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  • Disputatio 3, Novembro 1997

    UMA PERSPECTIVA ANTI-REALISTA SOBREA LINGUAGEM, O PENSAMENTO, A LGICAE A HISTRIA DA FILOSOFIA ANALTICA:

    UMA ENTREVISTA COM MICHAEL DUMMETT*

    Fabrice Pataut1

    1. Frege e Wittgenstein

    FABRICE PATAUT Prof. Dummett: o senhor um dos filsofos maisproeminentes na tradio analtica e dedicou grande parte do seu tempo aoestudo de Frege, o qual fundou essa tradio h pouco mais de um sculo.Entre os filsofos analticos, rarssimo fazer-se isso. As pessoas tmtendncia para no se preocuparem muito com o que os autores disseram defacto. Em geral, abordam os assuntos, por assim dizer, directamente; ou,pelo menos, muitos querem fazer isso. No prefcio segunda edio do seulivro Frege: Philosophy of Language, disse que qualquer discusso frutferadas doutrinas de Frege teria de ficar adiada at que se tenha chegado aacordo sobre o contedo bsico dessas doutrinas.2 Ora, num certo sentido,boa parte da filosofia tal como praticada na tradio analtica consiste nadiscusso destas doutrinas e no parece que j se tenha atingido qualqueracordo quanto sua correcta interpretao, para no do acordo quanto aosprincpios da exegese da filosofia de Frege. Permita-me que comece comuma pergunta deliberadamente ingnua: o que que torna o caso de Frege

    * Publicado com a amvel autorizao de Fabrice Pataut.1 A entrevista teve lugar em Oxford no dia 10 de Setembro de 1992. Quando estava atranscrev-la, decidi reunir as referncias bibliogrficas em notas de rodap de modoa que o leitor pudesse ter a sensao do fluir da conversa. Dividi depois o texto emseces, de acordo com os tpicos discutidos. Algum do material originalmentetranscrito foi subsequentemente rearranjado. Agradeo a Michael Dummett a suapacincia, e a ele e a Anne Dummett a sua hospitalidade. Timothy Tessin ajudou apreparar o texto para publicao.2 Frege: Philosophy of Language, Duckworth, Londres, 1. ed., 1973; Harvard Uni-versity Press, Cambridge, Mass., 2. ed., 1981, p. xv.

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    to especial? Que podemos concluir do facto de no se ter chegado aqualquer acordo quanto ao contedo bsico das doutrinas de Frege? Hgrandes divergncias acerca delas e, no entanto, podemos descrever a filoso-fia analtica como uma constante reformulao e discusso do que Fregeiniciou e uma tentativa para resolver os problemas que ele introduziu.

    MICHAEL DUMMETT Acho que verdade. A ltima observao quefez tem muito de verdadeira, porque Frege conseguiu formular questes deuma maneira qual ainda somos sensveis. Quando se estudam os filsofosdo passado, em quase todos os casos, temos primeiro de reformular os seusproblemas antes de os discutirmos. Com Frege, eles esto j formulados deuma maneira com a qual sentimos afinidades. No nos afastmos tanto deleque achemos as suas formulaes equvocas. Claro que h coisas que Fregeno viu ou das quais no tinha conscincia e das quais ns tommos con-scincia. Mas ele continua a ser um excelente ponto de partida, em minhaopinio, para muitssimas famlias de problemas filosficos.

    O fenmeno de que fala surpreendeu-me e ainda me surpreende umpouco. Quando escrevi o meu primeiro livro sobre Frege, no pensei quehouvesse grandes razes para controvrsia acerca do que ele queria dizer.3

    Pensava que era preciso reflectir muito sobre isso, no tanto para determinaro que ele queria dizer mas, sobretudo, para analisar profundamente cadaquesto e ver todas as suas implicaes. Foi ento que fiquei espantado aoler algumas coisas livros, artigos, etc. que propunham interpretaesradicalmente novas de Frege, a maior parte das quais me pareciam perver-sas. E no consigo explicar cabalmente este fenmeno. Imagino que a fraseque citou foi escrita provavelmente num estado de esprito de irritao.

    FP Foi, pelo menos, uma maneira bastante radical de formular a suaideia.

    MD Sim, tem razo, e j no a subscrevo. Claro que podemos discutirFrege antes de chegarmos a um acordo total. Mas muito irritante. E estasituao continua. H alguns livros que no so mais do que exerccios queconsistem em dizer Bem, antes de mim, ningum compreendeu o que Fregequeria dizer. Acho que idiota. No penso sequer que possa ser verdade.

    3 Frege: Philosophy of Language foi seguido de: The Interpretation of FregesPhilosophy, Duckworth, Londres, 1981; Frege and Other Philosophers, ClarendonPress, Oxford, 1991; e Frege: Philosophy of Mathematics, Duckworth, Londres,1991.

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    Claro que as pessoas podem ver coisas que as outras no viram. Mas a ideiade que toda a gente se equivocou completamente at este momento acercado que ele queria dizer... demasiado improvvel para ser aceite. Mas elescontinuam. No sei por que razo Frege, em particular, atrai isto. No fazemisso com Russell. Nem sequer o fazem com Kant, no ?

    FP Fazem-no com Wittgenstein. Ele parece atrair sobretudo esse tipode coisa.

    MD perfeitamente verdade. Mas tambm verdade que Wittgenstein muito mais obscuro do que Frege, por causa da maneira como escrevia.Muitas vezes, deixava ao leitor a tarefa de completar o raciocnio.

    FP Muitas das observaes de Wittgenstein so susceptveis de vriasinterpretaes. H muitas frases e pargrafos que parecem conter observa-es desconexas.

    MD E perguntas no respondidas e coisas do gnero. Temos de per-guntar: Por que aparece este pargrafo nesta altura? Por que ps ele istoaqui?. Portanto, acho que mais compreensvel. E tambm acho que esta-mos muito longe de compreendermos Wittgenstein completamente. Por-tanto, talvez a verdade surja atravs de argumentos deste gnero, mas nocreio que haja lugar para argumentos desse gnero no caso de Frege. Hcertamente lugar para argumentos acerca da avaliao das suas doutrinas.Mas parece-me muito claro aquilo que so.

    FP Isso leva-me a outra questo acerca de Wittgenstein. Disse quecomeou a sua carreira filosfica considerando-se um seguidor de Wittgen-stein, pelo menos at 1960.4 Tenho trs perguntas sobre isto. Em primeirolugar, o que significava para si, nessa altura, ser seguidor de Wittgenstein?Em segundo lugar, empreendeu o seu estudo de Frege que lhe tem ocu-pado toda a vida adoptando um ponto de vista filosfico que se poderiadenominar wittgensteiniano? Por fim, concebeu aquilo que se poderia de-nominar como o seu trabalho sobre Frege (por oposio ao seu combatecontra o realismo) como uma tarefa completamente independente da suaperspectiva filosfica?

    MD claro que me dediquei ao estudo de Frege adoptando j umponto de vista filosfico, porque ningum l um autor filosfico sem umaideia prvia. Mas de certeza que isso no acontecia conscientemente no

    4 Truth and Other Enigmas, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1978, p.xii.

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    sentido em que pudesse dizer agora vou olhar para Frege da perspectiva deWittgenstein, ou coisa do gnero. Eu no via as duas coisas comoseparadas e de facto no tm estado para mim separadas, justamente porqueas questes de Frege so, em larga medida, questes. O estudo da obra deFrege tem sido, para mim, em grande medida, um ponto de partida parapensar acerca de vrias questes filosficas. Claro que, quando escrevemosacerca de um autor especfico temos de ser bastantes expositivos e por afora, mas, como sabe, especialmente no primeiro livro, tentei fazer disso oponto de partida para depois discutir uma srie de questes filosficas.Nesse livro, h muito que no realmente nada sobre Frege, mas que foiapenas motivado pela exposio sobre ele.

    FP Essa foi uma das queixas de Hans Sluga.5

    MD Foi uma das queixas dele, e tenho de admitir que havia nelasalguma justia, embora discorde de alguns pormenores. No creio que adescrio que ele tentou fazer do contexto histrico de Frege seja realmenteconvincente. Mas perfeitamente verdade que quando escrevi esse primeirolivro no estava suficientemente atento situao em que o prprio Frege seencontrava. E acho que isso necessrio. Pensava muito mais nas conexesentre o seu trabalho e o que aconteceu a seguir. Acho que, quando se l umfilsofo, tem se de perguntar: Como que o problema foi posto naquelaaltura, dado o tipo de coisas que as outras pessoas ento diziam?

    FP No que diz respeito a Frege e a Wittgenstein, afirmou que a con-cepo de Wittgenstein sobre o carcter social do significado, identificando--o com o uso, fora antecipada pela ideia de Frege da objectividade do Sinn.6

    No ser isto uma maneira de ver Frege a partir de uma espcie de ponto devista wittgensteiniano?

    5 Hans Sluga, Gottlob Frege, Routledge and Kegan Paul, Londres,1980.6 What is a Theory of Meaning? (II), Truth and Meaning Essays in Semantics,G. Evans e J. McDowell, orgs., Clarendon Press, Oxford, 1976, p. 135: A tese deFrege de que o sentido objectivo antecipa assim implicitamente (a respeito daqueleaspecto do significado que constitui o sentido) a doutrina de Wittgenstein de que osignificado o uso (ou ento uma de entre a famlia de doutrinas assim formuladas)[...] [Nota do Tradutor: Ao longo desta entrevista, o termo sentido traduz sense(correspondente por sua vez ao Sinn de Frege, tradicionalmente oposto a Bedeu-tung, referncia), ao passo que o termo mais genrico meaning traduzido porsignificado. Esta conveno segue aquela fixada na edio portuguesa do OxfordDictionary of Philosophy, de Simon Blackburn (Dicionrio de Filosofia, Gradiva,1997)].

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    MD No tenho a certeza. Em Frege, a nfase posta, muito forte-mente, na comunicabilidade dos pensamentos, dos Gedanken, e no facto deeles nos serem comuns a todos.

    FP E isso est em oposio directa com a incomunicabilidade dasrepresentaes, das Vorstellungen.

    MD Exacto. Ora, no h, em Wittgenstein, o mesmo tipo de rejeioda ideia da incomunicabilidade da vida mental interior. Acerca de Fregepoderia dizer-se que h uma nfase na comunicabilidade de algo que acessvel a todos, mas no h uma explorao detalhada desta ideia. Elenunca chega a discutir como que podemos todos atribuir o mesmo sentidos nossas frases.

    FP E tambm no d qualquer explicao sobre aquilo em que consistea apreenso dos pensamentos propriamente dita. Existe, por assim dizer, oacto primitivo de apreender.

    MD Exacto. apenas um facto.FP Nesse caso, pensa que a ideia de Wittgenstein uma maneira de

    explorar a intuio de Frege?MD Penso que pode certamente ser vista desse modo. muito difcil

    ter a certeza. bvio que ele foi profundamente influenciado por Frege. Eleparece-me normalmente estar ao seu pior nvel quando critica Frege. Noporque Frege tem sempre razo e Wittgenstein nunca tem, mas porque ele bastante simplista quando est a criticar Frege. No sei porqu. bvio quemuita dessa influncia no se percebe primeira vista. Ele nem sempre serefere explicitamente a Frege e nem sempre reconhece a sua influnciaquando deve. Acho que, provavelmente, a gnese dessas ideias pode ter sidoa leitura que ele fez de Frege. No tenho a certeza.

    FP H outra caracterstica da sua interpretao de Frege que mereceser destacada: a nfase na ideia de Frege de que compreender o significadode uma frase, i.e., o pensamento expresso pela frase, saber as suas con-dies de verdade, ou se essas condies so satisfeitas ou no. Salvo erro,Frege defende esta ideia explicitamente apenas uma vez, designadamentenos Grundgesetze, 32.7 Mas o Prof. Dummett v nesta ideia, em particular,

    7 Gottlob Frege, Grundgesetze der Arithmetik, Begriffschriftlich abgeleitet, Band I,H. Pohle, Jena, 1893. Traduo inglesa de M. Furth do prefcio, introduo e 1-52em: The Basic Laws of Arithmetic: Exposition of the System, University of CaliforniaPress, Los Angeles, 1964. Este o texto relevante de Frege: Cada nome [...] de um

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    uma das pedras de toque do realismo de Frege; e a sua prpria argumentaocontra o realismo , efectivamente, dirigida contra a chamada teoria vero-condicional do significado. Pensa que esta era de facto uma preocupaocentral de Frege?

    MD Absolutamente. Acho que se relaciona de muito perto com a suaoposio intruso da psicologia na lgica. Pense s nas coisas que ele diznos Grundlagen sobre as definies psicologistas8. Quando no se conseguedefinir um conceito matemtico bsico, este definido em termos das opera-es mentais necessrias para apreender o conceito. O que ele diz sobre isto que no se pode usar uma definio desse tipo para demonstrar o que querque seja. Concordo que esta observao no directamente sobre condiesde verdade. Mas pense s: quando que se pode usar uma definio parademonstrar algo? Justamente quando ela nos diz sob que condies umafrase que contenha o termo definido seria verdadeira. Se ela fizer isso, ouajudar a fazer isso, ento podemos us-la para demonstrar que uma certafrase especfica verdadeira. por isto que penso que uma ideia funda-mental em Frege.

    Acaba de falar na contenda realismo versus anti-realismo. O que muitonotrio em Frege que ele se abstm sempre de dizer que as condies deverdade tm a ver com o modo como ns atribumos o valor de verdade.Muitas vezes, h at um aviso explcito: por exemplo, quando ele est adefender que os predicados devem ser sempre definidos e que se deve sem-pre determinar, para qualquer objecto, se ele cai debaixo do conceito ou no.Normalmente ele acrescenta: ns podemos no ser capazes de determinarisso embora isso seja, por assim dizer, objectivamente determinado. A reali-dade determina-o; qualquer coisa deste gnero. Portanto a recusa em for-

    valor de verdade exprime um sentido, um pensamento [drckt einen Sinn, einenGedanken aus]. Designadamente, por estipulaes nossas, fica determinada sob quecondies [Bedingungen] o nome denota [bedeutet] o Verdadeiro. O sentido destenome o pensamento o pensamento de que estas condies so satisfeitas[dass diese Bedingungen erfllt sind].8 Gottlob Frege, Die Grundlagen der Arithmetik. Eine logish-mathematische Unter-suchung ber den Begriff der Zahl, W. Koebner, Breslau, 1884. Trad. inglesa de J. L.Austin: The Foundations of Arithmetic A logico-mathematical enquiry into theconcept of number, Basil Blackwell, Oxford, 1950 (trad. port: Os Fundamentos daAritmtica, 1992). Ver em especial a introduo, pp. iii, vi, viii-ix e parte II, 26,27.

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    mular isto nos termos em que Wittgenstein o teria formulado em termosdo que ns podemos fazer de facto bastante consciente.

    2. Inconsistncia, holismo, harmonia e intuicionismo

    FP Deixe-me regressar a Wittgenstein. A minha prxima pergunta dizrespeito ao modo como se deve entender o famoso lema o significado ouso e como se deve determinar as suas implicaes filosficas9. Este umgrande problema e tem a ver, de novo, com a oposio entre ser um wittgen-steiniano e no ser um wittgensteiniano, no seguinte sentido. Muitas pessoasacham que nenhuma interpretao desse famoso lema de Wittgenstein po-deria levar, ao contrrio do que o Prof. Dummett defende, a uma reviso dasleis da lgica clssica. No estou a falar das pessoas preocupadas com o queWittgenstein realmente queria dizer. Parece-me que muitas pessoas queremresistir ideia de que algo de certo modo to bvio como o significado o uso poderia conduzir a algo to drstico. Porque pensa que conduz?

    MD Vou tentar responder. Fundamentalmente, porque no aceito oholismo, do modo como penso que Wittgenstein o aceitava ou, pelomenos, do modo como estava comprometido com ele. Conhece certamente afamosa tese de Wittgenstein de que a filosofia no pode alterar absoluta-mente nada, pode apenas descrever, etc... Em particular, ele tinha a ideia deque no se pode alterar a prtica lingustica, e deixou-se enredar na teseabsurda de que a filosofia no poderia alterar a prtica lingustica nem quese mostrasse que essa prtica era inconsistente ou levava a contradies.Tm de se aceitar as contradies com um facto.

    FP Mas a nossa prtica lingustica poderia certamente ser inconsis-tente.

    MD Tarski acreditava que era, essencialmente, inconsistente.

    9 Ver Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, trad. inglesa de G. E. M. An-scombe, Basil Blackwell, Oxford, 1958 (trad. port.: Tratado Lgico--Filosfico/Investigaes Filosficas, Gulbenkian, 1987), parte I, 43: Para umagrande classe de casos embora no para todos do emprego da palavra signifi-cado, pode dar-se a seguinte explicao: o significado de uma palavra o seu usona linguagem [Die Bedeutung eines Wortes ist sein Gebrauch in der Sprache]. Vertambm Investigaes Filosficas, parte I, 120, 138, 190, 432 e as pginas iniciaisde The Blue and Brown Books, Basil Blackwell, Oxford, 1958 (trad. port.: O LivroAzul, 1992 e O Livro Castanho, 1992).

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    FP A prtica lingustica concreta muitas vezes inconsistente.MD Bem, a prtica lingustica concreta... O que que se quer dizer

    com isso? No poderia haver uma prtica segundo a qual as pessoas asseris-sem apenas contradies. Se quiser dizer que uma prtica contraditria,tem de dizer que h princpios gerais que as pessoas seguem e seriam ca-pazes de reconhecer como tal. Quero com isto dizer que poderiam reconhe-cer que seguem estes princpios. Se insistssemos, identificariam tambmquais so aqueles que conduzem a contradies. O ponto principal quepoderamos lev-las a fazer isso.

    FP Portanto, as pessoas contradizem-se a si prprias. Isso no umaprtica? Por que no dizer que elas praticam a contradio?

    MD Pode dizer isso. Mas nesse caso tem de circunscrever o mbito deaplicao da sua frase e reconhecer que eles tambm podem perceber que oque disseram necessita de alguma reviso. H uma distino entre um in-divduo que se contradiz mas que saberia reconhecer esse erro, assim como asua origem, e a prpria linguagem ser inconsistente, que era o que preocu-pava Tarski em relao s linguagens naturais. O que quer dizer que hprincpios gerais, que todos identificariam, que regem o uso da linguagem; ea natureza desses princpios faz com que as pessoas saibam reconhecer queconduzem contradio, se insistirmos com elas. isto que os paradoxosso. Quando so postas perante paradoxos, as pessoas no sabem o que ho--de fazer porque foram conduzidas a uma contradio atravs de passos quepareciam absolutamente irrecusveis. De modo que lhes viram, pura e sim-plesmente, as costas. Claro que ento que os filsofos comeam a preocu-par-se com o assunto.

    O aspecto importante na nossa discusso sobre o holismo o seguinte:Wittgenstein pensava e eu discordo totalmente deste ponto de vista que na prtica lingustica, e em particular no uso de formas de inferncia,nada necessita de justificao nem pode ser criticado. Se a prtica que absurda, isso j justificao suficiente. No precisa de mais justificao.Ora, isto parece-me estar errado porque as inferncias no so coisasseparadas do resto da linguagem. Uma inferncia no apenas um jogocomo as palavras cruzadas, que no afecta mais nada. Conduz a asseres ea concluses, e essas concluses podem conter constantes lgicas. Portantotemos de perguntar: Como so elas usadas? Como reagimos a tais as-seres? Que consequncias devemos tirar delas? e assim por diante.

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    Parece-me que h a possibilidade de uma discrepncia entre o modocomo raciocinamos e o modo como utilizamos as concluses a quechegamos atravs do raciocnio. Um processo de raciocnio tem de se justifi-car com base no facto de conduzir a coisas que estamos justificados emasserir de acordo com os significados que lhes atribumos.

    FP E, em particular, de acordo com o significado que atribumos sconstantes lgicas?

    MD Exactamente. Portanto h uma exigncia de consonncia, porassim dizer, entre diferentes partes de uma prtica lingustica, algo extre-mamente complicado e que no nos permite dizer bem, acontece que racio-cinamos assim, a isso que chamamos raciocnio e pronto.

    FP Portanto, a exigncia de harmonia que torna necessria a rejeiodo holismo e que nos obriga a interpretar o significado o uso como algoque conduz reviso de certos padres de raciocnio, como, por exemplo, osbaseados nas leis da lgica clssica. Isto muito anti-wittgensteiniano.

    MD o ponto em que eu divirjo completamente de Wittgenstein. Nocreio que alguma vez tivesse havido alguma justificao na sua afirmao deque a filosofia no pode interferir em nada. A nossa prtica lingustica podeser anmala tal como o nosso comportamento pode ser anmalo ou irra-cional. A filosofia tem o direito de fazer notar isso mesmo.

    FP Acha que os padres clssicos de raciocnio e as leis da lgicaclssica so mesmo inconsistentes e levam a contradies?

    MD No acho que sejam propriamente inconsistentes. No acho queconduzam a algo to mau como contradies. Acho que conduzem ou po-dem conduzir desarmonia que mencionou. Ao usar certos esquemas deraciocnio, somos levados a asserir coisas para as quais no temos de factojustificao, dado o significado que atribumos s nossas palavras.

    FP Vejamos um caso tpico. Suponhamos que algum usa a regra daeliminao da negao dupla, i.e., infere p a partir de p. Um intuicionistarejeitaria esta inferncia como invlida. Mas o que h de errado em usar estalei da lgica? Se isso for assim, deve ser verdade que no podemos asserirp com base em p. Mas por que razo no pode p constituir justifica-o suficiente para p?

    MD No justificao suficiente em si. Claro que h muitos casos emque esta inferncia perfeitamente aceitvel, e esses casos incluem todosaqueles em que ns estamos em condies de decidir a questo. Mas emgeral, quando se trata de algo que no temos meios para decidir, h um

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    problema. Tudo depende de como se entender a negao. Se, como fazemosnormalmente, ela for entendida de tal modo que, para asserirmos a negaode uma frase p, suficiente mostrar que no poderamos estar em posio deasserir p, ento o facto de no podermos estar em posio de asserir aprpria negao de p no garante, certamente, que estamos em posio deasserir a prpria frase p.

    FP Mas, se pudssemos de facto determinar o valor de verdade de p,constituiria isso uma justificao suficiente para a assero?

    MD Claro, caso contrrio ficamos com uma coisa mais fraca. A ilusovem da imagem que ns temos de uma realidade determinada que podemosno ser capazes de observar mas que, no entanto, tem de estar fixada numsentido ou no outro. No falso? Bem, ento tem de ser verdadeiro. sim-ples. uma imagem a que , psicologicamente, difcil resistir e que nsusamos.

    Olhe, isto no tem exactamente a ver com regras de inferncia, mas temmuito a ver com imagens realistas. H uma crena esmagadoramentemaioritria no determinismo. No vou falar na mecnica quntica. Isso outro problema. Quer dizer, mais uma razo pela qual as pessoas nodevem acreditar no determinismo. Mas esquea a mecnica quntica. Penses nos sistemas caticos. Os defensores dos sistemas caticos determinsti-cos disseram-me que se tivssemos uma ideia exacta das condies iniciais,os estados subsequentes desse sistema seriam completamente determinados.O problema o seguinte: no podemos prev-los porque no podemos ja-mais ter uma ideia exacta das condies iniciais, e uma pequena variaoagora produz uma grande variao mais tarde. Portanto, eles defendem que,apesar de imprevisvel, o sistema no entanto determinstico.

    Ora, dizer que o sistema determinstico presumir que h valoresexactos nas condies iniciais das quantidades, representados por nmerosreais. Mas isso no mais do que a imposio de um tipo de imagemmatemtica a do contnuo matemtico sobre a realidade, a qual defacto no condiz de maneira nenhuma com a nossa experincia. Toda agente est sempre a dizer que quando medimos, medimos s at um certograu de preciso, etc. Se no presumirmos partida que estas quantidadestm, nesse sentido, grandezas absolutamente determinadas, ficamos semqualquer argumento para o determinismo. Dizer que o sistema deter-minstico apenas um comentrio sobre a matemtica do sistema.

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    FP apenas, por assim dizer, uma caracterstica da matemtica dosistema.

    MD Exactamente. A premissa subjacente a de que todas estas quan-tidades tm grandezas absolutamente determinadas, dadas por nmerosreais.

    FP isso que a chamada teoria do valor escondido em parte significa.MD Exactamente. E apenas algo imposto por esta maneira de pensar.FP Era o ponto de vista de Einstein.MD Mas isso em reaco a alguns problemas especficos da mecnica

    quntica. No disso que eu estou a falar. A maior parte dos fsicos aceitam,claro, o contnuo clssico como um bom modelo da realidade fsica, maspenso que ficariam melhor se usassem o contnuo intuicionista. Estamossempre a progredir em direco a valores determinados, mas nuncachegamos a eles.

    FP Falemos de Wittgenstein e da relao entre Wittgenstein e o in-tuicionismo. Uma das coisas de que as pessoas no gostam no intuicionismo o tipo de filosofia subjectivista ou mesmo solipsista que implica, ou pelomenos com a qual o intuicionismo de Brouwer estava comprometido. Pensaque a perspectiva de Wittgenstein sobre o carcter social do significadofornece uma sada? Suponhamos que o significado o uso conduz defacto a uma reviso da lgica clssica. Se aceitarmos uma tal interpretaodessa parte da filosofia do segundo Wittgenstein, conseguiremos realmenteseparar o intuicionismo do solipsismo, do tipo de subjectivismo com que normalmente identificado?

    MD Penso que sim. Brouwer, claro, parece ter sido realmente umsolipsista genuno. Acho que no acreditava de facto na existncia de outraspessoas. Tome como exemplo a suposta linguagem dos dados dos sentidos,ela prpria uma linguagem solipsista. Se uma tal linguagem existisse, teriade se ter um trabalho monstruoso para passar dela para a linguagem dosobjectos fsicos. Mas o caso matemtico bastante diferente. O contrastecom a matemtica bvio e Brouwer est, claro, completamente erradoquanto incomunicabilidade das estruturas matemticas. O que notrio namatemtica justamente a sua comunicabilidade. No h nada numa ideiamatemtica que no possa ser comunicado. E a coisa mais espantosa queno se tem de fazer nada, no sentido em que, se tivermos a descrio de umateoria matemtica em termos das construes que um matemtico especficoproduz na sua mente, no temos de fazer virtualmente nada para transformar

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    isso numa descrio das construes que podem ser comunicadas de ummatemtico para outro. Porqu? Porque a teoria de Brouwer pode ser trans-formada, sem qualquer alterao excepto nos aspectos de fundo, numa te-oria, por assim dizer, da matemtica comunitria. Isto no poderia acontecerem qualquer outro domnio do discurso. No caso do mundo fsico, haversempre uma discrepncia enorme entre o mundo que todos ns habitamos eo mundo que eu observo. Mas no caso matemtico essa discrepncia noexiste e por isso que o solipsismo que eu concordo completamente terconstitudo e motivado parte da filosofia geral de Brouwer no tem real-mente importncia.

    3. Austin, Ryle e Carnap

    FP Posso voltar a Wittgenstein? No Prefcio a Truth and Other Enig-mas (p. XII) afirmou que o tipo de trabalho que Wittgenstein fazia pelomenos, acho eu, nas Investigaes Filosficas o vacinou contra a influn-cia de Austin. Como que pensa que a obra de Wittgenstein ajuda a com-bater o tipo de argumentao de Austin baseada em casos paradigmticose a sua maneira deliberadamente assistemtica de analisar a linguagem, i.e.,contra a filosofia da linguagem comum que dominou Oxford a certa altura?Alm disso, acha que a filosofia analtica deveria ou poderia ser sistemtica?

    MD A observao que fiz a respeito de Austin foi apenas de carcterhistrico, digamos, a respeito de mim prprio. verdade que esta oposioao sistema partilhada pela a filosofia da linguagem comum de Wittgensteine de Austin; a ideia que se tem de investigar as coisas uma de cada vez,etc. Mas penso que a grande diferena entre Wittgenstein e pelo menosaquilo que Austin professava, ou aquilo que ensinava, era que Wittgensteincomeava sempre com problemas filosficos e se debatia com eles, ao passoque Austin achava que os problemas filosficos resultavam de confuses, demal-entendidos acerca da nossa linguagem, erros lingusticos que se come-tem.

    Wittgenstein pensava certamente, como Austin, que tinha muito a vercom a linguagem. Mas ele partia dos problemas, ao passo que Austin ensi-nava realmente no sei se isto se aplicava sua prpria prtica filosfica que devemos esquecer os problemas filosficos. Temos de comear porolhar para as palavras e para o modo como so usadas, fazer anlises muitoprecisas desses usos e assim por diante, deixando de lado os problemas

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    filosficos que existirem; depois, dar-se- um milagre e todos os problemasfilosficos se dissiparo. Foi sobretudo isto que me pareceu deitar por terra areflexo filosfica tal como eu a entendia. A motivao para toda a activi-dade filosfica vem das perplexidades com que nos deparamos quandocomeamos a pensar sobre o arbtrio humano, ou o tempo ou o que quer queseja. E ensinar s pessoas que devem ignor-las, bem

    FP H outra tradio na filosofia analtica. Estou a pensar na influn-cia que Carnap teve nos Estados Unidos. Carnap era um filsofo sistemticoe teve uma enorme influncia em Reichenbach, Quine, Goodman, Putnam,etc. H geraes inteiras de filsofos americanos que acharam que a filosofiaera o que Carnap pensava que ela era ou que o tomavam como modelo, epara Carnap o objectivo da filosofia era a construo de um sistema. Pensaque ele estava mais perto do ponto de vista correcto acerca do que um pro-jecto filosfico deve ser? Aqui, claro, ele quase no teve influncia nen-huma.

    MD Isso por causa de Ryle. S mais uma coisa sobre Austin. Semprepensei que Austin foi cego no que diz respeito ao tpico da reflexofilosfica. Era um homem muito inteligente, mas sempre considerei que asua influncia foi extremamente nefasta. Quanto a Ryle, no achava amesma coisa dele. Vim a achar gradualmente, mas na altura no. Pelo con-trrio, acreditava nele, ou provavelmente acreditava em muito do que Ryledizia. Ele estava completamente contra Carnap. Considerava Carnap como opior dos filsofos, achava que ele cometia erros triviais, e devido a issopassou muito tempo at que eu lesse qualquer coisa de Carnap e o levasse asrio. Cresci, por assim dizer, como estudante de filosofia em Oxford,quando Ryle era rei. Ele teve uma influncia tremenda. Austin veio umpouco depois. Eu pensava que no havia necessidade de prestar ateno aCarnap s porque Ryle dizia que no e porque fazia pouco dele. Portanto, aminha situao muito diferente da daquelas pessoas para quem Carnap eraa grande autoridade.

    FP Basta pensar na sua influncia em Quine e em Goodman.MD verdade. The Structure of Appearance, que foi o primeiro livro

    de Goodman, foi um esforo, uma tentativa, para fazer a mesma coisa doque a logishe Aufbau. Eu achava, e de facto ainda acho, que este um em-

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    preendimento completamente equivocado.10 Penso que o ponto de vista deWittgenstein segundo o qual no existem teses filosficas que a filosofiapossa realmente afirmar, e que tudo o que ela pode fazer lembrar-nos decoisas que j sabamos antes, um ponto de vista errado. H teorias a con-struir. Mas as teorias de Carnap, propriamente ditas, no me impressionammuito. H algo de muito estril nelas. Portanto, para mim, a revolta de Quine muito compreensvel.

    Como hei-de explicar isto? Conhece a histria do irlands? Uma pessoaperde-se e pergunta a um irlands: Como que se vai para Dublin? Oirlands pensa um bocado e diz: Se eu fosse para Dublin, no partia daqui.Acho que foi realmente uma pena ter-se partido de Carnap.

    FP Isso pode ser verdade, mas podem-se encontrar muitas preocupa-es em Carnap por exemplo no extenso artigo Testability and Mean-ing que esto de facto muito prximas do tipo de coisas que o preocu-pam a si.11 Estou a pensar especialmente na teoria verificacionista dosignificado e da maneira como ele tenta corrigi-la, substituindo a noo deverificao pela noo mais respeitvel de confirmao gradual, entendidaem termos probabilsticos. Estou a pensar tambm na sua rejeio da ideiaingnua de que as asseres no verificveis no tm significado, um indcioseguro de que havia algo de errado com o primitivo critrio positivista designificado ou de significado cognitivo. Todas estas preocupaes estomuito prximas das questes fundamentais do debate realismo versus anti--realismo tal como o Prof. Dummett o concebe.

    MD Provavelmente verdade. O facto de eu no ter prestado qualquerateno a Carnap deve ser um efeito tardio do ensino de Ryle.

    4. A filosofia analtica, a sua histria e a tese da prioridade

    FP Deixemos ento Carnap de lado. Deixe-me passar para outraquesto. Recentemente, mostrou algum interesse pela histria da filosofia.

    10 Rudolph Carnap, Der logische Aufbau der Welt, Weltkreis Verlag, Berlim,1928; trad. ingl. de R. A. Berkeley: The Logical Construction of the World, Univer-sity of California Press, Berkeley, 1967. Nelson Goodman, The Structure of Appear-ance, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1951. Ver a anlise que Dummettfaz deste ltimo em Truth and Other Enigmas, cap. 3, pp. 29-37.11 Rudolph Carnap, Testability and Meaning, Philosophy of Science, vol. 3 (Out.1936), pp 419-71 [sec. I-III]; vol. 4 (Jan. 1937), pp.1-40 [seco IV].

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    Defende, logo no incio de Origins of Analytical Philosophy, que a filosofiaanaltica tem de compreender a sua prpria histria12. Suponho que isto foimotivado pelas queixas de Sluga acerca do seu primeiro livro.

    MD Possivelmente foi. Indirectamente. Isto : os comentrios de Slugaconvenceram-me, depois de um bocado, que eu no tinha prestado suficienteateno ao contexto histrico de Frege. Mas tambm, como disse, a suaprpria anlise histrica no me impressionou muito. Em particular, fiqueimuito mal impressionado com a sua recusa em prestar o mnimo de atenoa Husserl. Nesse livro sobre Frege, afirma que seria interessante fazer umacomparao entre os dois, mas que isso est fora do mbito da obra. A mimparece-me que se se est a escrever um livro sobre Frege e sobre o seu con-texto histrico, precisamente isso que se deve fazer. No h nada de muitofrutuoso em toda aquela coisa sobre Lotze e no sei que mais.

    Mas no foi apenas em resposta a Sluga. Foi tambm por causa de Her-man Philipse, um filsofo holands que por acaso estava em Oxford em1982 ou 1983 e que queria dar um seminrio sobre as Investigaes Lgicasde Husserl. Contactou-me, em parte, imagino eu, porque era apenas visitantee no sabia se iria ter alunos se desse um seminrio ou se lhe era mesmopermitido dar o seminrio. Ofereci-me para d-lo com ele. Em resultadodisso, como bvio, comecei a dedicar-me leitura das Investigaes efiquei muito interessado. Portanto, foi uma combinao de vrias coisas. Aoutra motivao foi responder s perguntas a que Sluga no tinha re-spondido.

    FP Qual o interesse filosfico de uma compreenso desse tipo, umacompreenso da histria da filosofia analtica, para alm do interessehistrico ou cultural em geral? A grande maioria dos filsofos analticosacha que, do ponto de vista filosfico, completamente irrelevante.

    MD Sim. Mas olhe que no comeo do sculo, digamos na altura emque Husserl publicou as Investigaes Lgicas, a fenomenologia ainda noexistia enquanto escola. A filosofia analtica ainda no existia enquantoescola. Existiam vrias correntes e qualquer pessoa teria colocado Frege eHusserl muito prximos um do outro; e contudo o legado dos dois divergiu

    12 O texto original da srie de conferncias dadas na Universidade de Bolonha em1987 apareceu em Lingua e Stile, Anno XXIII, 1988, pp. 3-49, 171-210. Uma versorevista foi depois publicada sob o ttulo Origins of Analytical Philosophy, Duck-worth, Londres, 1993. A partir de agora tomo esta edio como referncia.

  • Uma Entrevista com Michael Dummett 37

    muitssimo. uma questo muito interessante, que de certeza vai elucidarmuita coisa. Por que divergiram tanto? Outra maneira de formular isto aseguinte. Na prpria tradio analtica, h agora algumas pessoas GarethEvans foi um dos primeiros que rejeitam aquilo a que eu uma vez chameio teorema fundamental da filosofia analtica, a prioridade da linguagemsobre o pensamento.

    FP A tese da prioridade.MD Sim, a tese da prioridade. No entanto, eles esto muito claramente

    na tradio analtica. No creio que Evans alguma vez tenha lido uma pa-lavra de Husserl em toda a sua vida. No seu livro, Russell, Frege e Mooreeram as grandes referncias.13 Agora h outras pessoas. Cristopher Peacocke outro. Isso coloca uma questo: o que essencial filosofia analtica?Antes, poder-se-ia ter dito que era a tese da prioridade. Todos a aceitavam.Mas isso j no verdade. Estas pessoas so filsofos analticos? bastantebvio que so, porque o tipo de anlise que praticam muito semelhante a(ou pelo menos derivada de) uma teoria fregeana do significado, de umasemntica fregeana ou qualquer coisa desse gnero. Portanto, a questo dedeterminar o que essencial filosofia analtica de facto uma questomuito interessante. Mas como se pode entender isso se no se voltar s suasorigens? O que distingue este tipo de filosofia dos outros? De onde parte adivergncia? Portanto, acho que h muito trabalho a fazer.

    Outra coisa que no discuti no meu primeiro livro, mas pode elucidarmuita coisa, acho, o facto de no percebermos realmente a relao entreWittgenstein e o Crculo de Viena. Por causa do Tractatus. Esse que olivro. Wittgenstein tinha um profundo respeito por Frege. Mas o Tractatus da escola de Russell muito mais do que da escola de Frege. Foi escrito noambiente de Cambridge, no ? Os problemas sobre os quais ele tinha pen-sado eram problemas sobre os quais Russell, Ramsey, etc., tambm tinhampensado. E depois teve um impacto enorme em pessoas completamentediferentes, num ambiente completamente diferente, em Viena. O que acon-teceu ao certo? Qual era a relao entre Wittgenstein e estas pessoas? Noconsigo perceber e parece-me que, quando conseguirmos, vamos aprendermuito, no apenas do ponto de vista histrico mas tambm do ponto de vistafilosfico.

    13 The Varieties of Reference, org. por J. McDowell, Clarendon Press, Oxford, 1982.Tambm em Gareth Evans: Collected Papers, Clarendon Press, Oxford, 1985.

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    FP Diz tambm no incio do livro que no est interessado nas rela-es causais entre autores e teorias, mas antes na posteridade das ideias queestavam no lair du temps na viragem do sculo, ideias que se podem en-contrar em autores que no pertencem tradio analtica, como Brentano eHusserl.14 A certa altura, diz, mais precisamente, que a posteridadelegtima destas ideias o que lhe interessa.15 Existem intrusos, pessoas quedizem ilegitimamente pertencer tradio analtica, mas que de facto nopertencem?

    MD Essa uma excelente pergunta. Os nicos que me ocorrem nestemomento como intrusos so pessoas de vrios tipos que pensam, de umamaneira ou de outra, que a filosofia acabou. Entre eles, h alguns pretensosseguidores de Wittgenstein. H, claro, Baker e Hacker, que acham que jno h verdadeiramente mais problemas filosficos para resolver.16 Quandose atingiu o nirvana, como eles, v-se que as discusses filosficas nopodem deixar de ser destitudas de sentido. Tudo o que se pode fazer des-bobinar a sua histria e assinalar as diferentes espcies de teses destitudasde sentido que foram sendo defendidas. No mais do que a histria dospseudoproblemas e das solues sem sentido propostas para os resolver. tudo. Rorty, nos Estados Unidos, embora de uma perspectiva ligeiramentediferente, defende essencialmente a mesma doutrina.

    FP Na Europa continental, j defendida h muito tempo.MD Ah sim? Por quem?FP Por Derrida, por exemplo. Mas tambm, e mais geralmente, por

    pessoas que esto convencidas de que h uma descontinuidade fundamentalentre os problemas filosficos tal como so postos em diferentes pocashistricas, ou melhor, entre as sucessivas formulaes desses problemas.Neste caso, a doutrina parece ser uma consequncia directa de uma con-cepo historicista da filosofia e no um credo filosfico em que as pessoas

    14 Origins of Analytical Philosophy, pp. 2-3.15 Op. cit., p. 3: Falarei das direces que diversas ideias filosficas tomaram e dequais foram os seus desenvolvimentos legtimos, sem me preocupar muito com quemleu a obra de quem ou se X foi buscar uma certa ideia a Y ou chegou a ela indepen-dentemente.16 G. P. Baker e P. M. S. Hacker, Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1de um Analytical Commentary on the Philosophical Investigations, Basil Blackwell,Oxford, 1980; vol. 2: Wittgenstein: Rules, Grammar and Necessity, Basil Blackwell,Oxford, 1985.

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    se limitam a acreditar cegamente. Em alguns casos, tem levado as pessoas asentenciar que quaisquer solues para os problemas filosficos tradicionaisesto a priori condenadas a falhar.

    MD Mas Derrida no se diz da tradio analtica.FP Mas a influncia continental em Rorty muito grande. E, atravs

    de pessoas como Rorty, em Putnam, por estranho que parea.MD Putnam rejeita muito do que Rorty diz, mas um tanto ou quanto

    influenciado por ele. Est bem, classifiquemo-los a todos como intrusos.FP Como havemos ento de identificar a filosofia analtica? Parece ser

    uma tarefa bastante difcil. No podemos faz-lo dizendo que h um con-junto de posies que todos os filsofos analticos tm de defender s por-que so filsofos analticos. (A propsito, no continente europeu assim quealgumas pessoas vem as coisas: os filsofos analticos so todos empiristasou positivistas de um tipo qualquer.) No podemos, por assim dizer, recorrerao contedo, mas tambm no podemos recorrer ao mtodo. No existe ums mtodo partilhado por todos os filsofos analticos quando examinam umproblema especfico. Ento, como havemos de fazer? Em Origins of Ana-lytical Philosophy, o Prof. Dummett adopta um ponto de vista muito forte erestritivo acerca disto, ao defender que s uma anlise filosfica da lin-guagem pode conduzir-nos a uma anlise filosfica do pensamento.17

    Parece-me que, se adoptarmos esse ponto de vista, a obra de Gareth Evansdeixa de fazer parte dessa tradio. Talvez ainda faa, mas apenas margi-nalmente.

    MD Mas, historicamente, muito claro que faz, no verdade?FP Historicamente faz, e justamente isso que eu queria mostrar.

    Podemos tambm olhar para este problema de um ngulo diferente. Pense-mos, por exemplo, na maneira como Nelson Goodman explica aquilo emque consiste o (ou o seu gnero particular de) nominalismo. No tanto queele esteja empenhado em dizer o que os particulares so. (Concordo queacaba por fazer isso.) Ele est primariamente empenhado em explicar o que

    17 Op. cit., p. 4: O que distingue a filosofia analtica, nas suas diversas manifesta-es, das outras escolas a crena, em primeiro lugar, de que se pode conseguir umaanlise filosfica do pensamento atravs de uma anlise filosfica da linguagem e,em segundo lugar, que uma anlise abragente apenas [nfase minha] pode ser conse-guida dessa maneira..

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    descrever o mundo concebido como sendo composto por particulares.18

    Podia dizer-se: Bem, essa uma maneira tipicamente analtica de fazer ascoisas. A questo metafsica per se adiada at que a questo lingusticaseja cabalmente compreendida ou resolvida, ou talvez at que se tenha en-contrado uma formulao satisfatria da questo lingustica. Poderamosencontrar muitos outros exemplos.

    Mas deixe-me regressar a Evans e anlise dos pensamentos singularesque ele prope no artigo Understanding Demonstratives, a qual, sob mui-tos aspectos, se funda na rejeio implcita da tese que o Prof. Dummettconsidera ser a tese fundamental da filosofia analtica. Evans pensa queatribuir um sentido fregeano a um termo singular dizer que h um modoparticular como o seu referente tem de ser pensado (como referente) demodo a que o termo seja compreendido.19 Se adoptarmos a sugesto deEvans, a nossa explicao tem de ir do pensamento para a frase e para otermo. Comeamos por explicar o que ter um pensamento acerca de umobjecto particular e depois vamos caracterizar o significado da frase quecontm uma ocorrncia do termo singular que tem o objecto como seu refer-ente em termos da expresso desse pensamento especfico acerca do objecto.Em relao aos nossos pensamentos, as nossas atitudes epistmicas para usar uma expresso de Evans desempenham de facto um papel nadeterminao do sentido. Assim, qual o papel, se que h algum, quedevemos atribuir a esta tese da prioridade na identificao da filosofiaanaltica?

    MD No podemos certamente recorrer doutrina, como disse. Pode-seadoptar a atitude segundo a qual, depois de rejeitada a tese da prioridade,estamos na ps-filosofia analtica ou coisa do gnero. Podia-se fazer delauma caracterstica definitria. Mas eu acho que isso seria errado, ou pelomenos no ajudava em nada. Penso que a grande diferena entre os filsofosanalticos e os outros provavelmente a de que todos os filsofos analticostomam como ponto de partida algo parecido com o tipo de semntica quesubjaz lgica matemtica, i.e., a semntica fregeana. No necessariamente

    18 Ver, e. g., Nelson Goodman, A World of Individuals, republicado em Problemsand Projects, Bobs-Merrill, Indianapolis e Nova Iorque, p. 159.19 Gareth Evans, Collected Papers, p. 291-321. A citao da p. 301. Ver tambm,no fim da seco IV, p. 308-311, as observaes acerca de estados epistmicos,ter um objecto em vista e apreender um objecto.

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    em todos os pormenores, mas no entanto partem de uma estrutura dessegnero, na qual as partes componentes das frases ou dos pensamentos projecta-se e toma-se a estrutura das frases como modelo para a estruturados pensamentos contribuem para o valor semntico da frase completa oudo pensamento completo. Essa contribuio algo que vai no sentido dedeterminar a sua verdade ou assertibilidade.

    FP Portanto, a composicionalidade que a caracterstica definitria?MD No apenas a composicionalidade como princpio geral, mas a

    composicionalidade a par de uma ideia de sintaxe mais ou menos como a dalgica de predicados padro. Isto muito vago e capaz de ser difcil deaplicar a alguns dos filsofos da linguagem comum. Mas penso que, noentanto, o seu pano de fundo que, de facto, distingue os filsofos analticosdos outros. Muitos prestam pouqussima ateno lgica matemtica. Toda-via, fez parte da formao de todos eles. Faz parte da perspectiva que tmsobre o significado e o contedo.

    FP Nesse caso, uma questo de estilo? Hoje, muitas pessoas dafilosofia analtica no esto interessadas, nem directa nem indirectamente, nalgica matemtica.

    MD A lgica matemtica uma vasta estrutura que vai muito paraalm da parte elementar que at pode ser tudo o que eles aprenderam. Mas algica elementar est subjacente sua concepo de linguagem e de pen-samento, ao passo que no o para aqueles que no tm esse conhecimentoelementar. Por acaso no sei como as coisas se passam: ensina-se lgicamatemtica elementar a quem estudar filosofia numa universidade francesa?

    FP Com certeza, embora a maior parte das pessoas pense que ela completamente irrelevante para as questes filosficas profundas. Vem-nacomo uma disciplina puramente tcnica.

    5. Anti-realismo, verificacionismo e a filosofia da mente

    FP Tenho uma srie de questes para lhe pr acerca da relao entre afilosofia da linguagem, a filosofia da mente e o anti-realismo. Deixe-mecomear com o tipo de anti-realismo que defende, ou melhor, com o tipo dedesafio que acha que o realista tem de enfrentar. Muitas pessoas acham queo tipo de semntica que adopta implica o verificacionismo, sob uma forma

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    ou outra. H, por exemplo, a crtica de Michael Devitt20, que se apoia certa-mente numa interpretao deste tipo e tambm a de Stephen Schiffer que,em Remnants of Meaning, est muito perto de o acusar quer de verifica-cionismo quer de behaviourismo.21 Claro que estas so posies filosficasque acho que ningum se atreveria a defender hoje. Em todo o caso, tenta-dor pensar que uma teoria anti-realista do significado est prxima de (se que no mesmo idntica a) uma teoria verificacionista do significado. Qual a principal diferena entre o anti-realismo tal como por si concebido eesta posio um tanto desactualizada? Como distinguiria uma da outra?

    MD Disse que j ningum verificacionista. Usei efectivamente nopassado o termo verificao, mas no creio que seja um termo completa-mente feliz. Justificao melhor e a ideia que eu defendo que o signifi-cado de uma assero dado pelo tipo de justificao que poderia sustent--la.

    H um grande contraste entre o verificacionismo do Crculo de Viena e otipo de teoria do significado que eu advogo, que parte da sua rejeio isto, da minha rejeio do tipo de atomismo que estava implcito na ideiados positivistas. Os positivistas falavam como se pudesse considerar-se quecada frase tem um sentido ou um significado independentemente de per-tencer a uma linguagem; isto , independentemente de haver outras frasesrelacionadas com elas. A verificao consistiria, em ltima anlise, numacerta sequncia de experincias sensoriais. Ora, isto no faz, claramente,sentido. No se pode ter uma teoria do significado que passe ao lado dofacto de que as nossas frases fazem parte de uma linguagem e esto relacio-nadas com outras frases. Em geral, a justificao de qualquer assero h-deser qualquer coisa que envolve no apenas uma experincia mas tambminferncia. Este justamente o contraste feito no famoso artigo de QuineTwo Dogmas of Empiricism.22 Ele acaba por chegar imagem da lin-guagem como uma estrutura articulada, com algumas coisas

    FP na periferia

    20 Michael Devitt, Realism and Truth, Princeton University Press, Princeton, 1984,cap. 12.21 Stephen Schiffer, Remnants of Meaning, MIT Press, Cambridge, Mass., 1987,seco 8.4.22 O artigo foi reimpresso em Quine, From a Logical Point of View Nine Logico-Philosophical Essays, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1953, pp. 20-46.

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    MD outras coisas mais no interior, etc. Pense na concepo designificado que ele usa e eu no estou a dizer que ela me satisfaz tal comoest. O facto que ele no ataca o positivismo s por ser verificacionista.Pelo contrrio, a imagem com que ele termina tem tudo a ver com a confor-midade entre a estrutura das frases e os valores de verdade atribudos a essasfrases, por um lado, e a experincia, por outro. A experincia tem um im-pacto na estrutura como um todo. Portanto, ainda entendida em termos deverificao (ou falsificao, se quiser) e em termos dos ajustamentos quetm de ser feitos na estrutura em funo do impacto da experincia. O queele ataca a ideia de acordo com a qual cada frase est sozinha, por assimdizer, espera que algo tenha impacto nela.

    FP Isolada, digamos, do resto da linguagem.MD Exactamente. bvio que o impacto pode transmitir-se da perif-

    eria para o centro e que essa transmisso feita atravs de conexes inferen-ciais, embora ele no especifique exactamente como. Mas o ponto este:no devemos conceber a justificao de acordo com o modelo empiristasegundo o qual ela se resume a uma sequncia de experincias sensoriais.Pode tomar qualquer forma que se queira. Por isso que os positivistastiveram que traar aquela dicotomia entre frases empricas e frasesmatemticas.

    FP Ou frases formais em geralMD que tm um tipo completamente diferente de significado. Mas

    na concepo que estou a defender h uma escala. H frases puramenteobservacionais se se pode dizer que existem que apenas se podemverificar directamente pela observao, sem qualquer mediao da infern-cia. No outro extremo, esto coisas que podemos determinar s pelo racio-cnio, como os teoremas da matemtica; e a maior parte das coisas ocupauma posio intermdia. De modo que esse o contraste entre o verifica-cionismo e o anti-realismo.

    De certo modo, a diferena depende do que se entender por verifica-o. Se verificao quiser simplesmente dizer que ela feita em termosda maneira como estabelecemos o valor de verdade de uma assero, ento aminha teoria do significado verificacionista. S que no fao questo deque, para cada assero, haja uma maneira de a estabelecer conclusivamente.Estou perfeitamente preparado para admitir que haja algumas asseres paraas quais ela no existe. H sempre casos em que as asseres se podemdeixar cair mais tarde, casos em que podem ser revistas. uma caracterstica

  • 44 Fabrice Pataut

    do significado de certas frases que elas possam ser confirmadas mas noconclusivamente determinadas quanto ao valor de verdade. Pode chamar-lheverificacionista nessa acepo geral, se quiser, mas no na acepo atomistado termo, e no com qualquer ideia preconcebida acerca da forma que ajustificao pode assumir.

    Penso que justificao muito provavelmente um termo melhor doque os outros. Usei originalmente verificacionista porque queria chocarum pouco as pessoas. Toda a gente dizia: O positivismo foi refutado.Nunca apresentaram uma boa explicao do motivo pelo qual tinha sidorefutado. Em minha opinio, Quine foi a pessoa que o refutou. A maior partedas pessoas sabia que j no acreditvamos nele mas no tinham nenhumargumento. De modo que ficaram chocadas. O que eu queria dizer era queno era a componente verificacionista do positivismo que estava errada, eraa componente atomista.

    FP Ainda quer manter a distino analtico/sinttico?MD Quero. Acho que um erro deit-la fora.FP Portanto, resumindo, acha que o significado de uma assero

    determinado ou fixado, digamos, pelas suas condies de justificao, masque essas condies no podem ser interpretadas atomisticamente.

    MD exactamente isso. E, acima de tudo, penso que essas condiesincluiro normalmente uma componente de inferncia. Portanto, a lin-guagem depende da linguagem, por assim dizer.

    FP Mas se as condies de justificao no podem ser formuladasatomisticamente, no deviam ento ser formuladas holisticamente? A com-preenso de uma frase depender sempre da compreenso das frases queesto algures no caminho dela para a periferia ou da periferia para ela. Istono vai na direco do holismo?

    MD No creio. Ficamos com o holismo se abolirmos a distino entrea periferia e o interior, certo?

    FP Portanto, quer separar a distino entre a periferia e o interior dadistino analtico/sinttico?

    MD Quero ter uma direco. A inferncia, claro, funciona em ambasas direces. Quero ter uma relao de dependncia de significado que v,falando informalmente, apenas numa direco, porque penso que no po-deramos ter competncia lingustica se o holismo estivesse correcto. Pensosem dvida que no poderamos proporcionar uma descrio sistemtica da

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    maneira como a competncia lingustica funciona se o holismo estivessecorrecto.

    Posso acrescentar uma coisa? Muitos dos ataques distinoanaltico/sinttico tm a ver com uma caracterstica observada nas lin-guagens naturais, designadamente a de que tm muito de jogo. Isto temcertamente justificao. Se quisssemos apresentar uma teoria sistemtica dosignificado, teramos de repartir, por assim dizer, o sentido entre as diferen-tes palavras e construes duma linguagem e provavelmente no h apenasuma maneira de fazer isso. Se nos pedissem para explicar o que o signifi-cado, ou o tem algum de saber para saber o significado de uma expresso,provavelmente atribuiramos o mesmo significado a expresses diferentes.Isto equivale a um certo holismo na nossa compreenso da linguagem. Notemos uma maneira inequvoca de dizer: Bem, se no percebemos isto,ento esta a palavra cujo significado no sabemos. Por outro lado, con-traste isto com o tipo de esquema fregeano rgido em que cada expressotem o seu sentido perfeitamente determinado. Acho que esse um ideal peloqual nos esforamos conscientemente quando temos necessidade, e temosnecessidade quando h disputas ou incertezas acerca do que so as nossasjustificaes. Construmos teorias, e quando fazemos isso, temos de chegar aacordo acerca daquilo que ser considerado o sentido ou a definio deste oudaquele termo, de modo que arrumamos a casa e aproximamo-nos doesquema fregeano.

    Portanto, eu no pretendo dizer que a distino analtico/sinttico temaplicao de maneira absolutamente determinada na nossa linguagem, talcomo ela . Mas no acho que seja algo para deitar fora. Pelo contrrio, algo que precisamos de usar quando estamos a tentar solucionar divergn-cias ou a tentar compreender as justificaes daquilo em que acreditamosno mais do que vagamente.

    FP Gostaria de voltar oposio entre a filosofia da linguagem e afilosofia do pensamento. Falmos dela a propsito da tese da prioridade e doseu papel na identificao da filosofia analtica. Mas eu gostava quefalssemos, ainda a propsito da tese da prioridade, sobre a possibilidade deuma filosofia da mente anti-realista.

    O Prof. Dummett afirmou que as origens da noo de verdade (ou falsi-dade) de uma entidade lingustica (uma frase, uma assero) estavam nadistino entre um falante ter objectivamente razo ou no ter objecti-

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    vamente razo quando faz a assero.23 Se isso acontecer, a noo de as-sero , de um modo ou de outro, mais fundamental do que a noo deverdade. Ora, difcil ver como poderamos produzir uma anlise satis-fatria da noo de assero sem ter em conta noes psicolgicas: noescomo a de crena, desejo, inteno e coisas do gnero.24 De modo que se anoo de assero mais fundamental do que a de verdade, e se precisamosda noo de assero para fornecer uma explicao filosfica da noo deverdade, parece que, para explicar a noo de verdade, temos de apelar paranoes psicolgicas. Devemos fazer isso?

    MD Estou a ver. Gostava de dizer algo em primeiro lugar que no uma resposta directa questo, mas serve para clarificar a posio que voudefender. Penso que a noo de assero correcta e incorrecta muito maisprimitiva do que a noo de verdade. Em filosofia h imensos exemplos depessoas que dizem: Estes tipos de elocuo especficos no correspondem aasseres com condies de verdade determinadas. Diz-se isto acerca dascondicionais, por exemplo. Hilbert disse-o acerca das asseres matemticascom quantificadores ilimitados. Ora o que eles esto a dizer que tem de seinterpretar essas elocues como algo que exprime uma pretenso. muitoclaro nos exemplos mais simples por exemplo, na interpretao que Hil-bert faz das asseres quantificadas existencialmente como comunicaesincompletas. A ideia que temos justificao para as fazer se pudermosapresentar um exemplo. Nesta perspectiva, a distino crucial no entreverdade objectiva e falsidade objectiva. A distino crucial formulada emtermos do que ns podemos fazer, em termos de se ns podemos ou nojustificar a nossa pretenso. E isto ajusta-se perfeitamente ideia de umaassero correcta versus uma assero incorrecta.

    A diferena entre esta perspectiva e considerar que uma assero tem umvalor de verdade objectivo que as condies de verdade tm de ser inde-pendentes da minha situao epistemolgica, de tudo o que eu seja capaz defazer a menos, claro, que a assero seja sobre mim. A ideia ento a deque a assero determinadamente verdadeira ou falsa independentementede eu a poder justificar ou no. Ao passo que na outra perspectiva consid-eramo-la apenas em termos de eu poder justificar a pretenso que exprimo. isso que eu tenho em mente quando digo que a noo de assero abre

    23 Truth and Other Enigmas, p. xvii.24 Ver, e. g., de novo Truth and Other Enigmas, p. xvii.

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    caminho, por assim dizer, noo de verdade. Mas tem de se ir muito maislonge para ficar com a noo de verdade propriamente dita. Digamos que s o incio do caminho nessa direco. Para chegar noo de verdade,temos de perguntar: Por que razo no posso considerar isto como algo queexprime, pura e simplesmente, uma pretenso (se que no posso)? Por quetenho de lhe dar uma apreciao objectiva, independente de mim?

    Penso que o passo no seu argumento que devo rejeitar a tese de que aassero tem de ser explicada psicologicamente. Sei que houve uma fase emque quer Russell quer Wittgenstein defenderiam essa tese, mas eu noacredito nela. Acho que uma questo complicada. Temos a assero comoum acto exterior. H uma frase que tem de ser compreendida como tendosido proferida assertivamente, e h tambm o acto interior do juzo, quandose ajuza que algo verdadeiro. Penso que prefervel considerar o juzocomo a interiorizao do acto exterior da assero do que ao contrrio, i.e.,do que considerar a assero como a expresso de um estado ou acto in-terno.

    H uma pergunta algures nas Investigaes Filosficas: Qual o jogode linguagem da assero? Na verdade, Wittgenstein acha que a asserono uma coisa nica. H vrios casos diferentes. Mas acho que , no en-tanto, uma pergunta perfeitamente correcta.

    Temos muito pouco a tentao de explicar o que dar uma ordem emtermos psicolgicos. Normalmente, quando uma pessoa que d uma ordemest numa posio de autoridade em relao a outra, presume-se normal-mente que ela quer que a outra pessoa faa o que ela lhe ordena que faa.Mas no se tem de presumir que ela tem outros motivos para dar a ordem. Ofacto que, se ela est realmente numa posio de autoridade, ela est ape-nas a dar a ordem e isso tem certos efeitos, seja qual for a razo pela qual eladeu essa ordem. Aquilo que temos de fazer descrever o jogo de linguagemdas ordens e penso que o mesmo vlido para a assero. Nesse caso no to bvio, porque as consequncias no so to claras como as consequn-cias de dar uma ordem. Isso torna a coisa muito mais complicada de de-screver, mas eu penso que aquilo que tem de ser descrito com o jogo delinguagem da comunicao, que implica dizer coisas s pessoas, e noqualquer coisa que diga respeito a estados internos. De maneira que noacho que tenhamos de apelar para a inteno ou para a crena; ou ento, setivermos de apelar para a inteno, s numa fase muito posterior, digamos.

  • 48 Fabrice Pataut

    FP Portanto, aquilo de que precisamos no mais do que a descriodo acto lingustico da assero? E possvel d-la sem ter em conta inten-es, crenas, desejos e outras atitudes proposicionais?

    MD disso que tenho esperana. Quer dizer, se me disser Est bem.Ento faa l! eu no consigo. Porque depende de toda a teoria do sig-nificado e no sei exactamente como fazer.

    FP Ento no lhe peo. Peo-lhe antes outra coisa. A minha segundaquesto acerca da oposio entre filosofia da linguagem e filosofia da mentediz directamente respeito ao contedo do debate entre realismo e anti--realismo. Este debate, tal como o concebe, no pode ser apenas acerca deentidades lingusticas (asseres, frases) por (parece-me) trs razes, pelomenos. Para comear, devia tambm ser acerca de crenas e estados decrena porque ns tambm avaliamos crenas e estados de crena em termosde verdade e falsidade. Em segundo lugar, o significado uma noo cogni-tiva. tudo aquilo que os falantes e os agentes competentes compreendemou sabem quando compreendem o significado das frases ou quando sabemqual ele , e a questo de saber como que o significado representadomentalmente altamente relevante para o debate. Por fim, a questo de saberse a noo de verdade tem de ser restringida epistemologicamente diz di-rectamente respeito natureza do conceito de verdade que possamos ou noconstruir legitimamente.

    Dado que o debate no pode ser apenas acerca da compreenso lin-gustica e tem de ser tambm acerca da formao de conceitos, no seriapossvel (para no dizer obrigatrio) formul-lo como um debate de filosofiada mente, enquanto tal? Um debate no apenas acerca do significado dasfrases mas tambm acerca de contedos mentais?

    MD Bem, pode ser que concorde consigo. Eu no pensaria certamenteque era um tpico com grande relevncia para estas disputas metafsicassobre o realismo como de facto penso se pensasse que era apenas umaquesto de linguagem, um bocado de semntica. Falvamos h bocado natese da prioridade. Ora, mesmo que sejamos adeptos de Evans ou de Pea-cocke e que pensemos que temos de descrever a estrutura dos nossos pen-samentos independentemente da sua expresso lingustica, surge ainda assima mesma dicotomia entre uma explicao em termos de condies de ver-dade o que tem de ser o caso para o pensamento ser verdadeiro e umaexplicao em termos de, digamos, justificao, com base na nossa capaci-dade ou incapacidade de o reconhecer como verdadeiro. De modo que se

  • Uma Entrevista com Michael Dummett 49

    pe aqui a mesma questo, tal como se pe, explicitamente, em Evans e emPeacocke.

    FP Devemos concluir que no h vantagem em consider-lo como umdebate de filosofia da mente?

    MD No penso que houvesse qualquer vantagem. Como sabe, euacredito na tese da prioridade. A diferena entre essas duas vias que a viada filosofia da mente, ou da filosofia do pensamento, tem tendncia para sersolipsista. Fala-se de sujeitos individuais, do contedo que um sujeito indi-vidual pode atribuir a um pensamento, como ele reconhece esse pensamentocomo verdadeiro, e assim por diante. E no tem muito a ver (pelo menoshabitualmente) com a comunicao, ao passo que eu acho que provavel-mente no se obtm uma boa resposta se no se discutir o assunto em termosde comunicao. Mas esta uma questo muito lata.

    FP H duas questes distintas no que diz respeito tese da prioridade.H a questo metodolgica e h a questo acerca do contedo do debaterealismo versus anti-realismo. Um problema o de saber se a filosofia dopensamento pode ser abordada apenas atravs da filosofia da linguagem, ouseja, se a linguagem anterior ao pensamento na ordem da explicao. Esta uma questo metodolgica. Uma questo diferente decidir se o debate tambm acerca de contedos mentais. -o claramente no sentido em que, seo que est a ser debatido saber se o significado de uma frase determinadopelas suas condies de verdade, ento o problema de saber se o contedodo pensamento expresso pela frase determinado pelas suas condies deverdade faz tambm parte do debate.

    Portanto, h na verdade duas questes diferentes: a metodolgica e a decontedo. Parece-me que a sua forte posio metodolgica quanto primeira irrelevante para a segunda. So logicamente independentes. De modo quea revogao do axioma fundamental da filosofia analtica no faz diferena e perfeitamente legtimo comear com a questo do contedo dos nossospensamentos. Por outro lado, vamos dar aos mesmos problemas.

    MD Acho que tem toda a razo. Acho que uma questo de me-todologia. Ficamos, de facto, com os mesmos problemas. E por isso queem grande medida, como disse, a tal revogao no impede grandemente acomunicao entre as pessoas de um lado e do outro. Mas h um ponto emque elas divergem e que tem a ver com metodologia. Isto : o filsofo dopensamento no presta muita ateno a nada que tenha a ver com interacoverbal, ao passo que, obviamente, a linguagem prvia na ordem da expli-

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    cao. A linguagem algo de comunitrio. , em primeiro lugar, um meiode comunicao.

    FP E justamente porque algo de comunitrio que defende a tese daprioridade?

    MD Sim.FP Mas os pensamentos fregeanos tambm so uma coisa comunitria.

    Pode muito bem argumentar-se a favor da tese da prioridade com base nofacto de ela ter a vantagem de evitar o psicologismo. Mas qual o erro dopsicologismo, seno o de defender que os pensamentos fazem parte do fluxoda conscincia? Parece-me que uma questo crucial ento decidir se aconfuso entre Gedanke e Vorstellung se segue, necessariamente, da rejeioda tese da prioridade. Suponha que adoptamos a sugesto de Evans quediscutamos h pouco. Estamos, s por isso, a fazer psicologia, no sentidocriticado por Frege e Husserl? Temos de argumentar que o modo como oreferente pensado, o seu modo de apresentao ao nvel do pensamento, parte do fluxo da conscincia? Nem que fosse s por motivos fregeanos,podia dizer-se: Sim, h razes para defender a tese da prioridade. Elaoferece uma proteco eficaz contra os erros do psicologismo. Mas essaconfuso entre Gedanke e Vorstellung realmente inevitvel? No h manei-ras de evitar essa confuso ao mesmo tempo que se rejeita a tese da priori-dade?

    MD Claro que muito apressado dizer apenas: Mal se faa isso, cai--se no psicologismo. No isso que eu digo. Mas acho que necessrioque o filsofo do pensamento, tanto como o filsofo da linguagem, respeiteo princpio do contexto. Se tivermos em considerao o que Evans dizacerca dos modos especficos de pensar sobre um referente e o que ele dizsobre os referentes singulares, os pensamentos singulares e assim por diante,temos de reconhecer que a maneira como pensamos sobre um objecto par-ticular algo que faz parte de um pensamento completo. O modo de conce-ber um objecto um ingrediente de um pensamento completo. No fazsentido falar dele independentemente do

    FP contexto em que est inserido.MD Exactamente: independentemente do contexto que consiste em

    pensar que algo verdade sobre o objecto em questo. Tem de se perguntar:O que ter um pensamento completo? A menos que se caia em explica-es psicologistas, tem de se considerar um pensamento como o objecto deuma atitude proposicional, como Frege fez. acreditar em algo ou acreditar

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    que algo verdade. Tem de ser o contedo de uma atitude proposicional. exactamente o que Peacocke faz. Constri tudo a partir de uma caracteriza-o das atitudes que um ser que talvez no tenha uma linguagem pode mani-festar.25

    FP E para ele os pensamentos so pensamentos fregeanos, Gedanken.MD So exactamente isso, e so os objectos de crenas ou desejos, ou

    uma destas coisas. Ainda no acredito que um projecto destes funcione, masno penso que o possamos acusar de psicologismo, sem mais nem menos. Sese pudesse dar uma caracterizao destas atitudes proposicionais sem fazerreferncia sua expresso, a coisa funcionava. No creio que Peacocke ouquem quer que seja tenha realmente mostrado que possvel.

    FP muito pessimista no que diz respeito ao que se pode esperar dafilosofia da mente. E quanto cincia cognitiva?

    MD Sou pessimista quanto cincia cognitiva. No sou pessimistaem relao s pessoas como John Campbell que se voltam para afilosofia do pensamento. Para comear, tenho a certeza de que vo descobrirmuitas coisas nas suas investigaes, mesmo que toda a sua premissa bsicaesteja errada, mesmo que no tenham razo ao abolir a tese da prioridade.Em segundo lugar, acho que muito interessante ver at onde que se podelevar a coisa. Uma razo pela qual isto interessante que, se a coisa forcompletamente bem sucedida, ento a tese da prioridade est errada e noter qualquer interesse. Mas mesmo que no esteja errada, ser muito inter-essante ver at onde, especificamente, um programa de trabalho construdosobre a rejeio dessa tese poder ir.

    FP E quo longe pode ir.MD Quo longe pode ir exactamente. uma questo muito obscura.

    At Frege pensava que a tese da prioridade era apenas relativa a ns. Elepensava que seres sem linguagem podiam apreender os mesmos pensamen-tos que ns, apenas sem a roupagem da expresso lingustica. Mas ele nodeu nenhuma explicao de como isso seria. Tudo o que disse acerca disto que no era contraditrio. O que que isto quer dizer? Se as pessoas que sevoltam para a filosofia da mente tiverem razo, ho-de dar uma explicaopara isto. apenas um facto contingente se que um facto que nssomos capazes de apreender pensamentos por meio da linguagem. O que

    25 Ver, e.g., Cristopher Peacocke, Thoughts: An Essay on Content, Basil Blackwell,Oxford, 1986.

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    que ns temos que torna isso possvel? Todas estas questes so genunas emuito interessantes. Espero que nos revelem alguma coisa.

    FP H uma tendncia muito forte na filosofia analtica para optar pelafilosofia da mente em detrimento, por assim dizer, da filosofia da linguagem. muito bvio que as pessoas, nos Estados Unidos, esto a ir nesta direco.Cada vez h mais filosofia da mente.

    MD Muita dela de muito m qualidade, em minha opinio.FP A distncia entre a filosofia inglesa e americana parece estar a

    alargar-se cada vez mais nesse ponto. Isso deve-se, em grande parte, aoenorme impacto da cincia cognitiva nos Estados Unidos.

    MD Penso que verdade. E isso no me preocupa, porque eu de factopenso que a filosofia americana est, em grande parte, no mau caminho.

    FP Est a referir-se, em particular, filosofia da mente?MD Claro que isto no se aplica a Kripke nem a Putnam e a Davidson

    tambm no. Mas a tendncia geral para ir na direco do cientismo, o queme parece uma opo estril.

    FP Est a falar do materialismo, do fisicalismo, etc?MD Tudo isso. No vai levar a lado nenhum.FP Levou pelo menos a uma coisa. A posio em que estamos agora

    exactamente o oposto da posio em que Brentano e Husserl estavam. Elesconsideravam a intencionalidade como a marca irredutvel do mental, aopasso que ns achamos que somos apenas carne e osso, seres fsicos, e per-guntamos: Como pode uma entidade destas ter intencionalidade? Comopodem as mquinas (ou o que quer que seja que possa ser descrito em ter-mos puramente fsicos) ter intenes e pensamentos? E tentamos explicar aintencionalidade em termos naturalistas.

    MD Est bem, essa uma pergunta filosfica a fazer. Mas eu esperorealmente que a filosofia inglesa olhe muito mais para o que est a acontecernos outros pases europeus e muito menos para aquilo que est a acontecerna Amrica. a lngua que leva as pessoas a fazer isto. muito mais fciller artigos em revistas americanas. espantoso. H estas pessoas todas como Jonathan Barnes, Kevin Mulligan, Peter Simmons e assim queconseguem adaptar-se ao ensino no estrangeiro. Muito poucas pessoas comum grau acadmico fazem isso. Sobretudo, penso eu, por causa da lngua.Isso vem do ensino de lnguas nas escolas. Talvez devssemos ter cursos delnguas para estudantes graduados; exigir que eles dominassem pelo menosuma lngua europeia.

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    FP Voltando situao nos Estados Unidos. muito notrio que o seutrabalho, por exemplo, no tem muita audincia l. Muito poucas pessoas sedo sequer o trabalho de o ler. Putnam um dos que o l. Brian Loar e PaulHorwich, que ensina na Amrica, tambm o leram cuidadosamente. ComGareth Evans passava-se a mesma coisa. Poucos filsofos americanos sederam ao trabalho de o ler.

    MD verdade, e foi pena. Putnam foi parcialmente responsvel porisso. Fez uma recenso terrvel do livro The Varieties of Reference e arra-sou-o completamente. No sei por que razo fez isso. um erro de aprecia-o muito grave. Talvez no tenha tido muita influncia. Pode ter sido s umsintoma e no uma causa. No sei. Mas verdade que deviam ler Evans, um erro muito grave no o fazer. H muitas coisas de valor nesse livro.

    6. O anti-realismo e a tica

    FP Tenho uma ltima pergunta. sobre tica. Talvez no exista umadoutrina, um ponto de vista global ou uma Weltanschauung filosfica con-sistente a que se possa chamar o anti-realismo global e que consista no anti--realismo acerca da matemtica e do mundo natural e da vida mental dasoutras pessoas e dos agentes morais, etc.

    MD Pode ser que haja.FP Mas o facto que nunca argumentou a favor desse tipo de posio.

    H, no entanto, um conjunto de disputas filosficas que partilham o formatocomum de, como diz, um conflito entre uma viso ou interpretao realista euma viso ou interpretao anti-realista das asseres de uma dada classe,i.e., asseres matemticas, asseres acerca do mundo natural, da vidamental das outras pessoas, das normas ticas, etc. Este debate tal como oconcebe, e tal como algumas pessoas (como Crispin Wright) o conceberamdepois de si, aplica-se certamente tambm tica. H, digamos, a questo dorealismo acerca dos factos morais e dos valores morais. A minha pergunta :em que deve consistir o desafio anti-realista ao realismo tico?

    Deixe-me formular isto de uma maneira mais precisa. H pelo menosduas maneiras de formular o realismo moral: em termos de factos e emtermos de valores. Em termos de factos, consistiria no seguinte: h factosmorais objectivos que so constitutivos do mundo e o objectivo da delibera-o moral descobri-los. Existe, digamos, o facto objectivo de que a escra-vatura injusta. Mas tambm podamos exprimir o realismo moral em ter-

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    mos de valores. O realismo moral consistiria ento no seguinte: algumasaces, prticas e instituies tm de ser adoptadas ou, pelo contrrio, criti-cadas e abandonadas, consoante fomentem ou promovam valores que nsestamos objectivamente justificados em aceitar ou, pelo contrrio, em re-jeitar. O objectivo da deliberao moral neste caso descobrir que valoresdevemos adoptar e que valores devemos rejeitar, e quando descobrirmosisso, descobrimos algo de objectivo. Para voltar ao exemplo da escravatura,um realista poderia exprimir a sua posio argumentando que os valoresassociados instituio e prtica da escravatura tm de ser abolidos e queas razes que temos para o fazer so razes objectivas. O objectivo da delib-erao moral ser capaz de tomar decises em todos os casos que possamser menos bvios do a escravatura por exemplo, a eutansia ou o aborto.

    Parece-me que o argumento anti-realista contra o realismo moral inter-pretado em termos de factos deve ser um argumento que defenda uma formaou outra de no cognitivismo. Se estou a ver bem, um anti-realista deveargumentar que as asseres morais so cognitivamente vazias no sentidoem que no podemos descrever factos morais. No existem, pura e simples-mente, factos morais e, portanto, no podem ser descobertos. A pergunta quelhe quero fazer a seguinte: como deveria ser um argumento anti-realistacontra o realismo moral interpretado em termos de valores? Ser que umanti-realista tem de defender uma forma ou outra de relativismo e argumen-tar que as nossas aces, costumes, instituies, etc., ou so justos ou soinjustos relativamente a um conjunto de crenas de raiz cultural que formam,por assim dizer, as condies contextuais das nossas justificaes, de talmodo que as nossas justificaes ticas no podem deixar de ser, de ummodo muito forte e no eliminvel, derivadas do preconceito?

    Est disposto a argumentar a favor de alguma forma de anti-realismo emtica? Se sim, qual a sua posio? E como pensa argumentar a favor dela?

    MD Vou tentar dar-lhe uma resposta. S posso dar-lhe uma respostamuito programtica porque, para vergonha minha, nunca dediquei muitotempo a pensar nisso. No por pensar que perfeitamente dispensvel. Ac-ontece apenas que no pensei muito na questo.

    Parece-me, pelo menos, que a aplicao destas ideias anti-realistas ticatem de provocar uma mudana na formulao dos termos do debate, pelaseguinte razo. O tipo de anti-realismo que tenho em vista no nenhumaespcie de subjectivismo. completamente objectivo ou presume a objec-tividade, no sentido em que saber se uma assero ou no justificada umaquesto objectiva. Pense s no caso da matemtica. Saber se se tem ou no

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    uma demonstrao de uma assero uma questo objectiva. No se trata desaber se a assero verdadeira no que diz respeito a uma realidade moralobjectiva. Trata-se da expresso de uma pretenso cuja justificao objec-tivamente correcta ou no. Se se adoptar em tica qualquer coisa como umaposio anti-realista, neste sentido, ela no seria, claramente, uma posiosubjectivista. E acho que classific-la como no cognitivista seria tambmbastante incorrecto. A justificao uma questo de justificao cognitiva.Por outro lado, no se deve pensar que a nica alternativa a uma explicaosubjectivista da tica seria um tipo de esquema realista que encarasse asasseres ticas como algo que descreveria uma realidade que existe inde-pendentemente de ns, ou fazendo asseres objectivamente verdadeiras oufalsas. A explicao destas asseres tem de dar conta do facto de que apessoa que as faz , em princpio, capaz de as justificar. Teria de se investi-gar isto e eu no sou capaz de dizer muito acerca do tipo de justificao deque ns precisaramos exactamente, que caractersticas seriam constitutivasda justificao de uma assero tica.

    FP Em particular, de uma assero normativa.MD Exacto. No vou tentar agora. Mas esse seria o tipo de opo que

    se teria de tomar se se quisesse ver em que consistia o anti-realismo emtica. Ou seja, provavelmente seria uma posio intermdia.

    FP Talvez qualquer coisa do tipo da posio de Wiggins. Wigginsdefende o cognitivismo associado a um subdeterminismo no que diz respeitos afirmaes morais.26 primeira vista, o cognitivismo um aliado naturaldo realismo. Mas se Wiggins tem razo, isto no mais do que uma intuiosuperficial. Tambm temos tendncia para pensar que o tesmo um aliadonatural do realismo. Fala do tesmo no fim de The Logical Basis of Meta-physics.27

    MD No muito.FP Talvez. Mas sugere que o tesmo no um aliado natural do real-

    ismo.MD a favor disso que gostaria de argumentar. Essa pode ser uma

    transio ilegtima, mas deixe-me ir a Plato e ao velho dilema: uma coisa um bem porque Deus a quer ou Deus quere-la porque um bem? A. J.Ayer gostava muito de argumentar que a segunda parte da questo contmuma sugesto invlida e que, portanto, Deus irrelevante para o juzo tico.

    26 Ver Needs, Values, Truth, Basil Blackwell, Oxford, 1987, especialmente p. 124--132.27 O texto revisto das conferncias William James de Harvard (1976) est agorapublicado sob o ttulo The Logical Basis of Metaphysics, Duckworth, Londres, 1991.As observaes sobre o tesmo encontram-se no captulo 15, pp. 348-51.

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    Wittgenstein, pelo contrrio, toma muito fortemente posio a favor daprimeira e considera a segunda completamente superficial. Ora, parece-meque, evidentemente, se algum tem razes para pensar que Deus quer, ounos ordena ou deseja, que ns ajamos de certa maneira, isso, s por si, temde ser uma razo suficiente para agir dessa maneira. Mas ento tem de sepoder recorrer a alguma maneira especfica de saber qual a vontade deDeus. Ao passo que o ponto de vista tradicional tem sido o de que somoscapazes de discernir o bem e o mal e deduzir da o que Deus quer quefaamos. Deixe-me s dizer que o nosso argumento tem de certeza de irnesta segunda direco.

    FP Bem, acho que falmos bastante tempo. Talvez pudssemos pararaqui. Muito obrigado.

    MD Obrigado. Gostei muito da nossa discusso.

    (Traduo de Pedro Santos)Fabrice PatautInstitut dHistoire et dePhilosophie des Sciences et des TecnhiquesUniversit de Paris 1, Frana