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Coordenação da coleção: José Tolentino Mendonça

Capa Panóplia®Foto da capa Corbis/VMI

Pré-impressão Paulinas Editora – Prior VelhoImpressão e acabamentos Artipol – Artes Tipográficas, Lda. – Águeda

ISBN 978-989-673-396-4

© Setembro 2014, Inst. Miss. Filhas de São PauloRua Francisco Salgado Zenha, 112685-332 Prior VelhoTel. 219 405 640 – Fax 219 405 649e-mail: [email protected]

SEM VALOR COMERCIAL

COLEÇÃO

POÉTICAS DO VIVER CRENTE Série JTM

As obras de um autor de referência, empenhado em fazer

dia logar a experiência cristã com os desafios de um mundo

que se entreabre em modos sempre novos.

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«É místico aquele ou aquela que não pode deixar de caminhar.»

MICHEL DE CERTEAU, La fable mystique

Em pleno coração comercial de Louisville, cidadedo Estado americano do Kentucky, há uma placa aassinalar que ali, no ano de 1958, ocorreu a segundaconversão do monge trapista Thomas Merton. Nessaépoca, ele já era mundialmente conhecido como autorno domínio da espiritualidade. O volume que o tinhalançado, dez anos antes precisamente, havia sido asua autobiografia, A montanha dos sete patamares,onde o paradigma da fuga ao mundo estava comple-tamente presente. Andando agora por Louisville,abraçando a marcha frenética de uma multidão na -quele epicentro comercial, Merton teve a intuição de

que afinal não existia diferença alguma ou separaçãoentre ele e aquele povo desencontrado e sedento.Sentiu-se simplesmente membro da família humana,da qual o próprio Filho de Deus quis fazer parte.Nascia assim uma nova etapa da sua espiritualidade,crítica em relação à primeira. Thomas Merton perce-bia que a mística só pode ser uma experiência quoti-diana, solidária e integrativa.

Ancorados na semente divina que não apenastransportam, mas que eles próprios são, mulheres ehomens descobrem-se chamados a apropriar-se cria-tivamente, e com todos os seus sentidos, do desaba-lado prodígio da vida. A vida é o imenso laboratóriopara a atenção, a sensibilidade e o espanto que nospermite reconhecer em cada instante, por mais precá-rio e escasso que este seja, a reverberação de uma fan-tástica presença: os passos do próprio Deus. Pre -cisamos de olhar de novo o corpo que somos e a nossaexistência como profecia de um amor incondicional:«Deus amou de tal maneira o mundo, que lhe entre-gou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o quenele crê não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo3,16), escreve o evangelista João. O corpo que somos4

é uma gramática de Deus. É através dele que o apren-demos, e não mentalmente apenas. Merleau-Pontyrecorda-nos, com razão, que ligamo-nos à nossa lín -gua materna, antes mesmo da aprendizagem linguís-tica, através do corpo: esses signos sonoros tiveramprimeiro de habitar-nos, estiveram longamente mer-gulhados na noturna memória do corpo, inscreve-ram-se dentro do nosso sono, tatuaram-se na nossapele. Com a língua de Deus não é de outra maneira.Maravilhosa imagem é essa que nos vem oferecidapelo salmo: «Quando os meus ossos estavam a ser for-mados,/ e eu, em segredo, me desenvolvia,/ tecidonas profundezas da terra,/ nada disso te era oculto.//Os teus olhos viram-me em embrião» (Sl 139,15-16).Esta imagem mostra-nos que o nosso corpo é elemesmo língua materna. Língua materna de Deus. Porisso, a «mística dos sentidos ou do instante» que pas-saremos a propor, por contraponto à «mística daalma», não poderá ser senão uma espiritualidade queencare os sentidos como caminho que conduz e portaque nos abre ao encontro de Deus. «Este mistérioradical – escreve o teólogo Karl Rahner – é proximi-dade e não distância, amor que se dá a si mesmo e nãojuízo.»

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«Accende lumen sensibus» («Ilumina os sentidos»),recitava uma antiga invocação litúrgica, não deixandodúvidas sobre o necessário envolvimento dos senti-dos corporais na expressão crente. Os sentidos donosso corpo abrem-nos à presença de Deus no ins-tante do mundo. Em boa saúde, temos ao nossodispor cinco sentidos (tato, paladar, olfato, visão eaudição), mas a verdade é que não os aperfeiçoamos atodos devidamente, ou, pelo menos, não os temosdesenvolvidos da mesma maneira.

Podemos receber e transmitir informações tãodiversas pelos sentidos, porque dispomos de um cére-bro que elabora e dirige. Mas falta-nos uma educaçãodos sentidos que nos ensine a cuidar deles, a cultivá--los, a apurá-los. «Não sei sentir, não sei ser humano»,escrevia ainda Fernando Pessoa. E continuava: «Sentide mais para poder continuar a sentir.» Efetivamente,o excesso de estimulação sensorial em que estamosmergulhados tem um efeito contrário. Não amplia anossa capacidade de sentir, mas contamina-a comuma irremediável atrofia. «Ah, se ao menos eu pu -desse sentir!» – é a proposição do desespero contem-porâneo, que advém depois de se ter experimentado

tudo, em vertigem e convulsão. Mas também a indife-rença aos sentidos que o cinismo induzido a dadaaltura da vida promove, não deixa de ser um menorinstrumento de aniquilação. «A pele não me ensinounada», lamentava-se o poeta René Crevel em O meucorpo e eu. Este é um território onde a mística dos sen-tidos pode desempenhar um papel reconversor ful-cral, porque nela, como explica Michel de Certeau, «o corpo é informado». A pele ensina.

Há um magnífico ensaio de Susan Sontag, intitu-lado A estética do silêncio, que começa com uma da que-las frases inesperadas, que nos fazem parar. Diz ela:«Cada época deve reinventar para si um projeto deespiritualidade.» Seguramente que este «reinventarpara si» não significa descobrir ex nihilo. Trata-seantes de reler, de encontrar uma nova hermenêutica,de arriscar uma nova síntese, de propor, partindo doato de crer, mas também do ato de viver, uma novagramática sapiencial. Modelo não nos falta, comopodemos verificar na carta a Tito, um dos tesouros docânone cristão: «A graça de Deus, fonte de salvação,manifestou-se a todos os homens, ensinando-nos aviver neste mundo» (Tt 2,11-12). A mística do ins-

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tante pede para tomarmos (mais) a sério a nossahumanidade como narrativa de Deus que «vive nestemundo».

O significado das coisas não é apenas o que elastêm em si, mas o que podemos descobrir que elas têmpara nós. A maior parte das abordagens que hoje sepublicam sobre a mística têm infelizmente apenas umcarácter histórico, dissecam o passado, reforçam onosso sentimento de distância e inatualidade em rela-ção ao objeto que abordam. Ou optam por uma sin-gularização tal da mística que parece só ser possívelpensar nela através de casos individuais (a mística deHadewijch, de Hildegarda de Bingen, de Teresa deÁvila, de João da Cruz) e nunca numa apropriaçãoverdadeiramente comum. Por isso, se me fosse dadoum instante, apenas um instante, para explicar o sig-nificado de mística, a frase de Michel de Certeau seriaperfeita: «É místico aquele ou aquela que não podedeixar de caminhar.» [...] Ora, na frase «é místicoaquele ou aquela que não pode deixar de caminhar»,identifico à partida uma extraordinária qualidade:não exclui ninguém, testemunha como a mística dizrespeito a todos, é literalmente universal. Isso é uma

vantagem enorme, pois não é essa, erradamente, afama que a mística tem. Ela foi vista como uma expe-riência só de alguns, uma via marginal e elitista, des-ligada das situações concretas onde vive a maior partedos homens, impermeabilizada às aflições do pre-sente. Os escritos de figuras como Merton, Certeauou Raimon Pannikar ajudaram-nos a revolucionar onosso olhar.

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De seguida, proponho um itinerário pelos senti-dos no quadro possível de uma mística do instante.Recorro a um método deliberadamente fragmentário,que expressa, antes de mais, que a leitura nos colocano interior de uma construção aberta e provisória,em certa medida aqui apenas esboçada, apenas suge-rida. A mim pessoalmente interessam-me mais osenfoques, as cintilações na errância do motivo do queuma linearidade fechada que se substitui à perguntae à procura. Prefiro um texto polimórfico, com muitasfrechas, mais plástico e colaborativo do que fixado ehirto. «Em casa de meu Pai há muitas moradas»,disse-nos Jesus (Jo 14,2).

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Às vezes, quando não permitimos que nada nemninguém nos toque, a nossa dificuldade é connoscomesmos. O problema de fundo é não nos conseguir-mos amar, não gostamos de nós, da nossa cara, donosso corpo, da nossa idade, da nossa cultura, do quetemos ou não temos, do que sabemos ou não. Nãogostamos, não amamos. E somos infelizes. E acon-tece-nos disfarçar essa lacuna num orgulho ou numaautossuficiência que apenas escondem (e escondemmal) a nossa fragilidade profunda. Aprender a amar--se a si mesmo, isto é tarefa para uma vida inteira. Éuma coisa que nunca está acabada. Estamos sempre adescobrir o que significa.

Quando nos amamos a nós próprios, sabemostambém amar os outros. Multiplicamo-nos em aten-ções e serviços, e nem sempre isso é amor. Damos atémuitas coisas, mas não somos capazes de dar-nos.Não raro, o que julgamos ser amor é uma forma depoder sobre os outros, tê-los na mão, controlar, mani-pular, obter admiração. O verdadeiro amor é entregaro nosso amor aos outros sem estarmos preocupadoscom aquilo que os outros vão fazer dele.

Escrevia o Mestre Eckhart: «Se te amas a ti mes -

mo, amas todos os homens como a ti mesmo. En -quanto amares um homem que seja menos do que a timesmo, não te amaste verdadeiramente a ti mesmo.»

Sem lentidão não há paladar. Talvez precisemos,por isso, voltar a essa arte tão humana que é a lenti-dão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavel-mente contaminados por uma pressão que não domi-namos; não há tempo a perder; queremos alcançar asmetas o mais rapidamente que formos capazes; osprocessos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos,os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nosque temos de valorizar resultados, apenas resultados.À conta disso, os ritmos de atividade tornam-seimpiedosamente antinaturais. Cada projeto que nospropõem é sempre mais absorvente e tem a ambiçãode sobrepor-se a tudo. Os horários avançam impondoum recuo da esfera privada. Deveríamos, contudo,refletir melhor sobre o que perdemos, sobre o que vaificando para trás, submerso ou em surdina, sobre oque deixamos de saber quando permitimos que a ace-leração nos condicione deste modo. Com razão, nummagnífico texto intitulado A lentidão, Milan Kunderaescreve: «Quando as coisas acontecem depressa

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demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisanenhuma, nem de si mesmo.» E explica, em seguida,que o grau de lentidão é diretamente proporcional àintensidade da memória, enquanto o grau de veloci-dade é diretamente proporcional à intensidade doesquecimento. A pressa dá-nos, assim, uma impres-são de si que é fictícia. Ao contrário do que parece, oseu aliado é o esquecimento, não a memória. Tudopassou no mesmo galope com que entrou.

O perfume é uma expressão de consolação, onde avida se celebra. É uma outra forma de júbilo. É umlouvor sem palavras, uma melodia intensíssima queouvimos na transparência, sem recorrer à audição.Sim, o perfume é essa música ao mesmo tempo caladae extraordinariamente vibrante. A Bíblia oferece-nosinesquecíveis exemplos. Um deles surge-nos sob aforma de bênção de um pai para com o filho: «Entãoseu pai Isaac disse-lhe: “Aproxima-te, meu filho, e dá--me um beijo.” Jacob aproximou-se e beijou o pai.Quando sentiu o cheiro das suas roupas, Isaac aben-çoou-o, dizendo: “Ah, o cheiro de meu filho é como ocheiro de um campo que o Senhor abençoou”» (Gn27,26-27).

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Outro exemplo, igualmente impressivo, é o elogioda comunhão fraterna que comparece na antologiados Salmos: «Vede como é bom e agradável/ que osirmãos vivam unidos!/ É como óleo perfumado derra-mado sobre a cabeça,/ a escorrer pela barba, a barbade Aarão,/ a escorrer até à orla das suas vestes» (Sl133,1-2). A imagem acompanha o grácil movimentodo perfume, primeiro esparso sobre a cabeça, e quedepois escorre pela barba até a fímbria última do ves-tido. Da cabeça aos pés! O óleo perfumado assinalaassim que a comunhão dos irmãos torna o corpointeiro e a vida inteira absolutamente preciosos.

Um último caso, de entre outros que poderiam serescolhidos, é o do livro dos Provérbios, que canta obom odor da amizade: «O perfume e o incenso ale-gram o coração,/ os conselhos de um amigo deleitama alma» (Pr 27,9). A amizade dos nossos amigos per-fuma o nosso caminho, nessa busca acompanhada daverdade, da beleza e do bem.

Por mais programas, projetos e sonhos que ali-mentemos, tudo passa pelo ordálio do tempo, tudotem de ser purificado como o ouro, tudo é e serátransformado. Tem é de haver um eixo firme. Esse

ponto é a escuta do Evangelho. A opção por seguirJesus não nos torna poupados ao sofrimento: dá-nosé a capacidade de o viver na confiança. E tal provémdo enraizamento na escuta. É isso que a obediência,como atitude evangélica, significa. Em latim, o termoab-audire quer dizer «dar ouvidos», «ouvir bem», «per-manecer em escuta». No maravilhoso hino da cartaaos Filipenses, São Paulo escreve sobre Jesus: «Elerebaixou-se a si mesmo, tornando-se obediente até àmorte e morte de cruz» (Fl 2,8). Esta obediência quese torna dom de si, oferta radical da própria vida,brota desse estado amoroso de relação que é a escuta.O segredo de um homem não é tanto o que ele diz,quanto o que ele escuta. Diz Jesus aos seus discípulos:«Já não vos chamo servos, visto que um servo nãoestá ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vóschamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo oque ouvi ao meu Pai» (Jo 15,15).

O texto de Génesis centra no olhar e nos seusembaraços a explicação simbólica da transgressão doprimeiro casal humano (cf. Gn 3,1-13). A promessaque a serpente faz à mulher é que os seus olhos seabrirão e ela ficará a ver com a amplitude do próprio14

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Deus. Esta ficção de uma visão ilimitada, e nesse sen-tido também de uma visão inumana, captura amulher. É interessante compararmos o posiciona-mento da mulher com o de Deus. Deus detém-se acontemplar, simplesmente: «E Deus viu que isto erabom» (Gn 1,10). Deus olhava para cada uma das obrasda criação a partir do seu bem. As coisas eram consi-deradas no seu fundamento, não porque tinham umafinalidade. Ora, a mulher passa a olhar para a maçãporque ela é atraente e agradável à vista para comer:«Vendo a mulher que o fruto da árvore deveria serbom para comer, pois era de atraente aspeto e pre-cioso para esclarecer a inteligência, agarrou o fruto,comeu-o, deu dele também a seu marido» (Gn 3,6). Eeste é o grande engano da visão: deixamos de olhar acriação em si, e aplicamos-lhes finalidades das quaisnós próprios somos o centro. E nem nos damos contaaté que ponto a pretensão de nos constituirmos comomedida de todas as coisas nos bloqueia o olhar.

SUMÁRIO

Para uma espiritualidade do tempo presenteHá mais espiritualidade no corpo O corpo é a língua materna de Deus Combater a atrofia dos sentidos Um projeto de espiritualidade Uma mística de olhos abertos O sacramento do instante

Para uma teologia dos sentidosPórtico Tocar o que nos escapa Buscar o infinito sabor Colher o perfume do instanteEscutar a melodia do presenteOlhar a porta entreaberta do instante

Bibliografia

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