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70 0 mundo secreto da internetVer lutas até à morte, comprar drogas, armas, órgãos, escravossexuais... é só escolher. Não há impossíveis na Deep Web, um universo
paralelo que apenas uma minoria conhece - e com uma dimensão 500vezes superior à da net livre
Aspáginas sãovermelho-sangue.Ostítu-
los escorrem pelo ecrã, provavelmentefazendo crescer água na boca aos que
aqui chegam, buscando informaçõessobre «vampiros a sério». É muito fácil
aceder a este fórum, onde milhares de
adolescentes publicam perguntas quase inocentes, ine-
briadas pela beleza dos seres mitológicos de Crepúsculo,
a saga da escritora Stephenie Meyer, imortalizada no
cinema. «Como posso ser uma vampira de verdade?»,
questiona Chelsea3. Numa das respostas, alguém a con-
vida a seguir um link: «Deixa-me morder-te.»
Aceite o convite, mergulha-se noutro site, alojado
num plano paralelo à net livre, em que as conversas ra-
pidamente deixam de ter graça e o divertimento pode
acabar em pesadelo. O fórum que continua nesse sub-
mundo da internet já tem gente que diz gostar mesmo
de beber sangue e debate, entusiasticamente, o êxtase de
sexo com cadáveres.
Bem-vindos à Deep Web, ou internet profunda, um
mundo secreto dentro da rede, também conhecido pordark net, em referência ao lado mais negro do que ali se
passa, acoberto do anonimato. Em acelerado crescimen-
to nos últimos anos, esta face oculta da web foi sendo ig-
norada como estando reservada a piratas informáticos,
loucos e excêntricos. Mas casos como o do «Canibal de
Rotenburg» fizeram as polícias de todo o mundo olhar
com mais atenção para este universo paralelo. Em 2003,
o alemão Armin Meiwes colocou um anúncio num fó-
rum de canibais da Deep Web, que muitos julgariam ser
apenas uma brincadeira de mau gosto:
«Procuro homem bem constituído, 18-30 anos, para ser
esquartejado e consumido.»
A verdade é que alguém respondeu. Bernd JurgenBrandes ofereceu-se e, durante dez meses, Meiwes foi
comendo, pedaço a pedaço, 20 quilos do seu corpo.
Quando o caso se descobriu, a polícia encontrou mais
cem cambais no grupo onde os dois homens haviam tra-
vado conhecimento. Muitos antropófagos ainda hoje
se mantêm ativos cm fóruns semelhantes ao originalCanibal Café (entretanto encerrado), trocando receitas
como «sopa de feto».
Meiwes foi condenado a prisão perpétua mas o seu
caso provou, em definitivo, que na dark net todos os ne-
gócios - mesmo os mais inconcebíveis - podem ser con-
cretizados.
APONTADOICEBERGUE
Para compreender a Deep Web há que imaginar a in-
ternet como um icebergue, com várias camadas sub-
mersas (ver infografia). A que se encontra à tona de
água é aquela que todos conhecemos, a rede de livre
acesso, a World Wide Web que usamos no dia-a-dia.
Aqui é possível pesquisar informação através de mo-
tores de busca como o Google, que observa e registatodos os movimentos dos seus utilizadores, guardan-
BrowsersNavegadoresanónimosPermitem navegar sem
o utilizador ser identi-ficado
São indispensáveis paraentrar nas diferentescamadas da Deep Web
Criam endereços IP
falsos, dificultando a
investigação criminal e
os ataques de piratas
BifcoinAcriptomoedaOs negócios na DeepWeb são facilitados porum sistema financeiro
próprio, encriptado paragarantir o anonimato
dos compradores
A moeda mais popular é
o bitcoin, com cotaçãodiária face ao dólar, va-
lendo cerca de 4 euros
Quem compra bitcoinscria uma carteira virtual.
0 sistema gera um códi-
go aleatório sempre quese fizer um pagamento
SEXO, DROGAS E ARMAS Uma pistola Glock 22 por 800 euros, doses de heroína afegã a 75 euros ou viagens de
turismo sexual a 400 euros, é possível comprar um pouco de tudo nesta rede
>. do-os durante dois anos. Neste patamar,
quase nada do que fazemos é segredo- por isso é tão fácil roubar informação a
quem aqui navega.A camada seguinte já faz parte da inter-
net profunda e tem algum grau de encrip-
tação, sendo, sobretudo, acessível através
de palavras-chave. A informação não é in-
visível, está apenas mais difícil de alcançar:
enquanto um link na rede aberta é o mais
explícito possível para os utilizadores fixa-
rem a morada ou reconhecerem o seu con-
teúdo (como www.visao.pt) , na Deep Web
ele está dissimulado numa combinação de
letras e algarismos aleatória. Poderia ser
algo como kpvz7pi2Vsagwsssy.onion, por
exemplo. Neste patamar, os motores de
busca já não conseguem indexar a infor-
mação aqui contida. No fundo, quando
se faz uma pesquisa, é como se lançásse-
mos uma rede ao mar. Se há muito peixe
que fica preso nela, é incomparavelmen-te maior a quantidade que escapa. Uma
estimativa da universidade de Berkeley,na Califórnia, estima que a dimensão da
Deep Web seja 500 vezes superior à da
net de superfície. Serão mais de 550 mil
milhões de documentos, ocupando mais
de 7 500 milhões de terabytes de infor-
mação, quando a internet de uso corrente
não ultrapassa os 19 milhões. Em 1998, a
dimensão do conteúdo da internet pro-funda já era equivalente ao conjunto dos
documentos produzidos em toda a histó-
ria da Humanidade. Hoje, calcula-se que
esse volume tenha aumentado 63 vezes.
ARMADILHAS VIRTUAIS
Até o que partilhamos nas redes sociais,
como o Twitter ou o Facebook, está alo-
jado na internet profunda, uma vez que
esse conteúdo não é revelado a terceiros
pelos motores de busca. Uma análise da
empresa Bright Planet, pioneira no de-
senvolvimento de software para pesqui-
sar as profundezas da net — um segmen-to de negócio a que os peritos atribuem
um potencial de crescimento enorme —,
indica que só na rede de superfície exis-
tirão mais de 3 mil milhões de páginasnão indexáveis.
Contudo, mesmo com todos os filtros
de privacidade acionados, os dados publi-cados nas redes sociais estão longe de ser
anónimos e podem ser esmiuçados, byte a
byte, por piratas informáticos ou investi-
gadores criminais.
Foi em nome da liberdade que peritosinformáticos como lan Clarke criaram
software que garante o anonimato a quem
navega na internet. O jornal britânico
The Guardian conta que quando ele de-
senvolveu o seu projeto, na universidade
de Edimburgo, em 1998, o seu professorde ciência da computação achou-o desin-
teressante e atribuiu-lhe apenas um «Sa-
tisfaz». Hoje, mais de 2 milhões de pes-
soas fizeram o download do seu produto.
Quem avança no segundo nível da DeepWeb já não o faz sem a ajuda de sistemas
de navegação como este, que «mascaram»
o endereço IP do utilizador, identificando
alguém que acede à net em Lisboa como
estando em Berlim, por exemplo.
Nesta zona, alojam-se serviços de e-
mail anónimos, os servidores FTP (FileTransfer Protocol), para partilha de fi-
cheiros de grandes dimensões, muito usa-
dos por empresas, e os sites dissimulados
de vendas de drogas, que enviam preten-sas encomendas de livros com cristais de
metanfetamina e comprimidos de ecstasyescondidos nas «entrelinhas».
Também são populares os fóruns de
roubos por encomenda, onde se compraa preço de saldo um computador acaba-
do de lançar ou um cartão de crédito bem
«recheado».
Nesta zona crescem diariamente, e a
um ritmo alucinante, as bases de dados
académicas e científicas, em que já vai
sendo possível entrar a partir da superfí-
cie, através de motores de busca como o
Infomine, o Intute ou o ipte. Muitos inves-
tigadores trocam também informaçõesconfidenciais, partilhando resultados dos
seus estudos num ambiente que conside-
ram mais seguro.Mas aqui já é preciso navegar com cui-
dado pois este é também o reino dos ho-
neypots (potes de mel), armadilhas para«aventureiros» menos preparados, quesimulam falhas de segurança do siste-
ma para recolher dados pessoais do uti-
O VALOR DA INFORMAÇÃO Partilhar ficheiros de forma anónima foi fundamental para a criação do Wikileaks,
que nasceu na Deep Web. Aqui é também possível contratar piratas informáticos
lizador - e, eventualmente, aniquilá-10.Pelo menos no que ao mundo virtual diz
respeito.Contratar mortes no mundo real tam-
bém é possível. Num fórum designado«Mercado de Assassinos», um deles de-safia: «Se conhece alguém que queira uma
pessoa morta, estabeleça a ponte, pagueo meu preço e o resto do dinheiro podeficar com ele.» O preçp-base do «negócio»são 20 mil euros. A tarifa sobe se o alvo a
abater for alguém famoso, um polícia ou
umjornalista.
ESCRAVAS SEXUAIS
«Quem quer comprar uma boneca?»
O anúncio parece inofensivo, à primeiravista. Mas não há inocentes na internet
profunda, e aqueles que por aqui navegamsó chegarão a esta página se estivereminteressados em sexo com menores. A
pornografia e pedofilia infantis dominam
uma parte importante da rede escondi-da mas à maioria dos mortais será difícilconceber «serviços» como os oferecidos
neste site. Um suposto cirurgião oferece
órfãs, de países do Leste europeu, paraserem «bonecas submissas» - de carne e
osso mas desprovidas de liberdade e do
domínio do seu próprio corpo. Os por-menores descritos são tão repugnantesque fazem dos piores filmes de terror umfilme para crianças. Comprar uma destas
meninas, transformadas em objetos ape-nas para satisfazer os desejos sexuais do
comprador custará cerca de 30 mil euros.Mito ou realidade? Investigar a origem
deste tipo de ofertas é, apesar de todosos esforços policiais, cada vez mais com-
plexo. O mundo da pedofilia parece terali encontrado na Deep Web o seu portoseguro.
Para visitar estes sites já é necessário
usar um servidor proxy específico e terinstalado um dos já referidos navegado-res especiais. Muitos fóruns pedófilos têmainda filtros adicionais poderosos, como o
acesso exclusivo após a partilha de vídeos
ou imagens semelhantes.
«Há uma grande dificuldade em fazera recolha da prova, os servidores rara-mente estão acessíveis à Justiça e este é
um crime quase sempre transnacional»,
explica Carlos Cabreiro, diretor do de-
partamento de crime informático da Po-
lícia Judiciária.A aprovação, em 2001, da Cibercon-
venção de Budapeste, um tratado inter-nacional para o combate à criminalida-de online, facilitou a colaboração entre
países mas ainda há um longo caminhoa percorrer. Bruno Castro, CEO da em-
presa de segurança informática Vision-
com grande a vontade», erguendo, à sua
volta, controlos apertados. «Esta é uma
guerra que, infelizmente, sinto que nãoestamos a conseguir vencer.»
PIRATAS E ESPIÕES
A venda de informação sensível c outrodos grandes negócios da internet pro-funda. Os especialistas da VisionWare játiveram de se infiltrar nas camadas mais
profundas da rede para «resgatar» infor-
mação de clientes. «Acontece, por vezes,um colaborador de uma firma, em proces-so de saída litigiosa, copiar ou roubar ma-terial relevante do negócio, como bases de
dados de clientes ou informação técnicade um produto, e colocá-lo à venda, em de-
terminados fóruns da Deep Web», explicaBruno Castro.
Nesta área, onde se partilha informaçãoaltamente confidencial, já é difícil avançar
Ware, considera que, se a camuflagemdos movimentos online for bem feita, «é
muito complicado identificar» este tipode utilizadores. O perito, que tambémcolabora com os Grupos de Segurançada Comissão Europeia, lembra que «acomunidade pedófila utiliza, há maisde uma década, os meios informáticos
sem conhecimentos de programação in-formática. Para aceder a alguns sites, exi-
ge-se a resolução de problemas comple-xos para alcançar um novo patamar. Será
o caso de páginas em que se pode assistir
a lutas até à morte, pagando fortunas pelo
«privilégio» - um negócio que parece cada
vez mais próspero e que estará nas mãos
de grupos mafiosos russos. Além destes
combates, são muito populares as lutas
dentro de jaulas, entre homens e ursos ou
tigres. Uma espécie de circo romano da
era digital.No nível seguinte, abre-se um imenso
buraco negro que poucos conseguirão al-
cançar, uma camada dominada pelo ciber-
terrorismo. A Al Qaeda proliferou, desde
a passagem do milénio, utilizando estes
canais de comunicação praticamente in-detetáveis. Também a venda de informa-
ção altamente confidencial sobre armas
nucleares, químicas e biológicas, passa-rá por aqui. Não é de estranhar que esta
seja uma zona frequentada por agentesdos serviços secretos de todo o mundo.
Grande parte do trabalho de espionagem
dos nossos dias já se desenrola, aliás, neste
plano virtual.Em vez de desviar um avião, será mais
viável, num futuro próximo, uma célula
terrorista planear «um ataque informáti-
co a um posto de controlo aéreo, podendoalterar o posicionamento e a rota de deze-
nas de aviões em simultâneo»,exemplificaBruno Castro. Ou «modificar à distância
os compostos químicos misturados numa
fábrica de papas infantis, transformando
essa comida em veneno».
Os peritas da VisionWare, empresacertificada pelo Gabinete Nacional de
Segurança, fazem também investigaçãoforense nestas áreas, colaborando direta-
mente com governos e autoridades poli-
ciais, sempre que para tal solicitados. No
caso da Judiciária, por exemplo, Carlos
Cabreiro explica que os inspetores não
podem infiltrar-se em determinados gru-
pos, correndo o risco de o seu comporta-mento ser considerado «provocador», o
que não é admitido pelas leis nacionais.
MERCADO PARALELO
Longe das algemas da polícia estão tam-bém os traficantes online, que encon-
traram aqui um ponto de venda seguro,utilizando softwares que garantem o ano-
nimato. Além disso, usam a moeda parale-la da Deep Web, o bitcoin (ver caixa). Com
cotação diária face ao dólar, um bitcoin vale
agora, aproximadamente, quatro euros.
Qualquer pessoa pode comprar esta crip-tomoeda e ficar com esse crédito numa
espécie de carteira virtual. Quando quiser
adquirir algum serviço, o sistema gera um
código aleatório que liquida a conta em
questão, sem identificar o utilizador.
Para a compra de drogas, há váriosfóruns populares. Ecstasy, marijuana e
drogas psicadélicas são as mais procu-radas, logo seguidas da kctamina, me-tanfetaminas e DMT, a chamada «mo-lécula espiritual». Estes fóruns têm até
um serviço áefeedhack semelhante ao do
popular site de leilões eßay, em que os
consumidores classificam a qualidade da
transação e do produto, transmitindo as
suas conclusões aos clientes seguintes.Numa questão de segundos, é possível
encontrar mais de 6o páginas e fóruns, de-
dicados a estupefacientes específicos. Um
utilizador português, P., conta que, quan-do explorou a internet profunda por al-
gumas horas, duvidou da credibilidade de
um vendedor com boas referências. Mas
decidiu arriscar a compra de 5 gramas de
cristais para testar o canal de distribuição
e esperou pela encomenda, «com gran-de ansiedade». Apesar de não ter registo
criminal, e de não haver forma de ser res-
ponsabilizado pelo que lhe fosse enviado,
«poderia sempre haver chatices», como
refere, até porque a mercadoria teria de
atravessar fronteiras.
P. temia, também, pela qualidade do
produto: «Nunca se sabe se não é algofeito por amadores, com dosagens exces-
sivas.» Uns dias depois, o pequeno pa-cote chegou. Foi entregue em mão, pelocarteiro, sem sombra de desconfiança.E a droga? «Estava tudo nos conformes,
era mesmo de qualidade.» Nas profunde-zas como à superfície, os negócios só vin-
gam com clientes satisfeitos. D