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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO A R EVISTA SUPERINTERESSANTE, OS LIVROS DIDÁTICOS DE QUÍMICA E OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS INSTITUINDO “NOVOS CONTEÚDOS ESCOLARES EM CIÊNCIAS/QUÍMICA MAIRA FERREIRA Porto Alegre, 2008

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO

    A REVISTA SUPERINTERESSANTE, OS LIVROS DIDTICOS

    DE QUMICA E OS PARMETROS CURRICULARES NACIONAIS

    INSTITUINDO NOVOS CONTEDOS ESCOLARES EM

    CINCIAS/QUMICA

    MAIRA FERREIRA

    Porto Alegre, 2008

  • MAIRA FERREIRA

    A REVISTA SUPERINTERESSANTE, OS LIVROS DIDTICOS

    DE QUMICA E OS PARMETROS CURRICULARES NACIONAIS

    INSTITUINDO NOVOS CONTEDOS ESCOLARES EM

    CINCIAS/QUMICA

    Tese de Doutorado apresentado ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FACED/PPGEDU/UFRGS), como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutora em Educao. Orientadora: Prof Dr Maria Lcia C. Wortmann

    Porto Alegre, 2008

  • DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP) ____________________________________________________________________

    F383r Ferreira, Maira A revista superinteressante, os livros didticos de qumica e os parmetros curriculares nacionais instituindo novos contedos escolares em cincias/qumica [manuscrito] / Maira Ferreira; orientadora: Maria Lcia Castagna Wortmann. Porto Alegre, 2008. 212 f. + Apndices

    Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educao. Programa de Ps-Graduao em Educao, 2008, Porto Alegre, BR-RS.

    1. Qumica Ensino mdio. 2. Cincias Ensino mdio. 3. Parmetros curriculares nacionais. 4. Livro didtico Ensino mdio Currculo. 5. Estudos culturais. 6. Divulgao cientfica. 7. Imprensa pedaggica Revista Superinteressante. 8. Hall, Stuart. 9. Foucault, Michel. 10. Popkewitz, Thomas S. I. Wortmann, Maria Lcia Castagna. II. Ttulo.

    CDU 373.5 ___________________________________________________________

    Bibliotecria Neliana Schirmer Antunes Menezes CRB 10/939

  • AGRADECIMENTOS Esse trabalho resultado de alguns anos de estudos, leituras, aulas, reunies de

    orientao, de experincia profissional, mas, sobretudo, resultado de uma parceria entre a investigadora e a sua orientadora. Por isso, inicio agradecendo a minha orientadora, prof Dr

    Maria Lcia Castagna Wortmann pela sua dedicao nas leituras dessa tese e, principalmente, por sua invejvel capacidade de ser sria, exigente e criteriosa na orientao dos trabalhos, sem deixar de ser afetuosa e sensvel aos nossos problemas e dificuldades pessoais.

    Agradeo aos professores da Linha de Pesquisa dos Estudos Culturais do PPGEDU/UFRGS pelas aulas, sugestes de leituras e pela disponibilidade em me auxiliar sempre que precisei de informaes ou de materiais.

    Sou grata aos meus colegas e amigos do grupo de orientao, Daniela Ripoll, Elaine Dulac, Leandro Guimares, ngela Bicca, Elaine Silveira, Shaula Sampaio, Mirtes Barbosa e Jaciane Guimares, pelo carinho, colaborao e amizade.

    Minha gratido aos meus amigos da Qumica Csar Lopes, Jos Cludio Del Pino, Rochele Logurcio e Verno Krger, por compartilharem comigo seus estudos, suas pesquisas e seus sonhos que tanto me ajudam e incentivam a aprender ensinando e ensinar aprendendo Qumica e Educao.

    Meu carinho e gratido minha famlia minha me, meu pai e minha irm , agradeo por compreenderem a minha eterna falta de tempo e por todos os cuidados que tm para comigo.

    Agradeo ao meu marido, Jos Antonio, por seu companheirismo, por sua ateno e,

    especialmente, por seu bom humor, tornando mais fcil enfrentar as situaes desafiadoras em que me ponho.

    Muito obrigada aos meus colegas e amigos do Unilasalle por entenderem minha dificuldade, algumas vezes, em conciliar a rotina do trabalho com a feitura de uma Tese de Doutorado.

    Finalizo, agradecendo aos meus alunos, acadmicos do Curso de Qumica no Unilasalle, por me fazerem estar, constantemente, revendo, reavaliando e reorganizando minha compreenso sobre a importncia da pesquisa na educao escolar, na formao de

    professores de Cincias/Qumica e no ensino de Qumica.

  • Escrever (e ler) como submergir num abismo em que

    acreditamos ter descoberto objetos maravilhosos. Quando

    voltamos superfcie, s trazemos pedras comuns e

    pedaos de vidro e algo assim como uma inquietude nova no

    olhar. O escrito (e o lido) no seno um trao visvel e sempre decepcionante de uma aventura

    que, enfim, se revelou impossvel. E, no entanto,

    voltamos transformados. Nossos olhos aprenderam uma nova

    insatisfao e no se acostumam mais falta de

    brilho e mistrio... Jorge Larrosa

  • FERREIRA, Maira. A revista superinteressante, os livros didticos de qumica e os parmetros curriculares nacionais instituindo novos contedos escolares em cincias/qumica. Porto Alegre, 2008. 217 f. + Apndices. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educao. Programa de PsGraduao em Educao, 2008, Porto Alegre, BR-RS.

    RESUMO

    Nesta tese de doutorado, examino algumas produes culturais que me permitiram acompanhar processos ligados produo dos conhecimentos escolares em Cincias/Qumica. Para tanto, examinei documentos oficiais de ensino brasileiros os PCNs, alguns livros didticos de Qumica e uma revista de divulgao cientfica a Revista Superinteressante. A pesquisa foi desenvolvida sob inspirao dos Estudos Culturais, utilizando aportes tericos de Stuart Hall, que busquei conectar ao pensamento de Michel Foucault e Thomas Popkewitz para realizar as anlises discursivas procedidas. Tais anlises permitiram indicar entrelaamentos entre os enunciados que compem os diferentes discursos colocados em circulao por tais produes e indicar que temas como sade, meio ambiente, desenvolvimento tecnolgico e consumo passaram a constituir a pauta tanto da revista examinada, quanto dos livros didticos e dos PCNs, o que, de certo modo, legitima e escolariza esses temas, no caso estudado na rea de Cincias/Qumica, na Educao Bsica. A insero de novos temas/contedos indica haver uma ruptura em relao ao que anteriormente era considerado como contedos escolares pertinentes ao ensino de Cincias/Qumica. No tratamento do tema sade, por exemplo,os textos passaram a ocupar-se com a indicao de formas para viver mais e com mais sade, com melhor aparncia, com cuidados para a manuteno da agilidade e juventude, o que implica viver uma democrtica ditadura de fazer escolhas responsveis para os cuidados com o corpo, ou seja, nessas produes culturais o discurso do cuidado com a sade encontra-se associado vontade de mudanas de atitude dos sujeitos frente aos seus hbitos de vida. Em relao ao modo de focalizar o tema meio ambiente, os enunciados ressaltam a importncia da incorporao de prticas cotidianas aos contedos escolares, sendo isso considerado requisito para o desenvolvimento da cidadania que, por sua vez, seria promovida na relao dos sujeitos com o meio ambiente.

    Palavras chave: Qumica - Ensino mdio. Cincias - Ensino mdio. Currculo. Parmetros curriculares nacionais. Livro didtico - Ensino mdio. Estudos culturais. Divulgao cientfica. Imprensa pedaggica - Revista Superinteressante. Hall, Stuart. Foucault, Michel. Popkewitz, Thomas S.

  • FERREIRA, Maira. A revista superinteressante, os livros didticos de qumica e os parmetros curriculares nacionais instituindo novos contedos escolares em cincias/qumica. Porto Alegre, 2008. 217 f. + Apndices. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educao. Programa de Ps-Graduao em Educao, 2008, Porto Alegre, BR-RS.

    ABSTRACT

    In this PHD thesis, I examined some cultural production which allowed me to follow activities linked to Science/Chemistry school knowledge production. For that, I examined Brazilian teaching official documents, the National Curricular Parameters, some Chemistry didactic books and a scientific publication magazine (Superinteressante Magazine).

    The research was developed under inspiration of Cultural Studies, using theoretical support by Stuart Hall, which I tried to connect to Michel Foucaults and Thomas Popkewitzs thoughts to carry out discursive analysis. The analysis show the interconnections between the enunciates that are part of different speeches published in these production and indicate that themes such as health, environment, technological development and consume started to constitute the agenda, in the referred magazine, in the didactic books and in the National Curricular Parameters. This subjects legitimate and submit these themes to school teaching in the Science/Chemistry area in Basic Education.

    The insertion of new themes/contents indicates that there is a rupture regarding what was formally considered pertinent school contents to the teaching of Science/Chemistry. Regarding health, for example, the texts started to worry about living longer, healthier, having a better look, carrying about being agile and young, which implies living in a democratic dictatorship of making responsible choices regarding body care, in other words, in these cultural aspects the speech related to health care is associated to will changes of attitude in the peoples ways of living. About the environment theme, the texts highlight the importance of adding daily practices to the school contents, which is considered a prerequisite for the citizenship development to promote the relationship between the people and the environment.

    Key-words: Chemistry - Secondary School. Science - Secondary School. School Program. National Curricular Parameters. Didatic Book - Secondary School. Cultural

    Studies. Scientific Publication. Pedagogical Press - Superinteressante Magazine. Hall, Stuart. Foucault, Michel. Popkewitz, Thomas S.

  • RELAO DE FIGURAS

    Figura 1: Capa dos livros Qumica e Aparncia

    Figura 2: Folder de divulgao da coleo Qumica & Sociedade

    Figura 3: Editorao pginas do livro Qumica & Sociedade (mdulo 4)

    Figura 4: Editorao pginas do livro Qumica & Sociedade (mdulo 4)

    Figura 5: Capas do livro Qumica & Sociedade mdulos 1 e 2 (ed. 2003)

    Figura 6: Capa do livro Qumica & Sociedade (ed. 2005)

    Figura 7: Reportagem da Revista Superinteressante: Tudo Beleza

    Figura 8: Revista Superinteressante coloca em destaque os Cosmticos Cientficos Figura 9: A Revista Superinteressante d destaque Gerao que pode chegar aos 130 anos

    Figura 10: A Revista Superinteressante coloca em destaque o Feitio do tempo

    Figura 11: A Revista Superinteressante anuncia o Aniversrio de 150 anos

    Figura 12: Livro didtico: destaque aos cuidados com a higiene e com a aparncia

    Figura 13: Pgina de introduo ao cap. 1 do livro Qumica & Sociedade (mdulo 4)

    Figura 14: Capa do livro Qumica & Sociedade (mdulo 4)

    Figura 15: A Revista Superinteressante informa: A Cincia manda pegar leve

    Figura 16: Livro Qumica & Sociedade (mdulo 4): Cuidados com a alimentao

    Figura 17: Introduo ao captulo 1 do livro Qumica & Sociedade (mdulo 1)

    Figura 18: A Revista Superinteressante apresenta o Patriarca da ecologia

    Figura 19: A Revista Superinteressante informa que Os mares esto subindo

    Figura 20: Livro Qumica & Sociedade: Cincia, Tecnologia e Sociedade

  • RELAO DE QUADROS

    Quadro 1: A estrutura da seo Superpolmica da Revista Superinteressante

    Quadro 2: Excertos de artigos das sees Superpolmica e Cartas do Leitor publicadas entre os anos 2001 e 2003.

    Quadro 3: Artigo de Opinio da seo Superpolmica de dez/2001: Hipocrisia faz mal sade.

    Quadro 4: Cartas do leitor referentes ao artigo Hipocrisia faz mal sade Quadro 5: Temas/assuntos abordados em reportagens da Revista Superinteressante em 1997

    Quadro 6: Alguns assuntos e reportagens de capa da Revista Superinteressante em 2002

    Quadro 7: Reportagens sobre o tema sade cuidados com aparncia/esttica e hbitos saudveis. Revista Superinteressante (1997 at 2004)

    Quadro 8: Alguns temas/contedos sobre o tema sade cuidados com aparncia/esttica e hbitos saudveis, encontrados nos livros didticos.

    Quadro 9: Reportagens da Revista Superinteressante que focalizaram o tema Meio Ambiente, entre os anos de 1997 e 2004.

    Quadro 10: Alguns temas/contedos relativos ao meio ambiente cuidados e preservao ambiental, extrados de livros didticos de Qumica.

  • RELAO DE APNDICES

    APNDICE 1 Quadro A: Ttulos das matrias mensais de capa da Revista Superinteressante, no perodo de setembro de 1987 at dezembro de 1989 Quadro B: Ttulos das matrias mensais de capa da Revista Superinteressante, no perodo de no perodo de janeiro de 1990 at dezembro de 1994 Quadro C: Ttulos das matrias mensais de capa da Revista Superinteressante, no perodo de no perodo de janeiro de 1995 at dezembro de 1999 Quadro D: Ttulos das matrias mensais de capa da Revista Superinteressante, no perodo de no perodo de janeiro de 2000 at dezembro de 2004 APNDICE 2 Quadro E: Todas as chamadas de capa de setembro de 1987 at dezembro de1989 Quadro F: Todas as chamadas de capa de janeiro de 1990 at dezembro de1994 Quadro G: Todas as chamadas de capa de janeiro de 1995 at dezembro de 1999 Quadro H: Todas as chamadas de capa de janeiro de 2000 at dezembro de 2004 APNDICE 3 Quadro I: Organizao das matrias de capa de cada ms, no perodo de setembro de 1987 at dezembro de 2004 em funo da temtica tratada, com destaque em negrito para a matria principal de capa.

    APNDICE 4 Quadro J: Matrias/reportagens de capa da Revista Superinteressante nos anos de 1987 at 2004 tratando sobre Meio Ambiente e Sade Quadro L: Matrias/reportagens de capa da Revista Superinteressante nos anos de 1987 at 2004, sobre as temticas Meio Ambiente e Sade.

    APNDICE 5 Quadro M: Temas/assuntos/contedos do livro Qumica e Aparncia: A qumica envolvida na higiene pessoal, da Coleo Qumica no Corpo Humano (Ed. Saraiva, 2004) Quadro N: Temas/assuntos/contedos dos mdulos (1, 2, 3 e 4) da coleo Qumica & Sociedade. Ed. Nova Gerao. 2003/2004. Quadro O: Temas/assuntos/contedos, unidades (5, 6, 7, 8, 9) do livro Qumica & Sociedade. Ed. Nova Gerao. 2005.

    APNDICE 6 Quadro P: Levantamento das Temticas Sade e Meio Ambiente em Livro Didtico de Qumica tradicional (Peruzzo, T. e Canto, E. Ed. Moderna, 1999/2002/2003) Quadro Q: Levantamento das Temticas Sade e Meio Ambiente em Livro Didtico de Qumica tradicional (Fonseca, M. R. M. da. Ed. FTD, 2001) APNDICE 7 Quadro R: Parmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental: apresentao dos Temas Transversais (PCNs, 1998) APNDICE 8

  • Quadro S: Tema Transversal Meio Ambiente (PCNs, 1998, p. 169-273) Quadro T: Tema Transversal Sade (PCNs, 1998, p. 249-279) APNDICE 9 Quadro U: Parmetros Curriculares Nacionais: Orientaes Complementares: As Competncias da Qumica (PCNs, 2002, p. 89-93) Quadro V: Conhecimentos qumicos, habilidades e valores da vida comum (PCNs: Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio - Contedos de Qumica, 2006, p. 113-114) Quadro X: Conhecimentos/habilidades/valores relativos histria, filosofia da Qumica e s suas relaes com a sociedade e o ambiente (PCNs: Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio - Contedos de Qumica, 2006, p.115).

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ..................................................................................................... 14 2 A COMPOSIO DE UM CENRIO TERICO .................................................. 23 2.1 DELINEANDO UM PANORAMA SOCIAL PARA A CONTEMPORANEIDADE . 23

    2.2 UM DISCURSO FREQENTE EM EDUCAO: A NECESSIDADE DE MUDANAS ............................................................................................................. 33 2.3 A INOVAO NA EDUCAO ESCOLAR EM CINCIAS/QUMICA E A PERSPECTIVA DOS ESTUDOS CULTURAIS ........................................................ 50

    3. A CONFIGURAO DOS DADOS DA PESQUISA......................................... 61 3.1 O PROCESSO DE SELEO DE TEXTOS E CATEGORIAS PARA A ANLISE DA REVISTA............................................................................................. 63 3.2 O PROCESSO DE SELEO DE TEXTOS E CATEGORIAS PARA A ANLISE DOS LIVROS DIDTICOS ....................................................................... 67 3.3 O PROCESSO DE SELEO DE TEXTOS E CATEGORIAS PARA A ANLISE DOS PARMETROS CURRICULARES NACIONAIS ............................. 69 4 A REVISTA SUPERINTERESSANTE, LIVROS DIDTICOS DE QUMICA E OS PCNS: ALGUMAS LEITURAS INTERESSADAS ................................................... 72

    4.1 A QUEM SO ENDEREADOS OS MATERIAIS ANALISADOS ..................... 72 4.1.1 Superinteressante: quem l tambm , ou se torna superinteressante! . 73 4.1.2 Dinmico, prtico e fcil: o livro didtico para as pessoas curiosas que gostam e que querem aprender! ........................................................................... 77 4.1.3 Uma leitura dos PCNs: orientaes para quem delas precisar se valer .. 82

    4.2 ESTARIA HAVENDO UMA ESCOLARIZAO DA MDIA? .............................. 84 4.2.1 A Revista Superinteressante: o jornalismo cientfico na interface comunicao/educao ......................................................................................... 86 4.2.2 Livros com editorao de revistas. Afinal, esses so livros ou revistas? ................................................................................................................................... 89 4.2.3 Os jornais, filmes, vdeos, programas de tev, livros e revistas: estratgias para motivar a aprendizagem na escola .......................................... 97

  • 13

    4.3 REPRESENTAES DE CINCIA E TECNOLOGIA NA EDUCAO ESCOLAR EM CINCIAS .......................................................................................................... 99 4.3.1 O cotidiano ganha cientificidade na Revista Superinteressante um exame das sees Artigos de Opinio e Cartas do Leitor ............................... 100 4.3.2 Cincia, tecnologia e sociedade: temas destacados nos livros didticos ................................................................................................................................. 110 4.3.3 Os PCNs que abordam as Cincias da Natureza, Matemtica e suas Tecnologias ........................................................................................................... 113

    5 NOVAS TEMTICAS INTEGRANDO OS CONTEDOS ESCOLARES ....... 115 5.1 COMO SE INSTITUEM OS CONTEDOS ESCOLARES? ............................. 115 5.2 APONTANDO MUDANAS NAS TEMTICAS NA REVISTA SUPERINTERESSANTE ........................................................................................ 121

    5.3 NOVOS MODOS DE APRESENTAR A QUMICA NOS LIVROS DIDTICOS ................................................................................................................................. 128

    5.4 OS PCNs E OS TEMAS TRANSVERSAIS ...................................................... 136

    6 UMA NOVA FORMA DE ARTICULAR A QUMICA TECNOLOGIA: FOCALIZAR OS CUIDADOS NECESSRIOS SADE E AO MEIO AMBIENTE ................................................................................................................................. 145

    6.1 HBITOS SAUDVEIS, CUIDADOS COM O CORPO E COM A APARNCIA COMO INDICATIVOS DE SADE: LOCALIZANDO A QUMICA NESSA PROPOSTA! ........................................................................................................... 145 6.1.1. A Indstria da beleza e dos cuidados com o corpo direcionados manuteno da juventude, seriam indicativos de sade? ............................... 151 6.1.2. preciso decidir por hbitos saudveis e optar pela sade ................. 165 6.2 RESPONSABILIZAR-SE PELA PRESERVAO AMBIENTAL: UM PROPSITO DESTACADO NA EDUCAO ESCOLAR ............................................................ 180 7 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................. 198 REFERNCIAS ...................................................................................................... 205 APNDICES ........................................................................................................... 213

  • 1 INTRODUO

    ...a cultura tornou-se a fora pedaggica por excelncia, e sua funo como uma condio educacional mais ampla para o aprendizado crucial para a aplicao de formas de alfabetizao dentro de diferentes esferas sociais e institucionais, pelas quais as pessoas definem a si mesmas e sua relao com o mundo social (GIROUX, 2003, p. 19).

    O texto citado no incio dessa tese de doutorado indica o pensamento que, desde a produo de minha dissertao de mestrado, desenvolvida neste mesmo Programa de Ps-

    Graduao (PPGEDU/UFRGS, 2001), orienta as pesquisas que tenho feito no campo da Educao. Cabe lembrar que em minha dissertao de mestrado, realizei um estudo sobre prticas que considerei educativas, desenvolvidas por uma empresa estatal petrolfera. Naquela ocasio, analisei alguns programas e projetos produzidos por tal empresa, comumente utilizados por professores/as e alunos/as (especialmente por professores que lecionam em Canoas e adjacncias) como recursos auxiliares s suas aulas de Cincias/Qumica.

    A anlise que fiz, possibilitou-me ver a diversidade de temas, aspectos, fatores e,

    principalmente, de questes que atravessam tais propostas, bem como colocar em evidncia o papel que certas aes culturais mais amplas, usualmente no consideradas educativas, assumem relativamente a prticas escolares (compreendidas aqui como as que integram as programaes curriculares das escolas, ou propostas voltadas declaradamente ao ensino). Quero destacar, desde j, que postulo, tal como Giroux (1995), que a escola no se configura como a nica instncia do social a atuar na constituio/produo dos sujeitos e de suas identidades e, tambm, que as aprendizagens no esto associadas apenas ao cognitivo, como algumas propostas e teorizaes consideram, aspectos esses que procuro explicitar melhor ao longo deste estudo.

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    Ressalto, ainda, introdutoriamente, que h algumas prticas pedaggicas no escolares que, tradicionalmente, tm sido associadas ao ensino de Cincias/Qumica, estando entre essas as que estudei em minha dissertao de mestrado aes executadas por uma empresa petrolfera que, embora atravessadas pelo marketing da empresa, se voltam proposio de prticas educativas que explicitamente buscam ensinar.

    Neste estudo, volto a examinar instncias que se voltam ao educativo, como a Revista

    Superinteressante1, uma revista direcionada ao pblico em geral, ao considerar que a educao se processa em diversos mbitos. Pretendi, ainda, nesta tese, transitar por propostas, tais como as orientadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais os PCNs , documento produzido pelos rgos oficiais de ensino, tomando-o como um artefato cultural direcionado

    s prticas escolares, bem como os livros didticos de Qumica. Busquei indicar que em todos esses materiais circulam discursos marcados pelos termos mudana e inovao, termos

    esses que impregnam, tambm, textos de propostas e projetos de ensino acadmicos. Um aspecto que inclusive me surpreendeu foi encontrar tambm na mdia e, especialmente, na mdia que se ocupa de divulgao cientfica, tal como a revista Superinteressante2, discursos freqentes no campo pedaggico, tal como esse da mudana e da inovao.

    Nesta tese de doutorado, minha inteno foi colocar em articulao os trs artefatos culturais j citados, que entendo atuarem na produo e acentuao de interesses sobre determinados temas/assuntos, os quais no apenas passaram a ser marcados como pertinentes escola, mas, tambm, a constituir a pauta dos textos de divulgao cientfica da revista referida. interessante indicar como materiais didticos direcionados a nortear os planejamentos de ensino dos professores/as que atuam na educao em Cincias, mais especificamente no ensino mdio, incorporaram tais temas a partir dos anos de 1990.

    Assim, busquei compreender como o discurso pedaggico que versa sobre mudanas na educao, especialmente o enunciado a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional n 9394/96, e nos documentos que instituem os Parmetros Curriculares Nacionais

    1 Esta revista organizada pela Editora Abril, situada em So Paulo, Brasil.

    2 Refiro que uso com ressalvas o termo divulgao cientfica, por considerar que as revistas que publicam textos

    cientficos fazem mais do que divulgar a Cincia elas so, tambm, produtoras da Cincia que divulgam, pois tal como Ripoll e Wortmann (2001), vejo a produo dos textos nas revistas de divulgao cientfica como prticas produtoras de significados. No entanto, a prpria Revista que examino nesse trabalho assim se apresenta: como revista de divulgao cientfica, sendo esse o motivo pelo qual uso essa denominao. .

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    (PCNs)3, passou a dar relevncia a temas/assuntos que focalizam especialmente o meio ambiente e a sade, associando-os a aspectos como a sexualidade, a tica, o consumo e a tecnologia. Alm disso, fiquei atenta a como tal discurso foi associado busca de solues para a organizao e o desenvolvimento de propostas de ensino mais "modernas e avanadas",

    por tratarem de questes que permitiriam o alcance de um ensino mais conectado s exigncias do mundo contemporneo.

    Cabe ainda indicar que textos usualmente considerados como voltados divulgao cientfica entre esses h livros, mas tambm revistas tm focalizado cada vez mais freqentemente temas indicados nas propostas dos PCNs, marcando-os como mais atraentes e importantes para o conhecimento escolar. A inteno manifesta da veiculao de tais textos

    de prover o enriquecimento e a diversificao das atividades em sala de aula pelos/as professores/as.

    Os Parmetros Curriculares Nacionais, introduzidos no final da dcada de 1990, trazem em seus textos vrias indicaes nesse sentido, especialmente ao enfatizarem a importncia de promover-se a contextualizao dos contedos e da escola, atendendo, assim, ao que corriqueiramente referido como sendo as necessidades dos estudantes. E, em funo dessa inteno, tais textos colocaram em destaque, por exemplo, prticas escolares que envolvem o uso de livros paradidticos, de livros didticos vistos como alternativos aos livros didticos tradicionais, bem como o uso de revistas de divulgao cientfica.

    Minha experincia, ao longo do perodo em que atuei como professora de Qumica no ensino mdio e, nos ltimos anos, como professora de Qumica, de Estgio e de Laboratrio de Ensino de Qumica no ensino superior, tem-me permitido, defrontar com discursos que conclamam mudanas para a educao, especialmente, em textos que circulam nas escolas.

    Esses, muitas vezes, enfatizam que a soluo para os problemas de aprendizagem dos/as estudantes e de valorizao da escola liga-se necessidade de mudanas, as quais deveriam incluir o delineamento de um caminho capaz de possibilitar a formao de sujeitos autnomos, crticos e criativos, que se posicionem frente a problemas da realidade social;

    enfim, a mudana pretendida deveria voltar-se a educar para o alcance de uma forma de

    3 Os PCNs apresentam a traduo e a explicao de aspectos referentes Educao Bsica tratados na Lei.

    Esses documentos, contendo as diretrizes curriculares nacionais foram, a partir de 1998, tomados como parmetro de referncia para as discusses sobre a formulao dos projetos polticos pedaggicos das escolas e, tambm, como referncia para o planejamento da prtica docente nas salas de aula.

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    proceder frente s contingncias do mundo, usualmente resumida no jargo pedaggico educar para a cidadania.

    especialmente nesse sentido que algumas propostas justificam a importncia de buscarem-se recursos, mtodos e tcnicas "alternativas" para ensinar Cincias/Qumica, especialmente porque h, quase um "consenso", sobre serem os conhecimentos pertinentes a essas reas difceis e, tambm, desvinculados das preocupaes que referi no pargrafo

    anterior. Mas, deve-se indicar, ainda, que, aliado a tal discurso, ocorreu, nos ltimos 20 anos, a proliferao, no campo do ensino de Cincias, de outros discursos que salientam a necessidade de trabalhar-se o conhecimento em Cincias/Qumica visando a sua aplicao (quase imediata) vida das pessoas. Invoca-se, assim, um outro princpio, tambm bastante legitimado no ensino das cincias: a necessidade da Cincia aplicar-se ao cotidiano. No caso dos textos que examinei, tal dimenso aplicativa voltou-se indicao de cuidados a serem

    tomados com o meio ambiente, com a sade, com a esttica e com as tecnologias, bem como indicao da associao da tecnologia produo de bens e servios, os quais incluem tambm o consumo.

    Ouso afirmar que os princpios referidos passaram, inclusive, a ocupar o centro de propostas de reviso e de reforma curriculares institudas pelos rgos oficiais secretarias de educao em nveis federal, estadual e municipal pela freqncia com que esses figuram em documentos produzidos por tais rgos. Assim, especialmente, a partir da promulgao da nova LDB (1996), e da conseqente formulao das diretrizes curriculares, pode-se perceber a preocupao de incluir-se entre os contedos escolares temas e assuntos que anteriormente

    eram at bem distanciados da escola.

    Foi para buscar compreender este discurso de mudana, que coloca em destaque a

    necessidade de transitar-se em novos conhecimentos para melhor adequar o ensino s necessidades da vida cotidiana, que dediquei-me a examinar a emergncia de algumas temticas, ao longo dos anos de 1990, em uma revista de divulgao cientifica que tem grande circulao nas escolas a Revista Superinteressante. Busquei mostrar como essa revista

    sempre colocou em destaque alguns temas que me parecem ser muito prximos ao que foi ou ensinado em Cincias/Qumica, destacando o quanto os textos de divulgao cientfica constantes nessa revista so considerados atraentes e interessantes pelos/as professores/as. Tais qualidades, preciso referir, decorrem, especialmente, de sua editorao, o que diferencia a revista, na maior parte das situaes das abordagens assumidas nos tradicionais

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    livros didticos, com suas edies inspidas e pouco dinmicas. Assim, a presena dessas revistas em sala de aula, parece oferecer mais cor e movimento s atividades escolares. Alm disso, com freqncia, os temas focalizados na Revista so vistos por muitos/as professores/as como mais atuais do que os tratados nos livros4, sendo esse aspecto

    constantemente invocado para justificar a utilizao dessas produes como material didtico nas escolas.

    Ou seja, ter-me detido na Revista Superinteressante, em meio a tantos outros produtos miditicos, foi uma opo que decorreu, especialmente, do reconhecimento que fiz dessa revista como um recurso didtico usual nas escolas. Eu mesma, ao longo da minha prtica como professora de Qumica no ensino mdio, recorri inmeras vezes Revista Superinteressante como material didtico para desenvolver, de um modo que me parecia ser mais ampliado e interessante, os contedos programticos. Assim, meus alunos e alunas

    faziam uso dessa revista para pesquisar assuntos tratados em minhas aulas de Qumica. Alis, quero destacar que esse tipo de procedimento sempre me pareceu ser uma excelente alternativa didtica para dinamizar e tornar as aulas mais atraentes. Ento, optar por fazer uma anlise da Revista Superinteressante, e no de outras revistas, foi uma deciso que se associou ao interesse que essa mdia sempre me despertou nas diferentes ocasies em que nela busquei "auxlio" para desenvolver meu trabalho docente e, tambm, como j indiquei, pela importncia conferida Revista por muitos outros/as colegas. Ns a vamos como um recurso para "melhorar" nosso fazer pedaggico, podendo-se afirmar que, muitas vezes, essa revista era considerada como um recurso diferente que nos auxiliaria a apresentar os contedos a

    serem desenvolvidos de forma mais criativa.

    Voltando a referir as intenes dessa tese, destaco que nela busquei analisar possveis

    ligaes entre os textos da Revista Superinteressante, os constantes em diferentes edies de livros didticos, especialmente de livros considerados inovadores, e os textos dos PCNs, especialmente os Parmetros Curriculares para o ensino de Cincias/Qumica e o documento que apresenta os chamados temas transversais, que percebi focalizarem assuntos

    que figuravam com freqncia na Revista Superinteressante e nos livros didticos que indiquei acima.

    4 Fao tal afirmao valendo-me de depoimentos assistemticos de professores que atuam no ensino fundamental

    e mdio, em cursos de formao inicial e continuada que acompanhei ou ministrei.

  • 19

    Saliento que no realizei anlises dos textos dos documentos oficiais, ou dos textos da revista, ou dos livros didticos, buscando ver quais deles poderiam ser configurados como os melhores ou mais adequados artefatos para o ensino escolar de Cincias/Qumica. Procurei destacar efeitos do discurso que chamei de o discurso para a mudana na educao, para

    entrelaar o jornalismo cientfico, praticado na Revista Superinteressante, com produes voltadas especificamente dimenso escolar como os livros didticos e as proposies

    oficiais para o trabalho escolar contidas nos PCNs, detendo-me, especialmente, na educao em Qumica, e na indicao de como tal discurso volta-se, nos tempos atuais, discusso de temas configurados como mais aplicados a situaes do dia-a-dia.

    Procurei fazer esse trabalho de anlise considerando um cenrio no qual a escola, uma

    instituio legitimada pela sociedade para ensinar crianas, jovens e adultos, entendida, tal como o currculo escolar, como uma inveno da modernidade, a qual envolve formas de

    conhecimento cujas funes consistem em regular e disciplinar o indivduo (POPKEWITZ, 1994, p.186). Especialmente na escola, circulam discursos que instituem verdades e legitimam prticas que esto, constantemente, sendo avaliadas e questionadas com relao a uma recorrente necessidade de mudanas na educao, as quais so vistas como reorganizaes e rearranjos capazes de configurar solues para os problemas de desinteresse dos estudantes, bem como da pouca valorizao hoje atribuda escola.

    Nesse sentido, diferentes discursos o pedaggico, o poltico, e at os discursos mdico e miditico, entre outros destacam a necessidade de mudana como uma forma de promover a melhoria da qualidade do ensino, a melhoria da qualidade da sade, bem como de

    melhor prover a formao dos sujeitos para o mercado de trabalho e de atuar na formao da cidadania. Pode-se indicar que todos esses discursos atuam na instituio de verdades acerca

    do papel da escola na sociedade e que, mesmo que alguns dos enunciados que os constituem configurem-se como prticas diferentes, ao serem veiculados por diferentes instituies, tais discursos vo instituindo aes e decises sobre o que passa a ser visto como agentes de mudana. Assim, reflexes acerca dos discursos pedaggicos que constituem a educao

    escolar na contemporaneidade se do em meio a uma urgncia desvairada da economia em produzir novas sries de produtos que cada vez mais paream novidades, tal como enfatizou

    Jameson (1996, p. 30), ao tecer comentrios acerca das novas necessidades surgidas nas sociedades ps-modernas.

  • 20

    A argumentao que fui tecendo para a composio desta tese de doutorado, se constituiu, ento, em uma tentativa de apontar como a Revista Superinteressante (e seus textos de divulgao cientfica), ao lado de alguns livros didticos de Qumica mais recentes e dos textos que constituem os Parmetros Curriculares Nacionais (especialmente os que se referem aos Temas Transversais e s diretrizes indicadas para o ensino das Cincias da Natureza, Matemtica e suas Tecnologias Ensino Mdio) tm produzido e consagrado novos contedos que passaram a ser ensinados no ensino mdio, ao focalizarem determinados temas/assuntos configurando-os ao mesmo tempo como atuais e necessrios. Alm disso, busquei destacar que nesse propsito de instituir mudanas na educao, que se apresentou especialmente nos textos pedaggicos a partir da segunda metade dos anos de 1990, o centro foi o contedo temtico a ser focalizado nas programaes curriculares.

    Ao colocar em articulao os textos da revista, dos livros e dos documentos oficiais,

    procurei indicar como determinados temas/assuntos emergiram e ganharam importncia nos currculos escolares, ao serem marcados como mais atuais e contemporneos em diferentes instncias escolares e no escolares e, tambm, como se promoveu a associao de tais temas formao de estudantes mais crticos e informados acerca das questes que afligem o mundo neste tempo.

    Quero ressaltar, a exemplo do que fazem autores como Popkewitz (1997), ao discutir outras questes relativas a currculo, que a emergncia de novos contedos/temas no currculo escolar da escola mdia no se deu apenas por fora de uma legislao operacionalizada em Diretrizes Curriculares que disseram s escolas e a seus/suas

    professores/as que temas deveriam ensinar. Como aponta esse mesmo autor, as mudanas na escola no dizem respeito apenas mudana de idias das prticas organizacionais (p. 28); sendo assim, concentrei minha ateno em uma interessante conjugao de marcaes que culminaram em uma especial focalizao de temas/assuntos. Registrei, por um longo perodo (1987 at 2004), os temas mais focalizados pela Superinteressante. Ao mesmo tempo, examinei alguns livros didticos de Qumica, editados entre 1999 e 2005, encontrando, entre esses, alguns bastante diferenciados dos tradicionalmente utilizados pelos/as professores/as. Constatei, ento, uma espcie de enredamento entre os tpicos focalizados nesses dois

    diferentes artefatos culturais, especialmente a partir da segunda metade dos anos de 1990.

    Ao analisar as sugestes dos PCNs (1998 a 2006), defrontei-me, novamente, com alguns desses temas e assuntos. E esse foi um dos motivos que me levou a buscar refletir mais

  • 21

    detidamente acerca de processos e instncias que considero terem atuado na seleo/produo/organizao dos saberes sobre os quais estarei me detendo. O estudo focaliza, assim, associaes que fao entre PCNs, livros didticos e revistas tendo como pano de fundo o ensino de Cincias/Qumica; ou seja, detenho-me na anlise de diferentes artefatos culturais, buscando ver como neles se marca, e nesse sentido se produz e institui, os temas e assuntos que, na situao que examinei, passaram a ser configurados como passveis de ser

    abordados na escola. Considerei, especialmente, como neste processo foram destacados temas referentes tecnologia associando-a discusso do consumo, educao ambiental e, ainda, aos cuidados que preciso ter-se com o corpo frente sade, mas, tambm, em relao esttica, nfases pouco comuns at ento na educao escolar.

    Essa tese de doutorado est organizada em sete captulos. Seguindo-se a essa Introduo, que considerei ser o primeiro captulo, est o captulo intitulado A composio de um cenrio terico, no qual trao, sucintamente, um panorama da sociedade contempornea, considerando vises de diferentes autores sobre algumas das questes configuradas como importantes para as sociedades ocidentais. Tambm aponto alguns discursos que afirmam a necessidade de operarem-se mudanas curriculares e indico teorizaes que fundamentam as anlises empreendidas sobre discurso e enunciados de discurso e sobre articulao, tal como esses tm sido caracterizados nos Estudos Culturais em Educao. Finalizo o captulo, apresentando as questes de pesquisa que norteiam esse trabalho.

    No captulo seguinte, intitulado A configurao dos dados da pesquisa, indico os critrios utilizados para a escolha dos recortes de tempo procedidos para a realizao das

    anlises, bem como indico como selecionei os temas sobre os quais me detive nessas anlises tanto em relao Revista Superinteressante, quanto aos livros didticos de Qumica e documentos e textos nos Parmetros Curriculares Nacionais.

    No captulo 4, intitulado A Revista Superinteressante, alguns livros didticos de Qumica e os PCNs: algumas leituras interessadas, discuto o endereamento desses artefatos e aponto que se poderia pensar em um processo de escolarizao realizado na e atravs da

    mdia. Friso que, alm da linguagem da mdia, tambm os temas nela tratados tm sido incorporados pela escola, especialmente os que promovem associaes entre cincia,

    tecnologia, sociedade e educao escolar.

    No captulo 5, intitulado Novas temticas integrando os contedos escolares, procuro indicar alguns modos e estratgias de instituio dos contedos curriculares. Para tanto,

  • 22

    descrevo alteraes ocorridas nas temticas abordadas pela Revista Superinteressante, aponto a atualizao processada nos livros didticos de Qumica, a partir da incluso de novos contedos, e apresento e comento a insero dos temas transversais, como um novo componente a ser considerado nas aes curriculares, a partir dos PCNs.

    No captulo 6, intitulado Uma nova forma de articular a qumica tecnologia: focalizar os cuidados necessrios sade e ao meio ambiente, apresento as anlises desenvolvidas em textos da Revista Superinteressante e em livros didticos de Qumica relativamente abordagem dos temas sade e meio ambiente, mostrando como esses materiais produzem novos significados para os contedos escolares quando tratam os cuidados com o corpo e com a aparncia como indicativos de cuidados com a sade, e,

    tambm, quando consideram os cuidados com o meio ambiente como requisitos para o desenvolvimento da cidadania que, por sua vez, seria promovida na relao dos sujeitos com o meio ambiente.

    No captulo 7, finalizo a tese, trazendo Algumas consideraes de carter mais conclusivo sobre a investigao que desenvolvi

  • 2 A COMPOSIO DE UM CENRIO TERICO

    Na leitura da lio no se busca o que o texto sabe, mas o que o texto pensa. Ou seja, o que o texto leva a pensar. Por isso, depois da leitura, o importante no que ns saibamos do texto ou o que ns pensamos do texto, mas o que com o texto, ou contra o texto ou a partir do texto ns sejamos capazes de pensar (LARROSA, 1998, p. 177).

    2.1 DELINEANDO UM PANORAMA SOCIAL PARA A CONTEMPORANEIDADE

    Valendo-me da possibilidade de poder considerar um pensamento plural, mltiplo e capaz de produzir diferentes formas de olhar, desenvolvi esse trabalho de pesquisa que aborda e analisa aspectos concernentes educao escolar em Cincias/Qumica, procurando nela localizar o discurso pedaggico da mudana em educao, que me parece caracterizar o

    incio dos anos 2000. Para tanto, considerei ser necessrio apresentar alguns aspectos recorrentemente indicados por pensadores contemporneos como caractersticos s sociedades

    contemporneas na virada do sculo XX para o sculo XXI. Proponho-me, nesse captulo, a delinear sucintamente tal cenrio, valendo-me de posies enunciadas por autores tais como

    Stuart Hall, Zygmunt Bauman, Gianni Vattimo, Jess Martn-Barbero, Michael Hardt, David Harvey e Armand Matellard, entre outros.

    Hardt e Negri, em sua obra Imprio (2002), apontam que, se por um lado fcil reconhecer as transformaes econmicas, culturais e polticas no mundo contemporneo, por

    outro, difcil compreend-las. Os autores afirmam que a maior contribuio do pensamento ps-moderno a indicao de uma ruptura com a soberania moderna o afastamento dos

    binrios modernos e das identidades modernas e a orientao para um pensamento de pluralidade e multiplicidade (p.161), sublinhando, ainda, que as mudanas econmicas e

  • 24

    culturais da sociedade ps-moderna implicam novas formas de racismo, novas concepes de identidade e novas redes de comunicao.

    Bauman (2003), socilogo que tambm estuda as sociedades, vai enfatizar o trabalho nelas processado na direo de desmontar realidades herdadas tal como a sociedade

    moderna5 tambm teria buscado fazer , ressaltando, no entanto, que os objetivos buscados nestes dois tempos no seriam os mesmos, pois na modernidade ambicionava-se construir

    uma realidade permanente. Assim, ento, para esse mesmo autor, nos tempos atuais esse processo de desmontagem da realidade seguiria padres diferentes dos assumidos na modernidade, especialmente, por envolver a permanente reconfigurao de realidades. Prosseguindo em sua argumentao, Bauman (2001) destaca que a sociedade hoje no menos moderna do que era no incio do sculo XX, destacando, porm, que ela moderna de um modo diferente, pois sua modernidade reside em uma compulsiva e obsessiva,

    contnua, irrefrevel e sempre incompleta modernizao; a opressiva e inerradicvel, insacivel sede de destruio criativa (p.36).

    A caracterizao que Bauman (2003) faz da sociedade contempornea bastante peculiar se comparada a que outros autores assumem. O autor usa, inclusive, o termo "modernidade lquida" e no ps-modernidade para nome-la, mesmo sendo essa ltima expresso mais freqentemente utilizada para referir-se a essa sociedade6, afirmando, ao mesmo tempo, ser ele um estudioso da "ps-modernidade". Em seus textos, ele busca ento marcar esse momento como um movimento voltado compreenso de um tipo de sociedade (um tipo de condio humana). No entanto, ele diz no se considerar um ps-modernista, uma vez que, no seu entendimento, ser um ps-modernista significaria ter uma percepo do mundo que descarta, entre outras coisas, a idia de um tipo de regulamentao normativa da

    comunidade humana. O autor tambm afirma que essa normatividade assumiria que todos os tipos de vida humana se eqivaleriam, que todas as sociedades seriam igualmente boas ou ms, e que em funo disso no seria possvel a realizao de julgamentos sobre questes relativas a modos de vida, a partir da crena de que no haveria o que ser debatido.

    O autor destaca, ento, duas caractersticas principais para apresentar essa nova modernidade que ele caracteriza como a modernidade lquida. A primeira refere-se perda

    5 Chamada pelo autor de modernidade slida.

    6 Stuart Hall (1997), Fredric Jameson (1996), Jos Maria Mardones (1994), Jean-Franois Lyotard (2000) e

    Gianni Vattimo (1994), entre outros, fazem uso desse termo em seus trabalhos. .

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    da iluso moderna de que h um estado de perfeio a ser atingido (amanh, no prximo ano ou no prximo milnio); ou seja, a perda do sonho de alcanar-se uma sociedade boa, justa e sem conflitos e, ainda, a perda da esperana de que as questes humanas se tornem totalmente transparentes porque se sabe tudo o que deve ser sabido (p. 39) sobre elas. A segunda caracterstica refere-se forma como as aes e tarefas humanas passaram a ser vistas como estando merc das aes individuais, pois, ainda que a idia de

    aperfeioamento pela ao legislativa da sociedade, como um todo, no tenha sido completamente abandonada, a nfase se transladou decisivamente para a auto-afirmao do indivduo (p.39). Isso implicaria alterar o discurso tico/poltico de buscar alcanar-se uma sociedade justa para a direo de assumir-se um discurso que enfatiza os direitos humanos, uma vez que o foco desse discurso estaria posicionado no direito de os indivduos permanecerem diferentes e de escolherem vontade seus prprios modelos de felicidade e de

    modo de vida adequado (p.39).

    Haveria, assim, e agora valho-me do pensamento de Hall (1997a) para comentar o que foi acima colocado, uma mediao da vida social pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mdia e pelos sistemas de comunicao globalmente interligados (p. 80), que permitiria que, cada vez mais, as identidades se tornem desvinculadas de lugares, histrias e tradies especficas, levando os sujeitos a serem confrontados por uma gama de diferentes identidades (p.80).

    Um outro aspecto que tem sido bastante discutido por grande parte dos autores citados, quando esses buscam caracterizar as chamadas sociedades ps-modernas, diz respeito ao

    poder que atribuem aos meios de comunicao e, especialmente, existncia de uma nova lgica posta em ao na comunicao e em seus efeitos. Martn-Barbero (2003), por exemplo, diz que h na mdia espaos de socializao que instituem novos modos de vestir e, tambm, novos modos de pensar a crtica social. Diz, ainda, que o que era reconhecido como revoluo marxista, na produo e na luta de classes, agora se manifesta como revoluo na sociedade de consumo, considerando as mudanas que isso traz para a compreenso da

    vida social contempornea. nessa direo que Martn-Barbero (2003) faz a seguinte afirmao:

    ...em face da impossibilidade de uma sociedade chegar a uma completa unidade cultural, ento, o importante que haja circulao. E quando existiu maior circulao cultural que na sociedade de massa? Enquanto o livro manteve e at reforou durante muito tempo

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    a segregao cultural entre as classes, foi o jornal que comeou a possibilitar o fluxo, e o cinema e o rdio que intensificaram o encontro (p. 70).

    Para esse autor (2003), nem famlia, nem a escola seriam, ento, nos tempos atuais, os mais importantes espaos da socializao, pois os mentores dessa nova lgica seriam os meios de comunicao. Como ele tambm afirma, h, na atualidade, um movimento crescente de

    especializao comunicativa do cultural (p.14), produzindo bens simblicos que se ajustam aos pblicos (consumidores). Nesse sentido, a cultura escaparia da compartimentalizao, perpassando a vida social por inteiro (p.14), pois, tanto a arte quanto a sade, ou tanto o trabalho quanto a violncia, se configuram como prticas culturais.

    Vattimo, especialmente no texto Posmodernidad: Una sociedad transparente? (1994), tambm discute o papel que os meios de comunicao tm nas sociedades contemporneas.

    Ele analisa o papel determinante que os meios de comunicao possuem relativamente ao surgimento da sociedade ps-moderna, destacando a impossibilidade de conceber-se a

    histria como um discurso unitrio, j que essa , tambm, cada vez mais, o resultado da invaso dos meios de comunicao (p. 13). Assim, a sociedade dos meios de comunicao abriria caminho para um ideal de emancipao que tem em sua prpria base a oscilao e a pluralidade. Alm disso, para esse autor, o mundo dos objetos mensurveis e manipulveis pela cincia tcnica tem sido, no final das contas, o mundo das mercadorias, das imagens, o mundo fantasmagrico dos meios de comunicao (p. 16).

    A discusso que Vattimo (1994) faz com relao a meios de comunicao, tais como o jornal, o rdio e a televiso, entre outros, tem sido determinante no entendimento de que a sociedade ps-moderna est localizada em um espao e em um tempo, no qual a comunicao adquiriu uma nova dimenso e essa pode explicar, em parte, a dissoluo daquilo, que tem sido referido pelo filsofo francs Jean Franois Lyotard (2000), como grandes narrativas.

    Diante das consideraes que venho fazendo, pode-se dizer que os meios de

    comunicao de massa, as mdias, bem como as formas alternativas de gerenciamento da vida social, possibilitadas pelas tecnologias de informao, so, hoje, um modo de organizao da vida social. Vattimo (1994), tal como Martn-Barbero (2003), caracteriza a sociedade ps-moderna como a sociedade dos meios de comunicao e afirma que esses meios posicionam a sociedade como mais transparente, no no sentido de ser mais consciente de si ou mais

    ilustrada, mas como uma sociedade mais complexa e mais catica, sendo que nesse caos

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    residiriam nossas esperanas de emancipao (p. 13). O relativo caos que Vattimo (1994) refere , para Harvey (1996), o que estabelece condies para a aceitao do efmero, do fragmentrio, do descontnuo e do prprio catico.

    Nas consideraes de todos esses autores, destacado como houve, na maior parte das

    sociedades ocidentais contemporneas (exceo feita aquelas que possuem regimes polticos totalitrios), um crescimento impressionante do acesso informao e s produes culturais. Inmeras so as anlises que apontam na direo dos efeitos dessa internacionalizao da mdia. Mattelard (2004) salienta como esse tema tem sido objeto de investigao no campo dos Estudos Culturais e quanto, nesses estudos, a concepo do espao comunicacional mundial assume uma dimenso estratgica (p.176), pois, como esse mesmo autor destaca, as redes e indstrias da cultura e da comunicao so, em princpio, novas formas de construo da hegemonia (p.196). Para ele, no entanto, no se perde, nessas situaes em que a cultura e a diversidade cultural ganham centralidade, a importncia das lutas sociais arroladas pelos movimentos antiglobalizao. Ao contrrio, ao conceber-se a cultura como sendo constituda scio-historicamente, torna-se possvel consider-la como bem pblico comum, a exemplo da educao, do meio ambiente, da gua e da sade (p. 197).

    J as condies para a aceitao do efmero, tais como so vistas por Harvey (1996), podem ser explicadas pela intensa compresso do tempo-espao processada na ps-modernidade, pois isso est diretamente associado vida que temos levado nas duas ltimas dcadas, sendo um dos seus efeitos a acentuao da volatilidade e efemeridade de modas, produtos, tcnicas de produo, processos de trabalho, idias e ideologias, valores e prticas

    estabelecidas (p. 258). Pode-se explicar, dessa forma, a facilidade com que descartamos tanto bens e servios, quanto costumeiras prticas da vida social e cultural. E nessa

    direo que encaminho a argumentao de que vivemos em uma sociedade globalizada, na qual a prtica do consumo no se limita aos bens materiais (embora seja inerente a esses), mas se institui como modo de vida.

    Como destacou Jameson (1996)

    (..)as teorias do ps-moderno tm uma grande semelhana com todas aquelas generalizaes sociolgicas mais ambiciosas que, mais ou menos na mesma poca, nos trazem as novidades a respeito da chegada e inaugurao de um tipo de sociedade totalmente novo (...) conhecida como sociedade de consumo, sociedade das mdias, sociedade da informao, sociedade eletrnica ou high-tech e similares (p.29).

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    Para Bauman (2001, p. 88), no grande mercado que o mundo hoje, no compramos apenas comida, sapatos, automveis ou itens de mobilirio. Para o autor, estarmos sempre buscando novos exemplos aperfeioados e novas receitas de vida , tambm, uma variedade

    do comprar, pois o desejo tem a si mesmo como objeto constante, e por essa razo est fadado a permanecer insacivel qualquer que seja a altura atingida pela pilha dos outros objetos fsicos ou psquicos (p.88). A sociedade de consumo vai, ento, se organizando, construindo posies para os sujeitos, em um processo que cultural, pois a cultura que passa a ser um elemento chave no modo como o meio ambiente domstico atrelado, pelo consumo, s tendncias e modas mundiais (HALL, 1997b, p. 22).

    A cultura entendida como organizadora de atividades, instituies e relaes sociais posicionada como central para as compreenses, explicaes e vises que temos ou teremos sobre o mundo social. Essas compreenses podem ser observadas, como indica Hall (1997b) e os autores que anteriormente citei, nas transformaes da vida cotidiana, nas mudanas de estilos de vida, de ritmos, de motivaes, de riscos e de recompensas que acompanham, por

    exemplo, o declnio do trabalho formal e o crescimento de outros tipos de ocupaes. Assim, podemos ver a organizao da vida social a partir de sistemas ou cdigos de significao que do sentido s nossas aes (HALL, 1997b, p.16).

    Nossa ateno, nesse universo no qual precisamos estar sempre adquirindo novidades bens materiais, produtos, servios, modas e tantas outras produes da cultura , acaba se dirigindo produo de necessidades que mobilizam o desejo e a fantasia para a poltica da distrao como parte do impulso para manter nos mercados de consumo uma demanda capaz de conservar a lucratividade da produo capitalista (HARVEY, 1996, p. 64).

    Para Bauman (2001), as interpretaes que tomam a necessidade de consumo como uma manifestao importante, destacada da revoluo ps-moderna dos valores e de instintos materialistas, ou como um modo de buscar prazer, correspondem, apenas, a uma parte da

    questo; a outra parte a compulso, transformada em vcio de comprar, uma luta morro acima contra a incerteza aguda e enervante e contra um sentimento de insegurana incmodo

    e estupidificante (p. 95).

    H, nesse cenrio, um processo constante de reestruturao dos discursos acerca de novos modos de compreenso do funcionamento da sociedade, a partir da instituio de

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    novos significados para prticas culturais, o que implica, muitas vezes, o abandono de regras e padres tomados ao longo do tempo como referncias. Maffesoli (1994) ressalta, ento, a importncia de atentar-se para o que, muitas vezes, foi tomado como formas banais da existncia, tais como o fenmeno culinrio, o jogo das aparncias, os pequenos momentos festivos, os passeios dirios, o cio, etc., (que) j no podem ser considerados como elementos frvolos ou sem importncia da vida social (p.105).

    E tambm nesse sentido que Urdanibia (1994) diz que o termo ps-modernidade implica em uma advertncia de que as coisas no so como antes, tratando-se mais de uma condio do que de uma poca (p. 43). Uma condio na qual, novos produtos culturais substituem, removem e tiram de foco produtos culturais at ento valorizados, abreviando o

    tempo de uso de produtos, servios e interesses, e na qual o envelhecimento do novo, antes um longo processo, leva cada vez menos tempo, o novo tende a ficar velho, a ser

    alcanado e ultrapassado, instantaneamente (BAUMAN, 2005, p.145).

    Para Bauman (2005), o mercado de consumo (e o padro de conduta que ele exige) se adapta s presses e sedues do mercado, j que somos consumidores numa sociedade de consumidores e que a sociedade de consumidores a sociedade de mercado. No excerto abaixo, coloco em destaque afirmaes feitas por esse autor nessa direo:

    o mercado de consumo oferece produtos destinados ao consumo imediato, de preferncia para um nico uso, seguido de rpida remoo e substituio, de modo que os espaos de vida no fiquem congestionados quando os objetos hoje admirados e cobiados sarem de moda. Os clientes, confusos pelo turbilho da moda, pela atordoante variedade de ofertas e o ritmo vertiginoso de sua mudana precisam aceitar as garantias de que o produto atualmente em oferta a coisa, a coisa mais quente, o must, aquilo (com/em) que devem ser vistos (BAUMAN, 2005, p. 146).

    importante indicar que o acesso a bens de consumo de diferentes ordens, nos impele a estar sempre tomando decises em funo de demandas, exigncias e necessidades criadas pela propaganda, seja de bens e servios, seja de novas polticas de vida.

    A partir dessas consideraes, bastante introdutrias, acerca do cenrio da vida social nesta virada de sculo, busquei valer-me de algumas das questes apontadas, tais como o

    papel dos meios de comunicao, a centralidade que a cultura assume nas sociedades contemporneas, o modo como so construdas posies para os sujeitos na cultura e as mudanas de estilos de vida em funo da organizao da sociedade em torno do consumo,

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    para discutir aspectos que envolvem a educao escolar, especialmente, a educao em Cincias/Qumica neste incio do sculo XXI.

    A oferta de novidades, seja a contida nas mensagens atraentes da publicidade, seja em outras mdias, nos faz vidos por informaes que indiquem o que nos falta, o que

    precisamos aprender, o que estamos deixando de ter e de que modo isso se reflete na nossa vida cotidiana. em funo da tentativa de corresponder as expectativas da sociedade definidas nas prticas discursivas que instituem as finalidades das instituies que a escola anuncia mudanas. Essas, hoje, passam tambm pela aquisio de produtos e servios que visam melhorar a estrutura fsica da escola, mas, tambm, atender as demandas de consumo de professores/as e estudantes por materiais didticos mais atraentes, por conhecimentos

    mais aplicveis, por informaes mais teis, por espaos com aparatos tecnolgicos mais modernos e, principalmente, por prticas de vida cujos padres e normas so estabelecidos pela lgica do consumo.

    Na educao escolar, inserida nessa sociedade complexa, fluda e que tem no consumo um importante fator para movimentar a economia, a poltica, o desenvolvimento tecnolgico, h esse mesmo reconhecimento da necessidade do consumo de novidades, seja em relao a produtos e servios, seja em relao a projetos de ensino ou a materiais escolares e didticos. Quanto s possibilidades de aquisio daquilo que est sendo ofertado, mesmo que reconheamos que muitos produtos do mercado sejam acessveis apenas a uma parcela reduzida da populao, o sonho do consumo, institudo especialmente pela publicidade, faz com que, desde as etapas mais iniciais da vida, seja enfatizada a necessidade de ir-se s compras, assim, vamos s compras na rua e em casa, no trabalho e no lazer, acordados e em sonhos (BAUMAN, 2001 p. 88). E essa postura tambm disseminada na e pela escola, tal como nas demais instituies da sociedade, uma vez que a prpria educao se tornou uma mercadoria, pois vendem-se, por exemplo, projetos de ensino, bem como diferentes artefatos escolares que incluem blocos, canetas e mochilas, muitos dos quais trazem neles estampados marcas de instituies ou de produtos, bem como personagens de filmes, entre outros.

    A indicao de ser a educao um produto de mercado, tal como outros tantos anunciados equipamentos eletrnicos (cada vez mais modernos), servios e tecnologias de comunicao ou produtos e servios para a melhoria da qualidade de vida pode ser vista no marketing de muitas instituies de ensino, que fazem propaganda da sua marca institucional

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    associando-a noo de qualidade7, de aprimoramento tecnolgico e de atualidade de seus projetos de ensino. Isso passa pela indicao da necessidade de mudana contnua de metodologias e tcnicas de ensino, mas, sobretudo, passa pela substituio de recursos materiais, bem como de interesses em relao ao que a escola precisa ensinar. As escolas, ao

    serem configuradas como prestadoras de servio s comunidades, tambm oferecem a essas seus recursos materiais e humanos na propaganda que apresenta tais instituies. Alm

    disso, uma outra forma de configurao da educao como produto de consumo pode ser encontrada nas representaes de educao que invadiram as revistas, os livros didticos, os livros paradidticos, as apostilas, os vdeos e CDs, entre outros. Em tais artefatos busca-se atender s expectativas das crianas e dos jovens que querem ter, que precisam consumir aquilo que est em destaque no mercado em diferentes momentos como, por exemplo, os adereos e prticas anunciadas em prol dos cuidados com a sade e aparncia, as marcas de

    produtos considerados modernos e atuais, os telefones celulares mais modernos, mesmo que as modas e as novidades sejam, cada vez mais, passageiras e descartveis.

    Para Bauman (2001, p. 95), a compulso, o vcio de comprar, to bem instalado nas sociedades neoliberais ocidentais, impele os sujeitos a sentirem, diante das sempre renovados novidades postas em circulao, uma necessidade de renovar o que se tem, j que a satisfao obtida pela compra no dura muito tempo, pois as receitas para a boa vida e os utenslios que a elas servem tm data de validade e muitos cairo em desuso bem antes dessa data, apequenados, desvalorizados e destitudos de fascnio pela competio de ofertas novas e aperfeioadas (BAUMAN, 2001, p.86).

    Nesse sentido, pode-se dizer que a busca por diferentes produtos estimulada e assumida em discursos de diferentes ordens que consagram a necessidade de procurar-se

    constantemente atualizao e inovao , tambm, praticada na escola. Como venho argumentando, o consumo invade a educao em diferentes prticas, seja na cobrana do produto em docs e boletos bancrios, na indstria do vesturio, nos produtos utilizados como materiais didticos e demais segmentos que colocam seus produtos tanto nas sacolas

    quanto nos corpos dos/as estudantes, ou, ainda, nos ptios e prdios escolares, no mobilirio escolar e na produo e comrcio de equipamentos e materiais de laboratrio. Enfim, em

    7 Tal como fazem as indstrias, algumas instituies de ensino, tm utilizado a expresso qualidade total na

    educao como estratgia de Marketing. .

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    todas essas situaes h a incorporao dos mais variados artefatos ou servios como bens de consumo.

    Mas, no que se refere mais restritamente ao currculo escolar, cabe destacar que alguns temas/assuntos, configurados em um movimento de articulao do mercado a diferentes reas

    da vida social, mobilizam a sade, o meio ambiente e as artes, entre outros campos, invadindo os chamados contedos escolares. Muitas so as proposies feitas na direo de que esses

    sejam reestruturados e reapresentados nos materiais didticos, em funo da importncia que adquiriram ao serem atrelados a uma srie infindvel de bens de consumo. Para Fairclough (2001), a presso nas indstrias de servios para tratar os servios como bens e os clientes como consumidores, evidenciada na mescla das prticas discursivas de prestao de

    informaes e de publicidade (p. 30), indica uma mudana de lgica que, para esse autor, afeta profundamente as atividades, as relaes sociais e as identidades sociais e profissionais

    das pessoas (p.25), incluindo-se entre essas as atividades e prticas desenvolvidas na educao escolar.

    Interessa-me indicar que esse autor (2001) afirma que na educao as pessoas so pressionadas a se envolverem com novas atividades que so definidas em grande parte por novas prticas discursivas (como marketing) e para adotar novas prticas discursivas em atividades [j] existentes (como o ensino) (p. 25). Ou seja, a reestruturao das prticas discursivas, bem como de seus efeitos na educao ocorreria na interlocuo com outros discursos, incluindo-se, entre esses, os da publicidade, da administrao e da terapia, entre outros.

    Destaco que h uma intencionalidade prpria da mdia em posicionar a educao como meio/produto para o consumo. E, entre as estratgias mais freqentes por ela assumidas

    incluem-se a produo de cadernos especiais voltados educao escolar em jornais8 os cadernos-escola e os cadernos-cincia/tecnologia , a oferta de matrias e reportagens apresentadas em revistas de circulao nacional (com possibilidades de serem utilizados como recursos pedaggicos nas salas de aula), ou a oferta de sites de consulta na Internet produzidos por grandes editoras9. Alm dessas, pode-se evidenciar que se fala de educao

    8 Jornal Zero Hora/RS e Folha de So Paulo/SP so alguns exemplos.

    9 A Editora Abril e Editora Trs so responsveis por alguns desses sites. O projeto Veja na Sala de aula (Ed.

    Abril) coloca em circulao um programa na internet e, tambm, material editado em papel e em CD-Rom; tambm, a Revista Superinteressante (da mesma editora) tm vrios materiais editados, alm da prpria revista, so livros, CD-Rom, e programas na internet voltados para o pblico que freqenta a escola. .

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    em um grande nmero de instncias, e que muitos se habilitam a fazer isso, sendo freqentes os artigos de opinio publicados sobre educao, em revistas de circulao nacional10, por economistas. administradores, empresrios, literatos, etc. Os articulistas escrevem textos com crticas e/ou sugestes sobre educao, sendo que todos parecem se sentir aptos a opinar e a

    sugerir procedimentos que implicam melhorias para a educao.

    Feitos tais destaques, relembro que neste estudo os textos dos quais me ocupei foram

    publicados em uma revista de divulgao cientfica a Revista Superinteressante, bem como em alguns livros didticos de Qumica e nos que constituem os Parmetros Curriculares Nacionais. Procurei discutir a produtividade dessas trs diferentes produes culturais a Revista, os livros didticos e os PCNs utilizados nas prticas pedaggicas escolares,

    buscando indicar que, alm dessas operarem na direo de instituir mudanas metodolgicas (por exemplo, a utilizao das revistas em sala de aula, usualmente vista como mais interessante do que a leitura dos livros didticos tradicionais), elas voltam-se, tambm, inteno de atualizar e inovar os temas/assuntos tratados na escola, ao destacarem, reiteradamente, alguns temas. Como j indiquei entre esses temas esto a tecnologia e os produtos e servios a ela associados os cuidados com o corpo e com a aparncia, os cuidados com o ambiente e a questo da produo industrial. Alm disso, indico, novamente, que nessas produes est colocado em circulao um discurso que ressalta a importncia e a necessidade de promoverem-se mudanas e inovaes relativamente ao que est sendo ensinado na escola. Assim, ento, ao buscar compreender significados associados educao em uma sociedade de consumo, passei a pensar, tambm, acerca de como outras instncias

    culturais, e no apenas a escola, ao utilizarem-se de alguns discursos pedaggicos tais como os que marcam a necessidade de inovao e mudana associam o processo educativo

    promoo e comercializao de novas necessidades para os sujeitos.

    2.2. UM DISCURSO FREQENTE EM EDUCAO: A NECESSIDADE DE MUDANAS

    10 Artigos que, freqentemente, abordam questes relativas educao, como os textos publicados em revistas

    semanais como, por exemplo, a Revista Veja.

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    A necessidade de mudanas no processo educativo no um postulado presente apenas na ltima LDB (1996) ou nas diretrizes curriculares dela decorrentes e indicadas nos novos Parmetros Curriculares Nacionais (1998). Essa uma enunciao constante em outras reformas curriculares (as ocorridas nos anos de 1940, 1960 ou 1970, por exemplo), sendo esse um dos motivos que me levam a considerar a importncia de pensar-se sobre esse postulado to recorrente em proposies educativas.

    Assim, proposies que indicam o que (e em quais condies) vlido para o ensino e para a escolarizao, bem como as orientaes que afirmam implicar mudanas no processo educativo caracterizam reformas curriculares. Tal tipo de discurso tambm est inserido em prticas muitas vezes caracterizadas como propostas renovadoras de ensino, como indicou

    Wortmann (1998) ao revisar programaes curriculares de Cincias da segunda metade dos anos de 1990. Para essa autora, tais propostas indicaram novas metodologias de ensino, novas tecnologias para a informao/comunicao, novas produes de artefatos didticos, etc. Enfim, essas sempre associavam a possibilidade de mudanas na escola adoo de alguma novidade, ora metodolgica, ora epistemolgica, no ensino.

    Ressalto, ainda, que os discursos sobre a necessidade de promoverem-se mudanas na educao referem, com freqncia, um perfil do sujeito escolarizado que necessita ajustar-se s transformaes da sociedade em funo da variabilidade de tempos e espaos que, tambm, modificam-se constantemente. Como Popkewitz (1997) refere, ao destacar aspectos relacionados aos movimentos de reforma de currculo ocorridos nos Estados Unidos da Amrica, a mudana da escola envolve a sociologia da inovao (p.26). Assim, h nos movimentos voltados mudana, especialmente nas reformas educacionais, um discurso que valoriza as inovaes como condio para que as proposies anunciadas de mudanas

    aconteam.

    Como j indiquei essas incansveis proposies de mudana voltadas busca de aperfeioar e melhorar o ensino, a aprendizagem, a avaliao, as metodologias e as tecnologias, sempre estiveram associadas a propostas que integram as Reformas Curriculares

    postas em ao no Brasil. Lopes et al (2006), em trabalho intitulado Reformas educacionais e mudanas no ensino de Qumica no Brasil, fazem um retrospecto de algumas reformas educacionais ocorridas no Brasil e chamam a ateno para como:

    No campo educacional emergem mudanas e reformas, perpassadas pelas lutas entre pioneiros e conservadores,

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    constituintes e constitutivas dos currculos e das aes docentes, bem como das reformas de Francisco Campos (1931/32) e das Leis Orgnicas do Ensino (1942) (LOPES et al, 2006).

    Passo a apresentar, resumidamente, algumas questes relativas a essas reformas, procurando mostrar que as diferentes reformas educacionais brasileiras se constituem pelos/nos discursos de mudana e inovao. Lopes et al (2006) lembram que a Reforma Francisco Campos, na dcada de 1930, foi a primeira reforma educacional "efetiva" ocorrida no pas, pois ela definiu um sistema seriado de ensino, o que at ento no existia. O discurso

    nela colocado em destaque era de que um novo governo trazia novas idias para a escola, as quais estavam representadas pela prtica da seriao do ensino em primrio e secundrio. Tal reforma, assim como ocorrera em outras reformas anteriores, indicava que as transformaes propostas incluam algo novo, o que pode ser visto, por exemplo, em

    afirmaes que apontavam para a necessidade de uma nova forma de distribuio do conhecimento, orientada para a construo de um ensino mais cientfico e mais prtico,

    como modo de atender as necessidades da sociedade da poca, marcada, segundo os mesmos autores, por um ensino utilitarista.

    A reforma seguinte, a Reforma Capanema (1942), tambm se instituiu conclamando a importncia do novo, ao salientar, por exemplo, a mudana de nfase que se estava

    operando no ensino e que envolvia abandonar o carter cientificista imprimido educao pela reforma anterior em favor de um carter humanista de ensino. Alm disso, a novidade

    estaria tambm impregnando a reorganizao do sistema de ensino com a no obrigatoriedade do ensino seriado e com a retomada do exame de admisso, uma prtica que j havia sido aplicada antes dos anos de 1930, e que desobrigava os sujeitos da passagem pelo ensino fundamental para seguir o ensino secundrio.

    Com relao reforma de 1961, Lopes et al (2006) salientam que os livros didticos utilizavam, em seus prefcios, termos, tais como, renovadores e desafiadores para qualific-los, sendo esse um perodo em que muitas discusses foram conduzidas no Brasil, uma vez que essa foi a poca de promulgao da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educao

    Brasileira (LDB/61). Um dos temas dessas discusses foi a substituio do ensino humanstico, proposto pela Reforma Capanema, por uma educao cuja nfase fosse a tcnica.

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    J em uma reforma subseqente, a regulamentada pela Lei 5692 de 1971, a idia de inovao se instaurou, no ento chamado segundo grau, com a proposta de proceder profissionalizao dos estudantes em nvel tcnico e de auxiliar tcnico, nesse grau de estudos. Nessa poca, a nfase no tecnicismo11 estava presente nas atividades em laboratrios

    e na organizao dos livros didticos, alicerada no princpio da racionalidade, com uma organizao eficiente e produtiva que atendesse necessidade de mo de obra da sociedade

    industrial. A novidade estava ento associada possibilidade de profissionalizao em nvel mdio, bem como a proposies de integrao entre as diferentes matrias escolares e a preparao para o trabalho.

    Nos anos de 1980, uma outra reforma, regulamentada pela Lei 7044/82, e de mbito mais restrito questo da profissionalizao, indicava mais uma reestruturao na educao escolar. interessante indicar que nela a inovao estava marcada pela volta ao antigo, ou seja, atravs dela se extinguia a obrigatoriedade da profissionalizao proposta na reforma anterior. A novidade estava ainda associada profissionalizao, mas substituiu-se a expresso preparao para o trabalho por qualificao para o trabalho, configurando-se, assim, uma relativizao do que se considerava serem exageros da proposta anterior.

    Ainda, neste sucinto retrospecto, destaco mais uma vez, que, desde os anos de 1950, muitas prticas escolares foram configuradas como inovadoras e capazes de modificarem as aprendizagens esperadas para algumas reas do conhecimento (WORTMANN, 1998). Na dcada dos anos de 1980, por exemplo, a vinculao ao estudo de Histria e Epistemologia da Cincia constituiu-se em uma direo importante de investigaes no campo do currculo

    escolar. Wortmann (1996), em artigo intitulado possvel articular a epistemologia, a histria da cincia e a didtica no ensino cientfico?, comentou investigaes voltadas a justificar a importncia de lidar-se com alguns conceitos cientficos nos currculos escolares, tais como as realizadas por Giordan e colaboradores12, que foram orientadas pelo questionamento acerca do que ensinar. Tais estudos tomavam a Histria e a Epistemologia da Cincia como referenciais importantes para a tomada de deciso com relao

    11 Nos anos 70, inspirado nas teorias behavioristas da aprendizagem e da abordagem sistmica do ensino, o

    tecnicismo propugnou uma prtica pedaggica submetida a determinaes de especialistas que supervalorizavam as tcnicas de ensino e a aplicao de manuais, ficando a criatividade de professores e alunos, subordinadas aos limites das tcnicas utilizadas. Nesse perodo foram instalados os recursos audiovisuais, a instruo programada e o ensino individualizado nas escolas. 12

    Giordan, A.; Martinand, J.L.; Astolfi, J.P.; Rumelhard, G.; Couliboly, A.; Develay, M.; Host, V. Llve et/ou les connaissances scientifiques:approche didactique de la construction des concepts scientifiques par les lves. Berna/Franfort/Nancy: Peter Lang, 1983.

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    permanncia, ou no, no currculo, de determinados conceitos (p.60). Ou seja, como a autora (1998) referiu, a principal preocupao desses estudos era com as construes conceituais justificadas a partir de anlises histricas.

    Ainda nos anos de 1980, um outro direcionamento imprimido s sugestes de mudana na educao indicava a importncia de atrelarem-se os contedos/temas a serem ensinados na escola s aes dirias o cotidiano dos estudantes. Tal indicao configurou-se

    no caso do ensino de Qumica na chamada Qumica do cotidiano, expresso que passou, inclusive, a nortear a produo de materiais didticos alternativos ao livro didtico (LOPES, 2004). Nessa direo se orientaram, tambm, alguns trabalhos inspirados nas teorizaes crticas, que propugnavam a mudana e a transformao da sociedade. Alm desses

    direcionamentos, cabe destacar, ainda, uma outra nfase direcionada inovao, que estava associada adoo de novas opes metodolgicas ligadas abordagem terica construtivista

    piagetiana, que ganhou inmeros adeptos em todas as reas do conhecimento.

    Vale comentar, ainda, que todas essas nfases tiveram visibilidade nas prticas da escola e nas universidades, integrando, tambm, programaes de cursos de formao inicial e continuada de professores de Cincias, bem como receberam a ateno de grupos dedicados pesquisa em ensino de Cincias/Qumica. Em todas essas situaes, o propsito de inovar, mesmo que esse assumisse diferentes dimenses e facetas, era sempre configurado como propulsor da melhoria da educao em Cincias. Mas, o que pretendo mesmo destacar que as indicaes de mudanas curriculares na educao em cincias privilegiavam, com freqncia, a incluso de novas abordagens metodolgicas ou epistemolgicas,

    desconsiderando, tal como destacou LOPES (2004, p. 9), ser a educao um campo de produo cultural e, portanto, intrinsecamente poltico e social.

    Busquei chamar a ateno, nessa breve incurso histrica, para algumas propostas de reformas educacionais, bem como para algumas nfases assumidas no discurso da mudana, sempre associado inovao, nelas enunciado. Em todas elas, as proposies de mudana na educao passavam pela adoo de estratgias que, tal como destacou Popkewitz (1997) para a realidade norte-americana, visavam orientar os programas escolares, valendo-se de discursos que se entrelaam em vrios nveis da prtica institucional (p. 174). Nesse sentido, as proposies constantes da ltima Lei de Diretrizes e Bases da Educao (Lei 9394/96), promulgada em 1996, no diferem substantivamente do que fora postulado nas legislaes anteriores no que se refere ao tratamento dispensado inovao e mudana, cabendo

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    registrar, no entanto, que a nfase atribuda novidade diferente em cada uma dessas proposies. O novo est caracterizado, agora, pela insero de novos temas/contedos escolares configurados como capazes de atender s necessidades dos sujeitos que vivem nas sociedades contemporneas, caracterizadas como sociedades da informao, do consumo, do

    desenvolvimento tecnolgico, entre tantas outras formas de nome-las.

    Destaco, tambm, o quanto foi importante retomar, neste estudo, proposies contidas

    nessas diferentes reformas, pois, dessa forma, foi possvel indicar no apenas a constncia das proposies de mudana voltadas busca de inovao, mas, tambm, algumas rupturas e descontinuidades processadas na forma de compreender-se tal proposio ao longo do tempo. Esclareo que utilizo os termos ruptura e descontinuidade a partir do entendimento foucaultiano

    (FOUCAULT, 1997, p. 10) sobre o saber histrico, no sentido de buscar marcar a heterogeneidade e a luta de foras processada relativamente imposio de significados para

    inovao. Os conceitos de ruptura e descontinuidade permitem problematizar compreenses normalizadas acerca de formaes discursivas, bem como questionar a homogeneidade das significaes a essas atribudas em uma dada poca histrica (o que poderia ser utilizado para explicar o significado das condies de funcionamento dessa histria), levando-nos a pensar sobre a desconstruo/reconstruo de processos instituidores de tais concepes.

    Popkewitz (1997), valendo-se desses mesmos conceitos foucaultianos, afirma que estudar o passado no presente significa identificar interrrupes, descontinuidades e rupturas da vida institucional (p.23), no sendo adequado, segundo esse mesmo autor, atribuir-se s mudanas motivos ou convices de personagens histricos, nem trat-las como decorrentes

    de seqncias lineares de fatos. Nas anlises por ele sugeridas, os destaques a serem feitos voltam-se, assim, a indicar o carter socialmente construdo das mudanas e a condio de

    serem essas operadas em meio a estratgias enunciativas de diferentes ordens, sendo essa a perspectiva que busquei imprimir a esse estudo.

    importante marcar, ainda, como nas reformas educacionais apontadas, o discurso em prol de mudanas indica, ao mesmo tempo, a crena na existncia de alguns aspectos a serem

    tomados como inerentes educao escolar ou seja, a existncia de leis ou verdades essenciais no ensino que so estveis, tal como refere Popkewitz (1997, p.26). importante indicar, tambm, que esse discurso em prol de mudanas qualifica as proposies que o aliceram, destacando serem essas possibilitadoras do alcance de uma maior qualidade nas prticas educativas. Como esse autor destacou:

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    O senso comum da reforma considerar interveno como progresso. Um mundo melhor surgir como resultado de novos programas, novas tecnologias e novas organizaes que aumentem a eficincia, a economia e a efetividade. A mudana vista como a introduo de algum programa ou tecnologia dentro de uma escola ou sala de aula (1997, p.11).

    Popkewitz (1997) problematiza, assim, as noes de reforma e de mudana, afirmando que reformas educacionais no significam o mesmo que mudanas em educao, uma vez que as reformas esto associadas mobilizao dos pblicos e s relaes de poder na definio do espao pblico (p. 11); j as mudanas teriam uma dimenso mais ampla, menos normativa e mais cientfica, associada a uma ruptura com aquilo que parece estvel e natural. Para o autor, as mudanas configuram prticas que estabelecem prioridades e posies para os indivduos nas suas relaes sociais (p. 12). nessa direo, que utilizo o termo mudanas nessa tese, ou seja, no as considerando como efeitos das reformas, mas como modificaes construdas e sofridas pelas prticas sociais que definem e orientam a construo dos currculos escolares.

    Nesse sentido, o conceito de prtica cultural, que Popkewitz (2003) utiliza para proceder anlises curriculares, bastante interessante para oferecer uma forma de pensar o docente, o estudante e o currculo escolar como objetos de um campo cultural cuja construo muda com o transcurso do tempo (p.171). Como destaca esse autor (2003), as alteraes processadas no se referem simplesmente aos modos como se pensa o mundo, mas, tambm, dizem respeito ao modo como esse mundo ordenado e ao modo como se atua sobre

    ele.

    Considerando a centralidade que a idia de inovao assume nas proposies de mudanas na educao (e na sua efetivao pelas orientaes dos Parmetros Curriculares Nacionais), percebe-se que a invocao ao novo funciona como um apelo (at talvez no seja um exagero compar-lo a um apelo de marketing) da instituio escolar para uma prtica que integra um conjunto de estratgias para dirigir como pensam os estudantes acerca do mundo em geral e de si mesmos nesse mundo, tal como Popkewitz (2003, p. 160) destacou com relao s reformas curriculares norte-americanas. Enfatizo que assumir tal compreenso

    possibilita ver o currculo como um campo de tenses entre um projeto e uma prtica que intenta concretiz-lo e que necessariamente o rev e o transforma (MOREIRA, 1999, p. 24), mas, tambm, v-lo, conforme destacou Popkewitz (2003), como um conjunto de mtodos e

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    estratgias com possibilidades de ao que visam questionar, organizar e compreender o mundo e a ns mesmos, ou seja, que nos permitem ver o currculo como um [modo de] governamento que circula por meio de prticas culturais e sociais (p. 161).

    Popkewitz (1994) afirma que os padres discursivos da escolarizao contempornea corporificam sistemas de regulao e poder (p. 191) e que esses padres podem ser reconhecidos em aes voltadas mudana na educao escolar destacadas em enunciados

    postos em circulao em diferentes situaes. No caso deste estudo, essas podem envolver, por exemplo, a diversificao de materiais didticos que tm sido oferecidos pelo mercado, as freqentes reunies e jornadas pedaggicas realizadas com professores, o uso dos diferentes meios de comunicao como estratgia metodolgica, a visibilidade e valorizao que a

    incluso de assuntos ligados vida contempornea passou a ter (em detrimento de outros contedos mais tradicionais) nas propostas curriculares, etc.

    Como afirmou Foucault (1979),

    ...em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade, existem relaes de poder mltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e estas relaes de poder no podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produo, uma acumulao, uma circulao e um funcionamento do discurso (p. 179).

    Para Foucault (1979), a anlise das relaes de poder, quando se olha para a produo de saberes, no busca localizar o poder no seu centro, mas sim atentar aos mecanismos de ao do poder na produtividade dos saberes. Nas palavras do autor, trata-se de captar o poder

    onde ele se torna capilar; captar o poder que se prolonga, penetra em instituies e corporifica-se em tcnicas (p. 182). Valendo-me dessa noo, procurei analisar aes operadas em diferentes discursos que buscam promover mudanas na educao, destacando aqueles que enfatizam a atualizao, modernizao e inovao, a ser procedida na educao.

    Para Popkewitz (2003), o uso da noo de governamento no implica a inteno de atribuir distines entre bem/mal ou moral/mal, no processo de escolarizao; mas em pensar

    o currculo como uma estratgia de governamento que agiria em diferentes nveis, sendo um deles relativo definio de fronteiras que a escolarizao estabelece sobre o que deve ser

    conhecido e aprendido. A propsito, o autor considera que a questo central da teoria de currculo estadunidense, nos tempos atuais, se expressaria na indagao Que conhecimento vale a pena ser ensinado?, entendendo que a seleo de conhecimentos uma forma

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    politicamente sancionada que tm os indivduos de organizar suas vises de si mesmo (p.160).

    Com relao estratgia de governamento associada por Popkewitz (2003) ao processo de seleo dos conhecimentos a serem ensinados na escola, possvel dizer que essa

    seleo passa pela eleio de informaes extradas de uma grande variedade de possibilidades, considerando-se que o currculo configura e d forma organizao dos

    acontecimentos sociais (e dos conhecimentos neles envolvidos) (p. 160). Em uma direo semelhante, Moreira (1998) afirma que todo o currculo corresponde a uma srie de escolhas, a uma seleo que se faz de um universo mais amplo de possibilidades, tanto no que tange s intenes como s prticas (p. 24), considerando, assim, o currculo como decorrente de uma seleo da cultura perpetrada a partir de posturas e interesses. Dessa forma, o campo curricular visto como um territrio de lutas e de conflitos em torno de valores e significados.

    A seleo e a organizao dos contedos curriculares indicam a forma como os acontecimentos sociais so organizados, bem como as prticas que se instituem como conhecimentos escolarizados. As prticas de governamento, referidas por Popkewitz (2003), que se inscrevem na noo de governamento que segue as compreenses de Foucault (1979), ressaltam as sensibilidades, disposies e conscincias pelas quais os indivduos atuam e participam do mundo (POPKEWITZ, 2003, p. 161).

    Assim, a educao tomada usualmente nos documentos oficiais e nos programas escolares como um mecanismo para oportunizar esco