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SUA ALTEZA REAL Thomas Mann Sua Alteza Real Tradução de Lya Luft EDiTORA NOVA FRONTEIRA ! Título Original: KNIGLICHE HOHEIT c' 1909, by S. Fischer Verlag Berlin Com a permissào de S. Fischer Verlag GmbH, Frankfurt am Main 1 Direitos de ediçào da obra em língua portuguesa no Brasil, adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. Rua Maria Angélica, 168 - Lagoa - CEP: 22.461 - Tel.: 286-7822 Endereço telegráfico: NEOFRONT - Telex: 34695 ENFS BR io de Janeiro, RJ , ,' emsào da tradução ; L, ... CAR S ALBERTO MEDEIROS 1 Itevisão tipográfica UE TARNAPOLSK HEt`¢RIQ GU/ REN TO ROSARlO CARVAL.HO

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SUA ALTEZA REAL

Thomas Mann

Sua Alteza Real

Tradução de

Lya Luft

EDiTORA

NOVA

FRONTEIRA

! Título Original: KNIGLICHE HOHEIT�

c' 1909, by S. Fischer Verlag Berlin�

Com a permissào de S. Fischer Verlag GmbH, Frankfurt am Main

1�

Direitos de ediçào da obra em língua portuguesa no Brasil, adquiridos pela

EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.

Rua Maria Angélica, 168 - Lagoa - CEP: 22.461 - Tel.: 286-7822

Endereço telegráfico: NEOFRONT - Telex: 34695 ENFS BR

io de Janeiro, RJ

,

,' emsào da tradução��

; L, ... CAR S ALBERTO MEDEIROS�

1

Itevisão tipográfica

UE TARNAPOLSK �

HEt`¢RIQ

GU/ REN TO ROSARlO CARVAL.HO��

ERTO FIGUEIREDO PIN'r0

CIP-Brasil. Catalogaçào-na-fonte

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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Mann, Thomas, 1875-1955.

M246s Sua Alteza Real / Thomas Mann; tradução de Lya Luft. Rio de Ja-�

neiro: Nova Fronteira, 1985.

(Coleção Grandes romances)

Tradução de: Knigliche Hoheit�

1. Romance alemão I. Luft, Lya 11. Título lll. Série

CDD - 833

85-0270 CDv - $30-31

81ï3l.lOTü,.íS't.: . i;;.i i',":;'It�� ��� � �

SUMÁRIO

.

Pr<slogo, 7

A não mirrada, ll�

O país, 35

O apateiro Hinnerke, 47�

O doutor Überbein, 73

All.,recht II, 115

A nobre vocação, 151

Imma, 173

A realização, 271

A roseira, 329

PRÓLOGO

dia de semana, por volta do meio-dia, não importa a estação�

do ano - estamos na Albrechtsstrasse, aquela artéria da Re-

sidência que liga a Praça Albrecht e o Castelo Velho com a

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caserna dos fuzileiros da Guarda. O tempo é razoavelmente

bom, indiferente. Não chove, mas o céu também não está limpo;

é de um branco acinzentado, todo igual, comum, vulgar, e a

rua jaz sob uma luz fosca e pobre, que exclui qualquer mistério

ou fantasia. O tráfego é regular, sem muito rumor ou aperto,

combinando com o caráter tranqüilo da cidade. Passam bondes

deslizando, alguns coches rodam, nas calçadas caminham mora-

dores, gente incolor: transeuntes, público, povo.

Dois oficiais, mãos nos bolsos dos paletós cínzentos, vão

um ao encontro do outro: um General e um Tenente. O General

vem do Castelo, o Tenente, dos lados da caserna. O Tenente

é muto jovem, imberbe, quase menino. Tem ombros estreitos,

cabelo escuro e zigomas salientes como muita gente naquela

terra, olhos azuis um pouco fatigados, rosto de rapazinho de

expressão amavelmente reservada. O General tem o cabelo todo

branco, é alto e forte, uma figura imperiosa. As sobrancelhas

parecem algodão branco, a barba e o bigode são hirsutos na

boca e no queixo. Anda devagar, espada tilintando sobre o as-

falto, a pluma do capacete ondulando ao vento, e a grande

gola vermelha de seu casaco balança lentamente a cada passo.

7

F

E assim vão ao encontro um do outro. Haverá complicações?

, Impossível. Qualquer observador verá logo que é um encontro

natural. Há a relação entre velho e moço, comando e obediên-

cia, méritos antigos e brando aprendizado, há entre eles uma

enorme distância hierárquica, há prescrições a cumprir. As coi-

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sas vão tomar seu curso natural! Mas, em vez disso, que acon-

tece? Uma cena surpreendente, penosa, encantadora e inver-

í

tída: ao ver o jovem Tenente, o General modifica singularmente

sua postura. Controla-se, mas mesmo assím parece dímínuír de

tamanho. Imediatamente, reduz a magnificência de sua atitude,

sustém o ruído da espada e, enquanto o rosto assume uma

expressão séria e inibida, vê-se que não sabe para onde olhar,

e tenta disfarçar tanto que acaba olhando fixamente para o

chão, par debaixo das sobrancelhas alvas. Também o jovem

Tenente, se observarmos bem, reveIa certo constrangímento que,.

estranhamente, parece dominar, com graça e disciplina, melhor

que o grisalho comandante. A tensão de sua boca transforma-se

num sorriso a um tempo modesto e bondoso, os olhos passam

pelo General com uma calma controlada, aparentemente natu-

ral, e perdem-se na dístâncía. Agora, os doís estão a um passo

um do outro. Então, em vez de executar os prescritos sinais

de respeito, o Tenentezinho deita um pouco a cabeça para trás,

retira do bolso do casaco a mão direita - e só ela, o que

chama atenção - e, com essa mão, de luva branca, faz um

pequeno gesto, animador e amável, muito ligeiro, apenas vi-

i rando a palma para cima e abrindo os dedos; mas o General

,

que aguardara o sinal com braços caídos ao longo do corpo,

leva a mão ao elmo, afasta-se para o lado liberando a calçada,

com uma leve mesura, e saúda o Tenente de baixo para cima,

com rosto vermelho e expressão devota nos olhos aguadas. O

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Tenente, mão no gorro, responde ao cumprímento de seu su-

perior, animando todo o rosto com uma amabilidade infantil. . .

e segue adiante.

Milagre! Cena fantástica! Ele segue adiante! As pessoas

o seguem com os olhos, mas ele não vê ninguém, olha direta-

8

mente em frente; de maneira vaga, com a expressão de uma

' mulher que se sabe observada. As pessoas o cumprimentam:

ele devolve a saudação, cordial mas distante. Parece não cami-

nhar com muita facilidade, como se não estivesse habituado

a usar as pernas, ou como se a atenção dos outros o inibisse;

tão irregular e hesitante é esse passo que por vezes ele parece

' mancar. Um guarda assume posição de sentido, uma senhora

elegante, saindo de uma loja, sorri dobrando o joelho numa

mesura. Todos o seguem com o olhar, fazem sinais com a

cabeça em sua direção, arqueiam as sobrancelhas, pronunciam

seu nome baixinho . . .

É Klaus Heinrich, o irmão mais moço de Albrecht II,

sucessor direto do trono. Lá vai ele, ainda o podem ver. Co-

nhecido de todos, mas mesmo assim .um estranho entre as

pessoas, ele anda na multidão, rodeado de um vazio. Caminha

solitário e carrega nos ombros estreitos o peso de sua nobreza.

9

A MÃO MIRRADA

Quando os vários meios de comunicação modernos trouxeram

à Residência a notícia de que, em Grimmburg, a Grã-Duquesa

Dorothea dera à luz, pela segunda vez, um Príncipe, foram

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disparadas salvas de tiros. Setenta e dois tiros reboando sobre

; cidade e campo, disparados pelos militares da muralha da "ci-

dadela". Logo depois, também os bombeiros dispararam suas

armas, a fim de não ficarem para trás; mas entre suas deto-

nações havia demorados intervalos, o que muito divertiu a

população.

Do alto de uma colina arborizada, Grimmburg dominava

a pitoresca cidadezinha de igual nome, que refletia no braço

do rio seus telhados cinzentos e obliquos; da capital chegava-se

lá em meia hora com o trem local subvencionado. O Castelo

ficava no alto, edificação arrojada, construída em tempos re-

motos pelo Marquês Klaus Grimmbart, antepassado dos atuais

príncipes. Fora várias vezes reformado e modernizado desde

então, e sempre o mantinham habitável, respeitado especial-

mente como sede daquela estirpe de governantes e berço ds

dinastia. Pois a lei e a tradição da Casa dizíam que todos os

descendentes diretos de Grimmbart, todos os filhos do casal

governante, deviam nascer ali. A tradição não devia ser negli-

genciada. O país já tivera soberanos lúcidos e contestadores

que tinham zombado daquilo, mesmo assim submetendo-se

11

num dar de ombros. Agora seria tarde para se desviar da

tradição. Sensato e adequado aos tempos, ou não - por que _

romper desnecessariamente com um hábito respeitável que se

mantivera por tanto tempo? O povo o considerava importante.

Duas vezes, no curso de 15 gerações, filhos de governantes

tinham vindo à luz em outros castelos, por obra do acaso:

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os dois tinham tido um fim pouco digno e violento. Mas de

Heinrich o Penitente a Johann, o Violento, além de suas ado-

,

ráveis e altivas irmãs, até Albrecht, pai do Grão-Duque, e ele

mesmo, Johann Albrecht, todos os soberanos do país e seus

irmãos e irmãs tinham vindo ao mundo ali; e há seis anos

Dorothea dera à luz, naquele lugar, seu primeiro filho, o Grão-

Duque herdeiro . . .

De resto, o Castelo era um refúgio tão digno quanto sos-

segado. Preferiam-no como residência de verão por causa do fres-

cor de seus aposentos e do sombreado encanto de suas redon-

dezas, até mesmo ao Hollerbrun de encanto tão rígido. Subir

da cidadezinha pela ruela de calçamento grosseiro entre casas

pobres e um muro rachado, passando por portais imensos até

a antiqüíssima estalagem e taverna na entrada do pátio do

Castelo, em cujo centro ficava a estátua de pedra de Klaus

Grimmbart, era pitoresco, embora não fosse confortável. Mas

um parque imenso cobria a encosta da colina do Castelo e,

por cômodos caminhos, passava por florestas e ondulações sua-

ves, com muitos lugares para passeios de carruagem ou tran-

qüilas caminhadas.

O interior do Castelo, ainda no início do reinado de

Johann Albrecht III, fora objeto de ampla remodelação e em-

belezamento, e os gastos tinham sido muito comentados. A

decoração das salas de estar fora completada e renovada em

estilo a um tempo nobre e aconchegante, as lajotas com o bra-

são da "Sala de Audiências" refeitas exatamente segundo O

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padrão antigo. O dourado dos arcos cruzados das abóbadas

estava brilhante, todos os aposentos eram forrados com par-

quê, e o grande salão de banquetes, assim como o pequeno,

fora ornamentado com enormes pinturas murais pela mão de

artista do Professor von Lindemann, excelente pintor acadê=

mico, quadros representando a história daquela casa, executa-

dos em estilo simples e luminoso, sem nada das inquietações

das tcndências modernas. Nada faltava. Como as velhas larei-

ras e os fogões singularmente coloridos, que se erguiam em

terraços redondos até a altura do teto, não tivessem mais con-

dições de uso, haviam instalado até fogões a carvão, pensando

na possibilidade de alguma estada no inverno.

Mas no dia dos 72 tiros estava-se na melhor estação do

ano, fim da primavera, começo do verão, inícios de junho,

um dia depois de Pentecostes. Johann Albrecht, avisado por

telegrama, bem cedo, de que o parto começara ao amanhecer,

chegou às 8h, no trem local, à estação Grimmburg, foi rece-

bido com felicitações por três ou quatro personalidades oficiais

- o prefeito, o juiz, o pastor, o médico da cidadezinha -,

e se dirigiu imediatamente, de carro, ao Castelo. Acompanhan-

do o Grão-Duque, chegaram o Ministro de Estado Dr. von

Knobelsdorff e o General-de-lnfantaria Conde Schmettern.

Pouco depois reuniram-se ainda no Castelo dois ou três minis-

tros, o pregador da Corte e conselheiro da Igreja Dr. Wislizenus,

dois cavalheiros com cargos na Corte e um jovem ajudante, o

Capitão von Lichterloh. Embora o médico pessoal dos Grão-

Duques, o General-Médico Dr. Eschrisch, estivesse junto da par-

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turiente, Johann Albrecht teve o capricho de chamar o jovem

médico do lugar, um certo Dr. Sammet, que ainda por cima

era de origem judaica, e pedir que o acompanhasse ao Castelo.

O médico, simples, trabalhador e sério, muito atarefado e jamais /

imaginando que lhe fariam tal honra, gaguejou várias vezes:

Com prazer. . . com prazer. . . - o que provocou al-

guns sorrisos.

Grâ-Duquesa dormia na "alcova nupeial", aposento de

cinco cantos, com pinturas bem coloridas, que ficava no pri-

meiro andar e, através da janela, oferecia uma visão luxuriante

de flvrestas, colinas, e sinuosidades do rio, emoldurada por

13zzz

um friso de retratos em forma de medalhão, pinturas de noí-

vas reais que tinham vívido ali nos dias dos antigos senhores.

Dorothea estava deitada naquele quarto; no pé da cama via-se

presa uma fita larga e forte, a qual ela segurava como uma

criança bríncando de dirigir um coche, e seu belo corpo opu-

lento fazia um trabalho muito duro. A Dra. Gnadebusch, a

parteira, mulher suave e sábia, com mãos pequenas e finas e

olhos castanhos aos quais os óculos redondos e grossos con-

feriam um brilho misterioso, apoiava a Princesa e dizia:

- Força, força, Alteza Real. . . vai ser rápido. . . vai ser

bem fácil. . . a segunda vez. . . não é nada. . . Descanse: afaste

os joelhos. . . e sempre o queixo sobre o peito. . .

Uma auxiliar, vestida, como ela, de linho branco, tam-

bém ajudava e, nos intervalos, andava por ali silenciosamente

com frascos e ataduras. O médico pessoal, homem sombrio de

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barba grisalha, cuja pálpebra esquerda parecia paralisada, assistia

o parto. Usava um avental de cirurgia sobre o uníforme de

General-Médim. Por vezes, aparecia na alcova para verificar os

progressos do parto a governanta de confiança de Dorothea,

Baronesa de Schulenburg-Tressen, dama corpulenta e asmática

de aparência fortemente pequeno-burguesa, mas que nos bailes

da Corte costumava expor o enorme busto. Ela beijava a mão

de sua ama e voltava ao próprio quarto, onde duas damas da

Corte, muito magras, conversavam com o camareiro da Grã-

Duquesa, o Conde Windisch.

O Dr. Sammet, que vestira o avental de linho como uma

fantasia sobre o fraque, postava-se junto do lavatório numa

postura modesta e atenta.

Johann Albrecht ficou num aposento abobadado que con-

vidava ao trabalho e à reflexão, separado da "alcova nupeial"

apenas pelo toucador, a "sala de pentear" como era chamada,

e por um corredor. Esse aposento tinha o nome de "biblioteca"

por causa de vários in-fólios manuscritos, recostados obliqua-

mente sobre o grande armário que guardava a história do Cas-

#

telo. O aposento estava decorado como escrítórío. Globos de

14

,

luz enfeitavam as estantes da parede. Através da janela em arco

aberta, entrava o vento forte das montanhas. O Grão-Duque

mandara servir chá, o camareiro Prahl trouxera pessoalmente os

talheres; mas tudo ficara esquecido sobre a bandeja do secre-

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tárío, e Johann Albrecht andava de um canto a outro num

estado desagradavelmente tenso. Seu andar era acompanhado

pelo ranger contínuo das botas de verniz. O ajudante von Lich-

terloh ouvia os rangidos, entediado, no corredor quase vazio.

Os ministros, o ajudante, o pregador e os funcionários

da Corte, nove ou 10 cavalheiros, esperavam nas salas do

andar térreo. Atravessavam o grande salão de banquetes, e o

pequeno, onde se viam, entre os quadros de Lindemann, ar-

ranjos de bandeiras e armas; recostavam-se nas colunas seme-

lhantes a fustes que se desdobravam em abóbadas coloridas

sobre suas cabeças; paravam diante das janelas estreitas, que

subiam até o teto, e olhavam pelas pequenas vidraças emol-

duradas em chumbo, vendo o rio e a cidadezinha; sentavam-se

nos bancos de pedra que corriam ao longo das paredes, ou

em poltronas diante de lareiras rujos telhados góticos eram

sustentados por grotescos homúnculos de pedra, ridiculamente

pequenos, agachados. O dia alegre, lá fora, fazia cintilar os

galóes dourados dos umformes, as medalhas sobre os peitos

convexos, as largas tiras douradas nas pernas das calças dos

dignitários. ,~.r.~ ~ - ---~

A conversa fluía mal. A toda hora, mãos enluvadas de

branco erguiam-se díante de bocas convulsivamente abertas.

Quase todos os cavalheiros tinham lágrimas nos olhos. Vários

tínham conseguido tempo para uma refeição leve. Alguns pro-

curavam distrair-se estudando respeitosamente os instrumentos

cirürgicos e o frasco redondo de clorofórmio, envolto em cou-

ro, que o General-Médico Eschrich deixara ali para alguma

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eventualidade. Depois de contar várias histórias à sua maneira

tagarela e incongruente, o Marechal-da-Corte von Bühl zu Bühl,

homem forte, de movimentos buliçosos, topete castanho, óculos

dourados e longas unhas amarelas, recostou-se numa poltro-

15

à sua catalepsia. Examinada, aprovada e liberada pelo Dire-

-.. -~~~ ~a

Corte, Conde Trümmerhauff. .

,

luz .:a, estou dizendo,

enfeitavam as estantes

aberta, entrava o vento f da parede. Através da j~ ração da fortuna

mandara servir chá orte das mont h s. O ela em arco

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Os mini , no c von

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da Corte stros, o ajudante, o orredor quase vazio.

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sobre que se desdobr nas colunas e os Príncipes serem

suas cabeças; para avam em a~badas seme- erras e propriedades,

subiam até o t vam diartte das ~ roloridas

eto, e olhavam j elas ura. Hoje em dia. .

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dad m-se orientar, com la-

em poltronas ~~te d corriam ao longo das, pa étavam-se ~s obsoletos e ideológi-

e lareiras des

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sustentados por grotescos homún cul os te~ados góticos e ou = dignidade. A proprie-

C~quenos, agachados. O dia ~'los de pe~.a, ridicul ram ade - pelo fideicomis-

~~~s dourados alegre, lá fora, fazia c ~ente .tecas, crédito para me-

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~ilOnltariOS. s douradas nas pernas ~re os ~ItOS ~remente as conjunturas

A conversa s c~ças dos Perdão, não é verdade!

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curav nse o tempo para uma 1 as nos olhos. Vári wre iniciativa de homens

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' luz enfeitavam as estantes da parede. Através da janela em arrn

aberta, entrava o vento forte das montanhas. O Grão-Duque

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j talheres; mas tudo ficara esquecido sobre a bandeja do secre-

tário, e Johann Albrecht andava de um canto a outro num

estado desagradavelmente tenso. Seu andar era acompanhado

pelo ranger contínuo das botas de verníz. O ajudante von Lich-

terloh ouvia os rangidos, entediado, no corredor quase vazio.

Os ministros, o ajudante, o pregador e os funcionários

da Corte, nove ou 10 cavalheiros, esperavam nas salas do

andar térreo. Atravessavam o grande salão de banquetes, e o

pequeno, onde se viam, entre os quadros de Lindemann, ar-

_ ranjos de bandeiras e armas; recostavam-se nas colunas seme-

lhantes a fustes que se desdobravam em abóbadas mloridas

sobre suas cabeças; paravam diante das janelas estreitas, que

subíam até o teto, e olhavam pelas pequenas vidraças emol-

duradas em chumbo, vendo o rio e a cidadezinha; sentavam-se

nos bancos de pedra que corriam ao longo das paredes, ou

Ï

em poltronas diante de lareiras cujos telhados góticos eram

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, sustentados por grotescos homúnculos de pedra, ridiculamente

pequenos, agachados. O dia alegre, lá fora, fazia cintilar os

galões dourados dos umformes, as medalhas sobre os peitos

convexos, as largas tiras douradas nas pernas das calças dos

dignitários. ~.r-,~" ~... .~ ---

A conversa fluía mal. A toda hora, mãos enluvadas de

branco erguiam-se diante de bocas convulsivamente abertas.

Quase todos os cavalheiros tinham lágrímas nos olhos. Vários

tínham conseguido tempo para uma refeição leve. Alguns pro-

; curavam distrair-se estudando respeitosamente os ínstrumentos

círúrgicos e o frasco redondo de clorofórmio, envolto em cou-

#

ro, que o General-Médico Eschrich deixara ali para alguma

eventualidade. Depois de contar várias histórias à sua maneíra

tagarela e incongruente, o Marechal-da-Corte von Bühl zu Bühl,

homem forte, de movimentos buliçosos, topete castanho, óculos

,.

.

dou rados e longas unhas amarelas, recostou-se numa poltro-

15

na e usou seu talento de dormir de olhos abertos - com

olhar fixo e postura firme, perdia consciência de tempo e es-

paço, sem contudo ferir, por pouco que fosse, a dignidade do

lugar.

O Dr. von Schroder, Ministro das Finanças e da Agri-

cultura, teve naquele dia uma conversa com o Dr. Barão Kno-

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belsdorff, Ministro do Interior, do Exterior e da Casa dos

Grão-Duques. Foi uma conversa variada, que começou com

considerações sobre a arte, passando a questões econômicas e

financeiras, referindo-se de maneira deveras difamante a certo

funcionário da Corte, e ocupando-se também de personalida-

des mais elevadas. Começou quando, mãos com chapéus às

costas, os cavalheiros paravam diante de uma das pinturas no

grande salão de banquetes, e os dois pensaram bem mais do

que disseram. O Ministro dás Finanças disse:

- E isso aí? O que está sendo rëpresentado? Vossa Ex-

celência é tão informado. . .

- Superficialmente. É a investidura de dois jovens Prín-

cipes da Casa por seu padrinho, o Imperador romano. Vossa

Excelência está vendo os dois jovens ajoelhados e prestando

com grande pompa seu juramento à espada do Imperador. . .

- Belo, de uma beleza singular! Que colorido! Ofus-

cante. Que encantadores cachos louros têm os Príncipes! E

o. Imperador. . . como nos livros! Sim, esse Lindermann merece

as distinções que lhe foram conferidas.

- Exatamente. As que recebeu foram merecidas.

O Dr. von Schroder, homem comprido de barba branca,

óculos com delicado aro de ouro sobre o nariz alvo, barrigui-

nha emergindo logo abaixo do estômago e nuca nédia trans-

bordando de~ colarinho duro e bordado do fraque, olhou com

um pouco de ceticismo, sem tirar os olhos do quadro, tocado

por uma suspeita que por vezes o dominava ao conversar com

o Barão. Esse Knobel~tiorff, esse favorito e alto funcionário,

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era tão dúhio... Por vezes suas expressões, suas respostas,

eram marcadas por uma zombaria incompreensível. Era muito

16

usar da expressão de Vossa Excelência? E se tudo ficasse

apetlaS lIISSo! Mas temos os gastos regulares para manter uma

,

; Corte razoavelmente digna. Ha os casteIos e parques para sus-

tentar, Hollerbrunn, Montbrillant, o Castelo de Caça, não

é? . . . o Eremitage, o Castelo dos Delfins, o dos Faisões . . .

i

e os outros : . . Esqueci ainda o Segenhaus e a ruína de Hader-

stein. . . sem falar no Castelo Velho. . . Todos malconservados,

mas quantos gastos . . . E há o Teatro da Corte, a Galería, a

Biblíoteca a sustentar. Cem pensões a pagar, mesmo sem obri-

gação legal, apenas por lealdade e dignidade. E nas últimas

enchentes, que doações princípescas fez o Grão-Duque. . . Mas

estou fazendo um verdadeiro discurso!

.

- Um discurso com que Vossa Excelência pretendeu con-

tradizer-me - disse o Ministro das Finanças -, quando na

verdade me apóia. Caríssimo Barão - o Sr. von Schroder pôs

a mão no coração ao dizer isso -, asseguro-lhe que, na minha

opinião, minha opinião leal, não há qualquer diferença entre

o senhor e eiz. O Reí não pode errar. . . essa altíssima pessoa

está acima de qualquer censura. Mas a culpa. . . ah, que pa-

lavra ambígua!. . . a ulpa existe e eu a repasso sem hesitação

ao Conde Trümmerhauff. O fato de seus antecessores iludirem

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os soberanos sobre a situação financeíra da Corte era coisa

dos tempos, e se podia perdoar. Mas a atitude do Conde

#

Trümmerhauff não é mais. Na sua quaIidade de Diretor Fínan-

ceíro da Corte, ele tinha obrigação de. . . desfazer essa des-

preocupação dos soberanos e ainda hoje deveria. . . instruir sem

piedade Sua Alteza Real. .

O Sr. von Knobelsdorff sorríu, arqueando as sobrancelhas.

- É mesmo? Então Vossa Excelência pensa que a no-

meação do Conde para esse cargo aconteceu por esse motívo?

Eu imagino o justificado espanto desse nobre da Corte quando

o senhor lhe expôs essa sua opinião. Ora, ora. . . Não se iluda,

Excelência, essa nomeação traduzia uma vontade de Sua Alteza

Real, que teria de ser a primeira coisa que o nomeado levasse

19

I I

em consideração. Ela não apenas significou um "não sei de

"

nada , mas também não quero saber de nada". É possível

~i

ser uma personalidade exclusivamente decorativa, e mesmo

assim perceber isso.. . De resto.. . sinceramente. . . todos o

percebemos. E para todos nós vale, afinal, apenas uma cir-

cunstância atenuante: não existe príncipe no mundo com quem

fosse mais fatal falar de suas dívidas do que com Sua Alteza

Real. Nosso senhor tem algo que faz assuntos tão mesquinhos

simplesmente morrerem em nossos lábios.

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- E verdade, é verdade - disse o Sr. von Schroder.

Suspirou e acariciou, pensativo, as plumas de cisne de seu cha-

péu. Os dois cavalheiros estavam sentados num lugar elevado,

virados parcialmente um para o outro, junto de uma janela,

num amplo nicho. Do lado de fora, corria um estreito corredor

de pedra, uma espécie de galeria, através de cujas abóbadas

pontudas se via a cidadezinha. O Sr. von Schroder disse:

- Barão, o senhor me responde, parece objetar ao que

digo, e suas palavras são, no fundo, mais descrentes e amargas

do que as minhas.

O Sr. von Knobelsdorff calou-se com o gesto vago de

quem deixava isso a critério do outro.

1

e fez um

- Pode ser - disse o Ministro das Finanças,

;

melancólico sinal de cabeça para o seu chapéu. - Vossa Ex-

celência pode ter razão. Talvez todos sejamos culpados, nós

e nossos antecessores. Quanta coisa se deveria ter impedido!

Veja, Barão, certa vez, há 10 anos, houve oportunidade de

sanear as finanças da Corte, ou pelo menos de melhorá-las, se

quiser. Sedutor como é, o Grão-Duque bem podia ter levado

as finanças da Corte a um estado sólido, através de um bom

casamento. Mas, em vez disso. . . não falo aqui de meus sen-

timentos pessoais. . . jamais esquecerei o ar lastimável com que

se comentava por todo país o valor do dote. . .

- A Grã-Duquesa - disse o Sr. von Knobelsdorff, e

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as ruguinhas nos cantos de seus olhos desapareceram quase

totalmente - é uma das mais belas mulheres que já vi.

20

- Resposta que combina com Vossa Excelência. Uma

r~sposta estética. Uma resposta que valeria mesmo que a es-

colha de Sua Alteza Real, como a de seu irmão Lambèrt, ti-

vesse recaído sobre uma integrante do balé da Corte. . .

- Ah, não havia perigo disso. O gosto do nosso senhor

é difícil de contentar, ele já mostrou isso. Suas exigências foram

0 oposto daquela falta de critério que o Príncipe Lambert sem-

pre revelou. Ele decidiu se casar tarde. Já se havia abandonado

a esperança dessa descendência. Estavam todos mais ou menos

conformados com o Príncipe Lambert, que. . . sobre cuja in-

disponibilidade de ser o herdeiro do trono havemos de con-

cordar. Então, poucas semanas depois de ele subir ao trono,

Johann Albrecht conhece a Princesa Dorothea, e exclama: "Ou

esta ou nenhuma!" E o Grão-Ducado tem uma soberana. Vossa

Excelência mencionou as caras de dúvida quando se conhéceu

o valor do dote. . . não comentou o júbilo que também reinava.

#

É verdade, uma princesa pobre. Mas a beleza, tal beleza, é ou

não uma felicidade? A chegada dela foi inesquecível! Foi ama-

da quando seu primeiro sorriso pairou sobre o povo que a

contemplava. Vossa Excelência tem de permitir que eu con-

fesse mais umá vez minha crença no idealismo do povo. O povo

quer ver representada a sua melhor parte, a mais nobre, seu

sonho, quer ver nos Príncipes algo parecido com a própria

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alma. . . não a bolsa de dinheiro. Pois para esse tipo de repre-

sentação existem outras pessoas. . .

- Não existem. Não entre nós.

- Fato lamentável em si. O principal: Dorothea nos deu

~.~m herdeiro do trono. . .

- Ao qual espero que os céus concedam talento para os

números!

Concordo. . .

Assim terminou o diálogo dos dois ministros. Interrom-

~~eu-se, foi interrompido, quando o Ajudante-de-Campo von

t~ichterloh anunciou que o parto terminara de maneira feliz.

Vo salão pequeno, começou um movimecito, todos os cava-

21

! lheiros se reuniram lá de repente. Uma das grandes portas

esculturadas fora aberta de súbito, e o Ajudante-de-Campo apa-

t recera na sala. Tinha a cara vermelha, olhos azuis de soldado,

bigode hirto e muito louro, e galões prateados no colarinho.

i Comovido e um pouco descontrolado como alguém que se li-

t

vrou de um tédio mortal e está eufórico por uma notícia ale-

gre, sentindo que aquele era um momento extraordínário, ele

infringiu brejeiramente as fórmulas e prescrições. Fez uma sau-

dação divertida, puxando o cabo da espada quase até o peito,

com os cotovelos afastados, e exclamando, entusiasmado:

- Peço permissão: um Príncipe!

- A la bonne heure - disse o General Conde Schmet-

tern.

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- Boa notícia, boa, muito boa mesmo! - disse o Ma-

rechal-da-Corte von Bühl zu Bühl, à sua maneira tagarela; vol-

tara à consciência imediatamente.

O Presidente do Conselho da Igreja, Dr. Wislizenus, um

senhor dé rosto liso e belas feições, que, como filho de General

e graças à distinção pessoal chegara muito jovem àquele alto

cargo, trazendo uma condecoração na veste de seda negra, cru-

zou as mãos brancas no peito e disse com bela voz:

_ - Deus abençoe Sua Alteza!

- Capitão - disse o Sr. von Knobelsdorff, sorrindo -,

esquece-se de que, com sua constatação, interfere nos meus di-

reitos e deveres. Antes que eu examine detidamente a situação,

a questão de ser Príncipe ou Princesa não pode ser considerada

decidida. . .

Todos riram, e o Sr. von Lichterloh respondeu:

- As ordens, Excelência! Tenho a honra de o procurar

na mais alta missão. . .

Esse diálogo referia-se à qualidade do Ministro de Es-

tado, de funcionário do registro civil da família dos Grão-Du-

ques, e nessa qualidade ele devia constatar com os próprios

olhos o sexo do bebê real e registrar isso oficialmente. O Sr.

von Knobelsdorff executou essa formalidade na chamada "sala

22

de pentear", onde o recém-nascido fora banhado, mas ficou lá

mais tempo do que ele próprio esperara, perplexo com uma

observação penosa sobre a qual, no começo, não falou com

ninguém, exceto a parteira.

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A Dra. Gnadebusch mostrou-lhe a criança, e seus olhos

de misterioso brilho por trás dos óculos grossos passaram do

Ministro de Estado à criaturinha cor de cobre, que agitava

uma - uma só - mãozinha cegamente como se quisesse per-

guntar: "Está certo assim?" Estava certo, o Sr. von Knobels-

d<,rff ficou satisfeito, e a sábia mulher cobriu novamente a

criança. Mas, mesmo então, continuou a olhar, ora para o Prín-

cipe, ora para o Barão, até conduzir o olhar deste para onde

q~.~eria. As ruguinhas sumiram dos cantos dos olhos dele, que

#

franziu as sobrancelhas, examinou, comparou, apalpou, exami-

n·~u o caso por dois, três minutos, e por fim indagou:

- O Grão-Duque já viu isto?

- Não, Excelência.

- Quando o Grão-Duque vir isto - disse o Sr. von

Knobelsdorff -, diga-lhe que a coisa cresce, com o tempo.

E anunciou aos cavalheiros no andar térreo:

- Um príncipe robusto!

Dez ou 15 minutos depois dele, porém, também o Grão-

Duque fez aquela secreta descoberta - era inevitável, e teve

como conseqüência uma cena breve mas muito penosa para

o General Eschrich; mas, para o Dr. Sammet, resultou numa

conversa com o Grão-Duque que o fez crescer muito no con-

ccito deste último, e mais tarde lhe foi útil na carreira. Em

resumo, foi o que segue.

Durante o pós-parto, Johann Albrecht voltara à biblioteca

c depois ficara algum tempo de mãos dadas com a esposa,

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j unto da cama da parturiente. Depois disso, dirigiu-se à "sala

~le pentear", onde o bebê jazia na caminha alta, de delícados

enfeites dourados, semi-envolta na cortina de seda azul, e sen-

iou-se ao lado do filho numa poltrona que puxara rapidamente.

Mas, enquanto estava ali sentado, contemplando a criança ador-

23

mecida, percebeu o que ainda lhe ocultavam. Afastou mais as

cobertas, ficou sombrio, e então fez tudo o que antes dele já

fizera o Sr. von Knob,elsdorff: encarou uma após outra a Dra.

Gnadebush e a enfermeira, que emudeceram, lançou um olhar

para a porta da alcova e voltou para a biblioteca com passo

nervoso.

Lá, fez soar imedíatamente a sineta de prata, enfeitada

com uma águia que estava sobre a escrivaninha, e, lacônico

e frio, disse ao Sr. von Lichterloh, que entrou tilintando as

esporas:

- Mande vir o Sr. Eschrich.

euando o Grão-Duque ficava zangado com alguém do seu

meio, costumava despir de momento esse indivíduo de todas

as honras e títulos, deixando-lhe umcamente o nome.

O ajudante tilintou novamente as esporas e se afastou.

Johann Albrecht andou um pouco pelo aposento, com forte

ranger dos sapatos e, ao escutar que o Sr. von Lichterloh in-

troduzia na ante-sala aquele a quem mandara vir, tomou pos-

tura de quem dá audiência, junto da escrivaninha.

Parado ali, a cabeça imperiosamente posta de perfil, a

mão esquerda afastando o casaco aberto forrado de cetim e

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revelando o colete branco, firmemente metida no quadril, pa-

recia-se exatamente com o retrato feito pela mão do Professor

von Lindemann, que, servindo de contraparte ao de Dorothea,

pendia sobre a lareira da "Sala dos 12 Meses" no Castelo da

Residência, ao lado do enorme espelho. Os dois retratos eram

amplamente divulgados ao público através de incontáveis re-

produções, fotos e cartões-postais. A diferença era apenas que

Johann Albrecht parecia uma figura heróica naquele retrato,

mas na verdade mal chegava à estatura média. Sua testa era

alta devido à calvície e, debaixo das sobrancelhas grisalhas,

os olhos azuis e baços, rodeados por olheiras, encaravam a

distância com uma altivez fatigada. Ele tinha os zigomas sa-

lientes que eram sinal de sua raça. As suíças e a barbicha sob

o lábio inferior eram grisalhas, o bigode torcido, quase branco.

24

Das asas infladas de seu nariz saliente, mas de curvatura no-

brc, corriam duas rugas singularmente fundas, descendo oblí-

quas até a barba. No decote de seu colete de piquê, luzia a

fita amarelo-limão da Ordem da Constância. O Grão-Duque

traria um raminho de cravos na lapela.

O General-Médico Eschrich entrara com uma longa me-

, sura. Tirara o avental cirúrgico. Sua pálpebra paralisada pen-

dia, mais pesada que habituaimente, por cima do olho. Dava

uma impressão sombria e funesta.

O Grão-Duque, mão esquerda no quadril, jogou a cabeça

para trás, estendeu a mão direita e moveu-a várias vezes no

#

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ar, num gesto breve e impaciente, com a palma para cima.

- Espero uma explicação, uma justificativa, General-

Méclico - disse, com voz trêmula de raiva. - Tenha a bon-

dade de explicar: o que há com o braço da criança?

O médico ergueu os braços levemente - fraco gesto de

impotência e inocência - e disse:

- Permita Vossa Alteza Real. . . um infeliz acaso. Cir-

cunstâncias desfavoráveis durante a gravidez de Sua Alteza

Rea(. . .

- Frases! Frases! - O Grão-Duque estava tão nervoso

que nem desejava uma justificativa; na verdade a impedia. -

Acrcdite, meu senhor, estou fora de mim! Acaso infeliz! O

senl~or tinha o dever de evitar acasos infelizes. . .

O médico ficou ali parado, numa meia mesura, falando

cvli~ voz baixa e humilde, dirigindo-se ao assoalho.

- Peço obedientemente que me permita lembrar que não

sou o único responsável. O Conselheiro Grasanger examinou

Sua Alteza Real. . . uma autoridade em ginecologia. . . Mas nin-

guém pode ser responsabilizado por esse caso. . .

- Nïnguém. . . Ah! Eu me permito responsabilizar o se-

nh<,r... O senhor mesmo admite. . . acompanhou a gravidez,

dirigiu o parto. Apoiei-me nos conhecimentos que correspon-

den~ ao seu posto, General, confiei na sua experiência. Estou

25

i

profundamente decepeionado, profundamente. A conseqüência

da sua escrupulosidade é que. . . nasceu uma criança aleíjada. .

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f

;i ! - Vossa Alteza Real poderia ponderar generosamente. . .

~I

- Eu ponderei! Pesei, e achei leve demais. Obrigado!

O General-Médíco Eschrich afastou-se, recuando em pos-

tura curvada. Na ante-sala, deu de ombros, o rosto bem ver-

melho. O Grão-Duque recomeçou a andar pela "biblioteca"

,

fervendo de sua ira real, injusto, inconsciente e insensato em

sua solidão. Mas, fosse por desejar ofender ainda mais o mé-

dico, ou por estar arrependído de ter se submetído àquela des-

coberta, 10 minutos depois aconteceu o inesperado: o Grão-

Duque mandou vir à sua presença na biblioteca, através do

Sr. von Lichterloh, o jovem Dr. Sammet.

O médiro recebendo a notícia, disse novamente:

- Com muito prazer. . . com muito prazer. . . - e até

corou um pouco, mas depois teve um comportamento excelente.

Não domínava inteiramente a etíqueta, e fez sua mesura

cedo demais, ainda na porta, de modo que o Ajudante não a

pôde fechar às suas costas, e teve de lhe pedir que se adian-

tasse mais; depois, porém, ficou parado ali, de maneíra agra-

dável e à vontade, respondendo satisfatoriamente, embora mos-

trasse o hábito de iniciar as frases de modo um pouco pesado,

hesitante, intercalando-as com "sins" freqüentes, como que

para reforçar o que dizia. Usava o cabelo louro-escuro cor-

tado á escovínha e o bígode pendia, desleíxado. Queixo e

faces estavam escanhoadas e a pele, um pouco irritada com

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isso. Inclinava levemente a cabeça para um lado, e os olhos

cinzentos revelavam inteligência e brandura. O nariz, caindo

demaís sobre o bigode, indicava sua origem. Usava uma gra-

vata preta com o fraque, e as botas lustradas tínham feitio ms-

tico. Com a mão na corrente de prata do relógio, mantinha o

cotovelo junto do corpo. Sua postura expressava honestidade

e objetividade; despertava confiança.

26

O Grão-Duque falou-lhe com cordialidade invulgar, um

p"uco como um professor que ralhou com um mau aluno e

a~;ora se dirige a outro com inesperada brandura.

- Doutor, mandei chamá-lo. . . Desejo informação sua a

respeito desse problema no corpo do Príncipe recém-nascido. . .

I'resumo que tenha percebido... Estou diante de um enig-

ma. . . um enigma extremamente doloroso. . . Em uma palavra,

peço sua opinião. - E, mudando de posição, o Grão-Duque

#

o"ncluiu com um gesto de beleza perfeita, deixando a palavra

ao médico.

O Dr. Sammet encarou-o, tranqüilo e atento, esperando

que o Grão-Duque concluísse toda aquela sua atitude princi-

pesca; depois disse:

- Sim. Trata-se de um caso não muito freqüente, mas

yue nos é bem conhecido e familiar. Sim. No fundo, um caso

de atrofia. . .

- Por favor. . . atrofia. . .

- Perdão, Alteza Real. Quero dizer, raquitismo. . . sim.

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- Muito bem. Raquitismo. Correto. A mão esquerda é

raquítica. Mas isso é inaudito! Não entendo! Nunca aconteceu

coisa parecida em minha família! Ultimamente, fala-se muito

em hereditariedade. . .

O médico voltou a contetnplar, tranqüilo e atento, aquele

l;overnante despreocupado e dominador, a quem acabavam de

i nformar que se andava falando em hereditariedade. . . E res-

l~ondeu com simplicidade:

- Perdão, Alteza Real, mas no presente caso não se

l~ode falar nisso.

- Ah! Não mesmo! - disse o Grão-Duque, um pouco

í rônico. - Interpreto isso como um desagravo de sua parte.

Mas pode me dizer, então, por favor, de que se trata nesse

caso?

- Com prazer, Alteza Real. A deformidade tem causa

puramente mecânica. Sim, foi provocada por uma inibição me-

27

glill,ln u.~ :'; ;'í':'.!,;~.' ~ I

cânica durante a evolução do feto. Chamamos essas deformi-

dades de formação inibida. É isso.

O Grão-Duque escutou com medo e repulsa; temia visi-

velmente o efeito daquela nova expressão na sua sensibilidade.

Í Estava de sobrancelhas umdas, boca aberta; as duas rugas que

entravam na barba pareciam mais fundas ainda. Ele disse:

- Formação inibida. . . Mas como foi possível. . . Não

duvido de que se tenha tido todo o cuidado com a Grã-Du-

quesa. .

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- Formações inibidas - disse o Dr. Sammet - podem

acontecer de vários modos. Mas podemos ter bastante certeza

de que no nosso caso. . . neste caso, a culpa é do âmnio.

- Ora, por favor. . . âmnio?

- Uma das membranas do ovo, Alteza. Sim. Em certas

circunstâncias, essa membrana pode desgrudar-se tardiamente

üò embrião, e issc~ acontece de maneira tão lenta que fibras e

tendões se distendem entre os. . . fios amnióticos, como dize-

mos. Sim, esses fios podem tornar-se perigosos, pois envolvem

membros inteiros da criança, impedindo totalmente a evolução

da mão, até amputá-la. Sim.

- Meu Deus. . . amputar. Então, ainda devo ser grato

por não ter acontecido uma amputação?

- Poderia ter acontecido. Sim. Mas tudo se resumiu

num estrangulamento e, com isso, atrofia.

;

; - E não se podia notar isso, prever, impedir?

Ï - Não, Alteza Real. De modo algum. É absolutamente

! certo que não cabe culpa alguma a quem quer que seja. Essas

inibições agem às ocultas. Somos impotentes diante delas. Sim.

' - E essa deformidade é incurável? A mão vai ficar mir-

rada?

O Dr. Sammet hesitou e fitou o Grão-Duque com bon-

dade.

- Não haverá uma compensação total, isso não - disse

¡ cautelosamente. - Mas a mão deformada também vai se de-

senvolver relativamente, ah sim, isso sim. . .

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- Ela poderá ser usada? Será capaz. . . por exemplo. . .

cle segurar uma rédea ou de gestos que se fazem. . .

- Útil. . . um pouco. . . talvez não muito. Mas temos

ainda a mão direita, que é totalmente sadia.

- Será uma coisa muito visível? - perguntou o Grão-

#

Duque, e examinou, preocupado, o rosto do Dr. Sammet. -

Algo que vai chamar muito a atenção? O senhor acha

que vai prejudicar muito a aparêncía geral?

- Muitas pessoas - respondeu o Dr. Sammet, esqui-

vando-se - vivem e trabalham com graves lesões. Sim.

O Grão-Duque virou-se e caminhou pelo aposento. O Dr.

Sammet recuou respeitosamente até a porta, dando-lhe espaço.

Por fim, o Grão-Duque postou-se novamente junto à escriva-

ninha e disse:

- Agora estou informado, doutor; agradeço suas expli-

, cações. Não há dúvida de que o senhor entende do ofício.

Por que vive aqui em Grimmburg? Por que não trabalha na

Residência?

- Eu aínda sou moço, Alteza Real, e antes de me dedicar

a alguma especialidade na cidade grande desejo ocupar-me em

vários setores da medicina durante alguns anos, e me exerci-

tar de todos os modos. Para isso, uma cidade do interior, como

Grimmburg, oferece as melhores oportunidades. Sim.

- Muito sério, muito respeitável. A que especialidade

pretende dedicar-se mais tarde?

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- Doenças infantis, Alteza Real. Pretendo ser médico

de crianças. Sim.

- O senhor é judeu? - perguntou o Grão-Duque, jo-

gando a cabeça para trás e apertando os olhos. . .

- Sim, Alteza.

- Ah. . . pode responder mais uma pergunta. . . Jamais

considerou sua origem como obstáculo em seu caminho, uma

desvantagem na competição profissional? Pergunto como go-

vernante a quem interessa particularmente a igualdade de con-

dições, não apenas oficial, mas também incondicional e privada.

29

- Todo o mundo tem direito de trabalhar no Grão-Du-

cado - respondeu o Dr. Sammet.

Mas depois disse mais, iniciou com dificuldade, soltou al-

guns sons hesitantes, movendo, de modo desajeitado e apaixo-

nado, seu cotovelo, que parecia uma asinha curta, e acrescen-

tou, com voz abafada, mas interiormente zelosa e compungida:

- Nenhum princípio nivelador, se me posso permitir

esse comentário, jamais poderá impedir que se mantenham na

vida em comum exceções e formas singulares que se distínguem

da norma burguesa de uma forma nobre ou suspeita. O indi-

víduo não deverá indagar sobre a sua posição isòlada, mas ver

a essência dessa distinção e dela extrair um dever extraordiná-

rio. Não estamos em desvantagem em relação à maioria regu-

lar e, por isso mesmo, cômoda, mas temos vantagem sobre ela,

por termos, mais do que ela, motivo para atos extraordinários.

Sim. Sim - repetiu o Dr. Sammet. Era a resposta que ele

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reforçava com aqueles dois "sins".

- Muito bem. . . nada mau, de qualquer modo é notável

- disse o Grão-Duque, ponderando. Pareceu ver nas palavras

do Dr. Sammet um tom familiar, mas também excessivo. Des-

pediu o rapaz com estas palavras: - Caro doutor, meu tempo

é curto. Agradeço por tudo. Esta conversa - deixando de

lado seu triste motivo - me satisfez muito. Terei o prazer

de lhe conceder a Cruz de Albrecht de Terceira Classe, com

a coroa. Vou me lembrar do senhor. Obrigado.

Foi esse o diálogo do médico de Grimmburg corn o Grão-

Duque. Pouco depois, Johann Albrecht deixou o castelo e vol-

tou à Residência num trem extra, principalmente para se mos-

trar à alegre população, e também para dar várias audiências

no castelo principal. Estava decidido que à noite ele voltaria

para o castelo de Grimmburg, e lá residiria nas semanas se-

guintes.

Todos os cavalheiros que tinham ido a Grimmburg para

o parto e não faziam parte do séquito da Grâ-Duquesa tam-

bém foram embarcados no trem subvencionado, num comboio

30

r

extra da linha local, e fizeram parte do trajeto na companhia

direta do monarca. Mas, no caminho do Castelo à estação, o

#

Grão-Duque foi sozinho com o Ministro de Estado von Kno-

belsdorff, num landau aberto, uma carruagem da Corte, pintada

de castanho com a pequena coroa dourada na porta. As plu-

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mas alvas no chapéu do guarda pessoal, à frente, ondulavam

ao vento estival. Johann Albrecht estava sério e calado nessa

viagem, parecia deprimido e amargurado; e embora o Sr. von

Knobelsdorff soubesse que mesmo em contatos íntimos o Grão-

Duque não gostava de ser interpelado sem que antes tivesse

indagado ou convidado a isso, por fim decidiu romper o si-

lêncio.

- Alteza Real - disse, suplicante -, parece aborrecer-

se tanto com a pequena anomalia encontrada no corpo do Prín-

cipe... Mas devíamos pensar que neste dia os motivos de

alegria, orgulho e gratidão superam tanto. . .

- Ora, meu caro Knobelsdorff - respondeu Johann

Albrecht, irritado e quase chorando -, perdoe-me o meu des-

gosto, não vai querer que eu fique cantando. Não vejo motívo

para isso. A Grã-Duquesa está bem . . . muito bem. A criança

é um menino . . . muito bem. Mas nasceu com uma atrofia,

uma inibição no desenvolvimento, causada por fios amnióti-

cos. Ninguém tem culpa, é uma desgraça. Mas as desgraças

das quais ninguém tem culpa são as mais terríveis, e a apa-

rcncia de um Príncipe tem de despertar no povo outras emo-

ções que não a piedade. O Grão-Duque herdeiro é delicado,

receamos constantemente por sua saúde. Foi um milagre que

há dois anos ele superasse a pleurisia, e será um milagre se

chegar à idade adulta. Agora, o Céu me dá outro filho -

parece forte, mas nasce com uma só mão. A outra é aleijada,

inútil, uma deformidade, ele a terá de esconder. Que proble-

ma! Que obstáculo! Terá de enfrentar o mundo constantemen-

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tc. As poucos teremos de divulgar isso, para que não choque

clemais as pessoas na primeira aparição pública. Não, não con-

sigo aceitar. Um Príncipe com uma só mão. . .

31

- Uma só mão. . . - disse o Sr. von Knobelsdorff .

- Vossa Alteza Real repete essa expressão intencionalmente?

- Intencionalmente?

- Como não? .-. . O Príncipe tem duas mãos, só que

uma delas é deformada, portanto, querendo-se, pode-se dizer

que é um Príncipe com uma só mão.

- E daí?

- Quase se desejaria que não fosse o vosso segundo

filho a ter esse pequeno defeito, e sim o que nasceu sob a

coroa.

- O que está dizendo?

- Vossa Alteza Real vai rir de mim, mas estou pensando

na cigana.

- Cigana? Estou sendo paciente, caro Barão!

- Cigana . . . perdoe! . . . que há 100 anos previu, se-

gundo conta a tradição, um Príncipe "com uma só mão", e

que ligou o nascimento desse Príncipe a determinada e sin-

gular maldição.

O Grão-Duque virou-se no assento e, mudo, fitou os olhos

do Sr. von Knobelsdorff, em cujos cantos externos se moviam

aquelas ruguinhas em forma de raios.

- Muito agradável esta conversa! - disse, e endireitou-

se outra vez.

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- Profecias - continuou o Sr. von Knobelsdorff - cos-

tumam cumprir-se porque surgem circunstâncias que, com algu-

ma boa vontade, se podem interpretar com relação a elas. E

exatamente pela grande abrangência de qualquer profecia, isso

fica muito facilitado. "Com uma só mão" é bem no bom estilo

dos oráculos. A realidade nos traz um caso moderado de atro-

fia. Mas, fazendo isso, faz muito, pois quem me impede, quem

impedirá o povo de tomar isso como sinal e considerar cum-

prida a parte mais explícita da profecia? O povo fará isso, no

máximo quando se cumprir de alguma forma o resto, a verda-

deira maldição. Então, haverão de ligar as coisas e tirar suas

conclusões, como sempre fazem, apenas para ver cumprido O

32

#

que está escrito. Não vejo com clareza - o Príncipe é o se-

gun~io filho, não vai governar, as intençôes do destino são obs-

cur;n;. Mas o Príncipe maneta existe agora - que nos dê o

que puder dar.

O Grão-Duque ficou calado, intimamente entregue a deva-

nei"; sobre sua dinastia.

- Bem, Knobelsdorff, não ficarei zangado com você. Pre-

ten~lc me consolar e não está se saindo mal. Mas estão nos

espr:~ando.

No ar reboava uma distante gritaria de muitas vozes. O

pov~ ~ de Grimmburg acotovelava-se na estação, atrás do cor-

dão de isolamento. Pessoas graduadas aguardavam diante da

mul ~ idão. Notava-se o Prefeito, erguendo a cartola, limpando

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a te~ta com um lenço colorido, e levando aos olhos um bilhete

cujo conteúdo decorava. Johann Albrecht assumiu a expressão

com que receberia e responderia, laconicamente, o discurso sim-

ples: "Meu caro Sr. Prefeito. . ." A cidadezinha estava emban-

deirada; os sinos tocavam.

Soavam todos os sinos da capital. E à noite tudo ficou

festivamente iluminado, sem que o magistrado o pedisse; es-

pontaneamente, havia uma grande iluminação em todos os bair-

ros da cidade.

33

O PAfS

O país media 8 mil quilômetros quadrados e tinha 1 milhão

de habitantes.

Um país bonito, calmo e sossegado. As copas de suas flo-

rcstas farfalhavam, sonhadoras; os campos cultivados se es-

pr:aavam, bem-cuidados; sua indústria era mínima.

Havia olarias, alguma mineração de sal e prata . . . quase

só isso. Ainda se podia falar de uma indústria hoteleira, mas

scria demais dizer que era muito ativa. As fontes curativas alca-

linus que brotavam do solo pertinho da capital, formando O

ccntro de alegres balneários, transformavam a Residência numa

estação de águas. Mas os banhos, visitados por pessoas vindas

clc longe durante o fim da Idade Média, mais tarde perderam

a f ama, superados por outros lugares, e acabaram esquecidos.

A mais substancial de suas fontes, chamada Fonte Ditlinde, es-

pe~~ialmente rica em sais de lítio, só fora aberta recentemente,

sol~ o reinado de Johann Albrecht III. E como não houvesse

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nrna exploração séria, contínua e chamativa, ainda não se con-

-! sc:=uira fazer com que essas águas fossem respeitadas no mundo.

F?nviavam-se 100 mil frascos por ano, talvez menos que isso.

N;io eram muitos os estrangeiros que vinham bebê-la no pró-

prio local..

Anualmente, falava-se na Assembléia dos resultados fi-

.

n.mceiramente "pouco favoráveis" das vias de transporte, ex-

35

pressão que ocultava resultados absolutamente negativos, cons-

tatando-se que os bondes não davam lucro e os trens não ren-

diam coisa alguma - fatos entristecedores, mas inevitáveis e já

consolidados, que o Ministro dos Transportes procurava expli-

car com exposições lúcidas mas repetitivas sobre as condíções

comerciais e industriaís do país, muito estagnadas, e a insufi-

ciência das minas de carvão. Críticos habituais acrescentavam

a ísso a precária administração dos meios de transporte esta-

tais. Mas não se notava forte rejeição nem oposição na Assem-

bléia. Uma lealdade cordial, e meio pasmada, preponderáva

entre os representantes do povo.

Portanto, o lucro da ferrovia não estava em primeíro lugar

na lista de ganhos estatais de natureza privada do país; em

primeiro lugar ficava o arrendamento das florestas e campos

lavrados. Por que essa renda também tinha caído assustado-

ramente, era algo difícil de justificar, mas havia muitas razões.

O povo amava sua floresta. Era uma raça loura e robus-

ta, de olhos azuis pensativos e zigomas salientes, um pouco

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alta demais, uma gente meditativa e pacífica, saudável e atra-

sada. Toda a força de sua alma se ligava à floresta, a floresta

vivia em seu corpo, era origem e pátria dos artístas, que não

#

Ihe deviam apenas dons espirituais e intelectuais. Os pobres

colhiam na floresta, de graça, a lenha que os aquecía. Anda-

vam curvados, colhendo toda sorte de cogumelos e frtxtos entre

os troncos, para ganharem algum dinheiro. Não era tudo. O

povo reconhecia que sua floresta era o melhor fator possível

de saúde e bom clíma no país. Sabia muito bem que, sem a

magnífíca floresta ao redor da Residência, o Jardim das Fontes

jamais se teria enchido de estrangeiros pagantes. Em suma,

aquele povo não muito índustrioso nem progressista tínha tido

a necessidade de entender que a floresta era a mais importante

vantagem, e em todos os sentidos a mais rendosa propriedade

do pais.

Mesmo assím, vinham pecando contra a floresta, há anos,

há gerações. A administração florestal do Grão-Ducado me-

36

recia as piores censuras. Essa repartição falhava no reconhe-

cimento político de que a floresta tinha de ser mantida e

cuidada como bem comum inalienável, pois não devia servir

apenas para a geração presente, mas também às gerações fu-

turas, e que haveria de se vingar se, esquecendo o futuro, a

explorassem agora de maneira desmedída e imprevidente.

Isso acontecera e ainda acontecia. Primeiro, tinham es-

gotado grandes parcelas clo solo da floresta roubando-lhe, de

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maneira exagerada e não-planejada, o seu adubo. Haviam che-

gado ao ponto de não apenas colherem ali a camada de

agulhas e folhagens recém-caídas, mas a maior parte do resíduo

de muitos anos, um pouco para usar como forragem, um pouco

como humo, empregando tudo na agricultura. Havia muitas

matas totalmente privadas dos frutos da terra; algumas esta-

vam mutiladas pelos ancinhos; via-se isso nas zonas de flores-

ra particulares e públicas.

Embora se tivessem executado esses trabalhos para auxi-

liar uma agricultura momentaneamente precária, não havia bem

como os justificar e desculpar. Mas; embora houvesse vozes

declarando que uma agricultura fundada na exploração de flo-

restas era desaconselhável, até perigosa, comercializava-se a

forragem retirada da floresta também sem motivo especial, por

puras razões fiscais, como diziam; portanto, motivos que, en-

rarados objetivamente, eram um scí: dinheíro. Pois era dinhei-

ro o que faltava. Para ganhar algum, porém, reduzia-se cons-

cantemente o capital, até chegar o d~a em que se reconheceu,

com susto, que esse capital sofrera uma desvalorização nunca

~onhada.

Eram um povo de camponeses e, num zelo errado, arti-

f icial e desmedido, imaginavam ter de ser modernos e mani-

iestar um espírito comercial insensato. Notável era o comér-

~io leiteiro... é preciso falar um pouco a respeito. As pes-

~oas queixavam-se, nos relatórios médicos oficiais, produzidos

.mualmente, de que o estado nutricional era dos piores, e se

~bservava também uma redução no desenvolvimento da popu-

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lação rural. Que acontecera? Os proprietários de gado estavam

decidídos a usar todo o leite disponível para ganhar dinheiro. A

aplicação comercial do leite, a modernização e lucratívidade da

ordenha, levava-os a reduzir as necessidades domésticas do pro-

duto. O substancioso alimento que era o leite tornava-se raro no

campo. Em seu lugar, aumentava o consumo de leite magro

e pobre, ou de substitutos menos valiosos, gorduras vegetais e,

infelizmente, também bebidas alcoólicas. Os críticos mais fe-

rozes falavam de subalimentação, sim, até de enfraquecimento

físico e moral da população; trouxeram os fatos diante da

Câmara, e o Governo prometeu dedicar toda a atenção ao

caso.

Mas era evidente que o Governo, no fundo, estava

animado do mesmo espírito dos iludidos pecuaristas. Na flo-

resta do Estado, continuavam as devastações, as árvores cor-

tadas não podiam ser substituídas, e tudo representava uma

; progressiva redução da propriedade pública. Talvez eventual-

mente os cortes fossem necessários, quando havia parasitas na

floresta, mas muitas vezes eram causados apenas pelos já

#

mencionados motivos fiscais. Em vez de usar o dinheiro

para comprar mais terras com florestas; em vez de reflo-

, restar o mais depressa possível os terrenos desmatados; em

;' vez de, numa palavra, recompensar os prejuízos do valor de

capital da floresta, usara-se o dinheiro sonante para cobrir os

gastos constantes e saldar dívidas já vencidas. Parecia correto

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que se desejasse reduzir as dívidas públicas; mas os críticos

diziam que os tempos não eram para isso, e que não se deviam

usar ganhos extraordinários para saldar dívidas.

Quem não tivesse interesse em embelezar a coisa, tinha

de admitir a bancarrota das finanças do Estado. O país tinha 600

mílhões em dívidas - carregava. esse ônus com paciência

e espírito de sacrifício, mas intimamente suspirava. Pois a car-

ga, em si já pesada demais, era multiplicada pelo aumento dos

juros, e as condições de pagamento de dívidas que se prescre-

vem para um país com o crédito abalado, cujas obrigações estão

38

muito, muito mal valorizadas, e que no mundo dos financia-

:lores quase se arrola entre os países "interessantes".

A seqüência de maus períodos nas fínanças era impre-

visível. A era dos déficits parecia não ter começo nem fim.

t~ uma má administração, que em nada melhorava pela cons-

rante troca de pessoal, via nos empréstimos a única cura para

u insidioso mal. O Ministro das Finanças von Schroder, cujo

caráter reto e nobres intenções eram indubitáveis, recebeu do

Grão-Duque o título de nobreza por ter sabido conseguir um

novo empréstimo, com altos juros, num momento muito grave.

Ele pretendia honestamente uma elevação do crédito estatal;

mas, como não soubesse o que fazer além de novas dívidas

para saldar as velhas, sua postura acabava sendo uma farsa,

bem-intencionada, mas muito cara. Pois com a simultânea com-

pra e venda de promissórias pagava-se preço mais alto do que

se recebia, e assim se perdiam milhões.

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Era como se aquele povo não fosse capaz de produzir,

em seu meio, um financísta mais bem-dotado. Práticas escan-

dalosas e precárias tentativas de disfarce estavam sendo exe-

cutadas de momento. Na organização do orçamento, já não se

distinguiam as necessidades comuns do Estado das necessida-

des extraordinárias. Dotavam-se verbas extraordinárias além

das ordinárias, e assim todos se enganavam, a si próprios e ao

mundo, quanto ao verdadeiro estado de coisas, usando em-

préstimos aparentemente obtidos para fins extraordinários na

cobertura de um déficit habitual. . . Por algum tempo, na ver-

dade, o cargo de Ministro foi ocupado por um ex-Marechal-

da-Corte.

O Dr. Krippenreuther assumíu as rédeas no final do Go-

verno de Johann Albrecht III. O Ministro, que, como o Sr.

von Schroder, estava convencido da necessidade de se paga-

rem as dívidas rapidamente, impôs ao Parlamento uma última

e extrema pressão fiscal. Mas o país, por natureza mau con-

tribuinte, estava nos limites de sua capacidade, e Krippenreu-

ther era cada vez mais odiado. O que ele fazia não era senão

39

transferir os bens de uma mão para outra, ainda por cima com

prejuízo; pois, com a elevação dos impostos, onerava-se a eco-

nomia do país com uma carga excessiva, e mais direta do que

aquela do pagamento das dívidas . . .

Onde, então, encontrar ajuda e remédio? Parecia neces-

sário um milagre e, até ele acontecer, a mais amarga poupan-

ça. O povo era devoto, leal, e amava seus príncipes como a

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si mesmo; estava imbuído da idéia da monarquia, via nela um

desígnio de Deus. Mas a opressão econômica era dura demais,

era demasiado óbvia. Mesmo os mais ignorantes viam a dolo-

rosa linguagem falada pelo estado das florestas, mutiladas e

desmatadas. E por isso a Assembléia era forçada a insistir, re-

petidamente, na necessidade de reduzir as contribuições da

população para a Coroa, e dos apanágios desta.

A contribuição civil dava meio milhão, as rendas do que

restava das propriedades reais davam 750 mil marcos. Era só.

A Corte estava endividada - talvez o Conde Trümmerhauff

#

soubesse quanto. O administrador financeiro do Grão-Ducado

era homem aristocrático, mas não tinha qualquer talento para

a economia. Johann Albrecht não sabia disso, ou parecia não

saber, exatamente como seus antecessores, que raramente con-

cediam às suas dívidas mais que uma breve atenção superficial.

A postura respeitosa do povo era correspondida, do lado

da Corte, por um extraordínário senso de nobreza de seus

Príncipes, que assumia às vezes formas românticas, até exage-

radas, manifestadas concretamente em todos os tempos numa

tendência despropositada à pompa e ao luxo que evidencíavam

sobremaneira essa nobreza. Urrc grimmburguense até recebera

o' apelido de "Opulento" - mas quase todos o teriam mere-

cido. Assim, o endividamento da Casa era um endividamento

histórico e tradicional, que remontava aos tempos em que todos

os empréstimos eram umcamente dos cuidados dos soberanos,

e Johann, o Violento, para receber seus empréstimos, hipote-

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cara a liberdade de súditos respeitáveis.

40

Isso, porém, acabara; e Johann Albrecht III, com os ím-

pe~os de um legítimo grimmburguense, não estava mais em situa-

çá" de dar livre vazão a esses instintos. Seus antecessores ti-

nham sacrificado a fortuna da família, ela estava a zero ou

qr~ase isso. Fora-se na construção de castelos de diversão com

n<nnes franceses e colunas de mármore, parques com chafarizes,

' uma Õpera pomposa, e toda sorte de ostentação. Era preciso

calcular, e, contrariando fortemente a tendência do Grão-Du-

q~.m, até sem sua ajuda, aos poucos a postura da Corte se fora

tornando mais humilde.

Na Residência, falava-se em tom comovido sobre a vida

da Princesa Katharina, irmã do Grão-Duque. Fora casada com

um parente, regente de país vizinho, enviuvara, voltara à capi-

tal do país do irmão e morava com seus filhos ruivos no antigo

palacio dos Grão-Duques, na Albrechtsstrasse, diante de cujo

portal havia diariamente um gigantesco guarda com bastão e

couraça, numa postura arrogante. Mas no interior do palácio a

vida transcorria com muito comedimento...

O Príncipe Lambert, irmão do Grão-Duque, tinha um

; papel de pouca relevância. Estava brigado com os irmãos, que

não lhe perdoavam o mau casamento, e quase não aparecia na

Corte. Com sua esposa, que ~outrora dançara no palco do Tea-

tro da Corte e, segundo o nome de uma propriedade do Prín-

cipe, recebera o título de Baronesa von Rohrdorf, ele morava

em sua villa no Parque Municipal. O magro desportista e fre-

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qücntador de teatros assumia suas dívidas. Renunciara à apa-

rência de realeza, aparecia umcamente como indivíduo e,

qi.i.mdo se dizia que sua família vivia precariamente, isso não

ca~.~sava espécie.

Mas no Castelo Velho tinham ocorrido modificações, li-

mitações, que se comentavam na cidade e no campo, em tom

dolc.~rido e comovido, pois no fundo o povo queria ver-se re-

presentado de maneira altiva e magnificente. Por causa da eco-

nomia, tinham-se reduzido vários cargos da Corte a um só, e

há muitos anos o Sr. von Bühl zu Bühl era Marechal-da-Corte,

41

Mestre-de-Cerímônias e Marechal-da-Casa. Muitas pessoas ha-

viam sido demitidas do serviço da Corte, entre furriéis, cara-

coineiros, cavalariços, cozinheiros e mestres-confeiteiros, lacaios

aa Câmara Real e lacaios da Corte. Os efetivos das cavalari-

ças tinham-se reduzido ao essencial. Que representava isso?

I

O desprezo do Grão-Duque pelo dinheiro manifestava-se em

bruscas explosões, diante dessa pressão. E enquanto o serviço

, das cerimónias palacianas chegava aos limites máximos da sim-

plicidade permitida, enquanto no fim dos concertos das quin-

A

tas-feíras no Salão de Mármore se servia no jantar apenas ros-

1

bife com molho remolado e sorvete, em toalhas de veludo ver-

melho sobre mesinhas douradas, enquanto na mesa particular

i. do Grão-Duque, com seus opulentos castiçais, se comia diaria-

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#

mente como numa famílía de classe média, ele punha fora,

desafiadoramente, a renda de um ano para a remodelação de

i' Grimmburg.

E enquanto isso seus demais castelos se transformavam

em ruínas. O Sr. von Bühl simplesmente não dispunha dos

meios necessários para evitar que se deteríorassem. Mas era

I uma pena, para muitos daqueles castelos. Os que ficavam mais

distantes da Resídência, e lá fora, no campo, refúgios delicados

e luxuosos, embutidos na belíssima natureza, cujos nomes co-

quetes indicavam sossego, solidão, prazer, diversão e despreo-

c,apação, ou designavam uma flor ou jóia, eram locais de ex-

cursão para os moradares da Residência e os estranhos, e o

preço do ingresso fornecia alguma reserva que - nem sempre

- era empregada na sua conservação. Mas com os que fica-

vam perto da capital não acontecia isso. Havia o castelinho

~,i em estilo império chamado Eremitage, tão silencioso e severo,

na parte norte da cidade, há muito desabitado e negligenciado

no meio de seu parque selvagem que se fundia com o Parque

Municipal e contemplava seu pequeno lago hirto de lama. Ha-

via o Castelo dos Delfins, que, a apenas 15 mínutos dali,

na parte norte do Parque Munícipal, que outrora perten-

cera totalmente à Coroa, espelhava seu desmazelo num gigan-

42

tc.~~ co chafariz quadrado: os dois castelos estavam em estade>

lamentável. Todos os apreciadores da bela arquitetura lamen-

cavam que logo os Delfins, essa construção nobre, em estilo

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barroco, com as aristocráticas colunas do portal, as altas jane-

las divididas em pequenas vidraças de caixilhos brancos, os

caramanchões de ferro batido, os bustos romanos em nichos,

a csplêndida escadaria, toda a sua pompa, estivesse, ao que pa-

rccia para sempre, entregue à ruína. E quando um dia, por

circunst"ancias imprevistas e até aventurescas, voltou à juventude

e as honrarias, causou alegria geral naqueles meios . . . Do Cas-

telo dos Delfins chegava-se em 15 ou 20 minutos ao Jardim

das Fontes, que ficava um pouco a nordeste da cidade e se

lig:.ma ao centro desta por uma linha direta de bondes.

Apenas o Castelo Hollerbrunn, residência de verão, um

hloco de edifícios brancos com telhados chineses, além das co-

linas que rodeavam a cidade, era usado pela família ducal;

ficava em local fresco e agradável, junto do rio, famoso pelos

arhustos de lilases do seu parque; havia também o Castelo de

Caça, totalmente envolto em hera, no meio das florestas do

lacl" oeste; e por fím o próprio castc·lo da cidade, chamado

"C:astelo Velho", embora não houvesse: um novo.

Chamava-se assim sem comparaçao com qualquer outro,

apenas por sua velhice, e os críticos achavam que sua renova-

çãc, seria mais necessária que a de Grimmburg. Até dentro dos

aposentos tudo estava desbotado e puído, mesmo os cômodos

que serviam para recepções e para moradia da família, sem falar

nos muitos aposentos desabitados e sem uso que ficavam nas

partes mais antigas dessa múltipla construção, nos quais nada

havia senão sombras e sujeira de moscas. Há algum tempo se

prc~ibira a entrada do público - medida que obviamente se

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devia ao estado lamentável do castelo. Mas as pessoas que

nele entravam, fornecedores e criados, contavam que havia mus-

go am mais de um daqueles móveis hirtos e altivos.

Junto com a igreja da Corte, o castelo formava um com-

ple·<o cinzento, irregular e confuso; com torres, galerias e por-

43

tais, meio fortaleza, meio castelo de luxo. Diversas gerações

tinham trabalhado na sua construção, e grandes partes estavam

arruinadas, deterioradas, estragadas, começando a desmoronar.

O Castelo caía abruptamente sobre a parte oeste, mais baixa, da

cidade, e de lá era atingido por degraus precários, sustentados

por ferro enferrujado. Mas o portal principal, enorme e vigiado

por leões agachados, voltava-se para a Praça Albrecht, e nas

cabeças dos animais se lia, esculpido mas quase ilegível agora,

o lema devoto e desafiador: "Turris fortissima nomen Domi-

ni. " - Ali havia a sentinela e a guarita, a troca de guarda, o

rufar de tambores, o desfile, e meninos de rua correndo para

#

olhar . . .

O Castelo Velho tinha três pátios, em cujos cantos se

erguiam belas torres com escadarias, e entre cujas lajes de

basalto, em geral, brotava inço demais. Mas no meio de um

pátio ficava a roseira - estava ali desde sempre, num cantei-

ro, embora não houvesse jardim no lugar. Era uma roseira como

outras, um dos porteiros cuidava dela, que dormia na neve,

recebia chuva e sol, e, chegando a época, dava rosas. Eram rosas

extraordinariamente lindas, de forma aristoc~ática, com pétalas

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vermelho-escuras e aveludadas, que davam prazer a quem olha-

va, verdadeiras obras de arte da natureza. Mas as rosas tinham

uma qualidade estranha e sinistra: não eram perfumadas. Ou

melhor, tinham aroma, sim, mas, por motivos desconhecidos,

não era aroma de rosas, mas cheiro de mofo - um leve mas

nítido cheiro de mofo. Todos sabiam disso, estava no guia de

viágens, os estranhos vinham ao pátio do Castelo para se con-

vencerem disso com o próprio nariz. Havia um boato popular

de que em algum lugar estava escrito que um dia, um dia de

alegria e felicidade geral, as flores da roseira começariam a ter

perfume natural e doce.

Mas era compreensível, e inevitável, que a imaginação

do povo fosse instigada por aquela roseira singular. Como O

*

~~r:: pela "Sala das Corujas", no Castelo Velho, que diziam ser

c:~o.~ara de torturas. Ficava em local totalmente inofensivo, perto

~la:, "Belas Salas" e da "Sala dos Cavaleíros", onde os senho-

r~~ da Corte costumavam reunir-se para grandes debates -

}~`,vtanto, numa parte relativamente nova da construção. Mas

cli: iam que ali dentro havia coisa, poís por vezes se ouviam

r~:=nores e movimentos que não se escutavam lá fora, de origem

~l;~;conhecida. Juravam que era coisa de fantasmas, e muítos

:~; i:~mavam que isso acontecia principalmente em ocasiões im-

~r~,;-tantes e decisivas para a família ducal - boato não-com-

E~r. wado, que naturalmente não se devía levar mais a sério do

.p ~ a tantas outras criações populares de tendências histórica

u `.linástica, como por exemplo certa profecia obscura, de mais

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~ic 100 anos, que se pode mencíonar neste contexto. Vinha de

~ m ~a velha cigana, e dizia que o país teria grande felicidade

;n ~ avés de um príncipe "com uma só mão". A mulher desgre-

nhada dissera:

- Ele vai dar mais ao país com uma só mão do que outros

c":ri duas.

Assim dizia a lenda, e eventualmente falavam nela. Mas ao

rraor do Castelo Velho ficava a Residência, constando de Ci-

~iade Velha e Cidade Nova, com seus edifícios públicos, monu-

nmtos, fontes e dependências, ruas e praças com nomes de

príncipes, artistas e homens públícos de mérito ou cidadãos des-

ta~ados, dividida em duas metades muito desiguais pelo rio

~lu várias pontes, que rodeava num grande laço a extremidade

sul do Parque Municipal, perdendo-se entre as colinas ao re-

cl"r . . . Era uma cidade umversitária, tinha uma escola supe-

rior, não muito freqüentada, na qual havia uma vida intelec-

t ~ ~ al modesta e um pouco antiquada. Apenas o professor de

`'~1 atemática, Conselheiro Klinghammer, gozava de grande fama

~r~ mundo das ciências. . . O Teatro da Corte, embora com pou-

~~ ~ ussimas doações, apresentava espetáçulos decentes . . . Havia

u m pouco de vida musical, literária e artística . . . Alguns es-

c ranhos chegavam, desejosos de participar daquela vida tão co-

45

medida e das dádívas intelectuais da Resídência, entre eles en-

fermos abastados que moravam o tempo todo nas mansões ao

redor do Jardim das Fontes, honrados pela comunidade e pelo

Estado comõ bons pagadores de impostos . . .

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Essa era a cidade; esse era o país. Essa era a situação.

46

O SAPATEIRO HINNERKE

( ) segundo filho do Grão-Duque apareceu em público pela

primeira vez ao ser batizado. A festa despertou no país todo

~u,uele interesse que se costumava ter pelos acontecimentos da

m>bre família. Aconteceu depois de se ter comentado e lido

#

scmanas a fio sobre sua organização, foi celebrada na igreja da

(~orte pelo Presidente do Conselho da Igreja, D. Wislizenus,

c"m toda cerimônia, e foi pública, na medida em que o Mare- ,

cl-~al-da-Corte enviou convites a todas as classes da sociedade,

~,or ordem superior.

O Sr. von Bühl zu Bühl, ritualista da Corte, de grande

zulo e prudência, vigiava toda a complicada cerimônia, vestindo

~.miforme de gala e ajudado por dois mestres-de-cerimônias: a

r~~união dos convidados reais nas "Belas Salas", a procissão

solene na qual, levados por pajens e camareiros, eles entraram

na igreja, atravessando a Escada de Heinrich, o Opulento, e uma

~~assagem coberta, a chegada do público até perto dessas altas

~~ersonalidades, a distribuição dos lugares, o respeito a todos

"s costumes durante o ritual religioso, a seqüência e hierarquia

clas congratulações que aconteceriam logo após o fim do culto

r~ligioso . . . Ele respirava aos arrancos, caminhava buliçoso,

crguia o bastão, sorria apaixonadamente e fazia mesuras dando

E~assos para trás.

47

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A igreia da Corie estava ~leeorada com folhagens e panos.

Além de representantes da nobreza da Corte e do país, e de

funcionários mais ou menos graduados, os bancos estavam re-

pletos de comerciantes, camponeses e simples artesãos como-

vidos. Diante do altar, porém, sentavam-se em semicírculo

sobre poltronas de veludo rubro os parentes do batizando, com

altezas estrangeiras como padrinhos, e representantes dos que

não tinham podido ir pessoalmente. Há seis anos, no batizado

do Grão-Duque herdeiro, o grupo não'~dra menos brilhante

do que esse. Pois com a fragilidade de Albrecht, a idade avan-

çada do Grão-Duque e a falta de parentes consangüíneos de

Grimmburg, a pessoa do segundo prí~~,'~,pe era importante para

a manutenção da dinastia no futuro... O pequeno Albrecht

não participava da solenidade; estava acamado com algum mal-

estar que, segundo o General-Médico Eschrich, era de fundo

nervoso.

D. Wislizenus fez o sermão sobre um texto indicado pelo

próprio Grão-Duque. O Mensageiro,.jornal citadino sensaciona-

lista, contara exatamente como certo dia o Grão-Duque" étn

pessoa tirara da sala de livros, raramente freqüentada, a ~enár-

.

me Bíblia da família, com enfeites de metal, trancando-sevçpm

ela num escritório, onde procurara durante uma hora, e por

fim marcara com lápis numa folha de papel a passage ~ '`' e-

,

jada, assinando "Johann Albrecht" e enviando t '

gador da Corte. D. Wislizenus tratou o tema de m~ ' `a ~ ' o-

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cionada e quase musical. Fez muitos rodeíos, aprés~ntou o as-

sunto sob vários ângulos, esgotou-o em suas analog~ias; pronun-

,

ciou o sermão com toda a força do seu peito, a voz víbrante

e se no começo de sua obra de arte o tema, pronunciado em

voz baixa e pensativa, parecera fraco, quase incorpóreo, no

fim, quando foi apresentado pela última vez à multidão, com

rica orquestração, pareceu cheio de significado e profundidade.

Depois, o pregador passou ao ato do batizado em si, acentuando

cada detalhe.

48

Nesse dia, pois, o Príncipe foi apresentado oficialmente

pela primeira vez, e sua importância nesse ato se manifestou

já na fato de chegar ao palco em ultimo lugar, distanciado de

todos os demais. Foi chegando lentamente, precedido pelo Sr.

von Bühl, nos braços da dama da Corte, Baronesa de Schulen-

bur~;-Tressen, e todos os olhos se dirigiram para ele. O menino

dormia entre rendas, laços e seda branca. Uma de suas mãozi-

nhas estava casualmente tapada. Todos se alegraram, se como-

veram e gostaram imensamente dele. Centro de todas as aten-

ções, ele se portou com calma e indiferença, e, como era natu-

ral, ,ainda com toda a paciência. Seu mérito era não perturbar,

não interferir, não resistir, mas, provavelmente por tendência

inata, entregar-se tranqüilamente às formalidades que se reali-

#

zavam ao seu redor, que o carregavam e, naquele dia, ainda o

elevavam sem qualquer esforço pessoal: . .

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Em determinados momentos da cerimônia, mudava mui-

tas vezes de posição nos braços que o levavam. A Baronesa

von Schulenburg passou-o com uma mesura à sua tia Katha-

rina, de expressão severa, vestido de seda lilás reformado e

jóias reais no cabelo. Ao chegar o momento, ela o depositou

solenemente nos braços da mãe, Dorothea, que, alta e bela,

con, um sorriso de sua boca altiva e adorável, o ofereceu por

certo tempo às bênçãos e depois o passou adiante. Por alguns

mirn~tos, uma prima o segurou, uma menina de 11 ou 12 anos,

de cachos dourados e perninhas finas, bracinhos nus arrepia-

dos de frio e larga faixa de seda vermelha na cintura, formando

atrás um imenso laço que se destacava do vestidinho branco.

Seu rostinho pontudo voltava-se, assustado, para o mestre-de-

cerirnônias . . .

O Príncipe acordou por algum tempo; mas as chamas

bruauleantes das velas do altar e uma coluna colorida de poei-

ra varada de sol o ofuscaram tanto que ele cerrou novamente

os ~lhos. E como não houvesse pensamentos em sua cabeça,

apenas doces sonhos informes, e como de momento não sen-

tisse dor alguma, voltou a dormir imediatamente.

49

Recebeu uma porção de nomes enquanto dormia; mas os

principais eram Klaus Heinrich.

E dormia ainda em sua caminha de grades de ouro e cor-

tina de seda azul enquanto, em sua honra, a família comia na

Sala de Mármore, e os outros convidados, na Sala dos Cava-

leiros.

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Os jomais comentaram seu primeíro aparecimento; descre-

veram-lhe a aparência e a roupa, constataram que se portara

de maneira realmente principesca, e vestiram sua comovente

e nobre aparição de palavras por ela provocadas. Depois disso,

a opinião pública pouco soube dele, e ele nada soube dela.

Ele ainda não sabia nada, não entendia nada, nada adi-

vinhava da dificuldade, do perigo e da severidade da vida que

lhe fora destinada; suas manifestações vitais não deixavam

transparecer que se sentisse de qualquer maneira diferente da

multidáo comum. Sua pequena existência era um sonho des-

preocupado, cuidadosamente dirigido de fora, desenrolando-se

num palco difícil de divisar claramente; e esse cenário era po-

voado de fenômenos coloridos e abundantes, de constatações e

ações, momentâneos ou permanentes.

Entre os permanentes estavam os pais, distantes e não

muito nítidos. Eram os pais dele, isso era certo, e eram nobres

e amáveis. Quando se aproximavam, havia a impressão de que

todo o resto recuava para os dois lados, abrindo uma passa-

gem respeitosa pela qual vinham ao encontro dele para, por

um momento, lhe manifestarem sua ternura . . . Mais próximas

e nítidas eram duas mulheres de toucados e aventais brancos,

duas criaturas aparentemente perfeitas, boas, limpas e afetuosas,

que cuidavam de todos os modos do seu pequeno corpo e o

acalmavam quando chorava . . . Albrecht, seu irmão, também

participava da sua vida; mas era sério, reservado e muito ma-

duro.

Quando Klaus Heinrich fez dois anos, houve outro nasci-

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mento em CTrimmburg, e foi o de uma Princesa. Recebeu a

distinção de 36 tiros porque era do sexo feminino, e no bati-

50

12

l.

não chorava nunca. Empurrava um pouco para fora o lábio

inEerior, curto e redondo, sugando de Ieve no superior - nada

1

n,ais. Era muíto aristocrâtico. A madame da Suíça sempre o

aoresentava como modelo de etiqueta. Ele jamais se tería me-

tido em conversas com aqueles homens do Castelo, tão linda-

mente vestidos, que não eram homens, nem pessoas, mas ape-

nas lacaios, como Klaus Heinrich algumas vezes fazia quando

não o vigiavam. Pois Albrecht não era curioso. Seus olhos eram

solitáríos e não tínha desejos de contato com o mundo. Klaus

I leinrich, ao contrário, tagarelava com os lacaios por causa desse

desejo e de um anseio urgente, embora talvez perigoso e ina-

tequado, de deixar seu coração ser tocado por aquílo que fi-�

c-dva além das fronteiras. Mas os lacaios, moços e jovens, nas

aortas, corredores e salas de passagem, com suas polainas cor�

ie areia e fraques marrons, nos quaís, em listras douradas, se�

repetia muitas vezes a pequena coroa da porta da carruagem

- esses firmavam os joelhos quando Klaus Heinrich lhes diri-

r;ia a palavra, punham as mãos nas costuras de suas grossas

calças de veludo, inclinavam-se um pouco para ele, fazendo

oambolear os galardões de seus ombros, dando respostas vazias

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e adequadas, nas qu,aís o tratamento "Alteza Ducal" era a coisa

mais ímportante, e sorriam ao pronunciá-lo, com uma caute-

losa expressão de compaixão, como se quisessem dizer: "Meni-

no puro, meníno líndo!". .. Por vezes, quando era possível

,

Klaus Heinrich fazia incursões a regiões desabitadas do Caste-

lo, com Ditlinde, sua irmã, quando esta ficou suficientemente

crescida.

Naquele tempo, ele tinha aulas com o Professor Droge,

Reitor das Escolas públicas, recomendado como seu primeiro

mestre. O Professor Droge era por natureza um homem obje-

tivo. Seu indicador, enrugado devido à pele seca e ornamentado

com um anel de sinete de ouro, sem pedra, seguia as letras

impressas quando Klaus Heinrich lia, e não se afastava da

palavra enquanto esta não fosse lida. Chegava de casaco e co-

lete branco, na lapela a fita de uma condecoração inferior, e

53

botas grandes, lustrosas, com canos em cor natural. Tinha bar-

ba grisalha e cônica, e pêlos grisalhos e hirsutos brotavam de

suas orelhas grandes e chatas. Seu cabelo castanho era escovado

em pontas para cima nas têmporas, com a divisão feita escru-

pulosamente, de modo que se via bem o couro cabeludo ama-

relo e seco, poroso como aniagem. Mas atrás e dos lados, por

baixo do cabelo castanho e forte, aparecia outro, grisalho e fi-

ninho. Ele inclinava um pouco a cabeça em direção ao lacaios�

que lhe abriam a porta da grande sala de aula com lambris,

onde Klaus Heinrich o esperava. Mas diante de Klaus Heinrich

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o Professor fazia uma mesura, não ao entrar, nem de leve, mas

abertamente e com ponderação, posiando-se diante dele e es-

perando que o nobre aluno lhe estendesse a mão. Klaus Hein-

rich fazia isso, e o fato de fazê-lo, no encontro e na despedi-

da, de maneira bela, encantadora e suave, como vira seu pai

estender a mão a cavalheiros que esperavam por isso, lhe pare-

cia muito mais importante e essencial do que toda a aula que

se desenrolava entre essas duas ocasiões.

Quando já o Professor Droge viera e se fora incontáveis ve-

zes, Klaus Heínrich aprendera uma porção de coisas úteis. Con-

tra sua própria expectativa e desejo, familiarizou-se com ler,

escrever e calcular, e conseguia citar quase com perfeição as

regiões do Grão-Ducado. Mas, como mencionado, não era ísso

que lhe parecia importante e necessário. Por vezes, 4uando não

prestava atenção nas aulas, o Professor o censurava lembrando-

lhe sua nobre vocação. "Vossa nobre vocação vos obriga . . . ",

dizia ele ou: "Deveis isso à vossa nobre vocação . . . ". Que era

essa vocação e por que seria tão nobre? Por que os lacaios sor-

riam - "menino lindo, menino puro" - e por que a madame

ficava tão horrorizada quando ele se portava um pouquinho

mal ao falar e agir? Ele olhava em torno, e por vezes, quando

#

fitava firme e demoradamente os rostos a seu redor, e seu

olhar penetrava no interior das aparências, tinha um pressen-

timento da "coisa em si", que era importante para ele.

54

Estava postado numa das "Belas Salas", a Sala de Prata,

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omle, como sabia, seu pai, o Grão-Duque, dava recepções so-

lens. Por casualidade, estava sozinho na sala vazia e contem-�

plcu-a detidamente.�

Era inverno e fazia frio, seus sapatinhos refletiam-se no

assoalho claro e vítreo, dividido em grandes quadrados pelas

incrustações amarelas, que se estendia diante dele como uma

sryerfície gelada. O teto, coberto de arabescos prateados, era�

tãc alto que era preciso uma vara de metal compridíssima para�

qu: o lustre prateado de muitos braços, coberto de altas velas�

br.mcas, pendesse no meio daquela amplidão. No teto, esten-

di,rm-se superfícies emolduradas em prata, com pálidas pintu-

ra. As paredes, ornadas de sarrafinhos de prata, eram forradas

de seda branca, aqui e ali manchada de amarelo e puída. Uma

esEúcie de baldaquim monumental, pousado sobre duas fortes

coi mas prateadas e enfeitado na frente com uma guirlanda de

pr.ta duas vezes pregueada, de cujas alturas o retrato de uma�

an i cpassada morta, empoada, baixava o olhar no meio de pre-

ga; de arminho, separava a lareira do restante. Amplas poltro-�

na. prateadas, cobertas de seda branca e desbotada, rodeavam,�

l:í atrás, a lareira fria. Nas paredes laterais, frente a frente,

cr,uiam-se imensos espelhos com molduras de prata, cujo vidro�

mc,strava manchas foscas, e sobre cujos amplos consolos de

mármore alvo pousavam candelabros, dois à direita, dois à es-

ciu:rda, os mais baixos diante dos mais altos, com longas velas�

alv;rs, como os candelabros de parede ao redor, como os quatro

candelabros de hastes nos cantos. Das altas janelas à direita,

cim davam para a Praça Albrecht, e em cujos parapeitos exter-�

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n<, jaziam almofadas de neve, caíam cortinas de seda branca,�

com manchas amarelas, presas por fios de prata, enfeitadas de

rendas, descendo, pesadas e abundantes, até o assoalho. No

n,io da sala, debaixo do lustre, havia uma mesa de tamanho��

re:.,ular, cujo pé parecia um tronco de árvore prateado e nodoso,�

, com tampa octogonal de madrepérola leitosa - estava ali, inú-

til e sem cadeiras, quando muito destinada a servir de apoio

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e amparo no momento em que os lacaios abriam a porta dupla,

deixando entrar aqueles que, vestidos de gala,, se postavam à

frente das pessoas durante um momento solene e formal. . .

Klaus Heinrich olhou a sala e viu nitidamente que nada ali

falava daquele pragmatismo que, apesar de suas mesuras, o

Professor Droge lhe impunha. Ali era domingo, com ar de fes-

tiva gravidade, como na igreja, onde também , não funcionariam r

as exigências do Professor. Ali reinava uma pornpa severa e

vazia, um equilíbrio de estruturas despido de funcionalidade ou

#

comodidade, expondo-se, pleno de autocomplacência . . . um am-

biente nobre, tenso, sem dúvidaï nada leve, nada aconchegan-

te, que obrigava a gente a manter postura e disciplina, e uma

controlada renúncia, mas cujo objeto em si não tinha nome. E

era frio, na prateada sala dos candelabros, como na sala da

Rainha da Neve, onde os corações das crianças viram gelo.

Klaus Heinrich caminhou na superfície espelhada e se pos-

tou junto à mesa de centro. Apoiou levemente a mão direita na

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támpa de madrepérola e meteu a esquerda no quadril, bem

atrás, quase nas costas, para que não a visse de frente; pois não

era bonita: era morena e engelhada, e não se desenvolvera como

a direita. Descansou o corpo numa perna, avançou um pouco

a outra e olhou os ornamentos prateados da porta. Aquele não

era um lugar da~ú devaneios, nem sua postura servia para isso;

mas P' áevaneava.�

Viu o pai e o contemplou, como à sala, para compreendê-

lo. Viu a fatigada altivez de seus olhos azuis, as rugas orgu-

lhosas e amarguradas correndo das narinas à boca, por vezes

mais fundas e longas, devido a um aborrecimento ou ao tédio.

Ninguém lhe podia falar espontaneamente, sem ser convida-

do . . . nem mesmo as crianças. Era proibido, era perigoso. Ele

responderia, sim, mas estranho e frio, no rosto uma perplexi-

dade, uma breve perturbação, que Klaus Heinrich entendia

muito bem.

Papai falava com a gente e despachava a gente outra vez;

estava acostumado a isso. Falava com as pessoas no começo do

56

baile da Corte e no fim do jantar, no inícío do inverno. Anda=�

va com mamãe pelos quartos e salas em que se reuniam as

hierarquias da Corte, atravessava o Salão de Mármore e` as�

"Belas Salas", e a galeria de quadros, e o salão de baile. Não

andava só em certa direção, mas seguindo um roteiro que o

zeloso Sr. von Bühl mantinha desimpedido, e dirigia a palavra

, a senhores e damas. A pessoa a quem se dirigia fazia uma me-

sura, abria um espaço de assoalho entre ela e papai, e respon-�

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dia, grave e feliz. Depois, papai cumprimentava àquela distân-

cia, na segurança de prescrições cuidadosas que limitavam os

movimentos dos outros e favorecíam sua posição, cumprimen-

tava sorrindo de leve, e seguia adiante. Leve e sorridente . . .

Certo, certo, Klaus Heinrich entendia bem essa perplexidade que

por um momento perturbava as feições de papai quando al-

guém era impetuoso o bastante para lhe dirigir a palavra dire-

r tamente - entendia e partilhava dela, amedrontado! Algúma

coisa delicada era ameaçada, ficava ferida, algo tão íntimo em

nós, que ficávamos desamparados quando alguém irrompia ali

grosseiramente. Mas era essa mesma coisa que deixava nossos

olhos fatigados e cavava tão fundas rugas de tédio . . .

Klaus Heinrich estava ali parado, e via - via a mãe e

sua beleza, famosa e elogiada em toda parte. Via-se ereta na

robe de cérémonie, diante do grande espelho iluminado por

velas; depois, por vezes, nas festividades, ele podía ver quando

o cabeleireiro da Corte e as camareiras davam os últimos reto-

ques na toalete. Também o Sr. von Knobelsdorff estava pre-

sente quando mamãe era enfeitada com jóias do tesouro da

Coroa, vigiando e anotando as pedras que lhe eram aplicadas.

As ruguinhas de seus olhos se moviam, ele fazia mamãe ri`r

com piadas engraçadas, formando lindas covinhas em suas faces

macns. Mas era um riso cheio de arte e graça - ela olhava

no espelho como se treinasse.

Em suas veias, dizia-se, corria algum sangue eslavo, por

isso seus olhos, de um azul profundo, tinham aquele brilho tão

doce, como a noite tão negra de seu cabelo perfumado. Klaus

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Heinrich era parecido com ela, ouvira dizerem isso, pois tinha

olhos azul-aço e cabelo escuro, enquanto Albrecht e Ditlinde

eram louros como papai fora antes de ficar grisalho. Mas es-

tava longe de ser bonito, com seus zigomas largos, e especial-

mente por causa da mão esquerda, que mamãe lhe ensinava

a esconder habilmente no bolso lateral do casaco, nas costas

ou na frente, no peito - e lhe pedia ísso exatamente quando,

#

cheio de ternura, ele a queria envolver com os doís braços.

O olhar dela era frio quando o prevenia para prestar atenção

à mão.

Ele a via como no retrato do Salão de Mármore: num

traje de seda brilhante, com rendas e luvas compridas, que dei-

xavam ver sob a manga bufante apenas uma faixa do braço de

marfim, um diadema na noite dos cabelos, o magnífico corpo

bem ereto, um sorriso de fria perfeição nos lábíos maravilho-

sos e ásperos, e atrás dela um pavão de pescoço azul-metálico

abrindo seu leque real. O rosto dela era muito suave, mas a

beleza o tornava severo, e dava para ver que também seu cora-

ção era severo, cuidando umcamente da beleza. Ela dormia mui-

to de dia, quando havía baile ou reunião à noite, e comia ape

nas gema de ovo para não ficar pesada. Depoís, à noite, bri-

lhava no braço de papai naquele trajeto prescrito através dos

salões - dignitários grisalhos coravam quando mereciam que

ela os interpelasse, e no Mensaeiro saía que Sua Alteza Real�

não fora a rainha da festa umcamente devido à sua posição.

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Sim, ela causava felicidade exibindo-se na Corte, e fora dela,

nas ruas ou, à tarde, no parque, a cavalo ou de carruagem -

ea, as faces das pessoas coravam ainda mais. Flores e vívas e

corações voavam em sua direção, e os que davam vivas pen-

savam em si mesmos, via-se isso claramente, e exclamavam

assim, alegres, que eles próprios viviam bem e acreditavam em

coisas boas naquele momento. Mas Klaus Heinrich sabia muito

bem que mamãe trabalhara longas horas, cuidadosamente, na

sua beleza, que seu sorriso e suas saudações nasciam da inten-

5R

ção e do exercício, e que seu coração não pulsava junto, por

, nada e por ninguém.

Por acaso ela amaria alguém - por exemplo, a ele, Klaus

Heinrich, tão parecido com ela? Ah, sim, certamente fazia isso

quando tínha tempo, e mesmo quando, com palavras frias,

o Icmbrava daquela mão. Mas parecia que poupava a expressão

r e os sinais de sua ternura para aquelas horas em que havia

espectadores que poderiam ficar honrados com isso. Klaus Hein-

rich e Ditlinde não encontravam a mãe muitas vezes, pois não

particípavam da mesa paterna como Albrecht, o herdeiro, fazia I

há algum tempo; mas comiam à parte, com a madame da Suí-

I

ça; e quando eram chamados aos aposentos de mamãe para

i

uma visita, o que acontecia uma vez por semana, o encontro

I

transcorria sem ímpetos emocionais, com perguntas indiferen-

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tes e respostas bem-comportadas; na verdade, o que ínteressava

'' era como se ficava sentado num divã com uma taça de leite

Í

nas mãos. Mas nos concertos que aconteciam no Salão de Már-

more: a cada duas quintas-feiras, sob o nome "Quintas-Feiras

da Çïrã-Duquesa", quando a sociedade da Corte ficava sentada

juntcs de mesinhas de pernas douradas e toalhas de veludo ver-

I

melho, enquanto o cantor de câmara Schratnm, do Teatro da

Corte, cantava tão alto, acompanhado de música, que as veias

saltavam em sua testa calva - nesses concertos, Klaus Heinricb

e Ditlinde por vezes podiam ficar na sala durante um número

e um intervalo, com roupas festivas, e então mamãe mostrava

que c>s amava, mostrava isso a eles e aos outros com tanta ter-

nura, de modo tão expressivo que não podia haver qualquer

dúvida. Levava-os consigo para a mesa e pedia, com um sor-

riso iondoso, que se postassem dos lados dela, encostava as�

faces deles em seu peito e ombros, fitava-os nos olhos com ?

expressão doce e feliz, e beijava-os na testa e na boca. Mas i

as damas inclinavam a cabeça e espiavam depressa, o rosto '

transfigurado, e os cavalheiros balançavam-na devagar, morden-

do os bigodes para dominarem virilmente sua emoção. . . Sim,

era bonito, e as crianças se sentiam participantes desse efeito,

59

que superava tudo o que conseguira o cantor Schramm com

#

seus mais belos tons; e encostavam-se em maxnãe, orgulhosos.

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Pois ao menos Klaus Heinrich reconhecia que não bastava, s-�

gundo a ordem das coisas, simplesmente sentir-se e ser feliz,

mas era preciso expor a ternura nos salões, e expô-la para

inflamar os corações dos convidados.

Por vezes, também as pessoas na cidade e no parque

podiam ver que mamãe nos amava. Pois enquanto Albrecht

saía de carruagem ou a cavalo de manhã cedo com o Grão-

Duque - embora montasse tã: mal -, Klaus Heínrích e Dit-�

linde acompanhavam mamãe em seus passeios, alternadamen-

te, de tempos em tempos. Esses passeios aconteciam na prima-

vera e no outono, à tarde, na hora em que se costumava pas-

sear na cídade. A Baronesa von Schulenburg-Tressen sempre

estava presente. Klaus Ieinrich ficava excitado e um pouco�

febril antes desses passeios, que não significavam muita ale-

gria, mas, ao contrário, esforço e tensão. Pois assim que a

carruagem aberta deixava o Portal dos Leões, entre os grana-

deiros apresentando armas na Praça Albrecht, havia muito povo

ali reunido, aguardando a partida, homens, mulheres e crian-

ças, que gritavam e os contemplavam com olhos ávidos. E era

preciso controlar-se e ficar ereto e gracioso, sorrindo, escon-

der a mão esquerda e levantar o chapéu em saudação para

al.egrar o povo. Isso continuava durante todo o passeio, tanto

na cidade como no campo. As outras carruagens tinham de

abrir caminho diante da nossa, os policiais cuidavam disso. Mas

os que estavam a pé fícavam parados à beira do caminho, as

senhoras dobravam um joelho, cumprimentando, os homens se-

guravam o chapéu junto da coxa e olhavam de baixo para

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cima, cheios de veneração e curiosidade intensa - era isso

que Klaus Heinrich reconhecia: que todos estavam ali sim-

plesmente para estar, e olhar, enquanto ele estava ali para

mostrar-se e ser olhado. E era isso o mais dífícil. Ele segurava

a mão esquerda no bolso do paletó e sorria como mamãe dese-

java, sentindo as faces em fogo. Mas no Mensageiro saiu que

60

as faces do nosso pequeno Duque pareciam rosas, de tanta

saúde.

t

Klaus Heinrich. tinha 13 anos quando se postou junto da

selitária mesa de madrepérola, no centro da fria Sala Prateada,

tentando entender "aquilo" que realmente lhe interessava. E

quando estudou intensamente todas as aparências - a vazia

e desbotada altivez dos aposentos, que ficava muito acima de

cualquer utilidade e conforto, a simetria das velas brancas que�

pareciam expressar um ofício nobre e tenso, uma controlada

renúncia, a breve perturbação no rosto de seu pai quando O

interpelavam espontaneamente, a beleza fria e sempre tão cui-

dada de sua mãe, que se expunha sorridente ao entusiasmo

alheio, os olhares cheios de veneração e intensamente curiosos

clas pessoas lá fora -, então Klaus Heinrich teve um pressen-

t.imento, uma compreensão informe e vaga daquilo que real-

mente interessava em sua vida. Mas ao mesmo tempo sentiu

terror, um calafrio, diante desse tipo de predestinaçáo. Medo

da sua "nobre missão", tão forte que seu corpo se retorceu

e ele pôs as duas mãos diante dos olhos, também a esquerda,

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pequena e engelhada, e se debruçou sobre a mesa solitária e

chorou, chorou de pena de si mesmo e de seu coração, até que

por fim apareceu alguém e ergueu os olhos para o teto e

j.intou as mãos e o interrogou e o levou dali. . . Ele admitiu�

cue sentira medo, e era verdade.�

Ele nada tinha sabido, éntendido, adivinhado, da difi-

culdade e severidade da vida que lhe fora destinada; fora urr �

meníno alegre, deixara-se levar, despreocupado, dando muitos

motivos para que a madame se horrorizasse. Mas cedo se mul-

tiplicaram as impressões que já não tornavam possível ignorar

c> verdadeiro estado de coisas. No subúrbio do norte, perto do

J ardim das Fontes, surgira uma nova rua; revelaram-lhe que

;or decisão dos magistrados ela se chamava Rua Klaus Heinrich.�

Durante um passeio, sua mãe o levou à loja de objetos de arte,

para uma compra. O lacaio aguardava junto da porta, o pú-

#

blico se aglomerava, o mnrchand se empenhava, contente -

61

nada de novo. Mas Klaus Heinrich notou pela primeira vez

seu próprio retrato na vitrina, ao lado do de artistas e homens

importantes, homens de testas altas, olhos singularmente soli- '

tários.

De modo geral, estavam satisfeitos com ele. Melhorava

de postura, emanava uma controlada dignidade sob o peso de

seu destino. Mas o estranho era que, ao mesmo tempo, cres-

cia seu anseio: aquele desejo ávido de saber, que o Professor

Drge não conseguiria satisfazer, e que levara Klaus Heinrich�

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a conversar com os lacaios. Já não o fazia agora; não levava

a nada. Eles sorriam, "menino lindo, menino puro" e com

esses sorrisos lhe reforçavam o obscuro pressentimento de que

seu mundo de velas simétricas formava, inconscientemente,

uma contrapartida do mundo lá fora; mas não ajudavam em

nada. Ele olhava em torno, naqueles passeios, nas caminhadas

que, seguido de um lacaio, fazia com Ditlinde e a madame da

Suíça no parque da cidade. Sentia: se todos estavam umdos

contra ele, para contemplá-lo, e ele estava isolado, e destacado,

para ser contemplado, issfl signifícava que ele não participava

em nada da vida e da exístência deles. Ele compreendia; intui-

tivamente, que aquelas pessoas não eram sempre assim como

as via, paradas, saudando com aqueles olhares devotos; e qu �

deviam ser sua pureza e seu refinamento que tornavam tão

devotos aqueles olhares; e que eles se sentiam como crianças

escutando lendas sobre príncipes experimentando um embele-

zamento interior, uma superação do seu cotidiano. Mas ele nem

sabia como era feio e vulgar o cotidiano deles - sua "nobre

missão" o impedia. Portanto, era um desejo inaudito, e peri-

goso, querer que seu coração fosse tocado por coisas que sua

nobreza lhe proibia. Mesmo assim, ele as desejava, com uma

inveja e uma curiosidade ansíosa que por vezes o impeliam a

investigar locais desabitados do Castelo Velho, com Ditlinde,

sua irmã, sempre que possível.

Chamavam isso de "Earejar", e tinha um encanto enorme.

Pois era difícil familiarizar-se com a planta e a estrutura do

62

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T

Castelo, e sempre que se afastavam dos lugares habituais en-

contravam salas e quartinhos, locais vazios e solitários onde

jamais haviam entrado, ou caminhos desconhecidos que davam

em salas familiares. Mas uma vez, numa dessas incursões, tive-

ram um encontro, uma aventura que, embora inofensiva, co- ;

moven e esclareceu intensamente a alma de Klaus Heinrich.

I

IIm dia, tiveram uma oportunidade de passear. Madame

da Suíça saíra para o culto da tarde, eles tinham tomado leite

em taças de chá junto da Grã-Duquesa, em companhia de suas

damas de honra, depois foram despachados com pedidos de

que voltassem de mãos dadas para o quarto das crianças, ali

perto. Não era preciso acompanhá-los: Klaus Heinrich era bas-

tante grande para levar sua irmã Ditlinde. Era mesmo; no

correclor, ele disse:

-- Bem, Ditlinde, vamos voltar ao quarto das crianças,

mas, sabe, a gente não precisa voltar pelo caminho mais curto,

tão scm graça. Vamos primeiro farejar um pouco. Se a gente

sobe um lance de escada e vai pelo corredor até os arcos, lá

atrás cxiste uma sala com colunas. E depois dela se sobe uma

escada em caracol atrás de uma porta, e se chega a um quarto

com teto de madeira, com uma porção de coisas estranhas.

Mas ainda não sei o que há depois desse quarto, vamos desco-

brir hoje. Vamos.

- Vamos, sim - disse Ditlinde -, mas não longe

demai.c, Klaus Heinrich, nem aonde houver poeira demais, por-

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que depois vão notar tudo no meu vestido.

I,la usava um vestidinho de veludo vermelho-escuro com�

enfeites de cetim da mesma cor. Naquele tempo, Ditlinde ti-

nha covinhas nos cotovelos, e cabelo dourado e lustroso emol- ;

duranc(o as orelhas em cachos como chifres de carneirinho.

#

Mais tarde ficaria magra, de um louro acinzentado. Também

tinha os zigomas largos e altos de seu pai e de seu povo, mas

eram clelicados, de modo que não feriam a finura de seu ros-

tinho em forma de coração. Em Klaus Heinrich, porém, eles

eram íortes e nítidos, estreitando um pouco os olhos azuis

63

cor de aço, parecendo alongá-los ainda mais. O cabelo escuro

do menino era repartido do lado, cortado com muita exatidão

,

formando um ângulo nas têmporas, e escovado obliquamente

para trás. Usava um casaco aberto com colete fechado e cola-

rinho branco. Na mão direita, segurava a mãozinha de Ditlinde,

mas o braço esquerdo pendia, fino e curto demais, com a mão

I' morena, engelhada e mirrada. Estava contente por poder deixá-�

;

' la pendendo despreocupadamente, sem ter de ocultá-la com

habilidade; pois não havia ninguém ali querendo olhar e sen-

tir-se mais belo e mais nobre, e ele próprio podia olhar e pro-

curar, atendendo ao próprio coração.

Então, andaram farejando segundo seu desejo. Havia cal-

ma nos corredores, e mal e mal viam algum lacaio de longe.

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Subiram um lance de escadas e foram pelo corredor até co-

meçarem os arcos; portanto, chegaram à parte do Castelo que

vinha dos tempos de Johann, o Violento, e Heinrich, o Peni-

tente. Klaus Heinrich, que sabia disso, explicou. Chegaram à

sala das colunas, e lá Klaus Heinrich assobiou em vários tons,

bem depressa, pois, quando veio o último, os primeiros ainda

permaneciam no ar, e assim um claro acorde repassou por baixo

dos arcos. Os dois subiram, apalpando e às vezes de quatro,

por uma escada de pedra em caracol, e chegaram ao quarto

com teto de madeira, onde havia vários objetos esquisitos. Ha-

via algumas espingardas grandes e desajeitadas, com fechos co-

bertos de grossa ferrugem, que deviam estar estragadas demais

para ficarem no museu, e um inútil trono de veludo vermelho

rasgado, pernas curtas e arqueadas de leão e, por cima do en-

costo, criancinhas esvoaçantes segurando uma coroa. Mas havia

também uma coisa assustadora, muito recurvada e empoeirada,

parecendo uma gaiola, com que se ocuparam por muito tempo.�

Se não se enganavam, era uma ratoeira, pois viam a ponta de

ferro onde se devia prender o toucinho, e era horrível imagi-

nar a portà do alçapão fechando-se atrás do animal enorme,

repulsivo e enfurecido. . . Sim, aquilo exigiu tempo, e quando�

se levantaram de novo seus rostos estavam acalorados, os tra-

64

jes duros de ferrugem e poeira. Klaus Heinrich bateu-os com

as mãos, mas não adiantou muito, pois as mãos também esta-

vam sujas. Então, de repente, viram que havia escureçido mui-

to. Precisavam voltar. depressa, Ditlinde insistiu nisso, assus-

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tada;: era tarde demais para irem em frente.

- Mas que pena, que pena - disse Klaus Heinrich. -

Sabe lá o que mais teríamos encontrado, e quando vamos ter

outra dportunidade de procurar, Ditlínde? - Mas foi atrás

da irmã, e trataram de descer rapidamente a escada em caracol

,

atravessaram a sala das colunas e saíram para o corredor dos

arcos, voltando para casa apressados, de mãos dadas.

aminharam assim por algum tempo, mas Klaus Heinrich�

sacudiu a cabeça, pois lhe parecia que não era aquele o cami-

nho por onde tinham vindo. Seguiram adiante, mas vários si-

hais provavam que era o caminho errado. Aquele banco de pe-

dra com cabeças esculpidas nos braços não estava ali antes.

Aquela janela pontuda dava para a parte baixa da cidade, . do

lado oeste, em vez de abrir-se para o pátio da roseira. Estavam

prdidos, não adiantava negar; talvez tivessem saído por uma�

saída errada da sala das colunas; de qualquer modo, estavam

perclidos.

Voltatam um trecho, mas estavam inquietos demais para

irem longe, por isso voltaram mais uma vez, preferindo con-

tinuar direto pelo caminho anterior. Andavam numa atmosfera

abafada, sufocante, grandes teias de aranha sossegadamente te-

#

cidas estendiam-se nos cantos; estavam preocupados, e Dítlinde

mostrava-se arrependida, quase chorando. Iam notar sua au-

sência, lançar-lhes aqueles "olhares tristes", talvez até contar

ao Grão-Duque; nunca mais encontrariam o caminho certo, se-

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riam esquecidos e morreriam de fome. E onde há ratoeira,

Klaus Heinrich, tambérn há ratos. . . Klaus Heinrich a 'conso-

lava. Bastava encontrar o lugar com as armaduras e bandeiras

cruz;adas na parede; a partir dali, ele sabia o caminho. De re-

pente - acabavam de dobrar uma volta do corredor -, de

repente aconteceu uma coisa. Estremecerarn.

65

O que ouviam agora era mais que o eco dos próprios pas-

sos: eram outros passos, estranhos, mais pesados que os deles,

víndo a seu encontro, ora rápídos, ora hesítantes, acompanha-

dos de rosnados e fungadelas que lhes gelavam o sangue. Dit-

linde fez cara de quem vai sair correndo de susto; mas Klaus

Heinrich não lhe soltou a mão, e ficaram parados ali, os olhos

bem abertos, esperando o que estava por vir.

Era um homem que emergia da penumbra e, olhando-se

com calma, sua aparência não era de assustar. Era atarracado

e vestia-se como um veterano num desfile festivo. Usava casaco

de corte francês antigo, cachecol de lã no pescoço e uma me-

dalha no peíto. Trazia uma cartola numa das mãos e, outra,

como muleta, o guarda-chuva enrolado, com que batia regular-

mente nas pedras ao caminhar. Seu ralo cabelo grisalho subia

de uma orelha até o crânio, em mechas grudentas. Tinha so-

brancelhas arqueadas e pretas, e barba amarelada, do farmato

da do Grão-Duque, pálpebras pesadas e olhos azuís aguados,

por sobre sacos de pele murcha; tinha os habituais zigomas

salientes daquele povo, e as rugas de seu rosto vermelho pa-

reciam fendas. Aproximando-se bastante, ele pareceu reconhe-

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cer os irmãos, pois se postou junto da parede do corredor,

colocou-se em posíção e começou a fazer uma séríe de mesuras,

deixando o corpo tombar para a frente várias vezes, de ma-

neira brusca e breve; a boca assumia uma expressão sincera.

Klaus Heinrich pensou em passar por ele, cumprimentando-o

com um inclinar de cabeça, mas parou, chocado, pois o vete-

rano começou a falar.

- Perdão! - disse ele de repente, num ímpeto, mas

prosseguiu mais controlado: - Peço expressamente perdão aos

meus jovens amos! Mas levariam a mal se eu lhes pedisse

por favor que me mostrassem a saída mais próxima? Não pre-

cisa ser logo o Portão Albrecht, . , não precisa ser. Mas qual-

quer saída do Castelo, se posso tomar a liberdade de me diriyi r

aos jovens arnos. . .

GG

Klaus Heinrich metera a mão esquerda no quadril, bem

atr.,s, quase nas costas, e olhava para o chão. Tinham-no in-

1

' ter¡,elado, interrogando-o diretamente de maneira desajeitada;

. ele pensou em seu pai, juntou as sobrancelhas. Pensava rapi-

damente em como se portar nessa circunstância toda errada e

inccmum. Albrecht teria torcido a boca, sugado um pouco O�

lábo inferior e seguido caminho, calado - era certo. Mas�

por que farejar se, na primeira aventura de verdade, já iam

seur adiante, ofendidos e cheios de formalidades? Ó homem�

era honrado e não pretendia fazer mal, Klaus Heinrich viu

issc quando se obrigou a erguer os olhos. E disse com sim-�

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plicidade:

- Venha conosco, é melhor. Vou lhe mostrar onde tem

de dobrar para chegar a uma saída. - E foram andando.

- Obrigado! - disse o homem. - Agradeço sincera-

mente a gentileza! Nunca imagineí que um dia iria passear

com os jovens amos pelo Castelo Velho. Mas assim são as

coisas, e depois de todo o meu desgosto. . . pois eu tive des-

gosos, enormes, é verdade. . . depois de todo o meu desgosto�

ainla tenho esta honra e este prazer.�

Klaus Heinrich teve muita vontade de perguntar qual o

morivo de tanto desgosto; mas o veterano já prosseguia (ba-

tenio regularmente nas lajes com o guarda-chuva):�

#

- E logo reconheci os jovens amos, apesar de ser meio

escüro às vezes nestes corredores, pois tantas vezes vi os dois

na caleça e sempre me alegrei com isso, porque eu também

tenno uns bichinhos assim em casa, quero dizer, os meus são

bicninhos, os meus... e o meu menino também se chama

Kl:us Heinrich.�

r - Como eu? - disse Klaus Heinrich, divertido. . . -

Mas que coincidência!

- Acaso? Ele se chama assím exatamente por vossa cau-

sa, é alguns meses mais moço do que vós e há muitos meni-

nos na cidade e no campo com esse nome, todos por vossa

causa. Ora, não se pode dizer que seja coincidência. .

67

Klaus Heinrich escondeu a mão e ficou quieto.

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- Sim, eu logo vos reconheci - disse o homem. - L

pensei: Santo Deus, é o que chamo de felicidade na desgraça,

esses aí vão ajudá-lo a sair desta armadilha onde você entrou,

seu velho idiota. E alegre-se porque aqui já entrou muita gente

a quem os sacanas passaram a perna e que não teve tanta

sorte. . .

"Sacanas?", pensou Klaus Heinrich. . . "Passaram a per-

na?" Olhou diretamente em frente, não se atreve,z a indagar.�

Sentiu medo, esperança. . . e disse baixinho:

- E no senhor. . . passaram a perna?

- Me fizerarn de besta! - disse o veterano. - Me fi-

zeram de besta, os cachorros, e com perfeição! Mas, posso di-

zer isso aos jovens amos, por maís moços que sejam, vai ser

bom saberem que as pessoas aqui estão muito corrompidas.

A gente vem e entrega seu trabalho com todo o respeito. . .

Sim, que Deus me livre! -- exclamou ele de repente, batendo

com o chapéu na testa. - Eu nem me apresentei aos meus

amos? Hinnerke! - disse ele. - Sapateiro, fornecedor da

Corte, honrado e condecorado. - Apontou com o indícador

de sua grande mão, rude e manchada de amarelo, para um:z

medalha no peito. - O caso é que Sua Alteza Real, o vosso

papai, me deu a honra de encomendar umas botas, botas de

cano alto, botas de montaria com esporas e couro de primeira.

Eu fiz as botas, fiz sozinho com todo o capricho, e hoje estão

prontas, e lustrosas. Vá você mesmo, pensei. . . eu tenho um

menino que faz as entregas, mas pensei: "Vá você mesmo, sãc �

para o Grão-Duque." E aí eu me vesti e peg,zei as botas i

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vim ao Castelo. "Lindas! ", disseram os lacaios lá embaixo e

quiseram pegar as botas. "Não! ", eu disse, não tinha confian-

ça neles. Recebo encomendas e tenho até um título da Corte

por minha fama, quero dizer isso aos amos, não por subornar

lacaios. Mas os rapazes estão acostumados com gorjetas dos

fornecedores e queriam que eu lhes desse alguma coisa. Eu

disse "não" porque sou contra suborno e falsidade. "Quero

68

en regar as botas pessoalmente e, se não as posso dar eu mes-�

mm ao Grão-Duque, vou entregá-las ao camareiro Prahl." Eles

ficaram zangados, mas disseram: "Então, tem de subir por ali!"

E eu subi. Lá em cima, havia outros lacaios que disseram:

"São lindas! ", e quiseram entregar as botas, mas perguntei

pe io Prahl e não cedi. Eles disseram: "Está tomando café"

,

m:s fiquei firme e disse que ia esperar que ele terminasse. .�

E enquanto eu dizia isso, quem vai passando com seus sapatos

de fivela? O camareiro Prahl. E me viu e eu lhe dei as botas

com algumas palavras adequadas, e ele disse: "Muito bem! ",

e lisse ainda: "São lindas! ", e me cumprimentou e foi embora�

com as botas. Aí eu fiquei descansado, pois no Prahl se pode

confiar, e tratei de ir embora. "Ei! ", chamou alguém, "Hin-

n rke! Está indo pelo caminho errado! " "Que diabo! ", eu�

dise, e voltei e fui pelo outro lado. Mas foi a maior bobagem�

qae já fiz, pois eles me enganaram, e acabei indo aonde não

pretendia ir. Caminhei um pedaço e encontrei outro cara da-

qaeles e perguntei pelo Portão Albrecht. Ele logo notou o

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qne tinha acontecido e disse: "Então, suba a escada e vá sem-

pre pela esquerda e depois desça de novo e assim vai abreviar

#

muito o camínho!" E confiei na gentileza dele, e fiz o que ele

disse e fiquei cada vez mais confuso e perdido. Aí notei que

a;io era minha a culpa, mas daqueles ladrões, e me lembrei

;iu ter ouvido dizer que muitas vezes fazem isso com os for-

ncedores que não lhes dão gorjetas, e os deixam perdidos por��

aí. E fiquei cego e burro de tanta raiva, e cheguei a lugares

oode minha alma nem podia maís respirar, não sei mais onde

c tou, e fiquei muito apavorado. E por fim encontrei os jovens�

amos. Sim, foi isso que me aconteceu, com mínhas botas! -

arocluiu o sapateiro Hinnerke, e limpou a testa com as costas

da mão.

Klaus Heinrich apertou a mão de Ditlinde. Seu coração

h.ltia tão forte que ele esqueceu inteiramente de ocultar a es-

c!uerda. Era isso. Era parte de tudo, um pouquinho, uma pista!

(',laro, eram essas as coisas que sua "nobre missão" lhe ocul-

69

tava, a vida das pessoas, como eram feias no seu cotídiano!

Os lacaies. . . Calou-se; não sabia o que dizer.

- Estão calados, os jovens amos! - disse o sapateiro.

E sua voz amiga estava cheia de emoção. - Eu nem devia

ter lhes contado isso, pois não devem saber dessas maldades.

Mas, par outro lado - disse ele, inclinando a cabeça para o

lado e estalando os dedos no ar -, acho que não faz mal,

não faz mal algum, para o futuro, mais tarde. . .

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- Os lacaios - disse Klaus Heinrich, e tomou impul-

so . . . - São tão maus assim? Posso imaginar a cena . . .

- Maus? - disse o sapateiro - Eles não valem nada.

É assim que eles são. Sabe de que são capazes? Quando não

ganham uma boa gorjeta, eles retêm as mercadorias, e quando

o fornecedor as envia pontualmente, eles as entregam com gran-

de atraso, para que o fornecedor leve a culpa e pareça irres-

ponsável aos olhos dos senhores, e depois não receba mais

encomendas. E fazem isso sem escrúpulo algum, é coisa muito

conhecida na cidade. . .

- Sim,..isso é muito mau! - disse Klaus Heinrich. Es-

cutava, escutava. Nem podia mais avaliar o quanto estava aba-

lado. - E fazem mais coisas? - perguntou. - Tenho certeza

de que fazem outras coisas desse tipo.

- Se fazem! - disse o homem, e deu uma risada. -

Vou dizer uma coisa, meus jovens amos, eles fazem muitas

coisas! Por exemplo, aquela brincadeira de abrir as portas. . .

É assim. Alguém é admitido numa audiência com o vosso papai,

nosso digníssimo Grão-Duque, e os lacaios acham que é úm

novato, nunca esteve na Corte. O cara chega de fraque, com

frio e calor, pois naturalmente não é pouca coisa ficar pela

primeira vez diante de Sua Alteza Real. E os lacaios riem dele,

pois aqui se sentem em casa, e o levam para a ante-sala, e ele

nem sabe o que vai lhe acontecer, e se esquece realmente de

dar gorjeta aos lacaios. Mas então chega a sua hora, e o ajudan-

te diz o nome dele, e os lacaios abrem a porta dupla e o dei-

xam entrar na sala onde o Grão-Duque está esperando. Lá

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escá o novato e faz a mesura e dá suas respostas, e na sua

bendade o Grão-Duque lhe estende a mão e ele logo é despe-�

di,lo e recua, e pensa que a porta vai se abrir atrás dele, como

lh prometeram com toda a certeza. Mas ela não se abre,�

acreditem, pois os lacaios são maus e não receberam gorjeta,

e não movem um dedo do lado de fora. Mas o cara não pode

. sc virar de modo algum, pois não pode virar as costas ao

( rão-Duque, seria um grande erro e uma ofensa grave. Então,�

el procura com a mão atrás de si, procura a maçaneta e não a��

encontra, e fíca nervoso e saltitando na frente da porta, e por

fim, por misericórdia divina, encontra a maçaneta, é uma des-

sa antiquadas que ele não entende, e remexe e desloca o braço�

e se esfalfa, e enquanto isso fica fazendo mesuras desespera-

d.s até que o bondoso Grão-Duque, por fím, tem de lhe abrir�

a porta com a própria mão. Sim, isso quanto às portas! Mas

is>o não é nada, vou contar. . .

Falando e escutando, mal tinham prestado atenção ao ca-

m.:nho. Haviam passado pelas escadas e estavam no térreo,

#

p rto do Portão Albrecht. Wiermann, um lacaio da Grâ-Du-�

quesa, vinha a seu encontro. Usava fraque roxo e suíças. Fora

' envíado para procurar as Altezas Reais. De longe, já vinha ba-

lmçando a cabeça, penalizado, e fazendo bico. Mas vendo O

sanateiro Hinnerke ao lado das crianças, batendo o guarda-

chuva à frente, os músculos de seu rosto se afrouxaram e sua

extressão tornoi.i-se mole e abobalhada.�

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Mal houve tempo de agradecer e despedir-se, pois Wíer-

m.mn separou rapidamente o mestre-sapateiro das crianças e o

af.istou mais depressa ainda. E, anunciando desgraças, levou

Su.as Altezas Reais ao seus . aposentos, onde aguardava a ma-

dame da Suíça.

Ela ergueu os olhos para o céu, juntou as mãos por causa

d ausência deles e do estado de suas roupas. Aconteceu o�

pi.,r: lançou-lhes aduele "olhar triste". Mas Klaus Heinrich scí

sc confrangeu um pouquinho. Pensava nos lacaios . . . "Meninc

be nito, menino puro. . . ", dizia o sorriso deles; depois, ti-

71

ravam dinheiro e deixavam os fornecedores perdidos nos cor-

redores se não lhes davam suborno, e não abriam a porta, de

modo que o pobre coitado que obtivera a audiência tinha de

ficar esperneando diante dela. Isso no Castelv; como seria lá

fora? Lá fora, entre as pessoas que olhavam para ele, tão de-

votas e estranhas quando ele passava de carruagem, saudan-

do?. . . E como é que aquele homem se atrevera a lhe contar

tudo? Não o chamara nem uma vez de "Alteza Real", vio-

lentara-o, ferira grosseiramente sua pureza e refinamento. E

por que, ao mesmo tempo, fora tão doce ouvir contar aquelas

coisas dos lacaios? Por que seu coração batia com aquela ale-

gria horrorizada, tocado por coisas loucas e insolentes das quais

sua nobreza jamais partilhava?

72

O DOUTOR ÜBERBEIN

Klaus Heinrich passou três anos da meninice com camaraáas

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da mesma idade, da nobreza da Corte e do interior, num in-

ternato, uma espécie de pensionato aristocrático, fundado pelo

Ministro da Casa von Knobelsdorff por causa dele, no palácio

de caça chamado Castelo dos Faisões.

Propriedade da Coroa há 100 anos, o Castelo dos Faisões

emprestava o nome à primeira parada de uma linha ferroviária

que levava da Residência para o Noroeste do país, e que por

sua vez recebera esse nome de uma criação de faisões "mansos"

,

que fícava entre arbustos e prados perto dali, capricho de um

dos :mtigos governantes. O Castelo, de um só andar, parecende

um caixote, uma casa de campo com telhado de ripas encimado

por iára-raios, com seus estábulos e cocheira, ficava bem junto�

da funbria da floresta de pinheiros. Tendo à frente uma fileira

de vclhas tílias, dava para um prado amplo; ao longe, numa

curv:tura azulada, era rodeado pela mata e atravessado por�

verec:as. Campos de jogos e barreiras para a prática de equita-

ção c spalhavam-se por ali. Do outro lado do Castelo, em dia-

gonal, fícava uma estalagem, a um tempo cervejaria e confei-

taria, com altas árvores, arrendada por um homem circunspecto

chamado Stavenüter. Nos domingos de verão, o local ficava

replero de excursionistas, especialmente de bicicleta, vindos da

73

capital. Os alunos do Castelo dos Faisões só podiam visítar a

estalagem vigiados por um professor.

Havia cinco alunos ali, além de Klaus Heinrich: um

Trümmerhauff, um Gumplach, um Platow, um Prenzlau e um

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Wehrzahn. Eram conhecidos como "Os Faísões" naquela re-

gião. Um landau muito velho, pertencente à Corte, uma giga,

um trenó e alguns cavalos de montaria estavam à disposíção

deles, e quando, no inverno, parte dos prados estava ínun-

dada e congelada, podiam andar de esqui. Havia um cozinheiro,

duas camareiras: um cocheiro e dois lacaios no Castelo dos

Faisões, e, para alguma emergência, um deles também sabia

dirigir carruagens.

O professor do liceu, chamado Kürtchen, solteirão bai-

#

xinho, desconfiado e irritadiço, de aparência cômíca e cavalhei-

rismo antiquado, dirigia o pensionato. Usava bigode grisalho

':Í e aparado, óculos de ouro diante de inquietos olhos castanhos

e, ao ar livre, apenas uma cartola empurrada sobre a nuca.

I

;

Andava com o ventre esticado para. a frente, segurando os dois

pequenos punhos dos lados como um corredor. Tratava Klaus

! Heinrich com condescendência, mas os demais alunos com

grande suspeita devido à sua arrogância aristocrática, e ficava

enfurecido quando farejava algum desdém por sua condição

burguesa. Em passeios, quando havia gente por perto, gostava

de parar, reunir os alunos ao seu redor, num grupinho, e ea-

plicar alguma coisa, apontando com a bengala. A Sra. Amelun,�

r

viúva de um capítão, cheirando fortemente a gotas de Hoff-

mann, que tinha as chaves da casa, era chamada de "cara

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senhora", e saboreava essa demonstração de refinamento.

Um professor assistente ainda jovem, com título de dou-

tor, ajudava o Professor Kürtchen - era um homem berr-

humorado, animado e fanfarrão, mas romântico, que ínfluer-�

ciava, talvez maís do que fosse aconselhável, o pensamento �

a sensibilidade de Klaus Heinrich. Havia ainda um professo,

de ginástica chamado Zotte. Aliás o professor assistente cham"-

,

74

va-s Überbein, Raoul Überbein. � Os demaís professores vinha �

diari.mente de trem da capital.�

Klaus Heinrich notou, com agrado, .lue em assuntos :, ..

jetiv>s as exigências que lhe eram feítas se abrandavam rapída-�

mente. O indicador enrugado do Professor Dróge já não se

prem(ia às palavras escritas - ele já cumprira sua missão; e

durmate as horas de aula, e na correção dos trabalhos escritos,

o Pr>fessor Kürtchen aproveitava ao máximo as oportunidades�

de dmonstrar seu tato. Logo após a abertura do pensionato,�

certo dia ele pedíu - depois do almoço, na sala de refeições

de janelas altas, no térreo - que Klaus Heinrich subisse ao

seu ouarto de estudos e disse textualmente:

- É contra o interesse geral que Vossa Alteza Real seja

chamada a responder perguntas durante nossos exercícios em

comum, se no momento não as quiser responder, De outro

lado, é desejável que Vossa Alteza sempre se ofereça para res-

poncir, levantando a mão. Por isso peço a Vossa Alteza, para�

mính: orientação, que diante de perguntas que não lhe agrada-�

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rem stenda o braço ao máximo, mas naquelas que queíra res-��

ponclár o estenda só um pouco, em ângulo reto.

O Dr. Überbein enchia a sala de aula com sua loquací-

dade retumbante, uma jovialidade que não abordava assuntos

concrtos, mas não os esquecia. Não fizera qualquer combi-�

naç:ic com Klaus Heinrich, mas interrogava-o quando tinha von-

tade, com uma cordialidade espontânea, sem provocar cons-

tran.mento algum. E as respostas pouco pertinentes de Klaus�

Hein; ich pareciam encantar o Dr. Überbein, despertando nele

nm aivertido entusiasmo.

- Hahahá! ! ! - exclarnava, deitando a cabeça para trás,

num. risada. - Ah, Klaus Heinrich! Ah, meu Príncipe! Ah,�

inocência! A rude problemática da vida vos encontra despre-

paracio! Pois a mim, homem experiente, cabe esclarecê-la!

. ele próprio dava a resposta; não chamava mais nin-

guém quando Klaus Heinrich respondia mal.

7 �

O ensino dos outros professores tinha caráter de confe-

rência, pouco exigente. E o professor de ginástica, Zotte, rece-

bera dos superiores a indicação de orientar os exercícios fí-

sicos com muito cuidado para com a mão esquerda de Klaus

Heinrich - de modo que nem a atenção do Príncipe nem a

dos outros rapazes fossem dirigidas desnecessariamente para a

pequena deformidade. Os exercícíos corporais limitavam-se, por-

tanto, a corridas e, na hora da equitação, também orientada

pelo Sr. Zotte, se excluía qualquer temeridade.

#

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A relação de Klaus Heinrich com os cinco camaradas não

se podia chamar de íntima, não havia como avançar na fami-

liaridade. Ele estava isolado, nunca era um deles, simplesmente

não contava no seu grupo. Eram cinco, ele era um; o Príncipe,

os cinco alunos e os professores formavam a instituição. Várias

coisas se opunham a uma amizade desinibida. Os cinco esta-

vam ali por causa de Klaus Heinrich, haviam ordenado a eles

que fossem seus camaradas, não lhes faziam perguntas nas

aulas depois que ele dava uma resposta errada e, na equitação

ou nos jogos, tinham de se adaptar à sua capacidade física. De-

pendiam dele até a náusea em todas as coisas da vida em co-

mum. Alguns deles, os jovens von Gumplach; von Platow e

von Wehrzahn, rapazes do interior, de menor fortuna, ficaram

impressionados com a felicidade e o orgulho revelados por seus

pais quando chegara o convite do Ministério da Casa, e as

congratulações que haviam chovido de todos os lados. De outro

lado, o Conde Prenzlau, o gordo, ruivo, sardento, de fala ofe-

gante chamado Bogumil, era filho da mais rica e nobre família

de latifundiários do país, mimado e orgulhoso. Sabia muito

bem que seus pais não tinham podido recusar o convite do

Barão von Knobelsdorff, mas que não o consideravam uma

graça dos céus, e que ele, Conde Bogumil, teria podido viver

muito melhor e de acordo com suas posses em casa, nas pro-

priedades dos pais, do que no Castelo dos Faisões. Achava

os cavalos de montaria ruins, o landau velho, a giga antiquada;

secretamente, reclamava da comida. Dagobert, Conde Trüm-

76

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merhauff, rapazinho refinado, com jeito de galgo, que falava

aos sussurros, concordava inteiramente com ele.

Tinham uma expressão em comum, que, manifestando ple-

namente sua natureza aristocrática e crítica, usavam muitas ve-

zes com voz cortante e gutural: "Porcaría." Era uma porcaria

abotoar colarinhos soltos na camisa. Era porcaria jogar tênis

em trajes vulgares. Mas Klaus Heinrich não se sentia à vontade

usando essa palavra. Alíás, até ali nem soubera que havia ca-

misas com colarínhos costurados e que alguém pudesse ter

tantas roupas quanto Bogumil Prenzlau. Teria gostado de di-

zer "porcaría", mas lhe ocorria que estava usando meías cer-

zidas. Achava-se deselegante ao lado de Prenzlau e desajeitado

diante de Trümmerhauff. Este era nobre como um animal. Ti-

nh:z um Iongo nariz pontudo de dorso afilado e narinas amplas,

vibrantes, finas, veias azuladas nas delicadas têmporas e nas

orelhas minúsculas, sem lóbulo. De seus largos punhos colori-

dos, com abotoaduras de ouro, apareciam nobres mãos femi-

ninas com unhas onvexas, e o punho era adornado com um�

bracelete de ouro. Ele sussurrava, de olhos semicerrados...

Estava claro que Klaus Heinrích não podia competir com Trüm-

merhau£f em nobreza. Sua mão direita era um tanto larga, seus

zigomas eram como os do povo, e diante de Dagobert sentia-se

atarracado. Era possível que Albrecht tivesse conseguido dizer

"porcaria" juntamente com os Faisões. Mas ele, Klaus Hein-

rich, não era um aristocrata, fatos evidentes diziam isso. E seu

nome? Klaus Heinrich, nome dos filhos de sapateiros no cam-

po. e dos filhos do Sr. Stavenüter da estalagem, que usavam

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os dedos para se assoar - chamavam-se como ele, seus pais,

seu irmão. Mas os aristocratas chamavam-se Bogumil e Dago-

bert.. . Klaus Heinrích sentia-se isolado e solitário entre os

cinco.

Mesmo assim, fez amizade no Castelo dos Faisões com

o Dr. Überbei.n, o professor assistente. Raoul Überbein não

era um homem bonito. T inha barba vermelha e rosto branco

esuerdeado, com olhos azuis aguados, cabelo ruivo e ralo, ore-

77

lhas muíto teias, pontudas e sal.ientes. Mas suas máos eram

pequenas e delicadas. Só usava gravatas brancas, o yue con-

feria à sua figura algo de solene, embora seu guarda-roupa tosse

precário. Ao ar livre, usava um manto de tecido rústico e

,

ao andar a cavalo - pois o Dr. Überbein montava, e muito

bem até -, vestia um casaco puído, com abas presas por alfi-

#

netes de segurana, calças justas e abotoadas, e chapéu alto.�

Em que consistia o encanto que ele exercia sobre Klaus

Heinrich? Em vários fatores. Ainda não viviam juntos há muito

tempo quando surgiu entre os Faisões o boato de que o pro-

fessor assistente um dia retirara, com grande risco, uma crian-

ça de um charco ou pântano,·..recebendo por isso a Medalha de

Salvamento. Impressionante. Mais tarde souberam outras coisas

da vída dele; também Klaus Heinrich as soube. Dizia-se que era

de origem obscura, de pai ignorado. A mãe fora atriz e o entre-

gara a pessoas pobres, em troca de dinheiro, para que cuidassem

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dele. O menino passara fome, daí sua cor esverdeada. Eram coi-

sas difíceis de entender, até de imaginar, coisas loucas e estra-

nhas, às quais por vezes o próprio Dr. Überbein aludia - por

exemplo, quando os rapazes nobres, sabendo de sua origem obs-

cura, se portavam com certa ínsolência e falta de educação:

- Menininhos! fílhinhos da mamãe! - dizia ele então,

zangado. - Tenho bastante experiência para poder exigir mo-

déstia. dos senhores!

Também essa larga experiêncía do Dr. Crberbein impres-

sionava Klaus Heinrich. Mas o verdadeiro encanto do doutor

era a sua maneira direta de se portar com Klaus Heinrich, o

tom com que, desde o primeiro dia, lidara com ele e que o dis-

,

tinguia de todas as outras pessoas. Ele nada tinha da reserva

hirta dos lacaios, do pálido horror da madame, das mesuras

formalizadas do Professor Dróge nem da autocornplacente con-

sideração do Professor Kürtchen. ilada sabia da maneira estra-�

nha, devota e ainda assim insistente com que as pessoas lá fora

contemplavam Klaus Heinrich. Durante os primeiros dias de

vida em comum no pensionato, eie fora calado, limitando-se a

78

observar. Mas depois se aproximara do Príncipe com uma fran-

queza sorridente e natural, uma camaradagem espontánea e pa-

ternal, que Klaus Heinrich desconhecia. No começo, ela o per-

turbava; ele olhava assustado o rosto esverdeado do professor.

Mas essa perturbação não amedrontara o outro, não o intimi-

dara; ao contrário, fortalecera-lhe a desinibição jactanciosa, e

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logo Klaus Heinrich fora conquístado. Pois na maneira de ser

do I.)r. Überbein nada havia de humilhante ou vulgar, nem mes-

mo mtencional ou pedagógico. Fazia parte da superioridade de

um homem de muita experiência e ao mesmo tempo revelava

uma condescendência delicada e espontânea para com a natureza

díferente de Klaus Heinrich. Nela havia amor e respeito, além

da ¡roposta alegre de uma aliança entre suas duas personalida-�

des. Chamava-o algumas vezes de "Alteza", depois simplesmente

"Príncipe" e depois, mais simplesmente ainda, de "Klaus

Heinrich", e assim ficaram as coisas.

Quando os Faisões saíam a cavalo, ficavam à frente, o dou-

tor em seu grande malhado, à esquerda de Klaus Heinrich em

seu bem-treinado alazão - trotavam na neve ou nas folhas caí-

das, na lama da primavera ou no calor do verão, ao longo da

floresta, pelo campo, pelas aldeias, e o Dr. Überbein falava de

sua vida. Raoul Überbein, como soa bem, não? Realmente, nada

refinado! Sim, "Überbein" era nome de seus pais adotivos, gen-

te E,obre e idosa, da esfera inferior dos empregados de banco,

e ele o usava legalmente. Mas chamar-se Raoul fora determina-

ção de sua mãe quando entregara sua pessoazinha junto com a

quantia combinada àquela gente simples - determinação emo-

tiv;, é verdade, fruto do sentimentalísmo. Era bem possível�

qu. seu verdadeiro pai se tivesse chamado Raoul, e se espe-�

rava que seu sobrenome combinasse com ele. Aliás, fora uma

ati;ude bem irresponsável de seus pais adotivos aceitarem a

crimça, pois "um certo" Schmalhans fora mestre-cuca dos

Überbein, e provavelmente só por premência financeira é que

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elea haviam pegado a quantia combinada. O menino recebera

apunas 'a instrução essencia,l, mas resolvera mostrar quem era,

e se destacara um pouco. E, como queria ser professor,- ofere-

ceram-lhe dinheiro público para se formar no semínário. Lá, ele

se diplomara, aliás com distinção, pois se interessava por isso,

depois fora empregado numa escola pública, com excelente salá-

#

rio, com o qual eventualmente ajudara seus pais adotivos, até os

dois morrerem ao mesmo tempo. Lá estava ele então, sozinho

no mundo, de origem desgraçada e pobre como um rato de

igreja, contemplado por Deus com uma carantonha esverdeada e

orelhas de macaco, e com isso tinha de agradar. Circunstâncías

bem favoráveis, não? Mas, sendo as únicas condições que tinha,

seriam boas, e estava acabado. Juventude infeliz, solidão e ex-

clusão das coisas boas da vida, preocupação, exclusivamente de-

pendendo da própria capacidade, com isso não conseguia engor-

dar, era magro também por dentro, e resistente, não conhecia

qualquer conforto e tinha de superar muitas coisas. Como se

favorecem as capacidades quando se depende umcamente delas!

Que vantagem diante dos que "não precisavam" disso! Diante

das pessoas que de manhã acendiam um charuto. . . Naquela

hora, junto da cama de doente de um de seus pequenos alunos

malcheirosos, num quartinho que não tinha exatamente o per-

fume de flores de primavera, Raoul Überbein conhecera um

rapaz - alguns anos mais velho que ele, mas em situação pare-

cida, também malnascido, pois era judeu. Klaus Heinrich o co-

nhecia - sim, podia-se dizer que o conhecera em ircunstância�

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bem íntima -, o nome era Sammet, médico. Por acaso estivera

em Grimmburg quando Klaus Heinrich nascera, e alguns anos

depois se estabelecera como pediatra na capital. Pois era amigo

de Überbein, ainda hoje, e naquele tempo tinham conversado

muito sobre destino e tenacidade. Diabos, os dois tinham muita

experiência. Überbein pensava com sóbría alegria no tempo em

que fora mestre-esrnla. Sua atividade não se limitara apenas à sa-

la de aula, ele gostava de se interessar também pessoalmente

por seus pequenos vagabundos, visitava-os em suas casas, conhe-

cia suas vidas familiares, nem sempre românticas, e assim ficava

sabendo de muita coisa. Na verdade, se antes disso ainda não

!:

ï

,.

80

conhecera a face mais séria da vida, naquela ocasião tivera a

oportunidade de vê-la de frente. De resto, não parara de traba-

lhar para si próprio, dera aulas particulares a gordos filhos de

bu rgueses e apertara o cinto para poder comprar lívros - usara

as longas, silenciosas noites livres para estudar. E um día fizera

com extraordinários resultados os exames estatais, fora promo-

viclo e passara à escola de Latim. Na verdade, lamentara deixar

seus pequenos vagabundos; mas era seu caminho. Depois o ti-

nham convidado para ser professor assistente ali, no Castelo dos

Faisões; embora fosse um malnascido. . .

O Dr. Überbein contava essas coisas e Klaus Heinrich fi-

cava inundado de afeto ao escutar. Partilhava o desdém do outro

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pelos que "não precisavam" e de manhã acendiam seu charuto;

medo e alegria comoviam-no com aquilo que Überbein falava

na sua maneira divertida e fanfarrona sobre a "experiência", a

"compreensão" e a severa face da vida, e seguia, com simpatia

pssoal, sua vida infeliz e corajosa, desde o dinheiro pago para��

ciue ficassem com ele até seu emprego de professor de liceu.

Era como se fosse, de modo geral, capaz de particípar de uma

c"nversa sobre o destino e a tenacidade. Sentia-se comovido, as

vivências de seus próprios 15 anos emergiam, uma necessidade

de participar e doar o dominava, e tentou falar de si mesmo. Mas

o estranho era que o Dr. Überbein se recusou, resistiu decidi-

damente a essas tentativas.

- Não, não, Klaus Heinrich - disse -, pare com isso.

Peço que não faça confidências! Não que eu não saiba que

tcria muita coisa a me contar . . . Eu sabia de tudo quando

mal o tinha observado durante metade de um dia. Mas está me

compreendendo mal se pensa que pretendo fazê-lo chorar no

meu ombro. Primeiro, cedo ou tarde se arrependeria disso. Se-

gundo, não lhe cabem as alegrias de uma confidência íntima . .

Veja, eu posso tagarelar. Que sou eu? Um professor assistente.

Talvez não um dos piores, mas nada além disso. Um indivíduo

muito comum. Mas e você? O que é você? Isso é mais difícil. . .

I)igamos: um conceito, uma espécíe de ideal. Um receptáculo.

#

t31

Uma existência simbólica, Klaus Heinrich, e por isso uma exis-

tência f ormal. Mas a formalidade e a intimidade - ainda não

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sabe que se excluem mutuamente? Excluem-se, sim. Você não

tem direito à intimidade franca, e se tentasse saberia por si

mesmo que ela não lhe serve, consideraria tudo isso ínadequado

e de mau gosto. Preciso lembrá-lo de sua compostura, Klaus

Heinrich . . .

Este fez uma continência com o chicote, sorrindo. E sor-

rindo seguiram adiante.

Outra vez o Dr. Überbein disse como por acaso:

- A popularidade é uma forma muito profunda, grandio-

sa e abrangente de intimidade. - E não falou mais nisso. .

Por vezes, no verão, nos grandes intervalos entre as aulas

da manhã, sentavam-se juntos no jardim deserto da estalagem

- passeavam, falando sobre qualquer assunto, pelos prados onde

os Faisões jogavam e improvisavam um descanso com limonada

na presença do Sr. Stavenüter. Este limpava a mesa vermelha.

satisfeito, e trazía a límonada pessoalmente. A rolha de vidro

uma bolinha, tinha de ser empurrada no gargalo.

- Coisa puríssima! - dizia o Sr. Stavenüter. - O mais

saudável de tudo. Não é droga, não, Alteza Real. e doutor, mas

suco natural com açúcar, e posso recomendá-lo com a consciên-

cia tranqüila!

Depois mandava seus filhos cantarem em honra da visita.

Eram três, duas meninas' e um menino, e cantavam a três vozes.

Paravam a certa distância, debaixo do teto verde das folbas do

castanheiro, e cantavam canções populares, assoando-se com os

dedos. Uma vez cantaram algo que começava com "Somos todos

humanos" e o Dr. Überbein demonstrou, em seus comentários,

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que aquele número de programa o desagradava.

- Canção podre - disse ele, inclinando-se de lado para

Klaus Heinrich. - Canão vulgar. Cançãozinha leviana, Klaus�

Heinrich, e isso não lhe deve agradar.

Maís tarde, quando as crianças não estavam mais cantan-

do, voltou a falar sobre a canção e designou-a diretamente cle

82

"porca". "Somos todos humanos" - repetíu. - Deus tenha

piedade, sim, sem dúvida, mas talvez se possa lembrar que os

mais notáveis entre nós ainda são aqueles que têm ocasião de

sublinhar essa verdade . . . Veja - disse, recostando-se para trás,

cruzando as pernas e acariciando de baixo para cima a barba ver-

melh. -, veja, Klaus Heinrich, um homem de alguma ambição�

espiritual não poderá deixar de procurar o extraordinário neste

,

mundo vulgar, e ama-lo onde e como llZe aparecer, e tem de

ficar indignado com uma canção tão porca, essa negação pas-

mada de qualquer coisa especial, das coisas nobres e sublimes,

e das que são iguais a isso . . . Estarei falando por experiência

própria? Bobagem! Sou apenas um professor assistente. Mas

sabe Deus o que está perturbando meu sangue . . . não me con-.

tento com dizer que no fundo somos todos meros professores

assistentes. Eu amo o que é singular, em qualquer forma e sen-

tido, amo os que carregam a dignidade de serem exceção, os

marc,dos, os que são visivelmente estrangeiros, todos aqueles�

diantc dos quais o povo faz cara tola. Desejo que amem seu

destino, e não desejo que se contentem com a verdade morna

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e relaxada que acabamos de ouvir há pouco, a três vozes . . .

Por yue me tornei seü professor, Klaus Heinrich? Eu sou um

ciganu, talvez esforçado, sim, mas nasci cigano. Minha desti-

nação de servo de Príncipe não é muito evídente. Por que segui

o chamado com sincera alegria, quando ele chegou em atenção

ao meu esforço, embora eu seja um malnascido? Porque na

sua ferma de vida, Klaus Heinrich, vejo a mais visível, manifesta�

e preservada forma de extraordinário na terra. Tornei-me seu

professor porque desejo manter vivo dentro de você o seu des-

tino. Isolamento, etiqueta, dever, tenacidade, postura, forma-

, lidade - quem vive nisso não teria direito a ser superior?

Deveria, acaso, medir-se segundo coisas humanas e cômodas?

Não! Venha, vamos andar, Klaus Heinrich, se lhe agrada. Esses

#

pequenos Stavenüter são uns moleques grosseiros.

Klaus Heinrich riu; deu aos meninos um pouco do seu de

dinheiro, e foram embora.

83

à

- Sim, sim - disse o Dr. Überbein a Klaus Heinrich

num passeio e:n grupo pela floresta. Havia certa distância entre

éles 'e os Faisões. - Hoje em dia, a necessídade que o espírito

tem de venerar alguma coísa precisa reduzir-se. Onde ainda

existe grandeza? Sim, saúde! Mas, excetuando toda a verda-

deira grandeza e destinação, ainda existe aquilo que chamo de

nobreza, formas de vida escolhidas, melancolicamente isoladas,

da's quais nos devemos aproximar com a maís terna das simpa-

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tias. De resto, a grandeza é forte, usa botas de cano alto, não

precísa dos refinamentos do espírito. Mas a nobreza é como-

vente. . . que o Diabo me leve, é a coisa mais comovente da

terra.

Algumas vezes por ano, os Faisões iam à Residência para

assistirem a óperas e dramas clássicos no Teatro da Corte; espe-

cialmente o aniversário de Klaus Heínrich era comemorado com

essa ida ao teatro. Ele sentava-se cal.mamente em sua poltrona

arqueada, junto da balaustrada de veludo, num camarote for-

rado de vermelho, no proscênio, cujo teto repousava sobre as

cabeças de duas esculturas femininas com mãos cruzadas e rostos

severos e vazios, via seus colegas príncipes, cujos destinos se

desenrolavam no palco, enquanto ele próprio suportava os binó-

culos de ópera que de tempos em tempos, mesmo durante a

apresentação, o público lhe dirigia. O Professor Kürtchen sen-

tava-se à sua esquerda e o Dr. Überbein, com os Faisões, num

camarote lateral. Uma vez assistiram a A f lauta mágica, e na

volta dos Faisões para a estação, no vagão de primeira classe,

o Dr. Überbein fez todo o pensionato dar risada imitando a

maneíra de falar dos cantores quando seu papel os obriga a pas-

sarem ao diálogo em prosa.

- Ele é um Príncipe! - disse em tom melífluo, e res-

pondeu a si mesmo no tom cantante e arrastado de um pastor:

- Ele é mais que isso; é um ser humano!

Até o Professor Kürtchen se divertiu, dando risadas agi.-�

das. Mas no dia seguinte, durante uma aula particular na sala

84

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de estüdos de Klaus Heinrich, com a mesa de mogno redonda,

o Dr. Überbein repetiú sua paródia e disse:

- Santo Deus, naquele tempo isso era novo, uma men-

sagem, uma verdade espantosa! . . . Há paradoxos que estive-

ram tanto tempo de pernas para o ar que é preciso colocá-los

de cabeça para cima a fim de torná-los novamente paradoxais . '. .

"Ele é mn ser humano . . . ele é mais do que isso" . . . é ousado

é mais belo, e até mais verdadeiro . . . O contrário é mera hu-

manidade; mas não gosto muito da humanidade, gosto de falar

nela com desprezo. É pt'eciso pertencer àqueles dos quais o povo

diz: "Af inal, eles também são humanos . . . ", ou a gente acaba

sem graça, como professor assistente. Não posso desejar since-

ramente o nivelamento geral. e confortável entre conflitos e dis-

tâncias, yue Deus me ajude, sou assim mesmo, e para mim a

imagem do principe uomo é um horror. Não espero que ela lhe

agrade especialmente, Klaus Heinrich... Veja, sempre houve

príncipes e pessoas extraordinárias que levaram levianamente sua

existência de exceção, inconscientes da sua dignidade, ou rege-

nerando-a grosseiramente, capazes de jogar bolão em mangas de

camisa com os burgueses sem sentirem um doloroso dilacera-

mento interior. Mas são coisas sem importância, como aliás

é desimpòrtante tudo que tem pouco espírito. Pois o espírito,

Klaus Heinrich, o espírito é o preceptor que insiste implacavel-

mente na dignidade; sim, a dignidade é criada por ele, ele é o

inimigo mortal e nobre adversário de todo o conformismo hu-

mano. "Mais que isso?" Não! Kepresentar, estar em lugar de

muitos na medida em que nos expomos, ser a expressão eno-

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brecida e disciplinada da multidão - naturalmente, representar

é mais sublime do que simplesmente ser, Klaus Heinrich . . . por

isso o chamam de Alteza . . .

#

Assim explicava o Dr. Überbeín, em voz alta, em tom sín-

cero e linguagem ágil, e o que ele dizia influenciava o pensa-

mento e a consciência de Klaus Heinrich, talvez mais do que

seria conveniente. Naquele tempo, o Príncipe tinha 15, 16 anos;

portanto, era bem capacitado para - se não realmente enten-

85

der, ao menos assímilar essas palavras em sua essência. O decí-

sívo foi que os ensinamentos e desabafos do Dr. Überbein eram

incrivelmente corroborados por sua personalidade. Quando O

Professor Droge, que Eazia mesuras para os lacaios, lembrara

Klaus Heinrich de sua "nobre missão", fora apenas uma forma

tradicional de falar, para sublinhar suas exigências conretas e,�

no fundo, sem maior sentido. Mas quando o Dr. Überbein, um

malnascido, como dizia, com seu rosto esverdeado porque pas-

sara fome, quando esse homem, que retirara uma criança de um

pântano ou charco, que vira coisas e tivera experiêncías, que

não apenas nunca fazia mesuras para lacaios, mas, eventual-

mente, até gritava com eles, e que, no terceiro dia, sem pedir

licença, símplesmente chamara Klaus Heinrich pelo nome -

quando ele explicava com sorriso paternal que Klaus Heinrich

"andava nos píncaros da humanidade" (gostava de usar essa

imagem), isso era algo espontâneo, novo, experimentado, por

assim dizer, ecoando nas profundezas. Quando Klaus Heinrich

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escutava os relatos alegres e ruidosos do doutor sobre sua vida.

sobre "a face severa da vida", sentia-se como naquela vez em

que explorara o Castelo com sua irmã Ditlínde. E o fato de

aquele homem, que falava assim de sí mesmo, aquele "homem

experimentado". como dízía, não se portar em relação a Klaus

Heinrich com estranheza e devoção, como os demais, porém,

sem prejuízo de um respeíto livre e alegre, tratá-lo como cama-

rada de destino e de tenacidade, isso aquecia o coração do rapaz

com uma indizível gratidão e formava o encantamento que o

ligou para sempre ao professor . . .

Pouco depois do seu 16." aniversário (Albrecht, o Prínci-

pe herdeiro, já naquele tempo estava no Sul, por causa da saú-

de), o Príncípe, juntamente com os cinco Faisões, fora conrir-

mado na ígreja da Corte - e o Mensageíro dera a noticia sem

fazer sensacionalismo. O presidente do Conselho da Igreja, D.

Wislizenus, fez contraponto sobre um motivo da Bíblia, que

mais uma vez o Grão-Duque escolhera, e nessa ocasião Klaus

Heinrich foi nomeado Tenente, embora não entendesse coisa al-

86

guma de assuntos militares . . . Cada vez mais, toda a objetivi-

dade se evadia de sua vida. E assim também a cerimônia da

confirmação não teve maior significação, e o Príncipe voltou logo ,

depois, calmamente, ao Castelo dos Faisões, para prosseguir sua

vida no círculo dos professores e colegas, sem alteração.

Scí um ano depois é que deixou seu quarto antiquado e

simples de estudante, com o torso sobre a lareira de azule-

jos - o pensionato se desfazia e, enquanto os cinco camaradas

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nobres passavam para o corpo de cadetes, Klaus Heinrich vol-

tou a residir no Castelo Velho, para, segundo uma combinação

do Sr. von Knobelsdor:f com o Grão-Duque, freqüentar por

um ano o liceu da Residência, na última série. Era uma medida

popular e bem-pensada, mas, do ponto de vista objetivo, não

mudava muita coisa. O Professor Kürtchen voltou ao seu posto

na escola pública, continuou dando aulas de várias matérias a

Klaus Heinrich e, na escola, tratava de manífestar seu tato

com mais zelo que no internato. Além disso, ficou provado que

transmitira aos outros professores a combinação quanto às duas

maneiras de o Príncipe reagir diante de uma pergunta. O Dr.

L7berbein, que também voltara ao Liceu, ainda não avançara o

suficiente em sua síngular carreira para lecionar na última série.

Mas, por um pedido ínsistente de Klaus Heinrich, que o trans-

mitiu ao Grão-Duque indiretamente - por assim dizer, pela

passagem de serviço, através do benevolente Sr. von Knobels-

dorff , o professor assistente fora nomeado professor repe-

tidor e orientador dos estudos em asa; vinha diariamente ao�

C;astelo, gritava com os lacaios, e agora também tinha ocasião

de influenciar o Príncipe com suas falas atrevídas e românticas.

#

Talvez se atribuísse a essa influência permanente o fato de

as relações de Klaus Heinrich com os jovens com quem divi-

dia o banco escolar todo riscado serem ainda mais frouxas e

distantes do que aquelas que mantínha com os cinco rapazes no

Castelo dos Faisões, e de o c'jetivo popular desse ano ter fa-�

lhado. Os intervalos, que nos períodos de inverno e verão todos

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os alunos passavam no pátio amplo e ladrilhado, ofereciam opor- i

87

tunidade para camaradagem. Mas esses intervalos, destinados ao

descanso, significavam para Klaus Heinrich o verdadeiro esfor-

ço, peculiar à sua vida. Naturalmente, ao menos na primeira

quarta parte do ano, ele era objeto de curiosidade geral no pátio

da escola: o que não lhe era fácil, pois ali o ambiente não lhe

concedia qualquer distinção e amparo exterior, e ele tinha de

caminhar no mesmo chão em que caminhavam aqueles que se

uniam contra ele para o contemplarem. Os pequenos, cheios de

infantil irresponsabilidade, paravam bem perto, inconscientes, e

olhavam boquiabertos, enquanto os maiores o rodeavam, dis-

farçando, de olhos arregalados, ou o espiavam de lado, ou de

baixo para cima . . . Isso, com o tempo, diminuiu um pouco,

mas ainda assim - fosse de quem fosse a culpa, de Klaus Hein-

rich ou da multidão -, mesmo mais tarde, a camaradagem com

os outros não progredia direito. Via-se o Príncipe, à direita do

Diretor ou do Professor vigilante, seguido e rodeado de curio-

sos, andando de um lado para outro no pátio. Viam-no também

no pátio da sua classe, conversando com colegas. Uma bela visão!

Ele se recostava, meio sentado, no parapeito oblíquo do muro

de tijolos vitrificados, pés cruzados, mão esquerda bem atrás no

quadril, os 15 alunos da última série à sua frente em frouxo

semicírculo. Eram só 15 naquele ano, pois as últimas transferên-

cias tinham sido feitas tendo em vista que não avançassem para

essa classe elementos que, pela origem ou qualidades pessoais,

fossem inadequados para conviver nessa familiaridade com Klaus

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Heinrich durante um ano inteiro, tratando-o por você. Pois esse

era o tratamento prescríto. Klaus Heinrich falava com um deles,

que se destacara um pouco do semicírculo, aproximando-se mais

dele, e que lhe respondia a cada vez com pequenas mesuras.

Os dois sorriam. As pessoas sempre sorriam ao falarem com

Klaus Heinrich. Ele perguntava, por exemplo:

- Você já fez a redação em alemão para a terça-feira?

- Não, Príncipe Klaus Heinrich, não terminei, ainda não

fiz a conclusão.

- Tema difícil. Ainda nem sei o que vou escrever.

88

- Oh, o senhor . . . você vai conseguir!

- Não, é difícil. Você tirou 10 em matemática?

- Sim, Príncipe Klaus Heinrich, tive sorte.

- Não, foi merecido. Eu nunca vou entender nada disso!

O semicírculo aplaude, divertido. Klaus Heinrich dirige-se

a outro colega, e o primeiro recua depressa. Todos sentiam que,

na verdade, não se tratava de redação, nem de matemática, mas

da conversa como processo e ação em si. O que importava era

a postura e o tom, avançar e recuar, o curso harmonioso de uma

ocasião delicada, fria, superior às coisas comuns. Talvez dessa

noção viesse o sorríso dos rostos.

Por vezes, quando tinha aquele grupo diante de si, Klaus

Heinrich dizia algo como:

- O Professor Nicolovius parece uma coruja.

Os colegas exultavam. Relaxavam a esse sinal dado, exce-

diam-se, faziam "ho-ho-ho! " em coro, com suas vozes que aca-

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bavam de adquirir virilidade, e numa dessas ocasiões um deles

disse que Klaus Heinrich era "um cara e tanto". Mas este não

dizia esse tipo de coisa freqüentemente, só quando via os sor-

risos nos rostos ficarem hirtos é vazios, via o tédio, sim, a impa-

ciência dominando as fisionomias; dizia isso para que se disten-

dessem, e observava, meio curioso, meio assustado, o breve

movimento de animação que desencadeara.

Não fora Anselm Schickedanz que o chamara de "um cara

e tanto", mas fora exatamente por causa dele que Klaus Hein-

rich fizera aquela comparação do Professor Nicolovius com uma

#

coruja. Anselm também rira da piada insolente, mas não em

tom de aprovação, e sim como quem diz: "Ah, meu Deus!"

Era rapaz moreno, de quadris estreitos, e tinha na escola toda

a fama de ser um sujeito danado. Naquele ano, o comportamento

da última série era excelente. Todos os jovens tinham consciên-

cia do compromisso que era participar das aulas com Klaus Hein-

rich, e isso lhes fora demonstrado de todos os lados. E não seria

Klaus Heinrich quem os faria ignorar esse compromisso. Mas

ouvira dizer várias vezes que Anselm Schickedanz era um sujeito

89

danado e, quando olhava para ele, Klaus Heinrich estava dis-

posto, com certa alegria, a acreditar no que se dízia, embora lhe

fosse obscuro e enigmático entender como ele conseguira essa

fama. Secretamente, informara-se várias vezes, mencionara o as-

sunto como que por acaso e procurara saber com um e outro

alguma coisa sobre essa danação do Schickedanz. Não soube de

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nada ao certo. Mas as respostas, cheias de ódio ou elogiosas, de-

ram-lhe idéia de um incrível encanto, uma humanídade ilícita-

mente bela, que existia para todos verem menos ele - e essa

sensação era dolorosa. Alguém disse sobre Anselm Schickedanz.

usando o tratamento proibido: .

- Sim, Alteza, devíeis vê-lo quando não estais presente!

Klaus Heinrich jamais o veria quando não estivesse presen-

te, jamais se aproximaria dele, jamaís o conheceria. Contempla-

va-o disfarçadamente, quando ele estava à sua frente no sem-�

círculo com os outros, sorridente e controlado como todos. T-�

dos se controlavam na presença de Klaus Heinrich, sua pró-

pria maneira de ser era culpada disso, ele bem o sabia, e jamais

veria como era Schickedanz, como se portava quando ficava G

i vontade. Era como um ciúme, como uma leve e calcinante

pena..

Nesse período, aconteceu um fato penoso, sim, escandalo-

so, do qual o casal de Grão-Duques nada soube porque o Dr.

Überbein nada comentou, e sobre o qual praticamente nada

' transpirou na Residência, pois todos os que tiveram participa-

ção e culpa silenciaram depois, por uma espécie de pudor. Tra-

ta-se das impertinências que aconteceram na presença do Prín-

cipe Klaus Heinrich no Baile Municipal daquele ano, e das quais

i participou principalmente uma certa Srta. Ursul Unschlítt, filh:�

de um rico fabricante de sabão.

O Baile Municipal era acontecimento permanente na vida

social da capital, uma festa oficial mas descontraída, que, ofere-

cida pela cidade, acontecia todo inverno na estalagem Zum Bür-

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gergarten, grande estabelecimento, ainda recentemente ampliado

e renovado, no bairro sul, e que oferecia aos meios burgueses

90

oportunidade de confraternizar com a Corte. Sabia-se que Johann

Albrecht III jamais apreciara essa ocasião civil pouco tormali-

zada, à qual comparecia de casaca preta para abrir a polonaise

com a senhora do Prefeito, e da qual costumava retirar-se o

mais cedo possível. Tanto mais agradou a todos que seu segundo

filho, embora ainda não obrigado a isso, aparecesse no baile

daquele ano; e, como se soube, a seu próprio e insistente pe-

dido. Ouvira-se dizer que o Príncípe pedira qóe Sua Excelên-

cia von Knobelsdorff transmitisse seu ardente desejo à Grâ-

Duquesa, e esta por sua vez conseguira a permissão com o ma-

rido . . .

Externamente, a festa transcorreu como sempre. As mais

altas personalidades, a Princesa Katharina com vestido de seda

tíngida e chapeuzinho, acompanhada dos filhos ruívos, o Prínci-

pe Lambert com sua bela esposa; por fim, .Johann Albrecht, com

Dorothea e o Príncipe Klaus Heinrich, apareceu de carruagem

diante do Bürgergarten, saudado no vestíbulo pelas autoridades

municipais, em cujos fraques se viam rosetas de longas fitas.

Vários ministros, ajudantes em trajes civis, inúmeros cavalhei-

ros e damas da Corte. os maíorais da sociedade, além de pro-

prietários de terras da região, estavam presentes. No grande

salão principal, o salão branco, o casal de Grão-Duques passou

por uma série de apresentações; depois, ao som da música da

orquestra colocada sobre o estrado, ahriram o baile, Johann Al-

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brecht com a mulher do Prefeito, Dorothea com o proprio. De-

pois, enquanto a polonaise se desfazia e todos passavam a dan-

çar normalmente, e a alegria aumentava, as faces ficavam aca-

loradas, e brotavam relacionamentos doces, lânguidos. dolori-

dos, por toda parte, nos calidos vapores humanos da festa, os

senhores mais nobres ficaram como nobres senhores costumam

ficar nessas ocasiões: excluídos, sorrmdo tolerantemente na ex-

tremidade do salão, junto ao estrado. De tempos em tempos,

Johann Albrecht falava com algum senhor respeitado, e Doro-

thea, com alguma dama. Os interpelados aproximavam-se e re-

cuavam depressa, muito atentos, mantinham dístância numa vaga

9i

mesura, com cabeças tortas, faziam que sim, faziam que não,

riam nessa postura diante das perguntas e comentários que se

lhes faziam, respondiam com muito zelo, entregues ao momento,

passando bruscamente da hilaridade à seriedade profunda, com

uma paixão que sem dúvida não existia no seu dia-a-dia, obvia-

mente em estado de excitação. Curiosos, ainda ofegantes da

dança, paravam em semicírculo, assistindo a esses diálogos in-

substanciais, com expressáo singularmente tensa, evidenciada

pelo sorriso de sobrancelhas arqueadas.

Muita atenção se concentrava em Klaus Heinrich. Ele se

postava com dois primos de cabelo vermelho que já estavam

no Exército, mas no momento usavam trajes civis, um pouco

atrás dos pais, descansando sobre uma perna, a mão esquerda

apoiada bem atrás no quadril, virando para o público o perfil

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direito. Um repórter do Mensageiro, enviado para cobrir a festa,

tomava notas sobre ele, num canto. Viram o Príncipe cumpri-

mentar, com a direita enluvada de branco, seu mestre, o Dr.

Überbein, que vinha ao longo da fileira de assistentes, com seu

rosto esverdeado e a barba vermelha, e viram o Príncipe até

caminhar um trecho em sua direção na salz. O doutor, grandes

botões esmaltados no peito da camisa, fez uma mesura quando

Klaus Heinrich lhe estendeu a mão, mas depois começou ime-

diatamente a falar com ele naquela sua maneira espontânea e

paternal. O Príncipe parecia recusar, com um sorriso inquieto.

Mas depois uma porção de gente ouviu o Dr. Überbein excla-

mar:

- Nada disso, Klaus Heinrich, que bobagem . . . para que,

afinal, aprendeu tudo aquilo? Para que foi que a madame da

Suíça lhe ensinou tudo ainda menino? Não entendo por que

vem a um baile se não quer dançar! Um, dois, três, e ainda por

cima se conhece gente nova!

E, entre constantes piadas, apresentou ao Príncipe quatro,

cinco mocinhas, que simplesmente ia pegando pela mão e levan-

do consigo. Elas mergulhavam e emergiam, uma após a outra,

nas ondas de suas mesuras, mordiam o lábio inferior e se esfor-

92

çavam. Klaus Heinrich ficou parado, de calcanhares umdos di-

zendo:

- Prazer . . . Prazer . . .

A uma delas, até disse:

- Baile divertido, não é, senhorita?

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- ,Sim, Alteza, estamos nos divertindo muito - respon-

deu ela com voz aguda de passarinho. Era uma mocinha bur-

guesa alta, embora meio ossuda, vestindo tule branco, cabelo

louro ondulado, repartido, afofado por cima do belo rosto, cor-

dão de ouro no pescoço nu com clavículas salientes e grandes

mãos brancas em meias-luvas. E acrescentou:

- Agora é a vez da quadrilha. Sua Alteza quer dançar

conosco?

- Não sei . . . - disse ele. - Realmente, não sei . . .

Ele olhou em torno. Com efeito, o movimento do salão

alinhava-se em ordem geométrica. Organizavam-se filas, pessoas

chamavam umas às outras. A música continuava muda.

Klaus Heinrich indagou aos primos. Sim, iam participar,

já estavam com suas felizes parceiras pela mão.

Viram Klaus Heinrich aproximar-se por trás da poltrona

de damasco vermelho de sua mãe, dirigindo-lhe palavras ani-

madas em tom abafado - viram-na transmitir a pergunta ao

#

marido, com um lindo movimento de cabeça, e viram o Grão-

Duque concordar, baixando a cabeça em sinal afirmativo. E sor-

riram um pouco vendo a precipitação jut,enil com que o Prín-

cipe saiu dali para não perder o começo da dança.

O enviado do rllensageiro, caderninho de notas numa das�

mãos e lápis na outra, espiava de seu canto, inclinando-se para

diante, a fim de ver quem o Príncipe convidaria. Era a loura

alta de clavículas salientes e grandes mãos alvas, a Srta. Un-

schlitt, filha do fabricante de sabão. Ela ainda estava .onde Klaus

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Heinrich a deixara.

- Ainda está aí? - disse ele, ofegante. - Quer dançar

comigo? . . . Venha!

93

-s fileiras estavam completas. Andaram um pouco por�

ali e não encontraram lugar. iJm senhor com roseta e fíta veio

tiepressa, pegou um casal de jovens pelos ombros e fez com que

cedessem o lugar debaixo do lustre, para que Sua Alteza pudesse

postar-se ali com a Srta. Unschlitt. A música hesitara, agora ata-

cava firme, começaram os passos e saudações, e Klaus Heinrich

girou com os demais.

as portas das salas laterais estavam abertas. Numa delas,

via-se o bufê com vasos de flores, terrinas de ponche, traves-

sas com pãezinhos coloridos. A dança ia até lá; dois grupos

faziam evoluções no salão do bufê. Nos outros salões, havia

mesas com toalhas alvas, ainda vazias.

Klaus Heinrich andava em frente e para trás, sorria para

aqueles rostos, estendia sua mão, pegava mãos, a toda hora a

granae mão branca de sua parceira, passava o braço direito pela

macia cintura cïe tule áa moça e girava com ela no lugar, com

a mão esquerda, também vestida de uma pequena luva branca,

no quaáril. Todos falavam e riam enquanto giravam e andavam.

Ele cometia erros, não se iembrava direito, atrapalhava as evo-

luções, e ficou parado sem saber seu Iugar.

- Você tem de me avisar quando eu errar! - disse na

confusão. - Estou perturbando tudo! Pode me dar umas

cotoveladas! - E aos poucos encorajaram-se e o foram preve-

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nindo, comandando-o entre sorrísos, até o tocarem com a mão

e o empurrarem um pouquinho, quando preciso. Era principal-

mente a bela moça das clavículas que o empurrava.

A cada volta, a animação crescia. Os movimentos ticaram

mais livres, os chamados, mais atrevidos. Começaram a bater os

pés no chão, balançando o corpo ao avançar e recuar, seguran-

do-se as mãos, os braços como balanços. 'Também Klaus Hein-

rich batia os pés no chão, primeiro de leve, depois mais rirme.

A bela moça cuidou de que seus braços balançassem quando

avançavam uns para os outros. E a cada vez que dançava ao

encontro dele, fazia, à sua frente, uma exagerada mesura, o que

aumentava ainda mais a alegria geral.

94

No salão do bufê ouviram-se rísadínhas, e todos olharam

; para lá, com inveja. Alguém saíra da fileira em meio à dança,

roubara um canapé do bufê, num salto, e voltara a dançar, mas-

tigando, enquanto os outros riam.

- Mas que atrevídos! - dísse a bela moça. - Esses aí

estão se divertindo! - E não teve mais sossego. Logo saiu

correndo, leve e ágil entre as fileiras, pegou um canapé e vol-

tou .

Klaus Heínrích aplaudiu, maís entusíasmado que todos. Não

;.ra muito fácil com sua mão esquerda, de modo que ele batia a

direita na coxa e se curvava de tanto rir. Depois, ficou mais

quieto, um tanto pálido. Lutava consigo mesmo. .. a quadri-

lha aproximava-se do fim. Tinha de fazer rapidamente o que

queria fazer. Chegara a hora das cadeias inglesas, e quando era

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quase tarde demais ele fez aquilo por que lutara. Saiu corren-

do depressa entre os dançarinos, pedindo desculpas a meia voz,

quando empurrava alguém, chegou ao bufê, pegou um canapé,

correu de volta, entrou na sua fileira . . . Mas não foi tudo.

Levou o canapé, de ovo e sardinha, aos lábios de sua parceira,

a menina das grandes mãos brancas - eIa ínclínou-se um pou-

co para diante, mordeu.; mordeu sem usar as mãos, mordeu

#

metade do sanduíche... e, atírando a cabeça para trás, ele

meteu o resto na própria boca!

A anímação do grupo passou para a grande cadeia que co-

meçava. Ao redor da sala, agora, todos se cruzavam e entrela-

çavam, davam-se as máos, andavam em curvas, volteios. Depois

pararam, mudaram de direão, mais uma vez voltaram, rindo e�

conversando, enganando-se, confundíndo-se, tumultos rapida-

mente resolvídvs.

Klaus Heinrich apertava as mãos que recebía, sem saber

de quem eram. Sorria, ofegava. Seu cabelo líso e repartido e-�

tava solto, parte caía sobre a testa; o peitilho saía um pouco

do colete e, em seu rosto, os olhos acalorados, aparecia o entu-

siasmo comovido e doce que por vezes expressa felicidade. En-

` quanto andava e dava as mãos, ele disse várias vezes �

95

- Como estamos nos divertindo! Como estamos nos di-

vertindo! - e encontrou seus primos e também lhes disse: -

Como estamos nos divertindo. . . lá do outro lado!

Depois, palmas e reencontros: estavam chegando ao fim.

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Klaus Heinrich estava uma vez mais frente à bela moça das

clavículas; e, mudando o ritmo, colocou mais uma vez o braço

na cintura macía dela, e dançaram na confusão.

Klaus Heinrich não a conduzia bem, e seguidamente batia

nos outros casais, pois mantinha a mão esquerda no quadril;

mas de al.guma forma levou sua dama à entrada do bufê, onde

pararam e tomaram ponche de ananás servido por dois garçons.

Sentaram-se logo na entrada, sobre dois tamboretes de veludo,

beberam e falaram da quadrilha, do baile, de outras reuniões

sociais de que a bela moça já participara naquele inverno . . .

Nesse momento, um cavalheiro do séquito, o Major von

Platow, Ajudante do Grão-Duque, postou-se diante de Klaus

Heinrich, curvou-se e pediu permissão para avisar que Suas

Altezas estavam indo embora. E haviam-no encarregado de . . .

Mas Klaus manifestou de modo tão vívo o desejo de poder ficar

que o Ajudante não conseguiu cumprir ua missão. O Príncipe�

soltou exclamações quase indignadas, obvíamente a idéía de ír

para casa agora lhe era muito dolorosa.

- Mas estamos nos divertindo tanto! - disse ele, er-

guendo-se e até pegando de leve o braço do Major. - Caro

Sr. von Platow, por favor, intervenha em meu favor! - Fale

com o Sr. von Knobelsdorff, faça o que quiser, mas ir embora

agora que estamos nos dívertindo tanto . . . Estou certo de que

meus primos também vão ficar . . .

O Major encarou a bela moça de grandes mãos brancas,

que lhe sorriu; também ele sorriu e prometeu fazer o possível.

A pequena cena desenrolou-se enquanto, na entrada do Bürger-

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garten, o Grão-Duque e a Grâ-Duquesa já se despediam das

autoridades. Logo depois, a dança recomeçou no primeiro andar.

A festa estava no auge. Todas as atitudes oficiais tinham

sido dispensadas, e agora as pessoas se punham à vontade. As

96

mesas brancas das salas laterais estavam ocupadas por famílias

bebendo ponche e ceando. A juventude corria de um lado para

outro, sentava-se inquieta e acalorada na beira das cadeiras para

beber um cálice e precipitar-se de novo na dança. No andar tér-

reo, havia uma cervejaria em estilo alemão antigo, cheia de se-

nhores corpulentos. O grande salão de baile e a sala do bufê

estavam agora inteiramente ocupados pela juventude, louca por

dançar. O bufê estava lotado com 15 ou 18 jovens, filhas e fi-

lhos da cidade, entre eles Klaus Heinrich. Lá se desenrolava uma

espécie de baile particular. Dançavam ao som da música do

salão principal.

O Dr. 'Überbein, professor do Príncipe, apareceu breve-

mente, e teve um rápido diálogo com seu aluno. Ouviram-no,

relógio de bolso na mão, mencionar o Sr. von Knobelsdorff,

dizendo que este se achava na cervejaria, lá embaixo, e que

voltaria para apanhar o Príncipe. Depoís, saiu. Eram 10h30min.

Enquanto ele estava sentado lá embaixo com um caneco

de cerveja, conversando com conhecidos, apenas mais uma hora

ou hora e meia, não mais que isso, aconteciam no bufê os fatos

#

escandalosos, aqueles excessos que, infelizmente tarde demais,

o Dr. Überbein acabou encerrando.

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O ponche que estava bebendo era leve, tinha mais água

mineral do que champanha. E se os jovens haviam perdido O

equilíbrio interior era antes devido à vertigem da dança do que

ao vinho. Mas, com o caráter do Príncipe e a boa origem bur-

guesa dos demais, isso não bastava para explicar o que acon-

teceu. Uma embriaguez diferente, singular, agia ali, dos dois

lados . . . O estranho era que Klaus Heinrich notava exatamente

as diversas fases dessa embriaguez, mas mesmo assim foi inca-

paz; ou sem força, para se livrar dela.

Estava feliz. Sentia nas faces o mesmo calor que via arder

nos rostos dos outros, e seu olhar, obscurecido por leve pertur-

bação, girava, abrangia encantado um vulto após outro, e dizia:

Nós! Também sua boca o dizia, pronunciava, com uma feliz

97

voz interior, frases contendo "nós". Nós vamos nos sentar, nós

vamos beber, vamos dançar de novo, vamos. Especialmente à

moça das clavículas, Klaus Heinrich falava usando o "nós". Es-

quecera totalmente a mão esquerda, que pendia solta, sua ale-

gria não era inibida por ela, nem pensava em escondê-la. Muitos

só agora reparavam o que realmente havia com essa mão, e

olhavam, curiosos ou com uma aareta inconsciente, o braço fino

e curto na manga do fraque, a luva pequena de glacê branco.

já um pouco suja, que revestia aquela mão. Mas, coma Klaus

Heinrich não estivesse nem um pouco preocupado com ela, ani-

maram-se também quanto a isso, e alguém acabou pegando,

despreocupado, na dança em ciranda ou em fileiras, aquela mão

mirrada . . .

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Ele não a retirou. Sentia-se impelido, mais ainda, arreba-

tado pela felicidade, um bem-estar intenso e desenfreado, que

crescia, que se incendiava em si mesmo, dominando-o mais for-

temente, sufocante, levando-o nos ombros em triunfo. Que es-

tava acontecendo? Era difícil dizer, entender. Havia palavras

no ar, chamados fragmentados, coisas não-pronunciadas, mas ex-

pressas nos rostos, na postura, no que se dizia e se fazia:

- Ele que . . . !

- Puxem-no, puxem-no . . . !

- Peguem nela, peguem de novo . . . !

Uma mocinha de nariz arrebitado que o convidou para o

galope na dança das damas disse claramente, sem que houvesse

motivo óbvio:

- Que nada! - quando chegou a hora de sair disparan-

do com ele.

Klaus Heinrich via cintil.ar um desejo em todos os olhos.

e viu que todos tinham vontade de puxá-lo para baixo, para s:.

para que ficasse entre eles, lá embaixo, no seu nível. . . Na suri

felícidade, no seu sonho de estar com eles, entre 'eles, de ser

um deles, feria-o de tempos em tempos a constatação gelada.

dolorida, de que estava enganado, de que aquele deliciaso e ca-

lido "nós" o iludía, que mesmo assim não se diluía neles, can-

98

tinuando apenas centro e objeto, mais diferente que de costu-

me, e pior. Eram, de certa forma, inimigos, percebia isso na-

' quele desejo de destruição em seus olhos. Ouvia como de longe

com um susto singularmente quente, a hela moça de grandes

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mãos brancas chamá-lo simplesmente pelo nome - e sentíu

muito bem que não era como o Dr. Überbein o fazia. Ela tinha

direito e permissão de fazer isso, de certa forma, mas quem ali

protegeria a sua dignidade, se ele próprio não o fizesse? Sentia

como se puxassem suas roupas, e por vezes havia explosões

loucas e irônicas naquele entusiasmo. Um rapaz alto e louro, de

monóculo, em quem ele esbarrara ao dançar, falou alto, para

todos ouvírem:

- lVão pode ter um pouco mais de cuidado?

E havia maldade no modo como a bela moça, braço enfia-

do no dele, girava longamente, expondo os dentes, até a verti-

gem máxima. Enquanto giravam, ele fitava com olhos enevoa-

dos aquelas clavículas que se desenhavam no pescoço dela, re-

cobertas de uma pele branca, um pouco dura . . .

#

Os dois caíram. Tinham girado demais, e caíram quando

tentaram fazer parar a ciranda; e sobre eles tropeçou outro

casal, aliás, não por si, mas empurrado pelo rapaz alto de

monóculo. Houve uma confusão no assoalho, e Klaus Heinrich

escutou, sobre sua cabeça, na sala, o coro que conhecia do páttio

da escola, quando tentava uma piada mais livre para que os

outros relaxassem, um "Ho, ho, ho! ", aqui, porém, maligno

e desenfreado . . .

Quando, logo após a meia-noite, infelizment;, ç: algum� �

atraso, o Dr. Überbein apareceu na soleira do bufê, viu o se-

guinte espetáculo: seu jovem aluno sentado sozinh no sofá de�

veludo verde na parede esquerda, com o fra.ue desalinhado,� �

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enfeitado de todo jeito. Muitas flores, antes em dois vãsos chi-

neses no bufê, estavam enfíadas no decote do seu colete, entre

os botões do peito da camisa, até o colarinho du~o; ao redor de

1

' seu pescoço estava a corrente de ouro da mocinha das clavículas;

99

e sobre sua cabeça balançava, como chapéu, a tampa chata, de

metal, de uma terrina de ponche. Ele murmurava:

- Que é que vocês estão fazendo . . . que é que estão

fazendo . . . - enquanto os bailarinos, dando-se as mãos em

semicírculo, dançavam diante dele para um lado e para o outro,

com exclamações de júbilo, risadinhas, e "ho, ho, ho" mal-aba-

fados.

No rosto verde do Dr. lJberbein, por baixo dos olhos, apa-

receu um vermelhão estranho e incongruente.

- Acabou! Acabou! ! - gritou ele com sua voz forte, e

no súbito silêncio, consternação, lucidez, foi até o Príncipe,

com passos largos, tirou as fl.ores com dois, três gestos, jogou

de lado a corrente e a tampa, fez uma mesura e disse com

rosto grave:

- Posso pedir agora que Vossa Alteza. . .

E lá fora repetia:

- Fuí um burro, um burro!

Klaus Heinrich saiu em sua companhia do Baile Municipal.

Foi esse o penoso acontecimento do ano escolar de Klaus

Heinrich. Como se disse, nenhum dos partícipantes comentou

nada - e o Dr. Überbein nada falou com o Príncipe durante

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anos. E, como ninguém falasse no assunto, ele não teve subs-

tância, diluiu-se de imediato no esquecimento, ao menos apa-

rentemente.

O Baile Municipal fora em janeiro. A terça-feira de Car-

naval, com o Baile da Corte, e a grande noitada na Corte no

Castelo Velho, com que se fechava a temporada social do ano

- festas regulares, das quais Klaus Heinrich ainda estava excluí-

do -, já haviam passado. Depois veio a Páscoa, e com ela o

fim do ano do liceu; o exame de maturidade de Klaus Heinrich,

aquela bela formalidade na qual ocorreu tão freqüentemente a

pergunta dos professores: "Não é verdade, Alteza?", e na qual

o Príncipe desempenhou com elegância seu destacado papel.

Não foi um corte profundo: Klaus Heinrich contínuou na Re-

sidência. Mas, depois de Pentecostes, aproximou-se seu 18." ani-

100

de versário, e ao mesmo tempo uma série de atos festivos, com

os quais começaria uma séria mudança em sua vida, e que o

oneraram dias a fio com encargos importantes e cansativos.

tão�

em Ele chegou à maioridade, foi declarado independente. Pela

tro, primeira vez depois do batizado, voltou a ser o centro de toda

lba- as atenções, com o papel principal numa grande cerimônia; mas

, se naquela vez ele se entregara às formalidades calado, despreo-

cupado e passivo, agora, entre as severas prescrições e linhas

pré-traçadas, enrolado nas pregas de tantos costumes cheios de

simbolismo, para alegria e edificação dos presentes, ele conse-

ë, e

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guiu manter bela postura e disciplina. com aparente facilidade.

p,

De resto, não se fala em pregas só metaforicamente, pois

o Príncipe usava um manto de púrpura, traje de grande efeito,

#

já desbotado, que servira ao pai e ao avô quando atingiram a

maioridade, e que, apesar de ter sido arejado dias a fio, ainda

; retinha cheiro de cânfora. O manto de púrpura outrora fizera

parte do traje dos Cavaleiros da Ord.em de Grimmburg, mas

ipal.. agora só era usado como traje cerímonial de príncipes que che-

gavam à maioridade. Albrecht, o Grão-Duque herdeiro, jamais

laus

1tOtl vestira o exemplar da família. Como seu aniversário caía no

inverno, ele sempre o passava no Sul, num lugar de ar quente

ante

ubs- e seco, aoride também pensava voltar naquele outono. E como

na época de seus 18 anos a saúde não lhe tivesse permitido

apa-

voltar para casa, tinham decidido, em sua ausência, emancipá-

lo ofícialmente, desistindo do ato festivo na Corte. . .

Car-

Quanto a Klaus Heinrich, todos, especialmente os repre-

° no

ano sentantes da opinião pública, concordavam em que o manto O

:cluí- vestia magnificamente, e para ele próprio, apesar da limitação de

la o seus movimentos com aquela veste, era um benefício por lhe es-�

rich, ! conder a mão esquerda. Entre a cama de dossel e os armários

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ite a barrigudos do seu quarto de dormir, que ficava no segundo

qual andar, dando para o pátio da roseira, ele se preparava para a

apel, representação, com minúcia e exatidão, ajudado pelo camareiro

i Re- Neumann, homem quieto e cuidadoso, que recentemente lhe fora

! destinado como roupeiro e criado pessoal. Neumann saíra da

101

profissão de cabeleíreiro e possuía, especialmente nas coisas rela-

cionadas com sua antiga profissão, aquela atenção apaíxonada,

aquela eterna insatisfação com seu ideal, das quais nasce uma

capacidade extrema. Ele não barbeava como qualquer pessoa,

não se contentava em remover todos os pêlos; barbeava de modo

a apagar qualquer sombra de barba, qualquer lembrança dela e,

sem ferir a pele, recuperava sua absoluta lisura e maciez. Cor-

tou o cabelo de Klaus Heinrich num ângulo exato sobre as ore-

lhas e o ajeitou com toda a aplicação que, segundo ele, era exi-

gida nesses preparativos de aparição cerimonial. Sabia fazer a

repartição do cabelo de modo a começar sobre o olho esquerdo,

atravessando obliquamente a cabeça através do redemoinho, de

modo que lá em cima não se levantasse um só fio; sabia esco-

var o cabelo do lado direito num monte firme, liberando a testa,

de modo que nem chapéu nem elmo o poderiam despentear.

Depois, com sua ajuda, Klaus Heinrich meteu-se cuídadosamente

no umforme de tenente dos granadeiros, cujo colarinho alto,

cheio de galões, favorecia uma postura disciplinada, colocou a

fita de seda amarelo-limão, a corrente dourada da condecoração

de sua dinastia, e desceu à galeria dos quadros, onde membros

mais íntimos da familia e parentes afastados do casal de Grão-

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Duques já o esperavam. Os cortesãos aguardavam na Sala dos

Cavaleiros, ao lado, e foi lá que Johann Albrecht vestiu o filho

com o manto vermelho.

O Sr. von Bühl zu Bühl organízara uma procissão cerimo-

nial, na qual se dirigiram da Sala dos Cavaleiros à Sala do Trono

- e tudo lhe causara muita dor de cabeça. A organização da

Corte dificultava uma dísposição mais ímpressionante, e o Sr.

von Bühl queixava-se da falta de cargos superiores na Corte,

coisa que, nessas ocasiões, transparecia de maneira muito cons-

trangedora. Recentemente, o Sr. von Bühl também supervisio-

nava as cavalariças reaís, e sentia-se à altura de todos os seus

cargos. Mas perguntava a todo o mundo de onde poderia con-

seguir um cortejo dígno, poís todos os cargos superiores eram

ocupados única e exclusivamente pelo Monteiro-Mor von Stie-

102

glitz e pelo intendente do teatro ducal, um general que sofria

. dos pés.

Enquanto, na qualidade de Marechal-da-Corte, Mestre-de-

Cerimônias e Marechal-da-Casa, em sua roupa bordada e topete

castanho, coberto de condecorações como um rei, óculos doura-

dos no nariz, num caminhar buliçoso, segurando à frente seu

#

' bastão comprido, ele ia caminhando atrás dos cadetes que, tra-

jados de pajens, risca de cabelo sobre o olho esquerdo, abriam

a procissão, pensava preocupado no que vinha atrás. Camarei-

ros - não muitos, pois também eram necessários no fim do

cortejo -, chapéu de plumas debaixo do braço, chaves nas

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costuras de trás da cintura, seguiam-no de perto, em meias de

seda. O Sr. von Stieglitz e o manco Intendente do teatro vi-

nham depois, diante do Príncipe Klaus Heinrich, que, vestindo

seu manto, entre o nobre casal de pais, seguido de seus irmãos

Albrecht e Ditlinde, formava o centro dessa procissão. Nas cos-

tas dos nobres duques vinha primeiro, ruguinhas dos olhos mo-

vendo-se o tempo todo, o Ministro da Casa e Presidente do

Conselho von Knobelsdorff. Um pequeno grupo de ajudantes

e damas da Corte vinha depois: o General Conde Schmetter e

o Major von Platow, um Conde Trümmerhauff, primo do di-

retor de finanças da Corte, como acompanhante militar do Grão-

Duque herdeiro, e as damas da Grã-Duquesa, dirigidas pela ofe-

gante Baronesa von Schulenburg-Tressen. Depois, dirigidos e se-

guidos por ajudantes, camareiros e damas da Corte, vinham a

Princesa Katharina com sua descendência ruiva, o Príncipe Lam-

bert com sua delicada esposa e os parentes estrangeiros ou seus

representantes. Pajens fechavam o cortejo.

Assim se;uiram a passo medido da Sala dos Cavaleiros,�

através das Belas Salas, a Sala dos 12 Meses e a Sala de Már-

more, entrando no Salão do Trono. Lacaios, com cordões dou-

rados sobre os fraques de gala castanhos, postavam-se aos pares,

; teatralmente, nas portas abertas. Pelas janelas amplas, entrava

por toda parte, alegre e impudico, o sol de uma manhã de junhe.

103

Klaus Heinrich olhou em volta nesse trajeto de honra entre

, seus pais por aquele ermo tão decorado, a desgastada pompa

das salas de representação, às quaís faltava a transfiguração da

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IJZ dl'fIIC'ld dÏI CJICO !%uminu3, alegre e lúcro. s.a de<<,-� � � � � � �

dëncía. C7s grandes lustres com suas varas envoItas em tecido,

descobertos especialmente para aquele día, revelavam densas flo-

restas de velas hirtas e apagadas; mas por toda parte faltavam

prismas, e as guirlandas de cristal estavam rasgadas, de modo

que davam impressão de coisa corroída e esburacada. O forro de

seda e damasco dos móveis enfileirados nas paredes, rígidos,

largos e em arranjo monótono, estava desbotado, o dourado de

suas estruturas descascara; grandes manchas cegas interrompíam

os campos luminosos de altos espelhos ladeados de candelabros,

e a cascata de pregas das cortinas, em parte desbotadas e amare-

ladas nos locais onde eram arrepanhadas, deíxava entrar, aquí e

ali, através de buracos de traças, o dia que brilhava lá fora. Os

sarrafos dourados e prateados do papel de parede estavam sol-

tos em vários lugares e faziam pontas; sim, na sala prateada das

Belas Salas, onde o Grão-Duque costumava fazer reuníões fes-

tivas e em cujo centro havia uma mesínha de madrepérola com

suporte semelhante a um tronco de árvore, caíra um pedaço do

estuque prateado do teto, e via-se lá em cima um grande buraco

de gesso branco . . .

Mas por que, apesar de tudo isso, era como se aqueles

aposentos ainda suportassem a impiedosa e risonha luz do dia,

expondo-se a ela, altivos e distantes? Klaus Heínrich contem-

plou seu pai, de soslaio . . . O estado daquelas salas parecia

não o incomodar. O Grão-Duque, que sempre tivera estatura

média, com os anos se tornara quase pequeno. Mas andava de

cabeça imperiosamente erguida, a fita de condecoração amarelo-

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limão sobre o umforme de General, que hoje vestira, apesar de

não ter inclinações militares; debaíxo da testa alta e calva, e

das sobrancelhas grisalhas, seus olhos, azuis e com sombras de

fadiga, olhavam a distância com uma altivez cansada, e do bigo-

dinho branco e torcido saíam as duas fundas rugas cavadas na

104

pele envelhecida e amarelada, descendo até a barba com uma

expressão desdenhosa . . . Não, o día claro não conseguia pre-

judicar'aqueles aposentos; a deteríoração não apenas não desfa-

zi.a sua dinnidade, até a elevava, de certa forma. Com sua ex-

trema falta de comodidade e sua simetria, a atmosfera estranha-

#

mente abafada de igreja ou palco, lá estavam, estranhos e com

fria renúncia diante daquele mundo arejado e quente de sol -

severos locais de um culto cênico, que Klaus Heinrich celebrava

pela primeira vez solenemente . . .

O cortejo passou entre os lacaios que apertavam os lábios

com expressão implacável, olhos cerrados; entrou no espaço

branco e dourado do Salão do Trono. Movimentos devotos,

mesuras, ondulações, arrastar de pés, curvas e continências es-

tenderam-se pela sala, à medida que passavam díante dos con-

vidados. Eram diplomatas com suas damas, a nobreza da Corte

e do campo, o corpo de oficiais da Residência, os ministros,

entre os quais se vía o rosto forçadamente otimista do novo

Minístro das Finanças, Dr. Krippenreuther, os Cavaleíros da

Grande Ordem de Grimmburg, os presidentes da Assembléia,

toda sorte de dignitários. Mas, bem em cima, no pequeno ca-

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marote na entrada, sobre o espelho grande, viam-se os repre-

sentantes da imprensa, que olhavam uns sobre os ombros dos

outros, rabiscando aplicadamente . . . Diante do baldaquím do

trono, um arranjo de veludo simetricamente arrepanhado, co-

roado por plumas de avestruz e bordado com debruns de ouro

que precisavam ser substituí.dos, o cortejo dividiu-se como numa

polonaise, executando evoluções prescritas minucíosamente. Os

fidalgos, os camareiros, giravam para a direita e para a esquerda,

o Sr. von Bühl recuou com o rosto virado para o trono, o bas-

tão erguido, e parou no meio da sala. O casal de Grão-Duques

e seus filhos subiram os degraus arredondados, forrados de ver-

melho, até as grandes poltronas douradas lá em címa. Os outros

membros da família colocaram-se, com as altezas estrangeiras, dos

dois lados do trono; atrás deles, o séquito, as damas de honra,

os cavalheiros de serviço e os pajens ocupavam os degraus. A

105

I Ï

II

um gesto de Johann Albrecht, o Sr. Knobelsdorff, que assu-

mira seu posto diante do outro trono, chegou correndo, olhos

sorrídentes, fazendo uma curva determmada em direção à me-

sinha coberta de veludo ao lado dos degraus, e começou com as

formalídades ofícíais, guíando-se por vários documentos.

Klaus Heinrich foi declarado maior de idade, capaz e com

í

direito, em caso de necessidade, de usar a coroa. Todos os olhos

í dirigiram-se para eIe nesse momento - e para Albrecht, seu

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irmão mais velho, Sua Alteza Real, parado ao lado dele. O

Grão-Duque herdeiro usava o uníforme de capitão da cavalaria

do Regimento de Hussardos, ao qual pertencia de nome. De

seu colarinho com galões de prata, emergia, Iargo e pouco mili-

tar, o colarinho civil, e sobre ele sua cabeça fina, inteligente e

enfermíça, com o crânío alongado e as témporas estreitas, o

bigode louro e ainda ralo no lábio superior, e os solitários olhos

i' azuis, que tinham contemplado a morte.. . Não era a cabeça

de um cavaleiro, mas tão esguia e aristocrática que a de Klaus

Heinrich, com seus zigomas camponeses, parecia quase grossei-

ra. O Grão-Duque herdeiro fez um biquinho enquanto todos

olhavam para ele, avançou um pouco o lábio inferior redondo,

sugando o superior.

O Príncipe, agora na maioridade, recebeu todas as conde-

corações do reino, também a Cruz Albrecht e a condecoração

Í

da Ordem de Grírnmburg, sem falar na condecoração da Cons-

tância, cujas insígnias já possuía desde os 10 anos. Depois, de-

senrolou-se o grande ato de congratulação, na forma de um des-

file díMgido pelo saltitante Sr. von Bühl - logo depoi5, o almo-

ço de gala no Salão de Mármore e na Sala dos 12 Meses . .

Nos dias subseqüentes, organizaram-se festas para entre-

ter as altezas estrangeíras. Em Hollerbrunn, aconteceu uma Testa

ao ar livre, com ïogos áe artifício e baile para a juventude áa

Corte, no parque. Passeíos festivos com pajens peÍa paísagem

estival até Monbrillant, ao Casteio de Caça, à ruína de Haáe~-

steín, E o povo, essa raça atarracada com olhos pensativos e

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zigomas demasiado salientes, congratulava-os, parando na beira

#

106

do caminho, dando vivas a si mesmo e a seus representanter

Na Residência, pendurara-se a foto de Klaus Heinrich nas ; .

trinas das lojas de arte, e o Mensageiro até publicou seu retra-

to, um desenho popular e singularmente idealizado, mostrando O

Príncipe em manto de púrpura. Mas depois, novamente, :zm

grande dia: o ingresso formal de Klaus Heinrich no Exército.

no Regimento dos Granadeíros.

Foi assim: o Regimento que receberia a honra de ter Klaus

Heinrich entre seus oficiais apresentou-se na Praça Albrecht,

num quadrado aberto de um lado. Muitos penachos de plumas

ondulando no centro; os príncipes da casa, os generais, esta-

vam presentes. O público, escuro contra o tablado colorido,

acotovelava-se atrás dos cordões de isolamento. Em vários lu-

gares, havia máquinas fotográficas dirigidas para o local da

ação. A Grã-Duquesa contemplava o espetáculo das janelas o�

Castelo Velho, com as princesas e damas.

Vestido de tenente, Klaus Heinrich apresentou-se em pri-

meiro lugar ao Grão-Duque, no Castelo, com todas as forma-

lídades. Sem pensar em sorrir, postou-se diante do pai para

anunciar, de calcanhares unídos, que estava às ordens. O Grão-

Duque agradeceu brevemente, também sem sorrir. Depois, se-

guido de seus ajudantes, trajando umforme de gala c plumas�

ondulantes, desceu para a praça. Klaus Heinrich parou diante

da bandeira arriada, um pano d seda bordado, amarelado e�

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meio carcomido, e prestou juramento. O Grão-Duque, com tra-

ses abruptas e forte voz de comando, que só usava para esse�

fim, fez um discurso em que chamava o filho de "Alteza' , e

apertou-lhe a mão em público. O coronel dos Granadeiros, com

o rosto vermelho, deu um viva ao Grão-Duque, e os convidados,

o Regimento e o publico ecoaram. Logo a seguir, teve lugar um

desfile, e tudo acabou com um almoço militar no Castelo.

Esse belo ato na Praça Albrecht não tinha significado nrá-

tico, seu valor residia nele mesmo. Klaus Heinrich não assumira

o serviço ativo, mas no mesmo dia, com pais e irmãos, foi oara

Hollerbrunn, e lá, nos frescos aposentos antigos, ;unto ao :-i,�

107

entre as sebes vivas do parque, passou o verão. Depois, no �

outono, entraria na Universidade. Pois era isso que dizia o plano

pré-traçado de sua vida: no outono, ele foí passar um ano na

segunda Universidade do país, que ficava fora da Resídência,

acompanhado do Dr. Überbein, seu professor.

A nomeação desse jovem intelectual como seu mentor fora

novamente devida a um desejo especial do Príncipe, e à per-

sonalidade do líder e camarada mais velho que Klaus Hein-

rich deveria ver a seu lado naqueles anos de liberdade como

universitário. Os responsáveis acharam que deviam atender a

seu pedido expresso. Ao mesmo tempo, havia quem falasse con-

tra essa escolha; era impopular e, pelo menos em círculos maio-

res, a censuravam, em voz alta ou em segredo.

Raoul Überbein não era querido na Residência. Apesar de

sua medalha de salvamento e toda a sua assustadora tenacida-

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de, esse homem não era um concidadão agradável, um colega

amável, um funcionário incontestável. Os mais benevolentes o

encaravam como um tipo original, de temperamento irritadiço

e sinistramente inquieto, que não conhecia domingo, feriado,

distração, e não sabia, depois do dever cumprido, ser apenas

um ser humano entre seres humanos. Esse filho natural de uma

aventureira subira com muito trabalho, víera da mais baixa

classe, de uma juventude obscura e desesperançada, à posição

de mestre-escola e depois docente de liceu, portador de honras

acadêmicas, e fizera isso com incrível força de vontade. Con-

seguira "chegar lá", como dizem muitos: no pensionato dos

Faisões, fora nomeado professor do Grão-Duque; e mesmo assim

não tinha paz, nada o satisfazia, nunca saboreava comodamente

a vida . . . Mas a vida, notava qualquer pessoa mais ou menos

esperta em relação ao Dr. Überbein, a vida não se resume a

profissão e realizaçôes, ela tem prazeres e deveres puramente

humanos, e é pecado ignorá-los como se fossem leviandade. Só

quem se dedicar tanto à profissão e à humanidade como à vida

#

e à realização pessoal pode ser considerado uma personalidade

harmoniosa. A ausência de coleguismo em Überbein testemu-

l0á

nhava contra ele. Evitava toda a vida social com os colegas, e

sua relação de amizade limitava-se a um cavalheiro de outro

campo das ciências, um médico pediatra com o nome pouco

simpático de Sammet. Aliás, esse tinha grande clientela, e talvez

alguns traços de sua personalidade combinassem com Überbein.

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Mas muito raramente - e só por condescendência - este pas-

, sava pela mesa de bar em torno da qual confraternizavam os

' professores do Liceu depois dos labores do dia, para um copo

de cerveja, um joguinho de cartas, uma conversa descontraída

sobre política e pessoas. Sabiam que passava as tardes e grande

parte da noite em sua sala de estudos, trabalhando - o rosto

cada vez mais verde, a tensão visível em seus olhos. Pouco

depois de voltar do Castelo dos Faisões, o Município se vira

obrigado a nomeá-lo professor efetivo do Liceu. Que mais dese-

jaria agora? Ser diretor? Professor umversitário? Ministro da

Educação? Era certo que, naquele seu esforço desmedido e sem

tréguas, se ocultavam a falta de modéstia e o sentimento de

superioridade, ou talvez nem se ocultassem. Sua postura, sua

voz alta e fanfarrona, aborrecia, irritava, exasperava os demais.

Ele não usava o tom adequado ao falar com colegas mais velhos

ou superiores a ele na hierarquia. Era paternal com todos, do

diretor ao mais insignificante professor auxiliar, e sua maneira

de falar de si mesmo como "experiente", gabando-se de seu

"destino e tenacidade", manifestava um benevolente desdém

pelos que "não tiveram necessidade" e "acendiam um charuto

de manhã"; era sem dúvida petulante. Os alunos o adoravam,

ele conseguia realizar coisas excelentes com eles, era verdade.

Mas, no resto, o doutor tinha muitos inimigos na cidade, mais

do que sonhava; e até parte da imprensa manifestava o receio

de que sua influência sobre o Príncipe não fosse muito dese-

jável. .

De qualquer modo, Überbein recebeu licença da escola

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de Latim e visitou, primeiro sozinho, à procura de alojamentos,

a famosa cidadezinha umversitá.ria dentro de cujos muros Klaus

Heinrich deveria passar um ano de sua existência como membro

109

,.

de uma líga estudantíl. No retorno, foí recebído em audíência

pelo Ministro da Casa Grão-Ducal, o Sr. von Knobelsdorff,

para receber as instruções dé costume. Elas dizíam que o resul-

tado mais importante daquele ano era que, no solo comum da

liberdade acadêmica, surgisse entre o filho dos Príncipes e a ju-

ventude umversitária uma tradição de camaradagem, por um

interesse geral da dinastia - tudo isso dito em um estilo posi-

tivo, que o Sr. von Knobelsdorff pronunciou com muita supe-

ríorídade, e que o Dr. Überbeín escutou com uma mesura, sem

nada dizer, torcendo um pouco para o lado a boca e a barba

vermelha. Depois, Klaus Heinrich viajou para a Universidade,

com seu mentor, numa carruagem leve, de duas rodas, acom-

panhado de alguns críados.

Um belo ano, emoldurado pelo encanto de poética liber-

dade aos olhos do público, espelhado nos relatos que se faziam.

Mas sem qualquer importância objetíva. Desfízeram-se os re-

ceios de que o Dr. Überbein poderia importunar o Príncipe com

exigências excessivas em assuntos científicos. Ao contrário, fi-

cou claro que o doutor sabia distinguir muito bem entre a seve-

ridade de sua própria vida e a nobre existência de seu aluno.

De outro lado (não importa se por culpa do mentor ou do pró-

prio Príncipe), também no terreno da instrução, da liberdade

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e da camaradagem espontânea, tudo se limitou a uma alusão

comedida e puramente simbólica, de modo que o essencial e o

importante daquele ano não foram nem uma coisa nem outra,

nem a ciência nem a liberação. Ao contrário, essencial e im-

portante parecia ser o ano em si, como hábito e ritual a que

Klaus Heinrich se submetia, comedidamente, como se subme-

tera aos cerimoniais de seu último aniversário. Só que agora

não era com manto de púrpura, mas por vezes com um daque-

#

les gorros coloridos, típicos das ligas de umversitáríos, enfeite

com que o Mensageiro o apresentou a seus leitores.

Quanto aos estudos, a matrícula se efetuou sem solenidade

especial, mas se comentou a honra concedida à Universídade

ao receber Klaus Heinrich. As aulas a que assistia começavam

110

com uma invocação: "Alteza Ducal!" Seguido de um criado;

notado e saudado pelo povo das ruas, ele se dirigia em sua car-

ruagem, vindo da bela mansão rodeada de verde que o Mare-

chal-da-Corte de seu pai alugara num bairro distinto, mas não

caro demais, para assistir às aulas, e lá ficava sentado, conscien-

te de que na verdade tudo aquilo não era necessário, nem

: essencial à sua nobre vocação, mas educadamente atento para

com todos. Corriam anedotas bondosas, que aqueciam os cora-

ções, sobre como o Príncipe mostrava ser parte de tudo ali. No

fim de uma aula de Ciências Naturais (a que Klaus Heinrich

assistia pela "cultura geral"), o professor, ilustrando o que dis-

sera, enchera uma esfera de metal com água. Anunciara que,

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congelando a água, faria rachar a cápsula devido à dilatação;

na aula seguinte, mostraria a esfera partida. Mas, provavel-

mente por esquecimento, o professor não cumprira a palavra

- não mostrara a esfera rachada na aula seguinte. Klaus Hein-

rich, porém, informara-se do resultado da experiência. Mistura-

ra-se aos estudantes, como qualquer outro, no fim da aula, e

dissera com toda a simplicidade:

- Afinal, a bomba explodiu? - E o professor, primeiro

incapaz de responder, mas depois alegremente surpreso, mani-

festara emoção, até gratidão pela bondade e interesse. . .

Klaus Heinrich era convidado de uma das ligas estudantis

- só convidado, pois não podia duelar. Com o gorro na ca-

beça, freqüentava, vez por outra, as reuniões de bebedeira. Mas,

como aqueles que o vigiavam soubessem que o relaxamento e

a imbecilidade que resultam do álcool não combinavam com

sua nobre vocação, ele não podia beber de verdade, e mesmo

nisso tinham de ter consideração para com Sua Alteza. Os há-

bitos rudes ficavam limitados, o tom das conversas era exce-

lente, como outrora no fim do liceu, soavam velhas canções

de alegre poesia, e no fim os encontros eram sessões de gala

e exibição, reproduções idealizadas das verdadeiras reuniões.

O tratamento de "você" era combinado entre Klaus Heinrich

e os irmãos da liga, como expressão e fundamento d uma�

111

fraternidade espontânea. Mas, na verdade, soava falso e forçado, �

por mais que tentassem, e a todo momento, sem querer, aca-

bavam no tratamento de Alteza. Isso era resultado da perso-

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nalidade dele, aquela postura amável e severamente controlada,

jamais perturbada por qualquer acontecimento concreto, ó que,

aliás, provocava reações muito bizarras nos que conviviam com

ele. Certa noite, por exemplo, numa reunião organizada por um

dos professores, o Prfncipe interpelou um cavalheiro, homem

corpulento e já idoso, um Conselheiro que, sem prejuízo de

seu conceito social, passava por velho boêmio e pecador. Corno

não os interrompessem a conversa, cujo conteúdo não inte-

ressava e não se poderia conferir, estendeu-se bastante. De re-

pente, no meio do diálogo com o Príncipe, o Conselheiro da

Justiça assobiou: flauteou com seus lábios grossos uma melo-

diazinha daquelas inconseqüentes que a gente canta quando, em

situação constrangedora, pretende fingir despreocupação. De-

pois, pigarreando e tossindo, ele tentou consertar a ridícula

gafe . . . Klaus Heinrich estava habituado a essas coisas, e apren-

dera a ignorá-las com delicada tolerância. Por vezes, entrava

numa loja para comprar alguma coisa pessoalmente, e sua en-

trada causava uma espécíe de pequeno pânico. Ele fazia seu

pedido, queria um botão dé que precisava, mas a balconista

não o entendia, parecia perturbada, seu espírito dificilmente se

concentrava no botão, estava visivelmente dominada por algo

diferente, muito acima das coisas comuns, deixava cair uma

porção de coisas, derrubava a caixa, perplexa, e Klaus Heinrich

tinha dificuldade em acalmá-la amavelmente.

Esse era, como se disse, o efeito da sua natureza, e na

#

cidade tudo isso, muitas vezes, era considerado altivez e des-

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dém. Outros, porém, negavam que assim fosse, e o Dr. Überbein,

com que se discutíu sobre isso em algum encontro social, lan-

çou a pergunta: "Admitindo-se que haja algum motivo para des-

denhar a humanidade" - por am distanciamento da realidade

humana, como ocorre nesse caso, seria realmente possível falar

em desdém? Sim, enquanto ainda refletiam nisso, ele afirmou,

112

I .�

na sua maneira fanfarrona e irrefutável, que o Príncipe não ape-

nas não desprezava as pessoas, mas respeitava a todas, mesmo

as mais inferiores, levando-as a sério, julgando-as bem. E as po-

bres pessoas comuns, tão supervalorizadas e desafiadas come-

çaram a suar . .

A sociedade umversitária não teve tempo de tomar posi-

ção sobre o assunto. O ano letivo se passou antes de resol-

verem isso, e Klaus Heinrich partiu. Seguindo o programa de

sua vida, voltou à Residência paterna para, apesar do braço

esquerdo, prestar mais um ano de severo serviço militar. Ficou.

seis meses com os Dragões da Guarda e comandou os soldados

na formação de oito passos de distância para exercícios de

lança, bem como na organização de formações em quadrado,

como se isso fosse de seu interesse. Depois, trocou de armas e,

para ter uma visão do serviço de Infantaria, passou para os

Granadeiros. Até participou da guarda do Castelo e comandou

a troca de guarda, acontecimento sempre presenciado por gran-

de público. Estrela no peíto, ele saiu do quartinho da guarda

a passo rápido e colocou-se, espada em punho, à testa da com-

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panhia. Seus comandos não eram muito corretos, mas isso não

fazia mal, pois os bravos soldados já conheciam tudo e, mesmo

assim, executaram os movimentos adequados. Também se sen-

tou no cassino, ao lado do coronel, no banquete dos oficiais, e

sua presença impediu os cavalheiros de abrirem os colarinhos

dos umformes e fazerem um joguínho depois da refeição. Mas,

depois disso, com apenas 20 anos, ele realizou uma "viagem

cultural" - já não em companhia do Dr. Überbein, mas com

um acompanhante militar, o Capitão da Guarda von Braunbart-

Schellendorf, cavalheiro louro destinado a ser ajudante de Klaus

Heinrich, e que, nessa viagem, tinha oportunidade de ganhar

influência e intimidade junto ao Príncipe.

Klaus Heinrich não viu muita coisa nessa viagem cultu-

ral, que o levou bem longe e foi zelosamente seguida pelo

Mensageiro. Visitou as Cortes, apresentou-se aos soberanos, fre-

qüentou jantares de gala com o Sr. von Braunbart, e na par-

113

tida recebeu uma alta condecoração de cada país vísitado. Via

as coísas importantes de se ver, que o Sr. von Braunbart (que

também recebeu várias condecorações) escolhia para ele, e o

Mensageiro, de tempos em tempos, dizia que o Príncípe ex-

pressara grande admiração por um quadro, um museu, uma

construção, ao falar com o diretor ou mantenedor responsável.

Ele víajou isolado, protegido e carregado pela solícítude cava-

lheiresca do Sr. von Braunbart, que cuidava do dinheiro, e cujo

zelo evitou que, no fim da viagem, Klaus Heínrích sequer de-�

pachasse alguma bagagem.

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Duas palavras, não mais, podem ser dedicadas a um inci-

dentc u acormccet. ,cm. -,pír..,t d.. gr-,zo f,u l y"- ¡ü� � � � � � � � � � �� � � � �

ajeitado cuidadosamente pelo Sr. von Braunbart. Este tfnha um

camarada nessa cidade, um nobre, Capitão de Cavalaria, e so1-

teirão, ligado a uma jovem do mundo artístico, personalidade

amável e de confíança. Depoís de, segundo correspondência

pfévia entre o Sr. von Braunbart e seu camarada, terem arran-

jado um encontro de Klaus Heínrích com a senhoríta, na casa

dela, preparada para a ocasião, e de terem permitido que essa

amizade se aprofundasse deixando-os a sós, atingiram um obje-

tivo expresso dessa viagem de formação. Mas, para Klaus Hein-

rich, tudo não passou de um aprendizado necessârio para a sua

aprovação. A meritória moça recebeu um presente como lem-

brança, e maís tarde o amigo do Sr. von Braunbart ganharia

uma condecoração. Nada mais a dizer sobre isso.

#

Klaus Heinrich também viajou pelos belos países do Sul,

incógnito, com um pseudônimo romântico e nobre. Ficava sen-

tado, sozinho, talvez por 15 minutos, vestindo roupa civil dis-

creta e fina, entre estranbos, no terraço branco de algum res-

taurante sobre um mar azul-escuro, e era possível que alguém

de outra mesa o observasse e tentasse estabelecer contato social

com ele. Quem seria aquele jovem calado e discreto? As pe>-

soas repassavam os círculos burgueses, tentavam co)ocá-lo na

posição de comercíante, mílitar, umversitárío, mas ele não cabia

em lugar algum. Sentiam sua nobreza, mas não a adivinbavam.

114

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ALBRECHT II

O Grão-Duque Johann Albrecht morreu de morte terrível, que

tinha algo de nu e abstrato - na verdade, não podia ser desig-

nada por outro nome senão morte. Era como se, certa do seu

direito de posse, nesse caso a morte desprezasse qualquer más-

cara e aparência, e aparecesse diretamente como ela mesma, co-

mo solução em si. Tratava-se, objetivamente, de uma destruição

do sangue causada por infecções internas, e uma operação pro-

funda, realizada pelo Diretor da Clínica Universitária, famoso

. cirurgião, não conseguiu nem ao menos atrasar o processo de-

vorador. Tudo terminou depressa, tanto mais porque Johann

Albrecht não opunha qualcuer resístência à morte. Dava sinais

de estar infinitamente entediado, e dizía a seus familiares, até

aos médicos que o tratavam, que estava mortalmente cansado

"de tudo" - portanto, de sua existência principesca, de sua

vida aristocrática, sempre exposta para ser admirada. Seus tra-

ços fisionômicos, aquelas duas rugas de altivez e tédio, naque-

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les últimos dias, vincaram se de maneira exagerada, grotesca, de

careta, para, na morte, se abrandarem novamente um pouco

mais . . .

A última enfermidade do Grão-Duque ocorreu no inverno.

O herdeiro Albrecht, chamado do local quente e seco onde esta-

va, entrou num clima de neve e umidade, que lhe ameaçou gra-

vemente a saúde. ,Seu irmão Klaus Heinrich interrompeu a via-

115

gem cultural, que se aproximava do fim, e voltou, em longò �

dias de viagem, com o Sr. von Braunbart-Schellendorf, dos belos

países do Sul para a Residência. Além dos filhos, lá estavam

a Grã-Duquesa Dorothea, as Princesas Katharina e Ditlinde, o

Príncípe Lambert - sem a delicada esposa -, os médicos e

o Camareíro Prahl, todos junto do leito de morte, enquanto,

na sala ao lado, os nobres da Corte e os ministros se reuniarn

oficialmente. A se dar crédíto ao que diziam os criados, os

rumores espectrais da Sala das Corujas haviam-se intensificado

grandemente nessas semanas e dias. Rumores de coisas remexi-

das e derrubadas, voltando periodicamente, mas que não se

escutavam fora do aposento.

A última atitude aristocrática de Johann Albrecht fora no-

mear Conselheiro, pessoalmente, o professor que realizara com

mestria aquela operação inútil. Estava terrivelmente esgotado,

"tudo aquilo" o cansara, e por vezes sua consciência já não se

mostrava bem clara; mas executou o ato com todo o cuidado,

e o transformou em verdadeira cerimônia. Pediu que o er-

guessem um pouco sobre almofadas, corrigiu, com uma mão

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de cera protegendo os olhos da claridade, a posição dos pre-

sentes, ali distribuídos ao acaso, mandou os dois filhos se pros-

tarem dos dois lados da cama de dossel - e enquanto seu

espírito já vagava por caminhos desconhecidos, com artc

mecánica arrumou o rosto num sorriso de condescendência,

#

a fim de entregar o diploma ao professor, que retornava ao

aposento após alguma ausência . . .

Bem no fim, quando a destruição já lhe atingira o cére-

bro, o Grão-Duque manifestou um desejo que, mal entendido,

logo foi realizado, embora não melhorasse nada mais. Nos mur-

múrios do enfermo apareciam certas palavras, aparentementc

desconexas, que voltavam reularmente. Ele falava de vários teci-�

dos, cetim e brocado, mencionava o Príncipe Klaus Heinrich,

usava uma expressão técnica de medicina, e manífestava alges

sobre uma condecoração, a Cruz de Albrecht de terceira classe.

Em meio a tudo isso, ouviam-se expressões gerais que prova-

116

velmente se ligavam à vocação principesca do moribuxxdo, e

pareciam "dever extraordinário" e "maioria cômoda". Depois

,

novamente referências a tecidos, às quais, por fim, se juntou,

com voz mais forte, a expressão "Sammet"°. Então, entenderam�

que o Grão-Duque desejava chamar para seu tratamento o Dr.

Sammet, o médico que há 20 anos, por acaso, estivera em Grimm-

burg, e há muito clinicava na capital. O médico era pediatra,

mas mesmo assim o convocaram, e ele veio: bastante encanecido

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nas têmporas, bigode pendendo descuidado, nariz demasiada-

mente arqueado, rosto escanhoado e faces um pouco írrítadas

pelo barbear. A cabeça inclinada para um lado, uma das mãos

na corrente do relógio e o cotovelo bem junto do corpo, ele

examinou a situação e começou imediatamente a cuidar do nobre

enfermo, com sua maneira zelosa e branda, e o doente mostrou

nitidamente sua satisfação. Assim, o Dr. Sammet , aplicou as

últimas injeções no Grão-Duque e aliviou sua árdua passagem,

segurando-o com as próprias mãos, ajudando-o a morrer, junto

com os demais médicos. Uma distinção que certamente irritou

um pouco, em segredo, esses senhores, mas, de outro lado, fez

com que, pouco depois, vagando o importante cargo, o doutor

fosse nomeado Diretor e Médico-Chefe do Hospítal Infantil

Dorothea, e nessa qualidade, mais tarde, participasse, de certa

forma, de alguns acontecimentos.

Assím morreu Johann Albrecht III, dando o último sus-

piro numa noite de inverno. O Castelo Velho foi festivamente

iluminado enquanto ele partia. As severas rugas de tédio alisa-

ram-se em seu rosto e, pairando acima de todas as tensões, ele

pôde entregar-se às formalidades que se desenrolavam a seu

redor pela última vez, e que o carregavam, fazendo daquele

seu casulo de cera, uma vez mais, objeto e centro dos rituais . . .

O Sr. von Bühl zu Bühl dírigia com todo vigor os funerais,

realizados na presença de muitos convidados nobres. As som-

brias cerimônias, as diversas exposições e desfiles do cadáver,

° Em alemão, "veludo". (N. da T.)�

117

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bênçãos e comemorações junto ao catafalco, duraram dias, e

por oito horas o corpo de Johann Albrecht permaneceu expos-

to à visitação pública, rodeado de arra guarda de honra formada�

por dois coronéis, dois tenen'es-coronéis, dois sargentos, dois

primeíros-sargentos, dois subefïc,ais e dois camareiros. Depois,�

finalmente, chegou o momentr em que o caixão de zinco deixou�

o nicho do altar da igreja da nc rte, pnde estivera exposto entre�

candelabros tarjados de luto ,° círios da altura de um homem,

foi levado ao vestíbulo por oiro lacaios e colocado, por oito

granadeiros da Guarda, dem.ro do caixão de mogno; oito grana-

deiros o carregaram até a arruagem fúnebre, puxada por seis�

cavalos e com decoração triste, que se encaminhou em direão�

ao mausoléu debaixo de tiros de canhão e toques de sïnos. As

bandeiras pendiam, pesadas de umidade, a meio pau. Embora

fosse logo no começo da tarde, os lampiões a gás já estavam

acesos nas ruas por onde passaria a procissão fúnebre. Entre de-

corações tristes, expunha-se nas vitrinas o busto de Johann

Albrecht, e os cartões-postais com o retrato do falecido gover-

nante. oferecidos por toda parte a preço vil, eram disputadís-

simos. Atrás das tropas enfileiradas, das ligas de veteranos cie

guerra e dos clubes desportivos, que mantinham livre o tra-

jete de honra, postava-se o povo, nas pontas dos pés, na mis-

#

tura de neve e lama, contemplando, de cabeça descoberta. o

caixão que passava lentamente, precedido dos lacaios carrega-

dos de coroas, dos funcionários da Corte, dos portadores de

insígnias e do pregador da Corte, D. Wisli.zenus. O pano bor-

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dado de prata que recobria o caixão era seguro, nas bordas,

pelo Marechal-da-Corte von Bühl, pelo Monteiro-Mor von tie-� �

litz, pelo General-Ajudante Conde Schmetter e pelo Ministro

da Casa von Knobelsdorff. Mas, ao lado de seu irmão Klaus

Heinrich, logo atrás do cavalo de montaria que era conduzido

depois do carro fúnebre, à frente dos demais enlutados, cami-

nhava o Grão-Duque Albrecht II. Seu traje - o verticai pena-

cho de plumas na frente de gorro de pele, as botas de verniz

por baixo do casaco de hussardo claro e pregueado com tarja cle

118

luto -, tudo aquilo o vestia mal. Ele andava inibido sob os

olhares da multidão, e suas omoplatas, por natureza um pouco

tortas, entortavam-se ainda mais num gesto nervoso. A relu-

tância ante a obrigação de aparecer como primeira figura na-

quela exibição funérea transparecia em seu rosto pálido. Ele

não erguia os olhos ao andar, e seu lábio inferior, curto e re-

dondo, sugava o de cima . . .

E manteve essa expressão durante os atos oficiais da suóida

ao trono, que, aliás, foram efetuados com muita consideração.

O Grão-Duque assínou, na Sala de Prata das Belas Salas, diante

dos ministros reunidos, o seu juramento, e na Sala do Trono,

parado diante do trono de forlnas ousadas sob o baldaquim, leu

o discurso que o Sr. von Knobelsdorff escrevera. Mencionou, de

modo grave mas delicado, a situação econômica do país, e lon-

vou a bela harmonia que reinava entre os príncipes e o povo,

apesar de todas as dificuldades. Nesse ponto, um alto funcioná-

rio, que provavelmente não estava satisfeito com sua promo-

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ção, teria sussurrado ao seu vizinho que a harmonia consistia

apenas no fato de o Príncipe estar tão endividado quanto seu

país - frase dura, que foi divulgada e chegou à imprensa de

oposição . . . Por fim, o Presidente da Assembléia deu um viva

ao Grão-Duque, realizou-se missa na igreja da Corte, e tudo

terminou. Albrecht assinou ainda a ordem de que se perdoas-

sem penas de dinheiro e prisão por infrações menores, espe-

cialmente contra as florestas. O solene cortejo pela cidade e os

cumprimentos na Câmara Municipal não se realizaram porque

o Grão-Duque estava cansado demais. Capitão de Cavalaria, por

sua patente militar, foi imediatamente elevado a chefe supremo

de seu Regimento de Hussardos, mas quase nunca vestia o

uniforme, e manteve-se o mais distante possível do meio militar.

Talvez por respeito à memoria do pai, não trocou de pessoal

nem entre os cargos da Corte nem entre os ministros.

O público raramente o via. Sua recusa altiva e tímida em

se exibir ou se deixar cumprimentar apareceu desde o primeiro

dia, com tal intensidade que entristeceu a opinião pública. Ele

119

jamais aparecia no grande camarote do Teatro da Corte. Jamais

participava dos passeios no parque da cidade. Quando residia no

Castelo Velho, fazia-se levar em carruagem fechada para locais

distantes e despovoados dos parques, onde descia para caminhar

um pouco. No verão, em Hollerbrunn, só por exceção saía do

járdim de sebes do parque.

Quando o povo o avistava, talvez no Portão Albrecht, quan-

do, envolto nas pesadas vestimentas que seu pai já usara, com a

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delicada cabeça pousada nas grossas peles da gola, subia no seu

cupê, lançava-lhe olhares tímidos, os vivas eram inibidos, sem a

confiança que deveriam ter. Pois as pessoas simples sentiam

muito bem que não podiam dar vivas àquele príncipe pensando

em si mesmas. Olhavam para ele e nele não se reconheciam,

aquele rapaz cuja nobreza tão pura não trazia sequer um

sinal de seu povo. Estavam habituados a coisa diferente. Por

acaso não havia, ainda hoje, na Praça Albrecht, um guarda que,

com seus zigomas demasiado salientes e suas suíças grisalhas, de

maneira mais rude e inferior, se parecia exatamente com o fale-

cido Grão-Duque? E por acas não se repetiam, no povo sim-�

ples, da mesma maneira, os traços do Príncipe Klaus Heinrich?

#

Mas com seu irmão não era assim. O povo não percebia nele seu

ideal, à cuja vista poderi.a viver e alegrar-se. Sua Alteza -

aquela alteza tão indubitável! - era de uma nobreza umver-

sal, acima da noção de pátria, e sem a marca fidedígna da

legitimidade. Também ele sabia disso; e a conscíência de sua

nobreza, juntamente com a consciência da falta de legitimidade

popular, talvez fosse a causa de tanta timidez e altivez. Já

naquele tempo, ele começou a transferir, sempre que possí-

vel, as funções representativas ao Príncipe Klaus Heinrich. Man-

dava-o para a inauguração da fonte de Immenstadt e para a

festa histórica anual de Butterburg. Sim, seu desprezo por qual-

quer exibição da sua pessoa real chegou a tal ponto que só com

dificuldade o Sr. von Knobelsdorff o conseguiu convencer a

receber pessoalmente, de maneira solene, na Sala do Trono, o

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Presidente das duas Câmaras, e não transferir para seu irmão,

"por motivos de saúde", como pretendia, aquele ato público.

Albrecht II vivia muito só no Castelo Velho; o curso na-

tural das coisas provocava isso. Primeiro porque, desde a morte

de Johann Albrecht, o Príncipe Klaus Heinrich morava sozi-

nho na Corte. Era exigência da etiqueta, por isso lhe haviam

destinado como residência o Castelo Eremitage, o castelinho em

estilo império, no suburbio norte, sossegado e de graciosa se-

veridade, há longo tempo desabitado e esquecido em meio ao

parque selvagem que se ligava ao Parque Municipal, e ali ficava

contemplando um pequeno lago, hirto de lama. Quando Al-

brecht atingira a maioridade, tinham-lhe destinado o Eremitage

como moradia, fazendo nele as reformas mais essenciais. Mas

como, depois de suas estadas em lugares secos, no verão, Al-

brecht sempre voltasse diretamente para Hollerbrunn, nunca

usara aduela residência . . .

Klaus Heinrich morava ali, sem grande pompa, com um

Administrador da Corte que governava a parte doméstica, um

Barão von Schulenburg-Tressen, sobrinho da Primeira Dama da

Corte. Além do Camareiro Neumann, ele tinha ainda à dispo-

sição dois lacaios para atendê-lo diariamente; o Caçador-Mon-

teiro-Mor de quem precisava para as saídas mais cerimoníosas

lhe era emprestado pela Corte do Grão-Duque. Um cocheiro e

dois criados de colete vermelho cuidavam da carruagem e do

estábulo, onde ficava uma aranha, um cupê, uma sege, dois ca-

valos de montaria e dois de tração. Um jardineiro cuidava do

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parque e do jardim, com dois ajudantes; uma cozinheira, uma

ajudante de cozinha e duas criadas de quarto eram o pessoal

feminino do Eremitage. O Marechal-da-Corte von Schulenburg-

Tressen tratava de administrar a casa com o apanágio que, nu-

ma sessão espinhosa, a Assembléia concedera ao irmão do Grão-

Duque depois que este subira ao trono. A soma de 80 mil,

que fora pedida, nunca teria passado na Assembléia, de modo

que, em nome de Klaus Heinrich, fizera-se uma renúncia ge-

nerosa, e sábia, que causara no país a melhor das impressões.

121

A cada inverno, o Sr. von Schulenburg-Tressen mandava

remover o gelo do laguinho. Duas vezes, a cada verão, orde-

nava que ceifassem o capim dos prados do parque, e o ven-

dessem como pastagem. Depois de ceifados, os campos quase

pareciam relvados ingleses.

Além disso, Dorothea, a Grâ-Duquesa-Mâe, não residia

mais no Castelo Velho, e seu afastamento se ligava a alguma

coisa triste e sinistra. Também dessa Princesa, que o viajado e

experiente Sr. von Knobelsdorff dizia ser uma das mais belas

mulheres que já vira, também dela, cuja visão festiva desper-

tava felicidade, elevava corações e provocava vivas sempre qu �

se expunha aos nostálgicos oihares dos oprimidos homens co-

,

muns, também dela o tempo exigira seu tributo, famosa e exa- � �

tada, murchara tão rápida e constantemente nos últimos ano �

que a mulher áentro dela não conseguira acompanhar essa tran;-

formação. Nada, nem arte nem remédios, nem mesmo os mais

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incômodos e repulsivos com que combatia sua própria det-�

rioração, tinham podido impedir que o doce brilho de seus

#

olhos de um azul profundo se apagasse, q,e ao redor deles se�

formassem olheiras de pele amareïa e balofa, que as maravi-

lhosas covinhas de suas faces se transformassem em rugas, que

sua boca altiva e áspera parecesse agora tão magra e estreita.

Mas, como seu coração fora severo como sua beleza, e só pen-

sara nela, poís a beleza fora sua alma, e ela jamaís desejara nem

amara mais nada senão o sublime efeito dessa beleza, enquanto

seu próprio coração não pulsava por nada nem ninguém, agora

se encontrava perplexa e muito empobrecida. Não conseguia

transpor interiormente a passagem para aquele novo estado, e

ficou profundamente abalada. O General-Médico Eschrich ain-

da falou em abalo espiritual devido àquele processo de dege-

neração singularmente rápido, e sem dúvida tinha razão. im

qualquer modo, a triste realidade era que, já nos últímos ano �

de vida do marido, Dorothea mostrava sinais de profunda pe-�

turbação mental. Tinha medo da luz, mandou que, nos con-

certos das quintas-feiras no Salão de Mármore, se envolvessem

122

todos os lustres com tecído vermelho, e tinha crises ao notar

que não conseguia impor essa regra a todas as outras festas, o

Baile da Corte, o Baile Íntimo, o íantar, o Grande Desfile. pois

tal atmosfera de crepúsculo no Salão de Mármore já dera mo-

tivo a muita zombaria. Ela passava dias inteiros diante dos

espelhos, e notava-se que os acaríciava com as mãos auando,

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por algum motivo, refletiam sua imagem a uma luz mais favo-

rável. Depois, mandava retirar todos os espelhos de seus apo-

sentos - sim, até fazia recobrir os que estavam embutidos nas

páredes, deitava-se na cama e clamava pela morte. Um dia, a

Baronesa von Schulenburg a encontrou totalmente perturba-

da, o rosto inflamado de tanto chorar, na Sala dos 12 Meses,

diante do grande retrato que a mostrava no auge de sua bele-

za . . . Ao mesmo tempo, começava a ser dominada por um

mórbido horror às pessoas, e para a t;orte e o povo era àoloroso

perceber que a postura dessa antiga deusa perdia a segurança,

sua aparição se tornava estranhamente desajeítada e seu olhar

expressava miséria. Por fim, ela se scondeu inteiramente, e�

no último Baile da Corte a que assistira, Johann Albrecht levara

consigo, não a esposa "adoentada", mas sua irmã Katharma.

A morte dele, aliás, fora um aüvio para Dorothea, pois a li-

vrara de qualquer ato de representação. Como moradia de viú-

va, ela escolhera o Castelo Segennaus, um velho castelo de caça

com ar de mosteiro, que, a uma nora f: meia de viagem da

Residência, ficava no centro de um parque sério, enfeitado por

um nobre caçador com emblemas religiosos e venatórios em

estranha confusão. Lá ela vivia, sombria e singular, e pessoas

que vinham em excursões eventualmente a bservavam de lon-�

ge, passeando ao lado da Baronesa von Schulenburg-Tressen

pelo parue, saudando, com uma inclinação de cabeça, as ár-�

vores dos dois lados da alameda . . .

Mas, quanto à Princesa Ditlinde, esta se casara aos 20

anos, um ano após a morte do pai. Deu a mão a um nobre de

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üma casa aparentada, o Príncipe Philipp zu Ried-Hohenried.

cavalheir baixinho, não muito iovem. mas bem cnservado.� �

123

apreciador das artes, de visão bastante moderna, que por muito

tempo a cortejára com polidez; . fizera tudo pessoalmente e,

numa festa beneficente, pedira à Princesa sua mão e seu cora-

ção, de maneíra bem burguesa. Não se pode dizer que essa li-

gação tivesse provocado júbílo tempestuoso no povo. F'oi acei-

ta com indiferença; certamente, frustrou esperanças mais eleva-

das que, em segredo, se cultivaram em relação à filha de Johann

Albrecht; e os críticos acharam que tudo o que se podia dizer

em favor desse casamento era não ser desigual. Na verdade,

sem duvida, dando a mão ao Príncipe, sem qualquer influên-

cia exterior, apenas por vontade própria, ela descia da sua

esfera de Alteza para uma vida mais livre e civil. Aquele nobre

não era apenas amante e colecionador de quadros, mas tam-

bém homem de negócios e grande industrial. Há 100 anos sua

dinastia fora despida da soberania, mas Philipp era o primeiro

a saber aproveitar financeiramente seu estado civil. Depois de

#

passar a juventude em viagens, procurara uma atividade que

lhe desse contentamento interior, mas especialmente (o que era

necessário) aumentasse sua rendá. Assim, tornara-se empresá-

rio, instalara fazendas, cervejarias, uma fábrica de açúcar, várias

serrarias em suas propriedades, e começava a explorar planeja-

damente os vastos depósitos de turfa que alí havia. Como

presidisse a todas essas indústrias com conhecimento e caute-

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loso espírito comercial, em breve tudo começou a progredir,

rendendo quantias que, se não tinham origem muito principes-

ca, pelo menos lhe permitiam uma vida de príncipe. De outro

lado, seria preciso indagar aos críticos que partido poderiam ter,

objetivamente, pretendido para a Princesa. Ditlinde, que quase

nada trouxe ao marido, exceto um inesgotável tesouro em

roupas, entre elas várias dúzias de peças totalmente antiqua-

das e inúteis, como xales e toucas de dormir, mas que, segundo

uma venerável tradição, faziam parte do enxoval de uma noi-

va, com o casamento passou a ter uma vida rica e alegre, à

qual não estava habituada em casa. E ainda nem mencionamos

os sentimentos de seu coração. Também ela passou, com evi-

124

It0 dente alegria e determinação, a uma vida privada, e nas apa-

e, rências conservou, de sua nobreza, umcamente o título. Conti-�

ra- ' nuou a manter uma relação amável com suas damas, mas tirou�

li- dessa relação todo o caráter servil. Evitava emprestar à sua

ei- casa o ambiente da Corte. Isso era de admirar numa mulher�

va- dos Grimmburg, ainda mais Ditlinde, mas correspondia, sem

nn 1 dúvida, a seus desejos mais íntimos. O casal passava o verão�

zer nas propriedades de campo, o inverno no belo Palácio de Al-

de, brechtsstrasse, que fora comprado por Philipp zu Ried. E foi�

iên- ali, e não no Castelo Velho, que os irmãos Klaus Heinrich e

sua Ditlinde se reuniram para conversas íntimas.

bre�

Aconteceu que um dia, no começo do outono, nem bem

am- dois anos após a morte de Johann Albrecht, o Mensageiro,

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sua

sempre bem informado, deu, ainda na edição vespertina, a no-

°iro tícia de que naquela tarde Sua Alteza Real, o Grão-Duque, e

de r, Sua Alteza Real, o Príncipe Klaus Heinrich, tinham tomado

que chá com Sua Alteza, a Princesa zu Ried-Hohenried. Só essa

era

nota. Mas naquela tarde os irmãos comentaram várias coisas

esá-�

importantes com relação ao futuro.

írias

leja- Klaus Heinrich deixou o Eremitage lá pelas 5h. Como

estivesse quente, encomendara a carruagem aberta, pintada de

omo

mte- marrom, lavada e lustrosa, embora não fosse nova nem mo-

dir derna. Ela veio a trote do estábulo com pátio calçado que fica-�

,

va na ala direita do edifício da adminístração, pelo largo ca-

ipes-

utro minho de cascalhos em direção ao castelinho. Os edifícios da

administração, térreos, cor de ocre, antiquados, formavam, com

ter,

a casa senhorial branca e simples (embora um pouco afastada),

uase

em um conjunto bem longo, cuja fachada, a intervalos regulares

ua- enfeitada com loureiros, voltava-se para o lago lamacento e a

q

.ndo parte pública do parque. A parte dianteira da propriedade, que�

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noi- se ligava ao Parque Municipal, estava aberta a pedestres e car-

re, à ruagens leves, isolada apenas por um jardim florido, um pouco

amos ascendente, em cima do qual ficava o Castelo, assim como O

evi- parque dos fundos, bastante descuidado, separado por sebes e

125

cercas dos prados desolados e cobertos de líxo dos campos que '

beiravam a cidade.

A carruagem seguiu, poís, entre lago e administração, pas-

sou pelos portais do jardim, altos e ornados com dois lampiões

#

outrora dourados, venceu a rampa e esperou diante do terraço

hirto, ladeado por loureiros, que conduzia ao jardim de inver-

no. Klaus Heinrich saiu poucos minutos depois das 5h. Usava

,

como de costume, o umforme rígido de Primeiro-Tenente dos

Granadeiros, e pendurara a espada no braçt. Neumann, com�

fraque roxo de mangas demasiado curtas, crreu à frente dele,�

degraus abaixo, e com as mãos vermelhas de barbeíro arrumou

na carruagem o manto cinzento e dobrado de seu senhor. De-

pois, enquanto o cocheiro, mão no chapéu de roseta, se incli-

nava um pouco de lado na boléia, o Camareiro arrumou o leve

cobertor nos joelhos de Klaus Heinrich e recuou com uma me-

sura, sem dizer nada. Os cavalos deram partida.

Lá fora, diante dos portões, postavam-se algumas pessoas.

Saudaram, baixando os chapéus, com um sorriso, e Klaus Hein-

rich agradeceu colocando no boné a mão direita enluvada de

branco, e inclinando várias vezes, vívamente, a cabeça- Pas-

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saram ao longo de uma alameda de bétulas, à beira de terras

não-cultivadas. As folhas já estavam amarelecendo. Depois,

atravessaram o subúrbio, entre moradias pobres e ruas sem

calçamento, onde crianças do povo esqueceram por um mo-

mento seus piões e aros de tonel, seguindo a carruagem com

olhos pensatívos. Algumas gritaram "viva" e correram um pou-

co ao lado das rodas, erguendo o rosto para Klaus Heinrich.

carruagem podia ter seguido o cami.nho pelo Jardim das Fon-��

tes; mas passar pelo subúrbío era mais rápido, e o tempo urgia.

Ditlinde era muito sensível a questões de ordem, e se irritava

facilmente quando lhe perturbavam a vida doméstica com a

;mpontualidade.

Lá ficava o Hospital Infantil Dorothea, dirigido pelo ami-

go de Überbein, o Dr. Sammet; Klaus Heínrich passou pela

frente. Depois; seu veículo deixou aquela zona popular e che-

126

ue gou à Gartenstrasse, avenida grande e arborizada onde ficavam�

as casas e mansões dos cidadãos ricos, cuja linha ae bondes

as- ligava o Jardim das Fontes ao centro da cidade. Ali reinava um�

ões tráfego muito intenso, e Klaus Heinrich teve trabalno em re-

tribuir os cumprimentos que lhe eram dirigidos. Civis tiravacn

aço

uer- os chapéus e olhavam para cima, oficiais a cavaio e a pé fa-

va, , ziam continência, policiais tomavam posição de sentido, e Klaus� �

dos Heinrich, no canto da carruagem, levava a mão ao boné e agra-

om decia para os dois lados, com aquele gesto e aquele sorriso trei-�

lele, nados desde a juventude, destinados a fortalecer a simpatia das

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nou pessoas por sua personalidade festiva . . . Tinha um modo bem

De- singular de sentar-se na carruagem - não deitado preguiço-

ncli- sa e comodamente nas almofadas, mas atento, quase como ao ca-

ieve valgar, as mãos cruzadas no punho da espada, um pé um pouco

me- para diante "com ensando" as irregularidades do chão, adaptan-

p

do-se aos movimentos da carruagem, cujo molejo era deficien-

te...

A sege passou pela Praça Albrecht, deixou à direíta o Cas-

telo Velho, com sua guarda dupla, seguiu pela Albrechtsstrasse

em direção à caserna dos Granadeiros, e foi para a esquerda,

entrando no pátio do palácio. Era uma construção íntima, em

estilo rococó, com um torreão sinuoso sobre o portal principal,

"olhos-de-boi" emoldurados por complicadas guirlandas no an-

dar do meio, altas janelas de sacada no primeiro andar e um

delicado cour d'honneur formado por duas alas laterais tér-

reas. Era separado da rua por uma grade arqueada, sobre

cujas colunas brincavam anjinhos de pedra. Mas a decoração

interna do castelo, ao contrário do estilo externo, era de um

gosto moderno e confortavelmente burgu.ês.

Ditlinde recebeu o irmão no salão grande do primeirc

andar, com vários grupas de poltronas em seda verde-pálido,

cuja parte traseira, separada da parte principal por esguias co-

lunas, estava repleta de palmeiras, flores em potes de metal,

e mesinhas cobertas de flores coloridas e opulentas.

127

#

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- Bom dia, Klaus Heinrich - disse a Princesa.

Era delicada e esbelta, só o cabelo louro acinzentado era

opulento, esse que antigamente se enroscava sobre suas orelhas

em cachinhos dourados, agora arranjado em grossas tranças so-

bre o rosto em forma de coração, com os zigomas dos Grimm-

burg. Usava um vestido caseiro de tecido leve, cinza-azulado, com

decote de rendas em ponta, parecendo um peitilho, preso à cíntu-

' ra com um antiquado broche oval. A. pele fina do seu rosto mos-

trava, aqui e ali, nas têmporas, na testa, nos cantos dos olhos

azuis de expressão fria e branda, pequenas veias e sombras azu-

ladas. Começava a tornar-se visível que ela estava grávida.

- Bom dia, Ditlínde, com suas flores! - respondeu Klaus

ï

Heinrich, curvando-se sobre a pequena mão da irmã, alva e

i

um pouco larga, e juntando os calcanhares. - Que cheiro bom

por aqui! E vejo que está tudo cheio lá dentro.

- Sim - respondeu ela -, gosto de flores. Sempre tive

vontade de poder viver entre muitas flores, vivas, perfumadas,

que eu pudesse cuidar . . . era uma espécie de desejo secreto,

Klaus Heínrich, e eu poderia dizer que me casei para isso, por-

que, como sabe, não havia flores no Castelo Velho . . . O Cas-

telo Velho e as flores! Acho que poderíamos ter farejado mui-

to . . . Ratoeiras e coisas desse tipo. Sim, pensando bem, tudo

quilo, como aquela ratoeira velha, era tão poeirento e horrí-�

vel . . . é verdade . . .

- Mas, Ditlinde, havia a roseíra.

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- Sim, santo Deus . . . uma roseira. E essa está no gu ia

turístico porque suas rosas cheiram a mofo! E dizem que um

dia vão ter perfume natural, e bom, como as outras rosas. Mas

nem posso imagínar isso!

- Em breve, você terá de cuidar de coisa melhor do que

flores, minha pequena Ditlinde - disse ele, e olhou-a, sor-

rindo.

- Sim - disse ela, corando depressa, levemente. -

Sim, Klaus Heinrich, isso, na verdade, também não consigo

128

imaginar ainda. Mas, se Deus quiser vai acontecer, sim. Entre.

Vamos nos sentar juntos. . .

O quarto ern cuja soleira tinham conversado era pequeno

em relação à sua altura, com tapete cinza-azulado e decorado

com móveis graciosos, laqueados de cinza-prateado, os assen-

tos de seda pálida. Um lustre de porcelana leitosa pendia do

centro do teto, ornado com alvos arabescos, e as paredes esta-

vam cobertas de quadros a ôleo de vãrios tamanhos, compra-

dos pelo Príncipe Philipp, estudos luminosos segundo o gosto

moderno, cabras brancas ao sol, aves domésticas ao sol, prados

ensolarados, e camponeses com olhos ofuscados pelo sol, ros-

tos sardentos por causa do sol. A escrivaninha feminina, de per-

nas muito finas, junto à janela de cortinas brancas, estava co-

berta de 100 pequenos objetos minuciosamente arranjados, bi-

belôs, objetos para escrever e vârios caderninhos delicados . . .

pois a Princesa estava habituada a anotar todos os seus deve-

res e intenções. Diante do tinteiro, via-se aberto um caderno

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de contabilídade, em que Dítlínde parecía ter estado trabalhan-

do há pouco. Ao lado da escrivaninha, junto da parede, um

pequeno calendário enfeitado com fitas de seda, debaixo de

cuja data se lia, escrito a lápis: "5h: meus irmãos." Diante

da porta branca que dava para a sala de recepção, entre o

sofâ e um semicïrculo de cadeiras, fícava a mesa oval, coberta

de delicado damasco, e um trílho de seda azul. A louça florida

- uma travessa com doces, travessas alongadas com biscoitos e

minúsculos canapés - estava distribuída sobre a mesa numa or-

dem regular, e ao lad, sobre uma mesinha de vidro, o bule�

de chá de prata soltava seu vapor em cima de uma espiriteira.

Mas, por toda parte, nos vasos sobre a escrivaninha, a mesa

de chá, a mesa do espelho, a cristaleira cheia de figuras de por-

celana, a mesinha ao lado do divã branco, havia flores, e uma

mesa de flores cheia de potes também se postava diante da

janela.

#

Esse quarto, afastado, em ângulo com as salas de recep-

ção, era o gabinete de Ditlinde, seu boudoir, a sala em que rece-

129

bia seu círculo muito íntimo, de tarde, e costumava preparar

pessoalmente o chá. Klaus Heinrich a contemplou enxaguando

o bule com água quente e nele despejando chá com uma colhe-

rinha de prata.

- E Albrecht. . . ele vem? - perguntou, com voz invo-

luntariamente abafada.

- Espero -- disse ela, curvando-se cuidadosamente so-

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bre o pote de cristal com chá, para não derramar nada fora.

(e ele evitou olhar para lá). - Naturalmente, Klaus Hein-

rich, eu o convidei, mas você sabe que ele não pode assumír

compromissos. Depende de como se sente . . . Vou fazer nosso

chá agora, poís Albrecht vai tomar seu leite . . . E pode ser

que a Jettinha apareça. Você vai gostar de vê-la. Tão animada,

sempre tem tanto para contar . . .

A "Jettínha" era uma certa Srta. von Isenschnibbe, ami-

ga de confiança da Princesa. Eram íntimas desde a infância.

- Sempre preparado? Sempre de umforme, Klaus Hein-

rich? - perguntou Ditlinde, colocando o bule de chá sobre

o suporte e olhando o irmão.

Ele estava parado, calcanhares umdos, esfregando a mão

esquerda, que sempre sentia frio, com a direita, à altura do

peito.

- Sim, Dítlinde, prefiro assim. Sabe, o umforme fica tão

firme, e veste bem. Além disso, é mais barato, pois um guarda-

roupa civil parece custar caríssimo, e Schulenburg já se queixa

o tempo todo de que tudo está ficando tão caro . . . Assim, eu

me ajeito com dois, três casacos, e até posso me apresentar bem

diante de meus parentes ricos . . .

- Parentes ricos! - riu Ditlinde. - Isso ainda vai de-

morar um bocado, Klaus Heinrich!

Sentaram-se à mesa de chá, Ditlinde no sofá, Klaus Hein-

rich numa cadeira diante da janela.

- Parentes ricos! - repetiu ela, e via-se que isso lhe agra-

dava. - Não, longe disso, como ficaríamos ricos quando o di-

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nheiro sonante é pouco, e tudo está metido em empresas, Klaus

130

Heinrich? E as empresas são novas, todas ainda crescendo, como

,, diz meu bom Philipp, e só deverão dar frutos aos nossos des-

.

cendentes. Mas tudo está progredindo, isso é verdade, e eu cuido

muito da administração . . .

- Sim, é verdade, Ditlinde, você organiza tudo!

- . . . cuido bem de tudo e anoto tudo, e cuido das pes-

soas, e apesar de toda a boa aparência que se tem de mostrar

ao mundo, cada ano conseguimos guardar alguma coisa, pensan-

do nos filhos. E meu bom Philipp . . . ele lhe manda saudações,

Klaus Heinrich, esqueci disso, lamenta muito não poder estar

presente hoje . . . Mal voltamos de Hohenried, e ele já está via-

jando a negócios, nas propriedades . . . embora seja de natureza

pequeno e delicado, quando se trata da sua turfa e das serra-

rias, fica com as bochechas vermelhas, e diz mesmo que ficou

muito mais saudável desde que começou a ter tanto trabalho . . .

5 - Diz isso? - perguntou Klaus Heinrich, e uma sombra

apareceu em seus olhos, enquanto ele olhava diretamente em

frente, pela janela iluminada, sobre a mesa das flores. . . - Sim,

posso imaginar isso, deve ser estimulante ter o que fazer. No meu

parque, os campos foram segados pela segunda vez neste ano,

y e gosto de ver o capim juntado em montes regulares, com uma

vara no meio, de modo que parece um pequeno acampamento

de índios, ou coisa assim; depois, Schulenburg vende tudo. Mas;

naturalmente, não há comparação . . .

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. - Você! - disse Ditlinde, apertando o queixo contra o

peito. - Com você é diferente, Klaus Heinrich. O segundo no

trono! Você tem outra vocação, acho eu. Devia se alegrar por-

,

que o povo gosta tanto de você . .

E calou-se por um momento.

#

- E você, Ditlinde - disse ele então -, nãa é verdade,

você hoje vive melhor que antigamente, ou estou enganado?

Não digo que tenha bochechas vermelhas como Philipp com sua

turfa. Você sempre foi meio palidazinha, e continua. Mas tem

; um ar contente, não é? Nunca perguntei desde que você se ca-

sou, mas acho que não é preciso me preocupar com você.

131

Ela estava sentada numa postura tranqüila, braços cruzados

de leve sob o busto.

- Sim - disse ela -, estou bem, Klaus Heinrich, vocé

viu certo, seria íngratídão se eu não admítisse minha felicidade.

Sabe, e sei muito bem que algumas pessoas no país ficaram de-

cepeionadas com meu casamento, e dizem que eu me desperdicei

e descí de nível, e não sei o que mais. E essas pessoas não estão

muito distantes de mim, pois nosso irmão Albrecht, você sabe

disso tão bem quanto eu, no fundo despreza meu bom Philipp

e a mim, não o suporta e o chama de negociante e burguês. Mas

ísso não me atinge, poís eu quís assím e aceíteí a mão de Philipp

- na verdade, eu até díría que a agarreí, se isso não soasse meio

doido. Aceitei porque era quente e boa, e se oferecia para me

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tirar do Castelo Velho. Pois quando penso no Castelo e na

vida que se levava lá dentro, que eu teria continuado a levar

sempre não fosse o bom Philipp, sinto calafrios, Klaus Heinrich,

e sinto que não teria suportado isso, tería ficado confusa e es-

quisita, como nossa pobre mâe. Sou um pouco delicada por na-

tureza, você sabe, simplesmente teria sucumbido em..,anta tris-�

teza e solidão. E, quando chegou o bom Phillip, pensei: é a

salvação. E quando as pessoas dizem que sou má princesa por-

que, de cèrta forma, abdiquei e me refugieí aqui, onde é um

pouco mais quente, e mais alegre, e quando dizem que não tenho

senso de dignidade nem consciência da minha nobreza, ou como

quer que chamem isso, é porque são tolas, ignorantes, Klaus

Heinrich. Pois tenho muita consciência de minha nobreza, ao

contrário, tenho até demais, ou o Castelo Velho não me teria

assustado. E eu queria que Albrecht entendesse isso, poís tam-

bém ele, à sua maneira, tem essa consciêncía. . . Nós, os grimm-

burguenses todos a temos, em demasia, por isso às vezes parece

que a temos de menos. Às vezes, quando Phillip viaja, como ago-

ra, e fico aqui sentada com mínhas flores e os quadros de Phi-

lipp com todo esse sol que há neles - é bom que seja um sol

pintado, pois, sinceramente, do contrário eu teria de me cuí-

dar -, tudo tão ordenado e boníto, e fíco pensando nessa coisa,

132

a melhor de todas, como você diz, da qual poderei tomar conta

em breve . . . e me sinto como uma ninfa do mar daqueles con-

s

tos de fadas que a madame da Suíça lia para nós, não sei se você

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lembra . . : que se casou com um homem e em vez de cauda de

peixe recebeu pernas . . . Não sei se me entende . .

- Sim, entendo muito bem. E fico feliz por tudo ter dado

tão certo para você. Pois é perigoso, acredite, tenho experiência

disso, é perigoso para nós sermos felizes como as pessoas co-

muns. Logo nos perdemos, somos mal-interpretados, ninguém

protege nossa dígnidade se não o fazemos. E logo tudo acaba em

vergonha e insultos . . . Mas qual é o caminho certo? Você en-

controu o seu. Outro dia, disseram que eu estava noivo de nossa

prima Griselde. Estavam atirando verde, como se diz, decerto

pensam que está na hóra de eu me casar. Mas Griselde é boba,

vive morrendo de anemia e, até onde sei, nunca diz outra coisa

senão "É mesmo . . . ". Nem penso nela. Graças a Deus, Knobels-

.

dorff também não pensa. Logo desmentiram a notícia . . . AI-

brecht chegou! - disse ele, levantando-se.

Alguém pigarreara lá fora. Um criado de libré verde-oliva

abriu com os dois braços, num gesto silencioso, rápido e firme,

os dois batentes da porta, e anunciou com voz contida:

,

- Sua Alteza Real, o Grão-Duque.

E, com uma mesura, postou-se de lado. Albrecht atraves-

sou o salão.

#

Cumprira em carruagem fechada os 100 passos do Castelo

Velho até ali, o monteiro na boléia. Estava em roupa civil, como

quase sempre, usava um casaco fechado, com pequena gola de

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cetim, e botas de verníz nos pés estreitos. Desde que subira ao

trono, deixara crescer uma barbicha. Seu cabelo louro, curto,

· deixava livres as finas têmporas côncavas. O andar era desajei-

tado, mas mesmo assim de indescritível nobreza, com as omopla-

tas torcidas de inibição. A cabeça deitada para trás, o curto lábio

inferior, arredondado, avançando e sugando de leve o superior.

A Princesa foi a seu encontro até a soleira. Como não gos-

tasse do beija-mão, ele simplesmente lhe estendeu a mão e a

133

cumprimentou em voz baixa, quase um sussurro. Sua mão magra

e fria, de aparência singularmente sensível, que estendia perto

do peito, sem desprender o braço do corpo. Depois, saudou da

mesma forma seu irmão Klaus Heinrich, que o aguardara de

calcanhares umdos diante de sua cadeira - e não disse mais

nada.

Ditlinde dizia:

- Mas que bom você ter vindo, Albrecht. Então, está se

sentindo bem? Parece ótimo. Philipp manda dizer que lamenta

muito não poder estar presente hoje. Por favor, sente-se onde

lhe agradar mais - por exemplo, aqui, na minha frente. A

cadeira é bem cômoda, da última vez você também se sentou

aí. Já preparei nosso chá. Seu leite vem logo. . .

- Obrigado - disse ele, baixinho. - Devo pedir des-

culpas. . . eu me atrasei. Sabe, quando moramos muito perto. . .

E precisò me deitar à tarde. . . Vamos ficar só entre nós?

- Inteiramente, Albrecht. Talvez, quando muito, a Jetti-

nha Isenschnibbe apareça um pouco se você não achar desagra-

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dável. . .

- Ah?

- Mas também posso mandar dizer que não vou estar

em casa.

- Ora, por favor. . .

Serviram leite quente. Albrecht agarrou com as duas mãos

o copo alto, grosso e convexo.

- Ah, está quente - disse ele. - Como já faz frio nesta

terra. E passei frio o verão todo em Hollerbrunn. Ainda não

está usando aquecimento? Eu já estou. De outro lado, sofro

com o cheiro dos fogões. Todos cheiram mal. Todo outono,

von Bühl me promete aquecimento central para o Castelo Velho.

Mas parece impraticável.

- Pobre Albrecht - disse Ditlinde. - Nesta época do

ano, você sempre estava no Sul enquanto papai vivia. Deve ter

saudades.

134

- Minha boa Ditlinde, sua compaíxão é admirável - res-

pondeu ele, sempre muito baixinho, ceceando um pouco. - Mas

devemos reconhecer que não sou livre para viajar. Preciso go-

vernar o país, para isso estou aqui. Hoje, tomei a generosa de-

cisão de admitir que algum cidadão - lamento ter esquecido O

nome dele - aceite e use uma condecoração estrangeira. Além

,. disso, mandei passar um telegrama para o Congresso Anual de

Horticultura, aceitando a presidência de honra dessa sociedade

e prometendo estimular de todas as maneiras os seus esforços. . .

sem saber, na verdade, o que poderia fazer além de passar um

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telegrama, pois esses senhores tratam muito bem de seus assun-

tos sem mim. Além disso, concedi em confirmar a eleição de

um certo bom homem como prefeito de minha boa cidade de

Siebenberge, mas é de se perguntar se esse súdito será melhor

prefeito com minha permissão do que sem ela. .

- Bem, Albrecht, são ninharias! - disse Ditlinde. -

Estou convencida de que você teve assuntos mais importantes. . .

- Ah, claro. Recebi meus Ministros das Finanças e da

Agricultura. Estava na hora. O Dr. Krippenreuther teria ficado

muito aborrecido se eu não o tivesse chamado. Ele é lacônico,

' e fez uma exposição sobre vários assuntos ligados entre si -

a colheita, os novos métodos para elevar o orçamento, a refor-

ma dos impostos com que ele está se ocupando. A colheita foi

#

ruim. Os camponeses foram atingidos pelo mau tempo e pelos

parasitas, por isso não só eles vão mal, mas também Krippen-

rcuther, pois diz que o pagamento de impostos no país vai cair

de novo. Além disso, infelizmente, houve catástrofes numa ou

' noutra das minas de prata. Krippenreuther diz que elas não estão

dando lucro, e sua recomposição custará grandes quantias. Ouvi

tudo isso cm expressão adequada e fiz o que podia fazer, ex-�

pressando minha dor por tanta desgraça. Depois, ouvi pergun-

tarem se os custos das novas construções necessárias para os

almoxarifados e para a administração das florestas, da aduana

e dos impostos devem ser retirados da verba ordinária ou extra-

ordinária, escutei muita coisa sobre escala progressiva, imposto

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sobre renda de capital e imposto de artesanato ambulante, alí-

vio da sofrida agricultura e ônus das cídades, e de modo geral

tivé a impressão de que Krippenreuther entende do seu ofício.

Eu próprio, naturalmente, não entendo coisa alguma, o que Krip-

penreuther sabe, e prefere assim. Por isso, eu disse "Sim, sim"

e "Claro, claro", e "Obrigado", e deixei tudo seguir seu ca-

minho.

- Albrecht, você parece tão amargurado.

- Não, quero lhe dizer uma coisa que me ocorreu hoje,

durante essa exposíção de Krippenreuther. Aqui na cidade vive

um homem, um pequeno aposentado com verrugas no nariz.

Todas as crianças o conhecem, e gritam "iuhu" quando o vêem.

Ele se chama Fimmelgottlieb, pois não regula muito bem e

há muito tempo não tem sobrenome. Está em toda parte onde

acontece alguma coisa, embora sua idiotia o exclua de qualquer

relação séria. Tem uma rosa na gola do casaco e carrega o cha-

péu na ponta da bengala. Algumas vezes ao dia, na hora em

que um trem parte, ele vai à estação, bate nas rodas, inspe-

ciona a bagagem e dá-se ares de ïmportante. Quando o homem

do boné vermelho dá o sínal, Fímmelgottlíeb acena para o ma-

quinista e o trem parte. Mas Fimmelgottlíeb imagina que o

trem parte ao seu sinal. Eu sou ele. Dou o sinal, o trem parte.

Mas também partiria sen mim, e meu aceno é apenas uma�

farsa. Estou farto. . .

Os irmãos ficaram calados. Dïtlinde olhava o próprio re-

gaço, triste, e Klaus Heinrich, puxando no seu bigodínho curvo,

olhava a janela clara, entre Ditlinde e o Grão-Duque.

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- Posso entender ísso muito bem, Albrecht - disse ele,

após algum tempo -, embora seja duro de sua parte compa-

rar-se, e a nós, com Fimmelgottlieb. Está vendo, eu nada en-

tendo de escala progressiva e nem de impostos para ambulan-

tes ou exploração de turfa, e há muita coisa de que absoluta-

mente não entendo. Tudo que se imagina ao falar na miséria

do mundo, na fome, na pobreza, não é? E a luta pela sobre-

vivência, como se diz, e a guerra, e o hospital, e tudo isso.

136

Nunca vi nem senti nada disso, exceto à própria morte, quando

papai faleceu e não foi uma morte tão ruim, pois foi até edifi-

cante, e todo o Castelo ficou iluminado. E por vezes me enver-

gonho por nunca ter tido experiências. Mas, por outro lado, pen-

so que não tenho uma vida tão boa assim, nem um pouco, em-

bora esteja nas alturas, acima das pessoas, como elas dizem;

ou exatamente por is.so. E, à minha maneira, talvez conheça

a dureza da vida, sua face severa, se me permite a expressão,

melhor do que muitos que entendem de escalas progressívas e

qualquer especialidade dessas. É isso, Albrecht, que faz com

ue não tenhamos vida mansa, tudo depende disso, e isso jus-

q "

tifica nossa existêncía. E como as pessoas gritam viva quan-

do me vêem, devem saber por que fazem isso, e minha vida

deve ter algum sentido, embora eu esteja excluído de todas

as relações sérias, como diz tão bem. E a sua muito mais. Você,

" é verdade, só acena para o que acontece, mas as pessoas que-

reJn que acene, e embora você não governe realmente a von-

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tade delas, ao menos a exprime, a apresenta, a concretiza, e

isso não é tão pouco assim. . .

Albrecht estava sentado à mesa sem se recostar. Segurava

#

° as mãos magras, de aparência singularmente sensível, cruzadas

sobre a beira da mesa diante do copo de leite meio vazío, as

pálpebras baixadas, sugando o lábío superíor com o inferior.

E respondeu baixinho:

- Não me admira que um príncipe tão amado como você

se conforme com seu destino. Eu, de minha parte, me recuso

a exprimir outras pessoas e a representar quem quer que seja,

senão a mim mesmo - estou dizendo que recuso isso, e você

pode pensar que as uvas estão verdes. A verdade é que os

"vivas" das pessoas me interessam tão pouco quanto uma alma

pode ligar para qualquer coisa. Não falo do meu corpo. Sou

fraco; alguma coisa em mim se distende quando aplaudem e

se retorce quando silencíam friamente. Mas meu juízo está acima

de todo amor e desamor. Sei o que seria a popularidade, se

a

viesse. Um engano a respeito de minha pessoa. Então, a gente

137

dá de ombros, pensando nas palmas dos estranhos. Para outra

pessoa - você - sentir o apoio do povo pode provocar um

sentimento de superíoridade. Perdoe-me, talvez eu seja apenas

sensato demais para emoções tão misteriosas. E talvez também

goste demais da higiene, se me perdoa a expressão. Acho que

esse tipo de felícidade cheira mal. De qualquer modo, o povo

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me é estranho. Não lhe dou nada. . . como ele poderia me dar

alguma coisa? Com você. . . ah, é diferente. Centenas de milha-

res de pessoas parecidas com você lhe agradecem porque se

reconhecem na sua pessoa. Você poderia rir, se quisesse. Quan-

do muito, haveria perigo de mergulhar fundo demais na sua

popularidade e por fim acabar se acomodando, embora de mo-

mento recuse isso. . .

- Não, Albrecht, não creío estar correndo esse perigo.

- Pois tanto melhor nos entenderemos. Não gosto geral-

mente de expressões fortes. Mas popularidade é uma porcaria.

- Estranho, Albrecht, estranho você usar essa palavra.

Os Faisões, meus colegas, sempre a usavam, sabe, aqueles jo-

vens nobres do Castelo dos Faisões. Sei o que você é: você

é um aristocrata, esse é o problema.

- Acha? Pois está enganado. Não sou aristocrata, sou o

contrário disso, por gosto e por sensatez. Você terá de admitir

que não desprezo o aplauso da multidão por capricho, mas por

humanitarismo e bondade. A nobreza humana é uma desgraça,

e as pessoas deviam reconhecer isso, e tratar-se umas às outras

com humanitarismo e bondade, e não se humilhar e rebaixar.

É preciso ser resistente para deixar que joguem com a gente

ese jogo da nobreza. Tenho natureza delicada, não suporto u�

ridículo da minha posição. Qúalquer lacaio que se planta junto

da porta esperando que eu passe por ele sem lhe dar maior

atenção do que daria à porta me deixa constrangido. É minha

maneira de amar o povo. . .

- Sim, Albrecht, é verdade. Às vezes, não é fácil passar

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por um sujeito desses de boa cara. Lacaios! Como se não sou-

béssemos que são uns trapaceiros. As coisas que falam deles. . .

138

- Que coisas?

.tra�

- Ah, a gente fica sabendo. . .

um

- Parem com isso! - disse Ditlinde. - Não vamos falar

nas

nesse tipo de assunto. Vocês ficam falando em assuntos gerais,

ém�

e achei que esta tarde podíamos comentar uns assuntos que

ue�

VO anotei. . . Klaus Heinrich, pode me passar aquele bloco de couro�

azul? Obrigada. Anoto aqui tudo o que pteciso lembrar, a

dar

lha- contabilidade doméstica e outras coisas. Tão bom poder ver tudo

aqui, preto no branco. Minha cabeça é fraca, não guarda nada,

: se

zan- e se eu não fosse ordeira e não anotasse tudo, ficaria desespe-

#

sua rada. Primeiro: Albrecht, antes que me esqueça, quero lembrar

mo- que, na primeira sessão da Corte, em novembro, você terá de

levar tia Katharina. Não pode deixar de fazer ísso. Eu lhe devo

meu lngar, estive com você no último baile da Corte, e tia

Katharina ficaria terrivelmente magoada.. . Concorda? Bem,

°ral- p g

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então osso riscar esse item. . . Se undo: Klaus Heinrich, que-

aria.

ria pedir que na festa beneficente para os órfãos, na Prefeitura,

mra.

no dia 15, você aparecesse um pouquinho. Sou a patronesse,

jo-�

você sabe, e levo isso a sério. Não precisa comprar nada. . . tal-

você

vez um pente. . . Só rapidamente, basta que se mostre por uns

10 minutos. É para os órfãos. . . Você vem? Está vendo, posso

u o riscar mais uma coisa. Terceiro. . .�

nitir

Mas a Princesa foi interrompida. A Srta. von Isenschnibbe,

por

dama da Corte, fez-se anunciar, e entrou no mesmo instante,

raça,

vinda do grande salão, com passinhos miúdos, o boá de plumas

atras

ondulando no ar, à beira do enorme chapéu de plumas balan-

ixar.

=ente çando para cima e para baixo. De suas roupas vinha um aroma

' de ar fresco lá de fora. Era pequena, loura, nariz pontudo, e

to O�

tão míope que não conseguia ver as estrelas. Em noites claras,

unto

' ficava no terraço vendo as estrelas com seu binóculo de ópera

naior

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para poder sonhar. Usava dois pares de óculos, um por cima

unha

do outro, e esticou o pescoço para diante, espiando, ao fazer

sua mesura.

assar�

- Meu Deus, Alteza - disse ela -, eu não sabia que

sou- estava incomodando, fui logo entrando, peço que me perdoem!�

139

! Os irmãos se haviam levantado, a moça prostrou-se diante

deles, envergonhada. Como Albrecht estendesse sua mão perto

do peito, sem afastar o cotovelo do corpo, o braço dela se es-

tendeu quase verticalmente quando a mesura que fazia diante

dele chegou ao máxímo.

- Minha boa Jetti.nha - disse Ditlinde -, mas que jeito

de falar! Você era esperada, e é bem-vinda! Meus irmãos sa-

bem que nos tratamos por você. Portanto, não me fale de

i'v Alteza. Não estamos no Castelo Velho. Sente-se e fique à von-

tade. Quer chá? Ainda está quente. Aqui temos frutas cris-

talizadas. Sei que gosta delas.

- Sim, muito obrigada, Ditlinde, adoro frutas cristaliza-

das! - A Srta. von Isenschnibbe sentou-se de costas para a

janela, na cabeceira da mesa, diante de Klaus Heinrich, tirou

uma luva e omeçou a colocar doces em seu prato com o pega-�

dor de prata, ínclinando-se para a frente a fim de enxergar.

Seu pequeno peito respirava depressa, arrebatado de excitação

e alegria.

- Eu sei de novidades - disse ela, incapaz de se conter.

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- Novidades. . . mais do que cabem na minha bolsinha! Quer

dizer . . . no fundo é só uma, só uma, mas é fantástica, e é abso-

lutamente certa, eu a consegui da melhor fonte, e você sabe,

Dïtlinde, que pode confiar em mim. Ainda esta noite vai estar

no Mensageiro e amanhã a cidade toda vai falar no assunto.

- Sim, Jettinha - disse a Princesa -, é verdade que

você nunca vem de mãos vazias. Estamos curiosos, qual a sua

novidade?

- Pois muito bem. Primeiro, deixe-me respirar. Sabe;

Ditlinde, sabe Alteza, sabe Alteza Real, quem está por vir,

#

quem vai ao Jardim das Fontes, quem vai morar no Quellenhof

por seis ou oito semanas para beber a água?

- Não - disse Ditlinde. - E você sabe, Jettinha?

- Spoelmann - disse a Srta. von Isenschnibbe. -

Spoelmann - repetiu, recostando-se para trás e fazendo gesto

140

cie quem vai bater na beira da mesa, mas sua mão parou pouco

acima do trilho de' seda azul.

Os irmãos entreolharam-se, duvidando.

- Spoelmann? - perguntou Ditlinde. - Pense bem, Jet-

r.ínha: o verdedeiro Spoelmann?�

- O verdadeiro! - a voz da moça falhou de júbilo con-

cido. - O verdadeíro, Ditlínde. Poís só exíste um, ou só resta

um que conhecemos, e é esse que esperam no Quellenhof. . . o

grande Spoelmann, o gigante, o incrível Sarnuel N. Spoelmann,

dos Estados Unidos!

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- Mas, filha, como ê que ele viria parar aqui?

- Ditlinde, desculpe minha resposta, mas você perguntou.

Naturalmente, ele vem pelo oceano, no seu iate ou num gran-

de navio, não sei ainda. . . como mais lhe agradar. Vai tirar

férias, uma viagem pela Europa, com o objetivo expresso de

beber água no Jardim das Fontes.

- Mas está doente?

- Claro, Dítlínde. Toda aquela gente é doente, ísso faz

parte.

- Mas que estranho - disse Klaus Heinrich.

- Sim, Alteza, é muito estranho. Deve ser o modo de

vida dele. Pois é certamente uma vida dura, nada cômoda, e

deve desgastar o_ -corpo mais depressa do que a vida de uma

pessoa comum. A maioria tem problemas de estômago. Mas

dizem que Spoelmann tem cálculos.

- Então, cálculos. . .

- Sim, Ditlinde, você naturalmente já ouvíu falar nísso

e esqueceu. Ele tem pedras nos rins, se me permitem essa ex-

pressão tão feia. Uma dor terrível, torturante, e infelizmente

nem consegue aproveitar sua fortuna fabulosa. . .

- Mas como foi pensar logo nas nossas águas?

- Bem simples, Ditlinde. A água é boa, é excelente, es-

pecialmente a Fonte Ditlinde, com seu lítio ou seja qual for o

nome, é excelente para gota e pedras, e só falta que seja devi-

damente valorizada no mundo. Mas um homem como Spoel-

141

mann, claro, um homem desses está acima de nomes e propa-

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gandas, e segue suas próprias idéias. E assim descobriu nossas

águas. . . ou seu médico pessoal as recomendou, e lhe fizeram

bem, e agora ele deve pensar que, bebidas no local de origem,

devem fazer mais bem ainda.

Todos ficaram calados.

- Santo Deus, Albrecht - disse Ditlinde afinal -, não

importa o que se pense de Spoelmann e de gente como ele. . .

e penso nele com reservas, pode ter certeza. . . mas não acha

que a visita desse homem ao Jardim das Fontes pode ser de

grande ajuda?

O Grão-Duque virou a cabeça com aquele sorriso fino e

rígido.

- Pergunte à Srta. von Isenschnibbe - respondeu. -

Sem dúvida, ela também já avaliou esse lado da coisa.

- Já que Vossa Alteza Real o ordena. . . Vai ajudar imen-

samente! Imensamente, imensuravelmente. . . isso é certo! A

direção está felicíssima, é capaz até de colocar guirlandas no

reservatório e iluminar o Jardim das Fontes! Que recomenda-

ção para a casa! Que atação para os estranhos! Vossa Alteza�

Real imagine . . . esse homem é uma coísa notável! Há pouco

Vossa Alteza falava de "seus iguais". . . mas ele não tem iguais,

quando muito, um ou dois. 1~; um Leviatã, é o Pássaro Roca!

As pessoas virão de longe para ver uma criatura dessas, que

dispõe de meio milhão diariamente!

- Deus nos livre! - disse Ditlinde, abalada. - E o

meu bom Philipp, que se mata com sua turfa. . .

- Tudo começou porque há dois dias dois americanos

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#

apareceram na \Xandelhalle. Quem são eles? Descobriram que ,�

se trata de jornalistas, enviados por dois grandes jomais de Nova '

Iorque. VieraYn à frente do Leviatã e, por enquanto, telegra-

fam a seus jomais mandando descrições do local. Quando ele

chegar, vão telegrafar todos os seus passos. . . exatamente como

o Mensageiro e o Diário O f icial noticiam sobre Vossas

Altezas . . .

142

pa- Albrecht inclinou-se, agradecendo de olhos baixos, avan-�

sas ando o lábio inferior.� � �

vam r - Ele requisitou os aposentos dos Príncipes no Quellen-

°m, hof como moradia provisória - disse Jettinha.

- Só para ele? - perguntou Ditlinde.

- Ah, não, Ditlinde, pode imaginar que não virá sozi-

não ' nho. Não sei muita coisa sobre sua gente e seus criados, por�

enquanto, mas é certo que vem com uma filha e seu médico

cha pessoal. '�

de - Você sempre diz "médico pessoal", Jettinha, isso me

aborrece. E os jornalistas. E ainda por cima, quartos dos prín-

o e cipes. Ele não é rei!�

- Até onde sei, um rei das ferrovias - comentou Al-

-' brecht baixinho, sem levantar os olhos.

- Não só rei das ferrovias, Alteza Real, e, segundo ouvi

nen- '% dizer, isso nem é o principal. Nos Estados Unidos, há essas

! A randes associações comerciais chamadas trustes, como Vossa�

b

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, no ! Alteza sabe; por exemplo, o truste do aço, o truste do açúcar,

nda- o truste do petróleo, e ainda os trustes do carvão e da carne�

teza , e do tabaco e sei mais do quê. E em quase todos eles Samuel� � �

uco N. Spoelmann tem participação, e é grande acionísta e contro-� �

uais, lador principal. . . é assim que chamam, eu li. . . e portanto seu

oca! negócio deve ser o que aqui chamamos de comércío diversifi-

que - cado.

- Belos negócios! - disse Ditlinde. - Belos negócios

E o devem ser os dele! Pois você não vai querer me convencer

de que com trabalho honesto alguém se torna um Leviatã ou

anos Pássaro Roca, Jettinha. Estou certa de que o sangue de viúvas�

que y e órfãos está grudado na sua fortuna. Que pensa você disso,

Iova ' Albrecht?�

egra- - Espero que sim, Ditlinde, para consolo seu e do seu

ele marido.�

omo - Se assim for - disse a moça -, Spoelmann, o nosso�

ossas , Samuel Spoelmann, não há de ter muita responsabilidade no

, caso, pois na verdade não é senão um herdeiro. Dizem até que

143

nunca teve grande vontade de fazer negócios. Na verdade, quem

fez tudo foi o pai. . . li tudo, e posso dizer que sei das coísas.

O pai dele era alemão. . . não era ninguém, aventureiro que

cruzou o oceano e se tornou minerador. E teve sorte, encontrou

ouro, e fez uma pequena fortuna. . . ou era bastante grande. . .

e começou a especular com petróleo, ferrovias e aço; depois,

em tudo que era possível, e fícou cada vez maís e mais rico.

E quando morreu, afinal, tudo já estava em pleno andamento,

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e seu fílho Samuel, que herdou a firma do Pássaro Roca, não

precisou fazer praticamente nada, senão enfíar no bolso os enor-

mes dividendos e ficar mais e mais rico ainda, até quase nem

se poder dizer quanto. E as coisas aconteceram por si.

- E ele tem uma filha, Jettinha? Que criatura é essa?

- Sim, Ditlinde, a mulher dele motteu, mas ele tem uma

filha, a Srta. Spoelmann, e vai trazê-la consigo. Segundo o que li,

uma moça bem estranha. Ele próprio é um sujet mixte, porque

seu paí pegou uma mulher do sul. . . sangue crioulo, pessoa

com pai alernão e mãe nativa. Depois, Samuel casou-se com

uma germano-amerícana, com meío sangue ínglês, e a filha deles

é essa Srta. Spoelmann.

- Deus me livre, Jettinha, que criatura exótica!

- Pode-se dízer que sím, Ditlínde. E é instruída, ouvi

dizer que estuda como um hornem, álgebra e coisas inteligen-

tes...

- Bem, isso não me faz gostar mais dela.

#

- Mas agora vem o mais forte, Ditlinde, pois a Srta. Spo-

elmann tem uma dama de companhia, e essa dama de companhia

é uma condessa, uma condessa de verdade lhe serve de dama

de companhia.

- Deus me livre! - disse Ditlinde. - E ela não tem

vergonha disso? Jettinha, tomeí mínha decísão. Não vou me

ínteressar por Spoelmann. Vou deixar que beba tranqüilamente

na sua fonte, e que parta de novo com sua condessa e sua fílha

algebrizada, sem me importar com ele. E não me impressiona

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nada essa sua fortuna pecaminosa. Que acha, Klaus Heinrich?

144

Este olhou por cima da cabeça da moça, em direção à janela

clara.

- Impressionar? - disse ele. - Não, a fortuna não me

impressiona, acho eu. . . quer dizer, o que se chama de fortuna.

Mas acho que depende. . . acho que depende do critérío. Tam-

bém temos algumas p'essoas ricas na cidade. . . por exemplo,

dizem que o fabricante de sabão Unschlitt tem 1 milhão. . . às

vees o vejo na sua carruagem. . . É bem gordo e vulgar. Mas�

se for doente e solitário devido à fortuna. . . Não sei. . .

- De qualquer modo, um homem sinistro - disse

Ditlinde.

E aos poucos foram deixando de falar em Spoelmann. Fa-

laram em assuntos familiares, na propriedade de Hohenried, na

prcíxima temporada. Lá pelas 7h, o Grão-Duque pediu sua car-

ruagem. Ergueram-se, despediram-se, pois também o Príncipe

Klaus Heinrich estava de partida. Mas no vestíbulo, enquanto

os irmãos deixavam que lhes vestissem os casacos, Albrecht

disse:

- Klaus Heinrich, eu ficaria grato se você mandasse seu

cocheiro para casa e me desse o prazer de sua presença por

mais uns 15 minutos. Tenho um assunto de certa importân-

ci:; a falar com você. . . Posso acompanhá-lo ao Eremitage, mas

o .ir da noite me faz mal. . .

Klaus Heinrich respondeu, calcanhares umdos:

- Nada disso, Albrecht, nem pense nisso! Se quiser, vou

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com você ao Castelo. Naturalmente, estou à sua disposição.

Foi a introdução de uma conversa singular entre os jovens

príncipes, cujo resultado seria publicado poucos dias depois no

Drário O f icial e recebido com aplausos gerais.

O Príncipe acompanhou o Grão-Duque ao palácio pelo

Pertão Albrecht, por escadarias de pedra de corrimão largo,

corredores onde ardiam chamas de gás e vestíbulos silenciosos,

p;issando por lacaios, até o "gahinete" de Albrecht, onde o

vclho Prahl acendera os dois lampiões de bronze sobre a la-

reira. Albrecht assumira o quarto de trabalho do pai - sem-

145

pre fora a sala de trabalho do governante, e ficava no primeiro

andar, entre a sala do ajudante e a sala de refeições usada dia-

riamente, dando para a Praça Albrecht, que os príncipes sempre

tinham diante da vista, sentados na escrivaninha. Era um apo-

sento extraordinariamente pouco aconchegante e paradoxal, uma

saleta com pinturas rachadas no teto, paredes forradas de seda

vermelha com sarrafos dourados, e três janelas até o chão, pelas

quais entrava um vento encanado, e diante das quais agora se

fechavam cortinas cor de vinho com franjas. Havia uma lareira

falsa, estilo império francês, diante dela um semícírculo de pe-

quenas poltronas de veludo, modernas, sem braços, e um fogão

de azulejos brancos com enfeites incrivelmente feios, muite

aquecido. Dois grandes sofás ficavam nas paredes laterais, um

diante do outro, e na frente de um deles se colocara uma mesa

quadrada, com toalha de veludo vermelho. Entre as janelas,

erguiam-se dois espelhos até o teto, estreitos, emoldurados em

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ouro, com consolos de mármore branco. Num deles havia um

grupo em mármore, muito sensual; no esquerdo, uma jarra com

água e frascos de remédios. A escrivaninha, peça antiga de pa-

lissandra com tampa de correr e enfeites de latão, estava soli-

tária sobre o tapete vermelho. De um canto, numa mesinha de

colunas, uma estátua antiga olhava a sala com seus olhos mortos.

- O que tenho a lhe sugerir - disse Albrecht, parado

#

junto à escrivaninha, remexendo inconscíentemente nas mãos

um abridor de cartas, objeto tolo, com formato de espada de

cavaleiro - relaciona-se, de certa forma, com nossa cónvers. �

desta tarde. . . Quero lhe adiantar que já comentei o assunto

com o Sr. Knobelsdorff, neste verão, em Hollerbrunn, Ele está

de acordo e, se você também estiver, coisa de que não duvido,

poderei realízar logo minha intenção.

- Por favor, Albrecht, fale - disse Klaus Heinrich, pa-

rado junto à mesa do sofá, em postura atenta e militar.

- Meu estado está piorando cada vez mais -- prosse-

guiu o Grão-Duque.

146

- Sinto muito, Albrecht! Então, você não melhorou em

Hollerbrunn?

- Obrigado. Não. Não vou bem, e minha saúde se mos-

tra cada vez menos à altura das exigências que me são feitas.

Quando digo "exigências", falo em primeiro lugar dos deveres

de natureza solene e representativa ligados à minha posição -

e esse é o aspecto central que se liga à conversa que tivemos

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há pouco na casa de Ditlinde. O cumprimento desses deveres

pode alegrar quando existe um contato com o povo, um paren-

tesco, uma sintonia de corações. Para mim, é um tormento,

e a falsidade do meu papel me cansa de tal modo que preciso

pensar em tomar medidas contra isso. Nisso concordo, na ques-

tão física, com meus médicos, que apóiam totalmente minha

intenção. . . Então, escute. Não sou casado, e posso lhe asse-

gurar que não pretendo casar-me jamais, não terei filhos. Você

é o herdeiro do trono por direito de nascença, e é ainda mais

na consciência do povo, que o ama. . .

- Albrecht, você sempre fala nisso, que o povo gosta

de mim. . . Não acredito. Talvez de longe. . . Assim é conosco,

sempre somos amados apenas de longe.

- Você é modesto demais. Escute. Até aqui, já teve

algumas vezes a bondade de me aliviar de alguns deveres de

representação. Queria que os assumisse a todos, inteiramente,

e para sempre.

- Albrecht, está pensando em abdicar? .- perguntou

Klaus Heinrich, assustado. . .

- Não devo pensar nisso. Acredite que o faria com pra-

zer. Mas eles o negariam. Não penso nem mesmo num regente,

apenas num representante. . . talvez você se recorde dessa di-

ferença, das aulas de Direito Público. Uma representação dura-

doura e oficial em todas as funções representativas, fundamen-

tada na necessidade de se poupar minha saúde. Que é que

você acha?

- Estou às suas ordens, Albrecht. Mas ainda não en-

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tendi direito. Até que ponto iria essa representação?

147

- O mais longe possível. Eu queria que ela se esten-

desse a todas as ocasiões em que me exigirem uma aparição

pública. Knobelsdorff pede que a abertura e o encerramento

da Assembléia só lhe sejam transferidos se eu estiver de cama.

Mas, de resto, eu lhe passaria a tarefa de me representar em

todas as ocasiões festivas, viagens, visitas a cidades, inaugura-

ções de solenidades ou festividades públicas, abertura do Baile

Municipal . . .

- Isso também?

- Por que não? Temos, além disso, as audiências pú-

blicas semanais. . . costume sensato, sem dúvida, mas que está

me matando. Você daria as audiências em meu lugar. Não vou

citar mais nada. Aceita minha proposta?

- Estou às suas ordens.

- Então, escute até o fim. Em todos os casos em que

estiver me representando, eu lhe concederei meus ajudantes.

Também, certamente, será preciso que se apresse sua promo-

ção militar. Você é Primeiro-Tenente? Será promovido a Capi-

tão . . . ou logo a Major, à disposição de seu Regimento . . . Tra-

tarei disso. Mas em terceiro lugar, desejo dar ao nosso acordo

o destaque necessário, marcar convenientemente sua posição ao

meu lado, concedendo-lhe o título de "Alteza Real". Havia

#

formalidades a cumprir para isso. . . Knobelsdorff já as execu-

tou. Apresentarei minhas decisões na forma de doís textos,

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um para você, outro para meus ministros de Estado. Knobels-

dorff, aliás, já os escreveu. . . Você aceita?

- Albrecht, que posso dizer? Você é o filho mais velho

de papai, e sempre o respeitei por saber que era o mais nobre

e superíor, eu sou apenas um plebeu comparado com você. Mas

se me julga digno de estar a seu lado, usar seu título e repre-

sentá-lo diante do povo, embora eu nem me julgue müito apre-

sentável e tenha, ainda por cirna, esse problema com a mão�

esquerda, que preciso esconder o tempo todo, agradeço e fico

à sua disposição.

148

en-

ção

nto

na .

em

zra-

aile

- Então, por favor, agora me deixe sozinho. Preciso des-

cansar.

Andaram um em direção ao outro, um vindo da escriva-

ninha, o outro, da mesa dos livros, caminhando sobre o tapete,

até o centro da sala. O Grão-Duque deu a mão ao irmão, aquela

mão magra e fria que estendia junto do peito, sem desprender

o cotovelo do corpo. Klaus Heinrich juntou os saltos das bo-

tinas e se curvou ao pegar a mão; Albrecht inclinou, em des-

pedida, a cabeça estreita com a barbicha loura, sugando de

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leve o lábio superior com o de baixo. Klaus Heinrich voltou

para o Castelo Eremitage.

Tanto o Diário O f icial como o Mensageiro publicaram,

alguns dias depois, os dois manuscritos em que estavam con-

tidas as nobres decisões: o que tinha o tratamento "Meu caro

Ministro de Estado Barão von Knobelsdorff!" e outro com

"Nobre Príncipe, meu caríssimo irmão! ", concluindo com "O

afetuoso irmão de Vossa Alteza Real, Albrecht".

149

A NOBRE VOCAÇÃO

Aqui descrevemos a vida e a vocação de Klaus Heinrich em

suas singularidades.

Ele desceu da carruagem e, manto jogado nos ombros,

seguiu por uma ruela curta, numa calçada coberta por um

trilho vermelho, entre o povo que o aclamava. Passou por

uma porta ladeada de loureiros, sobre a qual se armara um

baldaquim, subíu uma escada ocupada por criados aos pares,

sustentando lampiões... Ia a um jantar festivo, coberto de

condecorações até os quadris, as ombreiras franjadas de major

nos ombros estreitos, seguido por seu séquito, no corredor

gótico de uma Câmara Municipal. Dois criados que corriam à

sua frente abriram, apressados, uma vidraça antiga, já precária

nos caixilhos de chumbo. Pois lá embaixo, na pequena ,praça,

comprimia-se o povo, à luz fumegante das tochas. Chamavam

e cantavam, e ele parou na janela aberta, curvando-se, expondo-

se por um momento ao entusiasmo deles, e agradeceu, sau-

dando. . .

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Sua vida era despida de cotidiano e de veracidade; com-

punha-se de vários momentos tensos. Aonde quer que che-

gasse, era sempre dia de festa e de comemoração, o povo glo-

rificava-se a si mesmo nessa festa, a vida cinzenta se ilumi-

nava, revestindo-se de poesia. O faminto tornava-se um homem

normal, a espelunca, uma choupana pacífica, imundas crianças

151

de rua eram educados menininhos e menininhas em roupa dé

domingo, cabelo alisado com água, um poema nos lábios; e o

cidadão embotado, com casaco e cartola, tomava consciência

de si mesmo, comovido. Mas não só ele, Klaus Heinrich, via

o mundo a essa luz: ele próprio, o mundo, se via assim, en-

quanto Klaus Heinrich estivesse presente. Uma síngular falsi-

dade e ilusão reinava nos locais onde ele exercia sua vocação,

#

uma decoração simétrica e sem substância, um disfarce falso e

eufórico da realidade, com papelão e madeira dourada, guirlan-

das, lampiões, drapeados e bandeiras, surgia magicamente para

uma bela hora. Ele próprio era o centro dessa exposição, sobre

um tapete que cobria a terra nua, entre dois mastros pintados

com duas cores, ao redor dos quais se enroscavam guirlandas.

Parava ali de calcanhares umdos, com o aroma de tinta e agu-

lhas de pinheiro, e, sorrindo, metia a mão esquerda no quadril.

Deitava a pedra angular de uma nova Câmara Municipal.

Os cidadãos tinham conseguido, por manobra financeira, o di-

nheiro necessário, e um arquiteto formado na capital recebera

a incumbência de planejar a construção. Mas Klaus Heinrich

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colocava a pedra fundamental. Sob o júbilo da população, sua

carruagem parou diante da pomposa barraca erguida no local

da construção, ele desceu, com movimentos leves e controla-

dos, até o chão coberto de fina areia amarela, e caminhou so-

zinho até as autoridades de fraque e faixa branca que o aguar-

davam na entrada. Foi-lhe apresentado o arquiteto e, durante

cinco minutos, diante do público, sob os sorrisos hirtos dos

presentes teve um diálogo altamente generalizado sobre as ex-

celências dos vários estilos de construção, depois do que exe-

cutou um pequeno giro, planejado durante a conversa, e foi

levado sobre trilhos e degraus de madeira até sua poltrona,

na beira da tribuna central. Lá ficou sentado, enfeitado de cor-

rente e estrela, um pé para a frente, as mãos enluvadas de

branco cruzadas no punho da espada, capacete no chão a seu

lado, visivel de todos os ângulos àqueles que assistiam à sole-

nidade, e, numa postura digna, escutou o discurso do Prefeito.

152

d Depois, como lhe pedissem, ergueu-se, desceu sem visível cau-�

. o . tela, sem olhar os pés, os degraus até a cavidade onde ficava

cia a pedra angular e, com um martelinho, deu três lentas batidas

via sobre o bloco de arenito, proferindo, com sua voz um tanto pe-

en- netrante, um pequeno discurso que o Sr. von Knobelsdorff es-

lsi- crevera. Colegiais cantaram um coro agudo. E Klaus Heinrich

ão, partiu.�

Na festa do Dia do Soldado, ele inspecionou o desfile dos

an- veteranos. Um ancião gritou com voz que parecia rouca pela

ara fumaça da pólvora: "Sentido! Descobrir! Olhar à direita!" E

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bre postatam-se, medalhas e cruzes nos casacos, cartolas puídas jun-

jos to às coxas, olhando com seus olhos injetados de sabujo para

las. aquele que passava examinando-os amavelmente, fazendo a este

gu- ou àquele uma pergunta, onde servira, onde estivera sob fogo

ril. inimigo. . . Participou também de festas esportivas, concedeu

al. ' sua presença ao torneio das ligas distritais e pediu que lhe apre-�

sentassem os vencedores para "conversar com eles". Os rapa-

di-

era zes corajosos e de corpos bem-feitos paravam di.ante dele inibi-

uch dos, embora tivessem executado incríveis façanhas, e Klaus Hein-

sua rich disse rapidamente algumas expressões técnicas que recor-

cal , dava dos tempos do Sr. Zotte, pronunciando-as com grande�

naturalidade enquanto ocultava a mão esquerda.

.Foi à Festa dos Pescadores, assistiu à corrida de cavalos

de sua tribuna de honra forrada de vermelho, em Grimmburg,

e participou da distribuição dos prêmíos. Também dirigia a

Comissão de Hon.ra da Festa da Liga dos Atiradores; visitou

a competição de tiro ao alvo patrocinada pelo Grão-Duque e,

como saiu no Mensageiro, "galhardamente bebeu à saúde", se-

' gurando a taça de prata nos lábios e depois erguendo-a, calca-

' nhares umdos, para os atiradores. Disparou váríos tíros no alvo

de honra, embora as notícias não dissessem quantos acertara,

e mais tarde manteve com três homens diferentes o mesmo

diálogo sóbre as excelências do tiro ao alvo, que o Mensageirn

noticiou como, "pequena conversa informal". Por fim, despe-

' diu-se com um cordial "Boa sorte!" falado em dialeto, o que

153

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despertou indescritível júbilo. O General-Ajudante von Hühne-

mann, depois de se informar, lhe sussurrara aquela saudação

dos atiradores no último momento; pois teria sido perturba-

dor, prejudicando a bela ilusão dos desportistas, se Klaus Hein-

#

rich trocasse a saudação dos atiradores pela dos alpinistas.

Allás, para exercer sua vocação ele precisava de certos

conhecimentos objetivos, que conseguia em cada caso, para

aplicá-los no momento certo e da forma adequada. Ligavam-se

principalmente a expressôes usadas nos diversos campos da ati-

vidade humana, bem como datas históricas, e, antes de uma

viagem de representação, Klaus Heinrich fazía os estudos ne-

cessários em casa, no Castelo Eremitage, com a ajuda de textos e

explicações orais. Quando, em nome do Grão-Duque, "meu ca-

ríssimo irmão", ele inaugurou a estátua de Johann Albrecht

em Knüppelsdorf, na própria praça, logo após a apresentação

do coral Geradsinnliederkranz, proferiu um discurso em que se

incluía tudo o que anotara sobre Knüppelsdorf, o qual causou

a todos bela impressão, como se ele se tivesse dedicado a vida

toda ao estudo da história local. Primeiro, Knüppelsdorf era

uma cidade, e Klaus Heinrich mencionou isso três vezes, para

orgulho dos nativos. Também disse que a cidade de Knüp-

pelsdorf, como testemunhava seu passado histórico, há muitos

séculos era fielmente ligada à casa de Grimmburg. Pois era sa-

bido, disse ele, que já no século XIV o Landgrave Heinrich

XV, de Rütenstein, aparecera especialmente como benfeitor de

Knüppelsdorf. O Rütenstein residira no castelo construído sobre

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a pedra de mesmo nome, e as "desafiadoras torres do castelo

e seus sólidos muros que protegiam Knüppelsdorf olhavam a

paisagem ao longe". Depois, ele recordou como, por herança

e casamento, Knüppelsdorf por fim chegara ao ramo da famí-

lia ao qual ele próprio e seu irmão pertencíam. Duras tempe-�

tades tinham varrido Knüppelsdorf no correr dos tempos, ano �

de guerra, incêndios e pestilências, mas ela sempre se reerguera

e, em todas as situações, fora fiel aos príncipes. Essa mesma

inclinação mostrava a Knüppelsdorf atual, erigindo um monu-

154

riento à memória do pai dele, Klaus Heinrich, e com muita

:legria ele contaria ao senhor seu irmão sobre a recepção bri-�

'.iante e cordial que ali tivera como representante oficial...�

( ;aiu o pano que envolvia a estátua, o coral Geradsinnlieder-

.. ranz brilhou mais uma vez, e Klaus Heinrich, ali parado, sor-�

:dente, com sensação de esvaziamento, debaixo da sua tenda�

z eatral sentía-se contente por estar na segurança de ninguém

r licença de lhe fazer perguntas. Pois não teria sabido dizer��

-;iais uma. só palavrinha sobre Knüppelsdorff.�

Como era cansativa sua vida, como era difícil! Por vezes,

I arecia-lhe que constantemente, e com grande dispêndio de for-

ï a, precisava manter ereto algo que na verdade não ficara de

;é, ou só sob condições muito favoráveis. Por vezes, sua vo-�

ação lhe parecia triste e pobre, embora a amasse e fizesse

t om prazer todas essas visitas de representação.

Ele viajou pelo campo, para uma exposição agrícola, e

oi com sua sege de molejo deficiente do Castelo Eremitage à

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astação, onde estavam, para as despedidas, o Presidente da

,,ssembléia, o delegado de Polícia e o díretor da ferrovia, junto

, lo carro-salão. Ele víajou uma hora e meía, mantendo, não

· em esforço, uma conversação com o Ajudante do Grão-Duque

, iue lhe fora destinado e com o Conselheiro Mínisterial Heckep-

ang, homem severo, muito respeitoso, que também o acom-

panhava. Depois, entrou na estação da cidadezinha que rea-

izava uma festa agrícola. O Prefeito, corrente sobre o fraque,

sperava por ele à frente de seis ou sete outras autoridades.�

estação estava enfeitada com muitos pinheirinhos e guirlandas�

le folhagens. Atrás, estavam os bustos em gesso de Albrecht

: Klaus Heinrich. O público atrás do cordão de isolamento

.

Tritou três vezes "viva". Os sinos tocaram.

O Prefeito deu boas-vindas a Klaus Heinrich, com um

iscurso. Disse que agradecia, e brandia a cartola com a mão�

,ue a segurava; era a gratidão da cidade por tudo que o irmão�

,je Klaus Heinrich e ele próprio lhe tinham feito de bom. Apre-

,entou os sinceros votos de um governo abençoado. E também

155

repetiu o pedido de que o Príncipe coroasse a obra que se

#

desenvolvera tão bem sob seu patrocínio, inaugurando a expo-

sição agrícola.

Esse préfeito tinha título de Conselheiro em Economia, o

que tinham informado a Klaus Heinrich. Por isso, em sua res-

posta, Klaus Heinrich lhe deu esse título por três vezes. Disse

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alegrar-se por ouvir que a obra da exposição agrícola se desen-

volvera tão bem sob seu patrocínio. (Na verdade, esquecera-se

de que era patrocinador dessa exposição.) Viera hoje para fazer

mais uma coisa por essa grande obra, inaugurando a exposi-

ção. Depois, perguntou sobre quatro coisas: a situação fínan-

ceira da cidade, o crescimento da população nos últimos anos,

o mercado de trabalho (embora não soubesse bem o que era

isso) e o preço dos víveres. Se ouvísse dizer que os víveres

estavam caros, levaria "a sério" essa informação, e naturalmente

seria tudo. Ninguém esperava mais dele e, de modo geral, era

consolador que tivesse levado tão a sérío o anúncío de que os

preços estavam muito altos.

Depois, o Prefeito lhe apresentou as autoridades da cí-

dade: o juiz, um nobre latifundiário das redondezas, o pastor,

os dois médicos, um despachante, e a cada um Klaus Heinrich

dirigiu uma pergunta; enquanto lhe respondiam refletia sobre

o que indagaria ao seguinte. Além disso, estavam presentes o

veterinário e o inspetor de anímais. Por fim, entraram nas car-

ruagens e, entre vivas dos moradores, passaram pela ala de

escolares, bombeíros e lígas esportívas, e atravessaram a cidade

enfeitada até o prado, onde se realizava a festa. Antes, porém,

foram interrompidos por duas virgens vestidas de branco, com

coroas na cabeça. Uma delas, filha do Prefeito, entregou ao

Príncipe um ramo de flores brancas e, para eterna lembrança

daquele momento, recebeu pessoalmente uma daquelas precio-

sas lembranças que Klaus Heinrich sempre levava em suas

viagens, um broche que, nem ela sabía por quê, estava exposto

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sobre veludo, e o Mensageiro o descreveu como jóia de ouro

com pedras preciosas.

156

Tendas, pavilhões e barracas estavam armados na campina.

En longas filas de varas, umdas entre si por guirlandas, ondu-�

lav.rm bandeirolas coloridas. Sobre uma tribuna de madeira en-

fei r ada com panos, entre drapeados, festões e mastros de duas

cor es, Klaus Heinrich leu a breve saudação inaugural. E co-

meçou a visitação.

. Em toros baíxos, estava preso o gado de chífres, raça

pma, exemplares magníficos com corpos lisos, redondos, ma-�

lhados, cartazes com números nas testas largas. Os cavalos pa-

te.mam e bufavam, pesados cavalos de arado com focinhos cur-

vo; e pêlos acíma dos cascos, bem como refinados e inquietos

anmais de montaria. Havia suínos pelados de perninhas curtas,�

tanto porcos rústicos como porcos de raças nobres em grande�

gr:antidade. Ventres pendentes, fuçavam, grunhindo, com os

fo:vinhos rosados no chão, enquanto o balido das ovelhas la-

. m das enchia o ar com um coro confuso de vozes de baixo�

ou infantís. Havía uma ruídosa exposição de aves, toda sorte

de galinhas, da grande Bramaputra à galinha-anã Goldlack, com

pn tos e toda espécie de pombos, ração, ovos frescos e conser-

vados artificialmente. Havia a exposição de produtos do cam-

, p., cereais, raízes e trevos, batatas, ervilhas e linho. Havia�

vurduras frescas e em conserva, frutas cruas e em conserva,

framboesas, geléías, sucos. Mas, por fím, chegava a exposição

d máquinas e ferramentas agrícolas, apresentadas por várias��

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fi vmas técnicas, com tudo que existia para cultivar o campo,

d.sde arados manuais até grandes motores pretos com cha-�

' Il' inés, parecendo um estábulo de elefantes. Havia desde os

n-ais símples objetos até os que constavam de uma confusão�

d.: rodas, correntes, êmbolos, cilindros, braços e dentes -

. u m mundo cheio de utilidade, que chegava a envergonhar.

Klaus Heinrich olhava tudo; andou pela fileira de ani-�

maís, gaiolas, sacos, frascos, vidros e utensílios, com o punho

cva espada sobre o braço. O cavalheiro à sua direita apontava

cada coisa cqm sua mão numa luva de glacê branco, permi-

' r indo-se uma ou outra explicação, e Klaus Heinrich agia segundo

#

157

sua vocação. Expressava grande admiração por tudo que via,

parava de tempos em tempos, ínterpelando os expositores dos

animais, informando-se de maneira afável sobre suas condi-

ções, e fazia perguntas que os camponeses respondiam coçando

atrás da orelha. E, enquanto andava, ele agradecia para os doís

lados as homenagens do povo, que ainda ocupava seu caminho.

Na saída do local da festa, lá onde os carros esperavam,

o povo se reunira para olhar sua partida. Deixaram caminho

aberto, uma ruela reta até a porta de seu landau, e ele camí-

nhou em passo vivo, mão no capacete, cumprimentando contí-

nuamente, só e formalmente apartado de todas aquelas pes-

soas que saudavam com júbílo sua imagem arquetípica, sua

raça legítima, festejando a ele, enquanto ele representava fes-

tivamente a vida, o trabalho e a aplicação deles, sem partici-

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par de coisa alguma.

Com passo leve e lívre, subiu na carruagem, sentou-se ha-

bilmente de modo a assumír imediatamente uma postura ele-

gante e impecável, e foi sempre saudando, até a Sede da So-

ciedade, onde fizeram um lanche. Depois da segunda rodada, o

chefe do distrito conseguiu fazer um brinde ao Grão-Duque e

ao Príncipe, e Klaus Heinrich ergueu-se para beber à saúde do

distrito e da cidade. Depois da refeição, contudo, recolheu-se

aos aposentos que o Prefeito lhe arranjara em sua morada ofi-

cial, e deitou-se na cama por uma hora; pois o exercício da sua

vocação o esgotava estranhamente, e à tarde ele não precisaria

visitar apenas a igreja da cidade, a escola, várías indústrias, es-

pecíalmente a queijaria dos Irmãos Behnke, falando sobre tudo

isso com muita satisfação, mas ainda prolongar um pouco a

viagem e visitar um local devastado, uma aldeia incendiada,

para manifestar às autorídades a compaixão de seu irmão e a

sua própria, e aliviar os sofredores com sua nobre presença. . .

Mas, voltando para casa no Castelo Eremítage, em seus

aposentos sobriamente mobiliados no estilo império, ele lia as

notícias de jornal sobre suas viagens. Então aparecia o Conse-

lheiro Schu~~ann, da Secretaria de Imprensa, submetida ao���

158

M(inistério do Interior, trazendo recortes dos jomais , capricho-

s L s.imente colados em folhas brancas datadas e com o nome do

jornal. E Klaus Heinrich lia sobre os efeitos de sua aparição

° pessoal, sobre a graça e nobreza de sua pessoa, e via que cum-

írira bem sua tarefa, conquistando corações de jovens e�

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aelhos . . . que erguera a alma do povo acima do cotidiano, arre-

latando-a para zonas de alegria e amor.�

° Depois dava audiências públicas no Castelo Velho, como

1- f ora combinado.

O costume das audiências públicas fora criado por um an-

rpassado bem-intencionado de Albrecht II, e era firmemente�

umprido. Uma vez por semana, Albrecht, e agora Klaus Hein-�

rích em seu lugar, atendía a qualquer pessoa. Se o pedínte fosse

aobre ou não, se seu problema fosse transcendente ou constasse

rpenas de uma preocupação ou queixa pessoal bastava anunciar

:

:o Sr. von Bühl ou ao Ajudante em serviço, e o homem tinha

portunídade de apresentar seu problema à instância superior!� �

3ela instituição humanitária! Pois assim o pedinte não precisava

wmprir o caminho dos pedidos escritos, com a triste perspec-

iva de ver seu papel sumir para sempre nas chancelarias, mas

ínha a certeza felíz de que sua solicitação chegaria díretamente

1 última instância. Era preciso admitir que essa instância supre-

na - de momento, Klaus Heinrich - naturalmente não estava

m condições de analisar o problema com seriedade e decidir�

obre ele, mas o passaría adíante, às chancelarias, onde ele�

acabaria "sumindo". Mas, mesmo assim, adiantava muito, em-

bora não no sentido de uma utilidade grosseira. O cidadão, o

pedinte, chegava ao Sr. von Bühl com sua solicitação de audíên-

cía, e determínavam-lhe um día, uma hora. Ele vía o momento

aproximar-se, dominado de alegria e angústia, em espírito já

trabalhava nas frases em que apresentaria seu problema, man-

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dava passar o casaco de sair e o chapéu de seda, arrumava uma

#

boa camísa e preparava-se de todas as maneíras. Mas já esses

preparativos solenes desviavam os pensamentos do homem da-

' quele assunto desejado, tão objetivo, tornando a audiência em

I59

si o fato principal, o objeto daquela nervosa expectativa. Che-

gada a hora, o cidadão tomava uma carruagem, coisa que nunca

fazia, para não sujar as botinas lustradas. Passava pelos leões

do Portão Albrecht e a guarda, bem como o grande porteiro,

lhe dava passagem. Desembarcava no pátio do Castelo, na en-

trada de colunas diante do portal corroído, e um lacaio de fra-

que castanho e polainas cor de areia o conduzia imediatamente

para a esquerda, até uma ante-sala no térreo. No canto desse

aposento, uma série de outros suplicantes, mal sussurrando, em

estado devoto e tenso, aguardavam ser recebidos. O Ajudante,

com a lista dos anunciados na mão, aparecia de vez em quando

e levava de lado o primeiro da fila, falando com ele, em voz

abafada, sobre as regras de comportamento. Mas na sala ao

lado, chamada Sala das Audiências, estava Klaus Heinrich,

em traje militar de colarinho prateado e várias estrelas, junto

a uma mesinha redonda com três pernas douradas, recebendo

as pessoas. O Major von Platow informava-o superficialmente

sobre cada pedinte, mandava que um homem entrasse e regres-

sava, nos intervalos, a fim de preparar rapidamente o Príncipe

para o seguinte. E o cidadãò entrava; postava-se diante de Klaus

Heinrich, o sangue' subindo à cabeça, transpirando um poucu.

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Tinham-no prevenido com firmeza de que não se aproximasse

demais de Sua Alteza, mas parasse a alguma distância, e não

falasse antes de ser interpelado, e mesmo então não fosse logo

despejando tudo, mas respondesse laconicamente, para deixar

ao Príncipe assunto de novas perguntas; e que finalmente de-

veria afastar-se recuando, sem virar o perfil para o Príncipe. E

toda a atenção do cidadão concentrava-se nisso, em não in-

fringir essas regras, rpas cólaborar para que o diálogo transcor-

resse belo, liso e harmonioso. Klaus Heinrich o interrogava,

como estava habituado a interrogar veteranos, atiradores, gi-

nastas, camponeses, vítimas de incêndios; sorrindo, a mão es-

querda apoiada no quadril um pouco atrás; e involuntariamen-

te também o cidadão sorria. . . e de alguma forma sentia que,

com esse sorriso, se elevava acima de tudo o que habitualmente

160

he- o atrapalhava. Esse homem comum, cujos sentidos normalmen-

aca t se prendiam ao solo, que fora das coisas concretas e úteis� �

3es ;mais pensava em nada, nem mesmo na cortesia diária, e fora� �

ro, a,é ali por uma causa - este sentia na sua alma que havia�

en- c..usas mais altas do que seu problema e, assim elevado, limpo,

vra- cam olhar cego e ainda aquele sorriso no rosto vermelho, saía.

nte I

Assim Klaus Heinrich dava audiências públicas e assim

sse

c rercitava sua nobre vocação. Vivia no Eremitage, em seu pe-

em ueno trato de aposentos modelo império, mobiliados de modo� �

tte

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' u.ïo severo e precário, com fria renúncia a todo conforto e acon-

tdo ; c ego. Uma seda desbotada cobria a parte superior das paredes�

JOZ l- rancas, dos tetos sem enfeites pendiam coroas de cristal, sofás�

ao

retos, em geral sem mesa, e étagères de pernas finas, com reló-

ch, ios de colunas; junto das paredes, pares de cadeiras brancas,�

nto com encostos ovais e fino estofamento de seda, ladeavam as�

tdo g,ortas duplas laqueadas de branco, e nos cantos havia guéridons

nte t;tmbém laqueados de branco com candelabros que pareciam va-

es- sos. Assim era tudo na moradia de Klaus Heinrich, e ele con-�

ipe cordava com esse ambiente.

Vivia sossegado, sem entusiasmo nem fervor quanto a

clisputas públicas. Como representante do irmão, abria a As-

sembléia, mas não participava dos acontecimentos que al.i se

lesenrolavam, e evitava qualquer pronunciamento sobre a divi-�

>.ão dos partidos - indeciso e sem convicção, como alguém

t ujo interesse é mais alto do que todos os partidos. Todos

econheciam que sua posição lhe exigia reserva, mas muitos sen-

#

, iam que a faIta de participação marcava a personalidade dele,

ornando-a alheia e hirta. Muitos dos que entravam em con-

ato com ele também então o consideravam "frio"; e, embora�

` Dr. Überbein negasse veementemente essa frieza, imaginava-

e se aquele homem parcial e pouco simpático eria capaz de�

azer algum julgamento nesse caso. Naturalmente, acontecia que�

` olhar de Klaus Heinrich cruzasse com olhares que não o re-�

v onheciam, insolentes, zombeteiros, olhares espantados e cheios

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`(e rancor, qu.e desprezavam toda a sua realização e todos os

161

seus esforços, e não os entendiam. Mas, mesmo com pessoaas de

boa vontade e devotas, que estavam dispostas a respeitar e hon-

rar a vida dele, Klaus Heinrich percebia por vezes, depois de

pouco tempo, certo cansaço, sim, uma irritabilidade, como se

perto dele não consTrissem respirar por muito tempo; c isso�� �

o entristecia sem que o conseguisse superar.�

Ele nada tinba a fazer na vida diária; conse;uir dar uma�

saudação, uma boa palavra, um esto sedutor mas digno, er,r�

importante, decisivo. Uma vez, regressava de um passeio

cavalo, com gorro e manto, cavalgando lentamente em seu

Florian castanho pela alameda de bétulas que levava ao parque

e ao Castelo Eremitage, à beira de campos não-arados, e diante

dele andava um rapaz de roupas puídas e gorro, com uma

trança ridícula na nuca, mangas e calças curtas, pés extraor-

dinariamente grandes e virados para dentro. Podia ser um aluno

da escola pública, pois debaixo do braço trazia a lousa, na qual

prendera um desenho grande, uma confusão de traços verme-

lhos e pretos, um projeto ou oisa assim. Klaus Heinrich man-�

teve por longo tempo seu cavalo bem atrás desse rapazote e

contemplou o desenho branco, vermelho e preto sobre a lousa.

Por vezes, pensava em como seria bom ter um sobrenome

comum, chamar-se Dr. Fischer ou ter uma profissão séria.

El fazia representação nas festividades da Corte, o Baile�

C;rande e o Iaile Pequeno, jantar, concertos, o Crande Desfile.� �

No outono, ia com os primos ruivos e os cavalheiros do séquitc

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às caçadas da Corte, por ser costume, embora o braço esquerdo

lhe dificultasse atirar. Muitas vezes o viam à noite, no teatro

,

da C;orte, em seu camarote de frente, forrado de vermelho, entre

duas esculturas femininas de mãos cruzadas e severos rosros

vazios. Pois o teatro o distraía, e ele gostava de ver o atores,�

observar seu comportamento, o modo como entravam e saíarn

do palco desempenhando scus papéis. Em ;eral, julava-os ruins,� �

com grosseiros recursos para agradar, maltreinados para fin-

girem com refinamento que tudo aquilo era natural. Mas pre-

feria os espetáculos inferiores e populares aos nobres e solenes.

162

No Síngspieltheater da Residência, trabalhava uma cantora,

de '

I Mitzi Meyer, que os jomais e o público chamavam de "nossa

lorl- l1

Meyer", por ser tão querida por grandes e pequenos. Não era

de

bonita, mal se diria que fosse bonitinha, cantava com voz esga-

se�

niçada e, para um juízo mais severo, não tínha talento. Mas

15S0

bastava que entrasse no palco para desencadear tempestades de

aplausos e entusiasmo. Pois essa criatura loura e atarracada,

'm` y' de olhos azuis, zigomas largos e altos demais, uma natureza�

er`l saudável, divertida e às vezes sentimentalona, era a carne da

O a carne daquele povo, e sangue do seu sangue. Enfeitada, pintada

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seu e iluminada por todos os lados, ela se plantava nas tábuas do

palco diante da multidão, e na verdade era uma transfiguração

ante do povo - sim, nela o povo aplaudia a si mesmo, e nisso

uma residia o poder de Mitzi Meyer sobre aqueles corações. Klaus

aor- Heinrich gostava de visitar o Singspieltheater com o Sr. von�

Braunbart-Schellendorf quando Mitzi cantava, e participava ani-

qual madamente dos aplausos.�

Certo dia, teve um encontro que lhe deu o que pensar,

#

embora, de outro lado, o decepeionasse. Foi o encontro com o

Sr. Martini, Axel Martini, o mesmo que publicara dois livros de

poesia muito elogiados por conhecedores: Evoé! e Da vida

santa. O encontro aconteceu da seguinte maneira:

Na Residência, vivia um senhor idoso e rico, Conselheiro

do Governo, que, desde que deixara o serviço público, se

recolhera à sua aposentadoria, dedicando sua vida ao fomento

das belas-artes, especialmente da poesia. Era o fundador da

instituição conhecida como Torneio de Maio, concurso de poe-

sias que se repetia anualmente na primavera, e para o qual o

Conselheiro convidava poetas e poetisas do país inteiro, através

de circulares e anúncios. Concediam-se prêmios à mais delicada

canção de amor, à mais devota poesia religiosa, ao mais fogoso

cântico patriótico, às mais exatas realízações literárias em lou-

vor da música, da floresta, da primavera, da alegria de viver

- os prêmios eram, além de dinheiro, lembranças valiosas e

significativas, como plumas ou broches de ouro, em forma de

163

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flor ou lira, e coisas assim. Também a Prefeitura da Residência

concedia um brinde, e o Grão-Duque dava um cálice de prata

como prêmio ao melhor de todos os poemas enviados. O pró-

prio criador do Torneio de Maio, que dava a primeira olhada

na volumosa matéria, assumia o papel de júri, juntamente com

dois professores umversitários e os redatores literários do

Mensageiro e do Jornal do Povo. Os textos premiados e os que

recebiam menções honrosas eram anualmente publicados como

livro do ano, à custa do Conselheiro.

Naquele ano, Axel Martini participara do Torneio de Maio

e se saíra vencedor. O poema que apresentara, um entusiástico

louvor da alegria de viver, ou melhor, uma manifestação tem-

pestuosa dessa alegria, um hino arrebatador à beleza e ao medo

de viver, tinha o estilo de seus dois livros, e causara dissensão

entre os juízes. O próprio Conselheiro e o Professor de Filolo-

gia tinham desejado livrar-se dele apenas com menção honrosa;

pois acharam-no desmedido na expressão, de uma paixão crua,

e em algumas passagens diretamente escandaloso. Mas o Pro-

fessor de História da Literatura, junto com os redatores, haviam-

nos derrotado, não apenas porque a colaboração de Martini

era o melhor poema sobre a alegria de viver, mas porque era

a melhor de todas, e por fim os dois adversários não puderam

mais furtar-se à impressão daquela espumante e atordoante ca-

choeira de palavras.

Portanto, Axel Martini ganhara 300 marcos, um broche

de ouro em forma de lira e, ainda por cima, o cálice de prata

do Grão-Duque, e seu poema apareceu em primeiro lugar no

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Livro do Ano, emoldurado pela mão de artista do Professor

von I,indemann. Mas aconteceu ainda que, segundo o costume,

o vencedor (ou vencedora) no Torneio de Maio era recebido

em audiência pelo Grão-Duque; e, como Albrecht estivesse ado-

entado, foi seu irmão quem recebeu Martini.

Klaus Heinrich tinha algum medo dele.

164

- Meu Deus, Dr. Überbein = disse num breve encon-

tro com seu professor -, que vou fazer com ele? É com cer-

tc za um homem meio doido e despudorado.

Mas o Dr. Überbein respondeu:

- Nada disso, Klaus Heinrich, não se preocupe! É um

h menzinho bem-comportado. Eu o conheço, freqüento um pou-� �

c os círculos dele. Vai se dar muito bem com ele.� �

Assim, Klaus Heinrich recebeu o poeta da alegria de viver

rn Eremitage, para dar ao fato um caráter bastante privado.�

- Na Sala Amarela, caro Braunbart - disse ele. - É a

mais apresentável em casos como este.

Havia nesse aposento três belas cadeiras que eram a única

mobília valiosa do pequeno castelo, pesadas poltronas império,

m n mogno, com braços em forma de caracol e forro amarelo

cwm bozdado de litas vetde-azuladas. Klaus Heinrich não ape-

n.ts se preparou para essa audiência, mas esperou um pouco

izquieto na sala ao lado, até Axel Martini ter esperado uns�

sis, oito minutos na Sala Amarela. Então, entrou vivamente,��

#

cuase apressado, e caminhou até o poeta, que se curvou pro-�

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f undamente.

- Tenho grande prazer em conhecê-lo - disse Klaus

1 einrich - caro. . . senhor doutqr, não?�

- Não, Alteza Real - respondeu Axel Martini com voz

le asmático -, não sou doutor, não tenho títulos.�

- Ah, perdão. . . achei que. . . Vamos nos sentar, caro

`sr. Martini. Como já disse, é um prazer poder congratulá-lo por

eu grande sucesso. .�

Os cantos da boca do Sr. Martini repuxaram-se para baixo.

entou-se na beira de uma das poltronas de mogno diante da�

nesa despida, ao redor de cuja tampa corria uma listinha de

>uro, e cruzou os pés metidos em botinas de verniz rachado.�

'stava de fraque e usava luvas de glacê amareladas. O colari-�

nho estava puído nas pontas. Tinha olhos um tanto pasmados,

aces magras e bigode louro-escuro, aparado como uma sebe.

eu cabelo era grisalho nas têmporas, embora, segundo o Livro�

16�

do Ano do Torneio de Maio, não tivesse mais de 30 anos, e

por baixo dos olhos ardia um rubor que não indicava boa

saúde. Ele respondeu às felicitações de Klaus Heinrich:

- Vossa Alteza Real é muito bondoso. Não foi uma vi-

tória difícil. Talvez nem tivesse sido muito delicado, de minha

parte, participar desse concurso.

Klaus Heinrich não compreendeu, mas disse:

- Li seu poema várias vezes com prazer. Parece-me ex-

celente, tanto na métrica quanto na rima. E expressa perfeita-

mente o prazer de viver.

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O Sr. Martini fez uma mesura, mesmo sentado.

- Sua habilidade - prosseguiu Klaus Heinrich - deve

dar-lhe muito prazer . . . um belo passatempo . . . Qual a sua pro-

fissão, Sr. Martini?

O Sr. Martini deu demonstrações de não entender, seu

corpo formou um ponto de interrogação.

- Quero dizer, sua profissão. É funcionário público?

- Não, Alteza Real. Não tenho profissão. Ocupo-me só

de poesia. . .

- Nenhuma. . . ah, entendo. Um talento tão excepeional

merece que lhe dedique todas as forças.

- Não, sei, Alteza Real. Se vale a pena, não sei. Devo

confessar que não tive escolha. Sempre me senti totalmente

incapaz para qualquer outra atividade humana. Parece-me que

essa indubitável e total incapacidade para todo o resto é a única

prova e comprovante da vocação para a poesia, sim, que na

poesia, em verdade, não se deve ver uma vocação, apenas a

expressão e o refúgio dessa incapacidade.

O Sr. Martini tinha uma singularidade: ao falar, vinham-

lhe lágrimas aos olhos, como uma pessoa que sai do frio e

entra numa sala quente, e então se deixa inundar de calor.

- Concepção singular - disse Klaus Heinrich.

- Não, Alteza Real. Peço que m perdoe. Não, não é�

singular. É bem aceita. Não digo nenhuma novidade.

166

s, e�

- E desde quando vive só da poesia, Sr. Martini? Es-

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boa

tudou, antes disso?

a vi- - Não regularmente, Alteza Real. Não, a incapacidade que

inha mencionei começou a se mostrar muito cedo em mim. Não

concluí a escola. Deixei-a, sem fazer os exames finais. Fui à

Universidade sob a promessa de fazer esses exames depois, mas

não consegui. E como meu primeiro livro de poesias fosse muito

° ex- comentado, por fim também não fazia mais sentido, se me per-

veita- mite falar assim. . .

- Não, não. . . Mas seus pais concordaram com sua vida?

- Não, Alteza Real. Posso assegurar, para a honra de

deve meus pais, que não concordaram em absoluto. Sou de boa fa-

pro- mília. Meu pai era Procurador do Estado. Morreu, mas era

Procurador. Naturalmente, aprovava tão pouco minha vida que

seu até morrer me negou qualquer ajuda. Vivi de relações cortadas

#

com ele, embora respeitasse muito seus severos pontos de vista.

- Ah, então o senhor passou dificuldades, Sr. Martini,

ie só teve de lutar pela vida. 1'osso imaginar que tenha tido muitas

experiências!

ional , - Não, Alteza, não foi assim, teria sido muíto grave, não

o teria suportado. Minha saúde é delicada. . . não devo dizer

Devo "infelizmente" porque estou convencido de que meu talento se

nente liga inseparavelmente à minha fraqueza física. Fome e vida dura

v que são coisas que meu corpo e meu talento não teriam agüentado,

única e não tiveram de agüentar. Minha mãe, por fraqueza, me aju-

ie na dava sem que meu pai soubesse, e me deu meios de viver,

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nas a modestos, mas suficientes. A ela devo o fato de meu talento

ter podido desenvolver-se em condições bastante brandas.

iham- - Caro Sr. Martini, seu sucesso demonstra que foram as

rio e condições certas. Embora seja difícil dizer o que são boas con-

calor. dições. Vamos presumir que a senhora sua mãe tivesse sido

tão severa quanta seu pai, e o senhor ficasse só no mundo, de-

ão é pendendo inteiramente de si e de sua capacidade. . . Não acha�

que isso teria ajudado um pouco? Que teria tido experiências

que lhe foram negadas?

167

- Ah, Alteza, pessoas como eu têm experiências suficien-

tes mesmo sem terem de passar fome. Hoje em dia, aceita-se

o conceito de que não é da fome de verdade que o talento

precisa, mas da fome da verdade . . . eh, eh, eh.

O Sr. Martini riu um pouco com seu próprio jogo de pa-

lavras. Pôs depressa a mão enluvada diante da boca com aquele

bigode de sebe, e corrigiu o riso, passando a um pigarro. Klaus

Heinrich o encarava em amável expectativa.

- Se Vossa Alteza permite. . . é um conceito bem-divul-

gado o de que a renúncia à realidade é o solo nutritivó de todo

talento em gente da minha espécie, a fonte de todo fervor. Na

·verdade, é o que estimula nosso gênio. O prazer da vida nos�

é estritamente vedado, não nos iludimos quanto a isso. . . nosso

prazer da vida não é apenas a felicidade, mas a preocupação,

a paixão. Em suma, toda ligação mais séria com a vida. Repre-

sentar a vida exige todas as nossas forças, especialmente quando

não são muito abundantes . . . - O Sr. Martini tossiu, e seus

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ombros foram várias vezes repuxados para diante. - A renún-

cia - acrescentou - é nosso pacto com a Musa, nela repousa

nossa força, nossa dignidade, e a vida é nosso jardim proibido,

nossa grande tentação, à qual sucumbimos, por vezes, mas ja-

mais para o nosso bem.

Mais uma vez, os olhos do Sr. Martini se haviam inun-

dado de lágrimas durante aquela fala tão fluente. Procurou

espantá-las, piscando.

- Cada um de nós - disse ainda - conhece esses

erros e descaminhos, essas incursões ansiosas pelos salões de

festas da vida. Mas voltamos para nosso isolamento, humildes

e de coração nauseado.

O Sr. Martini calou-se. Seu olhar, debaixo das sobrance-

lhas umdas, ficou momentaneamente hirto, por um instante per-

dido no vazio, a boca assumiu uma expressão azeda, e as faces,

com aquele rubor doentio, pareceram ainda mais magras. Foi

só por um segundo; depois, ele mudou de postura, e seus olhos

voltaram à realidade.

168

ien- - Mas seu poema - disse Klaus Heinrich com certa

a-se insistência. - Seu louvor ao prazer de viver, Sr. Martini! . . .

·nto Fico realmente agradecido por suas explicações. Mas poderia

me dizer. . . seu poema, eu o li com atenção. Trata, de um

pa- lado, da miséria e dos horrores, da crueldade e da maldade da

uele vida, se me lembro bem, e de outro lado dos prazeres do vinho

laus ` ?

e das belas mulheres, não é

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O Sr. Martini sorriu; depois, esfregou os cantos da boca

vul- com o dedo médio e o polegar para remover o sorriso.

odo

- Tudo isso - disse Klaus Heinrich - escrito na pri-

Na

#

meira pessoa, não é? E mesmo assim não se baseia em experiên-

nos cias pessoais? Realmente não viveu nada daquilo?

osso

- Muito pouco, Alteza Real. Na verdade, mínimas alu-

ição,

sões de tudo aquilo. Não, a coisa é inversa, se eu fosse homem

:pre-

de viver tudo aquilo, não só não teria escrito aqueles poemas

ndo�

como desprezaria minha vida atual. Tenho um amigo chamado

seus

Weber. Homem moço e rico, que vive e aproveita a vida. Sua

nún-

ousa diversão predileta é disparar pelo interior a toda velocidade com

odo seu automóvel, escolhendo camponesas dos campos e das es-

,

' tradas, e com elas . . . mas não devo dizer isso aqui. Em suma,

s ja-

esse rapaz ri quando me vê de longe, tão engraçado me acha,

a mim è à minha atividade. Quanto a mim, entendo perfeita-

nun-

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mente sua hilaridade e tenho invejá dele. Posso dizer que tam-

urou

bém o desprezo um pouco, mas não tão sinceramente quanto

o admiro, e invejo. . .

esses

- O senhor o admira?

a de

uldes - Sim, Alteza. Não o posso evitar. Ele gasta, desperdiça,

larga-se constantemente de maneira despreocupada e alegre. . .

ance- enquanto eu tenho de poupar, controlar-me, medroso e avarento,

per- por motivos higiênicos. Pois é de higiene que gente como eu�

=aces, precisa em primeiro lugar . . . ela é a nossa moral. Mas nada é

. Foi mais anti-higiênico do que a vida. . .

olhos - Então nunca vai esvaziar o cálice do Grão-Duque,

,

Sr. Martini?

169

- Tomar vinho nele? IJão, Alteza. Embora fosse um�

elo gesto. Mas não bebo vinho. Vou para a cama às 10h e vivo�

com muíto cuidado em tudo. Ou jamais tería ganho esse cálice.

- Deve ser isso, Sr. Martini. Decerto, quem vê de longe

imagina mal a vida de um poeta.

- É compreensível, Alteza. Mas não é, de modo geral,

uma vída muíto admirável, asseguro, especialmente porque não

somos poetas a qualquer hora. Para que, de tempos ern tempos,

se faça um poema. . . ninguém acredita quanta indolência, tédío

e ôcio arnargurado são necessários para isso. Um cartãa-postal

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ao fornecedor de charutos é, às vezes, a única realização de um

dia. A gente dorme muito, fica vadiando por aí com a cabeça

pesada. Sim, muitas vezes é uma vida de cão. . .

Alguém bateu de leve na porta branca, do lado de fora.

Era sinal de Neumann de ser mais do que hora de Klaus Hein-

rlch mudar de roupa e repousar. Pois naquela noite havia con-

certo no Castelo Velho.

Klaus Heínrich levantou-se.

- Falei demais - disse ele; pois era a fôrmula que

usava nesses momehtos.

Depoís, despediu-se do Sr. Martini, desejou-lhe sucesso

em sua carreira de poeta e acompanhou o recuo respeitoso do

artista com um sorriso e aquele gesto um pouco teatral, de

magnânima saudação, de cima para baixo, que nem sempre

saía igualmente belo, mas que agora fora perfeito.

Foí essa a conversa do Príncipe com Axel Martíní, autor

de Evoé! e A vida sata. Ela lhe deu o que pensar, não parou�

de se ocupar dela na despedida. Ainda enquanto Neumann lhe

renovava o penteado e lhe vestia o faiscante casacv de gala,

com estrelas, ainda enquanto assistia ao concerto na Corte,

sim, vários días depois aínda pensava nela e procurava ligar

as palavras do poeta com as outras experiências que a vida

#

Ihe negara.

Esse Sr. Martini, que, enquanto aquele rubor doentio co-

bria suas faces encovadas, exclamava constantemente: "Como é

170

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be a e forte a vida! ", mas que ia cuidadosamente para a cama

11 ás lUh, e, pOr mOtIVOS hlgl2nICOS, COmO dlZld, Se eXCIuÍa Qíl

'° vi a e evítava qualquer ligação séría com ela, esse poeta de�

cu rinho puído, olhos lacrimejantes e inveja do jovem Weber�

y:: disparava pelo campo com jovens camponesas: ele desper-

ta, a sensações contraditórias, era difícil ter uma opinião firme

l, a eu respeito. Klaus Heinrich expressou isso dizendo, ao con-�

ta ï sobre o encontro para a írmã:

s,�

- Ele não tern vida cômoda e fácil, a gente o nota, e

io

isa depõe em favor dele. Mas não sei se me devo alegrar por��

a

tc io conhecido, pois ele tem algo de desalentador, Ditlinde;

m

síi n, apesar de tudo isso, é realmente um pouco repulsivo.

171

IMMA

\ Srta. von Isenschnibbe estava bem-informada. Ainda na noite�

'o dia em que trouxera a grande novidade á Príncesa von Ried,�

" Mensageiro publicou a notícia da iminente chegada de Sa-

nuel Spoelmann, o famoso Spoelmann, e uma semana e meia�

,

lepois, no começo de outubro (foi outubro do ano em que o�

Grão-Duque fez 32 anos e o Príncípe Klaus Heínrich, 26) -

portanto, a curiosidade pública mal tivera tempo de chegar ao

auge - aconteceu essa chegada. Foi um acontecimento bem

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simples, num dia de semana encoberto, outonal, inaparente, que

no futuro seria, porém, uma data extraordínariamente notável.

Os Spoelmann chegaram num trem extra - de momento,

a magnificência de sua aparição limitou-se a isso; pois todo O

mundo sabia que os "aposentos dos príncipes" no hotel Quellen-

hof não eram pomposos. Um público ocioso, vigiado por al-

guns policiais, postava-se atrás da barreira, na plataforma; havia

representantes da imprensa. Mas quem esperara algo de inco-

mum decepeionou-se. Spoelmann quase não foi reconhecido, tão

comum parecia. Por muito tempo pensaram que ele fosse seu

médico, o Dr. Watercloose - diziam que se chamava assim -,

um americano comprido, que, chapéu na nuca, ria sem parar,

brandamente, entre as suíças brancas e aparadas, fechando os

olhos. Só no último momento viram que o baixinho, barbeado,

com paletó de cores feias, que, ao contrário, tinha o chapéu

173

enterrado na testa, é que era o verdadeiro Spoelmann. E os

espectadores concordaram em que não era nada notável. Dele

se diziam coisas fantásticas. Algum brincalhão divulgara o boato,

que fora mais ou menos aceito como verdade, de que Spoelmann

tinha todos os dentes da frente de ouro, e no meio de cada

um deles um brilhante incrustado. No entanto, embora não se

pudesse provar logo a veracídade ou inverdade dessas afirma-

ções, pois Spoelmann não mostrou os dentes, não ria, parecendo

aborrecido e irritado com a enfermidade -, vendo-o ninguém

mais acreditava naquilo. Quanto a Miss Spoelmann, filha dele,

tínha levantado bem a gola de seu casaco de peles, as mãos

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enfiadas nos bolsos, de modo que quase nada se via dela, além

de um par de olhos castanhos, quase pretos, incrivelmente gran-

des, que olhavam aquela multidão numa linguagem séria, fluen-

te, mas que poucos entenderam. Ao seu lado estava a persona-

lidade que se reconheceu como sua dama de companhia, a

Condessa Lõwenjoul, mulher de 35 anos, vestida com simpli-

cidade, a cabeça mais alta do que os dois Spoelmann. De ca-

belos ralos e lisos, bem repartidos, sua cabeça ficava um pouco

torta e seu olhar era fixo, com uma suavidade hirta. Sem dü-

vida, foi o cão pastor escocês o que mais atraiu as atenções,

levado pela correia por um criado com cara inexpressiva de

escravo - um anímal extraordinaríamente bonito, mas também

#

extraordinaríamente ínquieto, que encheu a gare com seus la-

tidos, tremendo e saltítando.

Dizia-se que alguns dos criados de Spoelmann, homens e

mulheres, haviam chegado algumas horas antes ao Quellenhof.

Mas o criado do cachorro teve de cuidar das bagagens sozinho;

e, enquanto tratava disso, seus amos seguiram em duas carrua-

gens simples - o Sr. Spoelmann com o Dr. Watercloosé, e

Miss Spoelmann com sua Condessa - para o Jardim das Fontes.

Lá desembarcaram e, por um mês e meio, levaram uma vída

que se podería custear com bem menos dinheíro do que eles

tinham.

174

Ti,eram sorte com o tempo, os dias foram bons, um outo-� �

no azul , uma longa série de dias ensolarados de outubro a no-

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vembr<. e Miss Spoelmann cavalgava diariamente - único luxo�

a que e dava -, com sua dama de companhia, em cavalos�

que haviam alugado por semana no Tattersall. O Sr. Spoelmann

não an,ava a cavalo, embora o Mensageiro houvesse divulgado,��

com d i reta alusão a ele, a notícia de que andar a cavalo era

muito I,om contra os cálculos, pois os abalos estimulavam a

ejeção ias pedras. Mas a criadagem do hotel contou que o�

famosc, homem executava diariamente uma cavalgada artificial

com a ..ijuda de um aparelho, uma bicicleta fixa, cujo selím se

movia :igorosamente manejada por pedais.�

El bebia com avidez a água curativa da Fonte Ditlinde,�

que parecia valorizar enormemente. Aparecia na fonte todos os

días, hm cedo, ao lado da filha, que era muito saudável e só��

bebia E,ara acompanhá-lo, depois andava pelos jardins dos ba-

nhos, chapéu na testa, bebendo aquela água por um canudínho

de vidro, num copo de vidro azulado. De longe, observavam-no

os doi correspondentes de jomais americanos, que precisavam�

mandar diaríamente para casa, por telegrama, mil palavras sobre

as férias de Spoelmann - portanto, precisavam conseguir as-

sunto.

1) resto, via-se muíto pouco dele. Sua doença, cólicas�

renais, como diziam, com acessos muito dolorosos, parecia pren-

dê-lo eguidamente ao quarto, se não à cama, e enquanto Miss�

Spoelmann apareceu duas ou três vezes com a Condessa no Tea-

tro da Corte (usando vestido de veludo preto e, em torno dos

ombrcs infanti.s, um pano de seda indiano de um maravilhoso�

. amarclo-ouro, muito fascinante também por causa do rostinho

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pálide e dos grandes olhos negros, tão eloqüentes), seu pai nunca�

surgiu com ela no camarote. Fez alguns passeios pela Residên-

cia para realizar pequenas compras, dar uma olhada na cidade

e visiar alguns lugares interessantes. Também passeou com ela�

pelo parque da cidade, e lá visitou duas vezes o Castelo dos

,

! Delfins. Da segunda vez, foi sozinho, e seu interesse foi ao

175

ponto de medír as paredes com um simples metro amarelo que

tirou do bolso do paletó. . . Mas nenhuma vez o víram na sala

de refeíções do Quellenhof, pois, ou porque se limitava a re-

feições leves, sem carne, ou por outros motívos, comía sozinho

nos aposentos, e a curiosidade pública não teve lá muito es-

tímulo.

Aconteceu, assim, que a chegada de Spoelmann ao Jardim

das Fontes não ajudou tanto quanto a Srta. von Isenschnibbe

e muítas outras pessoas havíam esperado. Notava-se que a en-

comenda de garrafas da água crescera; cresceu muíto dpressa,�

quase metade da quantidade anterior, e permaneceu nesse nível.

Mas a visita de estrangeiros não aumentou muíto; os hóspedes

que chegavam para se alimentar com a visão daquela tremenda

existência em breve víajavam de novo, satisfeítos ou decep-

cíonados, e nem ao menos eram sempre os melhores elementos

que sua presença atraía. Apareciam nas ruas pessoas muito

estranhas, gente desgrenhada e de olhos inquíetos, inventores,

sonhadores, vendedores de felicidade, que rentavam atrair

Spoelmann para suas idéias fixas. Mas o bilíonárío não queria

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saber dessa gente; sím, um deles que o quís abordar no parque

foi interpelado aos gritos. Spoelmann, a cara rubra de raiva,

#

gritou tanto que o insensato saiu depressa. Várias vezes se

afirmou que a torrente de cartas de pedintes que diariamente

chegava até ele - cartas muitas vezes corn selos que os fun-

cionários da agência de correios da Corte nem conheciam -

ia diretamente para um ímenso cesto de papéís.

Spoelmann parecia negar-se qualquer envolvimento em ne-

gócios, parecia decidido a saborear a fundo suas férias e, du-

rante essa víagem pela Europa, viver umcamente para sua saúde

- ou doença. O Mensageiro, cujos informantes se haviam apres-

sado a travar amizade com os colegas amerícanos, contava que

um homem de confiança, um chie f manager, como diziam, re-

presentava o Sr. Spoelmann além-mar. Contava também que

o iate, um navio magníficamente decorado, esperava pelo po-

deroso homem em Veneza, e que depoís de terminada a cura

176

de águas ele pretendia ir, com sua gente, para o Sul. Contou

também - e com isso veio ao encontro de uma urgente ne-

cessidade pública - das aventuras do nascimento, da fortuna

de Spoelmann, do começo na terra de Vitória, onde seu pai

saíra de algum escritório alemão, jovem, pobre e munido ape-

nas de uma picareta, uma pá e um prato de estanho. Já come-

çara como ajudante de mineração, trabalhando por dia, com o

suor de seu rosto. Depois viera a sorte. Um homem, um pe-

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; queno propríetário de mina, ia tão mal de negócios que nem

podia comprar tomates e pão seco para o almoço, e por essa

grande necessidade tivera de vender a mina. Spoelmann pai

a comprara, apostara tudo o que tinha, e por toda a sua eco-

nomia, que constava de cinco libras esterlinas, adquirira aquele

pedacinho de terra de aluvião chamada "Campo Paraíso", não

maior que 12 metros quadrados. E dias depois encontrara, um

palmo e meio abaixo da superfície, uma pepita de ouro puro,

a 10.a maior do mundo, chamada "Paradise Nugget", com peso

de 980 onças e valor de 5 mil libras. . . O Mensageiro narrava

que esse fora o começo. Com o resultado de seu ouro, Spoel-

mann pai mudara-se para a América do Sul, para a Bolívia, e

continuara como lavrador de ouro, dono de um moinho de

amálgama e empresário de minas, arrancando diretamente dos

rios e do seio das pedras o metal amarelo. Naquele tempo, e

naquele lugar, Spoelmann pai se casara, e o Mensageiro deixou

escapar o comentário de que o velho o fizera desafiadoramente,

sem ligar para os preconceitos do país. Mas assim duplicara

seu capital, e soubera multiplicar de maneira inaudita a sua

fortuna. Mudara-se para o Norte, para Filadélfia, na Pensilvà-

nia. Fora nos anos 50, época de máíor crescimento das ferro-

vías, e Spoelmann começara seus negócios comprando ações da

linha Baltimore-Ohio. Também administrara, no Oeste do

Estado, uma mina de carvão muito lucrativa. Mas depois fizera

parte daquele grupo de jovens abençoados por Deus que com-

praram, por alguns milhares de libras, a famosa Blockhead-

Farm, aquela propriedadezinha que, com sua fonte de petróleo,

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177

em breve valia centenas e centenas de vezes seu valor de com-

pra. . . Essa empresa enriquecera Spoelmann pai, mas nem assim

ele sossegara. Continuara exercitando sem parar a arte de pro-

duzir dinheiro com dinheiro, atingindo uma soma incrivelmente

grande. Criara indústrias de aço, formara sociedades que trans-

formavam, em grande escala, ferro em aço, construíra pontes

para ferrovías. Tinha a maioria das ações de quatro ou cinco

grandes ferrovias e, já idoso, tornara-se presidente, vice-presi-

dente, procurador ou diretor dessas empresas. Na fundação do

truste do aço, contava o Mensageiro, ele ingressara com uma

quantidade de ações que lhe garantia um lucro anual de 12

milhões de dólares. Mas era também principal acionista e con-

selheiro da União do Petróleo e, devido à sua participação como

acionista, dirigira mais três ou quatro sociedades. Ao morrer,

sua fortuna pessoal, em moeda daquele país, constava de 1

bilhão.

Samuel, seu único filho, concebido naquele casamento que

se desfízera tão cedo, de certa forma rejeitado pelos preconcei-

tos, fora seu herdeiro universal. Com muito tato, o Mensageiro

comentou que era doloroso alguém encontrar-se nessa situação

sem ter para isso colaborado, sem ter culpa. Samuel herdara

o palácio da Qui.nta Avenida, em Nova Iorque, os castelos.no

campo e todas as ações e lucros do pai, herdando também a

existência singular e aventurosa que vem da fama e do ódio

que os menos ricos devotam ao poder do dinheiro. Todo esse

ódio que ele tentava anualmente aplacar, doando imensas somas

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para colégios, conservatórios, bibliotecas, instituições beneficen-

tes, e para a universidade que seu pai fundara e que levava

seu nome.

Samuel Spoelmann sofria sem culpa o ódio dos menos fa-

vorecidos, assegurava o Mensageiro. Fora introduzido cedo nos

negócios pelo pai; já nos últimos anos de vida deste, adminis-

trara sozinho as propriedades da família, que deixariam qual-

quer um desnorteado. Mas todos sabíam que seu coração nunca

estivera nessas ativídades. Sua verdadeira inclinação, estranha-

178

mente, era a música de órgão: e essa notícia do Mensageiro

pôde ser comprovada, pois Mr. Spoelmann tinha também no

Quellenhof um orgãozinho cujo fole era manejado a seu mando,

por um criado do hotel, e todo dia se podia ouvir, do parque

da estação de águas, Mr. Spoelmann tocando.

Por amor, e sem qualquer intenção comercial, disse o

Mensageiro, ele se casara com uma moça bonita e pobre, meio

alemã, meio anglo-saxônica. Ela morrera, mas lhe deixara uma

filha, essa singular mistura que tínhamos como hóspede entre

nossos muros, e que nessa época estava com 19 anos. Chamava-

se Imma - nome bem alemão, como acrescentou o Mensageiro,

apenas uma forma antiga de "Emma". Era fácil notar que em-

bora aparecessem palavras inglesas, a língua cotídiana na casa

dos Spoelmann era o alemão. Aliás, como paí e filha pareciam

se amar! Cada manhã, quem chegasse a tempo no Jardim das

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Fontes podia ver a Srta. Spoelmann, que lá costumava chegar

pouco mais tarde que o pai, pegar a cabeça dele entre as mãos

e, enquanto elelhe batia ternamente nas costas, ela o beijava

na boca e nas faces. Depois, iam pela galeria passeando de

braço dado, sugando seus canudinhos. . .

Assim tagarelava o bem-informado jornal, alimentando a

curiosidade pública. Também relatava minuciosamente as visi-

tas que Miss Imma fazia amavelmente, com sua dama de com-

panhia, a várias instituições de caridade. Ontem, ela visitara

por longo tempo a escola pública. Hoje, dera um giro atento

pelo hospital de velhos Espírito Santo. Além disso, assistira

duas vezes às aulas do Conselheiro Klinghammer na Universi-

dade sobre teoria estatística - sentara-se no banco de madeira,

uma estudante entre estudantes, e anotara tudo zelosamente com

a caneta-tinteiro, pois era sabidamente uma mocinha culta, que

estudara álgebra. Sim, era uma coisa interessante de se ler, e

deu assunto para muita conversa. Mas quem se fazia comen-

tar sem ajuda do Mensageiro era o cão, aquele nobre collie

preto e branco, que os Spoelmann tinham trazido; e depois, de

outro modo, a dama de companhia, Condessa Lõwenjoul.

179

Quanto ao cachorro, chamado Percival (pronúncia inglesa),

em geral chamado Percy, era um animal de excitabilidade e

paixão indescritíveis. Dentro do hotel, não dava motivv de

queixa, mas ficava deitado em pose aristocrática sobre um

tapetinho diante dos aposentos dos Spoelmann. A cada passeio,

porém, tinha acessos de loucura que causavam confusão e es-

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tranheza, mais de uma vez causando verdadeiros problemas de

trânsito. Seguido de longe por um bando de câes do lugar,

vira-latas comuns que, nervosos com seu comportamento, cor-

ríam atrás dele soltando latídos furíosos, com os quaís náo se

ímportava em absoluto, Percy, naríz respíngado de espuma, com

latidos loucos e lamentosos, disparava pelas ruas, dançava deli-

rantemente díante do bonde, fazía caír cavalos que puxavam

carruagens, e duas vezes derrubou a estante de bolos da viúva

Klaasen, na Prefeitura, com tal víolêncía que os bolos rolaram

por metade da praça. Mas como, nesses acidentes, o Sr. Spoel-

mann ou sua fílha ínterviesse ímediatamente com muíto mais

do que valeria a indenização pelo prejuízo, e como se vísse que

no fundo Percival não era perigoso, não mordia nem era bri-

guento, apenas um tanto malcomportado e amalucado, em breve

o povo começou a gostar dele; sobretudo para as crianças, os

passeios do cão eram motivo de alegria.

A Condessa LOwenjoul, de sua parte, provocava mexericos

de maneíra maís sossegada, mas não menos singular. No começo,

quando sua pessoa e posíção eram desconhecídas na cidade, eIa

provocara troça entre os menínos de rua porque, andando so �

zinha, falava consigo mesma, com ar doce e pensativo, acom-

panhando esses rnonólogos com gestos vívos, gracíosos e ele,

gantes. Mas as crianças que haviam troçado às suas costas,

gritado frases zombeteiras, puxando-lhe a saia, foram tratadas

com tanta bondade e brandura, ouviram-na falar de modo tão

doce e digno, que acabaram por deixá-la em paz, envergonha-

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das e confusas; e mais tarde, quando já a conheciam, o respeite

por sua relação com os famosos hóspedes impediu que a inco-

modassem. Mas, às ocultas, corriam muitas anedotas incompre-

180

ensíveis a respeito dela. Um homem disse que a Condessa lhe

dera uma moeda de ouro, pedindo-lhe que esbofeteasse uma

velha que lhe fízera convites indecentes. O homem embolsara

a moeda de ouro, sem cumprir a tarefa. Além disso, contava-se

como sendo verdade que a Lwenjoul interpelara o guarda�

diante da caserna dos fuzileiros e lhe dissera que precisava

prender a esposa do sargento desta e daquela companhia por

crimes contra a moral. Também escrevera ao comandante desse

regimento dizendo que dentro da caserna acontecia toda sorte

de misteriosos e indescritíveis horrores. Deus sabia o que havia

de verdade nisso. Muítos deduziam diretamente que a Condes-

sa não regulava muito bem. De qualquer modo, não tiveram

tempo para analisar o caso a fundo, pois, sem que notassem,

passaram-se seis semanas e o bilionário Samuel N. Spoelmann

viajou.

. Viajou depois de se deixar pintar pelo Professor von Lin-

demann, mas doara o valioso quadro ao dono do hotel Quellen-

hof, partindo com sua filha, a Lewenjoul e o Dr. Watercloose,

com Percival, a bicicleta de quarto e sua criadagem; viajou em

trem especial, rumo ao Sul, para passar o inverno na Riviera,

onde já estavam os dois jornalistas, adiantando-se a ele. Depois,

voltaria para casa, cruzando Ooceano. Tudo estava acabado.

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O Mensageiro desejou boa viagem ao Sr. Spoelmann e expres-

sou o desejo de que o tratamento lhe tivesse feito bem. Depois,

o singular incidente pareceu terminado e resolvido. O cotidiano

reclamava seus díreitos, e começaram a esquecer o Sr. Spoel-

mann .

Passou-se o inverno. Foi naquele inverno em que a Prin-

cesa zu Ried-Hohenried, Alteza Grão-Ducal, teve uma meni-

ninha. A primavera também chegou, e Sua Alteza Real, o Grão-

Duque Albrecht, foi, como de hábito, para Hollerbrunn. Mas

nisso surgiu, no públíco e na imprensa, o boato que as pessoas

calmas, no começo, receberam com um dar de ombros, mas

que Eoi assumindo forma, ínstalou-se e se revestiu de detalhes

181

bem-determinados, passando finalmente a dominar as conversas

diárias como notícia real e substanciosa.

Que estava acontecendo? Iam vender um castelo dos Grão-

Duques. Loucura. Mas que castelo? O Castelo dos Delfins,

no parque norte da cidade. Conversa de malucos? Vender? Para

quem? Spoelmann. Kidículo. Que faria com um castelo? Res-

taurá-lo e morar nele. Muito simples, mas quem sabe nossa

Assembléia ainda tem alguma palavrinha a dar sobre isso? A

Assembléia não se interessa por ísso. Acaso o Estado tinha c �

dever de manter o Castelo dos Delfins? Se fosse assim. certa-

mente aquela bela construção estaria em meihores condições.

Portanto, a Assembléia aada tinha a dizer. As negociações iá� �

estavam muito adiantadas? Realmente. Depois, foram concluídas.

:h, então já se poderia até dizer o preço certo? Mais ou menos.�

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O óreço de compra era de 2 milhões. Impossível! Isso é ama

Eortuna de reis! Fortunas trocam de dono. Tratava-se dos

tzrimmburg? Do Castelo Velho? Tratava-se de um castelinhe

para diversões, um castelinho nunca usado, irremediavelmente

deteriorado pela falta de dinheiro. Então, Spoelmann pretendia

voitar todos os anos e morar por algumas semanas nos Delfins?

Não. Muito antes, pretendia mudar-se para cá definitivamente.

Estava cansado dos Estados Unidos, queria voltar-lhes as costas.

e sua primeira estada aqui conosco foi apenas uma investigação.

Estava doente, quería afastar-se dos negócios. No coração, contí-

nuava sendo alemão. O pai emígrara e o filho queria voltar para

casa. Queira participar da vida comedida, da vida íntelectual de

nossa cidade, e passar o resto dos dias bem perto da Fonte

Ditlinde!

Espanto, confusão e discussões intermináveis. Mas, com

exceção de algumas vozes de uns poucos rabugentos, depois de

vacilar um pouco, a opinião pablica entusiasmou-se pelo plano

de venda, e certamente sem essa concordâncía geral o negócio

nem teria florescido. O Ministro von Knobelsdorff fora o pri-

meiro a dar à imprensa as primeiras notícias çautelosas sobre a

oferta de Spoelmann. Esperara, deixara que a vontade do povo

182

decidisse. Depois das primeiras confusões, tinham aparecido mui-

tos motivos fortes em favor do projeto. O mundo dos negócios

irrompeu em aplausos à idéia de ver aquele poderoso comprador

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sempre alí presente. Os que eram dados às belas-artes estavam

encantados com a possibilidade de ver o Castelo dos Delfins

restaurado e conservado - aquela nobre construção voltando à

honra e à juventude de maneira tão imprevista e aventuresca.

Mas os que pensavam em termos financeiros apresentavam cifras

que, devido às condições do país, tinham de causar um grande

choque. Se Samuel N. Spoelmann viesse morar conosco, seria

contribuinte, estaria obrigado a pagar, aqui, impostos sobre seus

ganhos. Quem sabe achavam que valeria a pena o esforço de

pensar um pouco no que isso poderia significar? O Sr. Spoel-

mann fícaria encarregado de avaliar-se, mas, segundo tudo o que

se sabia - com bastante exatidão, até -, aquele morador seria

fonte fiscal de 2 milhões e meio anualmente. Sem calcular os

ímpostos estatais e os da comunidade. Isso era ou não impor-

tante para nós? E fizeram essa pergunta diretamente ao Minis-

tro das Finanças, Dr. Krippenreuther. Se esse funcionário não

fizesse tudo para obter a concordância dos governantes para esse

negócio, teria esquecido seu senso de dever. Pois era um man-

damento de patriotismo aceitar a oferta de Spoelmann, para que

ele pudesse instalar-se entre nós, e qualquer receio parecia insig-

nificanté diante dessa grave obrigação.

Assim, Sua Excelência von Knobelsdorff falara com o Grão-

Duque. Já informara seu senhor sobre a opinião do povo: acres-

centara que 2 milhões eram um preço muito acima do valor do

Castelo em seu estado atual; e acrescentara que essa receita seria

um verdadeiro alívio para as finanças da Corte; e por fim falara

alguma coisa sobre o aquecimento central para o Castelo Velho,

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que não seria mais impossível depois dessa venda. Em suma, o

desenvolto cavalheiro empenhara toda a sua influência em favor

da transação, e aconselhara o Grão-Duque a apresentar o caso

numa reunião de família. Albrecht sugara de leve o lábio supe-

rior com o de baixo, e convocara a reunião. Esta acontecera na

183

Sala dos Cavalheiros, com chá e biscoitos. Só dois membros

femininos, as Princesas Katharina e Ditlinde, se haviam mani-

festado contra a venda, e por motivos de dignidade.

- Vão interpretá-lo mal, Albrecht! - dissera Ditlinde. -

Vão dizer que é falta de consciência de sua nobreza, e não é

verdade, ao contrário, você tem demais, é tão orgulhoso, Al-

brecht, que para você tanto faz. Mas eu digo não. Não quero que

um Pássaro Roca more em um de seus castelinhos, não é ade-

quado, já basta que ele tenha um médico pessoal e reserve para

si os aposentos dos príncipes do Quellenhof. O Mensageiro sem-

pre diz que ele ficará sujeito aos nossos impostos, mas para

mim ele é apenas um sujeito, nada mais. O que você acha,

Klaus Heinrich?

Mas Klaus Heinrich estava de acordo com a venda. Pri-

meiro, Albrecht teria seu aquecimento central, depois, Spoel-

mann não era qualquer um, não era o saboeiro Unschlitt, era

um caso especial, e não seria vergonha entregar-lhe o Castelo

dos Delfins. Por fim, Albrecht declarara, de olhos baixos, que

no fundo toda essa reunião de família era uma "farsa". O povo

há muito decidira, seus ministros insistiam na venda, e a ele

nada restava senão voltar à estação e acenar.

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A reunião de família acontecera na primavera. A partir dali,

as negociações foram efetuadas por Spoelmann e o Marechal-

da-Corte von Bühl zu Bühl, progrediram rapidamente, e o verão

não estava muito avançado quando o Castelo dos Delfins tor-

nou-se legalmente propriedade do Sr. Spoelmann, juntamente

com o parque e as construções anexas.

Começaram então o tumulto e a atividade dentro e fora

do castelo, atraindo diariamente muita gente à parte norte do

Parque Munícipal. O Castelo dos Delfins estava sendo renovado,

parcialmente reformado por dentro, com o emprego de muita

mão-de-obra. Pois tinha de ir tudo depressa, depressa, era de-

sejo de Spoelmann, ele dera apenas cinco meses de prazo para

tudo estar pronto para a sua chegada. Assim, cresceu, com rol-

danas, um andaime de madeira com escadas e plataformas em

M ,.

184

torno daquela arruinada construção de luxo, trabalhadores es-

trangeiros povoaram tudo de cima a baixo, um arquiteto com ple-

nos poderes veio do outro lado do oceano para assumir a coor-

denação de tudo aquilo. Mas a maior parte da tzrefa recaía para

nossos trabalhadores - canteiros e telheiros, marceneiros, dou-

radores, estofadores, vidraceiros, parqueteiros da Residência, pai-

sagistas e operários da calefação e da iluminação tiveram traba-

lho duro mas rendoso naquele verão e outono. Quando Sua Al-

teza Real Klaus Heinrich abria as janelas no Eremitage, os ecos

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do trabalho do outro lado entravam em seus aposentos império,

e várias vezes, respeitosamente saudado pelo público, ele se fez

levar em sua sege à frente dos Delfins para se certificar dos

progressos da restauração. A casinha do jardineiro foi renovada,

os estábulos e cocheiras que receberiam as carruagens e automó-

veis de Spoelmann, ampliados; e descarregaram-se quantidades

imensas de móveis e tapetes, caixas e caixotes com tecidos e

utensílios, di.ante do Castelo dos Delfins, em outubro; enquanto

isso, espalhava-se entre as pessoas que rodeavam o Castelo que

lá dentro havia peritos instalando um valioso órgão movido a

eletricidade que Spoelmann enviara de além-mar. Estavam curio-

sos para ver se o parque do Castelo, tão magnificamente limpo

e refeito, seria fechado com uma cerca ou muro do lado do

Parque Municipal. Mas nada disso aconteceu, a propriedade con-

tinuaria acessível, a liberdade de movimentos dos moradores da

capital naquela área verde não seria limitada. Spoelmann que- �

ria assim. Até perto do Castelo, até as bem-cortadas sebes que

emolduravam o grande tanque quadrado, os que davam seus

passeios domingueiros poderiam chegar, e isso causou a melhor

impressão no povo. Sim, o Mensageiro publicou um artigo espe-

cial a respeito, louvando o Sr. Spoel.mann por essa medida tão

liberal.

E quando as folhas das árvores tornaram a cair, exatamen-

te um ano após sua primeira vinda, Samuel Spoelmann chegou

pela segunda vez à nossa estação. Agora, o público era bem

maior que no ano passado, e garante-se que, quando o Sr. Spoel-

185

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mann saiu de seu vagão-sala no conhecido paletó desbotado e

chapéu na testa, soaram animados vivas da multidão: manifesta-

ções que pareceram aborrecer o Sr. Spoelmann, e que o seu

Dr. Watercloose agradeceu, repuxando a boca para os lados num

sorriso brando, olhos fechados. Também quando Miss Spoel-

mann desembarcou, soou um "viva", alguns engraçadinhos até

gritaram "oba" quando Percy, o collie, apareceu na gare, tremen-

do e saltitando, totalmente fora de si. Além do médico e da Con-

dessa Lõwenjoul, havia mais duas pessoas, desconhecidas, acom-

panhando os senhores, dois homens escanhoados de ar decidido,

com paletós singularmente amplos. Eram os secretários de Spoel-

mann, Srs. Phlebs e Slíppers, conforme noticiou o Mensageiro.

Naquele tempo, o Castelo dos Delfins ainda estava longe cle

ficar pronto, e os Spoelmann foram morar no primeiro andar do

hotel da Residência, onde um homem grande, barrigudo e orgu-

lhoso, mordomo ou camareiro de Spoelmann, que chegara antes

deles, arranjara tudo e instalara pessoalmente a bicicleta fixa.

Diariamente, quando Miss Imma saía a cavalo com a Condessa e

Percy, óu visitava :nstituições de caridade, o Sr. Spoelmann fica-

va em sua casa para vigiar os trabalhos e dar ordens; e, quando

o ano chegava ao fim, logo depois de cair a primeira neve, tude

se tornou realidade, os Spoelmann finalmen.te se mudaram para

o Castelo dos Delfins. Dois automóveis (tinham chegado recente-

mente veículos magníficos, impelidos por forças gígantescas com

um leve ronco metálico) levaram as seis pessoas - pois no

segundo estavam os Srs. Phlebs e Slippers -, dirigidos por

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motoristas vestidos de couro, ao lado dos quais se sentavam

criados, de braços cruzados, em mantos de pele brancos -

levavam poucos minutos do hotel da Residência ao Parque Mu-

nicipal e, quando os carros dispararam pela imponente alameda

de castanheiros que desembocava na rampa diante do Castelo,

os meninos do povo penduraram-se nos altos lampiões erguidos

nos quatro cantos do tanque, agitando os gorros e grítando. . .

Assim, Samuel Spoelmann e sua gente se estabeleceram

entre nós, e sua presença tornou-se um hábito simpático a todos.

186

Viam-se e se reconheciam na cidade seus criados vestidos de

branco e dourado, como se viam e conheciam os lacaios vesti-

dos de castanho e dourado do Grão-Duque; o negro vestido de

veludo bordô, postado como porteiro diante do portal dos Del-

fins. em breve se tornou figura popular e ouando se dassava�

pelo Castelo, a passeio, oiwindo som abafado do círgão do Sr.�

Spoelmann lá dentro, erguia-se üm dedo dizendo: "Ouça. está

tocando. Então. no momento. nã sente cólicas." niariamente.�

wia-se Miss Imma ao lado a C;ondessa Lowenjoul. seguida de��

seu cavalariço e rodeada por Percv, que iatia e saltava passean-

do a cavalo ou dirigindo pessoalmente uma magnífica carruagem

pelo parque, enquanto o críado, na traseíra do leve veículo. de

tempos em tempos se erguia, tirava do casaco de couro uma

trombeta de prata, e anunciava sonoramente a aproximação; e

quem se levantasse cedo podia ver, todas as manhãs, pai e filha

,

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num cupê laqueado de vermelho-escuro, ou, em áias bonitos

a pé, dirigindo-se ao Jarãim das Fontes, para beber da água.

(?uanto a imma, como se isse, eia retomou suas visitas às ins-��

tituições beneficentes da cdade, mas não pareceu descuidar-se�

rlos estudos, pois desde o começo do ano letivo freqüentava

regularmente as conferências do Conse!heiro Klinghammer. na

Universidade . . sentava-se todos os dias, de vestido preto, gola

punhos brancos, entre os jovens no auditório, e com o indica-�

dor recurvado - era assim que fazia - dirigia a caneta-tintei-

ro sobre o caderno colegial. Os Spoelmann viviam retirados,

não freqüentavam ninguém na cidade, o que a enfermidade do

Sr. Spoelmann explicava, como explicava seu isolamento em

assuntos de negócios. A que grupo empresaral se teria ligado?�

Ninguém imaginava que tivesse intimidades com o saboeiro Un-

schlitt ou o diretor de banco Wolfsmilch. Aos poucos, as pes-

soas se aproximaram dele com pedidos endereçados à sua gene-

rosidade, e ninguém foi repelido. Pois, como se sabia, o Sr.

Spoelmann, antes de sair dos Estados Unidos, transferira às

autoridades responsáveis pelo ensino público daquele país gran-

de soma em dólares, e assegurara que sua doação anual à Uni-

187

versidade Spoelmann e aos demais institutos culturais não seria

esquecida. Pouco depois de vir para os Delfins, doou 10 mil

marcos ao Hospital Infantil Dorothea, para o qual estavam pe-

dindo doações - atitude que o Mensagei"o e o restante da im-�

prensa louvaram com fervor. Sim, embora os Spoelmann vives-

sem socialmente reclusos, sua vida, desde a primeira hora, teve

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certo caráter público entre nós; pelo menos na parte local dos

diários, sua vida era seguida com tanta atenção quanto a dos

membros da casa dos Grão-Duques. O público foi informado

quando Miss Imma e os Srs. Phlebs e Slippers jogaram um par-

tida de tênis no parque dos Delfins, todos souberam quando ela

foi ao teatro, quando seu paí foi junto, para assistir a um ato

e meio de uma ópera. E se o Sr. Spoelmann fugia da curiosidade,

se durante os interval.os no teatro jamais deixava seu camarote,

e quase nunca andava a pé nas ruas, mesmo assim não igno-

rava totalmente que uma vida extraordinária implica certo dever

de expor-se, e fazia suas concessões ao desejo do público. O

parque dó Castelo dos Delfins sabidamente não fora separado

do Parque Municipal. Nenhum muro apartava o Castelo do mun-

do. Dos fundos, podia-se chegar pelos gramados até perto da

base do amplo terraço coberto que fora construído lá, e quem

fosse atrevido, podia olhar, pela grande porta de vidro, direta-

mente para o grande jardím de inverno, branco e dourado, onde

o Sr. Spoelmann e os seus tomavam o chá das 5h. Sim, quando

chegou a mais bela estação do ano, as horas de chá eram passa-

das lá fora, no terraço, e, como num palco, ficavam então o Sr.

e a Srta. Spoelmann, a Lõwenjoul e o Dr. Watercloose, em mo-

dernas cadeiras de vime, bebendo seu chá publicamente. Pois

aos domingos, pelo menos, jamais faltava o público, que saborea-

va o espetáculo a respeitosa distância. Apontavam uns para os

outros a grande chaleira de prata, que - coisa que nunca se

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vira - era aquecida eletricamente; e as maravilhosas librés dos

dois criados que transportavam xícaras e doces; fraques bran-

cos, de colarinho alto, com galões de ouro que, na gola, nas

mangas e na bainha, eram ornados de plumas de cisne. Todos

188

escutavam a conversa em inglês, seguindo, boquiabertos, cada

movimento daquela singular família lá no alto. Depois, passa-

vam diante do portal principal para gritar algumas piadas em

dialeto para o mouro, com seu veludo bordô, que ele respondia

com sorrisos de dentes alvos . . .

Klaus Heinrich viu Imma Spoelmann pela primeira vez num

alegre dia de inverno, ao meio-dia em ponto. Não se diz com

isso que já não a tivesse avistado algumas vezes antes, no tea-

tro, na rua, no parque. Mas era coisa diferente. Naquele meio-

dia, ele a viu pela primeira vez, e em circunstâncias bem ani-

madas.

Dera audiência pública até as 11h30min no Castelo Velho.

e depois não voltara imediatamente ao Eremitage, mas man-

dara o cocheiro esperar num dos pátios, enquanto ele queria

fumar um cigarro com o oficial de serviço dos Granadeiros. Co-

mo usasse o uniforme desse Regimento, ao qual também perten-

cia seu ajudante pessoal, esforçava-se por dar certa aparência de

camaradagem com os oficiais, por vezes comia em seu cassino e,

de tempos em tempos, fazia-lhes companhia, embora suspeitas-

se obscuramente que incomodava um pouco, impedindo os ca-

valhéiros de jogarem cartas e contarem piadas indecentes. Por-

tanto, com a estrela de prata convexa da Grande Ordem de

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Grimmburg no casaco do uniforme, a mão esquerda bem atrás

no quadril, estava parado junto do Sr. von Braunbart-Schellen-

dorf, que avisara em tempo daquela visita, na sala de guarda

dos oficiais, que ficava no térreo do Castelo, bem perto do Por-

tão Albrecht. E mantinha uma conversa inócua com dois ou três

cavalheiros no meio da sala, enquanto outro grupo de oficíais

conversava numa janela com nicho fundo. Como o sol estivesse

tão forte lá fora, tinham aberto a janela, e da caserna subia,

pela Albrechtsstrasse, a música e o ritmo da marcha dos solda-

dos que vinham para a troca de guarda. A igreja da Corte deu

12h. Ouviu-se lá fora o suboficial gritar, com voz rouca, o seu

"Chegaram!" na sala dos soldados; ouviram o tropel dos gra-

nadeiros que pegavam suas arïnas. O público juntava-se na pra-

189

ça. O tenente em comando afivelou a espada, juntou os calca-

nhares diante de Klaus Heinrich e saiu. De repente, o Tenente

von Sturmhahn, que olhara pela janela, chamara com aquela falsa

intimídade que reinava entre Klaus Heinrich e os oficiais:

- Que diabo, Vossa Alteza quer ver uma coisa bonita?

Aí vem a Spoelmann com seu livro de álgebra debaixo do

braço . . .

Klaus Heinrich aproximou-se da janela. Miss Imma vínha

a.pé, e sozinha, da direita, andando pela calçada. As duas mãos

no seu grande regalo que parecia umá bolsa, com a parte com-

prida coberta de rabinhos, trazia, debaixo de um braço, o cader-

no coiegial. Usava casaco comprido feito de lustrosa pele de rabo

de raposa, e gorro da mesma pele na estranha cabecinha escura.

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Obviamente, vinha dos Delfins para a Universidade. Chegou

diante da guarda principal no momento em que os homens da

troca marchavam pela sarjeta diante dos guardas, que ocupa-

vam a calçada em dois grupos, com as armas empunhadas. Ela

teria de voltar, necessariamente, rodear a banda de música e a

multidão de espectadores, se quisesse evitar a praça com seu

bonde, e fazer um desvio bem grande sobre a calçada. Ou teria

de esperar que terminassem a manobra militar. Ela não pareceu

decidir-se por qualquer das duas coisas. Mas fez menção de

atravessar entre as filas de homens sobre a calçada, diante do

Castelo. O suboficial de voz rouca saltou:

- Não pode passar! - berrou, e segurou diante dela a

coronha da carabina. - Aqui. ninguém passa! Volte! Espere!

Mas a Srta. Spoelmann ficou zangada:

- Que é que está pensando? - exclamou. - Estou atra-

sada!

Essas palavras pouco disseram, comparadas com o tom de

sincera, apaixonada e irresistível ira com que foram pronun-

ciadas. Como era pequena e singular! Aqueles soldados louros

entre os quais se postava eram uma cabeça e meia mais altos.

O rostinho dela estava pálido como cera naquele momento, suas

sobrancelhas pretas formavam sobre o nariz uma funda e expres-

190

siva ruga de raiva, as narinas de seu pequeno narizinho estavam

bem abertas, e os olhos, muito grandes e negríssimos pela exci-

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tação, falavam numa linguagem tão eloqüente e arrebatadora que

não parecia haver como objetar.

- Que é que está pensando? - gritou ela. - Eu tenho

pressa! - E com a esquerda empurrou de lado a carabina e o

militar, atônito, e passou entre as fileiras. Seguiu seu caminho,

diretamente em frente, dobrou à esquerda na rua da Universi-

dade e sumiu.

- Diabos! - gritou o Tenente von Sturmhahn. - Que

bela coisa!

Os oficiais na janela riam. Também os espectadores lá fora

se divertiam muito, e sua alegria parecia aprovar a atitude da

moça. Klaus Heinrich acompanhou a alegria geral. A troca efe-

tuou-se sob vozes de comando e sons de marcha. Klaus Hein-

rich voltou ao Eremitage.

F'ez sua refeição sozinho, à tarde deu um passeio a cavalo

no seu castanho Florian, e passou a noite, num grupo grande

na casa do Ministro das Finanças, Dr. Krippenreuther. Contou

a várias pessoas, com voz divertida, o acontecimento ocorrido

diante da guarda do Castelo, e elas ficaram encantadas pelo re-

lato, embora a história logo fosse dívulgada, caindo no conhe-

cimento geral. No dia seguinte, ele teve de viajar, pois seu irmãc

o encarregara de representá-lo na festa de inauguração da nova

Prefeitura na cidade vizinha. Por alguma razão, ele foi a contra-

gosto, e só com relutância saiu da Residência. Era como se dei-

xasse para trás algum assunto importante, feliz, embora inquie-

tante, que exigia urgentemente sua presença. Mas sua nobre

vocação era o mais importante. Contudo, enquanto ele se sen-

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tava, firme e com roupagem brilhante na cadeira de honra na

tribuna, e o Prefeito fazia seu discurso, Klaus Heinrich não

prestava atenção apenas à impressão que o povo estava tendo

dele, mas se interessava interiormente por aquele assunto novo

e urgente..Pensou também, de passagem, numa pessoa que há

longos anos conhecera brevemente, uma certa Srta. Unschlitt,

191

filha do saboeiro . . . lembrança que de certa forma se ligava

àquele assunto premente.

Imma Spoelmann empurrara de Iado o suboficial rouco,

cheia de fúria, e, sozinha, sua álgebra debaixo do braço, passa-

ra pela alameda formada por granadeiros altos e louros. Como

estava pálido seu rostinho contra o cabelo negro debaixo do

gorro de pele, e como eram eloqüentes os seus olhos! Ninguém

se parecia com ela. Seu pai, podre de rico, comprara simples-

mente um castelo da Coroa. O que dissera o Mensageiro sobre sua

involuntária fama mundial e o "aventuresco isolamento de sua

vida"? Ele atraía o ódio da multidão menos favorecida . . . fora

mais ou menos isso. De resto, as narinas dela tinham ficado in-

fladas de indignação. Ninguém se parecia com ela, ninguém.

Era um caso especial. E se naquela vez tivesse estado no Baile

Municipal? Ele teria tido uma companheira, não se teria desen-

caminhado e a noite não teria acabado em insultos e vergonha.

"Pra baixo, pra baixo com ele!" Que nojo. Quero lembrar mais

uma vez a moça andando entre os soldados louros, tão pálida,

cabelo preto, estranha.

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Esses foram os pensamentos que Klaus Heinrich alimen-

tou nos dias seguintes - só essas três, quatro fantasias. E na

verdade era de espantar como rendiam, sem que desejasse outra

coisa. Mas lhe parecia muito desejável voltar a ver logo aquele

rostinho branco.

A noite, ele foi ao teatro, onde apresentavam a ópera A

f lauta mágica. E qnando, de seu camarote, avistou a Srta. Spoel-

mann junto da C'ondessa Lüwenjoul, na primeira galeria, assus-

tou-se até o fundo do coração. Durante o espetáculo, pôde con-

templá-la na sombra, com seu binóculo, pois a luz do palco in-

cidia sobre ela. Imma apoiava a cabecinha na mão esguia, sem

jóias, o braço nu pousado à vontade na balaustrada de veludo,

e não mais parecia zangada. Usava um lustroso vestida de seda

verde-mar e um xale leve, com coloridos ramos de flores bor-

dados; no pescoço e no peito, uma longa corrente de diaman-

tes que faiscavam. Não era, afinal, tão pequena quanto pare-

192

cera, achou Klaus Heinrich quando ela se levantou, no final do

ato. Não, o feitio infantil de sua cabecinha e a estreiteza dos

ombros morenos é que a faziam parecer uma menina. Os bra-

ços eram bem-formados, e via-se que praticava esportes e mane-

java a rédea dos cavalos.

Quando chegou o diáloge "Ele é um Príncipe. É mais que

isso", Klaus Heinrich sentiu vontade de conversar com o Dr.

Überbein. Este apareceu por acaso no Eremitage no dia seguinte,

de casaco preto e gravata branca, como sempre que visitava

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Klaus Heinrích. Este lhe perguntou se já oúvira a história da

guarda. Sim, respondeu Überbein, ouvira várias vezes. Mas se

Klaus Heinrich quisesse contar de novo . . .

- Não, se a conhece - disse este, decepeionado.

Então, o Dr. Überbein falou sobre um assunto totalmente

diferente: começou a falar de binóculos de ópera, e acentuou

que eram um invento excelente. Traziam para perto o que ficava

longe, não é? Armavam pontes em direção a objetivos bem

agradáveis. O que Klaus Heinrich achava disso? Este estava in-

clinado a concordar vagamente. Aliás, contava-se que ontem à

noite ele usara generosamente esse belo invento, disse o doutor.

Klaus Heinrich não compreendeu. O doutor disse:

- Olhe, Klaus Heinrich, escute, assim não dá. As pessoas

olham para você olham para a pequena Imma, e isso basta.

Mas se você também fica olhando para a pequena Imma, isso

é demais. Reconhece?

- Ah, Dr. Überbein, nem pensei nisso.

- Mas sempre costuma pensar nesse típo de coisa.

- Estou me sentindo tão esquisito nos últimos dias -

disse Klaus Heinrich.

O Dr. Überbein recostou-se na poltrona, pegou a barba

vermelha perto do gogó e balançou lentamente a cabeça e o

corpo.

- Ah, sim? Está mesmo? - perguntou. E continuou ba-

lançando a cabeça.

Klaus Heinrich disse:

193

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- Nem imagina com que falta de gosto fui à inaugura-

ção daquela Prefeitura. E amanhã preciso assistir ao juramento

dos recrutas dos Granadeiros. E depois vem o capïtulo da Or-

dem. Não gosto nada disso. Não tenho vontade alguma de par-

ticipar. Não tenho mais vontade de representar, não tenho mais

prazer na minha chamada nobre vocação.

- Não gosto nada de ouvír isso! - dísse o Dr. Überbein

severo.

- Sím, ímagíneí que ficaría zangado, Dr. Überbeín. Cet-

tamente vaí chamar ísso de relaxamento. E falará de "destino

e tenacidade", pois eu o conheço. Mas ontem na Ópera pensei

no senhor num dado momento e me pergunteí se o senhor teria

tanta razão em alguns assuntos . . .

- Ouça, Klaus Heinrich, se não me engano, uma vez já

tive de trazer Vossa Alteza à razão, por assim dizer, puxando-o

pélas orelhas . .

- Mas aquilo foi diferente, Dr. Überbein! Ah, se o senhor

reconhecesse qüe foi bem diferente, totalmente diferente! Foi no

Jardim MunicipaI, mas isso está tão longe, tão longe, e não tenho

saudade. Pois ela é. . . Veja, o senhor um dia me explicou o que

entende por "nobreza", que ela era algo comovente e que a

gente precisa aproximar-se dela rom terna simpatia, foi o que

dísse. Não acha que aquela de quem estamos falando é como-

vente, e a gente tem de se aproximar dela?

- Talvez - disse o Dr. fJberbein. - Talvez.

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- O senhor disse muitas vezes que não se deve fugir dos

casos especiais, que é relaxamento, acomodação. Não acha que

a pessoa de quem falamos também é um caso especial?

O Dr. Überbein ficou calado.

De repente, disse com voz retumbante:

- E agora ainda quer que eu ajude a tornar esses dois

casos especiaís um caso comum?

L foi embora. Disse que tinha de voltar ao seu trabalho,

e acentuou bem a palavra "trabalho", pedindo para se retirar.

I94

Despediu-se com um jeito estranhamente cerimonioso e pouco

paternal.

Klaus Heinrich não o viu por uns 10, 12 dias. Convidou-o

uma vez para o almoço, mas o Dr. Überbein pediu muitas des

culpas, seu trabalho de momento o envolvia demais. Afinal, veio

por si. Estava nervoso e mais verde que nunca. Ficou fanfarro

nando sobre isso e aquilo e depois falou nos Spoelmann, olhan-

do para o teto e pegando o gogó. Disse que estava tudo muito

bem, que havia muita simpatia por Spoelmann, a gente sentia

por toda a cidade o quanto ele era apreciado. Primeiro, claro,

por seu potencial como contribuinte, mas também era apreciado

em geral. Simplesmente gostavam dele, em todas as camadas,

seu órgão, seu paletó desbotado e suas cólicas renais. Qualduer

aprendiz de sapateiro tinha orgulho dele e, não fosse ele tão

esquisito e retraído, haveriam de lhe demonstrar tudo isso. A

doação de 10 mil marcos para o Hospital Dorothea natural-

:

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' mente causara ótima impressão. Seu amigo Sammet lhe contara

que, com essa doação, haviam feito grandes melhorias no hospi-

tal. Aliás, estavalhe ocorrendo uma coisa! A pequena Imma

queria dar uma olhada nessas reformas amanhã de manhã,

Sammet lhe contara isso. Mandara um de seus criados debruados

i

de penas de cisne para perguntar se podia ir na manhã seguinte.

Na verdade, a miséria das crianças doentes pouco lhe interessava,

disse Überbein, mas quem sabe ela queria aprender um pou-

quinho? Amanhã de manhã, às llh, se não lhe falhasse a me-

mória. Depois falou de outras coisas. Ao sair, ainda disse:

- O Grão-Duque devia interessar-se um pouco pelo Hos-

pital Dorothea, Klaus Heinrich, estão esperando isso. Uma ins-

tituição muito abençoada. Em suma, alguém devia aparecer por

lá, mostrar o interesse do Grão-Duque. Sem querer interferir. . .

,

e então, até breve.

Mas voltou uma vez mais e, em seu rosto esverdeado, de-

baixo dos olhos, aparecera um rubor incongruente:

- Caso eu o encontrar de novo com uma tampa de ter-

rina de ponche na cabeça, Klaus Heinrich - disse em voz

195

alta -, desta vez vou deixar você sentado. - Depois apertou

os lábios e saiu depressa.

Na manhã seguinte, lá pelas l l h, Klaus Heinrich veio

do Castelo Eremitage com o Sr. von Braunbart-Schellendorf, seu

Ajudante, seguíu pela alameda das bétulas, coberta de neve, de-

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pois por ruas irregulares de subúrbio, entre casinholas pobres,

e parou diante da sóbria construção branca sobre cuja entrada

estava escrito, em grande letras pretas: "Hospital Infantil Doro-

thea." Sua visita foi anunciada. O médico-chefe da instituição

de fraque e com a Cruz Albrecht de Terceira Classe, esperava-o,

com dois médicos mais jovens e o grupo de diaconísas, no ves-

tíbulo. O Príncipe e seu acompanhante usavam capacete e casa-

cão de peles. Klaus Heinrich disse:

- Estou retomando uma antiga relação, meu caro doutor.

O senhor esteve presente no meu nascimento. E também esteve

junto do leito de morte de meu pai. Além disso, é amigo da

meu professor, o Dr. Überbein. Muito prazer.

O Dr. Sammet, encanecido na sua atividade de brandura,

curvou-se, a cabeça inclinada para o lado, a mão na corrente do

relógio, o cotovelo° preso ao corpo. Apresentou ao Príncipe os

dois médicos mais jovens e a superiora, e cïisse:

- Devo participar a Vossa Alteza que sua visita coincide

com outra. Sím. Estamos aguardando a Srta. Spoelmann. Seu

pai fez uma doação muito generosa à nossa instituição . : . Não

poderíamos.. desmarcar uma visita já combinada. . . A superio-

ra vai conduzir a moça.

Klaus Heinrich escutou amavelmente a notícia desse en-

contro. Depois, fez um comentário sobre a veste das diaconisas,

que chamou "bonita", e declarou que estava ansioso por ver

toda aquela a.bençoada instituição. Começaram a ronda. A su-

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periora ficou com duas irmãs no vestíbulo.

Todas as paredes da casa eram caiadas de branco, e lavá-

veis. As torneiras eram muito grandes; eram manejadas com os

cotovelos, devido à higiene. Havia aparelhos com duchas para

as garrafas de leite. Atravessaram a sala de recepção, vazia, ex-

196

ceto por algumas camas não usadas e as bicícletas dos mÁdicos.

Um consultório, ao lado, contínha, além da escrivanínha e do

cabide com os aventais brancos dos médicos, uma espécie de

cômoda para trocar fraldas, com travesseiros de oleado, mesa

de operações, armário com alimentos e uma balança de bebê em

forma de gamela. Klaus Heinrich parou diante dos alimentos e

pediu explicação sobre como eram preparados. O Dr. Sammet

pensou com seus botões que, se continuassem a visita com.

aquela minúcia toda, se perderia muito tempo.

De repente, rumores na rua. Um automóvel parou buzinan-

do diante da casa. Alguém gritou "viva", ouviu-se nitidamente

na sala de consultas, embora fossem apenas crianças gritando.

Klaus Heinrích não ligou muito para esses acontecirnentos. Con-

templava uma lata com leite em pó que nada, tinha de especial.

, - Parece que vem visita - disse. - Ah, é verdade, o

, senhor disse que viria gente. Pod°mos continuar?

Foram depois à cozinha, à sala de preparação do leite, apo-

sento grande, de azulejos, onde, além de prepará-lo, guardava-

sd o leite integral, a nata e o soro. As quantidades diárias esta-

vam em frasquinhos sobre mesas brancas e limpas. No ar, pai-

rava um cheiro azedo.

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Klaus Heinrich dedicou também toda a sua atenção a essa

sala. Chegou ao ponto de provar o soro, achando-o eX elente. As

crianças deviam florescer com aquele alimento, comentou. Du-

rante esse exame, a porta se abriu e a Srta. Spoelmann entrou

com a madre e a Condessa Lõwenjoul, seguida de três diaco-

nisas.

Naquele dia, o casaco, o gorro e o regalo que ela vestia

.eram de uma belíssima zibelina, e o regalo estava preso a uma

corrente dourada, com coloridas pedras preciosas. O cabelo preto

da moça tendia a cair sobre a testa em mechas lisas. Ela avaliou

a sala toda com os olhos grandes - eram realmente muito

grandes, em comparação com seu rostinho; dominavam-lhe a

fisionomia, como nos gatinhos -, só que eram pretos como car-

vão, e tinham aquela linguagem fluente . . . A Condessa Lõwen-

197

joul, chapeuzinho de penas na cabeça pequena, vestida de modo

simples, modesto mas digno, como sempre, tinha um sorriso dis-

tante.

- A cozinha onde preparamos o leite para as crianças -

disse a superiora.

- Eu imaginava que fosse isso - respondeu a Srta. Spoel-

mann.

Disse isso depressa, de modo superficial, sem sotaque in-

glês, com lábios em bico e um pequeno meneio altivo da cabe-

cinha. Sua voz era dupla: constava de um tom alto e um baixo,

c no meio uma fissura.

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A superiora estava consternada:

- Sim - disse -, a gente logo vê. - Em seu rosto,

notava-se uma leve expressão de sofrimento.

A situação não era simples. O Dr. Sammet perguntou o

que Klaus hleinrich desejava; mas este estava habituado a agir

sempre segundo fórmulas rígidas, não a ordenar situações novas

e confusas, de modo que todos ficaram perplexos por algum

tempo. O Sr. von Braunbart estava na iminência de agir, como

intermediador, e de outro lado a Srta. Spoelmann queria deixar

a sala de preparação do leíte, quando o Príncipe executou com

a mão direita um pequeno gesto de ligação entre ele e a moça.

Era o sinal para o Dr. Sammet dirigir-se a Imma Spoe(mann.

- Dr. Sammet. Sim. - Pediu a honra de poder apre-

sentar a ilustre jovem a Sua Alteza Real. . . - Srta. Spaelmann,

Alteza Real, filha de Mr. Spoelmann, a quem o hospital tanto

deve.

Klaus Heínrich, calcanhares unidos, estendeu-lhe a rnão com

a luva branca de militar e, ao colocar ali sua mãozinha estreita,

vestida de couro castanho de veado, ela fez um gesto, um aperto

de mãos inglês, enquanto, com a graça brusca de um pajem, fez

menção de executar uma mesura, sem afastar do rosto de Klaus

Heinrich seus olhos grandes como estrelas. Ele disse uma coisa

muito inteligente:

- Então, também está visitando o Hospital, senhoríta?

198

E, depressa como antes, com os lábios em bico e aquele

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breve gesto altivo da cabecinha, ela respondeu:

- Não se pode negar que isso parece óbvio.

O Sr. von Braunbart ergueu involuntariamente a mão num

gesto de horror, o Dr. Sammet olhou o relógio em sua corrente,

houve comentários, e um dos jovens médicos bufou, um som

nada adequado. Viram então a breve expressão de dor no rosto

de Klaus Heinrich, que disse:

- Claro . . . uma vez que a senhorita está aqui . . . então,

podemos visitar juntos a casa . . . Capitão von Braunbart, meu

Ajudante - acrescentou depressa, pois achou que seu comen-

tário mereceria outra observação como a anterior. Ela disse:

- Condessa Lówenjoul.

Esta fez uma digna mesura - aliás, com um sorriso mis-

terioso, olhando de soslaio para um ponto ignorado, com ar es-

tranhamente sedutor. Mas quando se ergueu de novo, e seu sin-

gular olhar esquivo voltou para Klaus Héinrich, parado à sua

frente em postura militar, o sorriso sumiu do rosto dela, agora

dominado por uma expressão de amargura e lucidez. E seus

olhos cinzentos, um pouco inchados, pareceram brilhar com algo

semelhante ao ódio . . . mas foi tudo muito breve. Klaus Hein-

rich não teve tempo delhe dar atenção, logo esquecera tudo.

Os dois jovens médicos foram apresentados a Imma Spoelmann.

Depois, Klaus Heinrich concordou em recomeçarem a visitação.

Subiram a escada do primeiro andar: Klaus Heinrich e Im-

ma Spoelmann à frente, acompanhados pelo Dr. Sammet, de-

pois a Condessa Lówenjoul com o Sr. von Braunbart, e por

fim os médícos. Ali ficavam as crianças maiores. Até 14 anos.

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Uma ante-sala com armários de roupas dívidia as salas dos

meninos e das meninas. Em caminhas brancas, de grades, na

cabeceira um cartaz com o nome, aos pés uma placa reversí-

vel com tabelas de peso e temperatura, vigiadas por uma en-

fermeira de toucado branco, rodeadas de ordem e limpeza,

jaziam as crianças enfermas. Na sala, ouvíam-se tosses inces-

199

santes, enquanto Klaus Heinrich e Imma Spoelmann andavam

entre as fileiras de camas.

Por cortesia, ele ficava do lado esquerdo e sorria como

fazia quando o conduziam em alguma exposição, ou inspecio-

nava fileiras de veteranos, ginastas ou companhias de honra.

Mas sempre que virava o rosto para a direita notava que

Imma Spoelmann o contemplava - seu olhar encontrava o

dela, grande e negro, dírigido para ele, avaliador, com uma

lustrosa e séria interrogação. Era muito estranho, Klaus Hein-

rich achava nunca ter experimentado algo tão estranho quanto

aquela maneira da moça o contemplar com seus grandes

olhos, tão desprovida de consideração em relação a ele e a todos,

um olhar direto e livre, despreocupado, sem ligar para a pos-

sibilidade de alguém estar notando. Quando o Dr. Sammet pa-

rava um pouco, junto a alguma caminha, para explicar o caso,

como o da menina cuja perna, quebrada e enrolada em ataduras

brancas, estava presa em posíção bem vertical, a Srta. Spoel-

mann escutava, atenta, via-se isso; mas enquanto escutava não

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olhava para o interlocutor: seus olhos iam de Klaus Heinrich

para a criança, que, magra e silenciosa, mãos cruzadas sobre

o peito, deitada de costas, erguia os olhos para eles. Imma

olhava para o Príncipe e aquele pequeno caso médico que lhes

estava sendo explicado, e ia de um para outro como se qui-

sesse avaliar o quanto ele participava de tudo aquilo, ou pro-

curasse no rosto dele o efeito das palavras do Dr. Sammet.

Não se sabia bem. Sim, foi o mesmo com o menino que levara

um tiro no braço, e o outro, do qual se tinha de retirar água:

dois casos tristes, comentou o Dr. Sammet.

- Uma tesoura de ataduras, irmã - disse ele, e mos-

trou-lhes o ferimento duplo no braço do menino, a entrada e

a saída de uma bala de revólver. - O próprio pailhe causou

esse ferímento - disse o médico, em tom abafado, aos seus

visítantes, voltando as costas para a caminha. - Esse aí teve

sorte. O homem atirou na mulher, em três de seus filhos e em

si mesmo, com um revólver. Nesse menino, errou o tiro . . .

20'0

Klaus Heinrich olhou o ferimento duplo.

r

-- Mas por que o homem fez isso? - perguntou timí-

damente, e o Dr. Sammet respondeu:

- Desespero, Alteza. Foi levado a isso pela miséria e

pela vergonha. É. - E não disse mais nada, só esse comen-

tário bem geral, como ao falar do menino de quem tinham de

retirar água, um menino de 10 anos. - Está roncando -

disse o médico -, ainda tem água no pulmão. Foi retirado

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do rio esta manhã . . . sim. É pouco provável que tenha caído

na água. Vários indícios contrariam isso. Ele fugiu de casa.

- Calou-se.

E Klaus Heinrich viu novamente que a Srta. Spoelmann

o fitava com olhos grandes, negros, lustrosos e graves - um

olhar que procurava o dele, parecendo convidá-lo a imagínaz

· com ela aqueles casos "tristes", a concretizar em espírito as

alusões que o Dr. Sammet estava fazendo, chegar às terríveis

verdades que aquelas duas cri.anças representavam . . . Uma me-

nininha chorou amargamente quando se colocou junto de sua

caminha o aparelho de inalação, que chiava e fumegava, junto

' com uma tampa de papelão cheia de desenhos coloridos. A

Srta. Spoelmann curvou-se para a criança:

- Não dói - disse, imitando a fala infantil. - Nem

um pouquinho. Não chore. - E, ao se levantar de novo,

acrescentou depressa, repuxando os lábios: - Acho que ela

não chora tanto por causa do aparelho, mas dos desenhos.

Todos riram. Um dos jovens assistentes levantou a tampa

de papelão e riu ainda mais ao contemplar as figuras. Passa-

ram para o laboratório. Klaus Heinrich pensava na singular zom-

baria da Srta. Spoelmann. "Eu imagínava que fosse isso" tinha

dito, e "não tanto por causa do aparelho . . . " Era como se

não se divertisse apenas com os desenhos, mas com as expres-

sões ásperas e escolhidas que usava com tanta habilídade e

rapidez. E essa era, provavelmente, a mais absoluta forma de

zombaria que se podia imaginar . . .

201

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O laboratório era o maior aposento da casa. Vidros, retor-

tas, funis e produtos químicos repousavam sobre prateleiras,

e havia preparados em álcool, que o Dr. Sammet explicou

aos visitantes com palavras firmes e calmas. Uma criança mor-

rera sufocada de modo inexplicado: ali estava sua laringe, com

excrescências em forma de cogumelo em lugar das cordaa vocais.

Sim. Isso aqui no vidro foi um rim de criança que aumentou

morbidamente; e aquilo são ossos deformados. Klaus Heinrich

e a Srta. Spoelmann olharam tudo aquilo, olharam juntos os

vidros que o Dr. Sammet segurava diante da janela, e em seus

olhos havia uma expressão contemplativa, enquanto, em torno

de suas bocas, se mostrava o mesmo leve traço de repulsa.

Também olharam um após o outro no microscópío, contempla-

ram, com o olho baixado sobre a lente, uma secreção doenti.a,

uma matéria azulada passada numa plaquinha de vídro mos-

trando pontinhos mimísculos ao lado da mancha grande: eram

bacilos. Klaus Heinrich quis deíxar a Srta. Spoelmann aproxi-

mar-se prímeíro do microscópio, mas ela recusou, erguendv as

sobrancelhas e fazendo um bico como se quisesse dizer em tom

,

exagerado: "Ah, de jeito nenhum!" Enão ele se adiantou�

pois achou que real.mente não teria importância quem contem-

plasse primeiro uma coísa tão grave e terrível como bacilos.

lepois, foram conduzidos ao segundo andar, onde ficavam os�

bebês .

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Os dois riram com o berreiro de muitas vozes que reboava

já na escada. Em seguída, andaram com seus acompanhantes

por entre as caminhas, curvaram-se ladv a lado sobre as calvas

criaturas que dormiam de punhos cerrados ou gritavam com

todas as forças, mostrando as bocas desdentadas - taparam os

ouvídos e riram de novo. Numa espécie de forno em que se

produzia um calor sempre igual, jazía um prematuro. O Dr.

Sammet mostrou aos n.obres visitantes uma criança pobre, ter-

rivelmente cadavérica, com mãos grandes e feias, sinal de um

parto pubre e difícil. . . Tirou da caminha a criança, que ber-

rava, e ela se calou imedíatamente. Apoiou habilmente em sua

202

mão aquela cabecinha frouxa e apresentou a criaturinha ver-

melha; pestanejante, que se torcia em movimentos crispados,

a Klaus Heinrich e Imma Spoelmann, que, parados lado a lado,

contemplavam o bebê. Calcanhares unidos, o Príncipe viu o

Dr. Sammet devolver o bebê ao berço; virando-se, deparou,

como esperara, com o olhar brilhante e perquiridor de Imma.

Por fim, chegaram perto de uma das três janelas da sala

e olharam para uma rua de bairro pobre, de subúrbio, onde,

rodeados de crianças, aguardavam a carruagem castanha da

Corte e o automóvel de Imma, um carro magnífico, verme-

Iho-escuro, estacionados um atrás do outro. O motorista dos

Spoelmann, em seu imenso casacão de peles, recostava-se bem

para trás, mão no volante, vendo seu camarada, o criado de

uniforme branco, conversar com o cocheiro de Klaus Hein-

rich, lá na frente, no cupê.

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, - Os vizinhos daqui - disse o Dr. Sammet, que er-

gua a cortina de tule branco - são também pais de nossos

pacíentes. Nas noites de sábado, os pais embriagados passam

aqui na frente, cantando. É.

Ficaram parados, em silêncio, mas o Dr. Sammet não

falou mais sobre os pais. E então foram embora. Tinham visto

tudo.

O pequeno cortejo, Klaus Heinrich e Imma à frente, des-

ceu as escadas e, no vestíbulo, as irmãs estavam novamente

agrupadas. Todos se despediram, batendo calcanhares e fazendo

mesuras. Klaus Heinrich, em postura formal diante do Dr.

Sammet, que escutava inclinando a cabeça de lado e pondo a

mão na corrente do relógio, expressou-se em frases positivas

sobre o que vira ali, sentindo os grandes olhos de Imma

Spoelmann grudados nele. Junto com o Sr. von Braunbart,

ele acompanhou as damas até o carro, depois de terminadas as

despedidas dos médicos e irmãs. Enquanto passavam pela cal-

çada, entre crianças e mulheres com bebês nos braços, e tam-

bém junto do carro, Klaus Heinrich e a Srta. Spoelmann tive-

ram o seguinte diálogo:

203

- Foi uma grande alegria para mim encontrar a senho-

ra - disse ele.

Ela não respondeu, apenas avançou os lábios, movendo

um pouco a cabeça.

- Foi uma visita muito interessante - acrescentou ele.

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- Tivemos uma série de informações.

Ela o encarou com olhos grandes e negros. Depois disse,

depressa, superficialmente, com sua voz rouca:

- Ah, sim, de certa forma . . .

Ele disse:

- Espero que a senhora goste do Castelo dos Delfins.

E ela respondeu com lábios em bico:

- Ora, por que não? Uma casa bem conveniente.

- Prefere o Castelo a Nova Iorque? - perguntou ele.

E ela retrucou:

- Da mesma forma. É bem parecido. mais ou menos�

a mesma coisa em toda parte.

Isso foi tudo. Klaus Heinrich e o Sr. von Braunbart, um

passo atrás dele, ficaram parados, mãos nos capacetes, quando

o motorista deu a partida e o carro foi em frente, estreme-

cendo.

Naturalmente, esse encontro não permaneceu por muito

tempo como assunto interno do Hospital Dorothea. Ao con-

trário, no mesmo dia estava em todas as bocas. O Mensageiro

publicou, sob título suavemente poético, uma descrição deta-

Ihada do encontro, que, sem corresponder exatamente à rea-

lidade nas minúcias, mesmo assim arrebatou os leitores; de

fato, causou tamanha avidez no público que o atento jornal

se viu levado a ficar de olho em outras aproximações entre

as famílias Grímmburg e Spoelmann. Não havia muito a con-

tar. O jornal comentou algumas vezes que Sua Alteza, o Prín-

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cipe Klaus Heinrich, atravessando a primeira galeria após a

apresentação do Teatro da Corte, parara por um tnomento

diante do camarote dos Spoelmann, para cumprimentar as se-

nhoras. E no seu relato sobre o costumeiro bazar beneficente

204

que se realizava no salão da Prefeitura em m ados de janeiro� �

- acontecimento elegante, do qual Miss Spoel nann participou

como vendedora por insistente convite da cor ússão organiza-

dora -, houve razoável espaço dedicado à descrição desta cena:

o Príncipe Klaus Heinrich parara diante da tenca atene?icia pela�

Srta. Spoelmann, durante a visi.ta da Corte, comprara dela um

objeto de arte em vidro (pois a Srta. Spoelmann vendia por-

celanas e objetos de vidro) e ficara diante da tenda uns oito

ou 10 minutos. Mas nada se dizia do conteúdo das conversas.

Mesmo assim, o encontro tivera resultados.

A Corte (com exceção de Albrecht) aparecera no salão da

Prefeitura por volta do meio-día. Quando Klaus Heinrich vol-

tava para o Eremitage com seu objeto de vidro enrolado em

papel de seda sobre os joelhos, fizera-se anunciar no Castelo

dos Delfins, dizendo de sua intenção de ver o Castelo em seu

novo estado e, nessa oportunidade, apreciar a coleção de vi-

dros artísticos do Sr. Spoelmann. Pois entre as mercadorias

de Miss Spoelmann havia três ou quatro cálices antigos que seu

pai retirara pessoalmente da coleção, doando-os ao bazar, e

Klaus Heinrich comprara um deles.

Mas uma vez ele se reviu sozinho diante de Imma Spoel-

mann, no semicírculo das pessoas que os contemplavam, sepa-

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rado dela pela mesinha da barraca, com seus cálices, frascos,

grupos de porcelana brancos e coloridos. Reviu-a em sua fan-

tasia vermelha, que feita de uma só peça envolvia sua figura

bem-feita, mas ainda assim infantil, deixando livres os ombros

morenos e os braços redondos e firmes, com pulsos de criança.

Ele revia c. ornamento dourado, meio coroa, meio diadema,�

no negror do seu cabelo solto, que tendia alhe cair sobre a

testa em mechas lisas, os olhos excessivamente grandes, pretos

e lustrosos, interrogativos, no rostinho pálido, a boca cheia

e macia que ao falar ela armava num biquinho desdenhoso de

pessoa mimada - e ao redor dela, na grande sala abobadada.

pairava um cheiro de pinheiros e havia uma zoeira confusa,

música, batidas de gongo, risos e pregões.

205

Admirara o vidro artístico que ela lhe oferecera para com-

prar,eum antigo cálice nobre com folhas de prata que, segundo

ela, vxnha da coleção do pai. Então, o pai dela possuía mais

desses belíssimos objetos? Sim. E provavelmente o pai não esco-

lhera as melhores peças para o bazar. Ela não duvidava de que

ele possuía vidros bem mais bonitos que aqueles. Klaus Hein-

rich desejava vê-los! Bem, isso não seria difícil de resolver, dis-

sera a Srta. Spoelmann com sua voz rouca, avançando os lábios

e movendo de leve a cabecinha. Dissera que o pai não se opo-

ria a mostrar a um visitante entendido os frutos de sua cole-

ção. Os Spoelmann estavam sempre em casa na hora do chá.

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' ?' Ela fizera tudo muito educadamente, transformara a afir-

mação em convite, falando em tom bem casual. Por fim, quan-

do Klaus Heinrich perguntara em que dia isso poderia acon-

,

tecer, ela respondera:

- Quando quiser, Príncipe. Ficaremos indizivelmente fe-

lizes . . .

"Indizivelmente felizes" - ela dissera isso de modo tão

ferino e zombeteiro que quase lhe doera, e só com esforço

ele conseguira manter no rosto uma expressão simpátíca. E co-

mo ela deiaara confusa e chocada a pobre superiora, outro dia,

no hospital! Mas, mesmo assim, havía em sua maneira de falar

algo infantil, sim, certos sons brotavam como se pronunciados

por uma criança . . . não apenas naquela vez em que consolara

a menininha no vaporizador. E abrira de tal maneira os olhos

quando o médíco falara dos pais e daqueles casos tristes..

No dia seguinte, Klaus Heínrich tomou seu chá no Cas-

telo dos Delfins - dois dias depois, também. Imma Spoelmann

dissera que ele poderia voltar eventualmente. Dois dias depois,

porém, ele sentíra vontade e achara que, sendo seU assunto

i urgente, não o deveria adiar.�

Por volta das 5h - já estava escuro - seu cupê o

levou pelo chão macio e encharcado do Parque MunicipaI, des-

pido e vazio - onde ele passava agora, já era propriedade dos

Spoelmann -, com lampiões iluminando o parque. O grande

,. .

206

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tanque d'água com a fonte rebrilhava foscamente entre as ár-

- vores, Por trás disso tudo, erguia-se o castelo esbranquiçado

com o portal de colunas, a ampla rampa dupla de acesso, que,

embutida nas duas alas do edifício, subia brandamente para o

andar térreo, as altas janelas divididas em pequenas vidraças,

os bustos romanos nos nichos - e quando Klaus Heinrich

' passou pela alameda de chegada, entre imensos castanheiros,

viu aos pés da rampa o mouro vestido de veludo bordô, fazen-

do guarda com seu bastão. . .

Klaus Heinrich entrou no vest'bulo de pedra, bem-ilu-

minado e levemente aquecido, com assoalho de mosaicos dou-

rados e brancas ímagens de deuses ao redor, andou em frente,

em direção à escada de mármore de balaustrada larga, atape-

tada de vermelho, da qual desceu, com ombros erguidos e bra-

ços caídos, barrigudo e altivo, enfeitado pela dupla papada

escanhoada, o mordomo de Spoelmann para receber o convida-

do. Levou-o para a ante-sala do andar de cima, revestída de

tapeçarias e enfeitada com uma lareira de mármore, onde dois

criados de roupas brancas e douradas com plumas de cisne

pegaram o gorro e o manto do Príncipe, enquanto o mordomo

ia pessoalmente avisar seus amos . . . Klaus Heínrich passou

pelos dois criados, que afastaram uma pesada cortína, e subiu

um ou dois degraus.

Foi rodeado por um aroma de plantas e ouviu o brando

rumor de água caindo. Mas, no momento em que a cortína foi

novamente baíxada atrás dele, irrompeu um latido tão súbito e

enlouquecido que, atordoado, Klaus Heinrich parou ao pé da

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escada, Percival, o cachorro collie, jogara-se em címa dele, e

parecia possesso. Espumava, sofria, não sabía como se portar,

tão enlouquecído que estava, retorcía-se, batía com a cauda

nos flancos, enfiava as patas dianteiras no chão e, numa cega

paixão, girava sobre si mesmo, parecendo desmanchar-se todo

em latidos e agitação. Uma voz - não a voz de Imma -

chamou-o de volta e Klaus Heinrích se viu num jardim de in-

verno, uma abóbada de vidro apoiada em esguias colunas de

207

1

mármore, o chão de grandes lajes de mármore quadradas e es-

pelhantes. Palmeiras de toda sorte enchiam o aposento, com

os leques e fustes por vezes atíngíndo o teto de vídro. Incon-

táveís vasos de flores unidos entre sí como as pedras de um

mosaico formavam um falso jardim sob a intensa luz de luar

dos lampiões, enchiam o ar de perfumes. De um belo chafariz

lindamente esculturado, corriarn fontes prateadas que tomba-

vam num tanque de mármore, e patos de penugem singular-

mente bonita nadavam na superfície iluminada das águas. O

fundo da sala era ocupado por um passeio de pedra com colu-

nas e nichos.

Foí a Condessa Lõwenjoul que veio ao encontro dele, cur-

vando-se e sorrindo.

- Queira Vossa Alteza perdoar - disse ela. - Nosso

Percy é muito fogoso. E está muito pouco acostumado a vísí-

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tas, agora. Mas não faz mal a ninguém. Posso pedir a Vossa

Alteza . . . a Srta. Spoelmann voltará logo. Há pouco ainda

estava aqui, mas o pai a chamou. Mr. Spoelmann vai ficar

muito contente . . .

E, dizendo isso, levou Klaus Heinrich a um grupo de ca-

deiras de vime forradas com almofadas de linho bordadas,

diante de um grupo de palmeiras. Ela falava com vivacidade

e íntensídade, a cabecínha com o ralo cabelo Iouro-cinza in-

clinada para o lado; sorríndo, mostrava os dentes aIvos. Sua

figura era decididamente distinta, com vestido marrom justo;

levou Klaus Heinrich até as cadeiras, esfregando as mãos

animadamente, com os movimentos elegantes e repousados de

uma mulher de oficial. Somente em seus olhos, cujas pálpe-

bras ela encolhia, pestanejando, havia algo parecido com falsi-

dade ou suspeita, algo incompreensível. Sentaram-se um diante

do outro à mesinha redonda de jardim, sobre a qual havia

alguns livros. Percival, exausto do acesso que sofrera, deitou-se

enrodílhado no estreíto tapete de cores pálídas, com um brilho

nacarado, sohre o qual estavam os móveis. Seu pêlo preto e

sedoso era branco nas patas, peito e focinho. Ele tinha pêlos

208

i

i

branws no pescoço, olhos dourados e uma repartição no pêlo�

ue Icscia da cabeça ao lombo. Klaus Heinrich começou a con-�

q

versar. apenas por conversar, um diálogo formal sobre exte-

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riorilales, única conversa que sabia entabular.� �

- Condessa, eu gostaria de não importunar. Fico feliz

se pul" menos não me julgarem um intruso. Não sei se a Srta.

Spoe:mann lhe contou... Ela teve a bondade de me animar

( alhc. s Eazer uma visita. Trata-se dos belos vidros que o Sr.

Spoclmann teve a generosidade de doar para o bazar. A

Srta. poelmann achou que seu pai não se importaria de me mos-�

ill

trar <ua coleção. E por isso estou aqui . . .

Condessa não revelou se Imma lhe falara dessa com-

binac:io. Disse:

, Esta é a hora do chá na casa, Alteza Real. Como pode-

' Alte7a im ortunar Mesmo que o que espero não� �

rta asa . p . ,� �

acon .. . a, Mr. Spoelmann estivesse impedido de aparecer por� �

moti .a , de saúde . . .�

-- Ah, ele está doente? - Na verdade, Klaus Heinrich

dese;. a um pouquinho que o Sr. Spoelmann não pudesse apa-� �

recer. l'ensava nesse encontro com indefinida preocupação.

- Ele esteve adoentado hoje, Alteza. Infelizmente, teve

febru. calafrios e até um pequeno início de desmaio. De ma-

nhã, Dr. Watercloose esteve por longo tempo com ele. Deu-� �

lhe ; ma injeção de morfina. Não se sabe se não será preciso

operar mais uma vez.

-- Lamento muito - disse Klaus Heinrich, sincero. -

Oper;r. Terrível. - E a Condessa respondeu, desviando 0�

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olhm:�

- Ah, sim. Mas há coisas mais terríveis na vida . . . mui-

tas "isas bem mais terríveis do que isso.�

- Sem dúvida - disse Klaus Heinrich. - Acredito. -

Ele sentia sua imaginação estímulada pela alusão da

Confssa.� �

l la o encarou inclinando a cabeça de lado, e em seu rosto�

surin uma expressão de menosprezo. Depois, seus olhos cin-�

209

zentos, um pouco inchados, esquivaram-se para um lado, não

se sabia para onde, com um sorriso enigmático que Klaus Hein-

rich já conhecia e que tinha algo de sedutor.

Ele teve necessidade de retomar o diálogo.

- Condessa, mora há muíto tempo na casa dos Spoel-

mann? - perguntou.

- Bastante tempo - respondeu ela, e via-se que tentava

calcular. - Bastante tempo. Passei por tanta coisa, tive tantas

experiências, que naturalmente não posso mais dizer a data.

Mas foi pouco depois do benefício . . . logo depois de me faze-

rem o benefício.

- Benefício? - perguntou Klaus Heinrich.

- Exatamente - respondeu ela com determinação, e até

um pouco irritada. - Pois o benefícío foi feito em meu favor,

quando as experíências se tornaram demasiadas e o arco estava

retesado a ponto de rebentar, se me permite a comparação. O

senhor é tão jovem - prosseguiu ela, esquecendo-se de usar

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o título adequado -, tão ignorante da desgraça e pervc'rsidade

do mundo, que não pode iXnaginar o que sofri. Nos Estados

Unidos, sofri um processo ao qual precisaram comparecer mui-

tos generaís. Tornaram-se públicas coisas que eu não estava à

altura de suportar. Tive de limpar todas as casernas sem con-

seguir fazer sair todas aquelas mulheres repulsivas. Elas se es-

condiam nos armários, algumas debaíxo do assoalho, e assím

é que continuam a me martirizar à noite, insuportavelmente.

Eu preferiria me recolher, isolada, a meus castelos na Borgo-

nha, se não chovesse tanto. Os Spoelmann sabiam disso, por

isso foram tão generosos, aceitando-me em sua casa por en-

quanto, e minha única tarefa é prevenir Imma, tão absoluta-

mente inocente, das coisas do mundo. Naturalmente, minha

saúde sofre pois, à rioite, aquelas mulheres se sentam sobre

meu peito e me forçam a encarar suas caras indecentes. E por

isso eu peço que me chame simplesmente de Sra. Meier -

disse ela num sussurro, tocando o braço de Klaus Heinrich,

inclinada para a frente. - As paredes têm ouvidos, e é absolu-

210

tamc m necessário que eu mantenha a personalidade incógnita� �

que ;:snmi, para me proteger da perseguição das criaturas pe-�

camim ,as. Tudo é irreal, atenda ao meu pedido. Encare tudo

comv ;iada... uma brincadeira que não vai prejudicar nin-�

guém Por que não . . .

, :i, emudeceu.�

: ,; aus Heinrích mantinha-se ereto em sua cadeira de vime

diantu lela, sem qualquer sinal de estar relaxado, olhando para�

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ela. tlmcs de sair dos seus aposentos retangulares, ele se vestíra

com v ulo o cuidado, com a ajuda do Camareiro Neumann,�

fazerni, a toalete que sua existência pública exigia. O repartido�

de se:: cabelo iniciava-se sobre o olho esquerdo e corria, oblí-

quo, iuÍa cabeça, atravessando exatamente o redemoinho, de�

mode yue, no alto, não apareciam mechas nem se erguíam�

cabeli,os, e à direita seu cabelo era firmemente escovado, ex-���

ponde a testa.�

,tn o casaco do uníforme, de colarinho alto e corte fír-�

me a ; avorecerem uma postura controlada, sentava-se Klaus

Heinr:o, nos ombros estreitos as ombreiras de prata entran-�

çadas , v Major, recostando-se muito de leve na cadeira, sem��

se pev,:;otir postura confortável, ordenado, concentrado, um pé

um i,:mo à frente do outro, cobrindo, com a direita, a mão�

esque .,i sobre o punho da espada. Seu rosto jovem estava um�

poaa: i atigado pela falta de objetividade, pela solídáo, seve-

ridad dificuldade de sua vída; com uma expressão amável,� ��

clara . iotalmente controlada, ele encarava a Condessa.

:a emudecera. Seus traços foram dominados pela lucidez e�

pela mn.rgura e, enquanto em seus olhos pareceu lampejar o�

ódio ,mr Klaus Heinrich, ela mudou de cor, de maneira estra-�

nha . v.ra, a metade do rosto ficou vermelha, a outra pálida.� �

E rca "ndeu de olhos baixos:�

Estou há três anos com a família Spoelmann, Alteza

Real.

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i'crcival ergueu-se de um salto. Em seu trote ágil, dan-

çarinu ; elegante, foi ao encontro de sua ama - pois Imma�

211

'' ' Spoelmann entrara -, ergueu-se dignamente e colocou, ern sau-

dação, as patas dianteiras no peíto dela. A goela bem aberta,

a língua aparecendo, cor de sangue, entre os magníficos dentes

brancos, parecia um animal heráldico, postado ereto diante

li '..' dela.�

Ela usava um traje magnífico: um vestido de casa, de seda

crua cor de telha, mangas abertas caídas, o peito feito de um

bordado a ouro pesado. Do colar de pérolas pendia uma gran-

de pedra preciosa em formato oval sobre o pescoço nu, cor de

espuma do mar esfumaçada. Seu cabelo preto-azulado, repar-

tido do lado e preso num nó muíto simples, tendía a lhe cair

em mechas Iísas sobre têmporas e testa. Enquanto ela pegava

a cabeça de Percival com suas duas mãos de criança, bonitas,

estreítas e nuas, disse no focinho dele:

- Isso . . . isso : . . bom dia, amigo. Que encontro. Nós

dois morremos de saudade, sofremos todos os tormentos da se-

paração. Bom dia. Agora, pode voltar para sua cama. - E,

tirando as patas dele do bordado de ouro de seu peito, e des-

viando-se para um Iado, ela o fez parar sobre as quatro patas.

- Ah, senhor Príncipe - disse ela. - Bem-vindo aos Delfins.

Vejo que detesta quebrar a palavra dada. Vou me sentar com o

senhor. Vão nos avísar quando pudermos tomar chá . . . Sem

dúvida, é contra toda a etiqueta eu tê-lo feito esperar. Mas meu

pai me chamou . . . e além disso o senhor tinha com quem

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falar . . . - Seus olhos lustrosos passaram algum tempo cheios

de dúvida entre Klaus Heinrich e a Condessa.

- Sim - disse e1e -, eu tinha.

Depois perguntou pelo estado de Mr. Spoelmann e obteve

resposta tranqüilizadora. Durante o chá, ele teria prazer em

conhecer Klaus Heínrích; até lá, pedia que o desculpasse . . .

Que belos cavalos estavam com o cupê de Klaus Heinrich . . .

Agora, falavam de seus cavalos, de Florian, o castanho bona-

chão de Klaus Heinrích, da criação de Hollerbrunn e da égua

tordilha de Miss Spoelmann, uma puro-sangue árabe chamada

Fátima, que o Sr. Spoelmann recebera de presente de um

212

príncipe oriental, e dos rápídos cavalos húngaros que puxavam

a carruagem dela. . .

- Conhece a região? - perguntou Klaus Heinrich. -

Estuve no Castelo de Caça, no jardim do Castelo dos Faisões?

Ha passeios muito lindos.

Não, a Srta. Spoelmann não tinha qualquer habilidade

em :3escobrir novos passeios, e a Condessa . . . bem, por natu-

reza, não gostava muito de aventuras. Por isso, cavalgavam sem-

pre pelos mesmos caminhos no Parque Municipal. Talvez fosse

teclioso, mas a Srta. Spoelmann não era muito amiga de aven-

tur.m e mudanças. Então, ele dísse que podiam cavalgar jun-

tos um dia, com bom tempo, para o Castelo de Caça ou o

des C'aisões, e ela respondeu, avançando os lábios, que se podía�

pensar nisso. Depois, apareceu o mordomo, anunciando grave-

men e que a mesa do chá estava preparada.�

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Passaram pelo vestíbulo dos tapetes com lareira de már-

mor, dirigidos pelo mordomo de passo majestoso, acompanha-��

dos pelo inquieto Percy e seguidos da Condessa Lõwenjoul.

- A Condessa andou soltando a língua há pouco? - per-

gunu:u Imma, andando, sem cuidar especialmente de baixar a�

voz

Klaus Heinrich assustou-se e olhou para o chão.

- Ela pode nos ouvir! - dísse, em voz baíxa.

- Não, ela não nos oave - respondeu Imma. - Co-

nhe- a expressão dela. Quando anda assim de cabeça inclina-�� �

da, ;iscando os olhos, está ausente, mergulhada em seus pen-�

sam`ntos. Deve ter soltado a língua há pouco.�

- Um pouco - disse Klaus Heinrich. - Tive a impres-

sãc> ..le que, por uns momentos, a Condessa perdeu o con-

tml ��

- Ela passou por coisas terríveis. - Imma ergueu os

olh". para ele, olhos escuros e perquiridores como no hospi-

tal- -- Um dia lhe conto tudo- É uma história e tanto.

- Sim - disse ele. - Outro dia. Quem sabe a ca-

mir,ho?

213

- A caminho?

- Sim, do Castelo de Caça ou dos Faisões.

- Ah, Príncipe, esqueci como é meticuloso nos compro-

missos. Bem, então a caminho. Aqui, descemos.

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Estavam nos fundos do Castelo. De uma galeria repleta de

grandes quadros, que atravessaram, havia degraus forrados de

tapetes que levavam ao salão branco e dourado, atrás de cuja

grande porta de vidro ficava o terraço. Tudo ali, o grande lus-

tre de cristal que pendia do meio do teto alto, branco e cheio

de arabescos; as poltronas bem-ordenadas com estruturas dou-

radas e estofo de gobelina; as pesadas cortínas de seda branca;

o relógio solene e os castiçais dourados sobre a lareira de már-

more branco diante do alto espelho de parede; os grandes can-

delabros de pés de leão, dourados, que se erguiam dos dois

lados dos degraus da entrada: tudo lembrava a Klaus Heinrich

o Castelo Velho, as salas de recepção, nas quaís estava acostu-

mado a representar desde criança - só que aqui as velas eram

de faz-de-conta, com lâmpadas de brílho dourado em Iugar do

pavio, e tudo era novo e brilhante no Castelo dos Delfíns dos

Spoelmann. Um criado de barra de pluma de císne termínava

de arranjar a mesa de chá num canto do aposento; Klaus Hein-

rich contemplou a chaleira eletricamente aquecida de que o

Mensageiro falara.

- Avisaram o Sr. Spoelmann? - perguntou a filha da

casa. . . O mordomo fez uma mesura. - Então, nada nos im-

pede - disse ela, em sua maneíra zombeteira e rápida - de

tomarmos nossos Iugares e começarmos sém ele. Venha, Con-

dessa! Príncipe, eu lhe recomendaria que se livrasse de suas

armas, caso não haja motivos que o impeçam . . .

- Obrigado - disse Klaus Heinrich. - Não, nada me

impede. - E doeu-lhe ser tão pouco treinado para encontrar

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uma resposta hábil.

O criado pegou-lhe a espada e levou-a, saindo pela gale-

ria. Sentaram-se à mesa de chá, assistidos pelo mordomo, que

segurava os encostos das cadeiras e as empurrava para que se

214

sentassern. Depois, recolheu-se para o alto dos degraus, onde

ficou parado como um ornamento.

- Deve saber, senhor Príncipe - disse a Srta. Spoelmann,

despejando água -, que meu pai não toma chá que eu mesma

não tenha preparado. Ele desconfia de todo chá que é servido

nas xícaras. Nós reprovamos isso. Terá de se conformar.

-- Ora, assim é mais bonito - disse Klaus Heinrich -,

muito mais confortável e espontâneo numa mesa de família . . .

- Interrompeu-se e pensou no motivo por que, a essas pala-

vras, a (;ondessa Lówenjoul lhe lançara um olhar oblíquo cheio

de ódíc>. - E seu estudo, Srta. Spoelmann? - indagou ele. -

Posso wber? Matemática, pelo que sei. Não a cansa? Não é

terrivclnente difícil?�

- Nada - disse ela. - Não conheço coisa melhor. A

gente, nor assim dizer, brinca nos ares, ou já fora do ar, de

qualquer modo, numa região livre de qualquer poeira. Frio como

nos Aclirondacks...

-- Onde?

-- Os Adirondacks. Geografia, senhor Príncipe. Uma flo-

resta n,rs montanhas do meu país, com lindos lagos. Temos

uma casa de campo lá, para o mês de maio. Sempre passamos

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o verão no mar.

-- De qualquer modo - disse ele -, sou testemunha

de seu elo nos estudos. A senhora não gosta que a impeçam�

de comparecer pontualmente às aulas. Nunca perguntei se, afi-

nal, chegou em tempo no outro dia.

--- Outro dia?

--- Sim, há algumas semanas. Depois daquele impedimen-

to na narda.�

--- Santo Deus, Príncipe, até o senhor fala nisso. Pare-

ce qi.rc :ssa história foi comentada tanto no palácio como nas

choupanas. Se eu tivesse sabido que fariam tanto alarde disso,

teria preferido rodear três vezes a praça do Castelo. Saiu até no

jornal, me disseram. E agora, naturalmente, toda a cidade me

consicic:ra um demônio de rebeldia e ira. Mas eu sou a criatura

215

i.r

mais pacífíca do mundo, só que não gosto que me dêem or-

i dens.. Serei um demônio, Condessa? Peço resposta sincera.

- Não, a senhora é boa - disse a C,ondessa Lówenjoul.

;,

- Bem, isso é demais, e eulhe devolvo duplamente o

I , �

elogio, Condessa . . .

- Não - dísse Klaus -, não é demaís. Acredíto fír-

memente na Condessa . .

.

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i1 . - Muita honra. Como é que a notícia daquela aventura

chegou a ossa Alteza? Pelo jornal?�

- Fui testemunha ocular - disse Klaus Heinrich.

- Testemunha ocular?

- Sim, senhora. Por acaso, estava junto da janela da

sala de guarda dos ofícíais e ví tudo do começo ao fím.

A Srta. Spoelmann corou. Não havía dúvída, a pele pálida

do seu rostinho estrangeiro escurecera.

- Bem, Príncípe, suponho - disse ela - que no mo-

mento o senhor não tivesse nada melhor a fazer.

- Melhor? - exclamou ele. - Mas foi uma visáa muito

bonita! Dou minha palavra, senhora, que nunca na vida . . .

Percival, deitado ao lado a Srta. Spoelmann com as patas

dianteiras graciosamente cruzadas, ergueu a cabeça com expres-

são tensa e concentrada, e bateu no tapete com a cauda. No

mesmo rnomento, o mordomo se mexeu. Correu o mais de-

pressa que lhe permitia seu pesado corpo, descendo os degraus

para a alta porta lateral do outro lado da mesa de chá, e abríu

com veemência as cortinas de seda branca, erguendo com

grande dignidade seu queixo duplo. Entrou, então, Samuel

Spoelmann, o bilionário.

Tinha figura delicada e fisionomia singular. De seu rosto

escanhoado, com faces acaloradas, saía o nariz num estranho

ángulo reto, e por cima seus pequenos olhos redondos, muito

juntos, de um azul-negro metálico e indefinido, Como nas

crianças pequenas e nos bichos, com expressão distraída e abor-

recida. A parte de cima da cabeça era calva, mas atrás e nas

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têmpora o Sr. Spoelmann tinha basto cabelo grisalho, pentea-�

do de maneira inusitada entre nós. Não era nem curto nem

comprido, mas basto, cheio, cortado só na nuca e raspado ao

redor das orelhas. A boca era pequena e de talhe delicado. Ele

se vestia com um casaco preto com colete de veludo e sobre

ele uma antiga, longa e fina corrente de relógio, e sapatos de

couro macio nos pezinhos curtos. Ele se aproximou rapidamente

da mesa de chá com ar ocupado e aborrecido; mas seu rosto

clareou, assumindo expressão terna e feliz, assim que viu a filha.

Imma fora a seu encontro.

- I3om dia, paizinho - disse ela, e seus braços more-

nos e infantis, expostos pelas mangas largas cor de telha, pas-

saram pelo pescoço dele, e ela o beijou na calva que ele lhe

oferecia, inclinando a cabeça.

- Você decerto sabe - prosseguiu ela - que o Prín-

cipe Klaus Heinrich vai tomar chá conosco.

- Não, mas me alegra, me alegra - disse o Sr. Spoel-

mann depressa, com voz roufenha. - Por favor, não se inco-

mode! - prosseguiu. E, trocando um aperto de mão com o

Príncipe, ue estava parado junto à mesa em posição de sen-��

tido (a mão do Sr. Spoelmann era magra e meio tapada por

punhos br,mcos não-engomados), balançou várias vezes a cabe-

ça para o lado. Era sua maneira de cumprimentar Klaus Hein-

rich. Era stranho, doente e singularmente rico. Estava des-�

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culpado e desobrigado do resto. Klaus Heinrich reconheceu isso

e .se esfor-ou honestamente para superar sua perturbação ín-�

terior. - De certa forma, o senhor está em casa, aqui - disse

ainda o Sr. Spoelmann, engolindo o tratamento, e passageira-

mente apareceu uma expressão maligna ao redor de seus lábios

escanhoados.

Depois, com seu exemplo, levou os outros a se sentarem.

O mordomo lhe ajeitou a cadeira entre Imma e Klaus Hein-

rich, diante da Condessa e da janela da varanda.

Como o Sr. Spoelmann não fizesse menção de se descul-

par, Klaus Heinrich disse:

217

,.

- Lamento ter ouvido dizer que o senhor passou mal

hoje, Sr. Spoelmann. Espero que esteja melhor.

- Obrigado, melhor, mas não bom - respondeu o Sr.

Spoelmann com sua voz roufenha. - Quantas colheres você

pegou? - perguntou à filha, referindo-se à quantidade de chá

que ela colocara no bule.

Ela enchera a xícara dele e a alcançara.

- Quatro - dísse ela. - Uma para cada. Ninguém

poderá dizer que trato mal meu pobre e velho paizinho.

- Que nada - disse o Sr. Spoelmann. - Não sou

velho. Deviam cortar sua língua.

Ele tirou de um pote de prata uma espécie de torrada

que parecia estar ali só para ele, quebrou-a e mergulhou-a,

com ar incomodado, no chá castanho-dourado que, como a

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filha, tomava sem creme e sem açúcar.

Klaus Heinrich recomeçou : '

- Estou muito curioso pela sua coleção, Sr. Spoelmann.

- Isso - disse o Sr. Spoelmann. - Quer ver os meus

vidros. É interessado, quem sabe também coleciona?

;

- Não - disse Klaus Heinrich -. apesar de gostar

tanto, ainda não estou colecionando.

- Não tem tempo? - perguntou o Sr. Spoelmann. -

O serviço de oficial é tão absorvente assim?

Klaus Heinrich respondeu:

- Não estou mais em serviço, Sr. Spoelmann. Estou às

ordens do meu Regimento. Uso uniforme, só isso.

- Ah, sím, é só aparência - disse o Sr. Spoelmann,

roufenho. E que faz então dia inteiro?��

Klaus Heinrich parara ãe ~,eber chá, afastara tudo de sua

frente nessa conversa que exigia toda a sua atenção. Sentava-

se muito ereto, e respondeu, sentindo que o olhar de Imma '

1

Spoelmann pousava sobre ele, grande, negro e inquiridor.

- Tenho deveres na. Corte, nas festas e cerimônias. Tam-

bém preciso representar no terreno militar, em juramentos de

recrutas e festas da bandeira. Depois, preciso representar meu

218

!�

irma, o Grão-Duque, nas recepções. E há pequenas viagens�

de scrviço, pelas cidades do país, para inaugurações e outras

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` solenilades públicas.�

- Ah - disse o Sr. Spoelmann. - Cerimônias, soleni-

dades. Para os outros olharem. Bom, eu entendo disso. Vou

lhe clizer once for all que não ligo nada para sua profissão.

That's my standpoint, Sir.

- Entendo perfeitamente - disse Klaus Heinrich. Sor-

ria doloridamente, ereto em seu casaco de Major.

- Bem, parece que isso também se precisa treinar -

prossc.·uiu o Sr. Spoelmann, um pouco mais brando -, trei-

nar c .rprender. Eu jamais deixaria de me incomodar tendo de

apareccr como bicho raro. . .

-- Espero - disse Klaus Heinrich - que nosso povo

não lhe falte com o respeito. . .

-- Obrigado, a coisa vai indo - respondeu o Sr. Spoel-

,

mann. - As pessoas daqui ao menos são bondosas. Não me

olham como se quisessem me matar.

--- Aliás, Sr. Spoelmann, eu gostaria de saber que, apesar

das ccmdições inusitadas, o senhor se sente bem entre nós -

disse Klaus Heinrich, sentindo-se melhor porque agora dirigia

a conwrsa e fazia as perguntas.

--- Obrigado - disse o Sr. Spoelmann, estou at ease. E

a ágr.,r é a única coisa que me ajuda um pouco.�

-- Não achou difícil deixar os Estados Unidos?

.'m olhar rápido, desconfiado, até tímido, que Klaus Hein-�

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rich nao soube interpretar, prendeu-se em seu rosto.

-- Não - disse o Sr. Spoelmann, voz roufenha e áspera.

Foi t.mlo o que respondeu àquela pergunta, como se a despe-

dida lns Estados Unidos nãolhe tivesse sido difícil.�

!'ausa. A Condessa Lowenjoul inclinou de lado sua cabe-

cinha ue cabelo liso, sorrindo ausente, ar de madona. A Srta.

Spoelmann contemplava Klaus Heinrich sem parar, com seus

olhos randes, pretos e lustrosos, como se analisasse o efeito�

que a estranha rudeza do pai causava no vísitante. Sim, Klaus

219

Heinrich teve a ímpressão de que ela esperava com calma e com-

preensão que ele se despedisse para sempre. Os olhos dele

encontraram os da moça, e ele ficou. O Sr. Spoelmann pegou

no bolso um estojo dourado e dele retirou um cigarro grosso

que, aceso, começou a espalhar um aroma delicioso.

- Deseja fumar? - perguntou depois. . . E, como Klaus

Heinrich achasse que agora não tinha mais importância, pegou

¡I

um cigarro depois do Sr. Spoelmann, no estojinho que lhe

estava sendo oferecido.

' Então, antes de olharem os vidros, falaram ainda de vá-

rios outros assuntos - principalmente Klaus Heinrich e a Srta.

Spoelmann, pois a Condessa estava perdida em seus pensa-

1 mentos e o Sr. Spoelmann só de vez em quando intervinha

i

com alguma palavra roufenha. Falaram do teatro local, do gran-

de navio no qual os Spoelmann tinham vindo para a Europa.

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Não, não tinham usado seu iate. Este servia especialmente

para levar o Sr. Spoelmann para o mar à noite, quando Imma

' e a Condessa estavam em Newport e ele ficava preso à cidade

pelos negócios. Então, o Sr. Spoelmann passava a noite no

,

convés. Agora, o iate estava novamente em Veneza. Mas ti-

nham atravessado Ooceano num imenso vapor, um hotel flu-

tuante com salas de concerto e canchas de esporte. A Srta.

Spoelmann contou que tinha cinco andares.

- Contando de baixo? - perguntou Klaus Heinrich.

Ela respondeu imediatamente:

i - Isso mesmo. Contando de cima, tinha seís.

Ele ficou perturbado, não entendeu mais nada, e levou

tempo para perceber que estavam zombando dele. Depois, pro-

curou explicar-se, justificar sua pergunta simplória, fingir que

i tinha perguntado se ela calculava tudo junto, também os apo-

¡ sentos debaixo da linha-d'água, os porões - em suma, pro-

i var que não era desprovido de argúcia. E por fim participou

da hilaridade que resultou dessa tentativa. Quanto ao Teatro

da Corte, a Srta. Spoelmann, repuxando os lábios e movendo

a cabecinha, achou que se deveria recomendar vivamente à atriz

220

que fazia a ingênua uma cura em Marienbad, além de um curso

de dança c aulas de etiqueta, enquanto ao herói se devia su-

gerir qm uma voz como a dele, mesmo na vida privada, só�

deveria scr usada com extrema discrição . . . sem prejuízo do

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estabelerimento artístico de que falava, e ao qual a Srta. Spoel-

mann clcwtava o maior respeito.�

. Kl.m Heinrich riu, e se espantou com tamanha agilidade,�

sentinde nma dorzinha no coração. Como ela falava bem, como�

usava a palavras de modo arguto e brilhante! Falaram tam-�

bém de Eeças, de óperas e espetáculos apresentados naquele�

inverncs, c Imma Spoelmann contradisse o julgamento de Klaus

Heinricl,, contradizia-o sempre, como se lhe parecesse insultuo-

so não ca fazer; deixou-o cansado com aquela divertida supe-

rioridacle da língua, e 'seus grandes olhos pretos no rostinho

pálido i,rilhavam de alegria por sua própria eloqüência, enquan-

to o Sr. Spoelmann, inclinado obliquamente para trás na ca-

deira, u igarro grosso entre os lábios escanhoados, pestane-�

jando n. tumaça, contemplava a filha com terna benevolência.�

Ml.i; de uma vez, Klaus Heinrich percebeu no próprio�

rosto a i.we expressão de dor que vira outro dia no rosto da�

madre uperiora, e mesmo assim acreditou reconhecer clara-�

mente ciue Imma não pretendia ferir, não julgava os outros

humilh;nios se não conseguiam retrucar sua linguagem no mes-

mo ton. que, ao contrário, aceitava as pobres respostas dele�

como ae achasse que ele não precisava defender-se claquelas

brincacici:as - só ela. Mas como e por quê? Muitas de suas

expresa:; ferinas faziam-no pensar em Überbein, no eloqüente� �

e fanfarrao Dr. Überbein, que era um malnascido e crescera

em corciiões que dizia serem boas. Juventude miserável, soli-� �

dão e ;lusão da felicidade, da vadiagem dos felizes - pes-� �

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soas a.;;m não engordavam, não conheciam conforto, e depen-�

diam w:-itamente das próprias capacidades, o que era vanta-�

gem se,;;ra em relação àqueles "que não tinham necessidade".�

Mas Imrna Spoelmann sentava-se confortavelmente, em seu ves-

tido v.r,oelho e dourado, junto à mesa da sala, numa postura� �

221

negligente, com expressões mimadas e caprichosas; sentava-se

naquela segurança toda e sua fala era ferina como a daqueles

que precisavam, para sobreviver, de Iucidez, dureza e espírito

alerta. Por quê? Klaus Heinrich esforçava-se interiormente para

descobrir, enquanto se falava de navios e peças de teatro.

Sentava-se ereto, numa postura totalmente controlada, sem se

permitir maior conforto, escondendo a mão esquerda, e por

vezes era atingido por um olhar cheio de ódio da Condessa

Lõwenjoul.

Um criado apareceu e entregou ao Sr. Spoelmann um

telegrama numa bandeja de prata. O Sr. Spoelmann o abriu,

com ar aborrecido, leu-o piscando, com o resto do cigarro no

canto da boca, e jogou o telegrama de volta na bandeja com

uma ordem lacônica:

- Mr. Phlebs. - Depois, chateado, tornou a acender

um cigarro.

A Srta. Spoelmann disse:

- Apesar das ordens médicas, esse é o quinto cígarro

que você fuma esta tarde. Não escondo que a paixão desen-

freada com que você se entrega a esse vício não combína com

seus cabelos brancos.

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Jia-se que o Sr. Spoelmann tentava rir, mas não conse-

guia; ele não tolerava o tom forte e áspero das palavras dela,

o sangue lhe subiu à cabeça.�

- Cale-se! - disse, zangado. - Você sempre acha que,

na brincadeira, pode dizer qualquer coisa. Mas não quero essas

malcriações, sua tagarela!

Klaus Heinrich, chocado, olhou para Imma, que encarava

com grandes olhos assustados o rosto irado do pai, e depois

baixou tristemente a cabecinha morena. Certamente, não tivera

qualquer intenção ruim, sentia prazer naquelas palavras som-

brias, grandes e estranhas, que manejava ironicamente, esperava

despertar hilaridade, e agora, por acaso, se dera muito mal.

- Paizinho, mas paizinho! - disse, suplicante, e foi até

ele, acariciar seu rosto vermelho.

222

- Ora bolas - resmungou ele -, você também não é

mamr ciue eu.�

'ias depois se deixou acariciar, ofereceu-lhe a calva para� �

um i"ijo e ficou satisfeito. Klaus Heinrich lembrou os vidros,�

dep>i, de restabelecida a paz, e deíxaram a mesa do chá, des-�

ceni; para a sala da coleção, anexa, com exceção da Condessa� �

Lo,wpoul, que se retirou com uma profunda mesura. O Sr.�

Spoulmann mandou acender as velas elétricas dos lustres na

sala .a lado.�

I rlos armários, conforme o estilo de todo o Castelo, bar-�

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rigma:;, com portas de vidro, alternando-se com poltronas de

seda. u,deavam todo o aposento, e continham a coleção de ví-�

dros :rtísticos do Sr. Spoelmann. Sim, era provavelmente a�

mai .v.mpleta coleção dos dois mundos, e o vidro que Klaus� �

Heinri, h comprara era apenas um exemplozinho modesto. Co-

mcç:m,. num canto da sala, com os mais antigos produtos de

luxc, !.sse artesanato; no fundo, pinturas das civilizações pri-� �

miti ,. ; . , prosseguindo com objetos de arte do Oriente e do�

Ocic!.wue, de todas as épocas, constando de vasos e cálices

chei,. cle arabescos e guirlandas, em vários formatos, das vi-�

drarin. de Veneza, e peças preciosas de cabanas da Boêmia,

cane, a alemães, cálices com muitas figuras de corporações e��

prirr. i:ados, misturados com bizarras formas de animais e esta-�

tuet:m humorísticas, grandes cálices de cristal que lembravam

a fel i:. ;..lade de Edenhall, da canção, e em cujo polimento a luz

se n : ; .tava magnificamente, cálíces de rubi que ardiam como�

o S,.:, i s Graal, e por fim os mais nobres exemplares da arte� �

mod. rv.,,, flores de vidro extremamente delicadas sobre caules

inf in : . nente frágeis e bibelôs de vidro de acordo com o� � �

gost ooderno, recobertos, através do vapor de metais no-�

bres ,!.rretidos, de cores bril.hantes. Os três, seguidos de Per-

cival. :I;ie também olhava tudo, andaram lentamente sobre tape-

tes, ;u,, redor da sala, e o Sr, Spoelmann explicava, com voz rou-

fenh. , . origem de cada peça, sua mão magra semicoberta pelo�

223

I.;

punho não-engomado retirando todas, cuidadosamente, da esca-

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ninho de veludo e segurando-as contra a luz.

Klaus Heinrich estava habituado a visitar, perguntar e

fazer 'comentários muito elogiosos, por isso conseguia ao mes-

mo tempo refletir sobre a linguagem de Imma Spoelrnann, sua

linguagem estranha, na qual pensava com algum sofrimentó.

As coisas que ela dízía avançando os lábíos! As palavras que

usava tão levianamente! "Vício": como chegara a essa palavra

,

usando-a tão atrevidamente? Acaso a Condessa Lówenjoul, que,

quando perturbada, também falava essas coisas, e obvíamente

tivera experiências terríveis, não dissera que Imma era total-

mente ígnorante? Sem dúvída ísso era correto, pois ela era um

caso ünico em matéria de nascimento, crescendo em pureza e

refinamento, excluída da existência das pessoas e sem partici-

par das coisas loucas que, na vida real, correspondiam a essas

palavras sombrías. Mas ela se apoderara das palavras e as usara

numa linguagem burílada, divertíndo-se com elas. Sim, era ísso:

aquela criatura rude e doce, em seu vestido vermelho e dourado,

gostava daquela Iínguagem, vívía daquela linguagem, e só co-

nhecia, da vida, aquelas palavras, brincava com as mais graves

e terríveis como com pedras coloridas, e não entendia quando

com elas causava aborrecimentos! O coração de Klaus Heín-

rich ficou cheio de compaixão pensando nisso.

Eram quase 7h quando ele pediu que mandassem vir sua

carruagem - um pouco inquieto com sua longa permanência,

par causa da Corte e do püblico. Sua partida provocou novo

acesso terrível em Percival, o collie. Cada modificação ou ínter-

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rupção de uma sítuação parecía quase enlouquecer o nobre ani-

mal. Tremendo, com latidos furiosos e sem se deixar acalmar,

ele disparava pelos aposentos, vestíbulo e escada, para cima

e para baíxo, de modo que as palavras de despedída eram

sufocadas por esse rumor. O mordorno fez as honras da casa

ao Príncipe, acompanhando-o até o carredor com as estátuas

de deuses. O Sr. Spoelmann não o acompanhou. A Srta. Spoel-

mann conseguíu dízer:

224

- Tenho certeza de que sua estada no seio de nossa

fan,.lia o deíxou encantado, Príncipe - e não ficou claro se

a Ooaría dela se referia à expressão "no seio de nossa famí-��

lia" an à coisa em si. De qualquer modo, Klaus Heinrich quase�

nãc >ube como retrucar. Recostado num canto do seu cupê,� ��

um ",uco magoado e abatido, mas também repousado por aque-

le t nr;mento inusitado que lhe tinham proporcionado, voltou� �

parn . asa pelo escuro Parque Municipal, para o Eremitage, vol-

tou ms seus sombrios aposentos império, onde jantou com os

Srs. wn Schulenburg-Tressen e I3raunbart-Schellendorf. No dia�

segun,te, leu o comentárío do Mensageiro. Este dizia simples-

mer, c que ontem Sua Alteza Real, o Príne-ipe Klaus Heinrich,�

tom;ra chá no Castelo dos Delfins, e visitara a famosa coleção `�

de v iclros artísticos do Sr. Spoelmann.

Ü Klaus Heinrich continuou sua vida sem objetividade,

;

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exen. itmdo sua nobre vocação. Dizia palavras benevolentes,

executava seus gestos, representava na Corte e no baile do Pre-

'. sideme do Conselho, concedia audiências pnblicas, almoçava no

cassino dos oficiais dos Granadeiros, mostrava-se no Teatro da

Cort e concedia a uma ou outra cidade do país sua solene��

presança. Sorrindo, de calcanhares unidos, mantinha as forma-

lida.cs e, com postura totalmente controlada, realizava suas��

difíc.is obrigações, embora nesse tempo tivesse muito sobre� �

o quc refletir: sobre o írritadiço Sr. Spoelmann, a perturbada�

Con?cssa Lõwenjoul, o doido cão Percy e também Imma, a�

filha da casa. Muitas perguntas que sua primeira visita aos

Delns nele despertara ainda não podiam ser respondidas. Só��

obte . c as respostas no curso de um maior relacionamento com

a fa o í 1 ia Spoelmann, que continuou a exercitar com participa-�

ção unsa e, por fim, febril da opinião pública. O passo seguin-�

te f"i o Príncipe, certa manhã, bem cedo, para espanto da

criaci.yem e dele próprio, de certa forma involuntariamente,

com. que regido r,:lo destino, aparecer sozinho, a cavalo, nos�

Del I n s a fim de convidar a moça para um passeio, ainda por�

cima interrompendo seus estudos de matemátíca.

225

I

i

O encantamento do inverno fora rompido muito cedo na-

uele ano singular. Depois que janeiro passara mansamente,

,i q

já em meados de fevereiro se iniciara, com cantos de pássaros,

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ouro de sol e doces brisas, uma antecipada primavera. E quan-

do na manhã do primeiro desses dias esperançosos Klaus Hein-

rich acordou no Castelo Eremitage em sua velha e ampla cama

de mogno, uma das bolas que coroavam as colunas quebrada

e perdida, sentiu-se tocado por uma mão imperiosa que o con-

vidava irresistivelmente a novas ações.

Manejou o puxador da sineta, chamando Neumann (pois

em Eremitage só havia sinetas com puxadores), e ordenou que

dentro de uma hora selassem Florian. Queria um cavalo para

os lacaios? Não, não era preciso. Klaus Heinrich declarou que

desejava cavalgar a sós. Depois, entregou-se às zelosas mãos de

Neumann para a toalete matinal, fez a refeição no jardim de

inverno, impaciente, e ao pé do pequeno terraço montou em

seu cavalo. As botas de montaria, com esporas nos calcanhares,

na mão direita a luva marrom e as rédeas de couro amarelo,

e a esquerda enfiada no quadril, por baixo do manto aberto,

ele cavalgou a passo pela doce manhã, procurando nos galhos

ainda despidos os pássaros que gorjeavam. Passou pela parte

pública de seu parque, pelo Parque Municipal, e depois pelo

terreno dos Delfins. Às 9h30min, chegou. A surpresa foi grande.

No portal principal, entregou Florian a um cavalariço in-

glês. O mordomo, que atravessava o vestíbulo com o chão de

mosaico cuidando dos assuntos da casa, parou, quieto e espan-

tado, ao ver Klaus Heinrich. Quando, com voz clara e ao

mesmo tempo eufórica, o Príncipe perguntou pelas damas, ele

não respondeu, mas se virou perplexo para a escada de már-

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more, e olhou para cima, sem falar, pois lá estava o Sr. Spoel-

mann.

Este parecia ter ncabado sua refeição, e estava bem-dis-

posto. Mãos nos bolsos da calça, afastando o casaco de casa

226

que asava sobre o colete de veludo, píscando por causa da

fum:.ua azulada do cigarro que tinha entre os lábios, ele disse:

- Então, jovem Príncipe? - olhando para baixo.

vlaus Heinrich subiu pelo tapete vermelho dos degraus,

farenaio continência. Sentía que só com pressa e, por assim

dize . intempestivamente, conseguiria dominar a situação.�

- Sr. Spoelman, deve estar espantado. . . - disse ele.

- .`nma hora destas. . . - Estava ofegante, e isso o deixou�

assm t:tdo, pois não estava habituado a sentir-se assim.

) Sr. Spoelmann respondeu, com expressão facíal e mo-�

vimmoo de ombros, que sabia dominar-se, mas estava curioso

pela .wplicação.�

- Trata-se de uma combinação. . . - disse Klaus Hein-

rich. l;stava dois degraus abaixo do bilionário, e erguia o rosto�

par, falar com ele. - Uma combinação de passear a cavalo�

com n Srta. Imma. Prometi mostrar às senhoras o Castelo dos

Fais s ou o Castelo de Caça. . . A Srta. Imma não conhece� ���

qua nada da região, conforme me disse. Tínhamos combi-���

nade, ,y.te no primeiro dia bonito. . . E hoje está tão bonito. . .

Natu..ralmente, precisareí da sua concordâncía. . .

) Sr. Spoelmann ergueu os ombros e torceu a boca como�

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quen: cliz: concordância. . . como?

-- Minha-filha é adulta - disse ele. - Não costumo

inteurir em sua vida. Se ela quer cavalgar, vai cavalgar. Mas�

acho aue não tem tempo. Terá de perguntar o senhor mesmo.�

Ela ,. ·a sentada ali dentro. - E, dando um passo para o lado,

o Sr `poelmann apontou com o queíxo para a porta de corti-

nas .. i ravés da qual Klaus Heinrich já passara uma vez.

- Obrigado! - disse eçre. - Sím, então vou pessoal-

ment...�

i : subiu os últimos degraus da escada, abriu com gesto

,.. deci.i(o a cortina trabalhada e desceu os degraus que cond-� � �

ziam ao jardim de inverno, ensolarado e perfumado de flores.

:' )iante da gigantesca fonte e do chafariz com os patos de

pen.a, mloridas, Imma Spoelmann estava sentada, as costas quase

227

inteiramente viradas para a entrada, curvada sobre uxna me-

sinha. Seu cabelo estava solto. De um negro azulado, lustroso,

corría dos dois lados do repartido, cobría a parte superíor do

corpo e só deixava adivinhar uma sombra de seu perfil suave

e infantil, do rosto que parecia pálido como marfim contra o

.

negror dos cabelos. Assím envolta na cabeleíra, ela se dedicava

ao estudo, trabalhando num caderno ao lado, lábios sobre as

costas estreitas da mão esquerda, manejando a caneta com o

indicador bem curvado.

A Condessa estava presente, também escrevendo. Sentava-

se a alguma distância, debaíxo das palmeiras, onde Klaus Hein-

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rich falara com ela da primeira vez, e escrevia, ereta, a cabeça

inclinada de lado, em papel de carta, tendo ao lado uma pe-

quena pilha toda rabiscada. O rumor das esporas de Klaus

Heinrich fê-la erguer os olhos. Ela o enarou por dois segundos,�

olhos apertados, longa pena em forma de fuso na mão. Depois,

ergueu-se para fazer a mesura e disse:

- Imma, Sua Alteza Real, o Príncipe Klaus Heinrich,

está aqui.

A Srta. Spoelmann virou-se depressa em sua poltrona de

vim, sacudiu o cabelo para trás e encarou o intruso com gran-�

des olhos assustados, sem falar, até que, com uma saudação

militar, Klaus Heinrich cumprimentasse as duas damas, dando-

Ihes bom-dia. Então ela dísse, com sua voz rouca:

- Bom dia para o senhor também, Príncipe. Mas chegou

tarde para o café da manhã, terminamos há horas.

Klaus Heinrich riu:

- Então, é bom que as duas partes tenham tomado café

- disse ele. - Assim, poderemos cavalgar em seguida.

- Cavalgar?

- Sim, conforme tínhamos combinado.

- Combinado?

- Não, não pode ter esquecído! - disse ele, suplicante.

- Não prometi mostrar-lhe a região? Não íamos cavalgar

juntos com bom tempo? O dia está lindo, olhe para fora. . .

228

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-- O dia não está mau - disse ela -, mas estou achando

que meio intempestivo, Príncipe. Lembro que falamos vaga-��

men c em cavalgar. . . mas ' não de modo tão concreto! Que

tal av houvesse antes uma pequena notificação, uma pergunta

de s.m parte, se Vossa Alteza permite a palavra? Há de admi-

tir ;.m° não posso sair por aí a cavalo nestas condições.� �

1.: levantou-se para mostrar o robe, que era de seda lus-

trosn. com pregas amplas, e um casaquinho verde aberto.

- Não - disse ele -, infelizmente não pode. Mas eu

espeu aqui, enquanto as senhoras mudam de roupa. É cedo�

aind;:. . .

-- Muito cedo. Mas, em segundo lugar, eu estava mesmo

dedicada à minha inofensiva ocupação, como pôde ver. Tenho

aula s llh.�

- Não - exclamou ele -, hoje não deve estudar álge-

bra, Srta. Imma, nem brincar no vazio, como diz! Veja esse

sol! . . . Posso? . . . - e aproximou-se da mesa, pegando 0

caderno.

O que viu era perturbador. Numa letra floreada, infan-

tilmunte redonda, de traço grosso, que revelava a maneira de

segurar a caneta, as páginas estavam cobertas por fantásticos

sinais cabalísticos, um sabá de bruxas de runas entrecruzadas.

Letrns gregas acopladas com letras latinas e números, em diver-

sas ulturas, entremeados de cruzes e traços, alinhados fragmen-

tariamente, acima e abaixo de linhas verticais - recobertas,

à m.neira de tendas, por outras linhas -, igualados por traços�

dupl.s, reunidos por chaves redondas e agrupados em grandes� �

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fórmulas por chaves angulares. Letras isoladas, avançadas como

guarlas, ficavam fora dos grupos reunídos por chaves, um pou-�

co aaima, à direita. Sinaís cabalísticos, totalmente incompreen-

sívei , ao leigo, rodeavam com seus braços letras e números,

com f rações numéricas à frente, e números e letras pairando

sobr suas cabeças ou a seus pés. Sílabas estranhas, abreviatu-��

ras Ic palavras misteriosas, espalhadas por toda parte, e entre�

as cc>lunas de necromancia havia frases escritas, e comentários

229

f

i

,; '

I;i.

I

k

em linguagem cotidiana, cujo sentido ficava, por outro lado,

tão acima de todas as coisas humanas que podiam ser lidos

sem que se entendesse mais do que se entende um murmúrío

de feitiçaria.

Klaus Heinrich ergueu os olhos para o pequeno vulto

parado a seu lado em roupas brilhantes, coberto pela cortina

negra dos cabelos, e em cuja cabecinha estrangeira tudo aquilo

tinha sentido e uma vida sublime e variada. Disse ele:

- E por causa dessas artes pagãs a senhora quer perder

esta bela manhã?

Ela o contemplou por um momento, com estranheza, gran-

des olhos eloqüentes. Depois respondeu, avanando os lábios:�

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- Parece que Vossa Alteza quer se vingar da falta de

compreensao que outro dia se demonstrou aqui em relação à

sua própria vocação.

- Não - di.sse ele. - Não, não é ísso! Dou-lhe minha

palavra de que tenho o maior respeito por seu estudo. Admito

que me amedronta, nunca entendi nada disso. Também admi-

to que hoje me repugna um pouco porque nos vai impedir de

passearmos a cavalo . .

- Ah, não é só a mim que pretende tírar de sua ocupa-

ção, Príncipe. Há uma terceira pessoa, a Condessa. Ela estava

escrevendo. Está escrevendo suas memórias, e não escondo que

será uma obra na qual o senhor, como eu, Príncipe, poderá

aprender muita coísa.

- Tenho certeza disso. Mas tenho igual certeza de que

a Sra. Condessa não é capaz de recusar um pedido seu, Srta.

Imma.

- E meu pai? Há um quarto obstáculo. O senhor co-

nhece o temperamento de tigre do meu pai. Será que ele vai

permitir?

- Já permitiu. Se a senhora quer cavalgar, então vai

cavalgar. São palavras dele. . .

- Ah, já se asseguroi

Agora começo a admirar sua

previamente dessa permissão.

visão, Príncipe. O senhor agiu

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230

como um comandante, embora nem seja soldado de verdade,

mas ;ynas na aparência, segundo nos contou outro dia. Mas� ��

há ain:.la um quinto obstáculo, e este é decisivo. Vai chover. . .

Não, não é correto. O céu está radiante. . .

Vai chover. O ar está macio demais. Constatei isso

quan i, ; estávamos no Jardim das Fontes, antes do café. Venha�

até o :,.rômetro, se não acredita em mim. Está no vestíbulo. . .�

.íram realmente para o vestíbulo dos tapetes, onde, ao� �

lado ln lareira de mármore, se via um barômetro bem grande.�

A Comlessa foi com eles. Klaus Heínrich disse:

Ele subiu.

Vossa Alteza gosta de enganar-se - respondeu a Srta.

Spoelmmn. - A paralaxe o iludiu.

- Não entendi.

- A paralaxe o iludiu.

- Não sei o que é isso, Srta. Imma. É como com os

Adir";dacks. Não aprendi muita coisa devído à minha forma�

de viu.r. Deve ter paciência.�

- Ah, peço mil desculpas. Devia ter me lembrado de

que, wm Vossa Alteza, é preciso falar de maneira popular.�

Estam"s parados obliquamente em relação ao ponteiro, por isso

parec, que ele subiu. Se pudesse postar-se exatamente diante

dele, v cria que o preto não subiu acima do dourado, ao con-

tráric , até recuou um pouquinho.

- Acho que é verdade, tem razão - disse Klaus Hein-

rich, t riste. - Então, a pressão do ar é maior do que eu

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pens;:,. . !�

- Menor do que o senhor pensava.

- Mas quando o mercúrio baixou?

- O mercúrio baixa com pressão baixa e não com pres-

são Í; ; a, Alteza.

- Agora não entendo mais nada.

- Príncipe, acho que o senhor exagera comicamente sua

igno;:ncia para lhe diluir os limites. Mas, como a pressão está�

231

tão alta que o mercúrio caiu, o que realmente indica um grave

engano da natureza, vamos cavalgar. Condessa, que acha? Não

quero ter a responsabilidade de mandar o Príncípe para casa,

uma vez que ele está aqui. Ele poderá esperar um pouco até

nos aprontarmos. . .

Quando Imma Spoelmann e a Condessa voltaram ao jar-

dim de inverno, estavam vestidas para andar a cavalo, Imma

num vestido de lã preta, fechado, com bolsos no peito, e cha-

péu de três pontas de feltro preto, a Condessa com roupa de

tecido preto, um peitilho de camisa de homem engomado e

chapéu alto. Juntos desceram as escadas, atravessaram o ves-

tíbulo de mosaicos e foram para fora, onde, entre o portal

das colinas e o grande tanque, havia dois cavalariços esperando

com as montarias. Mas ainda nem haviam montado quando,

com um uivo agudo, expressão de paixão intensa, Percival, o

collie, saiu disparando do Castelo, espumando, rápido como um

pé-de-vento, e começou a dançar como louco ao redor dos ca-

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valos, que agitavam as cabeças, inquietos.

- Pronto - disse Imma ante aquele ruído todo, e bateu

no pescoço da assustada Fatima. - Não conseguimos guardar

segredo dele. No último momento, descobriu tudo. Agora, ele

virá junto, e não sem escândalo. Podemos começar, Príncipe?

Embora Klaus Heinrich percebesse que seria o mesmo que

mandar à frente um criado com trombeta de prata anunciando

ao públíco essa cavalgada, ele disse, desafiador e contente, que

Percival podia ir junto; fazia parte do grupo e também pre-

cisava conhecer os arredores.

- Então, para onde vamos? - perguntou Imma guando

passavam pela larga alameda de castanheiros.

Cavalgava entre Klaus Heinrich e a Condessa. Percival

corria na frente, latindo. O cavalariço inglês, com chapéu de

roseta e botas amarelas, seguia a certa distância.

- O Castelo de Caça é muito bonito - disse Klaus Hein-

rich -, mas o Castelo dos Faisões fica um pouco mais longe,

e temos tempo até o almoço. Gostaria de mostrar o Castelo

232

às sen ï .uras. Passei três anos lá, quando menino. Era um pen-

sionai , sabe, com professores e colegas. Lá conheci meu amigo�

Überi in, o Dr. Überbein, meu professor predileto.�

O senhor tem um amigo? - perguntou a Srta. Spoel-

mann aom muito espanto; e olhou para ele. - Precisa me

falar l.le - acrescentou. - E foi criado no Castelo dos Fai-� �

sões r 1 :ntão, temos de vê-lo, pois o senhor obviamente tam-

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bém ; unsa assim. Trote! - disse ela quando chegaram a um�

camir.,ic de terra. - Lá fica a sua ermida, senhor Príncipe. . .� � �

muita omida e patos sobre o laguinho. . . Acho que deíxare-�

mos ,lardim das Fontes, se for possível.��

ivlaus Heinrich ficou contente com isso; portanto, deixa-

ram a região do parque e trotaram pelos campos, para chega-

rem a estrada que levava para noroeste, na direção desejada.

No P..trque Municipal foram saudados por alguns transeuntes

a pasaio, que os olharam espantados, enquanto Klaus Heinrich�

agradecia com a mão no quepe e Imma com um movimento

sério um pouco inibido da cabecinha de rosto pálido e cabe-��

los m.gros sob o chapéu tricorne. Agora, estavam em campo

abert< c não precisavam mais controlar os movimentos. Pela�

estraçl,i, passava, vez por outra, uma carroça de camponeses,

ou un homem de bicicleta avançava, curvado sobre o volante.�

Mas Imrmaneciam à beira do caminho, no prado, onde se sen-

tiam mais livres para cavalgar. Percival dançava diante dos

cavalc,. numa inquietação permanente, numa expectativa febril,�

sempr,: girando, trotando, sacudindo a cauda - a respiração

ofegn te, a língua pendendo da goela aberta e espumante; por�

vezes ., insensato tormento de seus nervos se aliviava num grito

breve suspiroso. Depois ele correu para mais longe, seguindo,�

com : ,rclhas espetadas e saltos curtos e altos, algum bichinho

no cl,.o; correu feito doido atrás de uma lebre veloz, enquanto

seus l.nidos descontrolados reboavam sob o céu.

I ;laram de Fatima, que Klaus Heinrich via pela primeira�

vez ta de perto e que admirou sinceramente. Sobre seu pescoço�

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longo musculoso, Fatima balançava elegantemente a cabeça�

233

V�

pequena, de olhos fogosos; tinha as pernas delicadas dos cavalos

árabes e uma ondulante cauda prateada. Era branca como 0

luar, com arreios e sela igualmente brancos. Florian, o casta-

nho meio sonolento, com lombo curto, crina aparada e ligas

amarelas, parecia. doméstico como um burro ao lado daquela

nobre égua estrangeira, embora fosse muito bem-cuidado. A

Condessa Lõwenjoul montava uma grande égua fulva chamada

Isabel. Montava muito bem, ajudada por sua figura alta e rí-

gida; mas sua cabeça pequena, com chapéu masculino, incli-

nava-se de lado, e suas pálpebras estavam apertadas. Klaus

Heinrich falou com ela, às costas da Srta. Spoelmann, virando-

se para trás na sela; mas ela não respondeu, continuou olhando

diretamente em frente, olhos semicerrados e expressão de ma-

dona, e Imma disse:

- Esqueça a Condessa, Príncipe. Está distraída.

- Imagino que a Condessa não tenha vindo com muita

vontade - disse ele. E ficou sinceramente consternado quando

Imma respondeu, indiferente:

- Para ser franca, pode ser.

- Por causa do que estava escrevendo? - perguntou

ele.

- Ah, as anotações. Não são tão urgentes, são mais um

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passatempo. . . embora secretamente eu espere muita coisa ins-

trutiva delas. Mas não lhe esconderei, Príncipe, que a Con-

dessa não o aprecia especialmente. Já me falou nissa. Diz que

o senhor é duro e severo, e a deixou intimidada.

Klaus Heinrich ficou vermelho.

- Bem sei - disse baixinho, olhando as rédeas do seu

cavalo - que não sou muito símpático, Srta. Imma, au quando

muito, de longe. . . Isso também se deve ao meu tipo de vida,

como já disse. Mas não tenho lembrança de jamais ter sido

duro e severo com a Condessa.

- Provavelmente, não com palavras - respondeu a moça.

- Mas não lhe permitiu que se soltasse um pouca, não lhe

concedeu o benefício de deixá-la soltar um pouco a língua. . .

234

por is..,, ela está magoada. . . e eu seí bem como foi que fez

isso, c :uo lhe dificultou as coisas e a esfriou. . . muito bem -

repetiú la, e desviou o rosto.�

I·.:.ms Heinrich ficou quieto. A mão esquerda estava no

quadri: ú os olhos pareciam fatigados.

- A senhora sabe? - disse ele depois. - E também

não Il: ;ou simpático, Srta. Imma?�

- Previno-o - disse ela sem pensar, com sua voz rouca,

moven,':, a cabecinha para lá e para cá, fazendo bico - q;e� �

não su;rvalorize a impressão que me causa, Príncipe.���

1. íe repente fez Fatima galopar, voou tão depressa pelo�

campe> : m direçáo à massa escura dos pinheirais distantes que

nem a ,ndessa nem Klaus Heinrich conseguiram alcançá-la. Só�

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na bei.. da floresta pela qual passava a estrada foi que ela parou�

e viro, ; seu animal para encarar, com ar zombeteiro, os que

vinharv v m seu encalço.��

.1 t.;ondessa Lowenjoul, na grande Isabel, foi a primeira

a che::; perto da fugitiva. Depois chegou Florian, bufando e��

perple .., com aquela exigência inusitada. Todos riam e respi-�

ravam ..icpressa, enquanto entravam na floresta cheia de ecos.

A Cor:.;ssa estava bem desperta agora, e falava animadamente,��

com n: ., imentos vivos e nobres, mostrando os dentes alvos.�

Iirinco om Percival, cuja alma estava novamente agitada pela�

correri.: que girava sobre si mesmo, furioso, entre as árvores,��

diante ::s cavalos.��

- ,lteza Real - disse ela -, devia vê-lo saltar. . . dar�

volteic . ele salta valas de seis metros de largura com uma

graça , leveza encantadoras. Mas, note bem, só quando

quer, ¡,:!s acredito que preferiria deixar-se matar a se submeter

a quai:..y.. r treinador e executar artes ensinadas. Eu diria que��

ele te! a treino e a disciplina em si mesmo, de nascença, e�

mesmc .yando se porta mal, jamais é rude. É um aristocrata�

bem-n; ·rido e de caráter firme. Ah, ele é altivo, parece louco,

mas sa' . controlar-se. Ninguém jamais o ouviu gritar de dor, ou� �� �

quand <e fere ou é castigado. Também só come quando tem�

235

fome, senão despreza os melhores pratos. De manhã, sua refei-

ção é nata. . . é preciso alimentá-lo bem. Ele se consome por

dentro, é magro debaixo desse pêlo sedoso, a gente pode sentir

as costelas, e infelizmente é preciso admitir que não vai enve-

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lhecer, mas morrer cedo de tuberculose... O populacho 0

persegue, aproxima-se dele e o aborrece pelas ruas; mas ele

foge, sem ficar feroz nem grosseiro, e só quando lhe fazem

maldades é que morde para todos os lados com seus magníficos

dentes, mordidas que não se esquecem facilmente. É muito agra-

dável ver tanto cavalheirismo aliado a tanta pureza.

Imma concordou, com as palavras mais verdadeiras e sé-

rias que Klaus Heinrich já escutara de sua boca.

- Sim - disse ela -, Percy, você é meu bom amigo,

e eu estarei sempre ao seu lado. Alguém, um entendido, disse

que ele era demente, que isso não era raro em cães de raça,

e nos aconselhou a mandar matá-lo porque ele era incorrigível

e um dia nos levaria ao desespero. Mas eu não permito que

me tirem meu Percy. Ele é incorrigível, sim, e muitas vezes

difícil de suportar, mas mesmo assim é comovente e bom, e

gosto dele.

Depois, a Condessa fez mais alguns comentários sobre a

natureza do collie, mas logo suas palavras se tornaram confusas

e estranhas, transformando-se num monólogo acompanhado de

gestos vivos e elegantes; e, após lançar a Klaus Heinrich um

olhar perfurante, mais uma vez se perdeu em uma daquelas

ausências.

Klaus Heinrich sentiu-se contente e consolado com a dura

cavalgada na qual, aliás, tivera de se controlar muito, pois,

embora montasse bem, devido à mão esquerda nunca fora um

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cavaleiro seguro. . . ou era por algum outro motivo. Quando

saíram do pinheiral e cavalgavam pela estrada silenciosa, entre

prados e campos arados, de vez em quando por uma granja de

camponeses ou alguma estalagem, dirigindo-se a passo para a

floresta seguinte, ele perguntou em voz abafada:

236

- Não quer cumprír a promessa e me falar da Condessa

Srn. Imma? Como foi que ela se tvrnou sua acompanhante?�

- Ela é minha amiga - disse a moça. - E, de certa

fon m, minha preceptora, embora tenha vindo morar conosco

qa n,do eu já era crescida. Foi há três anos, em Nova Iorque,

e ( ;ondessa estava numa situação terrível. Estava morrendo�

de mme - disse Imma Spoelmann e, dizendo isso, voltou os

gr:n.,les olhos negros para Klaus Heinrich, com um olhar in-�

ter ";ativo e hvrrorízado.� �

- Morrendo de fome mesmo? - perguntou Ple, devol-

vco,lv-lhe o olhar. -- Por favor, continue.

- Sim, também pergunteí isso quando ela nos procurou,

e wbora visse que não estava em seu juízo perfeito, mesmo�

asaim me ímpressionou tanto que pedi a meu pai que a admi-

ti como minha dama de companhia.����

- Como é que ela foi parar nos Estados Unidos? É Con-

dea de nascimento? - perguntou Klaus Heinrich.��

- Não é Condessa, mas é nobre, e cresceu em boas con-

diy;es, protegida dos males da vida. Em criança, era delicada

e ! rígü, necessitada de muitos cuidados. Mas casou-se com um�

ccrtv Conde Lõwenjoul, Capitão da Cavalaria... um aristo-

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cr" a estranho, segundo o que ela conta. . . não muito exemplar,�

p:ra usar um eufemismo.�

- Como teria sido ele. . . - perguntou Klaus Heinrích.

- Bem, Príncipe, exatamente eu não sei. Deve levar em

c"nta que a Condessa costuma contar tudo de maneira obscura,

n,:, segundo suas indiretas, deve ter sído uma pessoa selva-��

grm e despudorada, como dificilmente se pode imaginar, um

dsses perversos, sabe. . .��

- Sím, eu sei - disse Klaus Heinrich. - Um farrista,

h :-vida ou aventureiro. Esse tipo.� � �

- Bem, digamos aventureiro, mas do píor tipo, mais de-

g i.lado, pois, segundo as alusões da Condessa, esse tipo não�

t.nn limites. . .�

237

- Também acho - disse Klaus Heinrich. - Conheci

várias pessoas desse tipo. . . sujeitos condenados, como se diz.

Ouví dizer que um deles costumava ter casos de amor em seu

automóvel, e ainda por cima a toda velocidade.

- Foi seu amigo Überbein quem lhe contou isso?

-- Não, outra pessoa. Überbein não julgaria adequado per-

mitir que eu saiba dessas coisas.

- Então, seria um amigo inútil, Príncipe.

- Quando eu lhe falar mais sobre °le, Srta. Imma, vaí

apreciá-lo. Mas, por favor, prossiga!

- Bem, não sei se Lvwenjoul fazi.a o rnesmo que esse seu

aventureiro. Mas, mesmo assim, era terrível. . .

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- Posso imaginar que ele bebia e jogava.

- Sim, é de se presumir. Além disso, também tinha ca-

sos de amor, como o senhor diz, traía a Condessa com mulheres

pecaminosas, dessas que há tantas, a princípio às escondidas, de-

pois diante dela, com toda a insolência, sem piedade por sua

dor.

- Mas diga-me: por que ela se casou com ele?

- Fez isso contrariando os pais, pois estava apaixonada

por ele, segundo me disse. Pois, em primeiro lugar, era um

bomem bonito quando ela o conheceu . . . mais tarde também

decaiu externamente. Em segundo lugar sua fama de aventu-

reiro deve ter exercido, segundo ela diz, uma atração irresistí-

vel sobre ela, pois, embora vivesse protegida, nada conseguiu

abalar sua decisão de dividir a vida com ele. Se a gente pensar

bem nisso, é possível entender.

- Sim - disse ele -, a gente pode entender. E la queria

procurar, conhecer tudo. E teve suas experiêncías.

- Acho que sim. Embora a expressão me pareça muito

leve para o que ela teve de suportar. O marido a maltratava.

- Quer dizer quelhe batia?

- Sim, maltratava-a fisicamente. Mas agora, Príncipe, uma

coisa de que o senhor também não deve ter ouvido falar: ela

me deu a entender que ele não só a maltratava com raiva, na

23&

hora a.s brigas, mas também tinha tendência a fazer isso para�

, seu E·r.zer, isto é, os maus-tratos eram na verdade carícias�

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repul.i,.as.�

!;aus Heinrich calou-se. Os dois estavam muito sérios.�

'.,r fim, ele perguntou:� �

A Condessa teve filhos?

Sim, dois. Morreram bem cedo, os dois, com poucas

f

semao:a de vida, e isso deve ter sido a coisa mais dura de todas.

Seguml" ela deixa entender, essa morte prematura foi culpa

daqu..in, mulheres pecaminosas com que o marido a traía.� �

t )s dois calaram-se de novo, pensativos.

- Além disso - prosseguiu Imma Spoelmann -, ele es-

banj".: com mulheres e no jogo o dote da esposa, que foi gran-�

; de, .. clepois da morte dos pais dela, fez o mesmo com sua�

;

; heran. toda. Parentes dela o ajudaram mais uma vez, quando� �

ele c: ,ma prestes a ter de deixar o Exército por causa das dí-�

vida: . Mas depois veio um caso muito perverso e repulsivo, em

que i se envolveu, e que afinal o derrubou.��

- Que pode ter sido? - perguntou Klaus Heinrich.

Não posso dizer com certeza, Príncipe, mas pelo que a

Comiwsa me contou, foi um aborrecimento extremo, e já con-

,

corcl:m,os em que não há limites.

E então ele foi para os Estados Unidos?

; - Adivinhou, Príncipe. Não posso deixar de admirar sua

perc.yção.�

- Ora, Srta, Imma, continue. Nunca ouvi uma história

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com. ussa da Condessa .�

- Nem eu tinha ouvido. Por isso, pode imaginar como

se i.s,ressionou quando nos veio procurar. O Conde Lówen-� �

joul . Polícia nos calcanhares por causa das dívidas, fugiu para�

os 1 ::.dos Unidos, e a Condessa foí com ele.�

- Foi com ele? Por quê?

- Porque, apesar de tudo, ainda gostava dele . . . e gos-

ta a :la hoje. . . e porque queria partilhar a vida com ele de�

qua'.,;er maneira. Mas ele a levou porque contava com o apoío�

239

da famílía dela enquanto a tiv;.sse a seu lado. Os parentes man-

daram-lhes mais uma vez dinheiro para o além-mar, mas, depois.

nunca mais. Negaram-lhes qualquer ajuda. E quando o Conde

Lwenjoul viu que a mulher não lhe adiantava mais em nada,�

deixou-a - deíxou-a sozínha, na maíor míséria e fugiu.

- Eu sabia - disse Klaus Heinrich. - Tinha imaginado.

É assim que acontece.

Mas Imma Spoelmann prosseguiu:

- Lá ficou ela, sem dinheiro nem ajuda, e, como não

tivesse aprendido a ganhar a vida, foi impiedosamente entregue

à miséria e à fome. Mas a vida lá é ainda bem mais dura e in-

digna do que aqui, e de outro lado deve-se pensar que ela sem-

pre foi delicada e frágil, e que durante muitos anos levara uma

vida ingrata. Em suma, ela não estava à altura das impressões

que a toda hora recebia da vida. E foi então que recebeu c

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benefício.

- Sim! Que benefício? Ela também me talou nisso. Que

foi esse benefício, Srta. Imma?

-- O benefício foi eJa enlouquecer; na maior miséria,

algo dentro dela "explodiu" - ela mesma usou essa expres-

são - e ela entendeu que não precisava mais manter-se em seu

juízo perfeito e tentar enfrentar a vida, mas tinha, por assim

dizer, permissão para relaxar um pouco e soltar a língua. Em

suma, o benefício foi ela ficar esquisita.

- Eu tinha a impressão - disse Klaus Heinrich - que

a Condessa se largou quando tagarelava comigo.

- É isso mesmo, Príncipe. Ela sabe muito bem quando

fala assim, e de vez em quando sorri ou deixa entender que,

afinal, não está magoando ninguém com isso. A singularidade

é para eIa uma perturbação benfazeja, que ela domina, até certo

ponto, e que se permite. Se quiser, é uma falta de. . .

- Compostura - disse Klaus Heinrich, e baixou os olhos

sobre as rédeas.

- Certo, de compostura - repetiu a moça, encarando-o.

- Parece que não aprova essa falta, Príncipe.

240

an- - Acho que não é permitido soltar-se assim e ficar à von-

us, tade --- respondeu ele, baixinho -, mas que precisamos, em

ide qualper circunstância, manter nossa compostura.�

áa, - Vossa Alteza - retrucou ela - manifesta louvável

severi.lade de comportamento. - Depois, fez o bico, movendo�

io. a cal"cinha negra e pálida no chapéu tricorne, e acrescentou�

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com wa voz rouca: - Agora vou dizer uma coisa a Vossa�

Altea , e peço que preste muita atenção. Se Vossa Alteza não�

se di,E,oe a exercitar um pouco sua compaixão, consideração e

bram 1 ra, terei de me privar definitivamente do prazer de sua� �

in- comE,; nhia.�

m- I:Ie baixou a cabeça e cavalgaram calados por algum

temEa,.

- Não quer continuar contando como a Condessa chegou

à su:, , asa? - perguntou ele, por fim.

- Não, não quero - disse ela, olhando em frente. Mas,

com °(e pedisse tanto, ela concluiu seu relato, dizendo: -� � �

Bem I u muito simples. A Condessa apresentou-se na Quinta

Ave;:.la porque ouvira dizer que estávamos procurando para��

mim ma dama de companhia alemã. E, embora se apresentas-� �

sem ,,tras 50, minha escolha - pois era eu quem tinha de��

escoli,r - recaiu sobre ela imediatamente, tanto me agradou��

depe, de nosso primeiro encontro. Logo vi que ela era esqui-� �

sita; n,as era por conhecer bem demais a miséria e a maldade;

era ue se lia em suas palavras, e, quanto a mim, sêmpre fui� ��

um },.,nco solitária e isolada, e totalmente ignorante, exceto pelos�

estu!" universitários. . .� �

- Não é verdade, a senhora sempre foi um pouco soli-

tária . isolada! - repetiu Klaus Heinrich com alegría na voz.

- Foi o que eu disse. Era uma vida relativamente monó-

tona .v simples, a que eu levava, e na verdade ainda levo, pois�

não ,mdou muita coisa, e em toda parte é tudo sernpre igual.

Havi: festas com artistas, e baíles, e às vezes disparávamos�

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num wrro fechado até a Ópera, onde eu me sentava num�

peqmw<o camarote do primeiro andar para poder ser vista por

241

todos, for show, como se díz por lá. Mínha posição acarretava

iso.�

- For show?

- Sim, f or show. É o dever de se expor, de não interpor

muros entre a gente e as pessoas, mas mostrar-se nos jardins,

gramados e terraços onde a gente se senta para tomar chá. Meu

pai, Mr. Spoelmann, detestava isso, mas nossa posição o exigia.

- E no mais, como vivia, Srta. Imma?

- Bem, na prirnavera íamos ao Adirondacks, ao Castelo

dos Adirondacks, e no verão; ao Castelo de Newport, no mar.

Naturalmente, havia festas ao ar livre e desfiles de flores e

torneios de tênis, e a gente andava a cavalo e de carruagem ou

automóvel, e as pessoas paravam e ficavam olhando, boquia-

bertas, porque eu era a filha de Samuei Spoelmann. E muitos

diziam insultos às minhas costas.

- Insultos?

- Sim, deviam ter seus motivos. De qualquer modo, le-

vávamos uma vida muito exposta, e comentada.

- E, entrementes - disse ele -, a senhora pairava

no ar, não, ou já fora dele, em regiões püras . . .

- Sim. Vossa Alteza tem a cabeça muito aberta. Mas,

depois disso tudo, pode imaginar como gostei da Condessa

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quando ela se apresentou na Quinta Avenida. Ela não falava

com muita clareza, mas antes de maneira misteriosa, e o li.mite

onde começava a "tagarelar" nem sempre era muito nítido. Mas

isso me parece correto e instrutivo, pois dá uma boa idéia de

como são ilimitadas a maldade e a míséria neste mundo. Não é

verdade que me inveja por minha Condessa?

- Bem, invejar. . . parece presumir, ,Srta. Imma, que

jamais tive qualquer experiência.

- E teve?

- Talvez, uma ou outra. Por exemplo, ouvi falar coisas

sobre nossos lacaios que a senhora díficilmente sonharia.

- Os lacaios são tão terríveis assim?

242

-- Terríveis? Não valem nada, essa é a palavra certa.

Pria.ciro, cultivam o suborno e a hipocrisia, e se fazem pagar�

pel : Iornecedores. .�

-- Bem, Príncipe, comparativamente, isso até que é ino-

fen vc,.�

- Sim, sim, não se pode comparar às experiências da

Con.!essa. . .

°assaram para um andar mais lento; junto ao marco, dei-

xara a estrada ondulante que haviam percorrido entre flo-��

rest a de pinheiros, e enveredaram pelo caminho arenoso, um�

pou;. , côncavo, emoldurado, nos barrancos, por arbustos de�

amc,r,rs silvestres, que desembocava nos prados do Castelo dos

Fsir.ys. Klaus Heinrich estava familiarizado com o terreno;�

estulia sobre ele o braço direito para mostrar tudo à sua acom-���

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panwnte, embora não houvesse muita coisa para ver. Lá estava�

o ( astelo, severo e mudo, com seu telhado de ripas e pára-

raie;, à beira da floresta. Um pouco afastado fícava o cercado�

dos I aisões, que dera nome ao lugar, e ali a estalagem de Sta-

ven nrcr, onde ele comera algumas vezes com Raoul. . . Über-

bein... Por sobre os prados úmidos, o sol de primavera brilhava

docwente, envolvendo num nevoeiro delicado as florestas mais�

dist lntes.

I'araram lado a lado, sentados sobre os cavalos, diante da

est;l.yem, e Imma Spoelmann examinou a sóbria casa de cam-�

po ..I,rmada Castelo dos Faisões.�

- Parece - disse ela com lábios torcídos - que sua

jw~.wtude não foi propriamente rodeada de uma pompa arre-

bm n<.lora . . .

--- Não - disse ele, rindo -, não há nada para se ver

nes;u castelo. Por dentro é como por fora. Não se compara com

os .. )clfins, mesmo antes de vocês o tecem reconstruído . . .

- Bem, vamos parar. Não é verdade, Condessa? Num

p,aio, é sempre preciso fazer uma parada. Vamos desmontar,��

Prí,cipe! Tenho sede e quero ver o que o seu Stavenüter tem�

par: se beber.�

243

~

Lá estava o Sr. Stavenüter, de avental verde e calças en-

adas nas botas engraxadas, curvando-se e apertando ao peito,�

com as mãos, o gorrinho bordado, rindo de emoção, exibindo

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as gengi.vas nuas.

- Alteza Real! - disse ele, a felicidade soando em sua

voz -, está me dando a honra novamente! E a senhorita! -

acrescentou com voz devota; pois conhecia muito bem a filha de

Samuel Spoelmann, e lera as notícias de jornal tão avidamente

como se fazia no Grão-Ducado, sempre com os nomes do Prín-

cipe Klaus Heinrich e de Imma. juntos.

Ajudou a Condessa a desmontar, pois Klaus Heinrich, ten-

do descido do cavalo, ajudava a moça; depois, chamou um crn-

do que cuidou dos cavalos, junto com o críado de Spoelmann,

vestido de libré. Mas, depois disso, Klaus Heinrich recebeu os

cumprimentos, como estava habituado. Em postura ereta, diri-

giu algumas peruntas formais ao Sr. Stavenüter, que o servia,�

informou-se de modo sedutor sobre sua saúde, seus negócios,

e ouviu as respostas balançando a cabeça, aparentemente inte-

ressado em tudo. Imma Spoelmann, recurvando a cbibata le�

montaria entre as duas mãos, observou com olhos sérios e

brilhantes essa atitude fria e artificial.

- Permito-me iembrar-lhe que estou com sede - disse

por fim, áspera e aborrecida, e assim sentaram-se no jardim e

fícaram algum tempo debatendo se deviam ou não entrar na

casa.

Estava úmido demais para ticarem sob as árvores, achou

Klaus Heinrich; mas Imma insistiu em ficar ao ar livre, e

escolheu pessoalmente uma das mesas compridas e estreitas,

com bancos dos dois lados, que o Sr. Stavenüter correu a co-

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brir com uma toalha branca.

- Limonada! - disse ele. - É o melhor para a sede.

e é muito pura! Nada de porcarias, Alteza e senhoras, mas

suco natural com açúcar, é a coisa mais saudável!

Era preciso fazer passar a rolha, uma bolinha de vídro.

pelo gargalo, e enquanto os doís nobres hóspedes saboreavam

244

a behida, o Sr. Stavenüter ficou mais um pouco junto à mesa,

para listraí-los com sua conversa. Já era viúvo há muito tem-�

po, e seus três filhos, que outrora tinham cantado sob aquelas

árvorus a canção da humanidade, assoando-se com os dedos,

tamhem haviam saído de casa, o filho como soldado na cida-

de, uma das filhas casada com um agrônomo vizinho, a outra

emErgada como criada numa casa da cidade, pois fora atraí-� �

da para coisas mais nobres. O Sr. Stavenüter estava sozinho

naquele isolamento e sentia-se satisfeito com seu destino tri-

plo cie arrendador da estalagem do Castelo, castelão e guarda

dos iaisões. Em breve, quando o tempo permitisse, voltariam

os dias dos excursionistas a pé e de bicicleta, enchendo o jar-

dim ;IOs domingos. Então, os negócios floresceriam. Os nobres

senh,res não queriam dar uma olhada no Castelo dos Fai-�

sões �

)ueriam, sim, e mais tarde; portanto, de momento, o�

Sr. Stavenüter se afastou discretamente, depois de colocar ao

lado .la mesa uma tigela com leite para Percival.�

( ) colli entrara num charco do caminho e parecia um de-

môni.,. As pernas fininhas estavam molhadas - e as partes

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bran.as de seu pêlo enovelado estavam sujas. A boca aberta�

e es;umante, com que revolvera a terra procurando ratos-do-�

camto., estava negra até a goela, e sua língua pendia para fora,�

negr: c vermelha, com ponta triangular. Bebeu o leite avida-

men;v e depois deixou-se cair no chão, ao lado da dona, os

flancv.,s ondulando, a cabeça atirada para trás com expressão

de E·:oFundo repouso.�

hlaus Heinrich achou uma irresponsabilidade expor Imma

ao tr,úçoeiro ar da primavera, sem abrigo, depois daquela ca-

valnda.�

- Pegue o meu manto! - dísse..- Não preciso dele.

Eston com calor, e o casaco é acolchoado no peito!

Ela não quis aceitar a sugestão; mas, como Klaus Hein-

rich ontinuasse pedindo insistentemente, ela concordou e dei-�

xou ,.ne ele colocasse em seus ombros o cinzento manto mili-�

25�

i.

I��

tar com ombreiras de major. Assim enrolada, ela apoiou na

mão a cabecinha triangular com cabelos negros e rosto pálido,

e o contemplou enquanto ele, estendendo o braço para o Cas-

telo, contava a vida que ali levara em outros tempos.

Lá, no térreo, onde se viam as janelas altas, fora o refei-

tório; lá, a sala de aula; lá em címa, o quarto de Klaus Hein-

rich, com o torso de gesso sobre o fogão de azulejos. E ele

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contou sobre o Professor Kürtchen e seu habilidoso sistema de

perguntas e respostas. durante as aulas, sobre a capitã Amelung,

sobre os nobres Faisões, que achavam tudo uma `porcaria", e

sobre Raoul Überbein, seu amigo, assunto ao qual Imma Spoel-

mann o fez voltar várias vezes.

Ele falou da origem obscura do doutor, e do dínheiro do

tal acordo; da criança no charco ou pântano e da medalha de

salvamento; da vida corajosa e ambiciosa de Überbein vívida

sob duras condições, que ele costumava dizer serem boas de-

mais, estritamente dependente da própria capacidade, e de sua

ligação com o Dr. Sammet, a quem Imma conhecia. Descreveu

seu aspecto externo pouco agradável e, com palavras alegres,

fundamentou a inclinação que desde o início sentira por aquele

professor, descrevendo a postura deste para com seu aluno

Klaus Heinrich - aquela camaradagem paternal, cordial e fan-

farrona que tanto se diferenciara da atitude de todas as outras

pessoas -, e, da melhor maneira que pôde, mencionou isso

e aquilo da vida de Überbein; por fim, expressou sua tristeza

pelo fato de o doutor não ser muíto apreciado pelas pessoas.

- Acho que é verdade - disse Imma.

Ele ficou espantado e perguntou por que ela pensava

assim.

- Porque estou certa - respondeu ela, meneando a ra-

beciriha - de que esse Überbein, com suas conversas bem-hu-

moradas, é mesmo assim uma pessoa sinistra. Ele é um grande

fanfarrão, mas isso não tem fundamento, Príncipe, por isso vai

ter um mau fim.

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246

li...,

Klaus Heinrich fícou perturbado e pensatívo com essas

paiavras. Depois, dirigíu-se à Condessa, que voltou sorrindo

de i.ma de suas ausências, elhe disse algo educado sobre como�

mmncava bem, ao que ela respondeu cortesmente. Ele disse que

se notava que ela aprendera a montar cedo, e ela confirmou

clm.v, na verdade, aulas de equitação tinham ocupado boa parte

da sua educação. Falava com clareza e animação; mas aos pou-

r<r , quase imperceptivelmente, afastou-se do caminho normal,

contou alguma coisa estranha sobre cavalgadas ousadas que

rr:lírara como Tenente na última campanha, e inesperadamente�

se 4os a descrever a mulher de um sargento dos granadeiros, in-

criv,rlmente repulsiva, que naquela noite estivera em seu quarto

arr;nhando-lhe impiedosamente o peito e dizendo coisas que�

ni., se podiam reproduzir. Klaus Heinrich perguntou baixinho�

se a porta e as janelas não tinham ficado trancadas.

- Sim, mas existe a vidraça! - respondeu ela, precipí-

ta, i,jmente.

E como, ao responder isso, fícasse com metade do rosto

p.ílida e a outra vermelha, ele concordou, balançando a cabeça

e lizendo palavras brandas. Sím, baixando os olhos ele até�

pr,pôs chamá-la de "Sra. Meier", sugestão que ela aceitou avi-�

dancnte, com um sorríso familiar - alíás, um olhar oblíquo�

env direção a algo índefinido, com expressão síngularmente se-

dntora. Então, foram visítar o Castelo dos Faisões, depoís que

Inma devolveu o manto a Klaus Heinrich; e quando saíam do�

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ja -:lim ela dísse:

- Muíto bem, Príncípe, o senhor está progredindo.

O elogio o fez corar, causou-lhe muito maís alegría do

cíu a mais bela notícía de jornal sobre o efeito sublíme de�

sua solene pessoa, naqueles recortes que o Conselheíro Schus-

tu: man lhe apresentava.

O Sr. Stavenüter acompanhou os vísitantes até o cercado

d. paliçadas onde, na relva e nas macegas, viviam as seis ou

SI,CC famílias de faisões, muito bem-cuidadas, e eles observa-

r:m o comportaménto daquelas aves colorïdas, de olhos verme-�

247

lhos e caudas hirtas, visitaram a chocadeira e assistiratn à ali-

mentação que o Sr. Stavenüter distribuiu ao pé de um belo

pinheiro solitário, para divertir os três. Klaus Heinrich o elo-

giou muito pelo que vira. Imma Spoelmann o encarava com

seus grandes olhos escuros e perquiridores, enquanto eIe cum-

pria essas formalidades. Depois, montaram a cavalo diante da

estalagem, e voltaram para casa, com Percival saltando e uivan-

do diante dos cavalos.

Nesse retorno para casa, Klaus Heinrich teria, na conver-

sa, mais uma indicação importante sobre o caráter e a natureza

de Imma Spoelmann, uma revelação direta de certos aspectos

de sua personalidade que lhe deram matéria para muita re-

flexão.

Logo depois de terem deixado o caminho côncavo, ladea-

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do de amoras silvestres, cavalgando uma vez mais pela estrada

docemente ondulada, Klaus Heinrich voltou a um aspecto que

£ora mencíonado com síngular brevidade em sua primeíra vísí-

ta ao Castelo dos Delfins, na conversa durante o chá, e que

nunca deixara de inquietá-lo de maneira indefinida.

- Permita que eu faça uma pergunta, Srta. Imma -

dísse ele. - Não precísa responder se não tiver vontade.

- Vamos ver - respondeu ela.

-- Há quatro semanas - começou ele -, quando tive

pela primeira vez o prazer de falar com seu pai, o Sr. Spoel-

mann, fiz-lhe uma pergunta que ele respondeu de maneira tão

breve e brusca que tive receio de ter dado um passo em

falso, ou cometido uma gafe.

~ Que foi que perguntou?

- Perguntei se lhe fora difícil deixar os Estados Unidos.

- Sim, Príncipe, veja, essa pergunta foi bem parecida

com o senhor, uma pergunta de príncipe. Se fosse um pouco

mais versado no terreno do raciocínio, ter-se-ia contentado si-

lenciosamente com a sensata dedução de que, se meu pai não

gostasse de deixar os Estados Unidos, não teria nem saído

de lá.

248

- Pode ser verdade, Srta. Imma, perdoe-me, não racio-

cino muito bem. Mas se, com essa pergunta, só me fíz cul-

pado cle um raciocínio falso, fico contente. Pode me tranqüi-

lizar?

- Pois bem, Príncipe, nem chegou a ser isso - disse ela,

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encarando-o de repente com aqueles grandes olhos pretos e

· lustrosos.

- Está vendo? Está vendo? Mas qual é o problema,

Srta. Imma? Conte-me o que há para contar. Deve isso à

nossa amizade!

- Mas somos amigos?

- Eu pensei . . . - disse ele, mendicante.

-- Muito bem, tenha paciência. Eu não sabia. Fico con-

tente em saber. Mas, voltando ao meu pai, ele realmente se

. aborrcceu com a pergunta . . . incomoda-se com facilidade e

teve uportunidades de se exercitar incrivelmente nesse estado

de espírito. O problema é que, nos Estados Unidos, a opinião

pública não nos era muíto favorável. Lá a.contecem intrigas . .

quero avisar que não estou informada sobre detalhes, mas está

havenclo uma intensa atividade política para voltar o povo con-

tra ncs, sabe, as muitas pessoas que não foram atingidas, sabe,�

e assim surgiram inimizades jurídicas e adversidades constan-

tes, due tornaram a vida lá insuportável para meu pai. Prín-

cipe, o senhor sabe bem que não foi ele o responsável por

nossa fortuna, mas meu antipático avô, com seu "Paradise

Nugget" e sua fazenda Blockhead. Meu pai não tem culpa

alguma, ele herdou seu destino, e náolhe foi fácil tudo isso

Ele é tímido e delicado por natureza, e preferia ficar apenas

' tocando órgão e colecionando vídros. Sim, acho que o ódio

que nos envolvia devido a essas intrigas, fazendo o povo gritar

insultos quando eu passava de carro - esse ódío foi que lhe

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causou as pedras nos rins, é bem provável.

- Eu tenho a maior simpatia por seu pai - disse Klaus

5

Heinrich com veemência.

24)

Í, .

- Espero que sim, Príncipe, se quisermos ser amigos.

Mas houve outra coísa aínda, que piorou tudo, e dificultou

nossa estada lá, e tinha a ver com nossa origem.

- Sua origem?

- Sirn, Príncipe, não somos "faisões" da nobreza. Infe-

lizmente, não descendemos nem de ZXlashington nem dos pri-

meiros ímigrantes . . .

- Não, os senhores são alemães.

- Sim, mas com isso nem tudo fíca arranjado. Tenha a

condescendência de me encarar direito. Acha honroso ter um

cabelo tão líso, preto-azulado, que sempre cai onde não deve?

- Deus sabe que seu cabelo é belíssimo, Srta. Imma -

disse Klaus Heinrich. - Sei muíto bem que a senhora tem.,

em parte, origem sulina, pois seu avô se casou na Bolívia

ou naquela região, segundo li.

- Isso mesmo. Mas aí está o problema, Príncipe. Eu

sou uma quinterone.

- O quê?

- Uma quinterone.

- É como os Adirondacks e a paralaxe, Srta. Imma.

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Não seí o que sígnífíca. Já lhe dísse que não aprendí muita

coisa.

- Bem, foi assim. Meu avô, insensato como era em tüdo,

casou-se por lá com uma dama de sangue indio!

- Índio!

- Isso mesmo. A referida dama descendia, em terceira

geração, de índios, era filha de um branco e uma meia ïndia

- portanto, terzerone, como dizemos. Dizem que era espan-

tosamente bonita! E foi minha avó. Mas a neta é chamada de

quinterone devido à avó. É isso.

- Sim, é singular. Mas a senhora não disse que isso in-

fluenciou a atitude das pessoas em relação à sua pessoa?

- Prïncipe, o senhor não sabe de nada. Deve saber que,

Iá, sangue índio signifíca falha grave - tão grave que amízades

e amores se expõem a insulto e vergonha, caso uma das par-

250

tes revcle esse tipo de origem. Não é tão grave conosco, os

guartcrwnes; em nome de Deus, neste caso já não são tão gra-

ves a vrgonha e o preconceito; um grtinterone é quase ima-�

culado. Mas conosco, que estávamos tão expostos aos mexe-

ricos pí.ihlicos, naturalmente era diferente, e muitas vezes,

quando me insultavam, escutei dizerem que eu era "de cor".

Em suma, continuava sendo uma limitaão, um gravame, e�

nos isolava até mesmo dos poucos que estavam mais ou menos

na mcsma situação - sempre havia algo a esconder ou defender.

Meu avô se defendera disso, pois era homem para tal e sabia

o que cstava fazendo; também era de sangue puro, só sua lin-

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da mulher tinha essa nódoa. Mas meu pai era filho dela e, irri-

tadiço como é, sensível, desde a juventude suportou tudo muito

mal, a um tempo odiado, desprezado e motivo de espanto dos

outros, parte maravilha, parte um ser desprezível, como cos-

tumava dizer. Estava saturado dos Estados Unidos. Essa é a

história, Príncipe - disse Imma Spoelmann. - E agora sabe

por que meu pai se aborreceu com sua pergunta tão perspicaz.

Klaus Heinrich agradeceu a explicação, antes do portal

do Castelo dos Delfins, quando - era hora do almoço -,

mão ncs quepe, se despediu das damas, repetiu o agradeci-

mento pelo que ela lhe dissera e partiu a passo, refletindo

sobre cs acontecimentos daquela manhã.�

In,ma Spoelmann, sentada com seu vestido vermelho e

douraclo à mesa da sala, postura neglígente, ar mimado, ins-

talada na segurança e no luxo, usando da linguagem ferina

de qem precisa estar alerta, lúcido e frio para sobreviver.��

Mas pe>r quê? Klaus Heinrich agora entendia, e cada vez mais

se ocyava em compreender isso melhor. Contemplada com�

espanto, ódio e desprezo, parte uma maravilha, parte uma in-

fâmia - fora assim que ela vivera, e isso entremeara aqueles

espinhos na sua linguagem, conferira-lhe aquela aspereza, aque-

la irônica lucidez que parecia agressão, mas era autodefesa, e

provorava uma expressão de dor nos rostos daqueles que não

precis.wam ser duros nem irônicos para se defenderem. Ela

21�

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lhe pedira que fosse compassivo e brando com a pobre Con-

dessa quando esta se descontrolasse; mas era ela própria quem

precisava de brandura e compaixão, pois era solitária e tinha

a vida atribulada - como ele. Essas ponderações despertaram-

Ihe uma recordação antiga, dolorosa, do bufê do Parque Mu-

nicipal, terminando com uma tampa de terrina de ponche. "Ir-

mãzinha! ", pensou, afastando depressa aquela cena de sua me-

mória. "Irmâzinha! " E pensou, mais que em tudo, na possi-

bilidade de voltar a encontrar-se rapidamente rom Imma Spoel-

mann.

Isso aconteceu logo e repetidamente, ern várías círcuns-

tâncias. Fevereiro terminava, março chegou cheio de promes-

sas, abril, com suas mudanças de clima, e o doce mês de Lnaio.

Durante todo esse tempo, Klaus Heinrich visitava o Castelo

dos Delfins, uma vez por semana, de manhã ou à tarde, sem-

pre naquele estado de espírito irresponsável com que apare-

cera aos Spoelmann naquela manhã de fevereiro - por assim

dizer, sem vontade própria, levado pelo destino. A sítuação

de vizinhança dos dois castelos favorecia os encontros, o breve

trecho entre o parque do Eremitage e os Delfins cumpria-se a

cavalo ou de carruagem sem chamar a atenção; e quando, à

medida que o ano avançava, se tornou cada vez mais difícil

andarem a cavalo juntos sem chamarem a atenção do público,

pois agora havia muita gente no local, o Príncipe mostrou

total indiferença e cega desconsideração para com o mundo, a

Corte, a cidade, o país. Só mais tarde o povo começou a ter

um papel, importante e favorável, nos pensamentos dele.

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Klaus Heinrich despedira-se das damas depois do primeiro

passeio pensando em outro, ao qual, meneando a cabecinha,

os Iábíos em bico, Imma não fez qualquer objeção. Assim, ele

voltou, e foram a cavalo até o Castelo de Caça, na extremidade

norte do Parque Municipal; mais tarde, fizeram um terceiro

passeio para um Iugar aonde se chegava sem que fosse preciso

atravessar a cidade. Mais tarde, quando a primavera atraía

para o campo os moradores da Residência, e os jardins das

252

estalagens ficavam repletos de gente, preferiram um trajeto

afastado, que nèm era caminho, mas uma represa à beira de

um prado com declive florido, que se estendia ao longo do

braço de um rio espumante, em direção ao norte. Chegava-se

aIi sem sr perturbado, cavalgando pelos fundos do parque do�

Eremitage e pelo prado na extremidade norte do Parque Mu-

nicipal, até a altura do Castelo de Caça, mas não junto da

represa, sobre a ponte de madeira, e sim ao lado dela, seguin-

do o curso d'água. A direita, deixavam para trás a granja da

administração do Castelo, e até onde fossem havia uma vege-

tação de altura média. A esquerda, estendiam-se os campos,

brancos e coloridos de cicuta e tasneirinha, dentes-de-leão e

campânulas, trevos, margaridas e miosótis. A torre de uma

igreja de aldeia erguia-se entre os campos cultivados, e ao longe

passava a estrada com seu tráfego, do qual estavam protegidos.

Mais adi,nte, havia pastagens e arbustos de aveleiras, também�

à esquerda, perto do declive, impedindo a visão; agora, caval-

gavam totalmente isolados e abrigados, em geral sô os dois,

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seguidos da Condessa, que vinha mais atrás, pois o caminho

era estrcito. Conversavam ou se mantinham em silêncio, en-

quanto Icrcíval saltava sobre a água as patas dianteíras enco-�

lhidas, ou ia lá embaixo tomar um banho e saciar a sede, be-

bendo rapida e ruidosamente. Voltavam pelo mesmo caminho

por onclc tinham vindo.�

Ma, quando, devido à baixa pressão atmosférica, caía o

mercúrio do barômetro, e depois chovia, e mesmo assim ILlaus

Heinrici julgava necessário um reencontro com Imma Spoel-�

mann, apresentava-se em sua carruagem para a hora do chá no

Castelo dos Delfíns, e ficava por lá. Só duas ou três vezes o

Sr. Spoel.mann partilhou o chá. Sua indisposição aumentava

nesse tempo, e em muitos dias precisava ficar de cama com

compressas quentes. Quando vinha, dizia:

- Então, jovem Príncipe!

Mergulhava com a mão magra, semi-encoberta pelos pu-

nhos, uma torrada no chá, dizia aqui e ali uma palavra roufenha

253

e .por fim oferecía ao visitante a cigarreira dourada; depois,

saía novamente da sala com o Dr. Watercloose, que estívera

sentado à mesa, sorridente. Também podia acontecer que, mes-

mo em dias de sol, preferissem ficar no parque, jogando bola

no terreno aplanado e atravessado por uma rede. Sim, uma vez

até fizeram um veloz passeio de carro até bem depois do Cas-

telo dos Faisões, num dos automóveis de Spoelmann.

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Um dia, Klaus Heinrich indagou:

- Srta. Imma, é verdade o que li, que seu pai recebe

diariamente muitas cartas e pedidos?

Então, ela lhe contou das coletas e listas de subscrições

que chegavam constantemente aos Delfins, as quais eram aten-

didas conforme as possibilidades, das pilhas de cartas pedindo

coisas, vindas da Europa e Estados Unidos, que sempre che-

gavam com o correio e eram examinadas pelos Srs. Phlebs e

Slippers, que apresentavam uma seleção ao Sr. Spoelmann. Por

vezes, disse ela, divertia-se dando uma olhada naquelas pilhas

de cartas e lendo os sobrescritos, não raro fantásticos. Os emis-

i sários, gente necessitada ou especuladores, superavam-se uns�

ii

aos outros até nos envelopes em matéria de servilismo e estilo,

e as cartas traziam toda sorte de formas de tratamento, as mais

bizarras misturas. Recentemente, um pedinte vencera o torneio

escrevendo: "Para Sua Alteza Real, Sr. Samuel Spvelmann",

mas não recebera mais que os outros. . .

Outra vez, ele falara em voz baixa sobre a Sala das Co-

rujas, no Castelo Velho, confiando a Imma que recentemente

se tinham ouvido rumores lá dentro, o que prenuncíava acon-

tecimentos importantes na família dele. Imma Spoelmann riu

e, meneando a cabecinha, lábios em bico, explicou tudo cíenti-

ficamente, como explicara a coisa do barômetro. Disse que era

tudo bobagem, talvez apenas a sala dos fantasmas tivesse forma

de elipse, e uma segunda superfície elipsoidal, de curvatura

semelhante, existisse Iá fora, como fonte dos ruídos, o que

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fazia com que se escutassem na sala assombrada rumores não

ouvidos ali perto. Klaus Heinrich ficou abalado com essa expli-

254

e .por fim oferecía ao visitante a cigarreira dourada; depois,

saía novamente da sala com o Dr. WatercIoose, que estivera

sentado à mesa, sorridente. Também podia acontecer que, mes-

mo em dias de sol, preferissem ficar no parque, jogando bola

no terreno aplanado e atravessado por uma rede. Sim, uma vez

até fizeram um veloz passeio de carro até bem depois do Cas-

telo dos Faisões, num dos automóveis de Spoelmann.

Um dia, Klaus Heinrich indagou:

- Srta. Imma, é verdade o que li, que seu pai recebe

diariamente muitas cartas e pedidos?

Então, ela lhe contou das coletas e Iistas de subscrições

que chegavam constantemente aos Delfins, as quais eram aten-

didas conforme as possibilidades, das pilhas de cartas pedindo

coisas, vindas da Europa e Estados Unidos, que sempre che-

gavam com o correio e eram examinadas pelos Srs. Phlebs e

Slippers, que apresentavam uma seleção ao Sr. Spoelmann. Por

vezes, disse ela, divertia-se dando uma olhada naquelas pilhas

de cartas e lendo os sobrescritos, não raro fantásticos. Os emis-

sários, gente necessitada ou especuladores, superavam-se uns

aos outros até nos envelopes em matéria de servilismo e estilo,

e as cartas trazïam toda sorte de formas de tratamento, as mais

bizarras misturas. Recentemente, um pedinte vencera o torneio

escrevendo: "Para Sua Alteza Real, Sr. Samuel Spoelmann",

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mas não recebera mais que os outros. . .

Outra vez, ele falara em voz baixa sobre a Salrt das Co-

rujas, na Castelo Velho, confiando a Imma que recentemente

se tinham ouvido rumores lá dentro, o que prenunciava acon-

tecimentos importantes na família dele. Imma Spoelmann riu

e, meneando a cabecinha, lábios em bico, explicou tudo cienti-

ficamente, como explicara a coisa do barômetro. Disse que era

tudo bobagem, talvez apenas a sala dos fantasmas tivesse forma

de elipse, e uma segunda superfície elipsoidal, de curvatura

semelhante, existisse lá fora, como fonte dos ruídos, o que

fazia com que se escutassem na sala assombrada rumores não

ouvidos ali perto. Klaus Heinrich ficou abalado com essa expli-

254

r--

cação, e só a custo desistiu da relação entre os ruídos e o des-

tino de sua família.

(;onversavam sobre tudo isso, e a Condessa participava,

ora lúcida, ora perturbada, pois Klaus Heínrich se esforçava para

não a inibir nem esfriar ainda mais com sua personalidade, mas

chamava-a de "Sra. Meier" quando percebia que ela preci-

sava disso para se assegurar contra a perseguição daquelas mu-

lheres pecaminosas. Ele falava às senhoras sobre sua vida inco-

mum, as belas reuniões da corporação, as refeições com os

militares, sua viagem cultural e seus parentes, sua mãe, outrora

tão bela, a qúem às vezes visitava no Castelo Segenhaus, onde

ela mantinha uma Corte deveras melancólica. Klaus Heinrich

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também falava de seus irmãos Albrecht e Ditlinde. Imma Spoel-

mann respondia com alguns relatos de sua singular e magnífica

juventude, e por vezes a Condessa deixava ouvir alguma pala-

vra obscura sobre os horrores e segredos de sua vida, que os

doís escutavam com rosto sério, devoto mesmo.

lavia uma espécie de jogo que gostavam de fazer: adivi-�

nhar formas de vida, avaliar vagamente pessoas que viam nos

setores da vida comum, até onde sabiam delas ---- uma obser-

vaão estranha e ávida dos que passavarn, conrernplados de�

longe, de cima do cavalo, ou do terraçu dos Spoelmann. C2uern

seriarn aqueles jovens? Que fariam na vida? De mde seriam?�

Não eram aprendizes de comércio, mas talvez técnicos ou apren-

dizes de guardas-florestaís. segundo certos .indícios; ou eram

da escola de agronomia, rapazes um pouco rudes, mas atívos,

que haveríam de conseguír seu objetivo honesto. Mas aquela

pecuena desmazelada, que passava vagabundeando, devía ser�

oper.íria de fábrica ou costureirinha. Essas mocinhas costuma-

vam ter amantes do mesmo ambiente, que nos domíngos as le-

vavam a um café ao ar livre. E os dois partilhavam o que

sabiam das pessoas, falavam disso com agrado e sentíam-se

aquecidos por esse passatempo, mais que pela corrida ou jogo

de hola.

255

I .

¡!

Quanto ao veloz passeio de automóvel, Imma Spoelmann

explicou durante o percurso que só convidara Klaus Heinrich

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para que visse o motorista dela, um jovem americano vestindo

couro marrom, de quem dísse ser parecido com o Príncipe.

Klaus Heinrich, rindo, respondeu que, vendo o motorista por

trás, não conseguia avaliar nada, e pediu que a Condessa desse

seu julgamento. Esta, depois de negar por algum tempo a se-

melhança, indignada, finalmente a confirmou, pressionada por

Imma, e com um olhar de soslaio para Klaus Heinrich. Então,

a Srta. Spoelmann contou que aquele rapaz sério, sóbrio, hábil

e bem-posto estivera primeiro a serviço pessoal do pai dela,

a quem diariamente levava da Quinta Avenida para a Broadway,

e por outros trajetos também. O Sr. Spoelmann, porém, exigira

do motorista uma velocidade fora do comum, quase a de um

trem expresso, e o motorista não suportara a terrível tensão

que se exigia deIe no trânsito de Nova Iorque. Jamais acon-

tecera um acidente; o rapaz agüentara e cumprira seu perigo-

síssimo' dever cem incr:vel atenção. Mas, por fim, ao cabo da

corrida, várias ezes i.veram de tirá-lo, desmaiado, de trás do� �

volante, e entãc entenderam o desmesurado esforço a que ele

se submetera áiariamente. Para não despedi-lo o Sr. Spoelmann

o norneara motorista pessoal da filha, serviço mais leve, que

ele continuara executando no outro país. A semelhança entre

Klaus Heinrich e ele fora constatada por Imma quando vira

o Príncipe pela primeira vez. Naturalmente, não era serne-

Ihança de traços, mas de expressão. A Condessa concordara...

Klaus Heinrich disse que não tinha nada contra a semelhança,

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pois o heróico jovem gozava de toda a sua simpatia. Então,

falaram mais sobre a vida difícil e tensa de um motorista, sem

que a Condessa Lüwenjoul continuasse participando. Naquele

passeio, ela não soltou a língua, mas disse mais tarde, com

gestos repousados, algumas coisas claras e corretas.

Aliás, a ânsia de velocidade do Sr. Spoelmann parecia

ter-se transferido parcialmente para a filha, pois, a cada opor-

tunidade, ela repetia o galope exuberante da primeira vez; e

256

como. instigado pela zombaria da moça, Klaus Heinrich exigisse

o m.ísimo do perturbado e desprezado Florian, para não ficar

atras. oquelas cavalgadas violentas assumiam cada vez mais o

car,ítr competitivo de uma corrida, que Imma Spoelmann sem-�

prc provocava de maneira inesperada e caprichosa. Várias dessas

comEetições tiveram lugar naquele solitário prado em declive�

que lava para o rio, e uma, especialmente, foi longa e encar-�

niçaW. Aconteceu logo após um breve diálogo sobre a popula-

ridWe de Klaus Heinrich, que Imma iniciou e interrompeu do

mesn,o modo brusco. Ela perguntou de repente:

- Príncipe, ouvi. direito? Dizem que o senhor é incri-

velmente querido entre o povo. Que todos os corações batem

pelo senhor!

Ele respondeu:

- Dizem. O motivo deve ser alguma qualidade que não

é necessariamente boa. Não sei se devo acreditar nisso e me

alegrar. Duvido que depusesse em meu favor. Meu irmão, o

Grão-Duque, acha que popularidade é porcaria.

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- Sim, o Grão-Duque deve ser um homem orgulhoso;

tenho muito respeito por ele. E o senhor está em segundo

plano, e todo o mundo o ama tanto . . . Go on! - exclamou

ela de repente; um duro golpe da chibata de couro branco

atin;iu Fatima, que estremeceu, e começou a perseguição.�

E durou muito. Nunca tinham ido tão longe, seguindo 0

curso do rio. A esquerda, há muito não se via mais paisagem.

Torrões de terra e feixes de capim voavam debaixo dos cascos.

A (.ondessa logo ficou para trás. Quando finalmente frea-�

ram os cavalos, Florian tremia, no auge de sua resistência, e

eles próprios estavam pálidos, ofegantes. O caminho de volta

foi Eercorrido em silêncio.�

Na tarde anterior ao seu aniversário, Klaus Heinrich rece-

beu Raoul Überbein no Eremitage. O doutor veio dar suas

con;ratulações, pois no dia seguinte o trabalho o impediria de�

vir. Foram passear no caminho de cascalho na parte de trás

do E,arque, o professor de casaco e gravata branca, Klaus Hein-

257

rich na sua litewkcr. O capim estava maduro para ser ceifado,�

sob o sol oblíquo da tarde, e as tílias se abriam em flor. Num

canto, perto da sebe que separava o terreno das feias campínas

do subúrbio, ficava um pequeno templo arruinado, feito de

cascas de árvore.

Klaus Heínrích falou de suas vísitas aos Delfms, pois era

o assunto que mais lhe interessava; fez seu relato em tom

vivo, sem dízer novidades ao doutor, pois este mostrou estar

informado de tudo. Como? Ah, de diversas fontes. Überbein

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não sabia mais que os outros. Então, os moradores da Resi-

déncia se interessavam por essas coísas?

- Não, Klaus Heinrich, por Deus, ninguém pensa nisso.

Nem as cavaIgadas nem as visitas na hora do chá nem o passeio

de automóvel. Naturalmente, essas coisas não vão mover nenhu-

ma língua da cidade.

- Mas nós somos tão cautelosos!

- Nós está ótimo, Klaus Heinrich, e isso da cautela

também. Aliás, von Knobelsdorff tem pedido ínformações mi-

nucíosas sobre seus atos.

- Knobelsdorff?

- Knobelsdorff.

Klaus Heinrich ficou calado.

- E como é que o Barão Knobelsdorff reage às notícias?

- perguntou depoís.

Bem, o velho ainda não vira motivos para intervir no

curso das coisas.

Mas e a opinião pública? Os outros? Bom, os outros na-

turalmente estavam em grande expectativa.

- E você, e você, meu caro doutor?

- Eu estou esperando pela tampa do ponche - respon-

deu o doutor.

- Não! - exclamou Klaus Heinrich com voz aIegre. -

Não, não haverá tampa de ponche, Dr. Überbein, pois eu estou

` Espécie de casaco. fN. da T.)�

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feliz, não importa o que vai acontecer... entende isso? O

senhor me ensinou a não me importar com felicidade e me

puxou pelas orelhas, trazendo-me de volta a mim mesmo, quan-

do tentei ser feliz, e fiquei imensamente grato por isso, pois

foi horrível, horrível, e eu não esqueço. Mas isto aqui não é

um passeio pelo salão de baile do Parque Municipal, de onde

volto humilhado e nauseado interíormente, não é engano nem

desvio nem rebaixamento. Não está vendo que esta de quem

falamos não pertence nem ao Parque Municipal nem aos Fai-

sões aristocráticos nem a ninguém mais, senão a mim. . . que

ela é uma princesa, Dr. Überbein, e minha igual, e que por-

tanto nem se pode falar em tampa de ponche? O senhor me

ensinou ue é desprezível afirmar que somos todos apenas��

humanos, e que não há esperança para mim em agir como se

isso fosse verdade, que essa é uma felicidade proibida, que

deve acabar em desgraça. Mas isto agora não é felicidade des-

prezível nem proibida. É, pela primeira vez, uma coisa per-

mitida e cheia de esperança, é a felicidade feliz, Dr. Überbein,

à qual me posso entregar contente, não ímporta o que venha

a acontecer. . .

- Ildeus, Príncipe - disse o Dr. Überbein sem se afas-

tar. Mas continuou, mãos nas costas e barba ruiva baixada

sobre o peito, a andar do lado esquerdo de Klaus Heinrich.

- Não - disse este. - Não, adeus não, Dr. Überbeín. . .

é isso! )uero contínuar seu amígo, o senhor que teve uma�

vída tão clifícil e tão orgulhosamente se mantém firme, acredi-

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tando no destíno e na tenacidade, e me deixa orgulhoso por

me tratar como camarada. E agora que encontrei a felicidade,

não quero me acomodar, mas continuar fiel ao senhor e a mim,

e à minha vocação. . .

- Não vai ser possível - dísse o Dr. Überbein em

latim, e sacudíu a feia cabeça com as orelhas pontudas e sa-

lientes.

- im, Dr. Überbeín, estou bern certo de que pode ser,�

as duas coisas podem coexistir. E o senhor não devia andar

259

aí do meu lado, tão frio e reservado, pois estou feliz, e ainda

por cima é véspera do meu aniversário. Diga-me. . . teve tantas

experiências e viu tanta coisa. . . mas nunca teve experiências

nesse sentido. . . já sabe. . . alguma vez ficou arrebatado como

eu estou?

- Hum - fez o Dr. tlberbein, apertando os lábios,

fazendo erguer-se a barba ruiva e formando bolas de músculos

nas faces. - Podia ter acontecido, secretamente.

- Está vendo? Está vendo? Então me conte, Dr. Über-

bein! Hoje, tem de me contar!

E como fosse uma hora grave e docemente ensolarada,

dominada pelo aroma das flores de tília, Raoul Überbein rela-

tou um incidente em sua vida, jamais mencionado em relatos

anteriores, mas que talvez tivesse tido importância decisiva.

Transcorrera há muito tempo, quando Überbein dava aulas

aps pequenos moleques e, paralelamente, cuidava da própria

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carreira, apertando o cinto e lecionando a gordos filhos de

burgueses para comprar livros. Sempre de mãos às costas, barba

no peito, o doutor falou em tom áspero e resumido, apertando

fortemente os ábios nos intervalos.�

O destino o ligara, naquela vez, com força indizível a uma

mulher, uma bela mulher pálida, esposa de um homem nobre

e respeitável, e mãe de três filhos. Ele fora à casa deles como

preceptor das crianças, porém mais tarde fora muitas vezes

convidado à mesa da família e se tornara amigo da casa, man-

tendo boas relações com o marido. O que existia entre o jovem

professor e a pálida dama permaneceu por longo tempo contido

e calado. Mas apenas se fortaleceu mais, naquele silêncio. Tor-

nou-se algo avassalador e, certa vez, num fim de tarde, quando

o marido se demorara mais no trabalho, uma hora doce, ardente

e perigosa, tudo explodira, em labaredas, deixando-os atordoa-

dos. Pusera-se a clamar neles o desejo de felicidade, a intensa

felicidade da união. Mas, comentou o Dr. Überbein, de vez

em quando ainda acontecem coisas decentes neste mundo. Os

dois tinham-se considerado bons demais para enveredarem pelo

260

caminho ridículo e vulgar da traição; também não era de seu

gosto exporem-se ao inocente marido, exigindo liberdade e

destruindo a vida dele. Em suma, pelas crianças, pelo marido

nobrc e bondoso, a quem muito apreciavam, haviam renuncia-

do um ao outro. Sim, esse tipo de coisa ainda acontecia, mas

naturalmente exigia que a gente se controlasse um bocado.

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Übrbein ainda ia, às vezes, à casa da pálida dama. Jantava lá�

quando seu tempo o permitia, jogava cartas com o amigo, bei-

java a mão da dona da casa e dizia boa-noite! . . . Mas, depois

de contar isso, ele disse mais; falou em tom ainda mais lacô-

nico e áspero que antes, formando mais vezes aquelas bolas de

mtísculos nas faces. Naquele tempo, quando ele e a pálida dama

haviam renunciado, naquele tempo Überbein também renuncia-

ra para sempre ao "ócio da felicidade", como desde então dizia

,

e fora uma decisão definitiva. Como não pudesse, ou não qui-

sesse, conquistar a dama pálida, jurara a si mesmo honrá-la e

àquilo que o ligava a ela, tornando-se grande e progredindo no

campo profissional - pusera toda a sua vida nas realizações

profissionais, só nelas, e se tornara o que era. Era esse o se-

gredo, ao menos era uma ajuda no sentido de se resolver o

. enigma da severidade de Überbein para consigo mesmo, sua arro-

gância e seu zelo. Klaus Heinrich viu, receoso, que o rosto dele

estava extraordinariamente esverdeado quando se despediu com

uma funda mesura, dizendo:

- Klaus Heinrich, minhas recomendações à pequena

Imma!

Na manhã seguinte, o Príncipe recebeu na Sala Amarela as

felicitações da criadagem do Castelo, e ais. tarde dos Srs. von�

Braunbart-Schellendorf e von Schulenburg-Trèssen. No curso da '

manhã, os membros da família do Grão-Duque foram ao Eremi-

tage dar seus parabéns, e à lh Klaus Heinrich se dirigiu, em

sua sege, para o almoço em família com o Príncipe e a Princesa ;

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zu Ried-Hohenríed, a caminho saudado com inusitados aplausos

do público. Os grimmburguenses estavam todos presentes no de-

licado palácio da Albrechtsstrasse. Também o Grão-Duque veio,

261

r � �

ji ;

i ' de casaco, saudou todos com a estreita cabeça, sugando de leve

o lábio superior com o inferior, e bebeu leite misturado com

água mineral na refeição. Quase imediatamente após concluído

o almoço, retírou-se. O Príncípe Lambert víera sem a esposa. O

velho amigo do balé estava descolorido, escaveirado, relaxado e

com voz sepulcral. De certa forma, os parentes o ignoraram.

Durante a refeição, a conversa girou algum tempo em torno

de assuntos da Corte, depois falaram sobre o desenvolvimento

da pequena Princesa Philippíne e, mais tarde, quase só dos ne-

gócios do Príncïpe Philipp. O delicado cavalheiro contou de suas

!; i

cervejarias, fábricas e moinhos, e de suas explorações de turfa,

descreveu melhorías nas fábrícas, falou em cífras sobre aplica-

ções e lucros, e suas faces coraram enquanto os parentes da mu-

lher escutavam com expressão de curiosidade, benevolência e

zombaría.

Quando tomaram o café na grande sala das flores, a Prin-

cesa aproximou-se do irmão com sua tacinha dourada e disse:

- Mas você tem se esquecido de nós ultimamente, Klaus

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Heinrích,

O rosto de Ditlinde, em forma de coração, com os zigomas

dos grimmburguenses, não era mais tão transparente, tinha um

pouco maís de cor desde o nascímento da fílhínha, as tranças de

um louro cinzento pareciam pesar-lhe menos.

- Eu me esqueci de vocês? - disse ele. - Sim, Ditlinde,

perdoe, pode ser. Mas fuí tão exígido, e sabia que vocé tarobém

estava ocupada, pois agora não tem só as flores para cuidar.

- Sim, as flores não são maís as primeiras, não rne preo-

cupo muito com elas agora. Há uma ,,sria e um florescímento

mais bonítos, que me ocupam, e acho que hqui de faces coradas�

como meu bom Philipp com sua turfa (da qual falou o almoço

inteiro, o que não aprovo, mas é a sua paixão). E como eu tam-

bém andei tão ocupada, não fiquei zangada com você por não

ter aparecido e seguir seus próprios caminhos, embora tenham

sido um pouquinho estranhos . . .

- Mas você conhece meus caminhos, Ditlínde?

262

- Sim, mas, infelizmente, não através de você. Jettinha

' Isenschnibbe me manteve a par de tudo - sabe que ela está

sempre informada - e no começo fiquei muito assustada, não

nego. Mas, afinal, eles moram nos Delfins, ele tem um médíco

pessoal, e Philipp também acha que, à sua maneira, eles são

iguais a nós. Acho que, no passado, me expressei negativamente

sobre eles, Klaus Heinrich, falando de "Pássaro Roca", e fiz uma

piada sobre a expressão "sujeito a impostos". Mas, se você acha

que são dignos de sua amizade, eu estava enganada, e natural-

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mente retiro essas palavras. Quero pensar de modo diferente

sobre eles, prometo . . . Você sempre gostou de "farejar" -

contínuou ela, depois que Klaus Heinrich lhe beijava a mão,

sorrindo - e eu tinha de ír junto, e meu vestido (você lem-

bra?, aquele de veludo vermelhoj pagava por tudo. Mas agora '

você tem de farejar sozinho, e Deus permita que não tenha uma

experiência ruim, Klaus Heinrich.

- Ditlinde, acho que tudo que se vive é bonito, seja bom

ou mau. Mas o que estou vivendo agora, é bom. . .

As 4h30min, o Príncipe deixou outra vez o Eremitage,

dirigindo ele mesmo sua carruagem, de costas para o lacaio. Es-

tava quente, e Klaus Heinrich usava calças brancas com casaco.

Cumprimentando para os dois lados, voltou à cidade, mais exa-

tamente ao Castelo Velho, mas ignorou o Portão Albrecht e

entrou por um portão lateral, passou por dois pátios e parou

no da roseira.

Tudo ali estava quieto, pétreo; as torres das escadarias, com

janelas oblíquas, balaustradas de ferro batido e belas esculturas,

erguiam-se nos cantos; em luz e sombra, jaziam as variadas cons-

truções ao redor, algumas cinzentas e arruinadas, outras renova-

das, com torrões e sacadas parecendo caixotes, balcões encober-

tos, dando visão, por largas janelas de arco, sobre vestíbulos

abobadados e corredores sinuosos, com colunas. Mas no meio do

pátio, em seu canteiro cercado, ficava a roseira, e florescía, pois

o clima era propício.

263

Klaus Heinrich entregou as rédeas ao criado e foi olhar as

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rosas vermelho-escuras. Eram extraordinariamente belas -

cheias, aveludadas, de formato aristocrático, verdadeiras obras

de arte da Natureza. Várias já estavam bem abertas.

;', , - Por favor, chame Hesekiel - disse Klaus Heinrich a

um porteiro bigodudo que se aproximara, mão no tricorne.

i

Chegou Hesekiel, guarda da roseira. Era um ancião de

70 anos, com avental de jardineiro, olhos úmidos e costas

curvadas.

- Tem uma tesoura aí, Hesekiel? - perguntou Klaus

Heinrich em voz alta. - Eu queria uma rosa. - E Hesekiel

tirou a tesoura de jardinagem de um bolso em forma de sacola,

no avental. - Esta aqui - disse Klaus Heinrich. - a mais�

bonita. - E, com mãos trêmulas, o ancião cortou o caule

espinhento.

I - Vou respingá-la de água, Alteza Real - disse ele e,

com passo arrastado, foi até o canto do pátio onde ficava a

torneira. Quando voltou, nas pétalas da rosa prendiam-se gotas

cintilantes como sobre penas de aves aquáticas.

- Obrigado, Hesekiel - disse Klaus Heinrich, pegando

' a rosa. - Você continua forte? Tome! - E deu ao velho uma

moeda, depois subiu na carruagem, passou pelos pátios, com a

rosa ao lado no assento e, na opinião de todos os que o viam,

, voltou do Castelo Velho, onde provavelmente tivera um encon-

tro com o Grão-Duque, para o Eremitage.

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Mas dali passou pelo Parque Municipal em direção aos

Lelfins. O céu escurecera, grandes gotas caíam sobre as folhas,

e trovejava ao longe.

As damas estavam sentadas para o chá quando, condazido

pelc mordomo barrígudo, Klaus Heínrich apareceu na galeria e�

desceu os degraus para o jardim de inverno. O Sr. Spoelmann

não estava presente, como tantas vezes nos últimos tempos. Es-

tava deitado, fazendo compressas. Percival, encaracolado junto

à cadeira de Imma, bateu a cauda no tapete várias vezes em sau-

264

ï,:.

dação. O dourado dos móveis estava fosco, pois atrás da porta

de vidro o parque jazia nas sombras da tempestade.

Klaus Heinrich trocou um aperto de mãos com a filha da

casa e beijou a mão da Condessa, levantando-a, ao mesmo tempo,

brandamente de sua mesura, na qual ela se abaixara, segundo

seü costume.

- Eis o verão - disse ele a Imma Spoelmann, e lhe ofe-

receu a rosa. Nunca lhe trouxera flores.

- Mas que cavalheiro! - disse ela. - Obrigada, Prín-

cipe! E é linda! - continuou, numa admiração sincera (quando

jamais elogiava nada), e rodeou a magnífica corola, cujas pétalas

orvalhadas se enrólavam deliciosamente nas beiras, com suas

mãos estreitas e nuas. - Há rosas tão lindas por aqui? De

onde a conseguiu? - E baixou, sedenta, sua cabecinha escura

e pálida sobre a flor. i�

Os olhos estavam cheios de susto quando os ergueu de

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novo.

- Não tem perfume! - disse, e na sua boca apareceu

uma expressão de repulsa. - Espere . . . Sim, cheira a mofo! -

continuou. - Príncipe, o que está me trazendo? - E seus olhos

imensos e negros no rostinho pálido pareciam arder de horror

e indagação.

- Sim - disse ele. - Perdoe, é nossa espécie de rosas.

Vem da roseira que fica no canto do pátio do Castelo Velho.

Nunca ouviu falar? Há uma lenda a respeito. O povo diz que

um dia começarão a soltar um perfume maravilhoso.

Ela não parecia ouvir.

- É como se não tivesse alma - disse, contemplando a

rosa. - Mas é de uma beleza perfeita, realmente . . . Bem, ca-

pricho duvidoso da natureza, Príncipe. Mas, de qualquer modo,

agradeço sua atenção. E, se vem do castelo de seus antepassados,

é preciso reverenciá-la. Í

E colocou a rosa num copo com água, ao lado do seu prato.

Um criado com plumas de cisne trouxe pratos e xícara para o

Príncipe, e durante o chá conversaram sobre a roseira maldita

,

265

,

ÍI

jí �

depois sobre assuntos habituais, como teatro, cavalos, toda sorte

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de questões insignificantes em que Imma Spoelmann o contra-

riava com suas citações eruditas, com que se divertia, deixando-

o abatido pela escolhída linguagem literária, borbulhando a voz

rouca, meneando a cabecinha caprichosamente. Mais tarde, trou-

xeram-lhe um pesado pacote de papel branco, envíado à Srta.

Spoelmann pelo encadernador, com uma sêrie de obras que eIa

mandara revestir de lindas roupagens duradouras. Ela abriu o

pacote e os três foram ver se o artesão fizera bom trabalho.

Eram quase todos livros eruditos, ou aqueles que por den-

tro eram tão fascinantes como o caderno de escola de Imma

Spoelmann, outros que tratavam de psicologia, análise perspicaz

dos acontecimentos íntímos das pessoas. Estavam revestídos de

encadernação preciosa, couro e letras douradas, papéis escalhidos

e fitas de seda. Imma Speelmann mostrou-se razoavelmente con-

tente com a entrega, mas Klaus Ieinrich, que nunca vira volu-�

mes tão ricos, era todo elogios.

- E agora serão colocados nas prateleiras? - perguntou.

- Como os outros lá em cima? Tem muitos livros, não é? To-

dos tão bonítos como estes? Deíxe-me ver como os coloca nas

prateleiras! Não posso ir agora, o tempo ainda está ruim, amea-

çando minhas calças brancas. Aliás, nem sei como é que moram

aqui nos Delfins, nunca estive no seu estüdio. Pode rne mostrar

seus livros ?

- Depende da Condessa - disse ela, ocupada em empi-

lhar os lívros novos. - Condessa, o Prïncipe deseja ver meus

livros. Posso pedir que se manifeste?

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A Condessa Lowenjoul estava sentada, ausente. A pequena

cabeça incünada sobre o ombro, contemplava Klaus Heinrich

com um olhar penetrante de olhos estreitados, um olhar mal.ig-

no, e depoís seus olhos deslízaram para Imma, enquanto sua

expressão mudava, e um ar brando, compadecido e preocupado

a dominava. Sorrindo, voltou a si e tirou do vestido marrom

um pequeno relógiu.

26C7

- As 7h - disse ela, tranqüila - o Sr. Spoelmann espe-

ra que você leia para ele, Imma. Tem meia hora para atender a,o

desejo de Sua Alteza.

- Venha, então, Príncipe, ver meu estúdio! - disse

Imma. - Pode me ajudar a arrumar os livros, se sua nobreza u

permitir. Eu levo a metade. .

iVlas Klaus Heinrich levou os livros todos. Pegou-os com

dois braços, embora o esquerdo não fosse de grande valia, e

a pilha passou além de seu queixo. Curvado para trás, andando

cautelosamente para não derrubar nenhum, ele seguiu Imma para

a ala do Castelo além da rampa de chegada, em cujo lance prin-

cipal ficavam os aposentos da Srta. Spoelmann e da Condessa.

No aposento grande e confortável em que entraram, pas-

sando por uma porta pesada, ele largou sua carga numa mesa

hexagonal de ébano, diante de um pesado sofá cujo tecido era

entremeado com fios dourados. O estúdio de Imma Spoelmann

não seguia o mesmo estilo histórico do Castelo, mas era mobilia-

do com gosto mais moderno, sem demasiada delicadeza, antes

com um luxo generoso, prático, viril. Era forrado até o alto com

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madeira nobre, ornado com antigas peças de argila que brilha-

vam sobre um parapeito que percorría toda a sala junto ao teto.

Havia por toda parte tapetes orientais, uma lareira de mármore

preto com belos vasos e um relógío dourado, largas poltronas

de veludo e cortinas do mesmo teci:o do sofá. A ampla escriva-�

ninha estava diante da janela em arco, com vísta para a grande

fonte à frente do Castelo. Uma parede era toda coberta de lívros,

mas a biblioteca principal era uma saleta anexa, menor e também

forrada de tapetes, que se divisava por uma porta de correr

aberta, e cujas paredes estavam forradas até o teto, em toda a

volta, com livros.

- Bem, Príncipe, é esta a minha ermida'` - disse Imma.

- Espero que lhe agrade.

° Jogo de palavras: "Eremitae", que também significa "ermida"�

(N. da T.)

267

1,,

- Sim, é magnífico - disse ele.

Aliás, nem olhava em torno, mas o tempo todo para ela,

recostada no encosto do sofá junto da mesa hexagonal. Usava

um de seus belos vestidos caseiros, hoje um vestído de verão

de tecido branco com flores, pregueado, mangas abertas e, no

peito, um bordado amarelo. A pele dos braços e do pescoço

¡�

brilhava morena como espuma do mar enfumaçada contra o

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branco do vestido; seus olhos imensos, sérios e lustrosos no

estranho rosto infantil, falavam uma linguagem eloqüente e cons-

tante, e uma mecha de cabelo negro-azulado, lisa, caía de lado

sobre sua testa. Estava com a rosa de Klaus Heinrich na mão.

- Sim, é magnífica - disse ele, parado diante dela, sem

saber bem do que falava. Os olhos dele, azuis, com os zigomas

salientes, estavam obscurecidos, como se sofresse. - Tem tan-

tos livros - acrescentou. - Como minha irmã Ditlinde tem

Elores.

1 ?

- A Princesa tem tantas flores assim

- Sim, mas ultimamente lhe interessam menos.

I

- Agora, vamos arrumar - disse ela, pegando um livro.

- Não, espere - disse ele, o peito oprimido. - Tenho

tanta coisa a lhe dizer e nosso tempo é curto. Deve saber que

hoje é meu aniversário . . . por isso vim lhe trazer uma rosa.

- Ora disse ela -, que singular! Seu açiversário é�

hoje? Estou certa de que recebeu todas as felicita ões de sua

I própria gente. Receba também as minhas! Foi muito gentil em

'i I me trazer essa rosa hoje, embora ela seja duvidosa . . . - Tentou

mais uma vez aspirar o cheiro de mofo, com expressão de medo.

- Quantos anos está fazendo hoje, Príncipe?

- Vinte e sete - respondeu ele. - Nasci em Grimmbur

g

há 27 anos. E sempre tive uma vida dura e solitária.

Ela ficou calada. De repente, Klaus Heinrich viu seus olhos

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se dirigirem para o lado, sobrancelhas um pouco franzidas -

embora, treinado, ele estivesse um pouco de lado em relação a

ela, voltando-lhe o ombro direito, não podia impedir que os

268

',. :.

!I

olhos dela procurassem seu braço esquerdo, grudando-se na mão

que ele pusera bem atrás, no quadril.

- Você nasceu assim? - perguntou ela, baixinho.

Ele empalideceu. Mas, com um rumor que parecia um ge-

mido de alívio, caiu diante dela, abraçando com os dois braços

sua singular figura. Lá estava ele, de joelhos, com as calças bran-

cas e o casaco vermelho e azul com as insígnias de Major nos

ombros estreitos.

- Irmãzinha. . . - disse ele. -- Irmãzinha. . .

Ela respondeu com lábios em bico:

- C;ontrole-se, Príncipe. Acho que não é permitido des-

controlar-se. Deve manter a compostura em qualquer situação. . .

Mas, entregue, erguendo os olhos cegos para ela, ele só

dizia:

-- I mma . . . minha pequena Imma . . .

Então, ela pegou sua mão, a esquerda, a mirrada, o aleijão,

que o prejudicava em sua nobre vocação, que desde a infância

precisava esconder com tanto artifício e constante cuidado. . .

pegou-a e a beijou.

269

I

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1

A REALIZAÇÃO

Corriam no país sérios boatos sobre a saúde do Ministro das

Finanças, Dr. Krippenreuther. Falava-se de abalo nervoso, de

um progressivo mal do estômago, manifestados no rosto amarelo

e flácido . . . O que é a grandeza! O operário, o vagabundo das

estradas, não invejam aquele torturado dígnitário por seu títu-

lo, suas condecorações, sua posição na Corte, seu cargo eminente,

ao qual ele chegara com tanto esforço, para se consumir nele.

Anunciara-se várias vezes sua renúncia iminente . . . e dizia-se

que só porque o Grão-Duque não queria novos rostos a seu re-

dor, e porque achava que uma troca de pessoal não melhoraria

nada naquele momento, ele ainda não renunciara de fato. O Dr.

Krippenreuther passara as férias de verão numa estação de águas

nas montanhas, mas, se I.á se recuperara um pouco, suas forças

foram rapidamente consumidas outra vez, poís logo no inícío do

ano parlamentar houve briga entre o Ministro e a comissão de

orçamento - graves desentendimentos que certamente não se

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fundamentavam na falta de flexibilidade dele, mas na desoladora

situação financeira do paí,

Em meados de setembro, Albrecht II abriu os trabalhos da

(.;âmara no Castelo Velho, conforme a tradição. A cerimônia foi

rccedida de uma invocação a Deus pelo pregador da Corte, D.��

VCIislizenus, na igreja do Castelo. Depois, o Grão-Duque, acom-

panhado do Príncipe Klaus Heinrich, segu:u num cortejo solene

271

para a Sala do Trono, onde os membros das duas câmaras, mi-

nistros, funcionârios da Corte e outros cavalheiros em uniforme

e roupa civil, saudaram os irmãos reais com um triplo "viva",

incitados pelo Presidente da Primeira Câmara, o Conde Prenzlau.

Albrecht desejara ardentemente passar seu papel nesse ato

formal ao seu irmão, e só por insistência do Sr. von Knobelsdorff

é que caminhava na cortejo, atrás dos cadetes vestídos de pajens.

Envergonhava-se de seu casaco de hussardo com cordôes, das

calças bufantes e de todo aquele abracadabra. O aborrecimento

e o constrangímento transparecíam claramente em seu rosto. Suas

omoplatas estavam nervosamente retorcidas quando ele subiu os

degraus do trono. Depois, postou-se diante daquela poltrona sob

o baldaquím puído, e sugou o lábío superior. Sobre o colarínho

branco e duro, que saía da gola prateada de hussardo, pousava

sua estreita cabeça, tão pouco militar, com a barbicha em ponta,

os alhos azuis e solitários que não viam ninguém. O tilintar das

esporas do Ajudante que lhe passou o manuscrito do discurso do

trono ressoou pela sala, na qual se ínstalara o sílêncío. E, baixi-

nho, ceceando um pouco, várias vezes interrompido por súbita

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rouquidão, o Grão-Duque leu o que haviam escrito para ele.

Era o texto mais inócuo jamais ouvido, e opunha a cada

fato concreto, devastador, de natureza externa, uma qualidade

moral ínerente ao povo. Começava elogiando a atívídade reínan-

te no país, admitia que não se observava em todos os campos da

vida econômica um verdadeiro impulso, de modo que as fontes

de renda não estavam sendo exatamente abundantes. Comentou

com satisfação que cada vez mais se espalhava entre a populaçãe

o senso de bem-estar comum e sacrífícío econômíco, e depois

explicou, sem tentar embelezar, que, "apesar de louvável aumen-

to das contribuições em impostos devido à chegada de grandes

contribuíntes estrangeiros" (refería-se ao Sr. Spuelmann), não se

poderia pensar em reduzir as exigências feítas ao espírito de sa-

crifício recém-mencionado. Sem isso, dizia-se ainda, não teriam

conseguido atingir todos os objetivos de política financeíra pro-

postos pelo orçamento do Estado, e embora aínda nãa se tivesse

272

conseguido pagar as dívidas na medida desejada, o Governo vía

na continuação de uma política moderada de empréstimos a me-

Ihor saída para os problemas financeiros. De qualquer modo,

apesar das condições desfavoráveis, o Governo sentia-se ampa-

rado pela confiança do povo, aquela fé no futuro que é uma

bela herança de nossa raça . . . E, assim que pôde, o discurso do

trono deixou o perigoso terreno das finanças para se ocupar de

assuntos menos delícados, como a Igreja, a escola e as leis. O

Ministro von Knobelsdorff, em nome do monarca, declarou aber-

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tos os trabalhos da Câmara. Os "vivas" que acompanharam Al-

brecht ao deixar a sala tinham um tom de desespero e desafio.

C;omo ainda estivesse quente, ele voltou logo a Hollerbrunn,

de onde só viera premido pela necessidade. Cumprira sua parte,

o resto era problema de Krippenreuther e da Assembléía. E,

como já se disse, imedi.atamente se desencadearam brigas sobre

vários assuntos de uma vez: impostos sobre bens, impostos so-

bre carne e índice de salários do funcionalismo.

(omo não se conseguisse convencer os representantes do�

4 povo a permitirem novos impostos, o espírito alerta do Dr.

Krippenreuther pensou em transformar os habituais impostos so-

bre rendas em impostos sobre bens, o que, a juros de 13 por

cento, daria um aumento de 1 milhão. A absoluta necessidade,

premência mesmo, desse aumento de renda do Estado transpa-

recia no novo orçamento do Governo, que, ignorando novos

ôm.s sobre a caixa estatal, concluía com um déficit que faria�

tremer o coração de qualquer entendido em economia. Mas,

como fosse claro que praticamente só as cidades seriam oneradas

com o impvsto sobre bens, foi contra essa porcentagem de 13

por cento que se dirigiu toda a indignação dos representantes

que vinham das cidades, os quais exigiram, como recompensa,

ao menos a eliminação do imposto da carne, que chamaram de

i

impopular e antediluviano. Além do mais, a comissão insistia,

de modo intransigente, na melhoria, tão prometida e sempre

adiada, do pagamento dos funcionáríos - e não se podia negar

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que, na verdade, os salários dos funcionários da admínistração,

273

sacerdotes e professores do Grão-Ducado cIamavam aos céus.

Mas o Dr. Kríppenreuther não podía fabrícar ouro - "não

aprendí a fabrícar ouro", dísse ele textualmente - e tampouco

estava em condições de renunciar aos impostos da carne, nem

sabía o que fazer diante da miséria dos funcionários públicos.

Nada lhe restava senão obstinar-se na taxa de 13 pot cento,

embora soubesse melhor que ninguém que consentir nela não

traria grande estímulo. Pois a situação era séria, e espíritos mais

pessimistas lhe davam designações sombrias.

A Revísta do Bureo.u Estatistico do Grão-Ducado fornecia

dados assustadores sobre as colheitas dos últimos anos. A agricul-

tura registrava uma série de anos negativos, anomalias climáticas,

granizo, estiagem e chuva excessiva tinham tingido os campo-�

neses; um inverno extraordinariamente frio e pobre em neve con-

gelara as searas; e os críticos pessimistas afirmavam, embora sem

muita comprovação, que a devastação das florestas já tinha pre-

judicado muito o clíma. De qualquer modo, segundo evidências

estatísticas, a colheita total de cereais diminuíra assustadora-

mente. A obtençáo de palha, que existia em quantidades insu-

ficientes, deixava a desejar, segundo afirmação oficial; as cifras

da colheita de batatas estavam muito atrâs da média de decênios

anteriores, sem falar que não menos de 10 por cento desses fru-

tos do campo estavam doentes; quanto às pastagens artificiais,

os dois iíltimos anos estavam entre os mais desfavoráveis de todo

o período levantado, tanto na quantidade como no lucro da co-

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lheíta de trevo e alfafa; a colheita de colza de ínverno, feno e

feno serôdio não apresentava melhores condições. A queda da

agricultura expressava-se no aumento das vendas forçadas, cujos

números cresceram terrivelmente naquele ano. Mas essa anomalia

abria lacunas nos impostos, que, se em outro lugar seriam dolo-

rosas, entre nós eram realmente sínistras.

E as florestas? Nada produziam economicamente. Uma des-

graça juntava-se a outra; parasitas tinham invadido várias vezes

as matas, e nem é preciso lembrar que o valor em capital das

florestas fora abalado pelos desmatamentos.

274

As minas de prata? Há muito não davam lucro. Forças des-

trutivas da natureza haviam interrompido a produção e, como

sua recuperação significasse grandes gastos, e os resultados nun-

ca tivessem correspondido exatamente às aplicações, fora preciso

interromper essa produção por algum tempo, embora isso signi-

ficasse muíto desemprego e regiões inteiras fossem prejudicadas.

Basta! Já demonstramos a situação das finanças do Estado

nessa época de provação. A crise que se instalava, o déficit que

se arrastava de um ano a outro na economia, tornaram-se gri-

tantes pelo estado de calamídade, pela hostilidade dos elementos

c pela falta de redução dos impostos, e um olhar que procurasse

meios de resolver isso - na verdade, seriam meios de abrandar

a situação - veria, por mais tolo que fosse, toda a miséria de

nossa situação financeira. Não se podia nem pensar em novas ta-

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xações. Por natureza mau pagador de impostos, o país, naquele

momento, estava esgotado, sua força de contribuíção, paralisada,

os críticos afirmavam que aumentava cada vez mais, no inte-�

rior, a presença de criaturas subnutridas, culpa, primeiro, dos

crescentes impostos sobre o consumo, depois, dos impostos em

eral, que forçavam os donos de animais a transformarem o leite�

integral em dinheiro. Quanto àqueles recursos menos éticos mas

sedutoramente cômodos contra a falta de dinheiro que a ciência

cconômica conhece, chegara a hora em que o mau uso, o uso le-

vamo de tais recursos, começava a vingar-se amargamente.

Depois de terem pago dívidas de maneíra inábil e prejudi-

cial, desistiram disso quase totalmente, sob Albrecht II, tapando

pr:cariamente os buracos com novos empréstimos ou letras do�

Tesouro. Assustado, o Governo se via diante de uma dívida ur-

ente e ameaçadora, cujo total ficava em relação escandalosa com��

o número de habitantes. O Dr. Krippenreuther não recuara dian-

!.e de todas as práticas que se abrem a Estados nessa situação.

Optara por altas obrigações de capital, apelara para uma conver-

são forçada e, com a redução da porcentagem dos juros, trans-

formara dívídas a curto prazo, diante do nariz dos credores, em

obrigações rentáveis eternas. Mas elas tinham de ser pagas, e

275

enquanto esses comprornissos todos oneravam insuportavelmente

nossa economia, o baixo valor da moeda fazia com que, a cada

emissão de obrigações, o capital em caixa baixasse ainda mais.

Pior: a crise financeira no Grão-Ducado fez com que os credores

externos procurassem cobrar seus empréstimos precipitadamente,

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e mais uma vez caiu a moeda corrente, com mais emissão de di-

nheiro. As falências de bancos estavam na ordem do dia.

Em suma: nosso crédito estava abalado, nossos papéis, mui-

to abaixo do valor nominal, e embora a Assembléia preferisse

conceder novos empréstimos a aprovar novas taxas, as condições

impostas ao país eram tais que uma negociação ficava difícil, se

não impossível. Pois a toda essa desgraça acrescia que, naquele

tempo, havia problemas fínanceiros generalizados, o dinheiro en-

carecera, como todos ainda recordam.

Que fazer para tomar pé novamente? Aonde se dírígir a fim

de saciar a fome de dinheiro que nos devorava? Alienar as minas

de prata, naquele momento não-lucrativas, e empregar esse di-

nheiro no pagamento de dívidas a altos juros fora matéria pon-

derada. Mas essa venda, que no atual estado de coisas seria defi-

citária, não acabaria apenas com todo o capital já empregado nas

minas, mas também com futuros ganhos que um dia o Gover

no, a curto ou longo prazo, tal.vez conseguisse com elas - e

afinal não se encontrava um comprador de um dia para o outro.

Num momento - um rnomento de fraqueza espiritual -, pen-

sou-se até na venda das florestas estatais. Mas aínda havía sufi-

ciente bom senso no país para impedir que nossas florestaa fos-

sem entregues à indústria prívada.

Para não esconder nada: surgiram outros boatos de vendas,

boatos que faziam concluir que as pessoas não se constrangiam

diante de coisas que o povo, respeitoso, teria considerado mons-

truosidades. O Mensageiro, não habituado a sacrificar informa-

ções por delicadeza, foi o primeiro a noti.ciar que dois castelos

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do Grão-Duque que ficavam no interior, o Passatempo e o Favo-

rita, estavam à venda. Ponderando que as duas propriedades não

mais serviam como moradia da nobre família e anualmente exi-

27G

nte giam mais dinheiro; a administração dos bens fideicomissos indi-

ada cou canais adequados para se conduzir a venda. Que significava

,

ais. isso? Obviamente, não era como na venda dos Delfins, resultado

res de oferta extraordinária e excelente, além de ser um ato de inte-�

zte, ligência do Governo. Pessoas muito calejadas para falar a verda-

di- de e dizer coisas diante das quais espíritos mais delicados recua-

riam afirmaram que a administração financeira da Corte estava

.,ui- r sendo pressionada por credores inquietos, e que, se recomendava

isse aquelas vendas, era porque estava sob pressão implacável.

;ões A que ponto tinham chegado? A que mãos passariam aque-

I

se les castelos? Exatamente os mais bem-intencionados, que faziam

,

ele ; essas indagações, inclinavam-se a considerar consoladora outra�

en- notícia, vinda dos mais bem-informados, e acreditavam nela: a�

' de que, mais uma vez, o comprador era Samuel Spoelmann -

fim ' notícía totalmente infundada, nascida do nada, mas que demons-

inas trava o papel que desempenhava na imaginação do povo aquele

di- homenzinho que se estabelecera tão principescamente entre eles.�

Lá morava ele com seu médico pessoal, o órgão eletrônico,

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a coleção de vidros, por trás das colunas, janelas em arco e ba-

laustradas trabalhadas do castelinho que, com um gesto, salvara

das ruínas. Quase nunca viam Spoelmann, estava de cama com

seus emplastros. Mas viam sua filha, a estrangeira de ar mimado

vivendo vida de princesa, tendo por 'dama de companhia uma

condessa, dominando a álgebra e andando livre e furiosa entre os

guardas. Viam-na e, a seu lado, muitas vezes o Príncipe Klaus

Heinrich.

Raoul Überbein exagerara dizendo que o público "parava

de respirar" diante dessa visão, mas no fundo estava certo. Nun-

ca a população de nossa Residência, seja de que camada for,.

seguira com tamanho interesse um fato público ou social, dando-

lhe tanto mais importância do que ao resto, como agora obser-

vava as visitas de Klaus Heinrích aos Delfins. Até uma conversa

com o Minístro von Knobesldorff, o Príncipe agiu quase às cegas,

sem ligar para os outros, obedecendo a seus impulsos interíores.

Mas o Professor Überbein podia zombar dele, perguntando, no

277

seu jeito paternal, se achava que seus passos podiam permanecer

ocultos ao públíco. Poís, seja porque os críados das duas partes

falavam mais do que deviam, seja porque o próprio público

observava os acontecimentos diretamente, de qualquer modo,

sempre que Klaus Heinrich se encontrara com a Srta. Spoelmann.

desde aquela primeira vez no Hospital Dorothea, tudo fora visto

e comentado. Vísto? Não: espreítado; espíonado, avídamente

anotado! Comentado? Na verdade, despejado em cataratas de

palavras! Aquela amizade era objeto de conversas em toda a

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Corte, nos salões, nas saletas, nos quartos de dorrnir, nas bar-

bearias, nas estalagens, nas oEicinas e nos quartinhos de criados.

por cocheiros nos pontos de parada, por criadas nos portões das

casas, e interessava tanto a homens quanto a mulheres, embora,

naturalmente, com as variações normais devidas à diferente vísão

dos dois sexos, mas a partícipação zelosa de todos equilibrava

isso, superando abismos sociais. E o condutor de bonde pergun-

tava a um passageiro bem-vestido. na plataforma, se já sabia que

ontem à tarde o Príncipe passara mais uma hora nos Delfins.

'.Vlas o que era em si notável e decisivo para o futuro de

tudo isso é que em momento algum se tinha impressão de con:

trariedade, e em todos os boatos não havia aquele prazer vulgar

de mexericar sobre acontecimentos das esferas mais altas -

desde o começo, antes que alguém tivesse tempo de alimertar�

uma segunda intenção, aquele comentário de mil vozes sempre

tívera um tom de aprovaão e concordância. O Príncipe. se ti-�

vesse _xensado antes na opinião pública, teria obtido imediata-�

rnente a certeza de que sua atitude era absolutamente popular.

Quando, diante de seu professor, ele chamara a Srta. Spoelmann

de "Princesa", falara como devia ser exatamente no espírito do

povo - aquele povo que por toda parte sabe ter uma visão

poética do que ê invulgar e românti.co. Sim, para o povo, aquela

criatura de cabelo preto e rosto pálido, preciosa e singularmente

bela, de bízarra mistura no sangue, que víera do outro lado do

rnundo para viver entre nós sua vida única e solitária - para

esse povo, ela era uma filha de reis ou de fadas, vinda de um

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país de fábula, uma princesa no mais singular sentido da palavra.

Mas tudo, tanto a própria atitude dela como a atitude do mundo

para com ela, colaborava para fazê-la aparecer como Princesa

também no sentido habitual da palavra. Acaso ela não morava

com sua Condessa num castelo, como devia ser? Não andava em

seu magnífico automóvel ou em sua carruagem até as instituições

, beneficentes, os cegos, os órfãos; as diaconisas, a cozinha dos

pobres, o lactário, para ver tudo pessoalmente, para edificação

geral e informação pessoal, como fazia uma princesa? Acaso ela

não fizera doações em dínheiro "do seu cofre particular", como

dissera o Mensageiro, para os flagelados das enchentes e de um

incêndio, em quantias que se igualavam exatamente às do Grão-

1)uque (não as superavam, o que todos notaram com aprovação)?

C)s jomais não noticíavam praticamente todos os dias, logo abaixo

cias notícias da Corte, o variável estado de saúde do Sr. Spoel-

mann - se as cólicas o prendiam ao leito ou se ele retomara

suas visitas matinais à fonte? Os uniformes brancos de seus cria-

clos não faziam parte das ruas da cidade, como os uniformes cas-

tanhos dos lacaios do Grão-Duqüe? Os estrangeiros, com seus

;uias turístícos não se faziam levar ao Castelo dos Delfins para�

rmrgulharem na contemplação da residência de Spoelmann -

muitos até antes de visitarem o Castelo Velho? Os dois caste-

los, o Velho e o dos Delfins, não eram quase igualmente pontos

alus e centrais da cidade? A que sociedade pertencia aquela�

criança, isolada de qualquer comunidade e igualdade, que nascera

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mmo filha de Samuel Spoelmann? Com quem deveria ligar-se,

rom quem poderia travar relações? Nada era menos estranho,

uada mais claro e natural, do que ver Klaus Heinrich ao lado

clcla. E mesmo os que realmente não tinham visto aquele quadro,

saboreavam-no em espírito e mergulhavam nele: a esguia, solene

c familiar figura do Príncipe, ao lado da filha e herdeira do inau-

dito estrangeiro, que carregava, doente e rabugento, uma fortuna

que era quase o dobro de todas as nossas dívidas estatais!

Então, uma lembrança, uma estranha figura dominou a

consciência pública . . . ninguém pode dizer quem comentou isso

279

primeiro, quem o indicou . . . não se sabe. Talvez fosse uma mu-

lher, uma criança com olhos crédulos, a quem se contou isso

uma vez, antes de dormir . . . Deus é quem sabe. Mas uma figu-

ra espectral entrou na imagi.nação do povo: a sombra da velha

cigana que, grisalha, desgrenhada e torta, olhos voltados para

dentro de si mesma, fizera um desenho com a bengala na areia,

e cujo murmúrio fora registrado e transmitido de geração ém

geração. . . "A maior felicidade?" Ela viria para o país através

de um Príncipe "com uma mão". Ele daria mais ao país com

uma mão do que todos os outros com duas . . . Com uma? Mas

nada faltava à esguia figura de Klaus Heínrich. Pensando bem,

havia uma falha, uma debilidade da qual estavam habituados a

desviar os olhos ao saudá-lo - em primeiro lugar, por timidez,

e depois porque, com gracioso artifício, ele levava as pessoas a

não olharem. Viam-no na carruagem tapando o braço esquerdo

com o direito no punho da espada. Debaixo do baldaquim, numa

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tribuna enfeitada de bandeirolas, ficava um pouco virado para a

esquerda, apoiando a mão esquerda firmemente no quadril. Sa-

biam que o braço esquerdo era curto, a mão mirrada, conheciam

até as explicações do defeito, mas o respeíto P a decêncía nunca

deixavam ver isso claramente, nem sequer o admitir. Mas agora

viam. Ninguém sabe quem se lembrou primeíro desse fato e,

num sussurro, ligou-o à profecia. .. uma criança, uma criada,

um ancião na soleira da eternidade. Mas aconteceu, o povo trans-

mitiu certas idéias e esperanças - também com relação à Srta.

Spoelmann - aos postos decisivos, de baixo para címa, com

veemência, numa inspiração: a crença do povo, espontânea, des-

preconceituosa, deu alicerce firme a tudo que viria depois. "Com

uma mão?", indagavam, e "A felicidade maior?". E em espírito

viam Klaus Heinrich junto de Imma Spoelmann, mão esquerda

no quadril, e, ainda incapazes de concluir seus pensamentos, fre-

miam com aquilo que mal divisavam.

Tudo isso pairava no ar naqueles dias, ninguém concluía

esse pensamento - nem os mais chegados e participantes. Pois,

entre Klaus Heinrich e Imma Spoelmann, as coisas eram bem

280

estranhas; por enquanto, nem ela nem ele talvez tivessem um

objetivo firme. De fato, aquele lacônico íncidente entre eles na

tarde do aniversário do Príncipe (quando a Srta. Spoelmann ihe

mostrara os livros) pouco ou nada modificara o seu relaciona-

mento. E se Klaus Heinrich estava naquele estado de encanta-

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mento febril que domina os jovens nessas ocasiões, ao voltar para

o Eremitage, certo de que algo decisivo acontecera, em breve

entenderia que a luta pelo que considerava sua felicidade apenas

começara. Mas essa luta ainda não podia obter um final concre-

to, uma promessa ou coisa assim - era impensável de momen-

to, e além disso os dois não tinham qualquer experiência da vida.

O que Klaus Heinrich, a partir de então, passou a pedir com

olhares e palavras, não era que a Srta. Spoelmann retribuísse

seus sentimentos - mas que, ao menos, se decidisse a acreditar

na veracidade e intensidade deles. Pois ela ainda não acreditava.

Ele deixou que se passassem duas semanas antes de voltar

aos Delfins, e durante esse tempo viveu interiormente do que ali

acontecera. Não tinha pressa de envelhecer aquele incidente com

algum outro, e várias representações o ocupavam, entre elas uma

competição de tiro ao alvo na Liga de Atiradores, da qual era

presidente de honra e patrono, e de cuja festa de aniversário par-

ticipava todo ano, vestido de verde como se vibrasse com o es-

porte. Os membros da Liga recebiam-no com entusiasmo; ele

parava nos postos de tiro e, sem qualquer apetite, fazia um pe-

queno lanche com os membros da diretoria, finalmente dispa-

rando, em postura graciosa, alguns tiros sobre vários alvos.

Quando, depois disso, em meados de junho, voltou ao Castelo

dos Spoelmann na hora do chá, Imma estava muito irônica, com

linguagem excepeionalmente formal e retórica. O Sr. Spoelmann

dessa vez estava presente e, embora sua presença adiasse o mo-

mento, tão esperado, em que Klaus Heinrich poderia ficar a sós

com a filha da casa, ajudou inesperadamente o Príncipe a supe-

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rar a mágoa pela rudeza dela; pois Samuel Spoelmann foi bon-

', doso com ele, quase carinhoso.

281

Tomaram chá no terraço, em modernas poltronas de vimc:,

docemente embalados pelos perfumes do jardim florido. O don ��

do castelo estava deitado sob um cobertor de seda verde bordade,

com papagaios e forrado de peles, junto da mesa, sobre um diW;

com almofadas de seda. Tinha saído da cama para saboreaï

o ar brando, mas hoje suas faces não estavam acaloradas e sim

amarelas, e seus olhinhos, sombreados; o queixo estava pontude:.

o nariz reto parecia maior que habitualmente, e seu estado de

espírno não era a costumeira irritação, antes melancolia, o que

não devia ser bom sinal. O Dr. Watercloose sentava-se à sua c:�

beceira, comprido e com um sorriso mansc

- Então, jovem Príncipe . . . - disse Spoelmann, faty-�

do, e quando o Príncipe indagou de sua saúde, respondeu apena �

com um resmung.�

Imma, num cintilante vestido de casa com cíntura aua .

casaquinho de veludo verde, áespejou água da chaieira elétrica:

para o bule. Felicitou o Princtpe com lábios em bico peio sucessc.

pessoal como atirador. Disse, menenando a cabecinha, que '

imprensa do dïa me cieu mtormações para minha profunda ai;

gria' , e que tínha lido para a Conáessa a descríçáo dessa visio:.

A í,onctessa sentava-se ereta em seu justo vestido marrom, juncc, '.

da mesa, manejancio sua colnerinha com.gestos nobres, sem quai-

quer momemo áe distensão. Naqueie dia, era o Sr. Spoeimanc

quem faiava. Fazia isso, como se disse, de maneira doce, sin:.

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tris°, resultado áe suas dorea�

Contou sobre um incidente de anos atras, com o quai; obwa

mente, amda não se contormara, e que em dtas de saúde rmm c

ocupava dolorosamente - contou duas vezes a 'tastona, curta �

simples, e na segunda ficou ainda mais amargurado que na pr-�

metra. IVaquele tempo, ele tmrla queriáo razer uma áe suas áoa-

ções, não de primeïra, mas mesmo assim voiumosa - informara

uma grande instituição benemerente dos Estados Unidos de que.

para estimular suas boas ações, pretendia doar-lhe 1 milhão em

ações da ferrovia, papéis seguros da Ferrovia do Pacífico Sul,

disse o Sr. Spoelmann, batendo na palma da mão para que visua-

282

lizassem os papéis. iIas que fizera a tal instituição benemerente?��

ne,

Recusara o presente, recusara-se a aceitá-lo - com a observa-�

ão expressa de que preferia renunciar a uma ajuda de origem�

de,�

duvidosa e violenta. Fizerarn isso, sim. Os lábios do Sr. Spoel-

Ivíi

ea. mann tremeram quando ele contou o fato, da primeira e da se-

sin gunda vez, e cheío de desejo de ser consolado, e cheio de desdém,�

ele olhou em torno da mesinha de chá com seus pequenos olhos

unidos e metálicos.

de

u - Nada humanitário vindo de uma instituição humanitária

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- disse Klaus Heinrich. - Não, não foi. - E sacudiu a cabeça,

manifestando tão claramente seu desgosto e sua simpatia que o

Sr. Spoelmann se alegrou um pouco e declarou que hoje estava

,na bonito lá fora, e as flores lá embaixo tinham perfume muito�

bom.

Logo aproveitou a oportunidade para se mostrar reconheci-

. do ao jovem visitante e provar-lhe seu agrado de maneira bem

xpressiva. Klaus Heinrich estava gripado, apesar do calor que,�

°5SC':

nesse verão, se alternava com tempestades, granizo e frio, sentia

a arganta inchada e dores ao engolir. E como sua nobre missãe�

sim: e certa delicadeza nos cuidados para com sua pessoa, destinada

ant ,i ser sempre admirada, o tivessem necessariamente deixado um��

tanto melindroso, ele não conseguia deixar de falar nisso e quei-

iuai-

ann wr-se de dores na garganta.�

Sin. - Então, deve fazer compressas úmidas - disse o Sr.

5poelmann. - r'.'em papel guta-percha?

Klaus Heinrich não tinha. Então. o Sr. Spoelmann a'tastou

wta-

o cobertor de papagaios, levantou-se ntrou no Castelo. 'Ião� � �

rta respondeu a qualquer pergunta. não se deixou deter, foi. Pergun-�

taram uns aos outros, na si:ta ausència. o que ele podia estar

pri-

üoa querendo. e o Dr. Watercloose, ~eceando nue seu paciente tives-� �

se saído devido a um acesso de or, eguiu-o imediatamente.� �

rnara

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ue. Mas, quando o Sr. Spoelmann voltou. tinha na mão um pedaço de

q

em papel guta-percha, que se lembrara existir em alguma gaveta, de�

Sul, outros tempos, um pedaço já bastante frágil, que entregou ao

isua- ' Príncipe, ensinando-lhe extensamente como devia usá-lo para ter

283

proveito. Klaus Heinrich agradeceu, alegre, e o Sr. Spoelmann,

contente, voltou a se estender no divã. Dessa vez ficou ali e,

quando tomaram o chá, até sugeriu um passeio em grupo pelo

parque, no qual caminhou entre Imma e Klaus Heinrich, em seus

sapatos macios, enquanto a Condessa Lõwenjoul seguia a certa

distância com o Dr. Watercloose. Quando o Príncipe se despediu,

Imma Spoelmann fez ainda uma observação contundente sobre

sua garganta e as compressas úmidas e, com disfarçada zombaria,

pediu que cuidasse bem de sua sagrada pessoa. Mas, embora

Klaus Heinrich não soubesse de nada adequado para responder

- o que ela, aliás, não esperava nem pedia -, mesmo assim

embarcou em sua carruagem muito satisfeito. Pois aquele peda-

cinho quebradiço de guta-percha no bolso de trás de seu casaco

lhe pareceu, sem clara justificativa, a garantia de um futuro feliz.

Fosse como fosse, sua luta apenas começava. Era a luta

pela crença de Imma Spoelmann, a luta por sua confíança

num grau que lhe permitisse a decisão de sair daquela esfera

pura e gélida em que estava habituada a jogar, o reino da álge-

bra e da linguagem zombeteira, descendo para aquela outra esfe-

ra, mais calma, nevoenta e fecunda, que ele lhe mostrava. Pois o

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receio que Imma sentia de dar esse passo era imenso.

Da vez seguinte, ele ficou sozinho com ela, ou praticamen-

te sozinho, o que significa que formavam um trio com a Con-

dessa Lõwenjoul. Era uma manhã fresca, de céu encoberto, após

uma tempestade noturna. Cavalgavam ao longo do declive na

campina, Klaus Heínrich de botas altas, a alça da chibata de

montaria pendurada entre os botões do manto cinzento. A re-

presa junto à ponte de madeíra estavã fechada, o leito do braço

de rio jazia seco e pedregoso. Percival, acalmãdo seu primeiro

acesso, saltava por cima, agilmente, ou trotava à maneira oblíqua

dos cães diante dos cavalos. A Condessa, montada em Isabel,

inclinava a cabecinha de lado, sorrindo. Klaus Heinrich disse:

- Penso dia e noite numa coisa que deve ter sido sonho.

Fico deitado à noite, escutando Florian bufar no estábulo, tama-

nho é o siêncio. Então penso com certeza que não foi sonho.�

284

Mas, quando a vejo como hoje, e o outro dia no chá,- é ímpos-

sível pensar que seja verdadeiro.

Ela respondeu:

- Precisa me explicar isso, nobre Príncipe.

- Srta. Imma . . . mostrou-me seus livros há 19 dias. . .

ou não?

- Dezenove dias? Eu teria de calcular. Não, vamos ver,

foram 18 dias e meio, se não me engano . . .

- Então me mostrou seus livros?

- É absolutamente correto, Príncipe. E alegra-me a espe-

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rança de que tenha gostado.

- Srta. Imma! Não fale assim, não agora, e não comigo!

Tenho um sentimento tão sério no coração, tanta coisa a lhe di-

zer, coisas que me levaram a procurá-la quando me mostrou seus

livros há 19 dias . . . seus muitos livros. Eu queria continuar ali,

onde paramos na ocasião, e esquecer o que houve nesse meio

tempo . . .

- Pelo amor de Deus, Príncipe, prefiro esquecer aquele

assunto! Por que falar nele? Que coisas está recordando e me faz

recordar também? Pensei que tinha motivos para se calar sobre

isso. Descontrolar-se a tal ponto! Perder a compostura!

- Srta. Imma, se soubesse como me fez bem perder a

compostura!

- Obrigada! Sabe que isso me ofende? Insisto em que

mantenha sua compostura também diante de mim, a mesma que

manifesta com todo o mundo. Não sou um intervalo de recreie

em sua existência de Príncipe.

- Mas que mal-entendido, Srta. Imma! Sei qüe está me

interpretando mal de propósito, e de brincadeira, e isso me mos-

tra que não acredita em mim, nem leva a sério o que eu digo. . .

- Não, Príncipe, isso seria pedir demais. O senhor não me

contou sobre sua vída? Foi para a escola apenas pelas aparências;

por aparência freqüentou a Universidade, serviu como soldado

só pela aparência, e ainda usa uniforme pelas aparêncías. Por

aparêncía dá audiências e banca o atírador, e sabe Deus o que

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mais. O senhor nasceu pela aparência e agora quer que, de re-

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pente, eu acredite que está levando uma coisa a sêrío?

Enquanto ela dízía isso, os oïhos dele encheram-se de lágri-

mas, tanto lhe doeram aquelas palavras. E respondeu baixinho:

- Srta. Imma, a senhora tem razão, minha vida tem mui-

to de irrealidade. Mas não a construí nem a escolhi, deve lem-

brar-se disso, apenas cumpri meu dever, assim como me foi pres-

críto, severo e exato, para edífícação do povo. E, não bastando t

isso, a vida, que foi difícil e cheia de proibições e renúncias, ain- '

da vaí se vingar em mim fazendo com que a senhora não acre-

díte no que dígo . . .

- O senhor tem orgulho de sua vocação e de sua vida,

Príncipe - disse ela -, eu sei disso, e não posso desejar yue

seja infiel a si mesmo.

- Ora - exclamou ele -, isso é problema meu, isso de

ser fiel a mim mesmo, não se preocupe com isso. Tenho expe-

riências, fui infiel a mim mesmo, tentei ignorar a proibição e

tudo acabou em vergonha. Mas, desde que a conheço, sei que,

pela primeira vez, posso ignorar sem arrependimento ou prejuízo

isso que chamam de minha nobre vocação, posc me largar como�

qualquer pessoa, embora o i7r. Überbein diga, até em iatim, que

não me será permitido . . .

- Lstá vendo o que disse seu amigo!

- 'Vlas você mesma não o chamou de homem smistro, não�

disse que teria um mau fim? Ele é um caráter nobre, que aprecio

mmto, e a quem agradeço muitas explicações sobre mim mesmo f

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e sobre as coisas em gera. Mas uitimamente pensei nele muitas�

vezes, e quando vocè fez aqueie julgamento sobre ele, pensei '

nisso várias horas, e tíve de lhe dar razão. Poís quero (he dizer.

Srta. Imma, o que hâ com o r. fi,berbein: ele e a felicidade� �

são inimigos . . . é isso.

- Parece uma inimizade nem decente, essa - disse Imma !

Spoelmann.

- Oecente - disse ele - mas sinistra, como você mesma

disse, e ainda por cima pecamínosa . . . pois é pecado contra uma

zs6

re-

coisa mais bela do que essa severa decência, agora sei disso. Ele

também quis me educar nesse pecado, com todo o seu jeito pa-

ternal. Mas agora superei a educação dele, nesse ponto pelo me-

nos. Agora sou independente e aprendi coisa melhor do que isso.

E, embora e não tenha conseguido convencer Überbein . . . à

senhora eu vou convencer, Srta. Imma, hoje ou mais tarde . . .

- Sim, Príncipe, devo admitir que sabe convencer, seu

fervor acaba arrebatando a gente! O senhor disse 19 dias? Eu

contei 18 e meio, mas dá na mesma. Nesse tempo, só teve a ge-

nerosidade de aparecer uma vez nos Delfins . . . há quatro

dias . . .

Ele a fitou, assustado.

- Mas Srta. Imma, tem de ter paciência comigo, e um

pouco de tolerância . . . Pense, eu ainda sou tão desajeitado . .

esttou pisando em solo estranho! Não sei como foí . . . acho que

quis dar tempo para nós dois. E, depois, tive de atender a vá-

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rios compromissos . . .

- Claro, teve de fazer tiro ao alvo pelas aparências, eu li.

Como sempre, teve enorme sucesso. Ficou ali, fantasiado, dei-

xando-se amar por toda aquela gente no prado . . .

- Pare, Srta. Imma, por favor, nada de galope! É impos-

sível conversar assim . . . Deixar-me amar, a senhora disse? Mas

que amor é esse? Amor público, um vago amor superficial, um

amor de longe, que nada signifíca . . . um amor em traje de ga

la, sem qualquer intimidade! Não, náo precisa se zangar porque

tolero esse amor, pois ele não me faz bem, apenas ao povo, que

se sente elevado por ele, e é isso que deseja. Mas também te-

nho o meu desejo, Srta. Imma, e é à senhora que o dirijo. . .

- Em que posso servi-lo, Príncipe?

- Ah, a senhora sabe muito bem! É confiança, Srta. Im-

ma . . . pode ter um pouco de confiança em mim?

Ela o encarou, e seus imensos olhos nunca tinham parecido

tão perquiridores e escuros. Mas, por mais que fosse premente

o mudo pedido dele, ela se afastou e disse com voz abafada:

- Não, Príncipe Klaus Heinrích, eu não posso.

287

Ele deu um gemido de mágoa e sua voz tremia quando

indagou:

- E por que não pode?

Ela respondeu:

- Porque o senhor me impede.

- Mas como a impeço? Me diga isso, por favor !

Com a expressão ainda fechada, olhos baixados sobre as

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, rédeas brancas, embalando-se de leve ao passo do cavalo, ela

retrucou:

- Por tudo, sua atitude, sua maneira de ser, toda a sua

personalidade tão nobre. Ainda se lembra de como irnpediu a

pobre Condessa de se descontrolar, e a forçou a ser lúci.da e clara,

embora, devído às suas experíências intoleráveis, ela precíse do

benefícío da perturbação e da síngularídade. . . E eü lhe dísse

i

que saiba muíto bem como o senhor começara a torná-l.a lüci-

da? Sim, eu sei bem, pois a mim também o senhor impede de

me entregar, a mim também me deixa lúcida, constantemente,

através de tudo, suas palavras, seu olhar, sua maneira de se sen-

tar e parar, e é totalmente impossível ter confiança no senhor

Tive oportunidade de observá-lo diante de outras pessoas, o

Dr. Sammet no hospital, ou o Sr. Stavenüter no jardim dos

Faisôes, sempre a mesma coisa, e sempre senti medo, e frio.

O senhor está sempre tão empertigado, e faz perguntas, mas

não por interesse, não se imparta com o conteúdo das pergun-

tas, não, o senhor não se interessa por coisa alguma. Vi isso

muitas vezes . . . O senhor fala, expressa uma opiníãc, mas po-

deria muito bem expressar outra qualquer. Poís na verdade o

senhor não tem opímões nem crenças, nadalhe interessa, senao

j

sua. postura de príncípe. As vezes o senhor me díz que sua vo-

cação não é fácil, mas, já que me desafiou, quero observar

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que lhe seria mais fácil, Príncipe, se tivesse uma opinião e uma

crença . . . essa é a minha crença, a mínha opinião. Como se po-

deria confiar no senhor? Não, não é confiança que o senhor

provaca nas pessoas, é frio e inibição, e mesmo que eu me esfor-

çasse por me aproximar mais, esse tipo de inibição e inabilidade

me impediria. . . Agora, já dei ao senhor mínha resposta!

288

ndo

Ele a escutara com dolorosa atenção, olhara várias vezes

para o rostinho pálido enquanto ela falava, e depois, novamente,

baixara os olhos sobre as rédeas, como ela fazia.

- Obrigado, Srta. Imma - disse ele então - por ter

falado tão a sério . . . pois sabe bem que nem sempre faz isso,

em geral zomba e, à sua maneira, leva as coísas tão a sério

quanto eu.

- Como posso falar com o senhor senão com zombaria,

Príncipe?

- E por vezes é até dura e cruel, como, por exemplo,

com a diaconisa do Hospital Dorothea, a quem deixou tão per-

turbada.

- Ah, sei que também tenho meus erros e precisaria de

alguém que me ajudasse a me livrar deles.

- Serei eu, Srta. Imma, vamos ajudar um ao outro. . .

- Não creio que possamos ajudar um ao outro, Príncipe.

- Sim, podemos. A senhora já não falou há pouco, séria

e sem qualquer ironia? Quanto a mim, não tem razão quando

diz que não me interesso por coisa alguma, que nada toca meu

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coração, pois pela senhora eu me interesso, Srta. Imma, e a

senhora tocou meu coração. E porque tudo isso é tão indizivel-

mente sério para mim, não posso falhar nisso que me proponho:

conquistar, enfim, a sua confiança. Se soubesse como gostei de

ouvir o que disse, sobre esforçar-se e se aproximar! Sim, esfor-

ce-se um pouquinho, e nunca mais se deixe estorvar por essa

inibição, ou seja o que for, que sente na minha presença! Eu

bem sei que tive culpa! Mas ria de mim, e da senhora mesma,

quando eu lhe despertar este tipo de sentimento, e fique do

meu lado! Promete que vai se esforçar um pouquinho?

Mas Imma nada prometeu, e finalmente insistiu em galopar,

e muitos outros diálogos como esse ficaram sem resultado.

As vezes, quando Klaus Heinrich tomava chá nos Delfins,

iam passear no parque, o Príncipe, a Srta. Spoelmann, a Con-

dessa e Percival. O nobre collie andava ao lado de Imma com

ar pensativo, e a Condessa Lewenjoul, dois, três passos atrás.

Pois logo após iniciarem o passeio ela ficavZ parada para ajeitar

289

com dedos recurvos alguma folhagem e não conseguía maís re-

cuperar a distâncía. Assim, Klaus Heinrich e Imma iam à frente,

conversando. E, quando chegavam a certo ponto, voltavam, e

agora a Condessa estava à sua frente. Klaus Heinrích sublinhava

suas palavras pegando a mão estreita e nua de Imma Spoelmann

entre as suas, cautelosamente, sem olhar para ela; pegava-a tam-

bém com a esquerda, que já não o inibia quando aparecia em

público. E indagava com veemência se ela se esforçava para con-

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fiar nele. E com tristeza ouvia-a dízer que estivera apenas estu-

dando, dedicando-se à álgebra, paírando naquelas gélídas regiões.

E eIe pedia que deíxasse os livros, que a dístraíam e afastavam

do assunto ao qual, agora, devia dedicar-se. E falava de si mesmo,

da reserva e inibição que sua pessoa transmitia, segundo ela

mesma dissera. Procurava explicar e atenuar isso. Falava da vída

fria, pobre e severa que levara até ali, descrevia como agiam

todos ao seu redor, interessados unícamente em ccntemplá-lo, e

como, por isso, sua nobre vocação constava unicarnente em se

expor e ser contemplado, o que era bem mais difícil. Esfalfava-

se por fazê-la entender que, para se curar dísso que impedira a

pobre Condessa de tagarelar e a própria Imma de entender sua

mâgoa - para se curar precisava unicamente dela, e só por sua

mão ficaria curado. Ela o encarava, olhos imensos cintilando,

perquíridores, e via-se que lutava. Mas depois meneava a cabeça

e terminava o diálogo falando com lábios em bico, usando expres-

sões com que se divertia, incapaz de dar aquele "sim" que ele

suplicava e de arrancar de sí mesma a vítóría que, do jeito que

as coisas estavam, ainda não a comprometería em coísa alguma.

Imma não o proibia de , vir duas vezes por semana, nem

de falar, de lhe fazer pedidos e protestos, e às vezes segurar-lhe

a mão. Mas apenas tolerava tudo, ficava imóvel. Seu medo, seu

receio tímido de abandonar aquele reino de frieza e ironia e

entregar-se a ele parecia insuperável, e às vezes, exausta e desa-

lentada, ela dizia:

- Ah, Príncipe, antes nunca nos tivéssemos conhecído. . .

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teria sido rnelhor! O senhor continuaria com sua nobre vocação,

290

como antes, e eu teria sossego, e um nãu p5taua awrmentando

0 outro!

Era difícil fazer com que se desdissesse e admitisse não estar

arrependida por tê-lo conhecido. Assím passou o tempo. O verão

terminou, grandes geadas noturnas prematuras fizeram as folha �

cair, ainda verdes, dos ramos, os cascos de Fatima, Florian e

Isabel farfalharam na folhagem vermelha e dourada, e o outono

chegou, com seus nevoeiros e perfumes ásperos - ninguém teria

podido divisar um fim ou mudança decisiva naquele estado de

coisas tão vago.

O méríto de colocar as coisas no solo da realidade, de dar

aos acontecimentos um final feliz, terá de ser sempre atribuído

ao ilustre cavalheiro que até alí observara tudo com sábia discri-

ção, mas no momento certo interveio com mão firme. Era Sua

Excelência von Knobelsdorff, Ministro do Interior, do Exterior

e da Casa Ducal.

O Professor Dr. Überbein tivera razão ao afirmar que o

Presidente do Conselho se informara dos passos pessoaís e apai-

xonados de Klaus Heinrich. Mais ainda: o ancião, bem-servido

por funcionários inteligentes e hábeis, estava sempre informado

de tudo que se passava na opinião pública, do papel que Samuel

Spoelmann e sua filha desempenhavam na fantasia do povo, do

nível de realidade que assumiam na imaginação deste, da pode-

rosa e supersticiosa tensão com que a população seguia o rela-

cionamento entre os Castelos Eremitage e Delfins, da populai-�

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dade desse relacionamento. Em uma palavra, estava a par do

modo como os dois apareciam para todos os que quisessem ver,

não só na Residência, mas em todo o país, em conversas e

boatos. Um incidente importante bastou para o Sr. von Knobels-

dorff assegurar-se do que pretendia.

No começo de outubro - a Assembléia iniciara seus tra-

balhos há duas semanas, e as desavenças na comissão de orça-

mento estavam em pleno curso - Imma Spoelmann adoeceu, e,

dizia-se de início, gravemente. Descobriram que a imprudente

senhorita - sabe Deus com que capricho ou estado de alma -

291

ï

fizera um galope de quase meia hora, numa cavalgada com sua

dama de companhia, montada na alva Fatima, contra o intenso

vento nordeste, e apanhara uma dilatação pulmonar que ameaça-

va sufocá-la. A notícia se espalhara em poucas horas. Dizia-se

que a moça corria perigo de vida, o que, como se verifícou, por

sorte, era exagero. Se um membro da Casa Grimmburg, o pró-

prio Grão-Duque, tivesse sofrido um acidente grave, a conster-

nação do povo não teria sido maior. Não se falava em outra

coisa. Nos maís ínfimos bairros da cidade - por exemplo, perto

do Hospital Dorothea -, as mulheres paravam diante de suas

casas ao entardecer, levavam as mãos ao peíto e ofegavatn para

mostrarem umas às outras como era estar sufocando. Os jomais

vespertinos davam notícias detalhadas e objetivas sobre o estado

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da Srta. Spoelmann, as quais passavam de mão em mão, sendo

lidas à mesa da família e comentadas nos bondes. Vira-se o jor-

nalista do Mensageiro disparar de carruagem para o Castelo dos

Delfins, onde fora atendido pelo mordomo, no vestíbulo de mo-

saicos, falando inglês com ele, embora lhe fosse difícil. A impren-

sa podia ser censurada por ter aumentado o caso e causado preo-

cupações desnecessárias. Praticamente não se podia falar em pe-

rigo grave. Seis dias de repouso na cama, sob o cuidado do

médico pessoal dos Spoelmann, bastaram para curar a dílatação

dos vasos e recuperar plenamente a saúde da senhorita. Mas

esses seis dias também bastaram para destacar claramente a

importância que os Spoelmann, especialmente a Srta. Imma,

haviam assumido na vida pública. Todas as manhãs, enviados

dos jomais , emissários da curiosidade publica, reuniam-se no

vestíbulo dos Delfins para receber o lacônico relatório diário

do mordomo, que depois enviavam a seus jomais naqueles exten-

sos artigos que o público pedia. Todos liam sobre as perfumadas

saudações e votos de saúde que chegavam aos Delfins, enviadas

por várias instituições de caridade que Imma Spoelmann. visitara

e apoiara com ricas doações (os piadistas comentaram que, na

verdade, os encarregados dos impostos do Grão-Ducado podiam

ter aproveitado a oportunidade para fazer agradecimentos se-

292

melhantes). Também liam - e baixavam os jomais para tro-

car olhares - sobre uma "magnífica" oferta de flores que o

Príncipe Klaus Heinrich enviara, justamente com seu cartão (na

verdade, durante o tempo em que a Srta. Spoelmann esteve de

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cama, o Príncipe mandou flores aos Delfins, não uma vez, mas

diariamente, coisa que os bem-informados silenciaram para evitar

mais agitação). Leu-se depois que a querida jovem paciente dei-

xara a cama pela primeira vez, e finalmente se anunciou que em

breve daria sua primeira saída. Esta, oito dias depois que a

moça adoecera, deu motivo para uma verdadeira explosão de sen-

tímentalismo do povo, considerada exagerada pelas pessoas mais

severas. Uma multidão se reunira em torno do automóvel dos

Spoelmann, pintado de verde-oliva, com o jovem motorista de

cara saxônica, pálido e concentrado, diante do portal dos Delfins.

Quando a Srta. Spoelmann apareceu, ladeada pela Condessa e

seguida de um lacaio que levava um cobertor, ouviram-se, com

efeito, "vivas", com gente brandindo gorros e lenços. As excla-

mações duraram até o automóvel abrir caminho buzinando na

multidão, deixando para trás os manifestantes numa nuvem de

vapor de gasolina. Admite-se que o grupo não era muito digno,

era desses que costumam aparecer nessas ocasiões: meninotes,

mulheres com cestos de mercado, crianças de colégio, curiosos,

pivetes e desocupados. Mas o que é o povo, e como se deve

constituir para ter importâncía? Al.ém disso, não se pode igno-

rar uma informação divulgada mais tarde com ares de ironia,

segundo a qual na multidão havia um agente da Polícia Secreta

pago pelo Sr. von Knobelsdorff para incitar e manter vivos os

aplausos. Podemos ignorar isso e deixar que se alegrem aqueles

que gostam de menosprezar fatos importantes. No mínimo, se

for correta a informação desses indivíduos, tratava-se de uma

manifestação mecânica de sentimentos, mas os sentimentos te-

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riam de existir para se manifestarem assim. De qualquer modo,

aquele incidente, amplamente divulgado na imprensa, impressio-

nou todo o mundo, e pessoas perspicazes não duvidaram de que

outra notícia, que em breve ocupou a todos, devia estar intima-

mente ligada a todos aqueles fatos e indícios.

293

' notícia dizia que Sua Alteza Real, o Príncipe Klaus Hein-� �

rich, recebera Sua Excelência o Ministro von Knobelsdorff numa

audíência no Castelo Eremitage, das 3h da tarde às 7h da noite.

Quatro horas! De que teriam falado? Certamente, não do pró-

ximo baile da Corte! Bem, entre outras coisas, tinham falado

nisso também.

O Sr. Knobelsdorff pedira um ént¡ontro a sós com v Prín-

cipe durante a caçada da Corte, no dia 10 de outubro, no Cas-

telo de Caça, nas florestas do oeste. Klaus Heinrich participara

dela com seus primos ruivos, em botas, uniforme, chapeuzínho,

facão, cinturão de balas e bolsa de pistolas. O Sr. von Braunbart-

Schellendorf fora convocado para fins de aconselhamento, e a

data fora marcada para as 3h da tarde do dia 12 de outtubro.

Klaus Heinrich se havia oferecido para visitar o ancião em sua

moradia oficial, mas este preferira vir ao Eremitage, e chegou

pontualmente. Foi recebido com todo o calor e a amabilidade

que Klaus Heinrich julgava adequado demonstrar para com o

velho conselheiro de seu pai e de seu irmão. O diálogo desen-

rolou-se naquele salãozinho sombrio, com três belos sofás impé-

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rio de mogno, com liras azuis bordadas sobre fundo amarelo.

Embora já beirando os 70, Sua Excelência era forte de cor-

po e mente. O casaco não ficava enrugado, como nos velhos,

mas envolvia, muito iusto e bem-recheado, o corpo atarracado e

fornido de um homem de boa índole. Seu cabelo ainda cheio,

liso e repartido ao meío; era de um branco puro, co;no o bigode

aparado, e seu queixo, dividido por uma fenda simpática, que

podia ser chamada de covinha. As ruguinhas em forma de leque

nos cantos externos dos olhos moviam-se como antigamente;

sim, com os anos tinham adquirido mais ramificações e linhas

secundárias, de modo que aquele conjunto animado e múltiplo

de rugas conferia a seus olhos azuis uma expressão constante

de astúcia.

Klaus Heinrich gostava do Sr. von Knobelsdorff, sem que

houvesse relação mais íntima entre os dois. O Ministro de Esta-

do vigiara a vida do Príncipe e a orientara, designara no começo

f

294

o Professor Droge como seu primeiro mestre, depois criara para

ele o pensionato dos Faisões, mais tarde o enviara com o Dr.

Überbein à Universidade, regulamentara seu aparente serviço

militar e até lhe destinara como moradia o Castelo Eremitage -

mas tudo indiretamente, com raros contatos pessoais. Sim, quan-

do o Sr. von Knobelsdorff se encontrava com Klaus Heinrich

naqueles anos de formação, sempre se informava muito respei-

tosamente das decisões e planos para o futuro do Príncipe, como

se nada soubesse a respeito deles. E talvez tenha sido exatamente

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essa ficção, mantida com firmeza pelos dois lados, que fez com

que a relação permanecesse dentro do estritamente formal.

O Sr. von Knobelsdorff, que assumira a direção da conver-

sa, numa postura confortável mas respeitosa, enquanto Klaus

Heinrich tentava adivinhar a razão de sua visita, conversou pri-

meiro sobre a caçada de dois dias atrás, rememorou tranqüila-

mente os pormenores, e depois mencionou casualmente seu exce-

iente colega das Finanças, o Dr. Krippenreuther, que também

tomara parte na caçada e cuja má apresentação lamentou. O Sr.

Krippenreuther errara todos os tiros no Castelo de Caça.

- Sim, as preocupações fazem tremer a mão de uma pes-

soa - comentou o Sr. von Knobelsdorff, e assim pôs na boca

do Príncipe a deixa para que apresentasse, depressa, uma dessas

preocupações. Falou do déficit "não insignificante" do orçamen-

to, das desavenças entre o Ministro e a comissão encarregada, do

novo imposto sobre bens, da porcentagPm de 13 por cento, da

furiosa resístência dos representantes do povo, da antediluvíana

taxação da carne e do grito de fome dos funcionários públicos.

E Klaus Heinrich, a princípio estranhando tanta objetividade,

escutava, sério, sacudindo a cabeça com interesse.

Os dois homens, jovem e velho, sentavam-se lado a lado no

sofá delicado e desconfortável, coberto de tecido amarelo com

enfeites de latão em guirlanda, atrás da mesa redonda, diante da

estreita porta de vidro que dava para o terraço, revelando 0

parque semidesfolhado, com o lago dos patos diluído no nevoei-

ro. O fogão de azulejos, baixo e branco, no qual crepitava o

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fogo, espalhava um brando calor no severo aposento precaria-

mente mobiliado. Klaus Heinrich, incapaz de seguír todas aque-

las perorações polítícas, mas feIíz e orgulhoso pelo fato de aquele

experiente dignitário falar assim com ele, sentia-se cada vez mais

envolvido em gratidão e confiança. O Sr. von Knobelsdorff falou

de maneira agradável sobre as coisas mais desagradáveis, sua voz

era benfazeja, sua conversa, ágil e adulatória - de repente, o

Príncipe percebeu que ele deixara o campo administrativo e pas-

sara das preocupações do Dr. Krippenreuther para a vida pessoal

de Klaus Heinrich. O Sr. von Knobelsdorff estaria iludido? Seus

olhos já o traíam algumas vezes, mas ele achava que a aparência

de Sua Alteza já fora melhor, mais saudável e alegre. Aparecia

uma dor, um cansaço. . . O Sr. von Knobelsdorf receava pare

cer íntrometído, mas esperava que esses sínaís não índícassem

qualquer problema sério do corpo ou da alma.

Klaus Heinrich olhava o nevoeiro lá fora. Sua expressão

i ainda era reservada, mas, embora estivesse sentado naquele sofá�

duro com a mesma postura controlada e atenta de sempre, pés

cruzados, mão direita sobre a esquerda, virando-se para o Sr.

"I

von Knobelsdorff, sua postura interior distendeu-se um pouco

e, abatido pelas lutas delicadas e inúteis, pouco faltava para que

seus olhos se enchessem de água. Era tão só e desamparado. O

1i Dr. Überbein andava afastado do Eremitage. . . Klaus Heínrich

aínda dísse:

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- Ah, Excelênía, falar nísso nos Ievaria longe demais.�

Mas von Knobelsdorff respondeu.

- Longe demais? Não, Alteza, não receie ser demasíado

explícito. Admito que estou informado sobre as experiências de

Vossa Alteza, mais do que deixeí transparecer. Exceto em seus

aspectos mais sutis e detalhados, que não são comentados nos

boatos, Vossa Alteza dificilmente me dirá novidades. Mas sentir-

se-á bem abrindo o coração a um velho criado que o carregou nos

braços. . . talvez eu não seja inteiramente incapaz de ajudar com

conselhos ou ações.

Então, o peíto de Klaus Heinrich se abriu e despejou tudo,

de modo confessíonal. Ele contou tudo. ontou como se conta�

296

quando o coração está repleto e de repente tudo transborda de

nossa boca: sem muita ordem ou coerência, demorando-se de-

mais em coisas secundárias, mas com veemência, com aquela vi-

vacidade que fala de uma alma apaixonada. Ele começava no

meio, saltava para o começo, precipitava-se para o fim (inexis-

tente), tropeçava, e mais de uma vez empacou, desesperado. Co-

mo o Sr. von Knobelsdorff já soubesse de tudo, era mais fácil

entender, e ele era capaz de reanimar o barquinho com algumas

perguntas necessárias - e por fim o retrato das experiências de

Klaus Heinrich, com todas as pessoas e fatos, com as figuras de

,Samuel Spoelmann, da viúva Condessa Lõwenjoul, até do collie

Percival, sem falar de Imma Spoelmann, apareceu com toda a

sua complexidade, perfeito e completo, para ser analisado. Até

o pedacinho de guta-percha foi amplamente comentado, pois o

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Sr. von Knobelsdorff parecia dar-lhe importância, e nada do que

aconteceu entre aquela impressionante aparição na troca da guar-

da do Castelo e as últimas discussões íntimas a cavalo e a pé

foi esquecido. Klaus Heinrich estava muito corado e seus olhos

de um azul-aço, apertados pelos zigomas de seu povo, mostravam-

se cheios de lágrimas. Ele deixara o sofá, obrigando o Sr. von

Knobelsdorff a se levantar também, e por causa do calor queria

abrir a porta de vidro da pequena varanda, o que o Sr. von Kno-

belsdorff impediu, mencionando o perigo de um resfriado. E

pediu muito humildemente ao Príncipe que se sentasse outra

vez, pois Sua Alteza Real precisava explicar com tranqüilidade

toda a situação. E os dois sentaram-se novamente sobre os duros

assentos.

O Sr. von Knobelsdorff refletiu um pouco, no rosto a mais

absoluta gravidade possível, apesar da covinha no queixo e das

rugas nos olhos. Quebrando o silêncio, agradeceu comovido ao

Príncipe a grande honra de merecer sua confiança. E logo depois,

acentuando bem cada palavra, explicou que, não importava que

atitude o Príncipe esperasse dele, não era von Knobelsdorff, o

homem, que haveria de contrariar-lhe as esperanças e desejos;

muito antes, desejaria aplanar o caminho para o desejado obje-

tivo, no que dependesse de suas forças.

297

Longo silêncio. Klaus Heinrich contemplou o Sr. von Kno-

belsdorff, encarando perplexo aqueles oIhos rodeados de rugui-

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nhas. Então, ele tinha desejos e esperanças? Então, havia um

objetivo? Ele não entendia o que estava ouvindo, e disse:

- Vossa Excelência é tão amável. . .

E o Sr. von Knobelsdorff acrescentou à sua grande expli-

cação uma espécie de condição, dizendo que sob uma condição

j '; apenas ele, como mais alto funcionário do Estado, poderia fazer

' ' valer sua influência para ajudar Sua Alteza Real . . .

Uma condíção

- A condição de que Vossa Alteza Real não pense unica-

mente em sua felicidade pessoal, de maneira egoísta e pequena,

mas, como exige sua nobre vocação, contemple seu destino pes-

soal do ponto de vista do todo maior.

Klaus Heinrich calou-se, os olhos escuros de reflexão.

- Permita Vossa Alteza Real - continuou o Sr. von Kno-

belsdorf, após uma pausa - que deixemos de lado por algum

tempo esse assunto delicado e ainda imprevisível, e falemos de

assuntos gerais! Esta é uma hora de confiança e entendimento

mútuos . . . peço respeitosamente que me deixe aproveítá-la.

Vossa Alteza sempre foi isolado, por sua nobre vocação, dos

lados ásperos da realidade, apartado dela por belas precauções.

Não esquecerei que essa engrenagem wão é - ou só é indireta-

mente - problema seu. Mas parece-me ter chegado o momento,

Alteza, de pelo menos proporcionar-lhe uma visão de determi-

nado campo deste rude mundo. Peço antecipadamente que me

perdoe se mínhas ínformações ferírem Vossa Alteza interna-

mente . . .

- Por favor, Excelência, fale! - disse Klaus Heinrich,

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atônito. Involuntariamente, endireitou o corpo como alguém se

'¡¡ endireita na cadeira do dentista, concentrando-se contra uma

intervenção dolorosa . . .

! - É preciso toda a atenção - disse o Sr. von Knobels-

dorff, quase severo. E agora, às desavenças da comissão do orça-

mento, seguiu-se uma exposição, uma aula clara, profunda e rea-

298

lista, enriquecida por cifras, explicações e expressões técnicas,

sobre a situação econômica do país, que mostrou ao Príncipe

tocio o nosso sofrimento, com impiedosa nítidez. Decerto, essas

rcsas nãolhe eram inteiramente estranhas nem novas. Muito�

antes, desde que representava seu irmão, elas lhe tinham servido

de motivo e assunto para aquelas perguntas formais que costu-

mava dirigir a prefeitos, camponeses, funcionários, escutando

ai.ias respostas, que eram dadas por si mesmas e não por amor à

verdade, acompanhadas do sorriso que ele conhecia desde crian-

ça e que significava: "oh, belo e puro! ". Mas nunca aquilo 0

atingira assim em massa, com uma objetivídade nua, exigindo

todo o seu raciocínio e a mais absoluta seriedade. O Sr. von

Knobelsdorf£ não se contentou com o habitual gesto de Klaus

lleinriçh de balançar interessadamente a cabeça; foi muito pre-

ciso, interrogou o rapaz, repetiu explicações inteiras, manteve-o

o tempo todo dentro dos fatos objetivos, e foi como um indica-

clor enrugado e de pele ressequida que parava em cada ponto,

sem deixar o Iugar enquanto nto se tivesse atingído a compreen-�

são total.

O Sr. von Knobelsdorff começou pelos tundamentos; falou

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e1a terra e do país, com suas condições pouco desenvolvidas de

comércio e indústria, do povo, o povo de Klaus Heinrich, essa

aça fina e forte, saudável e resistente. Falou da falta de ganhos�

rstatais, das ferrovias poucu ïucrativas, das minas de carvão in-

uticientes. ralou da admínatração das florestas, da caça e das� �

pastagens, falou da floresta e do ciesmatamento, dos imposts�

cx,igerados, das reservas mirradas e cïa baixa renda das florestas.

iepois, falou mais detidamente de nossas finanças, comentou a�

naural deficiência do povo em matéria de pagamento de impos-�

ïos, mencionou períodos anteriores de péssima administração

i inanceira. E depois comentou a ; if ra das dívidas públicas, que

fez o Príncipe repetir várias vezes. Era de 600 milhões. A aula

abrangeu ainda as obrigações, as condições de juros e pagamento

da dívida, voltou às dificuldades amais do Dr. Krippenreuther e

dscreveu a grave situação do momento. Tendo na mão a Revista�

299

de Estatística, que de repente tirou do bolso, o Sr. von Knobels-

dorff demonstrou ao discïpulo os resultados da colheita dos últi-

mos anos, falou sobre as inclemências do tempo que tinham cau-

sado o problema, rnencionou as lacunas nos impostos, que tam-

bém tinham sido provocadas dessa maneira, e atê se referiu àque-

las figuras subnutridas do campo. Depois, passou para a situação

do mercado financeiro, estendeu-se falando sobre o encarecimen-

to do dinheiro e as perturbações econômicas gerais. E Klaus

Heinrich soube da baixa condição da moeda corrente, da inquie-

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tação dos credores, do escoamento de divisas, das falências; viu

nosso crédito abalado, nossos papéis desvalorizados, e entendeu

perfei.tamente que era quase impossível obter novos empréstimos.

tomeçava a escurecer, eram bem mais de Sh quando o Sr.�

von Knobelsdorff concluiu sua conferência sobre economia. A

essa hora, Klaus Heinrich costumava tomar seu chá, mas só teve

para isso um pensamento muito breve, e de fora ninguém se

atrevia a interromper um encontro cuja importância se via pela

sua duração. Klaus Heinrich escutava e escutava. Já quase nem

sentia o quanto estava abalado. Mas por que, afinal, lhe diziam

tudo aquilo? Nem sequer uma vez fora tratado de "Alteza Real"

durante essas horas, de certa forma o tinham violentado, ferido

grosseiramente sua pureza e finura. Mas fora bom ouvir tudo

aquilo; aquecia-o interíormente poder aprofundar-se naquilo por

amor à coisa em si. Um interesse objetivo. . . Esqueceu-se de

mandar acender a luz. tão concentrado estava.

- Essas circunstâncías - concluiu o Sr. von Knobelsdorff

- foram as que lembrei ao convídar Vossa Alteza Real a ver

seus desejos e ações pessoais sempre à luz dos ínteresses gerais.

Vossa Alteza Real tirarâ proveito desta hora e do conteúdo que

lhe pude expor, não tenho dúvidas. E nessa confiança permíta

Vossa Alteza que eu retorne a seus assuntos maís particulares.

O Sr. von Knobelsdorf esperou até Klaus Heinrich fazer

um gesto de aquiescêncía, e eontínuou:

- Se quiser que esse assunto tenha futuro, é preciso que

se desenvolva em grau mais elevado. Está estagnado de momen-

lOO

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bels- to desolado e informe como o nevoeiro lá fora. Isso não é sen-�

,

últi- sato. Precisamos dar-lhe forma, adensá-lo, para que também aos�

,

i cau- , olhos do mundo tenha contornos mais nítidos . . .

- Isso mesmo, isso mesmo! Dar contornos . . . adensar. . .

É isso! É absolutamente necessário! - afirmou Klaus Heinrich,

possesso, saindo do sofá mais uma vez e andando pela sala. -

Mas como? Pelo amor de Deus, Excelência, diga-me como!

- O primeiro passo - disse o Sr. Knobelsdorff, perma-

necendo sentado, tão estranha era aquela hora - é que os Spoel-

mann precisam ser vistos na Corte.

Klaus Heinrich parou:

- Nunca! - disse. - Se conheço o Sr. Spoelmann, ele

nunca se deixará convencer a ir à Corte!

- O que não impede - retrucou o Sr. von Knobelsdorff

- que sua filha nos dê esse prazer. Está perto o baile da Cor-

te . . . está em suas mãos, Alteza, convidar a Srta. Spoelmann.

A dama de companhia dela é uma Condessa . . . pessoa esquisita,

mas Condessa; e isso facilita tudo. E se estou assegurando a Vos-

sa Alteza que a Corte concordará com isso, é porque falo em

concordância com o Mestre-de-Cerimônias von Bühl zu Bühl. . .

Depois, a conversa girou mais 45 minutos em torno de pro-

blemas e condições sob as quais se daria aquela apresentação.

Era preciso deixar um cartão com a Mestra-de-Cerimônias da

Corte da Princesa Katharina, a viúva Condessa Trümmerhauff,

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que presidia as festas no Castelo Velho diante do mundo femi-

nino. Mas, quanto ao ato de apresentação em si, o bondoso

Knobelsdorff soubera obter concessões de caráter expresso, até

mesmo desafiador. Não havia no local um encarregado de negó-

cios dos Estados Unidos . . . não havia motivo, esclareceu von

Knobelsdorff, para fazer as damas serem apresentadas por qual-

quer Camareiro; não, o próprio Mestre-de-Cerimônias pedia a

honra de apresentá-las ao Grão-Duque. Quando? Em que mo-

mento da seqüência prescrita? Bem, circunstâncias excepeionais

exigiam que se fizesse uma exceção. Então, em primeiro lugar,

antes de todos os novos convidados das mais diferentes hierar-

301

quias da Corte. Klaus Heinrich poderia assegurar à senhorita essa

medida extraordinária. Haveria falatórios, o fato causaria sensa-

ção na Corte e na cidade. Mas não ímportava, era até melhor.

Sensação não era uma coisa indesejada - era útil e necessária.

O Sr. von Knobelsdorff foi embora. Estava tão escuro

quando ele se despediu que quase não se viam mais. Klaus Hein-

rich, que só agora notava isso, desculpou-se, um pouco confuso,

mas o Sr. von Knobelsdorff dísse que não tinha importâncía al-

guma a luz na qual se desenrolara aquela conversa. Pegou a mão

que Klaus Heinrich lhe oferecia e a agarrou entre as suas.

- Nunca - disse ele, calidamente, e foram suas últimas

palavras antes de se retirar -, nunca a felicidade de um príncípe

esteve maís lígada à felicídade de seu país. Em tudo o que Vossa

Alteza pensa e faz, devo manter presente que sua felicidade foi�

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ligada pelo destino ao bem-estar público, mas, de sua parte, Vos-

sa Alteza deve reconhecer no bem-estar do país a condição e

justificação de sua felicidade pessoal.

Fortemente comovído, e aínda incapaz de ordenar os pensa-

mentos que o assaltavam de mil maneiras, Klaus Heinrich per-

maneceu em seus sóbrios aposentos império.

Passou uma noite agitada e, na rnanhã seguinte, apesar do

tempo ruím e úmido, fez um grande passeío a cavala sozínho. O

Sr. von Knobelsdorff falara de modo claro e copioso, transmitira

e escutara dados. Mas, para configurar, entender e elaborar tudo

isso internamente, essa massa bruta e variada, ele fornecera ape-

nas indicações breves e lacônicas. Klaus Heinrich precisava ra-

ciocínar muito seríamente, acordado à noíte, e depoís cavalgan-

do Florian.

Voltando ao Eremitage, ele fez uma coisa estranha. Num

pedacinho de papel, escreveu um pedido, e com ele enviau o

lacaio Neumann à cidade, à Livraria Acadêmica da Rua da Uni-

versídade. Curvado ao peso que carregava, Neumann trouxe uma

pilha de livros, que Klaus Heinrich mandou colocar no gabinete

e se pôs a ler imediatamente. .

Eram obras de cara séria e didática, capas de papel lustrosó

e feías lombadas de couro, texto em papel áspero, conteúdo

302

escrupulosamente ordenado em capítulos, subeapítulos e pará-

grafos. Os títulos não eram nada divertidos. Eram ensaios e ma-

nuais de economia, esboços e resumos de Política e exposições

sistemáticas de Economia Política. O Príncipe trancou-se no ga-

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binete com os textos, e deu ordens para não o perturbarem.

O outono estava chuvoso e Klaus Heinrich não tinha von-

tade de sair do Castelo. No sábado, foi ao Castelo Velho dar

audiência pública. De resto, foi dono do seu tempo a semana

toda, e soube usá-lo muito bem. Vestido na sua litewka, sentava-

se ao calor do fogão baixo, de azulejos, têmporas nas mãos, lendo

seus livros de economia. Leu sobre os gastos públicos e do què

constavam; leu sobre os lucros e de onde poderiam advir em boas

condições; passou por todo o tema dos impostos, em todos os

seus capítulos; mergulhou na doutrina do planejamento econômi-

co e do orçamento, balanço, superávit e déficit; leu por mais

tempo e mais detidamente sobre a dívida pública e suas classifica-

ções, empréstimos, juros, capital e pagamento de dívidas . . . por

vezes erguia a cabeça dos livros e, com um sorriso, sonhava com

o que lera, como se fosse a mais bela poesia.

De resto, não achava difícil compreender tudo aquilo, des-

de que houvesse interesse. Não, toda aquela grave realidade de

que agora participava, aquele encadeamento de interesses, aque-

la doutrina de necessidades e urgências bem coerentes, que incon-

táveis jovens de origem comum tinham metido em suas cabeças

para passarem nos exames - não era tão difícil de dominar

como ele julgara de suas.alturas. Achou que representar era mais

difícil. E muito, muito mais duros e complicados eram seus ter-

nos combates com Imma Spoelmann, a cavalo ou a pé. Mas

sentiu-se contente e aquecido com seu estudo, e percebeu que

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tinha as faces rubras de interesse, como seu cunhado zu Ried-

Hohenried em relação à turfa.

Depois de ter estudado, dessa maneira, os fundamentos ge-

rais e acadêmicos dos assuntos que o Sr. von Knobelsdorfflhe

apresentara, e raciocinado bastante sobre outros assuntos interio-

res, analisando possibilidades, ele se apresentou novamente nos

303

Delfins na hora do chá. As lâmpadas do candelabro de pés de

leão e dos grandes lustres de cristal ardiam no salão de inverno.

As damas estavam sozinhas.

Depois das primeiras perguntas e respostas sobre a saúde

do Sr. Spoelmann e a passada enfermidade de Imma - Klaus

Heinrich censurou-a vivamente por sua impetuosidade, ao que

ela respondeu, com os lábios em bico, que era dona de si mesma

e fazia da sua saúde o que bem entendesse -, falaram do outo-

no, do tempo úmido que impedia as cavalgadas, do estágio avan-

çado do ano, do inverno iminente, e Klaus Heinrich mencionou

casualmente o baile da Corte, lembrando-se de indagar se as

damas - caso o Sr. Spoelmann fosse, infelizmente, impedido�

pela saúde - não teriam vontade de participar dessa vez. Mas

Imma respondeu que não, realmente não, não desejavá nem de

longe ofender, mas não tinha a mínima vontade; portanto, ele

não insistiu, mas, indiferente, deixou de lado a pergunta, de

momento.

Que estivera fazendo nos últimos dias? Ah, estivera ocupa-

do, podia dizer que tivera as mãos cheias de trabalho. Traba-

lho? Sem dúvida, falava na caçada no Castelo de Caça. Bem, a

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caçada . . . Não, estivera estudando seriamente, e ainda não ter- j

minara; ainda estava mergulhado no assunto . . . E Klaus Hein- f

rich começou a falar de seus livros feios e de suas idéias sobre i

Ç'

finanças, e falou de economia com tanta alegria e respeito que i

Imma Spoelmann o contemplou, abrindo bem os olhos, Mas

quando - de maneira quase tímida - ela o interrogou sobre o

motivo e causa desse estudo, ele respondeu que eram questões

atuais, vivas e muito prementes que o tinham levado a isso:

circunstâncias que, infelizmente, eram incompatíveis com uma

conversa amena durante o chá. Essa resposta ofendeu Imma,

obviamente. Em que observações, perguntou ela asperamente,

meneando a cabecinha, se baseava sua convicção de que ela só

sabia participar de conversas amenas, ou que as preferia? E,

mais ordenando do que pedindo, exigiu que ele falasse sobre

aquelas questões tão prementes.

304

Então, Klaus Heinrich mostrou o que aprenderacom o Sr.� �

von Knobelsdorff, e falou do país e de sua situação. .Estava

informado de todos os assuntos sobre os quais pousara aquele

indicador enrugado; falou dos problemas da natureza, das dívi-

das, dos problemas gerais e mais estritos, dos adiados e dos que

se complicaván, acentuou as cifras das dívidas públicas e ,a .pres-�

são que faziam sobre nossa economia - eram 600 milhões -T-,

e não esqueceu nem mesmo as subnutridas criaturas dos campos.

Ele não falava de maneira muito coerente; Imma Spoelmann

o interrompia com perguntas, e com perguntas o ajudava a pro-

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gredir, escutava tudo atentamente e pedia explicações sobre o

que não entendia de imediato. Em seu vestido de mangas aber-

tas, de seda crua cor de telha, com largos bordados no peiXo,

uma antiga corrente espanhola no pescoço infantil, ela estava sen-

tada, inclinada sobre a mesa de chá reluzente de cristais e pra-

tarias e valiosas porcelanas, um cotovelo apoiado na mesa, o

,queixo na mão nua e deliezda, eccatando com interesse, os olhos,�

imensos e de brilho escur, pesquisando o rosto dele. Mas en-�

uantp ele falava, e Imma o interrogava com olhos e lábios, e

q

Klaus se esforçava, entregando-se inteiramente a seu assunto, a

Condessa Lõwenjoul não se julgou mais. obrigada a ixianter a

lucidez - descontrolou-se e se permitiu o benefício da sua taga-

relice çiemente. Explicou, com gestos nobres e olhos estranha-

mente apertados, que em toda míséria, também em colheitas fra-

cassadas, dividas e encarecimento do dinheiro, a culpa era da-

quelas mulheres despudoradas que estavam por toda parte, como

na noite passada a mulher do sargento dos fuzileiros da caserna

arranhara seu peito e a martirizara com ações repulsivas. Depois

mencionou seus castelos na Iiorgonha, nos quais chovia do lado

,de dentro, e chegou a contar que, como tenente, participara de

nma campanha contra os turcos e fora a única a "não perder a

cabeça", Imma Spoelmann e Klaus Heinrich davam-1he aÁui e

ali uma palavra bondosa, prometiam chamá-la de "Sra. Meier"

e não deixaram que sua tagarelice os estorvasse.

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Os dois tinham rostos acalorados quando Klaus Heinrieh

acabou de dizer .tudo que sabia - sim, até no de Imma Spoel-

305

mann, sempre coberto de uma .palidez de péxolas; via-se um so-�

pro de rubor. Tepois, calaram-se , e também a Condessa emu-��

deceu, inclinando., sqbre o ombro a cabeça pequena, fixando 0

vazio com olhas apertados. Klaus Heinrich brincava sobre a

alvíssima e engomada tòalha da mesa com o caule de uma orquí-

dea que estivera junto de seus talheres; mas, assim que ergueu

a cabeça, encontrou os olhos de Imma Spoelmann, imensos; ar-

dentes e fixòs, falando numa linguagem obscura e eloqüente

por sobre a' mesa.

- Foj agradável hoje'- disse e1a com sua voz rouca quan-�

do ele se despediu. E Klaus Heinrich sentiu a mão estreita de

ossos delicados agarrar a dele com pressão firme. - Se Vossa

Alteza honrar mais uma vez nossa indigria casa com sua presença,

poderia me trazer um ou outro desses bons livros que conse-

guíu? - Ela não conseguía deíxar de fazer zombaria, por menor

que fosse, mas pediu seus livros de economia, e ele os trouxe.

Trouxe dois deles,. que julgava os mais informativos e

abrangentes; trouxe-os alguns dias depois, atravessando em seu

cupê o encharcado Parque Municipal, e ela soube agradecer. As-

sim que tinham tomado chá, retiraram-se para um canto do salão,

onde, enquanto a Condessa ficava junto da mesa de chá, total-

mente ausente, sentaram-se em poltronas que parecíam tronos,

junto de uma mesinha dourada, inclinados sobre a prímeira pá-

gina de um livro de ensaios chamado Ciência econômica, e come-

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çaram seu estudo juntos. Leram até o prefácio da primeira e da

sexta edição; liam cada frase alternadamente, em voz baixa; pois

Imma Spoelmann achava que era preciso trabalhar metodicamen-

te, começando do começo.

Klaus Heinrich, hem-preparado como estava, dirigia-a atra-

vés dos parágrafas, e ninguém o teria seguido com mais interes-

se e lúcidez do que Imma.

- É fácil! - disse ela, e ergueu os olhos, rindo. -

Admira-me que, no fundo, seja tão fácil. A álgebra é bem mais

difícil, Príncípe . . ,

306

Mas, como estudavam tão a fundo, não progrediram muito

naquela tarde, e marcaram na livro o lugar de onde prossegui-

riam da próxima vez.

Foi o que fizeram; e, a partir de então, as visitas do Prínci-

pe aos Delfins tinham um conteúdo objetivo. Sempre que o Sr.

Spoelmann não aparecia para o chá, ou quando acabava de mer-

gulhar no chá sua torrada de enfermo, retirando-se com o Dr.

Watercloose, Imma e Klaus Heinrich se ajeitavam com seus li-

vros na mesinha dourada e, cabeças unidas, mergulhavam na

doutrina econômica. Mas, ao progredir, comparavam os ensina-

mentos ali hauridos com a realidade, aplicavam o que liam às

condições do país, conforme Klaus Heinrich as apresentara, e

estudavam com proveito, embora freqüentemente suas pesquisas

fossem interrompidas por comentários pessoais.

- Então - dizia Imma --, a emissão pode acontecer de

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maneira direta ou indireta. . . sim, isso faz sentido. O Estado

dirige-se diretamente aos capitalistas e abre a subscrição . . . Sua

mão tem duas vezes o tamanho da minha - disse ela. - Olhe,

Príncipe! - E os dois olhavam felizes, surpresos e sorridentes,

a visão simples de suas mãos, a direita dele e a esquerda dela,

lado a lado sobre a mesa dourada. - Ou - prosseguia Imma

- o empréstimo se fará por negociação, e um grande banco ou

consórcio assumirá as promissórias do governo . . .

- Espere! - dizia ele, baixinho. - Espere, Srta. Imma,

responda a uma pergunta minha! A senhora não está esquecen-

do o principal? Está se esforçando e progredindo? Como está

com a lucidez e a inibição, minha pequena Srta. Imma? A se-

nhora já confia um pouquinho em mim? Os lábios dele pronun-

ciavam a pergunta junto dos cabelos dela, que exalavam um

perfume delicioso, e ela ficava com a cabecinha, de cabelos ne-

gros e rosto pálido, imóvel, inclinada sobre o livro, embora não

respondesse à pergunta.

. - Mas teria de ser um banco ou consórcio? - refletia

ela. - Não dizem nada sobre isso aqui, mas como parece que,

em casos práticos, não será necessário . . .

307

Ela falava gravemente, sem citações, pois agora também

precísava fazer aqueles raciocíníos que Klaus Heínrich realízara

após o encontro com o Sr. von Knobelsdorff. E quando, algumas

semanas mais tarde, eIe voltou a índagar se ela não tínha von-

tade de comparecer ao baile da Corte, e lhe falou das condições

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que lhe tínham sído concedídas para esse caso, no tocante à ceri-

mônia, eIa respondeu que sim, desejava ir, amanhâ visitaria a

viúva Condessa Trümmerhauff com a Condessa Lõwenjoul, para

levar os cartões de visita.

Naquele ano, o baile da Corte aconteceu mais cedo, já em

fíns de novembro - segundo se disse, por desejo expresso da

família do Grão-Duque. O Sr. von Bühl zu Bühl queixou-se

amargamente dessa precipítação, que o forçava, e a seus funcio-

nários, a apressar os preparativos da mais importante festividade

da Corte, isto é, as rnelhorías tão urgentes nas salas de festa do

Castelo Velho. Mas o desejo do membro em questão da Casa

Real fora apoiado pelo Sr. von Knobelsdorff, e o Marechal-da-

Corte teve de ceder. Assim, os ânimos mal tiveram tempo de se

preparar suficientemente para o que de fato aconteceria naquela

noíte, e que tornava sem ímportância a época inusitada em que

se daria a festa. Quando o Mensageiro anunciou a entrega de

cartões e o convíte, em letras garrafais, notícíando, em tipos

um pouco menores, à filha de Spoelmann o quanto era bem-

vinda à Corte, a importante noite estava às portas, e antes que

as línguas se pudessem desatrelar, livres, tudo era realidade.

Nunca as 500 pessoas agraciadas, cujos nomes esxavam na

Iista do baile da Corte, tinham sido mais invejadas, nunca os

cidadãos tinham engolido mais avidarnente pela manhã os relatos

do Mensageiro, aquelas cintilantes colunas escritas todos os anos

por um nobre degenerado pela bebida: eram tão abundantes que

quase se tinha uma vísão daquele reíno de fadas, embara a festa

no Castelo Velho transcorresse sem exageros, até com sobrieda-

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de. Mas as notícias só chegavam atê a ceia, incluindo o cardápio

francês. Tudo o que veio mais tarde, todas as delicadezas e im-

ponderabilidades do grande acontecimento, restringiu-se unica-

mente ao que se podia dizer oralmente.

308

As damas tinham chegado com muita pontualidade ao Cas-

telo Velho, onde o grande automóvel verde-oliva freara diante

do Portão Albrecht, mas não tão pontualmente que o Sr. von

Bühl zu Bühl já não estivesse apavorado. A partir das 7hl5min,

em uniforme de gala, coberto de condecorações até o ventre,

com topete castanho lustroso e óculos dourados no nariz, ele

parava sobre um pé e outro, no meio da Sala dos Cavaleiros, com

armaduras ac. redor, onde a família do Grão-Duque e os minis-

tros se reuniam; e várias vezes enviara um camareiro ao salão

de baile para saber se a Srta. Spoelmann ainda não aparecera.

Avaliava as mais incríveis possibilidades. Se essa Rainha de Sabá

chegasse tarde - e o que se podia esperar de quem passara

daquele jeito pela Guarda? -, a entrada do cortejo dos Grão-

Duques se atrasaria, e a Corte teria de esperar por ela, pois era

absolutamente necessário que a moça fosse apresentada em pri-

meiro lugar, e era impossível entrar no salão de baile depois de

o Grão-Duque já ter entrado. . . Mas, graças a Deus! Um mero

minuto antes das 7h30min, ela chegou com sua Condessa

(grande agitação quando os camareiros recepeionistas a colocaram

entre os diplomatas - portanto, antes da nobreza, das damas do

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palácio, dos ministros, dos generais, do Presidente da Câmara e

de todo o mundo!). O Ajudante von Platow foi buscar o Grão-

Duque em seus aposentos, e Albrecht, vestido de hussardo, sau-

dara os membros de sua família com olhos baixos, no Salão dos

Cavaleiros, oferecera o braço à tia Katharina e, depois de o Sr.

von Bühl bater três vezes seu bastão no assoalho junto da porta,

a Corte finalmente entrara no salão de baile.

Mais tarde, testemunhas oculares afirmaram que a pouca

atenção dedicada pelos presentes aos príncipes, por ocasião do

desfile no salão, atingia os limites do insulto. Aonde quer que

Albrecht chegasse com sua tia, em passo digno, todos se curva-

vam e se moviam rapidamente, sem a devida unção; mas, de

resto, todos os rostos se dirigiram para um ponto do salão, todos

os olhos grudados nele com ardente curiosidade . . . Aquela que

estava ali parada tinha inimigos na sala, pelo menos entre as

mulheres, as Trümmérhauff, as Prenzlau, as Wehrzahn e Platow,

309

que agitavam seus leques; olbares femininos penetrantes e gela-

dos examinavam-na sem parar. Mas agora a posição da jovem

já estava demasiado consolidada para que se ousasse criticar, ou

talvez sua personalidade tivesse vencido aquela secreta resistên-

cia - fora voz geral que Imma Spoelmann era bela como a

'' filha do Rei da Montanha. Na manhã seguinte, toda a Residên-

' cia sabia de cor como fora sua roupa, desde o escrivão do Mi-

nistério até a guarda da esquina. Fora um traje de crepe da

Chína verde-pálido, com bordados em prata, e peitilho de antiga

i renda de prata, de valor fabuloso. Um ornamento de diamantes

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na cabeça, em forma de coroa, faíscara em muítas cores em seus

cabelos de um negro azulado, que tendiam a lhe caír sobre a

? testa em mechas lisas; uma longa corrente das mesmas pedras

I

; preciosas envolvía duas, trés vezes seu pescoço moreno. Pe-

¡ quena e infantil, mas de uma infanti.lidade singularmente grave

; e inteligente, com seu rostinho pálido e os olhos excessivamente

,

grandes, estranhamente eloqüentes, ela se postara em seu lugar

de honra, tendo ao lado a Condessa Lõwenjoul, vestida de mar-

j rom, como sempre, mas dessa vez em cetim. Com uma elegância

,

de pajern, um tanto inábil, Imma Spoelmann fizera a mesura da

Corte quando se aproximara o cortejo, mas rão a executara intei-�

ramente; quando o Príncipe Klaus Heinrich passara por ela, logo

atrás do Grão-Duque, com a fita amarelo-limão e a corrente da

Condecoração da Constância sobre o casaco do uniforme, a estre-

la de prata do Grifo dos Grimmburg sobre o peito e, pelo braço,

aquela prima anêmica que jamais conseguia dizer senão "sitr"�

,

Imma Spoelmann sorrira, lábios cerrados, e lhe fizera um sinal

com a cabeça, como a um camarada - um estremecimento per-

correra os presentes . . .

Então, após os cumprimentos dos diplomatas pelos Prín-

cípes, tínham começado as apresentações - íniciando-se com

Imma, embora entre as damas recém-convídadas houvesse duas

Condessas Hundskeel e uma Baronesa von Schulenburg-Tressen.

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Sorríndo com seus dentes postíços e se agitando muito, o Sr.

von Bühl apresentara a seu amo a filha de Spoelmann. E,

enquanto sugava de leve o lábío superior com o redondo lábio

310

inferior, Albrecht baixara os olhos para a desajeitada mesura

de pajem da moça, que se erguera outra vez para contemplar,

com olhos eloqüentes e perquiridores, o enfermiço coronel dos

hussardos, tão reservado e altivo. O Grão-Duque lhe dirigira

várias perguntas, quando, sem exceção, costumava fazer uma

só. Perguntara pelo estado de saúde do pai dela, pelos efeitos

da Fonte Ditlinde, e se estava gostando de viver conosco; e ela,

lábios em bico, meneando a cabecinha, respondera a tudo com

sua voz rouca. Após uma pausa, que talvez fosse intervalo para

conflitos íntimos, Albrecht expressara seu prazer por vê-la na

Corte; e depois também a Condessa Lówenjoul pudera fazer

sua mesura, com um olhar esquivo e oblíquo.

Durante muito tempo, essa apresentação de Imma Spoel-

mann a Albrecht foi motivo predileto de todas as conversas e,

embora tivesse transcorrido sem nada de especial, não se deve

, diminuir seu encanto e significação. Ela não foi, contudo, o

ponto alto da noite. Aos olhos de muitos, o ponto alto foi a

Quadrilha de Honra, para outros, a ceia - na verdade, porém,

foi um diálogo secreto entre as duas personagens principais da

peça, um diálogo breve, que ninguém ouviu, cujo conteúdo e

i resultado prático o público só poderia adivinhar - fruto de

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ternas batalhas a pé ou a cavalo . . .

Quanto à Quadrilha de Honra, no dia seguinte houve quem

afirmasse que a Srta. Spoelmann participara dela, ao lado do

Príncipe Klaus Heinrich. Só a primeira parte desse depoimento

era correta. A moça particípara da festiva ciranda, mas condu-

zida pelo encarregado de negócios da Inglaterra, na f rente do

Príncipe Klaus Heinrich. Mesmo assim, era estranho, e mais

estranho ainda que a maioria dos convidados da festa nem ao

menos julgasse o fato inaudito, vendo-o como quase natural.

Sim, a posição de Imma Spoelmann estava consolidada, a po-

pularidade de sua pessoa - o povo soube disso no dia seguinte

- mostrava-se óbvia no salão de baile, e de resto o Sr. von

Knobelsdorff tivera o cuidado de que isso se manifestasse com

toda a evidência que julgava conveniente. Não com reserva nem

311

com distínção: não, havíam tratado Imma Spoelmann cerimonio-

samente, com ênfase planejada e intencional. Os dois Mestres-

de-Cerímônia em serviço, Camareiros, tinham-lhe apresentado

pares escolhidos, e quando ela deixava seu lugar perto do pódíc

baixo, forrado de vermelho, onde a família dos Grãos-Duques

se sentava em poltronas de damasco, saíndo com um cavalheiro

para dançar, a díreção do baile, como acontecia quando dan-

çavam princesas, cuidava para que ela obtivesse um lugax de-

baixo do lustre central, protegendo-a de encontrões com outros

- o que aliás era fácil, pois, de qualquer modo, quando ela

dançava, fechava-se ao seu redor o círculo protetor dos curíosos.

Contava-se que, quando o Príncípe Klaus Heínrích convi-

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dara a Srta. Spoelmann para dançar pela prímeíra vez, ouvira-

se na sala um suspíro íntenso, um verdadeíro "sibílar", e os

baílarínos que conduzíarn a festa tínham tído dífículdade em

manter o baile em andamento e ímpedír que todos parassem,

ávidos, para contemplar o par. As damas, especialmente, tinham

acompanhado com exaltação e delícia o solitário par, um encan-

tamento que, se Imma Spoelmann tivesse posição um pouco

mais débil, sem dúvida teria assumido formas de raiva e male-

volência. Mas cada um dos 500 convidados sentira demasiada-

mente a pressão e influência da opinião pública, aquela forte

pressão'de baixo para cima, e só podia contemplar o espetáculo

com os olhos do povo. O Príncipe não parecia ter sido acon-

selhado a se controlar. Seu nome, simplesmente com as iníciais

K. H., estivera duas vezes, para duas danças inteiras, no cartão

da Srta. Spoelmann; além disso, ele a convidara mais vezes,

espontaneamente. E tinham dançado, Klaus Heinrich e a filha

de Spoelmann. O braço moreno da moça pousara sobre a fíta

de seda amarelo-límão que atravessava o ombro dele, e o braço

direito dele envolvera sua fígura leve e síngularmente infantil,

enquanto o esquerdo, como de hábito, se mantinha com a mão

no quadril, e ele conduzia sua dama com uma sô mão. Uma

só mão . . .

312

Assim chegara a hora da ceia, e outro artigo das ondições�

cerimoniais que o Sr. von Knobelsdorff conseguira para a visita

de Imma Spoelmann ao baile foi cumprido. Ligava-se à orde-

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nação dos lugares à mesa. Enquanto a grande multidão de

convidados comia na galeria dos quadros e na Sala dos 12

Meses, em longas mesas, para a família ducal, os diplomatas e

os ocupantes de cargos mais elevados na Corte havia uma mesa

na Sala de Prata. Num cortejo solene como na entrada no salão

de baile, Albrecht e os seus se dirigiram para lá, às llh em

,

ponto. Passando pelos lacaios que ocupavam as portas, impe-

dindo a entrada de indesejados, Imma Spoelmann entrara na

Sala de Prata, pelo braço do encarregado de negócios inglês

,

para participar da mesa dos Grão-Duques.

' Fora inaudito - e ao mesmo tempo, depois de tudo, tão i

lógico, que não se podia sentir espanto ou fazer objeção. Na-

quele dia, era preciso estar à altura de grandes acontecimen- `

tos . . . Mas depois da mesa, quando o Grão-Duque se recolhera�

e a Princesa Griseldi abrira o cotillon com o Camareiro, a ex-

pectativa tornara-se febril, pois todos tinham indagado se o

Príncipe teria permissão de levar um raminho de flores à Spoel-

mann. Obviamente, ele receb.·ra instrução de não levar logo

o primeiro raminho a ela. Primeiro, entregara um à sua tia

I

Katharina e outro a uma prima ruiva. Mas depois se postara

diante de Zmma Spoelrnann com um ramo de lilases dos jardins

da Corte. Ao levar o belo ramo ao narizinho, ela hesitara, com !

ar assustado, por motivos desconhecidos, e só depois que ele

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a animou com um sorriso é que se decidiu a saborear o perfume.

Depois, conversando tranqüilamente, os dois tinham dançado

juntos por longo Xempo.

Mas durante essa dança acontecera aquele diálogo não- _

ouvido por outros, aquela conversa de conteúdo burguês e

resultado objetivo... . e foi o seguinte:

- Desta vez, está contente com 'as flores quelhe trouxe,

Imma?

313

- Sim, Príncipe, seus lilases são lindos e perfumados.

Gostei muito.

- Verdade, Imma? Mas renho pena daquela pobre roseira

do pátio porque suas rosas, com ar cheirando a mofo,lhe

desagradam.

- Não diria que me desagradam, Príncipe.

- Mas a deixam iníbida e fria?

- Sím, talvez.

- Mas eu lhe contei sobre a crença popular que um dia

a roseira será salva, um dia de felicidade geral no qual ela

produzirá rosas que, além de grande beleza, também terão um

doce perfume natural.

- Sim, Príncipe, teremos de esperar.

- Não, Imma, teremós de agir e ajudar! Temos de nos

lecidir e renunciar a todas as dúvidas, pequena Imma! Diga-�

me . . . diga-me hoje: agora confía em mim?

- Sim, Príncipe, ultimamente tenho confiança no senhor.

- Está vendo! Graças a Deus! . . . Eu não disse que final-

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mente iria consegúir? Então acredita agora que penso com muita

seriedade e profundidade em você, em nós?

- Sim, Príncipe, agora acho que posso acreditar.

- Por fim, por fim, minha pequena indecisa. Ah, eu lhe

agradeço de todo o coração! Mas, então, sente coragem de

anunciar a todo o mundo que me pertence?

- Anuncie o senhor, Alteza, se quíser.

- Sim, Imma, vou fazer isso, alto e firme. Mas sob uma

condíção: a de não pensarmos apenas na nossa felicidade, de

maneira egoísta e mesquinha, mas de encararmos tudo do ponto

de vista geral, e mais elèvado. O bem-estar püblico e nossa

felicidade pessoal condicionam-se mutuamente.

- Belas palavras, Príncipe. Pois, sem nossos estudos a

respeito do bem-estar público, eu dificilmente teria me resolvido

a confiar no senhor.

- E sem vocé, Imma, que aqueceu meu coração dessa

maneira, eu dificilmente faria verdadeiros estudos.

314

- Então, vamos ver como anunciar isso, Príncipe, cada

um de seu lado, o senhor com sua família e eu . . . com meu pai.

- Minha irmãzinha - disse ele então, com expressão

serena, apertando-a um pouco mais ao dançar. - Minha noi-

vinha . . .

Fora uma promessa de noivado bem singular.

Mas não estava tudo resolvido. Na verdade, dentro do

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quadro geral, pouca coisa acontecera, apenas um fator fora

superado, e tudo ainda corria perigo de dar em nada. O cronista

sente a tentação de exclamar: que felicidade estar à frente das

negociações um homem que encarava seu tempo com destemor,

até com certa ironia, e não achava uma coisa impossível apenas

por ser a primeira vez em que ocorria!

Aquela explanação que, mais ou menos oito dias antes do

notável baile, Sua Excelêricia von Knobelsdorff realizou diante

de seu senhor, o Grão-Duque Albrecht II, no Castelo Velho,

faz parte da história. Dias antes, o Presidente do Conselho esti-

vera à festa de uma sessão do Ministério, sobre.a qual o Men-

sageiro comentara muita coisa, dizendo que se tinham tratado

de questões financeiras e assuntos internos da família dos Grão-

Duques, demonstrando-se também - o que o jornal acrescen-

tava em tipos grandes - total harmonia de pensamentos entre

os Ministros. Assim, o Sr. von .Knobelsdorff estava em posição

bastante firme diante de seu jovem monarca, na audiência; pois

tinha a seu lado não apenas a massa do povo, mas a vontade

unânime do Governo.

A conversa, no ventoso aposento de Albrecht, exigiu quase

tanto tempo quanto aquela que tivera lugar no pequeno salão

amarelo do Eremitage. Foi preciso até fazer um intervalo no

qual serviram limonada ao Grão-Duque e, ao Sr. von Knobels-

dorff, um cálice de vinho do Porto e biscoitos. Mas a longa

duração da entrevista se deveu à grandiosidade do assunto co-

mentado, e não a alguma resistência do monarca; pois Albrecht

não fez objeção. Em seu casaco fechado, as magras mãos sensí-

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veis cruzadas no colo, a cabeça altiva e fina, com barbicha em

315

ponta e têmporas estreitas, erguida, as pálpebras baixadas, ele

sugava de leve o lábio superior com o redondo lábio inferior

,

e seguia as explanações do Sr. von Knobelsdorff com moderada

inclinação de cabeça, expressando ao mesmo tempo concordância

e recusa, uma concordância imparcial e objetiva, mantendo, po-

rém, sua dignidade pessoal inatingível.

O Sr. von Knobelsdorff entrou diretamente no assunto,

falando da freqüência do Príncípe Klaus Heinrich no Castelo

dos Delfins. Albrecht estava informado. Mesmo em sua solidão,

entrara um eco abafado dos acontecimentos que mantinham

atentos a cidade e o campo; ele também conhecia seu irmão

Klaus Heinrich, que na infância gostava de "farejar", e conver-

sar com lacaios, e que, quando batera a cabeça na grande mesa

de jogos, chorava alto com pena de sua testa . . . e no undo�

não precisava de muitas outras informações. Ceceando ligeira-

mente, fez com que o Sr. von Knobelsdorff o entendesse, e

acrescentou que, já que este até ali nada objetara, e até lhe

apresentara a filha do bilionário, podia-se deduzir que era

favorável aos atos do Príncipe. O Sr. von Knobelsdorff respon-

deu que o Governo feriria gravemente os desejos do povo caso

impedisse a realização das intenções do Príncipe.

- Mas então meu irmão tem intenções a esse respeito?

- Há muito tempo - respondeu o Ministro. - No co-

meço, ele agiu sem planejar, atendendo apenas ao seu coração.

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Mas agora que uniu suas intenções às do povo, na realidade

concreta, seus desejos assumiram forma prática.

- Isso significa que o povo aprova os passos do Príncipe?

- Aprova e aclama, Alteza Real, e neles coloca suas arden-

tes esperanças!

O Sr. von Knobelsdorff desenrolou mais uma vez o sombrio

quadro do país, com miséria e grandes constrangimentos para

todos. Onde estariam ajuda e remédio? Lá, únicamente lá, no

Parque Municipal, naquele segundo centro da Residêncía, na

moradia do enfermo rei das finanças. Se o pudessem levar a

assumir nossa economia, ela teria a saúde assegurada. Seria�

316

possível levá-lo a isso? O destino agora trouxera uma harmonia

de sentimentos entre a única filha daquele homem poderoso

e o Príncipe Klaus Heinrich! Poderiam opor-se a uma circuns-

tância tão positiva e favorável? Por causa de uma tradição

antíga e desgastada, deviam proibir uma ligação que traria tantas

bênçãos ao país, ao povo? Pois era de se prever que isso suce-

deria, e nisso residia a justificativa e a validade extrema do faro.

Se tudo se concretizasse, Samuel Spoelmann estaria disposto a

financiar o Estado; portanto, aquela união - pois a palavra

já fora pronunciada - não era apenas legítima, mas necessária,

era a salvação, o bem do país a exigia. E muito além das fron-

teiras, por toda parte onde houvesse interesse na recomposição

de nossas finanças e se quisesse evitar o pânico na economia,

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todos a pediam aos céus.

Nesse momento, o Grão-Duque interrompeu com uma per-

gunta em voz baixa, sem erguer os olhos, sorriso irônico:

- E a sucessão do trono?

- A lei - respondeu von Knobelsdorff, imperturbável

= oferece a Vossa Alteza a condição de relevar essas preocupa-

ções quanto à dinastia. Mesmo entre nós, o monarca pode elevar

a situação social de um súdito e também conferir-lhe títulos

de nobreza. E quando, em nossa história, existiu razão mais

forte para se usar dessa prerrogativa? Essa união traz em si

mesma a sua legitimidade. Foi amparada pelo povo, e seu reco-

nhecimento oficial, também no direito monárquico, seria para

o povo, apenas uma confirmação externa de sua vontade interior.

E o Sr. von Inobelsdorff falou da popularidade de Imma,�

das significativas manifestações quando convalescia de uma leve

doença, da dignidade de princesa que a fantasía popular conferia

a essa singular criatura; e as ruguinhas de seus olhos agitaram-

se quando lembrou a Albrecht a velha profecia, ainda viva no

povo, sobre o príncípe que daria mais a seu país com uma só

mão do que outros com duas. E afirmou, eloqüente, que a

união entre Klaus Heinrich e a filha de Spoelmann parecia, ao

317

povfl, uma realização daquele oráculo - portanto, algo justo'e

desejado por Deus.

O Sr. von Knobelsdorff falou muitas coisas sábias, francas

é boas. Mencionou a quádrupla místura de sangue nas veias de

Imma Spoelmann - além de sangue alemão, português e ínglês,

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sabia-se que nela havia um pouco de verdadeiro sangue índio

- e sublinhou que, daquela mistura de raças, sempre tão revi-

vificadora ern estirpes muito antigas, esperava o melhor para a

dinastia. O desinibido ancião teve seus melhores momentos ao

falar das íncríveis e abençoadas mudanças que adviriam à Corte

com esse arrojado casamento do herdeiro do Trono. E foi então

que Albrecht sugou com mais altivez o lábio superior. O dinhei-

ro desvalorizava-se cada vez mais, as despesas cresciam segundo

a lei econômica, válida para Cortes e particulares, e era impos-

sível aumentar a arrecadação. Mas a fortuna dos governantes

não podia ficar atrás da de muitos súditos, e era inadmissível

para a monarquia que o saboeiro Unschlitt há muito tivesse

aquecimento central em sua casa e o Castelo Velho, não. Era

preciso conseguir ajuda, e feliz da família de reis a quem se

oferecesse ajuda tão extraordinária. Via-se por nossos jomais

que as pessoas já perdiam o pudor ao falarem das finanças da

Corte. Não se via mais aquela abnegação com que antigamente

famílias nobres faziam os maiores sacrifícios para que o público

não viesse a saber do estado de sua fortuna. Processos, inter-

dições e alienações eram freqüentes agora. A esse rebaixamento

mesquinho e burguês, não se deveria preferir uma ligação com

tão grande fortuna, união essa que livraria os monarcas defini-

tivamente das questiúnculas financeiras, colocando-os em situa-

ção de poderem apresentar-se ao povo com todos os sinais exter-

nos que este esperava?

Foi isso que von Knobelsdorff indagou, e ele mesmo res-

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pondeu afirmativamente. Em suma, sua fala foi tão eloqüente,

irresistível e sábia que, ao sair do Castelo Velho levava consigo

um consentimento e uma autorização ceceados com altivez, sufi-

318

cientes para lhe permitirem decisões inusitadas, desde que a Srta.

Spoelmann fizesse a sua parte.

E assim as coisas seguiram seu memorável curso, até o final

feliz. Antes ainda do fim de dezembro, podia-se citar o nome

das pessoas que não tinham apenas ouvido contar, mas visto,

numa manhã escura e nevosa, o Marechal-da-Corte von Bühl zu

liühl, de casacão de peles, cartola sobre o topete castanho e

óculos dourados, desembarcar de sua carruagem nos Delfíns e

sumir no Castelo com seu andar buliçoso. No começo de janeiro,

havia quem jurasse que aquele cavalheiro que, também de manhã,

também de peles e cartola, saíra dos Delfins, passando pelo

sorridente mouro trajado em veludo, e se deixara cair na carrua-

gem com olhos febris era, sem dúvida, nosso Ministro das

Finanças, o Dr. Krippenreuther. Ao mesmo tempo, apareciam

no Mensageiro, jornal semi-oficial, sinais dos boatos que previam

um noivado na família do Grão-Duque . . . manifestações hesi-

tantes, mas cada vez mais claras, num cauteloso crescendo, que

por fim ligavam abertamente. os nomes de Klaus Heinrich e

Imma Spoelmann . . . Já não era novidade, aparecia preto no

branco, e tinha efeito de bebida forte.

Além disso, era fascinante observar que, diante das subse-

qüentes manifestações do povo, a imprensa liberal e esclarecida

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colocava-se ao seu lado, isto é, valorizava a velha profecia, que

assumia excessiva conotação política, a tal ponto que nem era

mais preciso usar de inteligência e cultura e tentar explicá-la.

Adivinhação, quiromancia e bruxaria, esclarecia o Mensageiro,

ficavam no obscuro território da superstição quando se tratava

de um destino individual, eram coisa da penumbrosa Idade

Média. Era preciso rir das pessoas delirantes que - o que já

não se via nas grantes cidades - deixavam que vigaristaslhes

arrancassem moedas do bolso para conhecerem seu futuro através

das mãos, de cartas, da borra do café, ou ainda se curavam

pela homeopatia, pelas rezas, ou mesmo procuravam livrar o

gado doente dos demônios que o dominavam, como se o Após-

tolo não tivesse indagado: "Deus não cuida também dos bois?"

319

Mas; numa abrangênciá bem maior, em questões decisivas para

o destino de povos ou dinastias, pessoas de ciência ou cultura

não recusavam a idéia de que o tempo é apenas uma ilusão.

Como todos os fatos são predeterminados na eternidade, acon-

tecimentos ainda ocultos no seio do futuro bem podem iluminar

previamente o espírito humano e se revelar a ele. Para provar

isso, o zeloso jornal apresentou uma matéria, bondosamente

oferecida por um professor universitário dos nossos, falando

em casos históricos nos quais oráculos, horóscopos, sonambu-

lismo, clarividência, sonhos e visões, segunda personalidade e

intuição haviam desempenhado papel importante - um memo-

rando de valor, que muito repercutiu nos meios mais cultos.

Todos marchavam decididamente na maior harmonia:

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imprensa, governo, Corte e público. Certamente, o Mensageiro

teria cuidado com a língua, caso suas informações filosóficas

ainda fossem prematuras ou politicamente indesejadas; numa

palavra, se as negociações nos Delfins já não estivessem bem

avançadas em direção a um desfecho favorável. Hoje, sabe-se

com bastante certeza como se desenrolaram tais negociaçôes, e

nossos procuradores tiveram posição difícil, até penosa: tanto

aquele a quem, como pessoa de confiança da Corte, coubera

a delicada missão de preparar o pedido do Príncipe Klaus Hein-

rich, como o principal administrador de nossas finanças, que,

apesar da saúde abalada, não se esquivou de defender pessoal-

mente, diante de Samuel Spoelmann, a causa do nosso país.

É preciso lembrar, antes de mais nada, a personalidade rabu-

genta e irritadiça do Sr. Spoelmann; em segundo lugar, aquele

poderoso homenzinho nem de longe se interessava tanto quanto

nós num final feliz (em relação a nós) para essas negociações.

Exceto pelo amor que Spoelmann dedicava à única filha, que

lhe abrira o coração e contava seu belo anseio de, amando,

tornar-se também útil, nossos emissários não tinham um só

trunfo diante dele, e o Dr. Krippenreuther não podia amparar

seus desejos naquilo que o Sr. von Bühl tinha a dar. O Sr.

Spoelmann só falava do Príncipe Klaus Heinrich como "aquele

320

rapaz", e mostrou tão pouco prazer ante a idéia de ..casar sua

filha com uma Alteza Real que o Dr. Krippenreuther e o Sr.

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von Bühl, mais de uma vez, ficaram profundamente constran-

gidos.

- Se ao menos ele tivesse aprendido alguma coisa, se

tivesse uma ocupação decente - resmungava Spoelmann, abor-

recido. - Mas um moço que só sabe se expor para que lhe

gritem "viva" .

E mostrou-se realmente indignado da primeira vez em que

se falou de casamento morganático. Sua filha, explicou, once

and f or all, não servia para concubina nem para esse tipo de

casamento. Se alguém queria se casar com ela, que se casasse. . .

Nesse ponto, os interesses do povo e da dinastia concordavam

com os dele. Era preciso haver descendência com direitos legí-

timos de herança, e o Sr. von Bühl dispunha de todos os poderes

que o Sr. von Knobelsdorff extraíra do Grão-Duque. Quanto

à missão do Dr. Krippenreuther, seu final feliz não se deveu à

eloqüência dele, mas à ternura patérnal do Sr. Spoelmann -

a tolerância de um pai sofredor, de emoções contraditórias por

causa de sua vida de animal raro, em relação à filha única, e

herdeira. Ela mesma podia decidir em que tipo de papéis apli-

caria sua fortuna.

E assim' foram selados aqueles pactos que, no começo, fica-

ram envoltos em profundo silêncio, e só aos poucos, primeire

pelas evidências dos próprios fatos concretos, começaram a

transparecer, mas que reuniremos aqui resumidamente.

O noivado de Klaus Heinrich com Imma Spoelmann foí

aprovado e reconhecido por Samuel Spoelmann e pela Casa

Grmmburg. Simultaneamente ao anúncio do noivado no Diário�

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0 f icüal, se anunciara também a elevação da noiva à condição

de Condessa, sob um nome fantasioso, de som romanesco e

aristocrático, parecido com aquele que Klaus Heínrich usara em

sua; viagem de estudos pelos belos países do Sul; e no dia de

seu casamento, a esposa do Príncipe Herdeiro, sucessor do trono,

seria revestida da dignídade de Princesa. As duas nomeações

321

i

i

foram liberadas dos impostos, que seriam de 4.800 marcos. S �

passageiramente, e para que o mundo se habituasse, o casamento

seria morganático, pois no dia em que se visse que ela fora

abençoada com sucessão, Albrecht II, em consideração às cír-

cunstâncias incomparáveis do caso, declararia a esposa morga-

nática de seu irmão igual em estirpe, e lhe concederia o grau

de Princesa da Casa Grão-Ducal, com o título de Alteza Real.

O novo membro da casa governante desistiria de qualquer apa-

nágio. Quanto ao cerimonial, para a festa do casamento mor-

ganático have_ria apenas uma sessão da Corte, mas para festejar

a declaração de igualdade se previa uma homenagem perfeita,

a mais alta, a sessão magna. Samuel Spoelmann, de sua parte,

concedeu ao Estado um empréstimo de 350 milhões de marcos

- sob condições tão patemais que o empréstimo quase tinha

ares de presente.

Foi o Grão-Duque Albrecht quem participou ao Príncipe

tais decisões. Mais uma vez, Klaus Heinrich se postava naquela

grande sala de trzbalho do irmão, sob as pinturas rachadas do

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teto, como outrora, quando Albrechtlhe transmitira o dever de

representação, e em posição de sentido escutou as grandes notí-

cias. Para essa audiência, usava o casaco de uniforme de Major

dos fuzileiros da guarda, enquanto o Grão-Duque agora usava,

além do sobretudo preto, punhos de tricô que sua tía Katharina

fizera de lã vermelho-escura, para se proteger do vento encanado

que entrava pelas altas janelas do Castelo Velho. Quando Al-

brecht terminou, Klaus Heinrich deu um passo para o lado, para

juntar mais uma vez os calcanhares, como quem faz continência.

e disse:

- Caro Albrecht, peço que me permita colocar a seus pés

meus mais humildes agradecimentos, em meu nome e em nome

de todo o país. Pois, afinal, é você quem possibilita toda essa

felicidade, e o redobrado amor do povo recompensará essa sua

decisão generosa.

Ele apertou a magra e sensível mão do irmão, que este

lhe estendia junto do peito, sem soltar o braço do corpo. O

322

Grão-Duque erguera seu arredondado lábio inferior, curto, e

suas pálpebras estavam baixadas. E respondeu baixinho, ce-

ceando:

- Não me inclino a ter ilusões quanto ao amor do povo;

como você sabe, não consigo encarar sem sofrímento esse duvi-

doso casamento. E não importa muito se eu mereço esse amor.

ila hora da partida, irei à estação para acenar - isso é men(r)s�

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meritório do que tolo, mas é meu ofício. Seu caso é realmente

outro. Você é um felizardo. Tudo acontece para a sua felici-

dade . . . desejo que seja feliz - disse, erguendo as pálpebras

de seus olhos tão solitários. E nesse momento viu-se que ele

amava Klaus Heinrich. - Desejo que você seja feliz, Klaus

Heinrich . . . mas não demais, e que não repouse confortavel-

mente demais sobre o amor de seu povo. De resto, eu já lhe

disse que tudo acontece para a sua felicidade. A moça que

escolheu é bastante estranha, muito pouco caseira, enfim, bem

diferente do nosso povo. Tem vários tipos de sangue . . . ouvi

dizer que em suas veias corre até sangue índio. Talvez seja

bom. Com uma companheira dessas, talvez você corra pouco

perigo de ficar acomodado.

- Nem a felicidade - disse Klaus Heinrich - nem o

amor do povo jamais conseguirão fazer com que eu deixe de

ser seu irmão.

Ele partiu. Tinha ainda um momento dífícil, um encontro

a sós com o Sr. Spoelmann, seu pedido pessoal para que lhe

fosse concedida a mão de Imma. Ele teria de engolir o que os

emissários haviam engolido, pois Samuel Spoelmann não mos-

trara a menor alegria e dissera, resmungando, várias verdades

estimulantes: Mas também isso foi superado, e chegou a manhã

em que o noivado foi anunciado no Diário O f icial. Então, a

última tensão se desfez num júbilo infinito; homens gordos

acenavam uns para os outros com lenços e trocavam abraços no

mercado; as bandeiras subiam pelos mastros . . .

Mas no mesmo dia çhegou ao Castelo Eremitage a notícia

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de que Raoul berbein se suicidara.�

323

Foi uma história indigna, até vulgar, que não valeria a pena

repetir, se o fim não tivesse sido tão pavoroso. Não abordarei

aqui a questão da culpa. Junto à sepultura do Doutor, forma-

ram-se dois partidos. Abalados por seu ato desesperado, alguns

afirmavam que ele fora induzído á morte; os outros declaravam,

dando de ombros, que seu comportamento fora insuportável e

maluco, e seu castigo, necessário. Era evidente. De qualquer

modo, nada na verdade justificava sua trágica partida; sim, para

um homem com os dons de Raoul Überbein, era coisa totalmente�

indigna morrer assím . . . e segue a hístóría toda.

Na Páscoa do ano anterior, o catedrático do penúltimo ano

de nosso Liceu Humanístico, cardiopata, fora aposentado pre-

maturamente devido à sua enfermidade, e apesar da relativa

juventude do Dr. Überbein, apenas por reconhecimento ao seu

zelo profissional e ao seu notável e inegável sucesso na magis-

tério, ele recebera o cargo de catedrático substituto. Uma ação

acertada, viu-se depois; pois nunca as realizações da classe se

tinham assemelhado às daquele ano. O professor litencíado,

aliás um cóléga estimado, devido à sua doença, que por autro

lado se ligava a uma simpática mas duvidosa inclinação para a

cerveja, fora um cavalheiro esquisito, desleixado e apátíco, muito

tolerante e que apresentara anualmente aos exames finais um

material humano muíto mal preparado. Um novo espíríto entrara

na classe com o catedrâtico substituto - ninguém e5tranhava

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ísso. Conhecíam seu íncrível zelo profissional, seu esforço incan-

sável e único, e previam que ele aproveitaria essa ocasião para

aparecer, sem dúvída com ambícíosas esperanças. Na classe, aca-

baram subitamente a preguiça e o tédio. As exígências de 'Über-

bein eram grandes, sua arte de entusiasmar até os mai.s desinte-

ressados era irresistível. Os jovens o veneravam. Sua atitude

superior mas paternal, de uma fanfarronice cordial, mantinha-os

ínteressados, sacudía-os, tornava-lhes questão de honra seguir

é'ssé professor para o que desse e viesse. Ele os fascinava, man-

tinhá-os presos a seu lado, levando-os todos os domingos a

passeios nos quais podiam fumar enquanto ele estimulava sua

324

imaginação com bazófias juvenis sobre a grandeza e .severidade

da vida. Na segunda-feira, reencontravam o companheiro do dia

anterior, para um trabalho alegre e fervoroso.

Assim se passaram três quartos do ano letivo. Então, antes

¡ do Natal, soubera-se que o professor licenciado, muito melhor

de saúde, reassumiria suas atividades após os feriados, como

titular da classe. Então, puderam perceber o que havia por

trás do esverdeado rosto do Dr. berbein e daquela sua postura�

superior e jovial. Ele resistira, protestara, reclamara alto e bom

som, em palavras não muito educadas, dizendo que em três

quartos do ano se ligara àquela classe, dividira com ela trabalho

e repouso, praticamente a conduzira ao seu objetivo. E agora,

no último quarto do ano letivo, seria despido de sua função,

devolvida ao funcionário que estivera todo o ano descansando.

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A atitude dele era compreensível, concebível, totalmente natural.

Sem dúvida, esperara apresentar ao diretor e aos professores

I

que aplicavam os exames finais uma classe exemplar, cujo pro-

, gresso e boa formação mostrassem claramente a capacidade dele,

apressando sua carreira. Devia ser dolorosa a' idéia de que outro

professor colheria os frutos de sua dedicaçãó: Mas se seu mau

humor era desculpável, sua loucura não foi: e infelizmente acon-

teceu que ele, surdu às palavras de seu diretor, na verdade ficou

;.

,: inteiramente louco. Perdeu a cabeça, perdeu o equilrio, moveu�

céus e terra para que aquele preguiçoso, aquele cervejeiro, aquele

, sapateiro idiota, como designava sem qualquer consideração 0

' professor licenciado, não lhe roubasse a classe; e quando não

' conseguiu apoio no corpo docente, coisa de que aquele solitário

não se deveria espantar, o infeliz descontrolara-se a ponto de

amotinar os alunos a ele confiados. A quem queriam como pro-

fessor no último bimestre?, perguntou da cátedra - ele ou o

outro? E, fanatizados por sua trêmula excitação, tinham gritado

que o queriam. Pois, então, que assumissem sua causa, fícassem

do seu lado e avançassem unidos, díssera ele - e Deus sabia

o que pensava, em seu estado de superexcitação. E quando,

depois das férias, o catedrático que voltava entrou na sala de

325

aula, os alunos berraram o nome do Dr. überbein na cara dele

,

minutos a fio - estava feito o escândalo.

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Mas não o aliméntaram inutilmente. Os revoltados prati-

camente não foram punidos, pois o Dr. Überbein assumira a

responsabilidade diante da investigação que se realizóu imedia-

tamente. Mas também, no que dizia respeito a ele próprio, o

Doutor, as autoridades estavam inclinadas a fechar um olho

Seu zelo, suas capacidades, eram apreciados, certos trabalhos

intelectuais que produzira, frutos de sua porfia noturna, tinham

tornado seu nome conhecido; postos mais altos o valorizavam

- postos, diga-se de passagem, com os quais ele nunca tivera

contato pessoal e que, portanto, não teria podido adular com

seu jeito paternal; igualmente, sua qualidade de educador do

Príncipe Klaus Heinrich pesou bastante. Em suma, não foi

despedido, como se esperara. O Conselo Escolar do Grão-Du-�

cado, ao qual se apresentara o caso, passou-lhe uma séria des-

compostura, e o Dr. Überbein, que logo depois do escandaloso

incidente deixara as aulas, foi temporariamente licenciado. Mas

pessoas bem-informadas asseguraram, mais tarde, que apenas

pretendiam transferir o professor para outro Liceu, que as auto-

ridades .superiores só queriam deixar passar algum tempo para

que o incidente fosse esquecido, e continuava aberto ao profes-

sor um futuro brilhante. Tudo teria podido acabar bem.

Mas, se as autoridades foram brandas, tanto Inais os colegas

hostilizaram o Dr. Überbein. A Associação Docente formou um

verdadeiro tribunal de honra para desagravar seu e:timado mem-�

bro, aquele catedrático cervejeiro, rejeitado pelos alunos. O do-

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cumento que apresentaram a Überbein, recolhido a seu quarto

alugado, dizia que, uma vez que ele se recusava a devolver ao

colega a quem su6stítuíra a cátedra do oítavo ano, >or ter agido�

contra ele e instigado os alunos à desobedíêncía, tornara-se

culpado de ação contra um colega, o que fazia dele um deson-

rado, não só no campo profíssional, mas, de modo geral, na

vida civil. Essa era a sentença. O que se esperava era que o

Dr. Überbein, membro da Associação unicamente de nome, se

326

le,�

l

excluísse dela. Muitos pensavam que assim tudo estaria ter-

minado.

Mas, fosse porque aquele solitário não sabia do apreço

quelhe devotavam as autoridades maiores; fosse por considerar

sua situação mais desesperada do que era; fosse por não suportar

a inatividade e a perda prematura de sua amada classe; ou

porque a expressão "desonra"lhe tivesse envenenado o sangue,

ou porque sua personalidade não estivesse à altura daquele

abalo: cinco semanas após o Ano-Novo, seu senhorio o encon-

trou caído no ralo tapete do quarto, verde como sempre, com

uma bala no coração.

Assim morreu Raoul Überbein; foi nisso que tropeçou;

foi esse o motivo do seu fim. Agora estava claro! Era essa a

expressão dominante em todos os comentários sobre sua mise-

rável derrocada. Aquee homem inquieto e inquietante, que�

jamais fora um verdadeiro camarada dos outros, que desdenhara

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altivamente qualquer intimidade, dirigindo sua vida fria e exclu-

sivamente para as realizações profissionais, dizendo que por ísso

mesmo tinha o direito de tratar todo o mundo paternalmente

- lá estava ele, deitado; o primeiro desgosto, o primeiro fra-

casso no campo profissional o derrubara lamentavelmente. Pou-

cos lastimaram isso, ninguém chorou por ele - exceto o rnelhor

amigo de Ílberbein, o médico-chefe do Hospital Dorothea, e

talvez uma mulher pálida com a qual de vez em quando jogara

cassino. Mas Klaus Heinrich :ontinuou dedicando a seu infeliz�

mestre uma lembrança honrosa, sim, afetuosa.

327

C

A ROSEIRA

E Spoelmann financiava o Estado. O acontecimento era gran-

dioso e de contornos claros; uma criança o teria compreendido

- na verdade, pais felizes explicavam tudo a seus filhos enquan-

to os embalavam nos joelhos.

Samuel Spoelmann acenou, os Srs. Phlebs e Slippers puse-

ram-se em ação e suas poderosas ordens vibraram sob as ondas

do mar até o continente do Hemisfério Ocidental. Ele tirou do

truste do açúcar um terço de sua participação, um quarto do

truste de petróleo, metade do truste do aço; mandou depositar

todo esse capital em vários bancos locais; e de um só golpe

assumiu do Sr. Krippenreuther novas obrigações do tesouro

a três e meio por cento, em troca de 3 milhões ao par. Spoel-

mann fez tudo isso.

Quem conhece a influência do estado de alma nos órgãos

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das pessoas vai acreditar que o Dr. Krippenreuther floresceu,

e em breve nem se podia mais reconhecer. Andava ereto e

desinibido, seu caminhar era leve, a cor amarela sumiu-lhe do

rosto, agora branco e corado, os olhos faiscavam, e em poucos

meses seu estômago se curou tão bem que, segundo contou a

amigos, pôde voltar a comer, sem problemas, o repolho roxo e

salada de pepinos. Foi uma conseqüência feliz, mas unicamente

pessoal, da interferência de Spoelmann em nossas finanças, que

pouco pesava em comparação com os efeitos que essa interfe-

rência teve sobre nossa vida pública e econômica.

329

Parte do empréstimo foi dirigido ao pagamento de dívidas,

e torturantes débitos públicos foram saldados. Mas isso pratica-

mente nem teria sido necessário para obtermos ar e crédito de

todos os lados; pois, apesar de toda a discrição com que se

tratou oficialmente do fato, assim que se tornou conhecido que

Samuel Spoelmann era banqueiro do Estado, ainda que não

oficialmente, os céus se iluminaram sobre nós, e toda a nossa

aflição transformou-se em prazer e felicidade. Acabaram as ven-

das forçadas, baíxou a taxa de juros do país, nossas promíssórías

eram ambicionadas como investimento, e de um dia para o outro

nossos empréstimos de altos juros saíram de sua condição mise-

rável. A pressão que, por decêníos, fora o pesadelo de nossa

economia se desfez, o Dr. Krippenreuther falou na Assembléia,

de peito inflado, a favor de uma redução nos impostos, e isso

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foi decidido por unanimidade, sob o júbilo de todos os homens

', de sentimentos sociais; o imposto da carne foi enterrado. Con-

', cedeu-se rapidamente um aumento para funcíonáríos, professo-

res, sacerdotes e todos os empregados do Governo. Não faltavam

mais meios para retomar as atividades das abandonadas minas

de prata, muitas centenas de trabalhadores ganhavam seu pão

outra vez e, inesperadamente, todos atingiram camadas de solo

muíto rendosas. Dínheíro exístía agora: dínheiro. Melhorou a

moral administrativa, as pessoas não mais praticavam o desma-

tamento, deixavam o adubo nas florestas, os donos de rebanhos

não precisavam mais vender seu leite integral, pois eles mesmos

o bebiam, e em vão os críticos procurariam no campo figuras

subnutrídas. As pessoas estavam gratas a seus governantes, que

traziam tão desmedidas bênçãos sobre o povo e o país. O Sr.

von Knobelsdorff não precisou de muitas palavras para conven-

cer o Parlamento a aumentar a dotação da Coroa. Retirou-se a

disposição de vender os Castelos Passatempo e Favoritá. Operá-

rios habílídosos entraram no Castelo Velho para ínstalar, em

todas as peças, o aquecimento central. Nossos encarregados de

negócios diante de Spoelmann, o Sr. von Bühl e o Dr. Krippen-

reuther, receberam a Grã-Cruz da Ordem de Albrecht, de bri-

330

lhantes; além disso, o Ministro das Finanças recebeu um título

e o Sr. von Knobelsdorff, um quadro representando os noivos

reais em tamanho natural - feito pela mão de artista do velho

Professor von Lindemann, com valiosa moldura.

Depois do noivado, o povo soltou sua fantasia a respeito

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do dote que Imma Spoelmann receberia do pai. Todo o mundo

estava embriagado, dominado pelo impulso desenfreado de cal-

cular com cifras astronômicas. Mas o dote não superou uma

quantia terrena, embora muito grande: 100 milhões.

- Meu Deus! - exclamou Ditlinde zu Ried-Hohenried,

quando soube disso. - E meu bom Philipp com sua turfa . .

Muitos pensavam da mesma forma; mas a nervosa raiva que

talvez se agitasse em corações simples contra uma coisa tão

monstruosa foi abrandada pela fílha de Spoelmann, que não

esquecia as benemerências - no próprio dia do noivado oficial,

fez uma doação de 500 mil marcos, cujos lucros seriam anual-

mente distribuídos para obras beneficentes e comunitárias, nos

quatro distritos do país . . .

Num dos automóveis de cor verde-oliva de Spoelmann,

com estofamento cor de telha, Klaus Heinrich e Imma fizeram

visitas aos membros da família Grimmburg. Um jovem motorista

dirigia o magnífico veículo - o mesmo que, segundo Imma,

tinha certa semelhança com Klaus Heinrich; mas ele pouco se

distraía nesses passeios, pois era areciso controlar ao máximo

a força gigantesca do carro e rodar bem devagar - tanto se

comprimia o povo ao redor deles para homenageá-los. Sim, e

como os outros causadores de nossa felicidade, o Grão-Duque

Albrecht e Samuel Spoelmann, cada qual à sua maneira, se

escondessem do povo, este despejava todo o seu amor e gratidão

sobre as cabeças do nobre par de noivos; atrás das vidraças

pol.ídas do carro, voavam os gorros dos meninos, o júbilo de

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homens e mulheres entrava por elas, intenso, e Klaus Heinrich,

mão no capacete, dizia:

- Imma, você também deve saudar do seu lado, senão

vão pensar que é muíto fria.

331

Pois, impaciente como era, ele a tratava com intimidade

desde aquele diálogo no baile da Corte, embora, ainda desabi-

tuada de ligações mais cálidas, ela o proibisse, assustada -- e

como lhe saía facilmente dos lábios aquele tratamento, que antes

sempre soara tão falso e impossível!

Foram visitar a Princesa Katharina, sendo recebidos com

dignidade. O irmão dela, o falecido Grão-Duque Johann Al-

brecht, disse a Princesa a seu sobrinho, não teria permitido

aquilo. Mas os tempos mudavam, e ela pedia a Deus que a noiva

se integrasse na Corte. Depois visitaram a Princesa zu Ried-

Hohenried, que os recebeu com amor. O orgulho grimmburguen-

se de Ditlinde tranqüilizava-se na certeza de que a filha do Levia-

tã seria Princesa e Alteza Real, mas jamais Princesa do Grão-Du-

cado, como ela. De resto, encantou-se com a idéia de Klaus

Heinrich ter "farejado" algo tão bonito e precioso, e, como

esposa do Philipp da turfa, entendia as vantagens daquele casa-

mento; e ofereceu à cunhada sincera amizade e fraternidade.

Também se dirigiram à mansão do Príncipe Lambert. Enquanto

a noiva Condessa tentava manter uma conversa com a delicada

mas inculta Baronesa von Rohdorf, o velho mulherengo cum-

primentava o sobrinho, com voz sepulcral, pela escolha despre-

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conceituosa, e por ter zombado de toda a Corte e das Altezas.

- Não zombei deles, tio; nem pensei unicamente na minha

felicidade, de maneira mesquinha, mas tudo foi encarado do

ponto de vista geral e mais elevado - disse Klaus Heinrich,'

pouco amável.

Depois, foram ao Castelo Segenhaus, onde Dorothea, a

pobre Grã-Duquesa-Mãe, mantinha sua triste Corte. Ela chorou

ao beijar na testa a jovem noiva, e nem ela mesma sabia a

razão de seu pranto.

Enquanto isso, Samuel Spoelmann estava sentado nos Del-

fins, rodeado de planos e desenhos de móveis, padrões de forra-

ções de seda e desenhos de baixelas de ouro. Não conseguia

tempo para tocar órgão e esqueceu os cálculos renais. Quase

ficou com as faces coradas, de tão ocupado que estava. Embora

332

não desse muita coisa pelo "rapaz", e não admitisse esperanças�

de jamais o verem na Corte, sua filhinha devia ter um casamento

tão belo quanto permitissem as condições do pai. Os planos eram

relativos ao novo Castelo Eremitage, pois a moradia de solteiro

de Klaus Heinrich seria arrasada para dar lugar a um novo caste-

lo, amplo, iluminado e decorado, segundo o desejo de Klaus He-

inrich, numa mistura de estilo império e moderno, a um tempo

severo e confortável. Certa manhã, depois de beber a água do

Jardim das Fontes, o Sr. Spoelmann apareceu pessoalmente no

Eremitage, com seu paletó desbotado, para ver se um ou outro

móvel poderia ser usado na decoração do novo castelo.

- Meu jovem Príncipe, vamos ver o que o senhor tem aí!

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- disse ele, resmungando, e Klaus Heinrich lhe mostrou tudo

que havia nas suas sóbrias salas, os magros sofás, as mesas de

pernas hirtas, os guéridons laqueados de branco nos cantos.

- Isso é tralha - disse o Sr. Spoelmann, desdenhoso -,

não se pode fazer nada com essas coisas. - Apenas três pol-

tronas do salãozinho amarelo, de mogno pesado com braços

encaracolados e estofo amarelo com as liras azuis, foram con-

sideradas com benevolência. - Essas aí, podemos colocar numa

ante-sala - disse ele, e Klaus Heinrich alegrou-se porque os

grimmburguenses colaborariam com três poltronas na nova deco-

ração. Pois, naturalmente, lhe seria um pouco penoso se o Sr.

6émánn véssé é cntrüúít cm ás,útámenté tü ó.�� � � � � � � � �

Mas também o parque selvagem e o jardim do F,remitage

seríam reconstituídos e, quanto ao jardim das flores, recebeu

um ornamento especial que Klaus Heinrich pedira ao Grão-

Duque como presente de casamento. Ao grande canteiro central,

diante da rampa de acesso, seria transplantada a roseira do

Castelo Velho, e lá, já não rodeada de muros mofados, mas com

ar, sol e adubo gordo, agora veriam que rosas ela produziria,

refutando as mentiras populares, se fosse suficientemente obsti-

nada e petulante.

E, passando março e abril, chegou maio, e com ele a grande

festa do casamento de Klaus Heinrich e Imma. Glorioso e doce,

333

com nuvenzinhas douradas no azul puro, chegou o dia, e, da

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torre da Prefeitura, um canto coral saudou seu despertar. O

povo chegava com todos os trens, a pé e de carruagem, aquela

raça loura, atarracada, saudável e resistente, com olhos azuís

pensativos e zigomas um pouco salientes, com seus belos trajes

típicos, os homens de casaco vermelho, botas e chapéus de ve-

ludo preto de abas largas, as mulheres de coletes bordados e

amplas saias pelo tornozelo, na cabeça o imenso laço de fita

preta. Todos comprimiam-se, junto com a população urbana,

nas ruas entre o Jardim das Fontes e o Castelo Velho, transfor-

madas no trajeto do cortejo pelas tribunas enfeitadas de coroas

e guirlandas, e obeliscos de madeira pintados de branco, cheios

de folhagens. Desde cedo carregavam-se pelas ruas os estandartes

das associações industriais, ligas de atiradores e ligas esportivas.

Os bombeiros, capacetes faiscantes, estavam em ação. Viam-se os

representantes das ligas estudantis em toda a pompa, com suas

bandeiras, passando em landaus abertos. Viam-se grupos de

virgens vestidas de branco, segurando nas mãos bastões cobertos

de rosas. Os escritórios e oficinas faziam feriado. As escolas

estavam fechadas. Nas igrejas, rezavam-se missas festivas. E as

ediçôes matutinas do Mensageiro, bem como o Diário O f icial,

continham, além dos artigos de fundo, o anúncio de uma ampla

anistia, pela qual muitas pessoas condenadas à prisão recebiam

do Grão-Duque a graça da liberdade total, ou abreviação da

pena. Até o assassino Gudehu, que fora condenado à morte,

depois a trabalhos forçados pelo resto da vida, teve licença

para sair da prisão, mas em breve teria de voltar a ser posto

em segurança.

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As 2h da tarde, realizou-se o almoço festivo dos cidadãos

na sala do Museu, com música e telegramas de felicitações.

Mas diante do portão divertia-se o povo, com pães e bolos,

feira, jogos de sorte e tiro ao pomlo, corrida de saco e com-�

petição de subida ao mastro para apanhar doces, esta última

reservada aos rapazes. Mas depois chegou a hora em que Imma

Spoelmann iria dos Delfins ao Castelo Velho, em cortejo solene.

334

As bandeiras tremulavam ao vento primaveril, as guirlan-

das, grossas como braços, tramadas com rosas, enroscavam-se

de um obelisco de madeira a outro, a multidão comprimia-se,

escura, nas tribunas, nos telhados, nas calçadas. Entre a ala de

políciais e bombeiros, ligas, associações, estudantes universitá-

rios e crianças de colégio, chegava o cortejo nupeial, lentamente,

na rua festiva coberta de areia, rodeado do júbilo do povo.

Dois cavaleiros com chapéus de galardão vinham na frente,

dirigidos por um cavalariço bigodudo. Depois, uma carruagem

puxada por quatro cavalos, na qual se recostava o emissário

grão-ducal, funcionário do Ministério do Interior, com missão de

apanhar a noiva, acompanhado de um Camareiro. Depois, outra

carruagem com quatro cavalos, onde se via a Condessa Lõwen-

joul, que olhava obliquamente para as duas damas de honra

com as quais viajava, e de cuja moral certamente desconfiava.

Depois, 10 postilhões a cavalo, em calças amarelas e fraques

azuis, que tocavam "Tecemos a coroa da virgem". Depois, 12

virgens em trajes brancos, espalhando pela rua rosinhas e rami-

nhos da tuia. E, por fim, seguida de 50 mestres-artesãos em

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poderosos cavalos, a delicada carruagem nupeial, puxada por

seis animais. Muito orgulhoso, sentava-se na boléia forrada de

veludo branco o cocheiro de cara vermelha e chapéu de galardão

esticando as pernas cobertas por polainas e segurando, também

com braços esticados, as longas rédeas; cavalariços de botas

levavam pelo brídão os pares de tordilhos, e dois lacaios vestidos

de gala postavam-se na traseíra do veículo, que tilintava; sem

ver seus rostos, ninguém adivinharia que, no cotidiano, não

desconheciam a hipocrisia e o suborno. Atrás dos vidros e mol-

duras douradas, sentava-se Imma Spoelmann, com véu e grinal-

da, tendo ao lado, como dama de honra, uma antiga dama do

palácio. Seu vestído, de seda fulgurante, brilhava como neve ao

sol, e no regaço ela trazia o ramo branco que o Príncipe Klaus

Heinrich lhe enviara uma hora atrás. Seu rosto infantil e estran-

geiro estava pálido como as pérolas do mar e, sob o véu, caía-lhe

na testa uma mecha de cabelo liso, de um negro azulado, enquan-

335

to os olhos, tão grandes e negros, falavam, eloqüentes, com a

multidão. Mas que era aquilo que corria, latia, éspumava, ao

lado da porta da carruagem? Era Percival, o collie - possesso

como nunca! A multidão e a viagem o excitavam, deixavam-no

fora de si, dilaceravam-lhe o interior. Ele disparava, dançava,

sofria, retorcia-se, cego, riuma vertigem nervosa - e dos dois

lados, nas tribunas, na rua, nos telhados, o júbilo cresceu ainda

mais quando o povo o avistou . . .

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Assim, Imma Spoelmann entrou no Castelo Velho, e o

reboar dos sinos misturou-se com os "vivas" do povo e os

doidos latidos de Percival. Atravessaram a passo a Praça Al-

brecht e o Portão de mesmo nome; no pátio do Castelo, a tropa

montada desfilava de um lado para o outro, assumindo posição

de revista, e na galeria de colunas, diante do portal arruinado,

o Grão-Duque Albrecht, como Coronel dos hussardos, junto .

com seu irmão e os demais príncipes, recebeu a noiva, ofereceu-

lhe o braço e levou-a pela escada de pedras gris até as salas de

recepção, em cujas portas havia guardas em uniforme de gala

e se reuniam as Cortes. As princesas da casa ficaram na Sala

dos Cavaleiros, e foi lá que o Sr. von Knobelsdorff, no círculo

da família dos Grão-Duques, realizou o casamento civil. Nunca,

comentou-se mais tarde, suas ruguinhas se haviam agitado tanto

quanto naqueles momentos em que unia perante a lei Klaus Hein-

rich e Imma Spoelmann. Mas, depois disso, Albrecht II deu

ordem de começar a cerimônia religíosa.

O Sr. von Bühl zu Bühl cumprira sua parte, fizera o

possível para organizar um cortejo impressionante - o cortejo

nupeial, que passaria sobre a Escada de Heinrich, o Opulento,

d:tois, por uma passagem coberta, entraria na Igreja. Curvado�

pelo peso dos anos, mas com topete castanho e agitando-se

juvenilmente, coberto de condecorações até as virilhas e batendo

à frente seu alto bastão, ele caminhava diante dos camareiros,

que, chapéus de plumas debaixo do braço e chaves atrás, na

cintura, seguiam em suas meias de seda. O jovem par aproxi-

mava-se: a noiva, singular num branco cintilante, e Klaus Hein-

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rich, sucessor do Trono, em uniforme de granadeiro, a faixa

amarelo-limão atravessada sobre o peito e as costas. Quatro mo-

ças da nobreza carregavam, com ar aparvalhado, a cauda do

vestido de Imma, acompanhadas da Condessa Lówenjoul, que

olhava para os lados, desconfiada; e os Srs. von Schulenburg-

Tressen e von Braunbart-Schellendorf caminhavam atrás do

, noivo. O Monteiro-Mor da Corte, von Stieglitz, e a Excelência

manca que cuidara do espetáculo vinham à frente do jovem

monarca, a sugar o lábio superior, ao lado de sua tia Katharina,

seguido do Ministro do Interior von Knobelsdorff, dos Aju-

dantes, do casal de Príncipes zu Ried-Hohenried, e dos outros

membros da casa. Por fim, novamente camareiros.

Na igreja, enfeitada por folhagens e ramos, os convidados

esperavam o cortejo. Eram os diplomatas com suas damas, os

nobres da Corte e do país todo, o corpo de oficiais da Residên-

cia, os Ministros - entre os quais o de rosto mais iluminado

era o Sr. von Krippenreuther -, os cavaleiros da Grande Ordem

de Grimmburg, o Presidente da Câmara e toda sorte de digni-

tários. E como o marechalato da Corte tivesse enviado convites �

a todas as camada's sociais, também havia mercadores, campo-

neses e simples artesãos enlevados nos assentos. Mas na frente,

junto do altar, os parentes do noivo sentavam-se em semicírculo,

em poltronas de veludo vermelho. Terna e pura soava a canção

do coro da catedral, debaixo das abóbadas. Depois, ao rugido

do órgão, toda a comunidade cantou um hino de louvor. Quando

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se calaram, restou apenas a voz agradável do Presidente do

Conselho da igreja, D. Wislizenus, que, com o cabelo prateado,

no talar de seda a estrela convexa, postava-se diante do nobre

par, pronunciando um sermão artístico. Trabalhava o tema, por

assim dizer, de maneira musical. E o tema de que tratava era

o salmo "Ele viverá e lhe darão ouro do reino da Arábia". E

todos os olhos ficaram molhados.

Depois, D. Wislizenus realizou o matrimônio e, no momen-

to em que. os noivos trocavam as alianças, soaram fanfarras, e

três vezes 12 tiros rolaram sobre cidade e campo, disparados

337

pelos militares sobre a muralha da cidadela. Logo depois,

também os bombeiros dispararam sua salva, com armas desti-

nadas a saudações; mas havia longos intervalos entre as detona-

ções, o que dava à população eterno motivo de riso.

Quando a bênção foi pronunciada, o cortejo arranjou-se

novamente para voltar ao Salão dos Cavaleiros, onde a casa

Grimmburg felicïtaria o jovem casal. Mas depois chegou o desfile

da Corte e, de braços dados, Klaus Heinrich e Imma 5poelmann

passaram pelas "Belas Salas", onde as Cortes estavam enfilei-

radas, e conversaram com damas e cavalheiros, sorrindo por

cima do assoalho lustroso; Imma, lábios em bico, meneava a

cabecinha ao falar com al.guém que fazia uma mesura, e dava

respostas adequadas. Após terminado o desfile, realizou-se um

jantar de cerimônia no Salão de Mármore, e um jantar dos

marechais na Sala dos 12 Meses, tudo no maior luxo, segundo

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o costume da esposa de Klaus Heinrich. Também Percival, nova-

mente composto, foi admitido no jantar festivo, e recebeu um

assado. Depois do jantar, porém, os estudantes da Universidade

e o povo fizeram úma homenagem ao casal, com serenatas e

desfile de tochas, na Praça Albrecht. Lá fora, havia luzes bru-

xuleantes e uma zoeira incrível.

Lacaios escancararam as cortinas de uma das janelas da

Sala de Prata, abriram os batentes que davam quase até o chão,

e Klaus Heinrich e Imma chegaram à janela, sem se abrigar,

pois lá fora era uma noite morna de primavera. Ao lado deles,

em postura nobre e ar importante, sentava-se Percival, o collie,

e, como seus amos, olhava para baixo.

Todas as orquestras da Residência tocavam na praça ilumi-

nada, lotada de gente, e os rostos do povo, erguidos para a

janela, estavam rubros e enfumaçados pelas tochas dos estu-

dantes que passavám diante do Castelo. Irrompeu o júbilo

quando os recém-casados apareceram na janela. Eles saudaram,

agradecendo. Depois, ficaram ali parados por mais algum tempo,

olhando e sendo olhados. O povo olhava de baixo, vía-os move-

, rem os lábios num diálogo. Eles diziam:

338

i

;

- Ouça, Imma, como estão agradecidos por não térmos

esquecido sua necessidade e aflição. Tanta gente! Todos parados

aí, gritando. Muitos deles certamente são vigaristas, desses que

passam a vida logrando os outros; todos precisam urgentemente

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elevar-se acima de sua existência cotidiana, tão vulgar. E se não i �

formos alheios à sua miséria e aflição, sentir-se-ão agradecidos.

- Mas nós somos tão ignorantes e solitários, meu Príncipe,

vivemos nos píncaros da humanidade, como dizia o Dr. Ü'ber-

' bein. Nada sabemos da vida!

. - Nada, pequena Imma? Mas o que foi que finalmente

a fez confiar em mim, e me levou a estudar de verdade sobre

o bem-estar do povo? Será que nada sabe da vida aquele que

' . sabe do amor? Esse deve ser nosso objetivo daqui por diante:

as duas coisas, nobreza e amor . . . uma severa felicidade.

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ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA

GABARITO ARTE & TEXTO S/C

LTDA. E IMPRESSA NA ARTES GRÁ-

FICAS GUARU S.A.,PARA A EDITORA

NCjVA FRONTEIRA S.A., EM JUNHO

DE MIL NOVECENTOS E OITENTA E

CINCO.

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