral e jurídica, opõe-se-nos, por ilação, um princípio, o da causalidade, que se expressa nas leis da natureza, formuladas pela Ciência Natural, na verdade diferente, mas a ele sempre análogo. Eu propus qualificar esse princípio como imputação” (KELSEN, 1986, p. 31-32, grifo do autor).

31 Registre-se, desde logo, a distinção talhada por Kelsen (op. cit., p. 80-81) entre proposição jurídica e norma jurídica: est’última é a ordem legal propriamente dita, o comando que determina em certos casos tal ou qual consequência jurídica. É, enfim, o texto da lei. A proposição jurídica diz com os juízos que se fazem por sobre a norma, como modo de interpretá-la, integrá-la ou explicá-la.

32 Tratando especificamente da “lei jurídica” – consideração que se pode aplicar ainda à lei moral – em contraposição à lei natural: “na proposição jurídica não se diz, como na lei natural que, ‘quando A é, B é’, mas que ‘quando A é, B deve ser’, mesmo quando B porventura não seja efetivamente. O ser o significado da cópula ou ligação dos elementos na proposição jurídica do da ligação dos elementos na lei natural resulta da circunstância de a ligação na proposição jurídica ser produzida através da norma estabelecida pela autoridade jurídica – através de um ato de vontade, portanto – enquanto a ligação de causa e efeito, que na lei natural se afirma, é independente de qualquer intervenção desta espécie” (KELSEN, 2006, p. 86-87. grifo nosso).

33 “[...] Ninguém pode negar que o enunciado: ‘tal coisa é’ – ou seja, o enunciado através do qual descrevemos um ser fático – se distingue essencialmente do enunciado: algo deve ser – com o qual descrevemos uma norma – e que da circunstância de algo ser não se segue que algo deva ser, assim como da circunstância de que algo deve ser se não segue que algo seja [...]. A expressão: ‘um ser corresponde a um dever ser’ não é inteiramente correta, pois não é o ser que corresponde ao dever ser, mas é aquele ‘algo’, que por um lado ‘é’, que corresponde aquele ‘algo’, que, por outro lado,

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3.1. Ciência Jurídica e Ética: Ciências Sociais Normativas

Já indicado que a ciência natural cuida de, conforme o princípio da causalidade, descrever a natureza por meio da descrição das leis dest’última – leis estas que obedecem, como visto, ao padrão “se ‘A’ é, ‘B’ é” -, importa aqui indicar particularidade do pensamen-to kelseniano.

É que - poder-se-ia indagar – também a conduta humana faz parte da natureza, de forma que, se a distinção entre ciência natural e social tivesse por base somente a diferencia-ção “conduta humana versus natureza”, certamente a classificação de Kelsen estaria desdita.

Absolutamente não se trata disso.Isso porque, firme em que a ciência do Direito não tem objeto senão a norma ou o

sistema de normas, Kelsen defende, sim, a existência de ciências sociais que, aplicando o princípio da causalidade à conduta humana, “[...] têm por o objeto a conduta humana à medida que se processa no domínio da natureza ou da realidade natural [...].” (KELSEN, 2006, p. 95).

É o que se passa, segundo o referido autor (KELSEN, 2006, p. 96), com a Sociologia, Psicologia e História, ciências com relação às quais as chamadas ciências naturais – Bio-logia e Física – não teriam diferença de fundamento.

No âmbito da ética – ciência da moral – e da ciência jurídica, porém, tem-se por objeto a sociedade, entendida est’última como “[...] uma ordem normativa da conduta dos homens uns em face dos outros [...]” (KELSEN, 2006, p. 96). É somente assim34 que a distinção “ciência social’ versus ‘ciência natural” tem razão de ser na obra de Kelsen35.

É com esses pressupostos relativos à ciência do Direito e à ética – duas ciências sociais normativas, que têm por respectivos objetos o Direito e a moral – que se pode avançar na temática proposta.

‘deve ser’, e que, figurativamente, pode ser designado como conteúdo do ser ou como conteúdo do dever-ser. [...] Nestas duas proposições: a porta está fechada e a porta deve ser fechada, o ‘fechar a porta’ é, no primeiro caso, enunciado como algo que é, e, no segundo caso, como algo que deve ser. A conduta que é e a conduta que deve-ser não são idênticas. A conduta que deve ser, porém, equivale à conduta que é em toda medida, exceto no que respeita à circunstância (modus) de que uma é e a outra deve ser” (KELSEN, 2006, p. 5-6).

34 Em verdade, o conceito do que seja “sociedade” passa por uma completa transfiguração: “somente quando a sociedade é entendida como uma ordem normativa da conduta humana dos homens entre si é que ela pode ser concebida como um objeto diferente da ordem causal da natureza, só então é que a ciência social pode ser contraposta à ciência natural. Somente à medida que o Direito for uma ordem normativa da conduta dos homens entre si pode ele, como fenômeno social, ser distinguido da natureza, e pode a ciência jurídica, como ciência social, ser separada da ciência da natureza” (KELSEN, 2006, p. 86).

35 Com efeito, é somente deslocando as ciências sociais para o campo das ciências que têm por objeto a descrição do dever-ser, é que Kelsen consegue estabelecer suas premissas: “uma distinção essencial existe apenas entre as ciências naturais e aquelas ciências sociais que interpretam a conduta recíproca dos homens não segundo o princípio da causalidade, mas segundo o princípio da imputação; ciências que não descrevem como se processa a conduta humana determinada, mas como ela - determinada por normas positivas, isto é, por normas postas através de atos humanos - se deve processar” (Ibid., p. 96).

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3.2. A Discordância com o Pensamento Kantiano

Já na própria distinção entre moral e ética, Kelsen vai de encontro ao pensamento kantiano.

De fato, se para est’último autor a distinção moral/ética é como que fugidia (leis éti-cas seriam, ao lado das jurídicas, como que espécies da lei moral [contraposta est’última às leis naturais]), para o autor de Teoria Pura do Direito ela é bastante clara, porque quan-do este se refere à “moral positiva” - o adjetivo ‘positiva’ tem por função impedir que no âmbito da moral grassem prescrições efêmeras e casuais, fracas em efetividade (KELSEN, 1986, p. 179) - está a mencionar determinado sistema de normas que traz consigo prescri-ções para a conduta humana. Esse sistema é objeto de uma ciência social normativa que, por sua vez, tem por nome Ética (KELSEN, 1986, p. 12.)36; é exatamente essa a pontual distinção entre moral e ética em Kelsen.

Também a separação kantiana entre moral (campo em que a ação, em conformida-de com a lei, dá-se internamente por dever) e Direito (cadinho em que basta que a condu-ta esteja externamente conforme a lei) é rejeitada pelo autor de Teoria Geral das Normas (KELSEN, 2006, p. 68).

Realmente, Kelsen (KELSEN, 2006, p. 68-69) defende que não somente a conduta moral como ainda a “legal” – no âmbito da legalidade – tenha de ser praticada ainda quan-do contra os interesses egoísticos, até porque uma prescrição legal que fosse ao encontro dos interesses daqueles a quem destinada seria irrelevante, “[...], pois os homens seguem as suas inclinações ou procuram realizar seus interesses egoísticos mesmo sem a tal obri-gados [...]” (KELSEN, 2006, p. 69). Nesse passo, o autor (KELSEN, 2006, p. 70) afirma também que, na forma do pensamento kantiano, a moral estaria reduzida a referir-se aos motivos da conduta externa, o que a tornaria imperfeita ou incompleta, porquanto, desta forma, estaria sempre a depender de normas outras, as quais, combinadas com aquelas que cuidam dos motivos, deveriam definitivamente prescrever a conduta externa.

Por fim, a existência de normas gerais37 categóricas - que devem ser obedecidas em si, sem nenhuma intenção de finalidade – também é negada, reservando Kelsen tal cate-goria – normas categóricas – somente àquelas de caráter individual.

36 Ou seja, já assentada a diferença entre proposição jurídica e norma jurídica, de reforçar a ideia de que as ciências sociais normativas fazem somente descrever seu objeto – seja a moral, seja o Direito – sem gerar, elas próprias, prescrição alguma (KELSEN, 1986, p. 82). Quanto às “proposições éticas”: “enunciados sobre a validade de normas da Moral são proposições nas quais a ética, como ciência, descreve certa moral [...] A proposição do cientista da ética não é nenhuma norma, pois a Ética, como ciência, nada prescreve, mas apenas descreve as normas e ela dadas. Como um homem de ciência, o cientista da ética é tão pouco competente para fixar normas da Moral como o cientista do Direito para estabelecer normas jurídicas; o cientista da ética é tão pouco autorizado para arrogar-se uma autoridade moral como o cientista do Direito não é autorizado a pretender-se uma autoridade do Direito.” (Ibid., p. 196-197).

37 Note-se a particularidade do pensamento de Kelsen: “uma norma tem um caráter individual se uma conduta única é individualmente obrigada; p. ex. a decisão judicial de que o ladrão Schulze deve ser posto na cadeia por um ano. Uma norma tem o caráter geral se certa conduta universalmente é posta como devida, como, p. ex., a norma de que todos os ladrões devem ser condenados à prisão. O caráter individual ou geral da norma não depende de se a norma é dirigida

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Em verdade, Kelsen estabelece que, em relação às normais gerais, existem apenas normas hipotéticas (aí no sentido kantiano), ao passo que, em se cuidando de normas individuais, pode haver tanto normas categóricas38 – “[...] que prescrevem, autorizam ou positivamente permitem uma dada conduta de determinado indivíduo sem a vincular a determinado pressuposto [...]” (KELSEN, 2006, p. 112) – quanto hipotéticas, de cuja apli-cação só se há de lançar mão de forma condicional a tal ou qual finalidade/pressuposto (KELSEN, 2006, p. 113).

3.3. Moral e Direito em Kelsen: Pontos de Contato

Já se viu que tanto a ética, ciência que estuda a moral positiva, quanto a ciência do Direito, ocupada do Direito, estão no âmbito das ciências sociais normativas, às quais se aplica o princípio da imputação, consoante o qual, ocorrendo ‘A’, deve dar-se ‘B’, ‘B’ enten-dido aí como sanção.

Note-se, pois, que, ao contrário de Kant, em Kelsen a figura da sanção está presente tanto no Direito quanto na moral, não sendo sua existência, ou não, fator de diferenciação entre ambos as campos. Portanto, a diferença que existe entre moral e Direito não se dá por meio da incidência, ou não, da sanção.

Depois de perceber que, assim como em Kant, não será em Kelsen o conteúdo da prescrição moral ou legal que servirá de critério para determinar se dado regramento é de natureza moral ou jurídica – o suicídio, como ainda a coragem ou a fidelidade, mais do que deveres morais, são também deveres jurídicos segundo o autor (KELSEN, 2006, p. 68).

Outrossim, a forma de produção de ambas as normas – moral (trata-se aqui de uma moral positiva) e jurídica – não tem valia para servir de descriminante entre ambas as esferas de normatividade (KELSEN, 2006, p. 70), insuficiência essa que ocorre ainda se se lançar mão do modo por que tais prescrições são aplicadas (KELSEN, 2006, p. 70-71).

a um ser humano individualmente determinado ou a várias pessoas individualmente certas ou a uma categoria de homens, ou seja, a uma maioria não individualmente, mas apenas de certas pessoas de modo geral. Também pode ter caráter geral uma norma que fixa como devida a conduta de uma pessoa individualmente designada, não apenas uma conduta única, individualmente determinada, é posta como devida, mas uma conduta dessa pessoa estabelecida em geral. Assim quando, p. ex., por uma norma moral válida – ordem dirigida a seu filho – um pai autorizado ordena a seu filho Paul ir à igreja todos os domingos ou não mentir” (KELSEN, 1986, p. 10-11, grifo nosso). Contraposta à norma geral, a norma individual “[...] descreve a decisão judicial de um caso concreto; então esta decisão [...] de modo algum é apenas aplicação do Direito, senão simultaneamente também criação do Direito, a continuação do processo de produção do Direito que acontece no processo legislativo (ou do costume). Ela é um ato de individualização das normas jurídicas gerais que devem ser aplicadas. E essa individualização apresenta-se necessária porque um caso concreto não pode ser decidido somente por uma norma jurídica geral” (KELSEN, 1986, p. 285-286). Ao lado dessa norma individual, também é de notar a significação que Kelsen empresta aos negócios jurídicos, os quais, fatos produtores de normas, são assim considerados: “[...] não são normas jurídicas autônomas [...] apenas são normas jurídicas em combinação com as normas gerais que estatuem as sanções” (Id., 2006, p. 285).

38 “[...] é o que se passa quando, por exemplo, um tribunal decide que certo órgão tem de proceder a certa execução num determinado patrimônio, ou que certo órgão deve colocar na prisão, por um determinado período de tempo, certo réu” (KELSEN, 2006, p. 112-113).

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3.4. Moral Versus Direito: Pontos de Divergência e as Relações Existentes Entre Ambos

Uma diferenciação sutil – e mesmo não expressa por Kelsen de modo pontual – que pode ser inicialmente feita entre Direito e moral diz com a natureza da sanção de que cada uma daquelas esferas se vale.

Realmente, Kelsen distingue o caráter das sanções em transcendente e socialmen-te imanente, estabelecendo certo vínculo entre as sanções de natureza transcendente e a “mentalidade primitiva”, a qual aprecia os fatos naturais que “[...] afetam seus inte-resses segundo o princípio da retribuição: os que lhe são benéficos, interpreta-os como recompensa, e os que lhe são desfavoráveis como castigo [...].” (KELSEN, 2006, p. 30). Isso, porém, sem desconhecer o papel deste tipo de sanção em religiões “mais evoluídas” (KELSEN, 2006, p. 31).

De qualquer sorte, o traço distintivo das sanções transcendentes diz com o fato ou de elas provirem de um ente suprassocial, ou de terem execução no âmbito transcendente. Ao passo que cuidam as sanções de caráter socialmente imanente daquelas que, expressas por meio de simples atos de aprovação/desaprovação ou por atitudes ordenadas e regula-mentadas, se dão dentro da sociedade mesma, executadas, pois, pelos próprios membros seus (KELSEN, 2006, p. 31).

Logo, bem se vê que – estando presente a sanção seja na moral, seja no Direito, “as sanções das normas morais são ou transcendentes, tais como aquelas das normas de uma moral cristã [...] ou mesmo sanções terrenas, como a desaprovação do grupo” (GOMES, 2000, p. 133). Enquanto, quer parecer evidente na obra kelseniana, o Direito somente há de admitir uma sanção de natureza socialmente imanente, isto é, advinda da comunidade de homens e por esta aplicada.

Ao lado desta diferenciação, cumpre indicar aquela que fora sublinhada “de modo decisivo” (KELSEN, 2006, p. 37) pelo próprio Kelsen, qual seja: o uso da força física, que só é admitido pelo Direito39. De fato,

[...] a moral diferencia-se do Direito pelo fato de que a reação por aquela prescrita, suas funções, não têm como as do Direito o caráter de atos de coação, quer dizer: - como a sanção de Direito - não são executáveis com o emprego de força física quando enfrentam resistência [...]. (KELSEN, 1986, p. 30)40.

39 “[...] O Direito só pode ser distinguido essencialmente da moral quando – como já mostramos – se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme as normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer em linha de conta, portanto, o uso da forma física” (KELSEN, 2006, p. 71, grifo nosso).

40 Quanto ao monopólio da “coação da comunidade jurídica” exercido pelo Estado e seu Direito, premissa reconhecidamente weberiana, veja-se: ibid., p. 39-40.

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Igualmente, outra distinção é feita em Teoria Geral das Normas, qual seja: no âm-bito da moral uma conduta é prescrita não somente pelo fato de que, como ocorre no Direito, ser o seu oposto tido como pressuposto de determinada sanção estabelecida, mas ainda pelo fato de ser a conduta mesma que o sistema de leis morais pretende instigar objeto de outra espécie de sanção, já positiva, como a reverência, distinção etc. (KELSEN, 1986, p. 30-31).

Vale dizer: quando se está no campo do Direito, há de estabelecer-se que deter-minada conduta é prescrita pelo fato de o seu oposto figurar como pressuposto de de-terminada sanção (pretendendo o ordenamento que o furto não ocorra, a lei estabelece uma punição para aquela prática). Eventuais normas jurídicas que prevejam prêmios, condecorações, títulos e quejandos, embora existentes dentro do sistema legal, enfeixam importância secundária dentro do Direito, cujos rigores funcionam essencialmente como verdadeira ordem de coação41.

Por isso, logo se vê que o papel exercido pelas normas “premiais” pode, de alguma forma, ajudar a diferenciar Direito de moral (mesmo que isso se dê de forma menos clara e importante): naquele primeiro dos campos elas possuem papel absolutamente secundário quando postas em contraste com as clássicas normas sancionadoras. Na segunda esfera (a da moral), tanto as prescrições “premiais” quanto as constritivas, pode-se dizer, estão como que em pé de igualdade entre si quanto à importância exercida no sistema normativo.

Por fim, Kelsen também faz indicar outra espécie de diferenciação calcada agora na importância que cada tipo de norma enfeixa – a primária (aquela que descreve certa conduta) e secundária (a que prescreve a sanção no caso de descumprimento da primeira) (KELSEN, 1986, p. 181). É que, no âmbito moral, há um maior destaque para a norma primária, relegada a um segundo plano, pois, a secundária. Diz a regra moral, com efeito: “honrar pai e mãe”, ou “não cobiçar a mulher do próximo” sem, todavia, estabelecer qual a sanção a que se sujeita quem não a cumpre.

Logo se vê que, nesse campo, têm maior destaque as normas primárias, isto é, aque-las que ditam o proceder almejado pela instância legisladora. O dever moral, aqui, nasce independentemente da previsão de uma sanção, para o caso de descumprimento.

Esse paradigma inverte-se quando se analisa o Direito. Nest’último, o legislador não prescreve por meio de normas primárias (a regula iuris não diz “não mate”), mas sim por força de secundárias. De fato, o texto legal limita-se a prever que, se matar, ou se roubar, o agente deve ser apenado de tal ou qual modo, a bem demonstrar que o intento do legislador é evitar o assassinato e o roubo.

41 “[...] O porte de um título ou de uma condecoração, isto é, de um emblema, cujo sentido subjetivo é uma distinção, ou não é juridicamente proibido, quer dizer, não condiciona a aplicação de uma sanção e é, portanto, negativamente permitido, ou – e este é o caso normal – é jurídica e positivamente permitido, quer dizer, é proibido, condicionando a aplicação de uma sanção, quando não for expressamente permitido, por efeito de sua concessão. A situação jurídica só pode, neste caso, ser descrita como delimitação, através de uma norma, da validade de uma norma proibitiva estatuidora de uma sanção, e, portanto, apenas o pode ser com referência a essa tal norma coativa” (KELSEN, 2006, p. 37, grifo nosso).

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Essa particularidade do Direito é tão marcante, que, para o autor, a fim de saber o que pretende o ordenamento dos cidadãos, basta conhecer qual a conduta cujo contrário é sancionado, vale dizer: o modo por que o Direito impõe certo comportamento é somen-te (KELSEN, 1986, p. 182) fazendo coligar ao seu oposto (ao oposto do comportamento que se pretende impor) determinada sanção.

Neste âmbito, a bem sublinhar o Direito enquanto “ordem de coação”, o dever ju-rídico passa a ter estrita relação com a sanção que se fez estabelecer para o caso de agir antípoda ao estipulado, sendo então supérfluas as normas primárias para o Direito (KEL-SEN, 1986, p. 182).

De fato, no campo da moral, uma norma secundária – a norma que estabelece ou a sanção para o caso de descumprimento da estabelecido ou o prêmio para o caso de cumprimento dest’último - não tem a mesma ligação essencial com a sua respectiva nor-ma primária - não há aí a mesma “inseparável unidade” (KELSEN, 1986, p. 183), como a existente entre normas jurídicas que assim se relacionem, sendo esse outro critério apto a apartar o Direito da moral na obra kelseniana.

Assentadas essas premissas, resta consignar ainda a forma por que Direito e moral se relacionam.

Isso porque, tratando-se de um autor relativista do ponto de vista moral, Kelsen faz afastar-se de toda e qualquer posição que, com os pés no jusnaturalismo, busque extrair da moral o fundamento de validade do Direito.

De fato, partindo da premissa de que várias podem ser as morais que, no mesmo espaço territorial e temporal, vigorem, não há sentido exigir que, para que possa ser con-siderado Direito válido, o sistema normativo não deva contrariar os rigores morais, visto que - sendo estes vários, variados, e mesmo contraditórios entre si - tal indicação somente redundaria em que o Direito deveria seguir um dos sistemas morais, não o único e verda-deiro sistema moral (KELSEN, 2006, p. 77).

Ao revés, o autor insiste na tese de que, campos normativos absolutamente distin-tos, um não faz parte do outro, inexistindo intersecção necessária entre eles (KELSEN, 2006, p. 75-76). Apartada a validade do Direito da possível consonância dest’último com qualquer ordem moral (KELSEN, 2006, p. 77), dizer em Kelsen que o Direito é moral somente pode significar, em sentido eminentemente formal, que o Direito é “[...] norma e norma social que estabelece, com o caráter de devida (como dever-ser), uma determinada conduta humana” (KELSEN, 2006, p. 74).

Ademais, afirmar que o Direito só poderia ser assim considerado se fosse justo seria, por vias tortuosas, uma maneira de legitimar o Direito em vigor – Direito, então, entendido como a ordem estatal coercitiva válida e eficaz em dado momento; esse proce-der jamais poderia ser tomado pela Teoria Pura do Direito, cuja função diz tão só com a descrição do sistema de leis por meio de proposições jurídicas (KELSEN, 2006, p. 77). Aí estaria, pois, mais um motivo para rejeição da tese da vinculação entre Direito e moral, posição est’última, não desconhece Kelsen, cujo color retórico pode “[...] prestar politica-

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mente bons serviços [...]” (KELSEN, 2006, p. 78), mesmo quando insustentável do ponto de vista científico e insuficiente do ponto de vista lógico.

Tamanha separação e afastamento entre Direito e moral não quer dizer, contudo, que aquele deva necessariamente afastar-se desta para que seja como tal considerado. Muito pelo contrário, o mesmo Kelsen aquiesce com a relevância da exigência, de na-tureza política, de que o Direito deva corresponder a um determinado sistema moral. O que, todavia, fica afastada é a condição segundo a qual, para que seja Direito válido, o sistema de leis jurídicas deva conformar-se necessariamente com determinado sistema moral (KELSEN, 2006, p. 75).

Desta forma, a mensagem kelseniana expressa que, no campo da política jurídica, seria interessante mesmo que o Direito prestasse contas com determinadas concepções morais, sendo possível, porém, que tal identificação não exista, sem que a coincidência, ou não, entre esses sistemas altere de alguma forma a validade do Direito posto.

No mesmo sentido, o relativismo moral de Kelsen não nega a existência de um cri-tério de justiça, mas tão só não crê na justiça universal, ou algo que a ela se assemelhe. Isto é, o próprio autor faz reconhecer que os valores vivenciados por tal ou qual comunidade dão base a um conceito de justiça, que, evidentemente, tem contornos sociais, mas que, por ser contingente, não há de servir de critério de validade para o Direito erigido, nem naquela mesma sociedade, nem em outra dela distinta (KELSEN, 2006, p. 76).

Logo, bem se vê que, tratando-se de conceitos distintos, não há em Kelsen, ao con-trário do que se dá em Kant, fundamento moral algum para o Direito, cuidando-se mes-mo de esferas que entre si não guardam conexão necessária alguma42.

4. Conclusão

Pontualmente é possível estabelecer os critérios utilizados por Kant e por Kelsen para distinguir Direito de moral.

Para Kant eles são quatro: a) o âmbito da autonomia e heteronomia (a moral diz com um âmbito em que o sujeito é capaz de conhecer a norma e, em respeito a ela, cumpri-la – isto é, não é possível que ele seja a tanto obrigado por aguilhões externos; enquanto o Direito [legalidade] diz com a heteronomia em que o agente deve agir em conformidade com as leis, mesmo quando para tanto seja necessário um movens que lhe é exterior; b)

42 Também em Kant não há, no campo do que existe no mundo do ser, nenhuma vinculação necessária entre Direito e moral (isto é, pode haver concretamente um Direito legislado em alguma parte do mundo que vá de encontro à moral, sem que, por isso, deixe de ser Direito). Todavia, preocupado Kant com o que deve ser, o “verdadeiro Direito”, esse sim, tem evidentes vínculos com a moralidade, a servir-lhe como reforço. É que, para o autor da Doutrina do Direito, todos devem agir de modo moral, comportando-se de forma que o uso de sua liberdade não avilte, conforme leis universais, a liberdade alheia. O Direito surge quando, insensível per si, alguém faz uso daquela mesma liberdade desrespeitando, segundo leis universais, a liberdade de outrem. É aí que o Direito, fazendo respeitar aquilo que já deveria ter sido respeito segundo a moralidade, faz coagir esse uso embusteiro da liberdade humana. É precisamente nesse sentido que se afirma ter o Direito em Kant fundamento moral.

– Direito e Moral em Kant e Kelsen: possíveis distinções –

198 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

a motivação da conduta (embora esse segundo critério esteja intimamente ligado ao pri-meiro): a moral exige o agir por dever; o Direito contenta-se com o agir conforme o dever; de forma que (c) o Direito diz com leis que, uma vez descumpridas pelo agente, terá ele de responder perante terceiros que podem obrigá-lo a tanto; a moral, menos do que isso, diz com leis para cujo cumprimento, mesmo quando este alcance terceiros, não pode o agente ser forçado por terceiro; o agente responde por seu (in)adimplemento perante si próprio; e d) os imperativos de que cada um daqueles âmbitos lança mão (a moralidade, de imperativos categóricos; a legalidade, de imperativos hipotéticos).

Em Kelsen, por sua vez, a principal distinção entre Direito e moral se dá, sobretudo, a) no que respeita à possibilidade do uso de coação física diante de resistência à sanção (tal só ocorre no âmbito Direito); sem olvidar de outros critérios secundários indicados esparsamente por Kelsen, a saber: b) a natureza da sanção de que lançam mão (a moral vale-se de sanções transcendentes e socialmente imanentes, enquanto o Direito só se utili-za dest’últimas); c) o modo por que é encarada a sanção (no Direito ela é vista sobremodo como coação - a conduta perseguida pelo ordenamento é aquela contrária à qual a nor-ma toma como pressuposto para fins de sanção [pretendendo impedir o furto, o Direito transforma-o em pressuposto de uma sanção de evidentes traços punitivos]; enquanto na moral as “sanções–prêmios”, de diminuta importância no Direito, exercem papel muito mais relevante, já que, agora, a própria conduta perseguida pelo ordenamento é tida como pressuposto de uma sanção, a qual não tem feição punitiva, mas sim premiadora [alme-jando que as pessoas façam doações aos menos afortunados, a moral, com muito mais fre-quência do que o Direito, faz dessa mesma atitude pressuposto de uma sanção de traços, ao contrário de punitivos, benfazejos, no intento de premiar, jamais reprimir, o agente]); e d) a importância que possui a norma secundária diante da primária em cada um dos campos (no direito a secundária – que estabelece a sanção – é decisiva, sendo a primária – que prescreve a conduta – supérflua; na moral dá-se o contrário, sendo primordial o papel da norma primária em face da secundária.

5. Referências Bibliográficas

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KANT, Immanuel. Fundamentação Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintanela. Lisboa: Edições 70, 1990.

– Felipe de Farias Ramos –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 199

______. Metafísica dos Costumes – Parte I – Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70.

KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Fabris, 1986;

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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Ensaio sobre a Origem das Línguas. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Coleção Os Pensadores).

SALGADO. Joaquim Carlos. Curso de Filosofia do Direito III, anotações. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 1996.

direiTo penal e direiTo proCessual penal

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 203

O PRINCíPIO DA EFICIêNCIA E AS FUNçõES OFICIALMENTE DECLARADAS DA PENA CRIMINAL

THE PRINCIPLE OF EFFICIENCY AND THE OFFICIALLY DECLARED CRIMINAL PENALTY FUNCTIONS

João Marcos buch1

RESUMO: Partindo do conceito do princípio da eficiência, sua própria afirmação como princípio, suas distinções com as regras, chega-se à importância da sua apli-cação. Levando este princípio para o sistema penal e dentro deste para a pena nas suas funções oficialmente declaradas, a inafastável conclusão é da total ineficiência da punição com base no que ela se propõe. O método de pesquisa é o indutivo e o do relato, o dedutivo.PALAVRAS-CHAVE: Princípio da Eficiência. Regras. Pena Criminal. Discurso Ofi-cial. Funções. Ineficiência.ABSTRACT: Beginning from concept of the principle of efficiency, in its own ratify as a principle, its difference with the rules, we reach to the importance of its application. Driving this principle to the criminal law and the criminal law to its functions officially declared, the only conclusion is the total inefficiency of the punishment under the reasons showed. The research method used is inductive and the report is deductive.KEYWORDS: Principle of Efficiency. Rules. Penalty. Criminal Penalty. Official Speech. Functions. Inefficiency.

Introdução

O Estado contemporâneo tem se colocado no centro e principal papel de constru-ção social. Seu crescimento, adentrando em praticamente todas as camadas do homem resulta em crescentes exigências dos cidadãos, não só no respeito aos direitos individuais, mas na implementação dos direitos sociais.

1 Juiz de Direito (SC), Pós-graduado em Direito Contemporâneo (UNC), Pós-graduado em Criminologia e Política Criminal (ICPC/UFPR), Mestrando em Ciência Jurídica na Universidade do Vale do Itajaí – Univali.

– O Princípio da Eficiência e as Funções Oficialmente Declaradas da Pena Criminal –

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O princípio da eficiência, condensado no art. 37, caput, da Constituição Federal, passou a reger a Administração Pública, impondo uma atuação idônea, econômica e es-pecialmente satisfatória na realização do seu mister.

Por outro lado, o país vive o fenômeno da violência urbana, sendo a segurança pública um das prioridades do Estado, pela demanda da própria sociedade. Procurando dar respostas, satisfazendo muitas vezes a sentimentos paranóicos coletivos de vingança, o legislador acaba por lançar mão de leis penais cada vez mais rígidas, fazendo crer que este seria o melhor caminho para a pacificação social.

As penas são vistas como a pílula milagrosa que trará alguma paz. Para isso, justi-ficam a sua vigência na afirmação de que se pretende impedir que a pessoa criminalizada cometa novos crimes, que seja reeducada, dando-se exemplo a toda a sociedade, seja para aqueles que possuem algum desejo em cometer delitos seja para aqueles que seguem inte-gralmente a lei e precisam ver quem desobedeceu penalizado.

Este artigo, assim, primeiro aborda o princípio da eficiência, sua afirmação e dis-tinção com as regras, depois aponta o discurso oficial da função da pena criminal e termina por concluir que um não se coaduna com outro. O princípio da eficiência é olvi-dado pela pena criminal na sua função oficialmente declarada. É preciso, assim, rever o ordenamento, procurando cumprir o ordenamento principiológico, afastando-se a pena criminal ineficaz.

Não se adentrará em estatísticas, focando-se no plano teórico. Também não serão tratadas no artigo outras funções da pena criminal que a criminologia sociológica, a do lab-beling approach, e a crítica apontam, em face do tema proposto e da natureza da pesquisa.

1. O Princípio da Eficiência

A administração pública permanece cumprindo papel central e estratégico na conformação social. Segundo Modesto2, O Estado contemporâneo não interrompeu o seu crescimento enquanto instituição social, ampliando continuamente a sua intervenção nos domínios do mundo da via (Habermas). (...) O Estado não foi reduzido ao mínimo, nem é uma instituição em processo adiantado de decomposição, como alguns sugerem. Ao con-trário amplia seus tentáculos continuamente, penetrando em quase todas as dimensões da vida privada, tornando-nos cada vez mais dependentes de suas regulações e controles. É o crescimento do Estado, não a sua diminuição, a causa imediata dos graves problemas de legitimação que atormentam o Estado contemporâneo.

Com efeito, reclama-se do Estado com maior impaciência que otimize o seu agir e realize os fins prezados pela coletividade. E essas exigências não são para um Estado liberal, mas a um Estado Democrático e Social, que executa e fomenta a prestação de

2 MODESTO, Paulo. Notas para um debate sobre o princípio da eficiência. Jus Navigandi. http://.uol.com.br/revista/texto/243. Publicado em 12/2000.

– João Marcos Buch –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 205

serviços coletivos essenciais e que, além de não poder invadir os direitos individuais (exigências negativas), precisa propiciar os bens jurídicos prometidos pelo ordenamento (exigências positivas).

Para tanto, estas exigências acabam sendo imposições normativas condensadas sob o rótulo de princípio da eficiência, previsto no caput do art. 37 da Constituição Federal: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)”(sublinhou-se).

Abordado isto, necessário então conceituar o que seria o Princípio da Eficiência. A eficiência é uma categoria que serve a diversos ramos científicos e para delimitá-

la com a devida precisão jurídica é necessário construir um conceito adequado conforme a ciência do direito.

De plano, é preciso afastar uma certa confusão existente nos meios acadêmicos, em especial na graduação, entre regra e princípio. A regra sempre traz um pressuposto de fato (funtor deôntico). Operando-se os fatos previstos em seu enunciado, a regra aplica-se em totalidade. O princípio (início, base) não traz um pressuposto de fato (sem funtor deôn-tico). Seus enunciados são mais gerais e abstratos e suas exceções não podem ser exauridas em um enunciado.

Para Niebuhr 3, Os princípios jurídicos, em virtude de sustentarem maior grau de abstração e de generalidade, são a espécie de norma que melhor incorpora a pluralidade dos valores sociais (morais).

Os princípios, sob essa luz, representam o conteúdo axiológico do Direito, os valo-res sociais fundamentais que o legitimam.

Neste ponto, as regras são aplicadas sob a ideia do tudo ou nada. Um exemplo: se a regra é que um testamento deve ser assinado por 3 testemunhas, e outra regra diz que deve ser assinada por 5, tem de se resolver e afastar uma. Não se admitem duas regras no mesmo sistema. Não se pondera. Ou se aplica ou não se aplica. Já com os princípios jurídicos isto não acontece, não seguem eles o tudo ou nada. Na colisão de princípios, pondera-se e afasta-se um em favor de outro, sem supremacia. Exemplo: Princípio da propriedade privada e princípio da função social da sociedade. Haverá casos em que um será afastado em detrimento de outro, v.g. ação de despejo por proprietário de vários imó-veis em face e inquilinos carentes, retirantes, com muitas crianças, algumas doentes, sem outro local para morar. Teoricamente é possível ponderar e em tese afastar o princípio da propriedade privada em razão do princípio da função social da propriedade.

Como consequência, um princípio não exclui a incidência de outro princípio, pois não há hierarquia entre princípios. O princípio que preponderará tomará em conta as

3 NIEBUHR, Joel de Menezes. Princípio da Eficiência: Dimensão Jurídico-Administrativa. Novos Estudos Jurídicos – ano VI – N.11, p. 91.

– O Princípio da Eficiência e as Funções Oficialmente Declaradas da Pena Criminal –

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condicionantes de fato que se apresentam no conflito entre eles. Ou seja, não é possível prefixar qual princípio é mais forte e prepondera no cotejo entre todos. Somente os fatos reais é que possibilitarão verificar qual princípio, no caso concreto, preponderará.

Com isso, para Niebuhr4, a conclusão é a de que não há princípio que possa ser entendido isoladamente, uma vez que sua correta delimitação jurídica é aferida pela pro-porção de seus pares.

Finalmente, chega-se agora ao conceito do princípio da eficiência que, segundo Modesto5, é a Exigência jurídica, imposta à administração pública e àqueles que lhe fazem as vezes ou simplesmente recebem recursos públicos vinculados de subvenção ou fomento, de atuação idônea, econômica e satisfatória na realização das finalidades públicas que lhe forem confiadas por lei ou por ato ou contrato de direito público.

2. As Funções Oficialmente Declaradas da Pena

O fenômeno da criminalidade e violência vem sendo, de forma acentuada, perma-nente objeto de discussões, dentro das mais variadas searas, da filosofia à sociologia, da medicina à psicologia e psicanálise, da economia à geografia, tudo encerrando-se no seu devido berço de estudo, o direito.

O direito penal invariavelmente é chamado a ocupar espaço. De um lado há os de-fensores da lei e ordem, da criminalização do maior número de ações e punições rigorosas. Normalmente fundamentam suas defesas embalados pela formação histórica da civiliza-ção ocidental cristã, aquela do pecado original, da culpa, do inferno sem progressão de regime e muito menos livramento condicional. Por outro lado há quem, sustentado pela criminologia crítica e pelo direito penal mínimo, traga argumentos sólidos e razoáveis ao campo das discussões, mostrando que não é por meio do irracional sistema penal que o flagelo da violência será ceifado.

No primeiro grupo, dos defensores da lei e ordem, o discurso oficial da razão da pena e do direito penal, seguindo a visão clássica contemporânea, é a repressão da culpabilidade.

Entre várias outras, conforme Zaffaroni e Batista6, as funções que são assim ofi-cialmente declaradas para a pena criminal são: a) prevenção geral negativa; b) prevenção geral positiva; c) prevenção especial positiva; d) prevenção especial negativa. Zaffaroni ainda inclui como função a prevenção da violência, que, porém, não será abordada, pois, fato notório, não é atualmente adotada pelo estado oficialmente.

4 NIEBUHR, Joel de Menezes. Princípio da Eficiência: Dimensão Jurídico-Administrativa. Novos Estudos Jurídicos – ano VI – N.11, p. 92.

5 MODESTO, Paulo. Notas para um debate sobre o princípio da eficiência. Jus Navigandi. http://.uol.com.br/revista/texto/243. Publicado em 12/2000.

6 ZAFFARONI, E. Raúl et alli. Direito Penal Brasileiro – I. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

– João Marcos Buch –

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A prevenção geral negativa nada mais é do que a ameaça da prisão para evitar novos crimes. Com a pena, dissuade-se os que ainda não cometeram crimes, mas podem desejar cometer. Ou seja, fugindo das questões éticas, para esse discurso, criminalizar e punir são úteis, pois é a forma de intimidar as pessoas de cometer delitos. Para Zaffaro-ni7, Parte-se aqui de uma concepção mecânico-racional do humano, como um ente que em qualquer circunstância realizaria a comparação custo-benefício. Para ele, No plano político e teórico, essa teoria permite legitimar a imposição de penas sempre mais graves, porque não se consegue nunca a dissuasão total, como demonstra a circunstância de que os crimes con-tinuam sendo praticados. Assim, o destino final desse caminho é a pena de morte para todos os delitos, mas não porque com ela se obtenha a dissuasão, mas sim porque esgota o catálogo de males crescentes com os quais se pode ameaçar uma pessoa.

De outro lado, a prevenção geral positiva é a afirmação do direito como norma. É o império da lei. Se um crime é cometido e a comunidade no seu entorno ou toda a socie-dade, em casos envolvendo dignitários ou celebridades, é preciso punir exemplarmente. A lei deve ser o exemplo, não o delito. Segundo Zaffaroni8, Sustenta-se, assim, que o poder punitivo supera a perturbação produzida pelo aspecto comunicativo do fato delituoso, que seria o único que interessa, exprimindo-se na perturbação da vigência da norma, impres-cindível para a existência de uma sociedade. Em última instância, o delito seria uma má propaganda para o sistema, e a pena seria a expressão através da qual o sistema faria uma publicidade neutralizante.

Sobre a prevenção especial positiva, segue a mesma linha da geral positiva, com o acréscimo de que é destinada à pessoa do criminoso (pessoa criminalizada). Ou seja, a punição, agora então chamada de reeducação, pretende legitimar-se através do discurso de recuperação do apenado, agora chamado de reeducando. Para Zaffaroni9, No plano teórico, este discurso parte do pressuposto de que a pena é um bem para quem a sofre, de caráter moral ou psicofísico.

Finalmente, quanto à prevenção especial negativa, da mesma forma segue ela a teoria da prevenção geral negativa, neste aspecto também diretamente destinada à pessoa do criminoso (pessoa criminalizada). Seu objetivo não é reeducar e sim impedir que esta mesma pessoa venha cometer outros delitos. Zaffaroni10 esclarece que, Para a prevenção especial negativa, a criminalização também visa a pessoa criminalizada, não para melhorá-la, mas para neutralizar os efeitos de sua inferioridade, à custa de um mal para a pessoa, que ao mesmo tempo é um bem para o corpo social.

7 ZAFFARONI, ibid., p.117 e 119.8 ZAFFARONI, E. Raúl et alli. Direito Penal Brasileiro – I. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.122.9 ZAFFARONI, ibid., p.126.10 ZAFFARONI, E. Raúl et alli. Direito Penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 2ª edição, p.127.

– O Princípio da Eficiência e as Funções Oficialmente Declaradas da Pena Criminal –

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Percebe-se, com efeito, que todas essas funções possuem um conteúdo ideológico forte, de dominação e, como se verá no capítulo seguinte, nada eficiência, pois não alcan-ça aquilo que oficialmente se propõe, o combate à violência.

3. A Violação do Princípio da Eficiência pelas Funções Oficialmente Declaradas da Pena Criminal

Como já se pode sentir dos traços delineados no capítulo anterior, o próprio Za-ffaroni e os demais autores da obra colacionada já indicavam a não concordância com as teorias apresentadas e apontavam linhas claras de contradição e ineficiência.

Desta maneira, como se verá a seguir, cada uma das funções antes elencadas acaba se afastando completamente da eficiência.

Santos11, no que concerne à prevenção especial negativa, como garantia das relações sociais, diz que há nela aspectos contraditórios, entre os quais: a) a privação da liberdade produz maior reincidência e, portanto, maior criminalidade; b) a privação de liberdade exerce influência negativa na vida real do condenado, inclusive socialmente, com redução de chance de comportamento legal no futuro; c) a execução da pena privativa de liberdade representa a máxima desintegração social do condenado (perde trabalho, família, amigos); d) a subcultura da prisão produz deformações psíquicas e emocionais no condenado, que excluem a reintegração social; e) prognoses negativas baseadas em indicadores sociais des-favoráveis (pobreza, desemprego etc.) estereotipam justificativas para a criminalização; f) o grau de periculosidade criminal do condenado é proporcional à duração da pena privativa de liberdade, porque, quanto mais tempo permanecer encarcerado, maior a reincidência e a formação de carreira criminosa, como mostra o labeling approach.

Respeitante à prevenção especial positiva, “o tratamento curativo”, está ela fadada ao fracasso, pelos mesmos motivos supra apontados. Santos12 afirma: A crise no projeto de re-construção do condenado como força de trabalho útil, sintetizada no famoso ‘nothing works’ de MARTINSON, está na origem da atual transformação da prisão em instrumento de pura deterrence, reduzido à prevenção especial negativa de segurança e de incapacitação do preso.

De seu lado, a prevenção geral negativa, cabe dizer, até pode ter algum reflexo no desestímulo de crimes de reflexão (econômicos, tributários, contra a administração pú-blica). Porém, ela é irrelevante para a criminalidade comum, na qual os fatores e causas da violência, a criminologia sociológica e crítica confirmam, são mais complexos e não cabem na simplória justificativa.

Já a prevenção geral positiva para Santos13 é uma afirmação da ideologia dominante e consiste, a bem da verdade, em um fenômeno contemporâneo ao Direito Penal simbólico,

11 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal Parte Geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008, p.483-5.12 SANTOS, ibid., p.485.13 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal Parte Geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008, p.488-.

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produzido pela pressão corporativista de sindicatos, associações de classes, partidos políticos, organização não-governamentais etc., representado pela criminalização de situações sociais problemáticas nas áreas da economia, da ecologia, da genética e outras, em que o Estado não parece interessado em soluções sociais reais, mas em soluções penais simbólicas, com frequente subordinação de direitos humanos a exigências de funcionalidade do sistema eco-nômico, ecológico etc., como denunciava BARATTA.

Além disso, mais um alerta há de se registrar. Como se viu, seja na sua função ge-ral positiva ou na negativa, a pena como símbolo em primeiro plano quer aparecer como exemplo à população. Afirma-se o direito como norma e força do império com a prisão, por exemplo, de algum dignitário. Muito cuidado neste momento. Deve-se estar ciente de que o direito penal simbólico pode unicamente legitimar o encarceramento da massa de miseráveis. Ou seja, a prisão de alguma autoridade pública pode servir para embasar o discurso de que não se prendem mais somente “ladrões de galinhas”, mas também gran-des personalidades. E, assim, tenta-se anular a denúncia de que são aqueles e tão somente aqueles crimes de bagatela que continuam mandando descomunal contingente de pessoas para trás das grades.

O uso do direito penal simbólico, com suas funções oficialmente declaradas, com combate sem limites da criminalidade tendo como foco o crime, na forma repressiva da pena, pode dar ensejo a um estado totalitário, onde a liberdade é renunciada em benefí-cio da segurança. Especialmente, a liberdade da camada mais pobre e humilde, a grande massa populacional, que sofre o flagelo da verdadeira e cruel violência, aquela do medo, da fome, da doença, da ignorância, do consumismo inatingível, da alienação do entrete-nimento televisivo, do desespero. Estas mesmas vítimas são exatamente aquelas que mais sofrem com balas perdidas, com a violência do tráfico, com a morte pela polícia ou pela guerra de gangues.

Considerações Finais

Conforme a criminologia sociológica e a crítica já há tempos têm apontado, a função oficial da pena, seja geral ou especial, positiva ou negativa, não serve para o que oficialmente se propõe - prevenção. A violência urbana é um fenômeno muito mais complexo, que passa pela anomia, desorganização social, ideologia da felicidade de consumo, subculturas deliti-vas, desnível social, simbolismos, estigmatizações etc. Isto sem falar nas cifras negras.

Nesse contexto, as penas criminais com seu caráter repressivo, em todas as suas vertentes oficiais, acabam sendo absolutamente ineficazes para aquilo a que se propõem, que é a redução da violência e a paz social.

Como se viu no primeiro capítulo, a administração pública permanece cumprin-do papel central e estratégico na conformação social. Reclama-se do Estado, com maior impaciência, que otimize o seu agir e realize os fins prezados pela coletividade que, atual-mente, mais do que nunca encontra foco na segurança e no combate à violência.

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Em assim sendo, não seria demais concluir que o sistema penal, dentro do contexto colocado acima, está em dissonância com o princípio da eficiência, sendo absolutamente necessário não se desmascararem as reais finalidades da pena criminal no mínimo re-pensar outras formas de pacificação, com métodos alternativos que não a pura e simples repressão (vide justiça restaurativa).

Afinal, já disse Wilde14 há muito tempo, “(...) juntamente com a autoridade se ex-tinguirá a punição, o que será uma grande conquista – uma conquista, com efeito de valor incalculável. A quem estuda História – não nas edições expurgadas que se destinam a lei-tores ingênuos ou nada exigentes, mas sim nas fontes autorizadas e originais de cada época – repugnam menos os crimes cometidos pelos perversos que as punições infligidas pelos bons; e uma sociedade se embrutece infinitamente mais pelo emprego freqüente de punição do que pela ocorrência eventual do crime. Segue daí que, quanto mais punição se aplica, mais crime se gera. A legislação mais atualizada, reconhecendo isso com toda clareza, toma para si a tarefa de diminuir a punição até onde julgue possível. Toda vez que ela realmente o consegue, os resultados são extremamente bons. Quanto menos punição, menos crime. Não havendo punição, ou o crime deixará de existir, ou, quando ocorrer, será tratado pelos médicos como uma forma de demência, que deve ser curada com afeto e compreensão. Aqueles a quem hoje se chama de criminosos, não o são em hipótese alguma. A fome, e não o pecado, é o autor do crime na sociedade moderna. Eis porque nossos criminosos são, enquanto classe, tão desinteressantes de qualquer ponto de vista psicológico. Eles não são admiráveis Macbe-ths ou Vautrins terríveis. São apenas o que seriam as pessoas comuns e respeitáveis se não tivessem o suficiente para comer.”

Referência das Fontes Citadas

CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 2006.

NIEBUHR, Joel de Menezes. Princípio da Eficiência: Dimensão Jurídico-Administrativa. Novos Estudos Jurídicos – ano VI – N.11, p.92

MODESTO, Paulo. Notas para um debate sobre o princípio da eficiência. Jus Navigandi. Publicado em 12/2000. Disponível em: <http://.uol.com.br/revista/texto/243>.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal Parte Geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008. 485 p.

Wilde, Oscar. A Alma do Homem sob o Socialismo. Tradução de Heitor Ferreira da Costa. Porto Alegre: L&PM, 2003.

ZAFFARONI, E. Raúl et alli. Direito Penal Brasileiro – I. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

14 Wilde, Oscar. A Alma do Homem sob o Socialismo. Tradução de Heitor Ferreira da Costa. Porto Alegre: L&PM, 2003.

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 211

ACESSO à JUSTIçA PENAL E A LEI N. 11.719/2008: AVANçOS E RETROCESSOS

ACCESS TO JUSTICE AND THE CRIMINAL LAW N. 11.719/2008: PROGRESS AND SETBACKS

Luiz Felipe Siegert Schuch1

RESUMO: O permanente contexto de aumento da violência no Brasil na última década tem provocado no legislador constantes propostas de alterações pontuais nas regras processuais penais, especialmente no vigente Código de Processo Penal. Pretende-se, neste espaço, analisar e refletir sobre as mudanças introduzidas pela Lei n. 11.719/2008 e seus reflexos em institutos como o princípio da identidade física do juiz, o interrogatório e seu novo momento processual, e, principalmente, a substan-cial modificação dos procedimentos ordinário e sumário, tudo sob a perspectiva do acesso à Justiça.PALAVRAS-CHAVE: Direito. Justiça. Conflitos. Acesso à Justiça. Direitos Funda-mentais. Direito Processual Penal. Lei 11.719/2008.ABSTRACT: The ongoing context of increasing violence in Brazil in the last decade has caused the legislative proposals set out specific changes in the rules of criminal procedure, especially in the current Code of Criminal Procedure. It is intended, in this space, analyze and reflect on the changes introduced by Law 11.719/2008 and its consequences at institutions such as the principle of physical identity of the judge, the interrogation and his new procedural time, and especially the substantial modification of the ordinary and summary proceedings, all from the perspective of access to justice.KEYWORDS: Right. Justice. Conflicts. Access to Justice. Fundamental Rights. Criminal Procedural Law. 11.719/2008 Law.

1 Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali/2004; Pós-graduado pela Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina/1991; Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC/1990; Professor da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina – ESMESC; Professor da Academia Judicial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina; Professor de Ensino Superior (Graduação e Pós-graduação), tendo lecionado em diversas Faculdades de Direito do Estado de Santa Catarina (FURB, CESBLU, IBES, UNIASSELVI, UNIDAVI). Atualmente é Juiz Assessor Especial da Presidência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Coordenador de Magistrados, vinculado diretamente ao Gabinete da Presidência; Juiz de Direito Titular da Vara de Precatórios da Comarca da Capital/SC.

– Acesso à Justiça Penal e a Lei n. 11.719/2008: Avanços e Retrocessos –

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Introdução

A presente exposição tem como objetivo primordial provocar a reflexão e a discus-são sobre o acesso à Justiça, aqui entendido como um direito fundamental constitucional, em especial no plano do direito processual penal e segundo as novas normas processuais introduzidas pela Lei n. 11.719/2008.

Importante frisar, inicialmente, ser uma das grandes dificuldades do Estado brasi-leiro contemporâneo a chamada “crise de eficiência”.

Por muitas décadas, a atividade estatal retribuiu muito pouco ao enorme sacrifício social para sustentá-lo. Havia, de certa forma, um descompromisso com os resultados das gestões públicas que se sucediam no poder.

A Constituição da República de 1988, nesse contexto, apareceu como verdadeiro marco divisor temporal, produzindo um sensível “corte histórico”, ao estabelecer diversos direitos fundamentais em favor do cidadão e, ao mesmo tempo, consignar a obrigatorie-dade e responsabilidade estatal não só de respeitá-los, mas de promovê-los efetivamente.

Para tanto, a própria Constituição da República acolheu, como um dos princípios cardeais da administração pública, o princípio da “eficiência”, não se admitindo mais, a partir desse ponto, a postura descompromissada e irresponsável de outrora por parte dos poderes constituídos, em todos os seus níveis (federal, estadual e municipal), exigindo-se, ao contrário, o comprometimento dos mandatários da nação em fazer valer os preceitos fundamentais da República.

Eis por que não será demais afirmar, portanto, ser dever do Estado promover ações e políticas públicas voltadas, prioritariamente, a promoção dos direitos fundamentais e sociais encimados na Constituição da República de 1988, sob pena de vulneração dos objetivos fundamentais constitucionais expressamente destacados no art. 3º.: “I- construir uma sociedade livre, justa e solidária; II- garantir o desenvolvimento nacional; III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

1. A Sociedade Humana, o Direito e a Justiça

Antes de chegarmos propriamente ao acesso à Justiça, importante lembrar ser o homem um animal político com tendência natural a viver em sociedade (Aristóteles).

A vida em sociedade, todavia, produz inevitavelmente conflitos de interesses, fa-zendo surgir a necessidade de estabelecimento de regras de convivência, aceitas pela comunidade para a eventual solução desses conflitos, daí decorrendo, de forma simpli-ficada, o Direito.

Consequentemente, há um inegável ponto de contato entre o direito, como conjunto de regras de conduta social, e, a sociedade, como formadora e destinatária dessas normas.

– Luiz Felipe Siegert Schuch –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 213

Mas não basta a existência dessas regras. Se o objetivo final é a solução do conflito, a pacificação social, essas normas devem estar ajustadas ao senso comum sobre aquilo que é o correto, o certo, o “justo” para aquela situação. A Justiça, portanto, revela-se como o ideal a ser atingido na aplicação do Direito.

A categoria Justiça, por sua vez, pode ser entendida sob dois enfoques: Justiça-Valor (ideia de certa igualdade na distribuição de direitos e deveres); Justiça-Instituição (Poder Judiciário).

No plano do acesso à Justiça, nossas atenções estararão mais voltadas para a Justiça-Instituição, em razão da vinculação desse direito fundamental com o direito processual, sem perdermos de vista, logicamente, a Justiça-Valor.

2. O Acesso à Justiça como Direito Fundamental

Como vimos, a vida em sociedade é fonte de conflitos. A solução privada destes de-sajustes sociais não se mostrou o melhor caminho ao longo da história da humanidade.

Daí por que o Estado passou a exercer, com exclusividade, o julgamento dos litígios – jurisdição, em processo histórico longo e conturbado até se alcançar o modelo atual.

Nesse passo, atualmente, o acesso à Justiça/acesso à ordem jurídica justa deve signi-ficar: direito outorgado ao cidadão de resolver seus litígios ou de reivindicar seus direitos sob os auspícios do Estado, e de obter uma decisão justa (acesso à Justiça formal; acesso à Justiça material).

Sua consagração como direito fundamental encontramos na CRFB/88 (art. 5º, XXXV), traduzindo-se não só como um direito, mas também como garantia de realização dos demais direitos fundamentais.

3. Principais Entraves à Efetividade do Acesso à Justiça e Movimentos para sua Superação

Quando se fala de acesso à Justiça, deve-se atentar para um verdadeiro paradoxo existente na sociedade contemporânea, em especial a brasileira: os homens não podem resolver seus conflitos com as próprias mãos (Justiça privada); mas o Estado-juiz não disponibiliza em quantidade e qualidade adequadas os mecanismos para a resolução das querelas sociais.

A doutrina tem identificado inúmeros entraves no que se refere ao acesso à Justiça: existência das custas processuais; possibilidade das partes; vulnerabilidade dos direitos difusos; conservadorismo dos operadores do direito; legislação processual anacrônica; carências materiais e humanas do Poder Judiciário.

Por sua vez, observam-se alguns movimentos tendentes à superação desses entra-ves: instituição da assistência judiciária; criação de mecanismos de proteção dos direitos difusos; modernização processual; introdução de métodos alternativos de resolução de

– Acesso à Justiça Penal e a Lei n. 11.719/2008: Avanços e Retrocessos –

214 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

conflitos (ex. conciliação e arbitragem); implantação de juízos especializados; mudança de mentalidade dos juízes; simplificação da legislação; modernização do aparelho judi-cial; respeito e cumprimento, pelos demais poderes, do princípio da autonomia financeira do Poder Judiciário (art. 99, CRFB/88).

Destaca-se que a Constituição da República em vigor, ao acolher o princípio da tri-partição dos poderes, atribuindo a cada um a garantia da independência no exercício da função específica, em relação ao Poder Judiciário instituiu, ainda, a autonomia financeira (capacidade de elaboração e execução de orçamento próprio), como elemento da inde-pendência a ser observado, imprescindível para a consecução do equilíbrio democrático entre as três partes do poder político, notadamente em razão da função establizadora da democracia exercida pelo Judiciário.

Com o crescimento populacional e a pressão sobre o sistema judicial, a partir da CRFB/88, os direitos consagrados em favor do povo, entre eles o acesso à Justiça, têm um número de beneficiários sempre crescente.

Esse quadro gera um desafio constante para o Estado, no sentido de adequar suas estruturas e aperfeiçoar seus procedimentos para viabilizar o atendimento de toda a população.

A estimativa do IBGE sobre o crescimento populacional no Brasil, segundo essa pers-pectiva, é preocupante: 2010 = 191.007.625 / 2015 = 201.387.136 / 2020 = 210.764.732.

Deve-se ter em mente, portanto, que um maior número de habitantes potencializa a probabilidade de eclosão de conflitos, e, de outro lado, dilui a força de trabalho do número de magistrados em atividade, sendo essa relação “número de magistrados x número de ha-bitantes” de fundamental importância para dar concretude ao direito de acesso à Justiça, especialmente se considerado o direito fundamental de duração razoável do processo.

4. O Acesso à Justiça no Plano do Direito Processual Penal

Com base na compreensão inicial sobre o direito fundamental de acesso à Justiça, possível avançar especificamente para o plano do Direito Penal e Processual Penal.

Observa-se que as mesmas dificuldades genericamente apresentadas se verificam nesse espaço, e, por tratar esse ramo do direito da liberdade individual, os problemas se potencializam em gravidade.

O acesso à Justiça, também aqui, deve ser entendido, parafraseando Capelletti e Garth2, como o direito outorgado ao cidadão de resolver seus litígios ou de reivindicar seus direitos (de natureza penal) sob os auspícios do Estado, ao que agora se soma, por força da reforma do Judiciário (EC 45/2004), o direito à razoável duração do processo.

2 CAPELLETTI, Mauro; GARTH Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988, p. 8.

– Luiz Felipe Siegert Schuch –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 215

Podemos subdividir o significado acima em dois enfoques: para aquele que se vê envolvido injustamente com a Justiça penal, mostra-se imprescindível a urgência na apu-ração dos fatos e o respeito aos seus direitos cerceados pelo processo; ao revés, em relação ao verdadeiro autor de um delito, cujos direitos constitucionalmente assegurados devem ser resguardados, exige-se do Estado a pronta e eficiente atuação com vista a aplicação da sanção proporcional em favor da sociedade, evitando-se a impunidade e promovendo a recuperação do infrator.

De qualquer forma, sob esses dois prismas, no Brasil, o respeito ao acesso à Justiça penal tem sido um desastre.

O Poder Judiciário brasileiro atravessa sérios problemas no que se refere aos recur-sos materiais e humanos disponíveis para cumprir sua missão constitucional.

A esmagadora maioria dos órgaos do Poder Judiciário nacional encontra dificul-dades para adequar a sua estrutura ao volume de processos diariamente distribuídos nas unidades jurisdicionais de 1º e 2º graus, e mesmo para manter a estrutura existente.

São comuns as pautas de audiências abarrotadas nos juízos criminais, com agen-damentos de atos em datas que ultrapassam mais de dois anos da data da designação, fomentando a famigerada “indústria da prescrição”, deslegitimadora da sanção estatal.

De outro lado, o crescimento populacional desenfreado e a falta ou a deficiência de políticas sociais sérias, visando ao aumento da oferta de oportunidades para as ca-madas mais sofridas da população, acaba por empurrar um “exército” de jovens para a marginalidade, para a ociosidade e, consequentemente, para o pernicioso universo do sistema carcerário.

Agravando a situação, o legislador brasileiro (contando por vezes com o descuidado apoio da própria sociedade) tem o mau costume de achar que a simples aprovação de uma nova lei tem o condão de acabar com todos os males, desde “dor de dente até crime hedion-do”, quando a raiz do problema reside em outra seara que não a legislativa (social).

Nunca é demais lembrar que, em sede de Direito Penal, reclama o estágio atual da humanidade o respeito ao princípio da intervenção mínima, cujo corolário lógico está no direito penal mínimo, representado por um conjunto de princípios e regras a reser-var a pena criminal apenas aos casos de graves lesões aos bens jurídicos mais relevantes para a sociedade.

O sistema processual penal, de sua vez, cuja base está no Código de 1941 (Decreto-lei 3.689, de 3.10.1941), igualmente tem sido considerado fator agravante no caos da Jus-tiça penal brasileira, diante do anacronismo existente entre o tempo em que foi gestado e os avanços sociais e da criminalidade dos dias atuais, mas também e principalmente, porque rotineiramente bombardeado por leis especiais que, no mais das vezes, quebram a unidade do sistema e provocam antinomias jurídicas muitas vezes de difícil solução para o intérprete e para o juiz.

– Acesso à Justiça Penal e a Lei n. 11.719/2008: Avanços e Retrocessos –

216 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

É nessa moldura, pois, que se enquadrou a nova Lei n. 11.719, de 20 de junho de 2008, cuja vigência se deu em 24.08.2008.

5. O Acesso à Justiça Penal e a Lei n. 11.719/2008 – Avanços e Retrocessos

O propósito da lei em referência, induvidosamente, foi contribuir para a dimi-nuição da impunidade. Todavia, mais uma vez foi motivada, como sempre, por fatos pontuais, crimes violentos e de grande repercussão que acabaram precipitando a sua tramitação e aprovação.

Ao contrário de outras leis, contudo, houve a possibilidade de contribuição da so-ciedade e diversas entidades, entre elas a Associação dos Magistrados Brasileiros.

Assim, o Congresso Nacional acabou por aprovar um “pacote” de alterações no processo penal, representado pelas Leis n. 11.689, de 9 de junho de 2008 (referente ao procedimento do Tribunal do Júri), n. 11.690, de 9 de junho de 2008 (dispôs sobre provas) e n. 11.719, de 20 de junho de 2008 (relativa aos procedimentos no processo penal).

Em que pese a complementaridade das três leis, pois compõem uma “minirrefor-ma” do Código de Processo Penal, vamos nos reservar apenas a alguns aspectos da última lei referenciada, posto que mais diretamente ligada ao acesso à Justiça.

Com efeito, pretendeu a Lei n. 11.719/2008, e assim foi amplamente divulgado pela mídia, uma modernização dos antigos procedimentos comum e sumário do códi-go, sob a justificativa de adequá-los aos princípios incorporados à nova Constituição de 1988 e, também, tornar o processo penal mais ágil e célere, com a consequente diminui-ção da impunidade.

A base lógica justificadora das alterações está centrada nas seguintes premissas: processo mais rápido, certeza da punição, diminuição da criminalidade.

Todavia, apesar dos bons propósitos dessa “minirreforma”, o resultado pretendido, até o momento, não se concretizou.

5.1. A criação de novos procedimentos

A criatividade do brasileiro é um dom reconhecido mundialmente.No plano legislativo não é diferente.A primeira pergunta que se faz em relação a Lei n. 11.719/2008 é: por que criar um

novo procedimento??? E a essa se segue outra: por que não adotar o procedimento da nova Lei de Tóxicos,

ou o procedimento do Juizado Especial Criminal, já absorvidos pelo meio jurídico e que respeitam, plenamente, os direitos fundamentais dos réus (contraditório, ampla defesa, presunção de inocência etc.)?

– Luiz Felipe Siegert Schuch –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 217

As alterações instituídas pela Lei n. 11.719/08, além de causarem grande celeuma na interpretação de vários dispositivos (vide art. 394 e 396 do CPP), são uma verdadeira “mistura” de outros procedimentos, o que acabou se transformando em fonte geratriz de nulidades e prejuízos para acusados e sociedade.

Vamos observar como era o procedimento comum (9 etapas): 1) denúncia; 2) re-cebimento da denúncia; 3) interrogatório; 4) defesa prévia; 5) audiência para as testemu-nhas de acusação; 6) audiência para as testemunhas da defesa; 7) diligências; 8) alegações finais; 9) sentença.

O procedimento sumário era o seguinte (7 etapas): 1) denúncia; 2) recebimento da denúncia; 3) interrogatório; 4) defesa prévia; 5) audiência para as testemunhas de acusa-ção; 6) saneamento do processo e diligências; 7) audiência para as testemunhas da defesa com alegações finais e sentença.

A Lei n. 11.719/08 trouxe uma nova classificação e reduziu fases:1. Procedimento comum: a) Ordinário – pena privativa de liberdade igual ou su-

perior a 4 anos; b) Sumário – pena privativa de liberdade inferior a 4 anos; c) Sumaríssimo – infrações de menor potencial ofensivo (contravenções penais e Lei n. 9099/95).

2. Procedimento especial (Júri, crimes de responsabilidade de funcionários públi-cos, crimes contra a honra, crimes contra a propriedade imaterial, restauração de autos).

O novo procedimento comum ordinário passou a ter cinco (5) etapas: 1) denúncia; 2) recebimento da denúncia; 3) citação do acusado para responder à acusação em 10 dias; 4) juízo de absolvição sumária; 5) audiência de instrução e julgamento em 60 dias (víti-ma, testemunhas de acusação, defesa, peritos, diligências, acareações, reconhecimento de pessoas ou coisas, interrogatório, alegações finais, sentença).

O renovado procedimento comum sumário, também com cinco (5) fases: 1) de-núncia; 2) recebimento da denúncia; 3) citação do acusado para responder à acusação em 10 dias; 4) juízo de absolvição sumária; 5) audiência de instrução e julgamento em 30 dias (vítima, testemunhas de acusação, defesa, peritos, diligências, acareações, reconhecimen-to de pessoas ou coisas, interrogatório, alegações finais, sentença).

À primeira vista, nota-se que os novos procedimentos comum ordinário e sumário tiveram suas etapas reduzidas, o que poderia indicar uma proporcional redução do tempo de duração do processo.

Entretanto, não se pode olvidar que a concentração da instrução em uma única audiência demanda maior tempo para a sua realização e, por conseguinte, menor número de audiências por dia.

A este problema de ordem prática se soma a já referida deficiência de estrutura do Poder Judiciário, cujo número de magistrados se mostra muito longe do ideal.

– Acesso à Justiça Penal e a Lei n. 11.719/2008: Avanços e Retrocessos –

218 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

Daí por que a simples alteração legislativa dificilmente será capaz de, sozinha, atingir a finalidade almejada de redução da impunidade ou da criminalidade, mormente diante da sempre presente possibilidade de ausência de testemunhas à audiência designa-da, obrigando a continuação do ato em nova data.

Ao menos o legislador possibilitou a realização do ato com as testemunhas presen-tes, obstando a suspensão e manobras de retardamento do processo, ao firmar no art. 536: “a testemunha que comparecer será inquirida, independente da suspensão da audiência, observada, em qualquer caso a ordem estabelecida no art. 531 deste código”.

Cabe aos magistrados, assim, manter a firme condução dos processos para que se mantenham com regular tramitação.

5.2. O novo procedimento comum sumaríssimo, os Juizados Especiais Criminais e a Lei Antidrogas

Questão tormentosa ainda tem assombrado o meio jurídico no que se refere ao procedimento sumaríssimo, aquele destinado aos delitos de menor potencial ofensivo – Lei dos Juizados Especiais e contravenções penais.

Segundo o art. 394, parágrafos 4º e 5º, do CPP, com a nova redação da Lei n. 11.719/08, estaria esse procedimento alterado, para também admitir, após o recebi-mento da denúncia, a citação para resposta em 10 dias, seguindo-se o juízo da absolvição sumária (arts. 395 a 398, do CPP), tal como no procedimento ordinário.

No caso das contravenções penais, não se veem maiores problemas.Todavia, no caso específico da Lei n. 9.099/95 – Juizados Especiais Criminais – a

nova regra seria prejudicial ao acusado, pois até então nos juizados a denúncia somente era recebida após a apresentação da resposta escrita.

Da mesma forma, o prejuízo se verificaria na aplicação da nova Lei Antidrogas, cuja defesa preliminar também se dava antes do recebimento da peça acusatória (Lei n. 11.343/2006, art. 55).

Creio que, nesta parte, pretendeu o legislador “uniformizar” esta etapa no pro-cedimento penal, tornando-a obrigatória seja no âmbito do código como na legislação extravagante.

Não por outro motivo determinou que “as disposições dos arts. 395 a 398 deste código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste código” (art. 394, parágrafo 4º), ou seja, atingindo toda a legislação processual penal.

Ao contrário de algumas vozes contrárias à modificação, tenho que a medida “uni-formizadora” seja adequada, apesar de tímida, porquanto certo seria a adoção de um úni-co procedimento para todo e qualquer delito, simplificando, aí sim, o sistema processual penal, excluindo-se apenas o procedimento do Tribunal do Júri.

– Luiz Felipe Siegert Schuch –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 219

De todo modo, com a vigência da Lei n. 11.719/08, passaram a ser obrigatórias, em qualquer procedimento penal, estas quatro etapas iniciais: 1) denúncia; 2) recebimento da denúncia; 3) citação para a defesa escrita em 10 dias; 4) juízo de absolvição sumária.

A partir daí, segue-se o que dispuser a legislação específica, tendo o procedimento comum ordinário como subsidiário.

Não se vislumbra, com esta alteração, qualquer prejuízo aos direitos fundamentais do contraditório, ampla defesa, presunção de inocência ou dignidade da pessoa humana.

Ocorre mesmo o contrário, pois o réu passou a ter dois juízos de admissibilidade da acusação.

O primeiro, de ordem formal, antes do recebimento da denúncia, quando o próprio juiz deverá efetuar a análise de seus pressupostos (art. 395, do CPP).

O segundo, de mérito (admitida a denúncia), após o oferecimento da defesa preli-minar, quando deverá o juiz reconhecer eventual hipótese de absolvição sumária, inter-rompendo o andamento do processo, tal como já se fazia no procedimento do Tribunal do Júri (antigo art. 411, atual art. 415), poupando o denunciado do ônus do processo (art. 397, do CPP).

5.3. O princípio da identidade física do juiz

Entre as alterações promovidas pela Lei n. 11.719/08 no procedimento penal, so-breleva quando se fala em acesso à Justiça a adoção do respeito ao princípio da “identida-de física do juiz” (art. 399, parágrafo 2º).

De início, registra-se o mau posicionamento do dispositivo, porquanto melhor se-ria estar no art. 403, este sim referente ao final da instrução e o momento da sentença.

Mesmo assim, a norma referida, aproximando o processo penal do civil, traz van-tagem para quem se vê no polo passivo da ação penal, na medida em que o juiz que presidiu a instrução e colheu a prova tem melhores condições de avaliar o conjunto na formação de sua convicção.

O problema, todavia, reside na seguinte situação: ao contrário do processo civil, no processo penal temos os casos de réus presos e o sempre presente instituto da prescrição, o que faz surgir uma urgência ainda maior no tempo de julgamento.

Assim, na prática, muitas vezes o princípio da identidade física pode se mostrar incompatível com essa celeridade, uma vez que, vinculado o juiz ao julgamento do pro-cesso, a sua ausência temporária no exercício da jurisdição não fará cessar a vinculação, produzindo demora não desejada no desfecho do feito em desfavor do acusado.

A aplicação desse instituto, portanto, para constituir vantagem efetiva ao proces-sado, mais uma vez está a exigir um quadro de magistrados suficiente ao volume das demandas penais em andamento.

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220 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

5.4. A nova posição do interrogatório

O respeito ao princípio constitucional da ampla defesa estava a exigir, desde a Constituição de 1988, a alteração da legislação processual penal no que diz respeito ao interrogatório.

O sistema processual anterior, de cunho inquisitório, ao posicionar o interrogató-rio como ato de instrução inicial, deixava o acusado em posição desvantajosa em relação a acusação, por desconhecer por completo o que a instrução lhe reservaria, não mais lhe sendo possível argumentar sobre o que fora produzido.

Era um sistema mais vantajoso, todavia, para o órgão acusador, pois permitia ex-plorar eventuais divergências entre a versão inicial do acusado e a prova colhida.

A nova regra, entretanto, posicionando o interrogatório ao final da instrução, pos-sibilitou ao acusado rebater, uma a uma, todas as versões, fatos e alegações surgidas na instrução do processo.

Por evidente, este novo posicionamento poderá dar ensejo à eventual “malandragem” do criminoso “esperto”, pois, verificando a fragilidade da prova, poderá negar a prática de crime por ele praticado, apostando na absolvição pela dúvida, quando, no sistema anterior, por temor, poderia, no mesmo processo, confessar inicialmente o crime praticado.

De todo modo, pelo menos nos casos em que o acusado foi o autor do delito e a prova aponta com segurança nesse sentido, aumentou a probabilidade de confissão para se utilizar a circunstância legal atenuante respectiva em condenação que se anuncia, faci-litando, na hipótese, a atividade de julgamento do juiz.

A defesa, na orientação de seu defendido, tem papel relevante na decisão sobre o procedimento do réu no interrogatório segundo o novo modelo.

Considerações Finais

As alterações inseridas no ordenamento jurídico pela Lei n. 11.719/2008 foram im-portantes e profundas na dinâmica do processo penal.

Porém, não alcançarão o objetivo maior pretendido – combate à criminalidade e impunidade – sem o correspondente aparelhamento do que chamo de “sistema de justiça”, compreendendo as estruturas de polícia, Ministério Público, execução penal e Poder Judiciário.

O acesso à Justiça penal efetivo depende, prioritariamente, de sérios investimentos, e, no âmbito do processo penal, ainda se ressente de uma reforma global do código vigen-te, com sentido de unidade, cujos preceitos se harmonizem em busca da concretização da justiça penal desejada pela sociedade, muito mais orientada pela certeza da repreensão e recuperação, cujo resultado independe da quantidade ou tamanho das penas previstas para os tipos penais.

– Luiz Felipe Siegert Schuch –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 221

Por sua vez, a solução da criminalidade exige a implementação de políticas públi-cas e sociais decentes, verdadeiras, promotoras dos direitos fundamentais, criadoras de oportunidades para todos os cidadãos, independente de cor, de cotas, de estrato social, sexo, religião etc.

Como advertiu certa vez Pontes de Miranda3, “nada mais perigoso do que fazer-se constituição sem o propósito e cumpri-la. Ou de só cumprir nos princípio de que se precisa, ou se entende devam ser cumpridos, - o que é pior”.

Enfim, a Lei n. 11.719/2008 trouxe alguns avanços, mas está longe se ser a medida redentora da justiça processual penal, ou remédio adequado para a impunidade no Brasil.

Referências

CAPELLETTI, Mauro; GARTH Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988.

MIRANDA, Pontes de. Comentários à constituição de 1946. Tomo I – arts. 1º - 5º. 3 ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960.

SCHUCH, Luiz Felipe Siegert. Acesso à justiça e autonomia financeira do poder judiciário: a quarta onda? Curitiba: Juruá, 2006.

3 MIRANDA, Pontes de. Comentários à constituição de 1946. Tomo I – arts. 1º - 5º. 3 ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960. p.12.

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 223

ANáLISE DO POSICIONAMENTO TÉCNICO-JURíDICO DO TRIbUNAL DE JUSTIçA DO ESTADO DE SANTA

CATARINA EM JULGADOS CRIMINAIS DE HOMICíDIO CULPOSO DE TRâNSITO

TECHNICAL AND LAW POSITION OF THE LAW COURT OF SANTA CATARINA IN JUDGED BY CRIMINAL ACTS

Carla Fornari Colpani1

RESUMO: A presente pesquisa teve a pretensão de delimitar o posicionamento téc-nico-jurídico do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em julgados criminais, iden-tificando: qual a teoria orientadora da concepção de conduta, qual a teoria prepon-derante do nexo de causalidade e sobre a eventual aplicação da teoria da imputação objetiva. Como critérios delimitativos, foram analisadas jurisprudências exclusiva-mente de homicídio culposo de trânsito, publicadas entre os anos de 2000 a 2007. PALAVRAS-CHAVE: Nexo de causalidade; Conduta; Teoria Finalista da ação; Te-oria da Imputação Objetiva.ABSTRACT: This survey was conducted aiming chart the technical and legal position of the Court of Santa Catarina, in judged by criminal acts, to identify the decisions which the theory guiding the design of conduct, predominant theory of causation and the possible application of the Theory of Objective Imputation. The analysis encompasses the processes of crime of guilty homicide injury in the traffic, published between the years 2000 to 2007.KEYWORDS: Nexus of Causality; Behavior, Final Theory; Theory of Objective Imputation.

1 Servidora do TJSC (TJA nº 12.107), especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UNIVALI. Assessora do Gabinete do Desembargador Substituto José Everaldo Silva. E-mail: [email protected]

– Análise do Posicionamento Técnico-Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina em Julgados Criminais de Homicídio Culposo de Trânsito –

224 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

1. Introdução

Por disposição constitucional, cada Estado organiza sua justiça, que é representada pelos tribunais estaduais. Nota-se que não há unanimidade no entendimento jurispru-dencial entre os diversos tribunais estaduais do Brasil com relação aos temas que apre-sentam divergência doutrinária, inclusive é possível que um órgão julgador tenha opinião diversa de outro, dentro de um mesmo tribunal.

A presente pesquisa foi realizada justamente procurando traçar o perfil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, buscando identificar nas decisões as teorias que fundamen-tam a compreensão do nexo de causalidade entre a conduta e o delito e da interação entre o ato criminoso e o seu resultado. Para tanto, os seguintes aspectos foram identificados: concepção de conduta, teoria preponderante para identificar o nexo causal e aplicação ou não da teoria da imputação objetiva.

O Método empregado na investigação e no relato dos resultados foi o indutivo, sendo que a pesquisa consistiu em efetuar a consulta por ementas de acórdãos no setor de pesquisa de Jurisprudências do site2 do Tribunal. Nos campos disponíveis, foi inserida a frase exata: “homicídio culposo de trânsito” e a data entre “01/01/2000 até 18/09/2007”. Com a coleta dos dados, foram encontradas 20 (vinte) jurisprudências, sendo que 4 (qua-tro) delas versavam sobre questões processuais, sem a análise da autoria e da materialida-de e 1 (uma) era repetição da outra.

2. Breve Definição Doutrinária sobre os Aspectos Pesquisados

De início, analisando as decisões, foi identificada a concepção teórica de conduta. Do conceito de conduta adotado vão decorrer consequências para o tratamento de questões penais, como a responsabilidade delituosa. Sobre o tema, é preciso considerar que foram elaboradas diversas teorias, sendo as principais: causal, adequação social e finalista da ação.

Segundo Welzel (2001, p. 33), no final do século XIX, época em que a igualdade formal era alcançada por meio de regras genéricas e objetivas e que surgia como meio de controlar as arbitrariedades do Estado, foi desenvolvida a doutrina causal, a qual define a conduta como pura causalidade, ou seja, uma simples relação de causa e efeito, inde-pendentemente de critérios valorativos. Para o causalismo, o conteúdo da vontade não é um tema para ser abordado na análise da tipicidade, devendo ser estudado quando se for verificar a culpabilidade, conforme Teles (2004, p. 167).

Por sua vez, a teoria social da ação - atribuída a Eb Schmidt, conforme Prado (2005, p. 317) e que teve início com Welzel - definiu conduta como um fenômeno social, sendo Hans-Heinrich Jescheck um dos seus principais defensores. Reconhecia que a

2 ESTADO DE SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Consulta de Jurisprudência. Disponível em: <http://tjsc6.tj.sc.gov.br/jurisprudencia/PesquisaAvancada.do>. Acesso em: 12 dez. 2007.

– Carla Fornari Colpani –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 225

ação não podia atender exclusivamente a princípios fundamentados nas leis da natureza, sendo necessário situar o problema em uma relação valorativa com o mundo social. A conduta tinha relevância social quando afetava a relação do indivíduo com o seu meio, sendo portanto, a causação de um resultado típico socialmente relevante, como explica Wessels (1976, p. 20).

Já segundo o finalismo, tal conceito é determinado pelas estruturas lógico-objeti-vas ou lógico-concretas do objeto que se quer conhecer. Aqui Welzel (2001, p. 34) defende que é esse aspecto finalístico que imprime a relevância jurídica da conduta, por isso não é possível analisá-la exclusivamente em termos causais.

O Código Penal Brasileiro seguiu essa orientação, como explica Capez (2004, p. 119), fundindo a vontade e a finalidade na conduta como seus componentes essenciais, o que pode ser observado no art. 18, incisos I e II, reconhecendo expressamente que o crime ou é doloso ou é culposo, desconhecendo nossa legislação a existência de crime sem dolo ou culpa. Ademais, o art. 20, caput, determina que o erro incidente sobre os elementos do tipo exclui o dolo, o que demonstra que este último pertence ao fato típico.

Em suma, para essa teoria, o dolo é retirado da culpabilidade, constituindo elemen-to subjetivo do tipo, integrando a conduta. E, no crime culposo, a conduta descrita no tipo está integrada pela inobservância do dever de diligência na vida de relação. Assim, quem não tem habilidade para executar uma conduta adequadamente, não deve realizar o comportamento desejado.

3.2. Teorias para identificar o nexo de causalidade

A identificação da relação de causalidade jurídico-penal que estabelece a vincula-ção de certa conduta a um resultado decorre de construção dogmática determinada por obra da política criminal. Nexo causal é o elo concreto, físico, material e natural que se estabelece entre a conduta do agente e o resultado naturalístico, por meio do qual é possí-vel dizer se aquela deu ou não causa a este, como explica Capez (2004, p. 144).

Para intuir quando uma ação é causa de um resultado, foram elaboradas diversas teorias investigando o universo de condutas humanas verificáveis no mundo dos fatos típicos e ilícitos, sendo as mais frequentemente abordadas na doutrina: teoria da equiva-lência das condições, a teoria da causalidade adequada e a teoria da relevância jurídica.

A teoria da causalidade adequada foi desenvolvida por Johannes von Kries e surgiu em 1886, conforme observa Prado (2004, p. 326). Define causa como o antecedente não só necessário, mas também adequado à produção do resultado. De acordo com esse en-tendimento, ainda que contribuindo de qualquer modo para a produção do resultado, um fato pode não ser considerado sua causa quando, isoladamente, não tiver idoneidade para tanto, sendo necessárias contribuição efetiva e idoneidade individual mínima.

Com relação à teoria da relevância jurídica, foi criada por Mueller e desenvolvida por Mezger, compartilhando de seu pensamento Bockermann e Wessels. Defendia que

– Análise do Posicionamento Técnico-Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina em Julgados Criminais de Homicídio Culposo de Trânsito –

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não bastava ser a causa como definida na teoria da equivalência dos antecedentes, sendo necessário produzir o tipo descrito em lei, assim explicado por Noronha (1976, p. 117).

Prosseguindo, quanto à teoria da equivalência das condições, causa é toda e qual-quer conduta que, de algum modo, ainda que minimamente, tiver contribuído para a produção do resultado.

Afirma Reale Júnior (2000, p. 33) que a concepção de Stuart Mill de que causa seja a totalidade das condições levou Von Buri a concluir, raciocinando de forma invertida e coincidente, que qualquer condição que compõe a totalidade dos antecedentes é causa do resultado, pois a sua inocorrência impediria a realização do evento. Nota-se que o preceito expresso no art. 13, primeira parte, do Código Penal, para o qual “o resultado de que depende a existência do crime somente é imputável a quem lhe deu causa” significa que a relação de causalidade só tem aplicação aos tipos de crimes que exigem a produção do resultado, que são os crimes materiais, como é o caso do homicídio culposo de trânsito, objeto da presente pesquisa.

A redação do art. 13, caput, segunda parte, do Código Penal Brasileiro, segundo o qual é considerada causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido, demonstra que a conditio sine qua non foi a teoria adotada entre nós, já que todos os an-tecedentes do resultado possuem relevância causal, sendo que nenhum elemento de que depende a sua produção pode ser excluído.

Utiliza-se a fórmula conhecida como processo ou método indutivo hipotético de eli-minação para em um caso concreto descobrir se a conduta de determinado agente é causa ou não do resultado. Consiste em examinar a série causal construtível com base nela, excluí-la mentalmente e verificar o que ocorreria, como explica Teles (2004, p. 199).

Assim, se o resultado continuar acontecendo, como aconteceu, a conclusão é de que tal conduta não seja causa do resultado. Mas se, ao contrário, o resultado não ocor-rer como ocorreu, a conclusão é: que a conduta é a causa desse resultado. Para evitar o perigo do regresso ao infinito, basta considerar que a responsabilização penal exige também a causalidade subjetiva, sendo necessária a presença de culpa, como pondera Noronha (1976, p. 23).

3.3. Teoria da Imputação Objetiva

A delimitação entre condutas típicas e atípicas foi historicamente função da cau-salidade, como esclarece Prado (2005, p. 338). Mas, na atualidade, a necessidade de uma relação de causalidade entre ação e resultado e a consequente determinação da ação típica vem enfrentando uma crise doutrinária, com o fundamento de que uma teoria causal não consegue delimitar com acerto quais ações devem ou não ser consideradas típicas. Fala-se em crise do dogma causal.

Apresentando-se como um complemento corretivo e de superação das diversas te-orias causais, foi desenvolvida a teoria da imputação objetiva. Seus antecedentes radicam

– Carla Fornari Colpani –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 227

nos estudos desenvolvidos por Karl Larenz e Richard Honig. Dois dos principais teóricos da atualidade sobre o tema são Claus Roxin e Günther Jakobs. Para o primeiro, de acordo com Prado e Carvalho (2002, p. 64) só é imputável um resultado se ele pode ser previsto e dirigido pela vontade. Por esse raciocínio, os resultados que não forem previsíveis ou dirigíveis pela vontade não são típicos. E para Jakobs (2000, p. 15), a conduta, ainda que adequada ou dolosa, é insuficiente para fundamentar a imputação, sendo imprescindível a criação de um risco determinante do resultado.

Nesse contexto, a aplicação da teoria significa atribuir a alguém a realização de uma conduta criadora de um risco relevante e juridicamente proibido e a produção de um re-sultado jurídico. Antes e independentemente de se perquirir acerca do dolo ou da culpa do agente, deve-se analisar se o agente deu causa, objetivamente, ao resultado. Se não o tiver causado, torna-se irrelevante indagar se atuou com dolo ou culpa.

4. Objeto da Pesquisa

Como resultado da pesquisa pelo site, utilizando-se os critérios delimitativos já mencionados – crimes de homicídio culposo de trânsito, julgados entre 2000 a 2007 - fo-ram identificadas e analisadas 153 jurisprudências, sendo as seguintes: nº 2003.024434-4, de 31/08/04; nº 2006.004438-5, de 28/03/06; nº 2003.002902-8, de 27/10/03; nº 2005.015913-3, de 19/07/05; nº 2004.034154-4, de 18/07/06; nº 2003.029739-1, de 17/02/04; nº 2003.003121-9, de 13/05/03; nº 2006.045315-1, de 10/04/07; nº 2002.018779-3, de 08/10/02; nº 2002.016193-0, 08/10/02; nº 2003.003833-7, de 08/04/03; nº 2004.014900-0, de 08/03/05; nº 2003.003358-0, de 06/05/03; nº 2004.000783-3, de 06/04/04; nº 01.015514-1, de 02/04/02.

5. Análise das Jurisprudências

A pesquisa consistiu na análise detalhada das quinze jurisprudências, mas a trans-crição extrapolaria os limites previamente impostos para a publicação neste periódico. Desta forma, serão aqui analisadas somente três ementas, demonstrando como foram obtidos os resultados.

5.1. Apelação Criminal 2003.024434-4, de 31/08/04. Relator: Des. Solon d’Eça Neves:

APELAÇÃO CRIMINAL - HOMICÍDIO CULPOSO DE TRÂNSITO - AUTORIA, MATERIALIDADE E CULPABILIDADE PROVADAS - CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE - RECURSO DESPROVIDO -

3 Também resultaram como resposta da consulta no site as decisões nº 2002.022578-4, de 05/11/02, nº 2006.015514-5, de 27/06/06, nº 2006.016389-8, de 20/06/06 e nº 2003.004365-9, de 15/04/03. Todavia, por versarem somente sobre questões processuais, sem análise da autoria e da materialidade, não foi possível a identificação dos critérios pesquisados.

– Análise do Posicionamento Técnico-Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina em Julgados Criminais de Homicídio Culposo de Trânsito –

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EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE - PERDÃO JUDICIAL - PRESUNÇÃO DE DOR MORAL SOFRIDA PELO AGENTE - APLICAÇÃO DE OFÍCIO DO ARTIGO 107, INCISO IX, DO CÓDIGO PENAL.

Da leitura da ementa, extrai-se que em primeiro grau o acusado foi condenado por ter causado a morte de um parente próximo, em acidente de trânsito. A defesa recorreu solicitando a aplicação do perdão judicial, o que foi deferido em segundo grau, sendo declarada a extinção da punibilidade. A conduta do acusado foi considerada como a ação que resultou na morte da vítima. Evidencia-se, assim, que a concepção de conduta é a ditada pela teoria finalista da ação, como acontecimento final e não meramente causal.

A teoria do nexo de causalidade que fundamenta a decisão é a da equivalência dos antecedentes porque a conduta imprudente do motorista foi considerada como causa para a produção do resultado, bem como a totalidade dos antecedentes, pois a circuns-tância de serem acusado e vítima parentes acarretou a extinção da punibilidade, pelo perdão judicial.

Não houve a utilização dos conceitos de risco proibido ou incremento do risco, então não foi aplicada a teoria da imputação objetiva.

5.2. Apelação Criminal 2003.024434-4, de 31/08/04. Relator: Des. Solon d’Eça Neves:

APELAÇÃO CRIMINAL - HOMICÍDIO CULPOSO DE TRÂNSITO - AUTORIA, MATERIALIDADE E CULPABILIDADE PROVADAS - CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE - RECURSO DESPROVIDO - EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE - PERDÃO JUDICIAL - PRESUNÇÃO DE DOR MORAL SOFRIDA PELO AGENTE - APLICAÇÃO DE OFÍCIO DO ARTIGO 107, INCISO IX, DO CÓDIGO PENAL.

Neste caso, em primeiro grau o acusado foi condenado por ter causado a morte de um parente próximo, em acidente de trânsito. A defesa recorreu solicitando a aplicação do perdão judicial, o que foi deferido em segundo grau, sendo declarada a extinção da punibilidade. A conduta do acusado foi considerada como a ação que resultou na morte da vítima. Evidencia-se, assim, que a concepção de conduta é a ditada pela teoria finalista da ação, como acontecimento final e não meramente causal.

A teoria do nexo de causalidade que fundamenta a decisão é a da equivalência dos antecedentes porque a conduta imprudente do motorista foi considerada como causa para a produção do resultado, bem como a totalidade dos antecedentes, pois a circuns-tância de serem acusado e vítima parentes acarretou a extinção da punibilidade, pelo perdão judicial.

Também aqui não houve a utilização dos conceitos de risco proibido ou incremen-to do risco, então não foi aplicada a teoria da imputação objetiva.

– Carla Fornari Colpani –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 229

5.3. Apelação criminal 2003.002902-8, de 27/10/03, Relator: Des. Sérgio Paladino.

APELAÇÃO CRIMINAL. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. INFRAÇÃO AOS ARTS. 302, 3054 E 306, TODOS DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. CONCURSO MATERIAL DE CRIMES. ALMEJADA ABSOLVIÇÃO, AO ARGUMENTO DE QUE A PROVA SERIA INSUFICIENTE PARA AMPARAR A CONDENAÇÃO. AUTORIA E MATERIALIDADE DEMONSTRADAS. IMPRUDÊNCIA CARACTERIZADA. RECURSO DESPROVIDO.

O acórdão versa sobre o pedido de reforma da decisão de primeiro grau que con-denou o acusado pelos delitos de homicídio culposo, omissão de socorro e direção sob a influência de álcool, em concurso material. A conduta do acusado de estar embriagado e neste estado conduzir um veículo foi considerada como a ação que causou o acidente, identificando-se claramente a teoria finalista da ação.

A teoria do nexo de causalidade que fundamenta a decisão é a da equivalência dos antecedentes porque a conduta imprudente do motorista foi considerada como causa para a produção do resultado. Quanto à teoria da imputação objetiva, esta não foi aplicada.

6. Identificação dos Resultados e Conclusões

A análise do primeiro critério, que foi a concepção de conduta, demonstrou que em todas as decisões foi utilizado o entendimento proposto pela teoria finalista da ação. E isso porque a transcrição das ementas indicou que no julgamento a ação humana consistiu no exercício de uma ação finalista. Além disso, o poder humano de prever os possíveis efeitos da sua atividade – que faz parte da definição dos requisitos do Finalismo - enquadra-se na imprudência presente na conduta dos acusados, que, sem tomar os devidos cuidados necessários para dirigir em condições chuvosas, estando embriagados ou com velocidade superior à permitida, resultou na morte das vítimas, com a tipificação do fato.

Constatou-se que em nenhuma jurisprudência foi identificada a concepção pro-posta pelo causalismo, porque a conduta não foi em nenhum momento concebida pelos julgadores como um simples comportamento e sempre importou a apreciação sobre a sua ilicitude ou reprovabilidade.

Não foi verificada também nos casos analisados a definição proposta pela teoria social da ação, porque não foi apreciada a relevância social da conduta em nenhum caso, nem foi dada importância exagerada ao desvalor do resultado, pelo contrário.

Prosseguindo na verificação, quanto à aplicação da teoria do nexo de causalidade, nas jurisprudências analisadas, a identificação do nexo causal foi fundamentada na teoria da equivalência das condições, para a qual todos os antecedentes do resultado possuem

4 O delito de omissão de socorro previsto no art. 305, da Lei nº 9.503/97, que se trata de delito formal, não está abrangido nos critérios desta pesquisa.

– Análise do Posicionamento Técnico-Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina em Julgados Criminais de Homicídio Culposo de Trânsito –

230 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

relevância causal, sendo que nenhum elemento de que depende a sua produção foi ex-cluído. E isso pôde ser observado porque nas decisões de segundo grau que mantiveram as de primeiro grau todos os antecedentes do delito foram considerados como causa do resultado, sem exclusão de nenhuma causa.

Em nenhum dos casos a identificação do nexo de causalidade foi fundamentada na teoria da causalidade adequada, porque todos os antecedentes, sem exceção, foram considerados para a produção do resultado no julgamento, nem foram mencionados os conceitos de contribuição efetiva e idoneidade individual mínima, que são requisitos da referida teoria.

Foi demonstrado também que não foi utilizada a teoria da relevância social, já que em nenhuma jurisprudência para identificar o nexo causal foi extrapolado o terreno da pura causalidade para ingressar no campo normativo.

Por último, com relação à eventual aplicação da teoria da imputação objetiva nos julgados, não foi verificada em nenhuma das decisões, podendo-se afirmar que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina não é partidário dessa corrente doutrinária. As decisões, sem exceção, consideraram o nexo naturalístico atrelado à categoria normativa, sem levar em conta as categorias normativas risco proibido e realização do risco na prática da conduta com infração à norma, requisitos indissociáveis para a aplicação da referida teoria.

Em conclusão, da análise dos resultados, foi possível concluir que o posicionamen-to técnico-jurídico do Tribunal de Justiça de Santa Catarina em matéria criminal, com relação aos delitos de homicídio culposo de trânsito cujas decisões foram proferidas entre 2000 e 2007, pode ser caracterizado: 1º) pela adoção da teoria finalista da Ação como con-cepção de conduta; 2º) teoria da equivalência das condições, como teoria preponderante do nexo causal e 3º) pela não aplicação da teoria da imputação objetiva.

Referências

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JAKOBS, Günther. Imputação objetiva do direito penal. Trad. André Luís Gallegari. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

NORONHA, Magalhães. Direito Penal. v. 1. 38 ed. São Paulo: Saraiva, 1976.

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 5. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

______. Luiz Régis. Elementos de direito penal: parte geral. v.1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do delito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

– Carla Fornari Colpani –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 231

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TELES, Ney Moura. Direito penal: parte geral, arts. 1º a 120. São Paulo: Atlas, 2004.

WELZEL, Hans. O Novo sistema jurídico-penal: Uma introdução à doutrina finalista. Tradução, prefácio e notas de Luis Regis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

WESSELS, Johannes. Direito Penal: parte geral. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1976.

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 233

UMA NOVA INTERPRETAçãO DO ARTIGO 112 DO ESTATUTO DA CRIANçA E DO ADOLESCENTE E A CUMULAçãO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

A NEW INTERPRETATION OF ARTICLE 112 OF THE STATUTE OF CHILD AND OVERLAPPING

SOCIO-EDUCATIONAL MEASURES

Juliana Furlani Musco1

RESUMO: O presente artigo se propõe a trazer uma nova abordagem acerca da aplicação cumulativa das medidas socioeducativas aos adolescentes autores de atos infracionais. Sob uma ótica hermenêutica lógica e partindo de pressupostos que se adaptam ao novo paradigma surgido a partir da promulgação da Lei n° 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), esse artigo tem a pretensão de criar uma nova discussão sobre a forma com a qual magistrados, promotores e advogados aplicam as medidas previstas no art. 112 do Estatuto em relação ao adolescente em conflito com a lei.PALAVRAS-CHAVE: Crianças. Adolescentes. Ato Infracional. Medida Socioedu-cativa. Hermenêutica. Estatuto da Criança e do AdolescenteABSTRACT: The following article sets out to bring about a new way of seeing the cumulative application of social-educational measures to the teenagers who break the Law. Under a logic scope, and taking into consideration the paradigms set after the promulgation of Federal Law n. 8.069/90, this article intends to create a new discussion about the way judges, public prosecutors and attorneys apply the measures of article 112 from the Statute of Children and Adolescents.KEYWORDS: Children. Teenagers. Adolescents. Social-educational measures. Statute of Children and Adolescents, hermeneutics e infraction act.

1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-graduanda em Direito do Estado – Anhanguera – UNDERP (Rede de Ensino Luis Flávio Gomes). Técnica Judiciária Auxiliar da Comarca da Capital. Atualmente exercendo a função de Chefe de Cartório da Vara do Tribunal do Júri da Comarca da Capital. E-mail: [email protected]

– Uma Nova Interpretação do Artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Cumulação de Medidas Socioeducativas –

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1. Introdução

O Direito da Criança e do Adolescente no contexto histórico brasileiro passou por diversas modificações. Com o advento da Lei nº 8.069/90 o propósito do Estado passou a ser mais a proteção dos jovens do que a punição ou a exclusão destes.

Entretanto, essas modificações legais entraram em choque com o ranço histórico que os magistrados e os demais operadores jurídicos traziam em sua bagagem profissio-nal. Juízes e promotores, até os dias atuais, usam o termo “menor infrator” ao se referirem a um adolescente que cometeu um ato infracional, e isso é um exemplo de que, além da letra da lei, a realidade também precisa ser transformada.

A ideia de punição ainda subsiste, embora eivada de vícios desde as suas raízes, e com isso vem a aplicação excessiva da medida socioeducativa de internação, inclusive em casos em que a semiliberdade ou a liberdade assistida trariam melhores resultados, e ainda, o que é mais catastrófico: a cumulação de mais de uma das medidas previstas no art. 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Se nem mesmo no falho e precário instituto Direito Penal a ideia da “dupla puni-ção” é concebida, aplicá-la no Direito da Criança e do Adolescente significa, além de uma hermenêutica desprovida de fundamento, também uma insegurança jurídica, que distor-ce a ideia do Estado Protetor para uma ideia de Estado Punidor.

2. Desenvolvimento

No Brasil, a discussão acerca dos direitos inerentes à criança e ao adolescente sem-pre foram deixados de lado e sempre tratados com superficialidade.

No Brasil, ainda que de forma muito precária, a primeira noção de direito que tratara da criança e do adolescente se deu na Constituinte de 1823. Esse projeto discorria sobre o menor escravo e apenas servia para manter a mão de obra escrava e nada tinha de caráter humanista, ele apenas garantia que a escrava grávida trabalhasse apenas em casa e que durante o primeiro ano da criança esta ficasse perto da mãe.

Com as ideias abolicionistas, principalmente após a segunda metade do século XIX, a questão da criança escrava passou a ser vista de forma diferente. Em 1862 foi aprovada pelo Senado uma lei que garantia que os pais escravos não fossem vendidos separadamente de seus filhos e suas esposas. Outra legislação muito importante nesse período foi a Lei do Ventre Livre2, que concedia a liberdade a todas as crianças nascidas

2 A Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, também chamada de Lei Rio Branco, promulgada pela princesa Isabel na ausência D. Pedro I, em seu art. 1º dizia que: Os filhos da mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre. §1º: Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso o governo receberá o menor, e lhe dará destino,

– Juliana Furlani Musco –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 235

de mães escravas. Teoricamente a lei objetivava acabar com a escravidão dessas crianças, entretanto seus efeitos práticos não obtiveram tanto sucesso. O que acabou acontecendo de forma maciça foi a falsificação de documentos - alterando a data do nascimento dessas crianças, os senhores de escravos burlavam essa Lei. E como o senhor de escravo embora não fosse mais proprietário dessas crianças, ele era o responsável por elas até seus 21 anos, o que na prática continuava sendo quase a mesma coisa.

Com todas as medidas abolicionistas, a escravidão passou a ser reprimida e o in-centivo à imigração tornou-se mais forte. Entretanto, a realidade do trabalho no Brasil era totalmente diferente da ideia divulgada na Europa. Os imigrantes, em sua maioria italianos, encontraram em nosso país muitas dificuldades. Doenças, pragas, condições da agricultura e o clima foram fatores primordiais que assolaram a vida desses imigrantes. A mão de obra agora assalariada instituiu uma nova realidade econômica em nosso país, a urbanização e as indústrias espalharam-se nas grandes cidades. Com esse aumento da população, a cidade que não tinha uma infraestrutura para acolher todos esses novos habitantes tornou-se um lugar precário, as epidemias eram constantes e o número de crianças, filhos desses europeus, que ficavam órfãs, cresceu absurdamente.

Nessa época, a Igreja, bem mais que o Estado, passou a se preocupar com essas crianças que acabavam largadas pelas ruas. Essa preocupação era basicamente com a ali-mentação, e o ensino ou era religioso ou era voltado a atividades domésticas.

As crianças também passaram a ser usadas como mão de obra barata nas indús-trias. Em condições insalubres e com cargas horárias absurdas, essas crianças eram explo-radas e privadas de sua infância.

Até este momento, a principal legislação que se referia às crianças dessa época era o art. 27 do Código Penal de 1890 que apenas dispunha como não criminosos os menores de nove anos de idade e os que até os quatorze anos não tivessem seu discer-nimento completo.

O Código de Menores de 1927 sintetizou vários leis e decretos que tratavam da criança e do adolescente. Redigido por Mello Mattos, foi aprovado em 1927, após inten-sos debates que reuniam figuras proeminentes, à época, nos meios políticos, jurídicos, legislativos e assistenciais. Ele foi elaborado com extrema minúcia, e continha 231 artigos. Destacava-se, entre os dispositivos apresentados, uma detalhada descrição das atribui-ções da autoridade competente - o Juiz de Menores.

O Código de Menores tinha como objetivo alterar e substituir concepções já ultra-passadas como as de discernimento, culpabilidade, penalidade, responsabilidade, pátrio

em conformidade da presente lei. A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro anual de 6%, os quais se considerarão extintos no fim de trinta anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de trinta dias, a contar daquele em que o menor chegar à idade de oito anos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor. De poucos efeitos práticos imediatos, deu liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir da data de sua promulgação, mas os manteve sob a tutela dos seus senhores até atingirem a idade de 21 anos.

– Uma Nova Interpretação do Artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Cumulação de Medidas Socioeducativas –

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poder, passando a assumir a assistência da criança e do adolescente, sob a perspectiva educacional. Abandonou-se a postura anterior de reprimir e punir e passou-se a priori-zar, como questão básica, o regenerar e educar. Desse modo, chegou-se à conclusão de que questões relativas à infância e adolescência devem ser abordadas fora da perspectiva criminal, ou seja, fora do Código Penal. Estabelecendo, então, limites para a punição de crianças e adolescentes.

Após o Código Mello Mattos, começaram a aparecer várias legislações pertinentes à proteção da infância e adolescência. Dentre eles, merecem destaque o novo Código Pe-nal em 1940, que fixou a responsabilidade penal do “menor de 18 anos”, exigiu a alteração do Código de Menores de 1927 pelo decreto-lei n.º 6.026/43. Outro avanço teórico nessa área foi a criação do “SAM – Serviço de Assistência a Menores” pelo Decreto n.º 3.779/41, com o objetivo de proteção aos “desvalidos e infratores” em todo o território nacional.

O Código de Mello Mattos, por conter dispositivos complexos e adiantados para a sua época, colocando a legislação sobre menores ao nível do Código Civil, do Código Penal e do Comercial, foi um grande marco histórico para a construção de um direito dos infantes apartado do sistema penal.

O novo Código de Menores, Lei 6.697, foi promulgado no Ano Internacional da Criança, em 10 de outubro de 1979 e fundamentado na doutrina da “situação irregular”. Discorria que o Juiz de Menores estava autorizado a aplicar algumas medidas cabíveis se o menor de 18 anos se classificasse em alguma situação de irregularidade.

A FUNABEM (Fundação Nacional do Bem Estar do Menor) foi criada em 1º de dezembro de 1964, através da Lei n. 4.513. O SAM3, que não conseguiu cumprir as suas finalidades, estava desgastado, as críticas que norteavam esse serviço eram gerais e a so-ciedade exigia que uma política pública voltada à criança e ao adolescente fosse imple-mentada de forma concreta. Assim sendo, durante o primeiro ano da ditadura militar, a FUNABEM entra no cenário brasileiro.

Dentro dos Estados foram criadas as chamadas FEBEM – Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor -, que tinham como objetivo aplicar a cada unidade federativa as políticas nacionais. A FEBEM tinha como finalidade: “formular e implantar programas de atendimento a menores em situação irregular, prevenindo-lhes a marginalização e oferecendo-lhes oportunidades de promoção social.” 4

Com a extinção da FUNABEM, através do ECA (Estatuto da Criança e do Adoles-cente), que previa a extinção da FUNABEM e a criação do Conselho e de uma Coordena-ção Técnica, as FEBEMs continuaram a existir como centros de reeducação, reabilitação ou unidades de internamento.

3 Serviço de Assistência a Menores, criado pelo Decreto-lei 3.779 de 1941. 4 Art. 2º da Lei Nº 4.513, DE 1º DE DEZEMBRO DE 1964.

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O Código de Menores de 1979, que também estava fundamentado na doutrina da situação irregular, foi sucedido pela Lei n° 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescen-te - ECA), fundamentada na doutrina da proteção irregular. Com a promulgação do Esta-tuto da Criança e do Adolescente, a situação desses sujeitos passou a ser encarada sob um novo prisma. Não mais são considerados objetos tutelados do Estado, mas sujeitos que possuem direitos e deveres. Amparado na Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, que elenca como prioridade absoluta a garantia de diversos direitos à criança e ao adolescente, o ECA foi um divisor de águas dentro do direito infanto-juvenil.

A nova visão do Estatuto da Criança e do Adolescente causa polêmica até hoje, mesmo depois de 18 anos da sua criação. Intitulado por uns como muito liberal, e por outros como fundamentalmente Constitucional, o ECA hoje é motivo de discussões entre juristas, jornalistas e outros membros da sociedade.

O ECA foi criado num contexto histórico mundial no qual foi reconhecido que a criança e o jovem são prioridade absoluta dentro de um Estado. Detentoras de direitos e deveres, agora esses jovens não são mais chamados de “menores”. Dentro de uma nova re-alidade mundial, com assinaturas de Tratados Internacionais5 importantíssimos, o jovem e a criança passam a ter um novo status dentro da realidade brasileira.

O termo jovem em conflito com a lei passa a ser utilizado no lugar de menor infra-tor, para tentar se afastar ao máximo da visão menorista dos antigos Códigos.

O ECA traz em seus artigos todos os meios necessários para a sua aplicação: nor-mas que definem direitos e estabelecem deveres, além de dispor sobre mecanismos que garantam a sua aplicabilidade.

O Estado não mais apenas tutela a criança e o adolescente, mas sim, com eles, tem uma relação social, tendo a criança ou o jovem mecanismos de garantir a efetividade de seus direitos através dos meios constitucionalmente criados.

Nasce então o novo Estatuto, e, a partir daí, as discussões passam a ter um novo enfoque. A proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes estava constitucional-mente prevista e tinha o amparo da Lei. A polêmica surgiu, no entanto, no que concerne ao papel punitivo do Estado em relação aos adolescentes em conflito com a lei.

O Estatuto da Criança e do adolescente dispõe que6

Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:I - advertência;II - obrigação de reparar o dano;III - prestação de serviços à comunidade;IV - liberdade assistida;

5 Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovado pela ONU em 20 de novembro de 1989.6 Art. 112 da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990.

– Uma Nova Interpretação do Artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Cumulação de Medidas Socioeducativas –

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V - inserção em regime de semi-liberdade;VI - internação em estabelecimento educacional;VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.Art. 113. Aplica-se a este Capítulo o disposto nos arts. 99 e 100.

Em nos seus artigos 99, 100 e 1017:

O art. 99 dispõe que: As medidas previstas neste Capítulo poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo.Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;

Muito se discute na doutrina atual sobre a aplicabilidade das medidas socioeducati-vas de maneira cumulada entre elas ou de maneira cumulando-as apenas com as medidas de proteção.

Diante das inúmeras discussões, os argumentos levantados pela maioria dominan-te da doutrina são que, por se tratar de medidas educativas, podem ser cumuladas entre si, pois estariam educando o jovem e não o punindo, já que o caráter da medida não é de punição, o que não causaria um afronto ao princípio do ne bis in idem, segundo o qual ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo crime. O direito penal deve ser afastado do direito da criança e do adolescente no tocante a tudo que fere os preceitos constitu-cional e legalmente constituídos. Mas se no falho e repressivo direito penal essa garantia é atribuída aos que cometem atos tipificados como crime na lei, deixar de aplicá-la no direito da criança e do adolescente seria uma incoerência, ou até mesmo uma violação aos princípios norteadores de um Estado Democrático de Direito.

Outro argumento levantado versa sobre a interpretação do artigo 113 do ECA, o qual, para alguns juristas, o próprio legislador quis que fossem aplicadas cumulativamen-te entre si as medidas socioeducativas. Nesse sentido, faremos uma análise hermenêutica do referido artigo.

O ECA foi criado num contexto histórico/jurídico mundial diferente da realidade brasileira. Considerado por muitos como liberal demais, o ECA até hoje sofre críticas, e

7 Arts. 99, 100 e 101 da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990.

– Juliana Furlani Musco –

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sua aplicabilidade eficaz dentro do âmbito judicial por muitas vezes é prejudicada quando em jurisprudências ainda vemos termos e expressões abolidas há mais de 18 anos, como menor, pátrio poder etc.

Um argumento pouco discutido e razoavelmente simples pode ser levantado quan-do analisamos essa discussão sob o vértice de uma interpretação histórico/social. Assim entendemos que, se fosse vontade do próprio legislador que as medidas socioeducativas pudessem ser cumuladas entre si, este o faria de forma clara e objetiva. Da maneira em que está exposto, este artigo, apesar de contrariar a doutrina dominante, deve ser entendi-do somente como a possibilidade de cumular com uma medida de proteção.

Aplicar cumulativamente duas medidas socioeducativas, em alguns casos, seria fi-sicamente impossível, pois como aplicaríamos a medida de internação junto com a da liberdade assistida? Talvez esse exemplo seja pouco usado, pois, na maioria das vezes, a medida socioeducativa de advertência é cumulada com outra socioeducativa, mas, ao afirmamos que duas medidas elencadas no art. 112 possam ser cumuladas, devemos es-tender essa interpretação a todos os incisos deste artigo sem distinções. Entender que só alguns incisos deste artigo que podem ser cumulados entre si, e outros não, seria uma interpretação extra legis, fugindo totalmente do corpo da lei.

Não cabe ao intérprete analisar o texto da lei somente em consonância com sua vontade. Este deve analisar todos os incisos sem distinções de um ou outro para parecer mais eficaz a aplicabilidade desta medida.

Sendo impossível de cumular os incisos IV, V e VI com os demais, fica claro que a vontade do legislador era que as medidas socioeducativas pudessem ser acumuladas somente com as medidas de proteção. E, inclusive no inciso VII, o legislador afirma que, diante de um ato infracional, podem, apenas as medidas de proteção previstas no art. 101, I a VI, ser aplicadas sem a aplicação de uma outra medida socioeducativa.

Quando estudamos o ECA de forma profunda, começamos a entender a impor-tância desse novo Estatuto. Suas mudanças produzem efeitos em nossa realidade. Não há como ver o ECA de forma superficial. Termos e expressões já abolidas continuam sendo usadas. Jornalistas e boa parte da sociedade criticam apenas a parte em que essa lei trata das medidas socioeducativas. Mas nada falam e nada fazem quando um direito da criança ou do adolescente garantido pelo próprio Estatuto é violado.

Enquanto uma nova mentalidade não surgir, e nossas crianças e jovens continua-rem sendo tratados como objetos tutelados pelo Estado e, por isso, poder ter seus direitos violados para garantir o “poder do rei”, não conseguiremos trazer a realidade do novo Estatuto para o seio da sociedade.

Os adolescentes que cometem algum ato infracional devem sim ser responsabili-zados por suas atitudes sob pena de prejudicá-los diante da não aplicação das medidas socioeducativas. Agora, abusar dessa responsabilização com a desculpa de protegê-los é a forma mais hipócrita de violação de direitos e sem condições de ser aceita depois de 18 anos da promulgação do Estatuto.

– Uma Nova Interpretação do Artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Cumulação de Medidas Socioeducativas –

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Transformadas as vítimas do sistema, crianças e jovens que não têm seus direitos devidamente assistidos viraram criminosos, enquanto o Estado deixa de cumprir seu de-ver legal e, a ele, nenhuma sanção é imposta.

3. Conclusão

O Direito da Criança e do adolescente passou por várias transformações ao longo da evolução da sociedade, mas, mesmo com todas essas transformações, é evidente notar que muita coisa ainda precisa ser melhorada.

A sociedade atual precisa passar por mudanças urgentes no tocante à proteção dos direitos e garantias fundamentais asseguradas pelo ordenamento jurídico existente. As leis devem servir aos homens e não ao Estado, a todos e não somente aos mais ricos.

Toda a estrutura do país precisa ser revista, todos os ramos da sociedade precisam estar engajados para que, de fato, o Estatuto da Criança e do Adolescente se torne uma lei de eficácia plena e não apenas letras mortas numa folha de papel.

A punição excessiva deve ceder lugar a um Estado que cumpra efetivamente os direitos fundamentais e sociais previstos na Carta Magna. A cumulação de medidas so-cioeducativas deve ser abandonada de uma vez por todas em prol de uma sociedade mais justa e segura.

Referências

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Ltc, 1981.

BRASIL. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. Brasília, DF: Senado Federal, 1990.

CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

ROSA, Alexandre Morais da. Introdução Crítica ao Ato Infracional: Princípios e Garantias Constitucionais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Infância e Adolescência, O conflito com a Lei. Florianópolis: Fundação Boitex, 2001.

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MINORAçãO DA MAIORIDADE PENAL: UMA MEDIDA INÓCUA

DECREASE OF THE CRIMINAL MAJORIY: AN INNOCUOUS MEASURE

Vanderlei Ribeiro da Rosa1

RESUMO: Discussão de grande embate é acerca da minoração ou não da maiori-dade penal. Para alguns, a maioridade penal, que é de 18 (dezoito) anos, deveria ser reduzida para 16 (dezesseis) anos; para outros, essa não seria a alternativa. Concorda-se com a segunda corrente, pois se acredita que o problema é mais de ordem política, de modo que é necessária, na realidade, a reestruturação estatal, apa-relhamento, a fim de tornar mais eficazes as medidas sócio-educativas já previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.De fato, o cumprimento de forma integral e mais eficaz do Estatuto da Criança e do Adolescente somado com a criação de mais institutos de correção, na forma prevista pelo citado estatuto, de tal forma a demonstrar uma nova realidade ao menor in-frator, de modo a promover a devida correção e educação dele e, por conseguinte, a demonstração ao menor de uma nova perspectiva de vida, seriam medidas de maior alcance do que a minoração da maioridade penal.PALAVRAS-CHAVES: minoração; maioridade penal; medidas socioeducativas, institutos de correção, educação.ABSTRACT: Discussion is great discussion about the mitigation of legal age or not. For some, adulthood, which is 18 (eighteen) years should be reduced to 16 (sixteen) years, for others this was not an alternative. We agree with the second line, since it is believed that the problem is more political, so it is necessary, in fact, restructuring state-rigging in order to make more effective socio-educational measures already contained in the Statute Children and Adolescents. In fact, compliance with the integral and most effective of the Child and Adolescent coupled with the creation of more institutes of

1 Bacharel em Direito e especialista em Direito Material e Processual Civil pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - Campus Videira. Atualmente Assessor de Gabinete do Juiz de Direito Doutor Ederson Tortelli da Segunda Vara da Comarca de Fraiburgo. E-mail: [email protected]

– Minoração da Maioridade Penal: Uma Medida Inócua –

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correction, as prescribed by that statute in such a way as to demonstrate a new reality to the juvenile offender, so promote the proper attention and education goals, and therefore the demonstration under a new perspective on life, would have a longer range than the mitigation of legal age. KEY WORDS: decrease; criminal majority; socio-educational measures; institutes of correction; education.

1. Introdução

Há décadas, grande é a preocupação decorrente do aumento da criminalidade que assola o Brasil. Tal preocupação é acentuada pelo envolvimento cada vez maior de meno-res de idade em crimes de muita repercussão no seio da sociedade.

Dessa forma, discussão de grande embate é a necessidade de minoração ou não da maioridade penal.

De fato, para alguns, a maioridade penal, que é de 18 (dezoito) anos, deveria ser reduzida para 16 (dezesseis) anos; para outros, essa não seria a alternativa.

Para aqueles que defendem a minoração, tal providência seria a solução da proble-mática da segurança pública e traria a paz social tão almejada pela sociedade. Argumen-tam que há um aumento contumaz de adultos se utilizando de adolescentes para efetivar seus crimes, de modo a coibir a eficaz ação da polícia. Ainda, aduzem que o mesmo dis-cernimento presente no adolescente de dezesseis anos para votar está presente para os demais atos, inclusive na capacidade de diferenciação do certo e do errado, enfim, na capacidade volitiva para evitar a prática de um crime.

Já os que defendem entendimento diverso pregam a irracionalidade dessa atitude, pois isso seria o mesmo que regredir no senso de civilização e, principalmente, por não contribuir em nada no combate à criminalidade.

Nessa celeuma, entende-se que a corrente defensora do entendimento mais con-dizente com a realidade e mais eficaz é esta última. Nesse passo, passar-se-á a seguir a discorrer sobre o assunto e trazer maiores embasamentos para a fundamentação dessa orientação seguida.

2. Discussão

Como é sabido, o aumento de crimes, inclusive hediondos, praticados por menores de idade gerou grandes celeumas na esfera sociojurídica do Brasil.

Aliás, o homicídio do menor J. H., o qual foi arrastado pelas ruas de um bairro carioca na fuga dos facínoras que haviam roubado o carro da mãe do menor assassinado, trouxe novamente à baila esse embate acerca da minoração ou não da maioridade penal.

Como dito alhures, há duas correntes vertentes: aqueles que defendem a diminui-ção da maioridade penal para dezesseis anos e aqueles que objurgam tal medida. Estes úl-

– Vanderlei Ribeiro da Rosa –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 243

timos afirmam que há medidas mais eficazes no combate à marginalidade infanto-juvenil e pregam que a adoção de tal providência iria somente agravar a situação. Aqueles adu-zem que isso aumentaria a responsabilidade do adolescente entre dezesseis e dezoito anos e traria efetiva punição e intimidaria a ocorrência de crimes e, ainda, por ser uma forma de política criminal a fim de atender o anseio social.

Acredita-se que é latente a disparidade da minoração da maioridade penal com a realidade jurídico-legal brasileira e realmente não teria a eficácia almejada pelos seus defensores.

Denota-se que o problema é mais de ordem política, pois é necessária na realidade a reestruturação estatal, aparelhamento, a fim de tornar eficazes as medidas socioedu-cativas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Sendo que há que se pensar em alternativas mais elaboradas do que a simples mudança de lei, a qual, sozinha, não impede que um jovem de 16 anos mate uma pessoa (IBAIXE JÚNIOR, 2006).

Deveras, em um primeiro momento, conforme Ana Karina Brenner e Elainer Mon-teiro (2007), não se pode olvidar de que muito mais do que a mudança na lei, o que está em jogo em todo este debate é a forma como a sociedade brasileira se relaciona com suas crianças, adolescentes e jovens, assim como o tipo de sociedade que deseja construir.

Vale registrar que a Lei n.º 8.069/1990 (ECA) foi uma vitória para a manutenção da civilização da sociedade e visa inserir as crianças e os adolescentes como verdadeiros sujeitos de direitos e obrigações.

Ocorre que o Estatuto da Criança e do Adolescente e as políticas públicas efetiva-mente não foram totalmente implementados. Chega-se à ilação de que realmente haja uma incoerência na minoração da maioridade penal, pois como se pode cogitar a mudan-ça de uma lei que não é totalmente cumprida?

Nesse aspecto, é oportuno citar os fatos trazidos a lume por Ana Karina Brenner e Elainer Monteiro em seu artigo “Redução da maioridade penal ou medidas socioeduca-tivas” (entende-se que tais fatos apresentam medidas que seriam mais eficazes do que a redução da maioridade penal):

Estudo de 2003 do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) aponta que uma das grandes fragilidades do sistema socioeducativo brasileiro é a pouca abrangência ou mesmo inexistência das medidas socioeducativas em meio aberto e a incipiente prática de descentralização nos municípios.

(...)

Algumas experiências, infelizmente ainda isoladas, de implementação das medidas de internação em unidades pequenas, para no máximo 40 adolescentes, com infraestrutura adequada, equipes atuando conforme os princípios e diretrizes do ECA já demonstram o quanto o Estatuto pode ser eficaz na ressocialização de adolescentes infratores e, portanto, na diminuição da criminalidade.

Deve-se, pois, investir nas medidas que tendem a buscar a ressocialização dos ado-lescentes infratores quando do cometimento de infrações de menor potencial ofensivo.

– Minoração da Maioridade Penal: Uma Medida Inócua –

244 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

De fato, não pairam dúvidas de que ensejar melhores condições de existência e am-plo acesso à educação às crianças e adolescentes, bem como possibilitar a maior eficácia ao Estatuto da Criança e ao Adolescente, são medidas que trariam resultado mais célere e benéfico para toda a sociedade.

Assim, o cumprimento de forma integral do ECA coadunado com a criação de mais institutos de correção, na forma prevista pelo citado estatuto, de tal modo que de-monstre uma nova realidade ao menor infrator e corrigindo-o, educando-o e dando a ele uma nova perspectiva de vida, seriam medidas de maior alcance do que a minoração da maioridade penal.

Vale lembrar que, diversamente do que se acredita, não há impunidade ao menor infrator de 18 anos; o que ocorre, na realidade, é que ele sofre sanções diferenciadas, fi-xadas em lei especial – Estatuto da Criança e do Adolescente – que almejam reeducar e trazer uma nova realidade ao jovem infrator. Logo, conforme já salientado, faz-se mister a implementação total de referida norma.

Ademais, ao se perscrutar os fatos, chegar-se-á à ilação de que a redução da maio-ridade penal não serve para combater efetivamente a criminalidade: primus, em razão de que quem comete o crime, seja maior ou menor, não se preocupa com sua punição; secundus, porque a pena de prisão não é um castigo e, infelizmente, não tem caráter in-timidatório. A intenção da prisão no caso do adulto e da internação do adolescente é de ressocialização em prol da sociedade (IBAIXE JÚNIOR., 2007)

Porém, não se pode olvidar que a prisão, na forma como está o sistema carcerário brasileiro, não ressocializa. Assim, isolar mais prematuramente esses indivíduos que, na sua maioria, ainda estão em fase de desenvolvimento, agravaria a situação desses adoles-centes, colocando-os em contato com “escolas do crime”, além de aumentar os problemas do sistema carcerário, como o da superpopulação carcerária.

3. Conclusão

Chega-se à ilação que, no que diz respeito à criminalidade infanto-juvenil, o pro-blema é mais de ordem política, pois é necessária, na realidade, a reestruturação estatal, aparelhamento, a fim de tornar eficazes as medidas socioeducativas do Estatuto da Crian-ça e do Adolescente.

Deve haver, pois, o cumprimento efetivo das disposições do ECA e, para tanto, é necessária a criação de mais institutos de correção, na forma prevista pelo citado estatuto.

Dessa forma, haverá possibilidade do efetivo cumprimento das medidas socioedu-cativas aplicadas e, por conseguinte, da possibilidade de se demonstrar ao menor infrator uma nova realidade. Também poderá ser tornada mais eficaz e uma realidade a plausibili-dade de correção, de educação e de uma nova perspectiva de vida ao adolescente.

Tais medidas seriam, pois, mais eficazes do que a minoração da maioridade penal.

– Vanderlei Ribeiro da Rosa –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 245

Logo, é imprescindível o investimento nas medidas que tendem a buscar a resso-cialização dos adolescentes infratores quando do cometimento de infrações de menor potencial ofensivo.

Vale ressaltar que a minoração da maioridade penal, além de agravar o problema da superpopulação carcerária, poderia ensejar o agravamento do comportamento dos respec-tivos adolescentes, visto que estariam diretamente em contato com “professores do crime”.

Naturalmente, não se pode olvidar que, na esfera extrajudicial, mais precisamente no âmbito familiar e pedagógico, há a premente necessidade de as famílias voltarem a “criarem” seus filhos e não os deixar à mercê das drogas, dos marginais, dos aproveitado-res, da onda de libertinagem que, infelizmente, está em ascensão.

A modernidade trouxe benefícios, mas as famílias não podem esquecer os princí-pios antigos, mas que ainda devem estar presentes, hoje e sempre, para que permaneçam vivos alguns valores que, desafortunadamente, para a maioria das pessoas estão esqueci-dos. De fato, conservadorismo em muitos aspectos da vida, ao contrário do que alguns pensam, não é sinônimo de arcaísmo, de retrocesso ou de estagnação no tempo, mas sim de uma necessidade premente da permanência do bom senso, dos valores basilares, da justiça, da ordem e da continuidade de uma existência digna e valorosa. É necessário que Estado melhore ainda mais a educação e dê continuidade a esse processo de reeducação para a disseminação do senso de família, dos princípios necessários para a formação de verdadeiros cidadãos e pais de família.

Referências

BRENNER, Ana Karina; MONTEIRO, Elaine. Redução da maioridade penal ou medidas socioeducativas? Disponível em: <http://www.uff.br/observatoriojovem/materia/redu%C3%A7%C3%A3o-da-maioridade-penal-ou-medidas-socioeducativas>. Acesso em: 25 maio 2011.

IBAIXE JÚNIOR, João. Maioridade Penal. Prática Jurídica. Ano V, n.º 55, 31 de outubro de 2006. p. 66.

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 247

O ART. 28 DA NOVA LEI DE DROGAS: DESPENALIzAçãO OU DESCRIMINAçãO DO USO DE ENTORPECENTES?

ART. 28 THE NEW DRUG LAW: DISCRIMINATION DECRIMINALIZATION OR THE USE OF DRUGS?

Jaison borsatti Moreira dos Santos1

RESUMO: O presente trabalho almeja discutir brevemente o artigo 28 da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, chamada de Nova Lei de Drogas, em seus aspectos social e criminológico, devido à inovação trazida por esta lei no tocante à pena apli-cada ao usuário, não sendo mais prevista a pena privativa de liberdade. Será feito um breve comparativo histórico em relação às leis anteriores, bem como uma reflexão quanto às possíveis conseqüências futuras advindas da Nova Lei. Ainda, como a po-lítica criminal está sendo afetada pelos novos institutos despenalizadores no Brasil.PALAVRAS-CHAVE: Drogas. Pena. Política Criminal.ABSTRACT: This essay aims to discuss briefly the article 28 of the Law n. 11.343, of August, 23th 2006, called New Drugs Law, in its social and criminological aspects, due to the innovation brought by this law concerning to the penalty to the user of drugs, to whom is no more applied imprisonment. It will be done a brief historical comparison, as well as a consideration about the possible consequences of the New Law. Furthermore, how the criminal politics is being affected by the new institutes of decriminalization in Brazil.KEY WORDS: Drugs. Penalty. Criminal Politics.

Introdução

Vigia no Brasil, desde 1976, a Lei n. 6.368, de 21 de outubro daquele ano, a qual trazia em seu bojo a previsão da pena de detenção de seis meses a dois anos, além de mul-ta, para quem adquirisse, guardasse ou trouxesse consigo, para uso próprio, substância

1 Bacharel em Direito pela UNOESC Videira. Pós-graduando em Medicina Legal e Ciências Forenses pela UNIARP Caçador. Técnico Judiciário Auxiliar na Comarca de Videira. E-mail: [email protected]

– O Art. 28 da Nova Lei de Drogas: Despenalização ou Descriminação do Uso de Entorpecentes –

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entorpecente ou que determinasse dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

No limiar do terceiro milênio, porém, surge um projeto de lei visando, dentre ou-tras coisas, a abolição da pena privativa de liberdade ao usuário de drogas, o que culmi-nou na Lei n. 10.409, de 11 de janeiro de 2002. “O Presidente da República, no entanto, diante de tantas incorreções e absurdos técnicos, acabou vetando cerca de 30% do projeto e mantendo em vigor grande parte da antiga L. 6.368/76”2.

Diante do conflito de ambas as normas, instalou-se um verdadeiro caos jurídico, pois os operadores do Direito viram-se diante de duas leis regulando a mesma matéria, não sabendo qual lei deveriam escolher no momento da aplicação in concreto. Houve mesmo conflito no próprio corpo da Lei n. 10.409/02, onde, os artigos 27, 33 e 46, só para exemplificar, faziam referência aos crimes previstos nesta lei. “Pergunta-se quais, se todo o capítulo III, que previa os crimes e as penas, foi vetado pelo Presidente da República?”3.

A solução encontrada para minimizar tal celeuma foi aplicar parcialmente a Lei n. 6.368/76 e a Lei n. 10.409/02, aquela no que tange aos tipos penais e esta à parte processu-al. Porém grande parte da Lei n. 10.409/02 restou inutilizada, por exemplo os artigos que trouxeram expressões vagas, sem definição jurídica, tais quais “grupo”, “organizações” e “organizações criminosas”.

Percebe-se que, no Brasil, a falta de técnica legislativa e a avalanche de leis inócuas são responsáveis, em grande parte, pela insegurança jurídica e descrédito na Justiça. Pois no dizer de Beccaria “Se a arbitrária interpretação das leis constitui um mal, a sua obscu-ridade o é igualmente, pois precisam ser interpretadas”4.

Novas Tendências

Passemos à análise dos tipos penais. O artigo 16 da revogada Lei n. 6.368/76, trazia três condutas como tipo objetivo. In verbis:

Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa. (Grifo nosso)5

2 GOMES, Luiz Flávio. et al.Tóxico: Nossa legislação virou uma “colcha de retalhos”. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, São Paulo, n. 15, p. 13-15, ago./set. 2002.

3 GOMES, Luiz Flávio. op. cit. p. 14.4 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2009, p. 24.5 BRASIL. Lei n. 6.368, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso

indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em: 09 mar. 2011.

– Jaison Borsatti Moreira dos Santos –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 249

Já o artigo 28 da Lei n. 11.343/06 aumentou o número de condutas e minorou a pena prevista:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:I - advertência sobre os efeitos das drogas;II - prestação de serviços à comunidade;III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.§ 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.§ 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.§ 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. § 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:I - admoestação verbal;II - multa.§ 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado. (Grifo nosso)6

O artigo em comento substituiu o termo “substância entorpecente ou que determi-ne dependência física ou psíquica” por “drogas”, além de enquadrar na mesma categoria de usuário aquele que “para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas des-tinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica”, o que antes era considerado crime de porte ou mesmo tráfico de drogas, dependendo das circunstâncias.

É claro que o magistrado levará em consideração, para determinar se o agente é usu-ário, todos aqueles elementos elencados no § 2o. Quanto à pessoa flagrada já sob o efeito de drogas, configura-se conduta atípica. Senão vejamos o comentário de Silva e Luchiari:

6 BRASIL. Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em: 09 mar. 2011.

– O Art. 28 da Nova Lei de Drogas: Despenalização ou Descriminação do Uso de Entorpecentes –

250 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

O objetivo do dispositivo é a aplicação de pena não privativa de liberdade a quem adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, substância entorpecente. Aquele que já fez o uso, e não foi surpreendido em flagrante, nem localizado depois com a droga, não pode ser enquadrado em nenhum dispositivo desta Lei. A Lei não pune quem já fez o uso, mas, sim, aquele que adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, a droga7

Muito se tem discutido sobre a inovação trazida pelo artigo em foco. Alguns dou-trinadores acreditam ter havido abolitio criminis, outros despenalização, mas é pacífico o entendimento de que a política criminal brasileira tem seguido o fenômeno mundial da despenalização, mormente após a edição das chamadas Regras de Tóquio.

As Regras de Tóquio, ou Regras Mínimas das Nações Unidas sobre as Medidas Não-privativas de Liberdade, surgiram como resposta à visão arcaica que antes vigia, oriunda da Escola Clássica, que tratava o delito como uma ofensa ao Estado, punida de forma severa, funcionando a severidade da pena como fator inibidor da ocorrência de novos crimes e elemento retributivo dirigido à pessoa do delinqüente. Via-se, então, a pena de prisão como a forma mais eficaz para a expiação da infração cometida, sem qualquer caráter de ressocialização do apenado.8

Ainda, segundo a Escola Clássica, buscava-se punir o mal pelo mal, ou seja, a práti-ca de um crime dava ensejo a outro “crime”, desta vez cometido pelo Estado. Extrai-se da célebre obra “O homem delinqüente”:

Entre os selvagens, como entre os animais, a pena apresenta primeiramente o caráter de vingança e se assemelha a uma espécie de crime. Quando se trata da perseguição de indivíduos mais fortes e mais poderosos, forçosa é a associação para o exercício das represálias. Ora, se tais associações triunfam, o crime torna-se, a seu turno, um instrumento posto a serviço da moral.9

Conclusão

Depreende-se do espírito da Lei n. 11.343/06, que seu objetivo maior é a tão al-mejada ressocialização e educação do usuário de drogas. Em contrapartida, a título de ilustração, a pena para o crime de tráfico foi maiorada. No entanto, resta a dúvida se tais penas previstas ao usuário realmente funcionarão ou serão um paliativo para este proble-ma social que aflige todas as nossas camadas sociais. Deixou-se de encarar o fato pelo viés da segurança pública para ser abordado pela ótica da saúde pública.

Advertência, admoestação verbal, comparecimento compulsório a cursos, nada disso adianta para aquele que não quer se ajudar. O viciado precisa ter iniciativa e desejar deixar o vício. Caso contrário, não será a aplicação em dobro da reprimenda que garantirá

7 SILVA, José Geraldo da; LUCHIARI, Edemur Ercílio. Comentários à Nova Lei sobre Drogas. Lei n. 11.343/06. Campinas, SP: Millennium Editora Ltda, 2006, p. 44.

8 CAPPI, Carlos Crispim Baiocchi. As Regras de Tóquio e as Medidas Alternativas. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3118>. Acesso em: 09 mar. 2011.

9 LOMBROSO, César. O homem delinqüente. Tradução, atualização, notas e comentários de Maristela Bleggi Tomasini e Oscar Antonio Corbo Garcia. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001, p. 111.

– Jaison Borsatti Moreira dos Santos –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 251

a eficácia da lei. Ademais, é preciso lembrar que “quem alimenta o tráfico são os usuários de drogas, haja vista que, se existe procura, sem dúvida existirá oferta. Consequentemente, o que a nova lei de drogas esqueceu foi que, para ocorrer a diminuição do tráfico de dro-gas é necessário diminuir obrigatoriamente o número de usuários do produto ilícito.”10

Referências

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2009.

BRASIL. Lei n. 6.368, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em: 09 mar. 2011.

BRASIL. Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em: 09 mar. 2011.

CAPPI, Carlos Crispim Baiocchi. As Regras de Tóquio e as Medidas Alternativas. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3118>. Acesso em: 09 mar. 2011.

DALLAZEM, Ariel Bleichuvehl. O Caráter Punitivo e Pedagógico da Nova Lei de Drogas. Caçador: Universidade do Alto Vale do Rio do Peixe, 2010.

GOMES, Luiz Flávio. et al.Tóxico: Nossa legislação virou uma “colcha de retalhos”. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, São Paulo, n. 15, p. 13-15, ago./set. 2002.

LOMBROSO, César. O homem delinqüente. Tradução, atualização, notas e comentários de Maristela Bleggi Tomasini e Oscar Antonio Corbo Garcia. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001.

SILVA, José Geraldo da; LUCHIARI, Edemur Ercílio. Comentários à Nova Lei sobre Drogas. Lei n. 11.343/06. Campinas, SP: Millennium Editora Ltda, 2006.

10 DALLAZEM, Ariel Bleichuvehl. O Caráter Punitivo e Pedagógico da Nova Lei de Drogas. Caçador: Universidade do Alto Vale do Rio do Peixe, 2010.

direiTo adminisTraTivo

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 255

A TERCEIRIzAçãO NA ADMINISTRAçãO PúbLICA E A IMPORTâNCIA DA RESPONSAbILIDADE à

FISCALIzAçãO

OUTSOURCING IN PUBLIC ADMINISTRATION AND THE IMPORTANCE OF LIABILITY TO THE SUPERVISION

Raquel de Limas Niedezieslki Santana1

RESUMO: O presente artigo aborda questões históricas para compreender o fe-nômeno da terceirização, o qual, relacionado com a questão da flexibilização dos direitos trabalhistas e com a globalização, foi adotado pelo Brasil. A prática cresce demasiadamente e foi inserida na Administração pública com o objetivo de se obter redução dos custos e aumento da qualidade e da produtividade. O tema não possui uma regulamentação específica, mas apresenta várias normas fragmentadas, bem como súmulas, que caracterizaram o fenômeno.PALAVRAS-CHAVE: Terceirização. Flexibilização. Fiscalização.ABSTRACT: This article addresses historical questions to understand the phenomenon of outsourcing, which related to the issue of flexibility of labor rights and globalization, was adopted by Brazil. The practice grows too much and was included in the public administration in order to achieve reduced costs and increased quality and productivity. The theme does not have a specific regulation, but has several fragmented rules and precedents, which characterized the phenomenon.KEYWORDS: Outsourcing. Flexibility. Supervision.

1. Introdução

O objeto de estudo deste trabalho é a terceirização, esta que “[...] não está definida em lei, nem há norma jurídica tratando, até o momento, do tema” (MARTINS, 2007, p. 23). O tema carece de sedimentação teórica e deve-se ter cautela com seu histórico,

1 Raquel de Limas Niedezielski Santana é graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acadêmica da sétima fase do Curso de Direito da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) e acadêmica de Direito da Administração Pública, da Fundação Trompowski e Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).

– A Terceirização na Administração Pública e a Importância da Responsabilidade à Fiscalização –

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assim enfatiza Martins (2007), visto que sequer há regulamentação no âmbito legislativo para embasá-lo com precisão.

A história da terceirização se confunde com desemprego e trabalho temporário em períodos de guerra, época em que nasceram as empresas que cediam mão de obra, na Europa. Mas, tanto nos Estados Unidos, como na Europa, a prática chegou ao seu apogeu nos anos 70 do século XX.

De acordo com Meireles (2007), o vocábulo terceirização foi adotado, no Brasil, pelas Empresas e, posteriormente, pelos tribunais trabalhistas, que se utilizaram do novo conceito para descrever a contratação de terceiros em atividades que não constituía o objetivo principal da empresa.

O exercício da terceirização nas instituições pública é uma constante. A economia, qualidade e praticidade foram as palavras-chaves para motivar essa utilização. A finalida-de da terceirização na Administração, como afirma o administrador Chiavenato (2004), é fazer com que os serviços sejam realizados da melhor forma possível, com o menor custo e com a maior eficiência. Parece essa finalidade carecer de possibilidade, em virtude de sua aparente utopia. É de suma importância relevar, pois, que, quando se trata do viés pragmático do fenômeno, as leituras acerca dele exigem cautela.

Os objetivos específicos desse estudo é analisar a terceirização na administração pública; as responsabilidades pertinentes e a gestão e fiscalização dos contratos. Em de-corrência do instituto do contrato de gestão, consoante os ensinamentos de Carvalho Fi-lho (2005 apud CAVALCANTE, 2008), constitui-se necessária uma fiscalização das enti-dades e do cumprimento de seus objetivos - visto que a sua ausência pode gerar situações de descontrole das atividades administrativas, bem como o deslocamento dos objetivos estipulados e a “[...] facilitação do cometimento de crimes contra o sistema financeiro do país” (CARVALHO FILHO, 2005, p. 270 apud CAVALCANTE, 2008) - para que haja o bom sucesso das organizações sociais.

O contrato de gestão decorre de limitações no âmbito da execução, porque não há legislação específica e abrangente, decorrente da falta de conhecimento sobre o assunto, o que vem a dificultar e retardar a implementação das medidas necessárias para utilização do contrato de gestão de maneira plena.

2. Breve história da terceirização na Administração Pública no Brasil

Na América Latina, o desenvolvimento capitalista se deu graças a investimentos na época imperial. Por haver oligarquias agrárias e burguesias industriais locais, houve receio de se realizarem investimentos na produção industrial. No mesmo período, conquistam-se os direitos sociais na Revolução de 30.

Durante a República Velha, o capital imperialista era fundamentalmente, um capital de empréstimo; o que havia de investimento estrangeiro estava concentrado no comércio de exportação de café e

– Raquel de Limas Niedezieslki Santana –

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na exploração de serviços urbanos – transporte, eletricidade, urbanização. No comércio externo, a economia brasileira fornecia produtos agrícolas e importava manufaturados. As classes populares não usufruíram de direitos sociais. Os governos populistas, controlados por uma burocracia de Estado que podia agir como força social autônoma dada a situação da crise de hegemonia interior do bloco no poder, apoiaram-se nos interesses da burguesia industrial nacional e, nos momentos de crise, no apelo ao Direito aos trabalhadores, para fazer avançar a industrialização. Eram induzidos a estabelecer, ao mesmo tempo, a legislação de fabrica e os direitos sociais. Tais governos mantinham relações de representação política difusa com os trabalhadores urbanos e tinham de responder à pressão desses setores. A ampliação dos direitos sociais foi feita vinculando-os, de modo segmentado, às diferentes categorias profissionais definidas no sistema do sindicalismo de Estado. Essa integração limitada, gradativa e segmentada das classes populares urbanas defrontou-se com a oposição ou, no melhor dos casos, com a desconfiança da burguesia nacional e do imperialismo norte-americano. (BOITO JR., 1999, p. 112 -113).

O Brasil ficou no liame entre a industrialização capitalista dependente e o movi-mento popular limitado. A política nacional influenciou significativamente na demora da adoção total da ideologia neoliberal. Muitos foram os motivos para a delonga, como o regime militar, o insucesso do Plano Cruzado (congelamento de preços), a pressão dos países centrais para abertura do mercado brasileiro e o fato de parte da burguesia indus-trial ser defensora dos protecionismos, principalmente das indústrias de informática, que não abriam mão das proteções tarifárias.

Os Estados Unidos não estavam contentes com os acontecimentos no Brasil, pois a aplicação das ideias neoliberais estava difícil de ser adotada na sua totalidade. Portanto, com a intenção de reanimar o avanço do capital mundial, reuniram-se em novembro de 1989, em Washington, funcionários do governo norte-americano e organismos financei-ros como FMI, BID, BIRD, para registrar o prosseguimento à modernidade, a fim de ser assimilada pelas classes dominantes latino-americanas, opondo-se às ideias retrógradas de estadismo e protecionismo. Essa reunião ficou conhecida como o Consenso de Wa-shington, a qual tinha como objetivo discutir as reformas necessárias para a América Latina (BIAVASCHI, 1988, p. 236).

Um dos objetivos do Consenso era fazer com que os países periféricos aplicassem programas de reformas administrativas, previdenciárias e fiscais, a fim de reduzir gastos públicos, estabilizando a política monetária. Outro escopo consistia em proporcionar às pequenas empresas de países periféricos o aumento da competitividade, que, consequen-temente, repercutiria na diminuição de salários, flexibilização do mercado de trabalho, diminuição da carga social e, por último, na eliminação da intervenção do Estado.

Nessa trajetória, em novembro de 1989, em Washington, EEUU, reuniram-se funcionários do governo norte-americano e dos organismos financeiros internacionais ali sediados: FMI, Banco Mundial e BID, especializados em assuntos latino-americanos. Estiveram presentes, também, economistas de vários países latino-americanos que relataram as experiências ali realizadas. Com o objetivo de avaliar as reformas econômicas que vinham sendo empreendidas (não foram avaliados Brasil e Peru, porquanto ainda não haviam aderido ao receituário), produziram um conjunto de conclusões, afirmando a excelência e a importância da adoção da proposta neoliberal que o governo norte-americano vinha “recomendado” como condição indispensável para conceder cooperação financeira externa, bilateral

– A Terceirização na Administração Pública e a Importância da Responsabilidade à Fiscalização –

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ou multilateral. Esse receituário já havia sido apresentado pelo patrocinador do encontro – The Institute for Internacional Economics -, na publicação Towards Economic Growth in America Latina, que contou com a colaboração de Mário Henrique Simonsen. O conjunto dessas conclusões, mais tarde chamado Consenso de Washington, não importou novas regras, mas registrou a conveniência de se prosseguir no caminho adotado, rumo à modernidade, passando a ser aplicado em outros países, independentemente de suas realidades concretas. Assimilado pelas classes dominantes latino-americanas, o ideário passou a informar as ações de seus intelectuais orgânicos como sendo algo produzido em nome de uma suposta modernidade, em oposição às ideias “retrógradas” de estatismo e de protecionismo. [...] Marcado por uma visão economicista, o Consenso não reconhece na democracia pré-requisito para a modernização, visualizando-a como complemento da economia de mercado. As questões sociais – saúde, educação, distribuição de renda, habitação – não fazem parte de suas preocupações pela crença de que as mudanças sociais e políticas serão produzidas naturalmente a partir da liberação econômica e como decorrência do livro jogo das forças do mercado. Suas propostas, produzidas para dez áreas definidas como prioritárias (1. Disciplina fiscal; 2. Priorização dos gastos públicos; 3. Reforma tributária; 4. Liberalização financeira; 5. Regime cambial; 6. Liberalização comercial; 7. Investimento direto estrangeiro; 8. Privatizações; 9. Desregulação e 10. Propriedade intelectual), são regidas pelo princípio da soberania absoluta do mercado auto-regulável das relações econômicas, tanto internas quanto externas, e informam as reformas propostas (BIAVASCHI, 1998, p. 236-237).

Observa-se que o Consenso propõe metas que corroem a Nação e põem em risco a soberania nacional. “No Brasil, a política de desindustrialização começou, em 1990, com a abertura comercial promovida pelo governo Collor, através da extinção de barreiras não tarifárias e da redução das alíquotas de importação” (BOITO JR., 1999, p. 45).

Foi nessa direção que o governo Fernando Collor se desenvolveu. Com efeito, é com ele que tem início o processo de abertura da economia ao mercado internacional, via redução das barreiras alfandegárias. O programa de privatização e de desmonte do Estado faz parte da agenda Collor, como pré-condição para o combate a inflação. Além disso, é no seu governo que é lançado o programa de reestruturação produtiva, segundo o qual as empresas deveriam procurar um processo de gestão pela qualidade e produtividade, único caminho capaz de torná-las mais competitivas para entrarem no chamado mundo desenvolvido, com colaboradores mais felizes e engajados, numa relação em que todos – patrões, empregados e a sociedade – sejam vencedores (OLIVEIRA, 1996, p. 225).

Inicia-se, então, uma Reforma do Estado. Com a adoção das ideologias e políticas neoliberais, o presidente Collor de Melo, além de proporcionar a abertura do mercado, desregulamentou a economia e proporcionou a planificação desta. O FMI e o governo brasileiro iniciaram suas negociações, mas Collor extrapolou a confiança dos brasilei-ros quando confiscou, provisoriamente, contas de poupança, contas-correntes e outras aplicações financeiras, logo depois, foram anunciadas graves denúncias de corrupção em seu governo, fato que o fez sair da presidência em decorrência de um processo de impe-achment, assumindo, na sequência, Itamar Franco, vice-presidente, que interrompeu as tratativas com o FMI.

Dando seguimento às eleições para Presidente da República, vence Fernando Hen-rique Cardoso, que, a favor da modernização, dá continuidade às ideieias de Collor, pois eram admiradores do neoliberalismo.

– Raquel de Limas Niedezieslki Santana –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 259

O governo de Fernando Henrique Cardoso mantém a mesma agenda: acabar com a inflação, privatizar, reformar a Constituição para flexibilizar as relações entre o Estado e a sociedade, assim como as relações entre capital e trabalho. Como declarou Weffort na imprensa, o Brasil está saindo de uma fase estatal para ingressar em uma outra em que se exige uma menor presença do Estado na sociedade. Sendo assim, não seria exagero afirmar que os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso adotam, na sua essência, as propostas preconizadas pelo Consenso de Washington (OLIVEIRA, 1996, p. 225).

A adoção do neoliberalismo por Collor e Fernando Henrique Cardoso não trou-xe o desenvolvimento capitalista e os avanços sociais desejados, apenas tirou do Estado brasileiro a política social. Atualmente, sente-se o reflexo das ações e omissões políticas daquela época, visto que faltaram investimentos nas áreas sociais.

Foram as políticas estabelecidas pelo Consenso de Washington que motivaram programas de Reformas Administrativas e Previdenciárias, as quais contribuíram para as privatizações e o desemprego, flexibilizando os direitos trabalhistas. Isso mostra que não só a modernização e a tecnologia são os culpados da elevada redução de empregos; um conjunto de fatores, que inclui novas formas de organização do trabalho e medidas econômicas estipuladas, corrobora para o abatimento empregatício.

Fernando Henrique Cardoso, juntamente com outros Ministros, elabora o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, em 1995, preponderando uma visão neolibe-ral à nova Administração Pública. Muito antes, o Decreto-Lei nº 200/67, que foi o marco na Administração Pública, no que se refere à possibilidade de contratação de serviços de terceiros na Administração pública, já tinha dado início a essa flexibilização, mesmo que em caráter transitório.

Na Administração Pública, a contratação de serviços terceirizados deve ser baseada nos princípios do Direito Administrativo e da Lei nº 8.666/1993, pela qual se perfaz a li-citação ou a dispensa desta, realiza-se o contrato pertinente e a fiscalização deste. É de ex-trema importância e relevância essa regulamentação, pois se trata de recurso pecuniário público e, por isso, devem ser observados os princípios que regem o Direito Administra-tivo e a Administração Pública, a fim de que, no processo de contratação, não haja falhas. A responsabilidade do administrador abarca desde a escolha da empresa prestadora de serviço até a fiscalização fiscal e dos serviços, para verificar se estão sendo cumpridas as atividades de acordo com o contrato, de maneira produtiva e com qualidade, uma vez que são contratados serviços especializados.

Nessa seara, aliada às perspectivas do Consenso, advém a Lei de Responsabilidade Fiscal nº 101/00, a qual tinha por principal objetivo a transparência e a responsabilidade na gestão fiscal e, consequentemente, na gestão pública do país. Esta Lei limita a despesa com pessoal, com o intuito de equilibrar as contas públicas.

A intenção da lei, em suma, é responsabilizar o administrador público que não acompanhar de forma sistemática o desempenho financeiro da sua instituição.

– A Terceirização na Administração Pública e a Importância da Responsabilidade à Fiscalização –

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3. Das responsabilidades na Administração Pública

A responsabilidade na Administração Pública é matéria polêmica que envolve: to-mada de decisão, gestão de contrato, fiscalização, entendimento doutrinário e jurispru-dencial, os juízos de súmulas e os agentes envolvidos (SANTOS, 2010).

A Administração pública somente pode adotar formas de terceirização previstas em lei, sob pena de ilegalidade do ato e responsabilização do agente que o praticou e, em regra, devem ser precedidas de licitação (MARTINS, 2005, p. 152-156).

A concretização da decisão se dá mediante contrato dependente de um processo seletivo realizado previamente, procedente de licitação ou da dispensa desta, formalizada sob o comando constitucional e regulamentada, pela Lei Federal no. 8666, de 21 de junho de 1993. Além desta legislação, há outras normas que a complementam na esfera federal, estadual e municipal, como os decretos, instruções normativas, leis estaduais etc.

Com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) nº. 101/00, o gestor pú-blico ou ordenador de despesa tem de atentar para os atos que executa, pois estes devem estar estritamente de acordo com a lei. Assim também dever ficar, para as leis que regulam o Plano Plurianual, as Diretrizes Orçamentárias e as Leis Orçamentárias anuais.

A LRF vem orientar os agentes públicos e responsabilizá-los quando não acompa-nharem de forma sistemática o desempenho financeiro da sua instituição, principalmente no que tange aos procedimentos que antecedem a licitação até a finalização do contrato. Resume-se, pois, à gestão de responsabilidade fiscal, que violado algum procedimento previsto na LRF, terá como consequências a apuração da responsabilidade nas três esferas (CARVALHO, 2009).

Alguns comandos da Lei Complementar 101/00, que influenciam diretamente a fase interna da licitação, ainda não ganharam a corporificação necessária que sua importância merece. Decisões recentes dos Tribunais de Contas do país ainda recomendam aos gestores públicos o cumprimento das exigências ora descritas no estudo, quando na verdade deveriam impor tais medidas. Fica evidente que toda a complexidade imposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal na fase interna da licitação não é mera burocratização do procedimento, mas sim atos necessários para a busca da transparência, responsabilidade e eficiência na gestão pública. Apesar da Lei Nacional de Licitação já ter previsto restrições efetivas para o cumprimento dos princípios norteadores do procedimento licitatório, a Lei de Responsabilidade Fiscal procurou corporificar os princípios ora citados, exaltando ainda mais a importância dos princípios da moralidade, publicidade e eficiência da gestão pública, através do planejamento e transparência conforme expressamente disposto no artigo 1º da Lei Complementar n.º 01/00 (CARVALHO, 2009, s/p).

A Súmula 331contradiz o § 1º do artigo 71 da Lei nº. 8666/93. O inciso IV da Súmula 331 do TST foi alterado pela nova redação que recebeu com a Resolução n. 96, de 11 de setembro de 2000, procedente do Acórdão proferido no Incidente de Unifor-mização de Jurisprudência (IUJ) nº. 297751/2000, que se transcreve, ressaltando-se os principais argumentos:

– Raquel de Limas Niedezieslki Santana –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 261

Embora o artigo 71 da Lei n. 8666/93 contemple a ausência de responsabilidade da Administração Pública pelo pagamento dos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato, é de se consignar que a aplicação do referido dispositivo somente se verifica na hipótese em que o contratado agiu dentro de regras e procedimentos normais de desenvolvimento de suas atividades [...] Com efeito, evidenciado, posteriormente, o descumprimento de obrigações, por parte do contratado, entre elas as relativas aos encargos trabalhistas, deve ser imposta à contratante a responsabilidade subsidiária. [...] não se pode deixar de lhe imputar, em decorrência desse seu comportamento omisso ou irregular, ao não fiscalizar o cumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo contratado, em típica culpa in vigilando, a responsabilidade subsidiária e, consequentemente, seu dever de responder, igualmente, pelas consequências do inadimplemento do contrato. [...] Registre-se, por outro lado, que o art. 37, §6º, da Constituição Federal consagra a responsabilidade objetiva da Administração, sob a modalidade de risco administrativo, estabelecendo, portanto, sua obrigação de indenizar sempre que cause danos a terceiro. Pouco importa que esse dano se origine diretamente da Administração, ou, indiretamente, de terceiro que com ela contratou e executou a obra ou serviço, por força ou decorrência de ato administrativo.

Pela nova redação, quando acontecer o inadimplemento do prestador de serviços terceirizados, haverá a responsabilidade do tomador de serviços, no caso, a Administra-ção Pública. A ausência de fiscalização do contratante do cumprimento das obrigações contratuais pela contratada origina a culpa in vigilando. Ainda presente, há a responsabi-lidade objetiva do Estado, correspondente ao art. 37, §6º da Constituição Federal. Estas são chamadas de responsabilidades subsidiárias da Administração Pública.

Culpa in vigilando é aquela decorrente de uma má fiscalização do cumprimento das obrigações do contrato, que tem como fundamento o Código Civil, nos artigos 186, 927, III e 942. A conduta omissiva pela Administração Pública tem caráter hipotético, não ha-vendo uma obrigação, tornando a responsabilidade subjetiva. A única obrigatoriedade é no que tange à fiscalização decorrente das contribuições ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e contribuições previdenciárias, previstas no arts. 29, IV, e 71, §2º, na Lei Federal de Licitações (SANTOS, 2010, p. 77).

Sendo o objetivo da contratação de serviços pela Administração Pública a busca pela redução dos custos, esta vai de encontro à imputação da responsabilidade àquela. A fim de reconsideração, não se admite como causa, para o afastamento da culpa, a ingerên-cia da Administração no contrato.

Para a ocorrência de culpa in eligendo, deve haver uma fraude no procedimento licitatório, comprovadamente e de forma pontual. Não há possibilidade de ocorrer esta culpa com contratação lícita. A Súmula n. 331 do TST, especificamente no inciso III, pre-vê um dos requisitos da terceirização lícita, que é a contratação de atividade-meio. Por-tanto, devem, as instituições públicas, ter clareza na sua missão institucional, para não defrontar-se com alguns riscos.

III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20-6-83), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistentes a pessoalidade e a subordinação direta.

– A Terceirização na Administração Pública e a Importância da Responsabilidade à Fiscalização –

262 Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011

No julgado que dera origem à Súmula 331, importa considerar alguns outros as-pectos a respeito da imputação de responsabilidade.

A responsabilidade do tomador de serviços nos contratos de terceirização de serviços se originaria, segundo um primeiro argumento, de um non facere, ou seja, de um comportamento omissivo, por não fiscalizar os contratos de trabalho do prestador de serviços e seus empregados (culpa in vigilando). E, nesses casos, a responsabilidade, no caso de Administração Pública, é categorizada como subjetiva, portanto, exige a demonstração de culpa. Entretanto, em um segundo momento, o TST utiliza o argumento de que seria a responsabilidade objetiva, pelo risco administrativo. Ocorre que a responsabilidade subjetiva ou à objetiva considerando-se um mesmo fato. Um fato não pode ser aferível sob uma espécie de responsabilidade e, ao mesmo tempo, por outra que é oposta, a menos que se refira a diversos agentes causadores, situação não contemplada pelo julgado. Pois numa espécie, a subjetiva, é necessária a comprovação da culpa, e noutra, a objetiva, não se requer a demonstração desse elemento volitivo. O duplo fundamento utilizado pelo TST é contraditório e, portanto, excludente da responsabilidade, conquanto um exclui o outro (SANTOS, 2010, p 88-89).

O fenômeno da terceirização, quando lícito, não acarreta a responsabilização soli-dária nem a formação de vínculo de emprego direto com a contratante. Por conseguinte, pode ocorrer a responsabilização subsidiária em decorrência da violação de uma obriga-ção referente a créditos trabalhistas que a contratada deixou de satisfazer. Essa responsa-bilidade serve de garantia por eventual adimplemento.

4. Gestão de fiscalização de contrato

A definição de contrato administrativo, segundo Meirelles (1999, p. 172), é a se-guinte: “[...] um ajuste que a Administração Pública, agindo nessa qualidade, firma com o particular ou outra entidade administrativa para a consecução de objetivos de inte-resse público, nas condições estabelecidas pela própria Administração”. O contrato ain-da mantém uma cultura tradicional, de relevância jurídica, com o intuito de preservar a economia da relação. “De maneira geral, existe uma cultura na administração Pública de se preocupar muito com o processo licitatório e deixar para segundo plano a gestão dos contratos” (VIEIRA et al., 2010, p. 187).

A gestão desses contratos se limita a garantir a entrega ou a realização dos serviços, dentro de um determinado prazo e ainda, na entrega de documentação legal, de forma sistematizada. Logo, a gestão se resume apenas à prática de um controle operacional.

O desconhecimento por partes das empresas tomadoras de serviço sobre a responsabilidade solidária ou subsidiária que lhes cabe, no caso de irregularidades, somado ao grande contingente de empresas terceirizadas, tem gerado um crescimento no número de processos trabalhistas ocasionados pelo descumprimento das obrigações legais e de saúde e segurança do trabalho (SARATT; SILVEIRA; MORAES, 2008, p 55).

Além desse desconhecimento, sem dúvida, é na relação diária com o terceiro que o maior índice de riscos é gerado, agravando-se pelo fato de que a maioria dos gestores das empresas tomadoras de serviços desconhece que certas atitudes no dia a dia da rela-

– Raquel de Limas Niedezieslki Santana –

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ção com o terceiro podem colocar a empresa em risco (SARATT; SILVEIRA; MORAES, 2008, p 58).

A falta de legislação especifica sobre o assunto deixa em aberto a escolha de terminologia a ser aplicada pela Administração a quem vai acompanhar e fiscalizar os contratos, uma vez que, na forma do art. 67 da Lei n. 8.666/93, estabelece que a Administração deverá designar um representante para acompanhar e fiscalizar a execução do contrato; e na forma do art. 6º do Decreto n. 2.271/97, o mesmo estabelece que a Administração indicará um gestor do contrato, que será o responsável pelo seu acompanhamento e fiscalização. Assim, encontram-se na Administração Pública várias terminologias aplicadas, como: fiscal de contrato; gestor de contrato; fiscalizador de contrato; executor de contrato; órgão fiscalizador ou executor de contrato (quando a Administração não designa formalmente a pessoa) e até recentemente temos ouvido abreviações interessantes como: RA (representante da Administração; AF (agente fiscalizador); e o famoso agente 67 (VIEIRA et al., 2010, p. 188).

O artigo 58, inciso III, do citado diploma, atribui à Administração o poder-dever de acompanhar e fiscalizar a execução do contrato por ela firmado, pois, uma vez pago com recursos públicos, devem ser estes gastos subjugados à racionalização. A lei não traz, contudo, a referência do tipo de perfil que esse gestor ou fiscal deve ter.

As funções de gestor e de fiscal não devem ser ocupadas pela mesma pessoa. No entendimento de Leiria (2008, p. 796), o gestor é aquele que acompanha e toma as decisões sobre a gestão do negócio, enquanto o fiscal tem atuação mais local, cuja função é gerar in-formações para o gestor. Aquele realiza a fiscalização, que deve preferencialmente ter cará-ter de especialização, admitindo-se, inclusive, diversos fiscais com competências distintas para um mesmo contrato, em respeito aos princípios da eficiência e da especialização.

Os gestores devem ter conhecimento suficiente para, além de prevenir, buscar as melhores soluções com vistas a evitar riscos, como também os fiscais, quando designados, ficam responsáveis, civil, penal e administrativamente, pelas suas atividades, o que susten-ta a necessidade de separar as funções, para que se possa comprovar a responsabilidade de cada um; caso contrário, responderão solidariamente.

De acordo com Pereira Júnior (2008, p. 1), os erros mais constatados no desempe-nho dos gestores públicos dos contratos são a ausência de fiscal designado ou a precarie-dade de sua atuação, ocasionando, entre outros, os seguintes problemas:

[...] alta de controle sobre a execução, ausência de sanção ao contratado que não cumpre cláusula, pagamento realizado sem a necessária medição dos serviços, recebimento de bens e serviços por agentes que não possuem conhecimento técnico sobre o objeto em desacordo com os termos e condições contratados (PEREIRA JÚNIOR, 2008, p. 1).

A capacitação dos servidores envolvidos na área de gestão e fiscalização dos con-tratos cada dia se faz mais necessária, e está interligada à aplicabilidade dos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, em especial, a eficiência (VIEIRA et al., 2010, p. 199).

Considerando o que consta do art. 58 da Lei nº. 8666, 21.06.1993, in verbis: “Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Admi-

– A Terceirização na Administração Pública e a Importância da Responsabilidade à Fiscalização –

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nistração, em relação a eles, a prerrogativa de: [...] III - fiscalizar-lhes a execução”. Consi-derando ainda o art. 67 da mesma lei:

Art. 67: A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações pertinentes a essa atribuição.§ 1º O representante da Administração anotará em registro próprio todas as ocorrências relacionadas com a execução do contrato, determinando o que for necessário à regularização das faltas ou defeitos observados.§ 2º As decisões e providências que ultrapassarem a competência do representante deverão ser solicitadas a seus superiores em tempo hábil para a adoção das medidas convenientes.

Conclui-se, de acordo com as devidas considerações normativas acima elencadas, em consonância com o aporte teórico explorado por Vieira et al. (2010, p. 204-206), que o processo de gestão deve estar em constante aperfeiçoamento, pois a cada dia surgem no-vas situações internas e externas que alteram o cenário, exigindo um posicionamento da instituição, desde em relação às situações de risco, quanto às normas, ampliando as pos-sibilidades de contratações de serviços terceirizados. Aliado à tendência de crescimento global da terceirização na Administração Pública em níveis quantitativos e qualificativos, o processo expõe/demonstra a necessidade de atitudes concretas para reduzir os possíveis riscos e situações que, porventura, aparecerão no decurso. E, para um excelente resulta-do, os gestores e também os fiscais, devem ter o conhecimento necessário para realizar as tarefas pertinentes às suas funções.

5. Considerações finais

A técnica de terceirização se disseminou rapidamente no mundo e no Brasil, sem uma base normativa necessária para respaldar certos assuntos importantes como, por exemplo, o da responsabilidade. A Súmula 331 - a título de exemplificação - é a que ofe-rece requisitos fundamentais para a terceirização no Brasil, chegando a caracterizar a prá-tica em alguns momentos.

As instituições públicas não ficaram para trás, já veteranas no assunto, desde 1967, chegam ao apogeu das contratações no final do século XX e início do século XXI. Na Administração Pública, a contratação de serviços terceirizados deve ser baseada nos prin-cípios do Direito Administrativo e da Lei nº 8.666/1993, pela qual se perfaz a licitação ou a dispensa desta, realiza-se o contrato pertinente e a fiscalização deste. É de extrema importância e relevância essa regulamentação, pois se trata de recurso pecuniário público e, por isso, devem ser observados os princípios que regem o Direito Administrativo e a Administração Pública, a fim de que, no processo de contratação, não haja falhas. A res-ponsabilidade do administrador abarca desde a escolha da empresa prestadora de serviço até a fiscalização fiscal e dos serviços, para verificar se estão sendo cumpridas as ativida-des de acordo com o contrato, de maneira produtiva e com qualidade, uma vez que são contratados serviços especializados.

– Raquel de Limas Niedezieslki Santana –

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Para que a responsabilidade seja subsidiária, deve haver os seguintes pressupostos: licitude da terceirização, inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte do presta-dor de serviços e participação da tomadora no processo trabalhista.

Conclui-se que a responsabilidade subsidiária não se sustenta por diversos enten-dimentos e pelos próprios entendimentos que lhe deram origem. A ausência de previsão legal que exige a obrigação de fiscalização e do nexo causal, entre o que se alega a Admi-nistração omitir e o inadimplemento do prestador de serviços terceirizados, corrobora para a não evidência de responsabilidade objetiva e de culpas in vigilando e in eligendo. Logo, independentemente da aplicação de quaisquer responsabilizações objetiva ou sub-jetiva, deve se levar em conta a cautela no momento da decisão por optar pela contratação de terceirização de serviços, pois o inadimplemento da contratada pode levar à onerosi-dade dos cofres públicos.

Por fim, faz-se necessário o acompanhamento, por um representante da Adminis-tração Pública, capacitado e conhecedor da Lei de Licitações e Contratos, ora gerencian-do, ora fiscalizando, em todas as fases ou etapas, para a obtenção de excelentes resultados com a contratação de terceiros e para, ademais, atingir o maior escopo, o qual consiste na satisfatória performance da Administração.

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– A Terceirização na Administração Pública e a Importância da Responsabilidade à Fiscalização –

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AGêNCIAS REGULADORAS: A ILEGITIMIDADE DA REPRESENTAçãO

REGULATORY AGENCIES: THE ILLEGITIMACY OF REPRESENTATION

Alexandre Pereira Hubert1

RESUMO: O tema do direito regulatório – no qual se inserem as agências regulado-ras – tem surgido como imposição, no campo jurídico, das transformações políticas e principalmente institucionais oriundas dos programas de desestatização principia-dos na década de noventa em nosso país. A criação das agências reguladoras se in-sere neste contexto com o objetivo de assegurar a continuação no tempo do referido projeto. A independência política de seus dirigentes – que nada mais é do que a per-manência dos conselheiros nomeados pelo antigo Chefe do Poder Executivo – será questionada ante o deficit democrático que nos parece constituir.PALAVRAS-CHAVE: Agências Reguladoras; Direito Econômico ; Direito Regula-dor; Programa Nacional de Desestatização.ABSTRACT: Regulatory Law – a topic in which the regulatory agencies are – has emerged as an imposition, in the legal field, of the political and institutional changes made by the programs of privatization started in the nineties in Brazil. Creation of regulatory agencies is incorporated in this context in order to ensure the continuation of that project. The political independence of its leaders – which is nothing more than the permanence of the directors nominated by the former Chief Executive – will be questioned as it seems to show a distinct lack of democracy.KEYWORDS: Regulatory Agencies; Regulatory Law; Programa Nacional de Desestatização.

1 Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, bacharel pela mesma instituição. Técnico Judiciário Auxiliar em exercício na Diretoria de Recursos e Incidentes, Divisão de Editais. Endereço eletrônico: [email protected].

– Agências Reguladoras: A Ilegitimidade da Representação –

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1. Introdução

Buscaremos trabalhar, principalmente, a figura das agências reguladoras dentro da polêmica de sua independência em relação ao Chefe do Poder Executivo.

Para tanto, primeiramente traremos nota introdutória que delimita a figura das agências norte-americanas – inspiração última do modelo adotado no Brasil –, reconhe-cendo a existência de institutos de controle, mesmo em nosso ordenamento, já anteriores ao “fenômeno da agencificação”. No momento histórico da desestatização, figurará o sur-gimento das agências reguladoras em sua nova concepção, como entes de controle dos serviços públicos cuja prestação foi passada à iniciativa privada.

Dentro da criação das agências reguladoras, traremos como primeiro ponto a pos-sibilidade ou não de extensão de mandatos dos membros do conselho diretor além do término do mandato eletivo daquele chefe do Executivo que o nomeou. Esta questão, como veremos, trará importantíssimo debate acerca da independência ou não das agências regu-ladoras, se deveremos inseri-las na dinâmica eleitoral ou se, como parece ser de sua fun-damentação ideológica, a independência política é necessária à sua existência. Para tanto, igualmente, optaremos por, sem maiores intenções, explicitar o local da fala político de cada um daqueles autores que traremos como discordantes, sendo interessante que se per-ceba poder ser todo o debate jurídico traduzido, sem diminuí-lo, em um debate político.

Ultrapassada a situação da independência dos membros do Conselho Diretor, questionaremos se, como se afirma, reside em seus mecanismos de participação popular legitimidade suficiente a sustentar sua independência.

Nossas conclusões são as de um estudante em ritmo de apreensão inicial do as-sunto trabalhado, mas estão ali presentes muito mais do que comentários banais, senão a breve síntese de um posicionamento democrático, de defesa do amplo debate político e da participação popular real, não obscurecida por meio de procedimentos excludentes. Igualmente, acreditamos haver interesse na discussão das agências reguladoras em suas implicações nas diretrizes da política nacional.

2. As Agências Reguladoras

Trazendo consigo um ideário de que cabe a fragmentação dos mercados, aliada à posição de que a condução de cada uma destas fragmentações deverá ser conduzida não pelos representantes do povo, mas pelo imperativo de tecnicidade que está em sua base, as agências reguladoras não datam de um tempo próximo, porém surgiram, como veremos, remoçadas por uma dinâmica distinta em nosso ordenamento jurídico, dentro de um quadro de desestatização da prestação de serviços públicos.

O primeiro modelo de agências reguladoras diz respeito àquele que se fundamenta e solidifica baseado na necessidade de regulação do mercado mais sensível aos interesses públicos imediatos. Desse modo que

– Alexandre Pereira Hubert –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 269

na Inglaterra, a partir de 1834, floresceram entes autônomos, criados pelo Parlamento para concretizar medidas previstas em lei e para decidir controvérsias resultantes desses textos; a dada lei que disciplinasse um assunto de relevo, criava-se um ente para aplicar a lei. Os Estados Unidos sofreram influência inglesa e desde 1887, com a criação da “Interstate Commerce Comission”, tem início a proliferação de agencies para regulação de atividades, imposição de deveres na matéria e aplicação de sanções; adquiriu muita fama a FDA (“Food and Drugs Administration”), responsável pela regulação, fiscalização e imposição de penalidades no âmbito da produção e comercialização de alimentos, cosméticos e medicamentos2.

Historicamente, podemos citar como exemplos deste modelo anterior à referida desestatização, no Brasil, ainda que sem a denominação agência (denominação ela mesma que, como veremos, é alienígena e não consta em nosso texto constitucional): “o Comis-sariado de Alimentação Pública (1918), o Instituto de Defesa Permanente do Café (1923), o Instituto do Açúcar e do Álcool (1933), o Instituto Nacional do Mate (1938), o Instituto Nacional do Pinho (1941), o Instituto Nacional do Sal (1940)” 3. Todos configurados como autarquias a quem cabia a regulação do mercado por meio da aplicação de conhecimento técnico e específico, dentro de sua competência.

Tal fragmentação da Administração em entes com, aqui, relativa autonomia, na dé-cada de 30 principalmente, se insere num reflexo do modelo administrativo norte-ameri-cano. Em tal sazão histórica, viu-se este país diante da necessidade de intensa intervenção no mercado, ocasionada pela recém-configurada crise e pela necessidade dela advinda – após o exemplo inconteste – de defender o capitalismo do capitalismo.

Esta defesa se organiza, então, em entidades pretensamente dotadas de grande independência em relação ao Executivo, em um processo de agencificação, tendo como principal fundamento a noção de que traziam consigo grande especificidade técnica e neutralidade em relação aos assuntos políticos4. A serventia deste fundamento não é tão somente sua justificativa moral ou perante a opinião pública, baseia-se, outrossim, em uma necessidade de que se possa efetuar a regulação do mercado escapando à autoridade do Poder Judiciário que, em tal momento, demonstrando inflexibilidade ao princípio – tão caro àquele Estado – da livre iniciativa, opôs-se um sem número de vezes às regula-ções tidas como necessárias pelo New Deal de Roosevelt5. A tal exclusão da apreciação

2 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 86-7.3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 466.4 Traz Maria Sylvia Di Pietro: “Um dos grandes pilares da sistemática regulatória adotada nos Estados Unidos – ou seja, a

função normativa exercida pelas agências – foi a idéia de que as mesmas são altamente especializadas em suas respectivas áreas de atuação e neutras com relação aos assuntos políticos; havia a crença de que elas estavam fora das influências políticas. Por isso mesmo, nas origens, os dirigentes das agências (pelo menos parte delas) gozavam de grande parcela de independência em relação ao Presidente da República, porque eram dotados de estabilidade em suas funções; não podiam perdê-las exclusivamente a critério do chefe do Executivo, mas apenas pelas causas expressamente indicadas em lei” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 3 ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 143.

5 Esse controle – que aos franceses e seus já históricos sentimentos de receio ao Poder Judiciário gera um sentimento de ainda maior espanto –, mereceu, em obra datada exatamente daquele momento histórico, o livro “Le gouvernement des judges et la lutte contre la législation sociale aux Etats-Units” do professor francês Edouard Lambert.

– Agências Reguladoras: A Ilegitimidade da Representação –

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judiciária trabalha, assim, a noção de discricionariedade técnica que advém da funda-mentação destas agências.

Principia-se, aqui, o fenômeno que vai levar à identificação de toda a estrutura Administrativa norte-americana com as agencies, “a tal ponto que se afirma que o direito administrativo norte-americano é o direito das agências”6. Deve-se destacar, no entanto, que tal direito administrativo de independência das agências entra, segundo a professora Maria Sylvia Di Pietro, em derrocada ante as iniciativas políticas tanto do Poder Execu-tivo como do Poder Legislativo, acrescidas de uma nova teoria – causas mistas: em toda causa técnica há uma motivação política – no sentido de limitação de sua discriciona-riedade técnica, por parte do Poder Judiciário. Seu procedimento normativo, assim, passa a seguir regramentos que outrora não obedeciam e, em nossa opinião, o ponto chave das mudanças foi:

O enfoque do interesse a proteger; em vez de proteger interesses setoriais, deveria toda a Administração Pública passar a preocupar-se com o interesse público. A complexidade dos novos interesses e dos problemas sociais não condizia mais com a ideia de especialização estrita das agências; os novos interesses exigiam conhecimentos multidisciplinares7.

As agências eram, assim, inseridas na lógica da grande política, por meio de três principais Ordens Executivas: a de nº 12.291, de dezessete de fevereiro de 1981, “que exi-gia uma demonstração de custos e benefícios a cada vez que a agência quisesse baixar uma norma com impacto econômico” e também que sem a oitiva do Escritório de infor-mação e regulação não se iniciava seu procedimento regulatório, editada por Reagan; a de nº 12.498, de quatro de janeiro de 1985, “que obrigava as agencias a remeter à OMB [Escritório de Orçamento e Execução] uma agenda sobre as regulações que pretendiam aprovar, para demonstrar coerência com a política do presidente”, também de Reagan; e a de nº 12.866, de trinta de setembro de 1993, que revogou as anteriores, continuando no sentido da vinculação das agências ao presidente, amplia a noção de custos e benefícios das normas de impacto econômico, trazendo par dentro de tal os aspectos sociais, sendo que tal Ordem prevê também uma reunião, “no início do ano, entre o Vice-Presidente, os assessores presidenciais e os dirigentes das agências, para fixação de objetivos e priorida-des”, de Clinton8.

Pois se são, ao fim, responsáveis em grande parte pela elaboração de políticas de, em nosso caso, energia, telefonia, por exemplo, como considerar que esses campos pos-sam ser fragmentados e excluídos da escolha que não deve ser reduzida à formalidade que fazemos no exercício democrático?

A recém-citada autora ainda traz, em um comentário instigante, que levanta o pro-blema com o qual deveremos nos deparar mais adiante: “é curioso que as mesmas venham

6 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., 1999, p. 143.7 Idem, p. 146.8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., 1999, p. 147-8.

– Alexandre Pereira Hubert –

Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 271

a servir de modelo exatamente em um momento em que, no país de origem, elas perde-ram grande parte de prestígio e passaram a inspirar grande dose de desconfiança, seja por parte dos órgãos de governo, seja por parte dos cidadãos”9. A independência de tais agências, baluarte e bandeira de sua fundamentação, é uma das fontes da referida descon-fiança, “exatamente pelo fato de, tradicionalmente, atenderam a interesses e pressões de grupos determinados”10.

3. As Agências Reguladoras Brasileiras

No Brasil, o tema das agências reguladoras se, como já vimos, e não com essa no-menclatura, não é novo, surge com nova roupagem dentro do programa de desestatização que se tenta principiar em 1990, e que é levado com mais efetividade a partir de 199711.

Com efeito, trata-se, em princípio, da Lei 8.031, de 12 de abril de 1990, que trazia, em seu 1º artigo:

“Art. 1° É instituído o Programa Nacional de Desestatização, com os seguintes objetivos fundamentais: I - reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público (…) V - permitir que a administração pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais;”.

“Reordenar a posição estratégica do Estado na economia” trata-se, então, de priva-tizar12 empresas controladas pela União, guardado ao Estado a concentração de sua pre-sença, ao menos em tese, na regulação das relações empresariais. Desta maneira que, ao desestatizar/privatizar atividades nas quais “a presença do Estado não era fundamental”, advém a necessidade de entidades que regulamentam o exercício do serviço público con-cedido, as quais se diferem daqueles históricos citados institutos (do café, do mate etc.13) na década de 1930 por estar inseridos em um complexo desenrolar do Estado brasileiro.

9 Idem, p. 144.10 Idem, p. 146.11 Em 15 de março de 1990, Fernando Collor de Mello, iniciando o “Programa Nacional de Desestatização”, edita a Medida

Provisória 155, transformada na Lei 8.031, 12 de abril de 1990. Fernando Henrique Cardoso, por sua vez, revogando a lei anteriormente citada, promulga a Lei 9.491, em 9 de setembro de 1997, conversão da Medida Provisória nº 1.481-52, que “altera procedimentos relativos ao Programa Nacional de Desestatização”.

12 “Privatizar” é a expressão utilizada pela Lei 8.031 (O Programa Nacional de Desestatização), em seu art. 2º “Poderão ser privatizadas, nos termos desta lei, as empresas (…)”. Esta terminologia foi substituída pela Lei 9.491, que revogou a lei definidora do programa anterior, manteve seu nome e seus objetivos fundamentais (constantes do art. 1º), mas utilizou em seu art. 2º: “Poderão ser objeto de desestatização, nos termos desta Lei(...)”.

13 Estes antigos institutos, ainda que ressurgidos com a denominação de agência, diferem daquelas da desestatização, na medida em que exercem, “com base em lei, típico poder de polícia, com a imposição de limitações administrativas, previstas em lei, fiscalização, repressão; é o caso, por exemplo, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), criada pela Lei nº 9782, de 26-1-99, da Agência Nacional de Saúde Pública Suplementar (ANS), criada pela Lei nº 9.961, de 28-1-2000, da Agência Nacional de Águas, criada pela Lei nº 9.984 de 17-7-2000”, cf. DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Op. cit., 2009, p. 467.

– Agências Reguladoras: A Ilegitimidade da Representação –

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A criação de Agências significa, na forma brasileira, em um belo paradoxo, uma menor presença do Estado na economia14.

Muito além de outorgar a particulares a prestação do serviço público, esta reforma do estado também passa às Agências Reguladoras, “poderes que, na concessão, permissão e na autorização, eram antes desempenhados pela própria Administração Pública Direta, na qualidade de poder concedente”15.

Desta maneira que, trabalhando opções políticas e ideológicas, escolheu-se um de-terminado modelo econômico “de nítida inspiração internacional de restauração da força e presença da iniciativa privada na Administração Pública, nas atividades que tradicional-mente eram atribuídas ao Estado”16.

A efetiva criação das agências, previstas inicialmente em nossa Constituição como “órgãos reguladores”17, nas EC 8 e 9 de 15 de agosto de 1995 e 9 novembro do mesmo ano, respectivamente, deu-se em leis esparsas, sem uma regulamentação que as unifique. Desta maneira, foram instituídas com as leis nºs 9.427, de 26 de dezembro de 1996; 9.472, de 16 de julho de 1997; e 6 de agosto de 1997; respectivamente: a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL); a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL); a Agência Na-cional de Petróleo (ANP). Todas vinculadas ao controle e estipulação de regras para o exercício privado dos serviços públicos em fase de “desestatização”.

Embora, como já afirmamos, não haja uma padronização predeterminada, temos, como unificadora em cada uma das leis, como já dito, esparsas que as tem criado, nas palavras da professora Maria Sylvia Di Pietro:

Elas estão sendo criadas como autarquias de regime especial; sendo autarquias, sujeitam-se às normas constitucionais que disciplinam esse tipo de entidade; o regime especial vem definido nas respectivas leis instituidoras, dizendo respeito, em regra, à maior autonomia em relação à Administração direta; à estabilidade de seus dirigentes, garantida pelo exercício de mandato fixo, que eles somente podem perder nas hipóteses expressamente previstas, afastada a possibilidade de exoneração ad nutum; ao caráter final de suas decisões, que não são passíveis de apreciação por outros órgãos ou entidades da Administração Pública18.

Sobre o referido regime especial e a independência em relação ao executivo dele aparentemente advinda, apresentaremos as dissonâncias na doutrina e, também, nós mes-

14 De opinião diversa é Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “a transferência ou devolução da execução dessas tarefas à inciativa provada exige, antes, a republicização dos mecanismos de controle do Estado sobre elas e, até mesmo, em certos casos, um categórico reforço”. cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2003, p. 43.

15 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., 2009, p. 467.16 FIGUEIREDO, Marcelo. As Agências Reguladoras. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 179.17 Novamente somos advertidos pela professora DI PIETRO “Note-se que a Constituição, apegada à tradição do direito

brasileiro, empregou o vocábulo órgão; a legislação ordinária é que copiou o vocábulo de origem norte-americana”. cf. DI PIETRO, op. cit. p. 468 (grifo no original). A previsão destes órgãos está hoje nos artigos 21, inc. XI e art. 177, parágrafo 2º, II. A primeira refere-se à ANATEL, a segunda à ANP.

18 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.Op. Cit., 1999, p. 131 (grifos no original).

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mos questionaremos se há lastro para que se dê esse “mandato fixo e a termo”, e se é acei-tável que o mandato de um dirigente escolhido por um governo Executivo perdure por mais outro(s).

Com a advertência de Carlos Ari Sundfeld, em passagem que busca - e como é necessário que sejamos trazidos à realidade – nos trazer a reflexão acerca do real, intro-duzimos a última parte de nosso trabalho, referente ao tema específico da independência das agências e suas justificativas:

É inevitável reconhecer que a defesa apaixonada de um modelo de agências independentes pode carregar, no mínimo, uma forte carga de ingenuidade. Protótipos abstratos costumam gerar monstrengos no mundo real, cujas complexidades com freqüência se encarregam de distorcer, mesmo sem negá-los explicitamente, todos os belos princípios de que se partiu. Sonhar com autoridades equilibradas, imparciais, tecnicamente preparadas, democráticas, comprometidas com os interesses gerais, respeitadoras do Direito, etc., em nada garante que a realidade vá se ajustar aos sonhos19.

4. O Mandato dos Dirigentes, Dependência ou Independência?

Questão que surge controversa em nossa doutrina é aquela que a um dirigente de uma agência reguladora poderia ser concedido mandato que penetre – a termo e fixo – dentro de um governo diverso daquele que o havia indicado.

Alguns autores, como veremos, trarão que faz parte do próprio ideário da agenci-ficação a posição de que o mandato de seus dirigentes deve-se dar fixamente e além das disputas eleitorais envolvidas no campo eleitoral, tal, como afirmarão em uma síntese, é originário justamente da independência e da neutralidade dentro das quais devem se inserir as agências reguladoras. Outros, mais céticos, como se verá, à instituição das agên-cias como um tudo, não deixarão de tecer críticas a este ponto especifico, tratando, como Celso Antônio Bandeira de Mello, esta continuidade para além do mandato daquele chefe que indica, em uma severa sentença, de: “uma fraude contra o povo”20. A crítica a este ponto específico é ainda mais interessante se conseguimos notar como, dentro dela, reside a crítica global às agências reguladoras.

Assim, representante da primeira corrente é Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o autor, após apresentar como uma evolução do Estado brasileiro o princípio das agências, traz a independência, como já adiantado, vinculada à necessidade de estarmos diante de entes politicamente neutros. É desta maneira que resume em quatro aspectos a indepen-dência que deve ser aferida às agências: “a independência dos gestores, a técnica, a norma-tiva e a gerencial, orçamentária e financeira”21.

19 SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às agências reguladoras. In: Direito Administrativo Econômico. Malheiros, 2000, SUNDFELD, Carlos Ari (Coordenador), 17-36, p. 25.

20 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 161.21 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 165.

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Sendo a independência política dos gestores “a ser garantida pela nomeação de agentes administrativos para o exercício de mandatos a termo, provendo-lhes estabilidade em seus cargos, necessária para que executem, sem ingerência do Executivo, a política regulatória estabelecida pelo Legislativo para o setor22”. Ainda, explicitando como se deve operar esta não ingerência, deixa claro que o mandato estável, com prazo determinado, deve ser “preferentemente defasado dos períodos dos mandatos políticos do Executivo”23

Neste mesmo sentido é Marçal Justen Filho. Este autor traz em seu ensinamento não haver óbice em nossa constituição à nomeação, ainda que por indicação, com prazo certo e restrições à demissão. Assegura, ainda, que mesmo assim se está a garantir a de-missibilidade de tais agentes estatais: “insista-se em que os administradores podem ser demitidos, desde que comprovada (mediante processo administrativo ou judicial) a infra-ção a determinados deveres ou a perda de requisitos essenciais para o exercício do cargo. O que não se admite é sua exoneração ao sabor das conveniências políticas”24.

A já citada professora Maria Sylvia Di Pietro, ao determinar em que consiste aquele regime especial – regime diferenciador das agências reguladoras das outras autarquias –, e assegurar que este regime garante maior autonomia em relação ao Poder Executivo, traz que está contida dentro desta especialidade a estabilidade conferida aos dirigentes das agências.

Afirma:

Não há qualquer impedimento a que seus dirigentes gozem de estabilidade, garantida por meio de mandatos exercidos por prazo determinado, vedada a exoneração ad nutum. Dessa estabilidade já usufruem alguns dirigentes de entidades da Administração indireta, a exemplo do que ocorre com as universidades públicas. (...) O tipo de descentralização que ocorre com a criação de entidades da administração indireta somente é perfeito quando aos seus dirigentes é assegurada independência em relação à Administração direta25.

Esta estabilidade outorgada está dentro da especialidade e atua, segundo a autora, positivamente, tratando este regime como “não muito comum na maior parte das entida-des da Administração Indireta, em que os dirigentes, por ocuparem cargos de confiança do Chefe do Poder Executivo, acabam por curvar-se a interferências”26.

22 Idem, p. 165 (grifo nosso).23 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo: parte introdutória, parte geral e parte

especial. Cit. p. 437, (grifo nosso). Indicando o local ideológico de fala de MOREIRA NETO, Luís Roberto Barroso, com a fidelidade de se tratar o texto da própria introdução ao livro citado, nos traz: “Sem embargo de ser, há muitos anos, um dos grandes administrativistas do Brasil, Diogo sempre foi um militante da causa da liberdade de iniciativa, do modo de produção capitalista e cético das potencialidades do Estado em sua atuação na área econômica. Por mais de uma vez manifestou esta descrença de forma contundente”. BARROSO, Luís Roberto. O Estado que nunca foi. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Op. cit., 2003, p. 2.

24 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 471.25 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., 1999, p. 155.26 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., 2009, p. 470.

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A principal posição diversa é aquela, já resumida, de Celso Antônio Bandeira de Mello. Ao responder a questionamento de se poderia haver extensão do mandato além do mesmo período governamental, levantado em seu Curso de Direito Administrativo, temos:

Parece-nos evidentíssimo que não. Isto seria o mesmo que engessar a liberdade administrativa do futuro Governo. Ora, é da essência da República a temporariedade dos mandatos, para que o povo, se o desejar, possa eleger novos governantes com orientações políticas e administrativas diversas do Governo precedente.Fora possível a um dado governante outorgar mandatos a pessoas de sua confiança garantindo-os por um período que ultrapassasse a duração de seu próprio mandato, estaria estendendo sua influência para além da época que lhe correspondia (o primeiro mandato de alguns dirigentes da ANATEL é de sete anos) e obstando a que o novo Presidente imprimisse, com a escolha de novos dirigentes, a orientação política e administrativa que foi sufragada nas urnas. Em última instância, seria uma fraude contra o próprio povo27.

E, ainda:

Veja-se a que absurdos conduziria interpretação diversa da ora apresentada como correta: para prolongar a orientação que quisesse imprimir à Administração Pública, inibindo a sobrevinda de diretrizes próprias dos que ascendessem nas eleições sucessivas, bastaria ao grupo no Poder transformar todos os principais setores administrativos em entidades comandadas por dirigentes com mandatos – como foi feito no Governo que findou em 2002 – que ultrapassassem o próprio período. Com isto, mesmo derrotados no pleito eleitoral, persistiriam gerindo o Estado segundo os critérios rejeitados pelos eleitores e obstando à atuação de quem os sucedesse, em antítese absoluta com a ideia de Democracia e de República.Logo, é de se concluir que a garantia dos mandatos dos dirigentes destas entidades só opera dentro do período governamental em que foram nomeados. Encerrado tal período governamental, independentemente do tempo restante para conclusão deles, o novo Governo poderá sempre expelir livremente os que os vinham exercendo28.

Esse autor, assim, faz uma leitura das agências reguladoras que acabam por colocá-la dentro da política governamental a ser escolhida por meio dos mecanismos democrá-ticos. Não aceitará, como visto, que se fale em independência das agências em relação aos delineares da política governamental recém-sufragada, inserirá nesta política e no seu planejamento o potencial de controle e direção contido nas agências reguladoras.

Traremos, para conclusão de tal assunto, posição interessante trazida por Paulo Roberto Ferreira Motta, que trata, em síntese, de afirmar:

Condição sine qua non – no campo teórico, mas com extraordinárias dificuldades práticas, conforme se verá – para que as agências reguladoras possam cumprir sua missão com independência funcional e autonomia administrativa reside no fato de que os dirigentes gozem de mandato por prazo

27 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 161. Em nota de rodapé, na mesma página, o autor traz sua indignação: “É precisamente o que vinha sendo feito pelo governo neoliberal do sr. Fernando Henrique Cardoso. Vinha criando uma autarquia especial atrás da outra e obviamente eram nomeadas para dirigi-las pessoas de confiança do grupo que ocupava o Poder. Com isto certamente pretendia manter o controle da máquina administrativa pública e dos rumos que lhe vinham sendo imprimidos, mesmo em caso de derrota nas eleições, como a final sucedeu”.

28 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 162.

– Agências Reguladoras: A Ilegitimidade da Representação –

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determinado, não podendo ser afastados por atos demissórios ad nutum. O contrário significaria que seriam agentes políticos de confiança do Poder Executivo e não da sociedade – ainda no campo teórico, repito29.

De modo que estaria na própria justificativa existencial, na natureza do procedi-mento de agencificação, na sua teoria fundante, a independência “total” em relação ao Executivo e o jogo político a ele inerente. Seria como dizer que, se há agências, elas só podem ser independentes. O que ocorre, no entanto, é que somos levados ao raciocínio prático, distante daquela teoria que fundamenta a independência, tão bem formulada na eleição da tecnicidade como norteador dos mercados. Desenvolvendo esse pensamento, temos, no próprio autor que resume a condição imanente de independência:

Pensar que um chefe do Poder Executivo, cuja investidura se dá pelo voto da maioria do eleitorado, não possa trocar os responsáveis pela implementação de políticas governamentais nos nevrálgicos campos da energia, das telecomunicações, do petróleo, da saúde pública, dos transportes, é, no mínimo, dar margem a que se faça pouco caso das manifestações de cidadania. A democracia, penso, pressupõe, no mínimo, o respeito à vontade popular, quando esta, através de meios legítimos, manifesta, inequivocadamente, o desejo de ver implantado novos modelos econômicos30.

Está-se, assim, não negando que se pode falar na independência como contida na natureza de ser agência reguladora, questionamos, porém, as suas implicações reais, nota-damente a regulamentação de modo lógico extraída deste princípio que é a impossibilida-de de destituição da gerência por parte de um novo programa de governo legitimamente eleito, o mandato fixo e a termo, nortearia a política subsequente.

Ao transferir, como poder concedente, à União a possibilidade de regulação de seus contratos para as agências reguladoras e, após, instituir que seus dirigentes possuem mandatos autônomos e fora do controle político do chefe máximo da Administração, es-taríamos em frente à finalização, simples, imediata e (in)dolor das competências da União dispostas em nossa Carta Magna. Afinal, será a exploração dos recursos energéticos, da telefonia etc. competência das agências reguladoras, assim tão independentes em relação ao Chefe do Poder Executivo?

Tem-se uma polêmica então em relação à independência das agências reguladoras, e nos posicionamos que não poderemos, se dotada de poder de elaboração de políticas tão importantes para a nação, desligar a gerência da agência reguladora da vinculação ao Poder Executivo, senão vejamos:

Os mandatos dos dirigentes da Anatel estão estipulados em cinco anos de dura-ção (fixos)31, e como forma de troca alternada dos membros do conselho diretor – para possibilitar o convívio de modernos e antigos, garantindo a continuidade e a gestão sem sobressaltos, sendo que cinco membros constituem o conselho diretor –, determinou-se

29 MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. Agências Reguladoras. Barueri: Manoele, 2003, p.117.30 MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. Op. cit., p.121.31 Lei 9.472, de 16 de julho de 1997, artigo 24.

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que seus primeiros mandatos, seriam de três, quatro, cinco, seis e sete anos, a ser estabe-lecido no decreto de nomeação32. O que indica que, tendo sido nomeados os primeiros membros do conselho ainda em 1997, aquele governo ainda alteraria – ou reconduziria, já que a hipótese de recondução, inicialmente vedada, foi permitida pela nova redação do artigo 24 pela Lei 9.986/2000 – três membros, garantindo aos conselheiros nomeados pelo governo substituído em urna a maioria até a segunda metade do terceiro ano da nova gestão sufragada.

Devemos nos questionar sobre os objetivos deste prolongamento temporal para além do término de um mandato e, ao fazê-lo, encontramos no texto de Gustavo Binenbo-jm uma descrição clara e sem qualquer rodeio do objetivo por trás desta continuidade:

Com efeito, o modelo regulatório brasileiro foi adotado no bojo de um amplo processo de privatizações e desestatizações, para o qual a chamada reforma do Estado se constituía em requisito essencial. É que a atração do setor privado, notadamente o capital internacional, para o investimento nas atividades econômicas de interesse coletivo e serviços públicos objeto do programa de privatizações e desestatizações estava condicionada à garantia de estabilidade e previsibilidade das regras do jogo nas relações dos investidores com o Poder Público(...).Assim, a implantação de um modelo que subtraísse o marco regulatório do processo político-eleitoral se erigiu em verdadeira tour de force da reforma do Estado. Daí a idéia de blindagem institucional de um modelo, que resistisse até a uma vitória da esquerda em eleição futura.33

Assegura-se, assim, não democraticamente, uma continuidade no tempo de um governo alterado, como nos advertia Celso Antônio Bandeira de Mello. A menos que, in-genuamente, pensando como os norte-americanos anteriores à década de 1960, aceitemos como verdadeira a neutralidade da técnica e a ausência de interesses na nomeação feita pelo chefe do Executivo.

Aliás, verdadeiramente, é em si questionável a premissa da qual parecem partir sem a necessária fundamentação alguns doutrinadores – a de que a independência política é algo desejável, sentido necessário de nossa marcha histórica.

Fugir-se-á da influência político-partidária para que se caia nos braços do poderio econômico?

Com a palavra, o Ministro Joaquim Barbosa:

Advirta-se, contudo, que não basta conferir estabilidade aos dirigentes de uma agência para que ela automaticamente passe a ser “independente”. Mesmo nos EUA, onde o Congresso exerce com zelo implacável a atribuição hoje crucial de todo órgão legislativo (a fiscalização e o controle), e em que o sistema de checks and balances funciona com razoável eficiência, não são raras as críticas de que as agências, ao invés de atuarem em busca do cumprimento do interesse público, procuram preferencialmente atingir seus próprios interesses e os de lobbies eficazmente incrustados e com atuação concertada, tanto nos comitês do Congresso incumbido de supervisioná-las, quanto no

32 Artigo 25 da mesma lei.33 BINENBOJM, Gustavo. Agências Reguladoras Independentes e Democracia no Brasil. In: Revista de Direito

Administrativo, v. 240. Rio de Janeiro: Renovar, abr./jun. 2005, p. 147-165.

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âmbito das atividades privadas que lhes incumbe regulamentar e fiscalizar. Noutras palavras, é sério o risco de, ao se retirar as agências do âmbito de influência Política, submetê-las ao jugo de forças econômicas poderosas34.

5. As Formas de Participação Popular Suprimem a Ausência da Legitimidade Eletiva?

Presente de forma bastante comum, ainda, como último pilar – no intuito de su-primir o que se tem chamado deficit democrático – da base da legitimidade das agências reguladoras, está a formalidade da participação popular, sendo que esta é encontrada em maior ou menor grau em todas as agências criadas no período da desestatização.

Segundo tais correntes, as formas consulta pública e audiência pública justificam a independência das agências reguladoras e lhe asseguram – quer parecer – maior legitimi-dade do que ao Congresso Nacional.

Desta maneira, segundo Marcos Juruema Villela Souto:

Muito se questiona quanto à legitimidade democrática e quanto à legalidade do exercício dessa competência normativa, sendo notório que a transmissão democrática de competência, do legislador para o regulador, assim como a previsão de instrumentos de democracia direta, especialmente com as audiências públicas e a obrigatoriedade do registro das participações e contribuições para fins de controle da atividade regulatória podem suprir as críticas.O legislativo não tem formação e proximidade suficiente da pluralidade dos interesses em voga na sociedade35.

Igualmente, Leila Cuéllar:

Embora a legitimidade da atividade normativa das agências reguladoras não decorra da investidura popular, já que não são órgãos democraticamente formados, ela pode ser justificada não somente em razão da importância das atribuições exercidas pelas agências, mas também em virtude da maneira como são desenvolvidas suas tarefas (de forma técnica, especializada e imparcial), permitindo-se, inclusive, que os particulares participem diretamente da elaboração de diplomas normativos36.

Assim, a forma participação popular outorga a legitimidade necessária à elaboração normativa – tão cara à atuação das agências reguladoras – e mesmo à sua gerência sem submissão ao Poder Executivo central, sequer às políticas públicas centrais. Muito além de simplesmente legitimá-las, ainda, esta forma garante-lhes um lugar próximo ao máximo

34 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Agências Reguladoras: A metamorfose do Estado e da Democracia (uma reflexão de Direito Constitucional e Comparado). In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 13. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 39-74, jan./mar. 2005, p. 57 (grifo nosso).

35 SOUTO, Marcos Juruema Villela. Direito Administrativo Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 46.36 CUÉLLAR, Leila. O poder normativo das agências reguladoras brasileiras. (Tese de doutorado), Universidade Federal

do Paraná, Curso de pós-graduação em Direito, Curitiba, 2000.

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Revista da ACADEMIA JUDICIAL – Ano II • Nº 1 • Jul/2011 279

que se espera de uma Administração Pública gerencial: tecnicidade, sem olvidar a constan-te e engajada participação popular representante, evidentemente, do interesse público.

É verdadeiramente uma pena que tais autores não desçam à realidade cotidiana quando especulam ante a formalidade da participação popular. A verdade, segundo pes-quisa disponível em Paulo Todescan Lessa Mattos37, sobre as contribuições da sociedade civil em consultas públicas efetuadas pela ANATEL, é que a dita participação popular concentra-se em grupos que atuam no ramo de telecomunicações, organismos e empresas a elas ligados e escritórios de advocacia (igualmente atuantes no ramo), os quais somam 68,69% das manifestações efetuadas. A presença de verdadeiras entidades representativas de grupos ou classes se apresenta insignificante.

A verdade é que justamente por meio da dita participação popular que chegaremos ao máximo do risco, para a qual nos advertiu a passagem já citada do Ministro Joaquim Barbosa: Não podemos, ao “retirar as agências do âmbito de influência Política, submetê-las ao jugo de forças econômicas poderosas”.

A participação popular, assim, se pode vir a ser, não é/está uma forma efetiva de su-primir o deficit democrático original constante na independência das agências reguladoras.

6. Conclusão

Após o levantamento das divergências doutrinárias principais que envolvem a in-dependência das agências reguladoras, instauradas, estas, em nosso ordenamento jurídico e realidade política em um período de desestatização das atividades do estado, chega-se à conclusão de que a referida característica traz consigo o que chamamos de deficit democrá-tico, e contra o qual, para que se mantenha a existências das agências, se deve batalhar.

Ocorre, no entanto, que os fundamentos que justificam a dita independência res-tam negados: a tecnicidade não é um valor; a neutralidade é ficcional; a fuga da política-partidária não se justifica; e a participação popular tem pouco de participação, e ainda menos de popular.

Deixamos clara a posição de defesa, como real âmbito de expressão pública, os espaços políticos de manifestação. Não aceitaremos, com o elogio da tecnicidade, o le-vantamento de um fictício império totalitário de base racional, distopia fundamentada no conhecimento específico e na fragmentação das potencialidades de apreensão humana da vida em sociedade, como sustentação discursiva da exclusão do debate e do efetivo controle público, partidário e politizado dos rumos de áreas tão importantes como as que têm sido encaminhadas ao controle das agências reguladoras.

37 MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Agências Reguladoras e democracia: participação e legitimidade. In: SALOMÃO FILHO, Calixto (coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 182-230.

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