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Rev. Fac. Dir. Sul de Minas , Pouso Alegre, v. 30, n. 1: 9-26, jan./jun. 2014 A FACTICIDADE E A VALIDADE DA SOCIEDADE COMPLEXA E A CONSTRUÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL THE FACTICITY AND VALIDITY OF A COMPLEX SOCIETY AND THE CONSTRUCTION OF THE MINIMUM EXISTENTIAL Thais Miranda Moreira * RESUMO O presente trabalho possui como escopo apontar como a relação entre o mínimo existencial e a reserva do possível deve ser encarada no seio da sociedade moderna. A metodologia utilizada é a de análise do conteúdo teórico e filosófico de estruturas que já existem. Não se trata, porém, de uma análise meramente descritiva, mas de entender e criticar a realidade institucional e jurídica da qual fazemos parte. O marco teórico consiste na Teoria Crítica, ou seja, na possibilidade de construção crítica e refle- xiva do mundo que nos cerca. Para tanto, valemo-nos de teorias elabora- das por Jürgen Habermas, em Direito e democracia e Teoria da ação co- municativa. Aspectos relativos ao papel da moral no direito moderno, a relação entre autonomia pública e privada e a questão da tensão funda- mental entre a facticidade e validade foram assuntos trabalhados para que ao final fosse possível demonstrar como um processo comunicativo nos moldes habermasianos permitiria a formação de um consenso sobre o que o Estado deveria entender como mínimo existencial. Palavras-chave: Direito; Moral; Esfera pública; Facticidade e validade; Mínimo existencial. ABSTRACT This work has as scope to show how the relationship between the existential minimum, and the clause of possible reserve should be seen within the modern society. The methodology used is the analysis of the theoretical * Mestranda em Direito e Inovação pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Correspondência para/Correspondence to: Av. Presidente Itamar Franco, n 1.640, apto. 403, São Mateus, Juiz de Fora/MG, 36016-321. E-mail: [email protected]. Telefo- ne: (31) 9465-1551.

01 30 n.1 A facticidade e a validade - fdsm.edu.br · direito e morAl: Aspectos de umA sociedAde modernA Habermas, em sua obra Facticidade e validade, esclarece que é necessária

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Rev. Fac. Dir. Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 30, n. 1: 9-26, jan./jun. 2014

A fActicidAde e A vAlidAde dA sociedAde complexA e A construção do mínimo

existenciAl

the facticity and validity of a complex society and the construction of the

minimum existential

thais miranda moreira*

resumo

O presente trabalho possui como escopo apontar como a relação entre o

mínimo existencial e a reserva do possível deve ser encarada no seio da

sociedade moderna. A metodologia utilizada é a de análise do conteúdo

teórico e filosófico de estruturas que já existem. Não se trata, porém, de

uma análise meramente descritiva, mas de entender e criticar a realidade

institucional e jurídica da qual fazemos parte. O marco teórico consiste

na Teoria Crítica, ou seja, na possibilidade de construção crítica e refle-

xiva do mundo que nos cerca. Para tanto, valemo-nos de teorias elabora-

das por Jürgen Habermas, em Direito e democracia e Teoria da ação co-

municativa. Aspectos relativos ao papel da moral no direito moderno, a

relação entre autonomia pública e privada e a questão da tensão funda-

mental entre a facticidade e validade foram assuntos trabalhados para que

ao final fosse possível demonstrar como um processo comunicativo nos

moldes habermasianos permitiria a formação de um consenso sobre o

que o Estado deveria entender como mínimo existencial.

Palavras-chave: Direito; Moral; Esfera pública; Facticidade e validade;

Mínimo existencial.

ABstrAct

This work has as scope to show how the relationship between the existential

minimum, and the clause of possible reserve should be seen within the

modern society. The methodology used is the analysis of the theoretical

* Mestranda em Direito e Inovação pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Correspondência para/Correspondence to: Av. Presidente Itamar Franco, n 1.640, apto. 403, São Mateus, Juiz de Fora/MG, 36016-321. E-mail: [email protected]. Telefo-ne: (31) 9465-1551.

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Thais Miranda Moreira

and philosophical content of structures that already exist. It is not, however,

a purely descriptive analysis, but to understand and criticize the institutio-

nal and legal reality to which we belong. The theoretical framework consists

in Critical Theory, in other words, the possibility of critical and reflective

construction of the world around us. To this end, we make use of theories

developed by Jürgen Habermas, in Law and Democracy and Theory of

Communicative Action. Aspects of the role of morality in modern law, the

relationship between public and private autonomy and the issue of funda-

mental tension between facticity and validity were worked out by us so that

in the end we could shown how in a communicative process in Habermas

molds would allow the formation of consensus about what the state should

understand as existential minimum.

Keywords: Law; Morality; Public autonomy; Facticity and validity; Exis-

tential minimum.

introdução

Mesmo após 20 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988 o

debate em torno de questões como os direitos fundamentais e a eficácia de sua

implementação continua atual. A garantia do mínimo existencial, como garan-

tia de direitos considerados basilares e fundamentais para a existência humana,

é, ainda hoje, um grande desafio para a sociedade e para o Estado.

A nossa Constituição, apesar de não trazer literalmente a expressão “míni-

mo existencial”, firma o compromisso de garantir ao cidadão uma vida justa e

digna, com direitos e garantias fundamentais, e propõe um ideal de vida justa

que expressa uma ordem de valores.

A chamada cláusula da reserva do possível é comumente citada atualmente

como barreira financeira à garantia plena do chamado mínimo existencial. A

alegação de que o Estado não é capaz de garantir a todos indistintamente direitos

fundamentais surge como um empecilho ao ideal de vida justa e social que é

objetivo e compromisso do constituinte. Surge então um grande conflito: de um

lado, a garantia do mínimo existencial e, de outro, a reserva do economicamen-

te possível.

A sociedade moderna confere ao direito a hercúlea tarefa de se portar como

mediador dos conflitos sociais. O papel do direito é, então, interceder pela ordem

da desordem. A dificuldade dessa missão cresce exponencialmente na medida

em que a moral não é mais uma ferramenta viável para justificar as decisões

jurídicas a serem implementadas. Nesse sentido Rafael Lazzarotto Simoni nos

alerta que nas sociedades modernas:

(...) não há como fundamentar o direito em um procedimento discur-

sivo exterior a própria gênese do Direito. Ou seja, o direito não pode

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A facticidade e a validade da sociedade complexa e a construção...

mais estar fundado na moral como instância corretiva, disponível na

forma de princípio orientador das decisões jurídicas1.

A sociedade moderna apresenta, segundo Habermas, a característica de ser

fruto da evolução da consciência moral no sentido da superação das estruturas

pré-convencionais e convencionais e o advento de uma moral “pós-convencional”.

Isso significa uma clara diferenciação entre sistema e mundo da vida, aquele

como espaço de intermediação do agir racional com respeito a fins (instrumen-

tal estratégico), este enquanto horizonte do agir comunicativo, orientado na

busca do entendimento intersubjetivo. Nessa perspectiva, salienta Neves:

(...) a modernidade exigiria positivamente a construção de uma “esfera

pública”, topos democrático discursivamente autônomo com relação

aos “meios” sistêmicos poder e dinheiro2.

Diante dessa hipercomplexibilidade, a moral só pode ser enxergada como decorrência da autonomia pública, sem que haja qualquer tipo de submissão

entre os dois institutos. Dessa forma, como não podemos pensar em precedentes,

temos de encarar o direito e a moral como cooriginários. Nas palavras de Simio-

ni, “a validade (legitimidade) do direito depende dos conteúdos morais e a moral

depende da forma do direito”3.

A teoria do agir comunicativo pauta-se pelo entendimento subjetivo entre

os participantes. O arquétipo-padrão criado por essa teoria da linguagem é sig-

nificado e tem validade. É justamente essa “contradição fundamental” que Ha-

bermas transporta para o Direito. No entanto, significado é substituído por facticidade4, formando o seu binômio com a validade. Essa será a nova contra-dição fundamental que baseará a reconstrução das possibilidades de realização do direito.

1 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Curso de hermenêutica jurídica contemporânea: do positivismo clássico ao pós-positivismo jurídico. Curitiba: Juruá, 2014. p. 505.

2 NEVES, Marcelo. Luhmann, Habermas e o Estado de Direito. Revista Lua Nova, n. 37, ano 96, p. 95.

3 SIMIONI, 2014, p. 506.4 O vocábulo facticidade não é de fácil conceituação, mas ocupa papel central naquilo que Ha-

bermas pretende expor. David Macey assim o equaciona: “Term derived from the German Faktizitat and de French facticité, used in PHENOMENOLOGY to describe the fact that being always means being-in-the-world, or what Heidegger terms the fact or factuality DESEINS being (1927). The word refers to the non-essential or contingent aspects of being. SARTRE defines terms of an individual’s circumstances of birth, class, race, nationality, and in indivi-dual SITUATION or being-in-the-world (1943). Wheres transcendence defines consciousness movement away from any given state of being in order to achieve its freedom and realize its potential, facticity restricts and limits freedom by reintroducing the dimension or the fact of being in a situation that is not freely chosen or determined” (MACEY, David. The Penguim dictionary of critical theory. Londres: Penguin Books, 2000. p. 120.

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Thais Miranda Moreira

Dessa forma, na esteira do que deixa claro Eduardo H. L. Figueiredo, “a aná-lise habermasiana conquanto complexa, em certo sentido não se divorcia de obje-tivos teóricos e práticos, como de resto, qualquer teorização que possa ser crítica”5. Essa nova forma de direito, necessária para a sociedade moderna, não pode convi-ver com o manejo solipsista da instância do direito forjado pela modernidade.

É nesse caldeirão formado pelo pano de fundo da modernidade, sociedade complexa, tensão entre facticidade e validade, bem como o direito como media-dor da contradição inicial, que pretendemos trabalhar com a ideia de como se deve formar o conceito do mínimo existencial, pois trata-se de conceito funda-mental que garante a concretização do princípio da dignidade da pessoa huma-na e é o campo fértil que pode viabilizar o início da aplicação de uma teoria contrafática processual pautada no consenso.

A metodologia aqui empregada é de análise do conteúdo teórico e filosófico de estruturas que normalmente já integram a nossa realidade, ou seja, do nosso mundo. No entanto, não se trata de fazer uma análise meramente descritiva da realidade, mas de fundamentalmente entender e criticar a realidade institucional e jurídica da qual fazemos parte.

O marco teórico que vai guiar o nosso olhar, ao longo deste trabalho, con-siste na possibilidade de construção crítica e reflexiva do mundo que nos cerca. Nesse desiderato, as obras Direito e democracia: entre facticidade e validade6 e Teoria da ação comunicativa7 serão a base de sustentação teórica.

direito e morAl: Aspectos de umA sociedAde modernA

Habermas, em sua obra Facticidade e validade, esclarece que é necessária uma visão retrospectiva da história do direito positivo para que possamos com-preender a relação entre a moral e o direito nas chamadas sociedades modernas. Nesse exame, o próprio autor faz um corte epistemológico para destacar os ele-mentos mais relevantes para a filosofia do direito. Desta feita, temos as seguintes palavras: “Quero apresentar apenas um aspecto importante deste processo sinu-oso, intransparente e cheio de variantes, o qual interessa para o contexto de nossa filosofia do Direito”8.

5 FIGUEIREDO, Eduardo H. L. A questão principiológica do direito na perspectiva da teoria crítica. 2001. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2001, p. 8.

6 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. I e II.

7 HABERMAS, Jürgen. 1981a Theoríe des kommunikativen. Handelns. Handlungsrationalitat undgesellschaftliche Rationalisierung. Frankfurt/M., Suhrkamp Verlag. v. Teoria de la acción comunicativa. Madrid: Taurus, 1987. v. 1.

8 Habermas, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume II, Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011. p. 230.

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Dentro dessa perspectiva, temos que o Direito encontrava sua validade em

algum elemento exterior ao próprio direito, como, por exemplo, a força divina.

Ocorre que a sociedade moderna, que na concepção de Weber é desencantada9,

temos o homem como o centro de toda a argumentação estatal, e por isso capaz

de tudo. Nesse momento, estabelece-se que não pode existir um poder externo

maior que seja capaz de interferir nos acontecimentos mundanos; assim, a so-

ciedade moderna, ao contrário das sociedades anteriores, não permite o empre-

go de um pensamento mágico.

Weber identificou um processo crescente de racionalização social, guiado

predominantemente por ações orientadas ao êxito no cumprimento de determi-

nadas finalidades10. Nesse processo é evidente a permuta gradual de imagens

mítico-religiosas por racionalidades teleológicas. O direito dessa nova forma

social passa a ser uma ciência desvinculada dos motivos éticos, pois a sua justi-

ficativa não reside em um argumento mítico, e sim nos procedimentos formais

de criação do próprio direito. O direito, então, provoca “graus cada vez mais

elevados de racionalização do mundo vivido”11, não sendo mais possível aceitar

a moral como elemento superior ao próprio direito.

Apesar de a moral não justificar o direito moderno, não há dúvidas, para

Habermas, de que existe uma relação de complementariedade entre ambas. Não

se trata de uma relação de espécies do mesmo gênero, pois a argumentação jurí-

dica não é uma espécie de argumentação moral, como pretendem certas leituras

de Kant e outros autores influenciados por seu pensamento12. Moral e Direito

são elementos que vão se debruçar sobre o mesmo objeto conferindo respostas

díspares em relação a ele.

No entanto, apesar de o direito não possuir a sua gênese em uma moral

corretiva, ambos são identificados como cooriginários. Eles se interpenetram e

se autoinfluenciam, pois ambos são confeccionados por meio do discurso públi-

co de formação da livre vontade e da opinião: “A moral passa a integrar os próprios

9 WEBER, Max. Ensaios de sociologia (editado por Hans Gerth e C. Wright Mills). Rio de Janei-ro: Jorge Zahar Editor, 1974. p. 182. O destino de nossos tempos é caracterizado pela raciona-lização e intelectualização e, acima de tudo, pelo “desencantamento do mundo”. [Aí] precisa-mente os valores últimos e mais sublimes retiram-se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para fraternidade das relações humanas diretas e pessoais.

10 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 23.

11 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Direito e racionalidade comunicativa. A teoria discursiva do di-reito no pensamento de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá, 2007. p. 81.

12 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni; ANDRADE, Camila Cardoso. A relação entre direito e moral na teoria discursiva de Habermas: porque a legitimidade do direito não pode ser redu-zida à moralidade. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/camila_cardoso_de_andrade.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2014.

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princípios constitucionais, e o direito passa a incorporar em seus princípios os conteúdos morais”13.

Nesse mesmo sentido, temos a seguinte justificação fornecida por Habermas:

Uma ordem jurídica só pode ser legítima, quando não contrariar prin-

cípios morais. Através dos componentes de legitimidade da validade

jurídica, o direito adquire uma relação com a moral14.

Por outro lado, recusa fortemente que a justificação do direito seja simples-mente subordinada à justificação moral, “entretanto, essa relação não deve levar--nos a subordinar o direito à moral, no sentido de uma hierarquia de normas”15.

Assim, no desenvolvimento empreendido neste trabalho, faz-se necessário analisar o que se entende por esfera pública, pois, como visto, é em seu seio que acontece a confecção do direito e da moral cooriginários. Esse ambiente, apto a produzir decisões consensuais, só é viável na medida em que exista uma esfera privada, por isso passamos a analisar a cooriginariedade da esfera pública e da esfera privada.

A cooriGinAriedAde dA esferA pÚBlicA e dA esferA privAdA

O direito da sociedade desencantada de Weber não pode mais se fundamen-tar em uma moral transcendental, e é por isso que enfrentamos o problema de sua legitimação. No entanto, Habermas, em sua obra Para a reconstrução do materialismo histórico16, deixa claro que nenhuma parcela da sociedade pode se apropriar do direito para impor regras, nem mesmo a maioria, pois a lealdade dos cidadãos com o Direito pressupõe que todos os cidadãos se sintam respon-sáveis por ele:

Só há lealdade das massas para com o direito se houver legitimidade. E

só há legitimidade se todos os cidadãos forem ao mesmo tempo autores

e destinatários do seu direito. E isso significa que a legitimidade do

direito pressupõe a participação de todos os cidadãos nos processos

legislativos17.

13 SIMIONI, 2014, p. 506.14 HABERMAS, 1997, v. I, p. 140-141. “Denn eine Rechtsordnung kann nur legitim sein, wenn sie

moralischen Grundsätzen nicht widerspricht. Dem positiven Recht bleibt, über die Legitimitäts-komponente der Rechtsgeltung, ein Bezug zur Moral eingeschrieben” (HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Re-chtsstaats. 4. Auflage, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994. p. 137).

15 HABERMAS, 1997, v. I, p. 141 (HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. 4. Auflage, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994, p. 137).

16 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Brasiliense, 1990.17 SIMIONI, 2007, p. 141.

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No entanto, para que essa teoria contrafática encontre possibilidade de se

desenvolver, é necessário que um cidadão enxergue no outro um sujeito de di-

reitos, que compartilha das mesmas liberdades. Em outras palavras, deseja-se

que todos sejam incluídos18 e comunguem das mesmas liberdades, permitindo

participação equânime na produção normativa. Cria-se por meio do direito

positivado a igualdade formal perante as normas, e, segundo Habermas, essa

generalização normativa permite que os aspectos morais sejam incorporados

pelas próprias normas, retirando o papel outrora da moral de conferir validade

ao próprio direito.

Por isso, em sua obra Direito e democracia: entre facticidade e validade, Ha-

bermas salienta:

Na forma de leis gerais e abstratas, todos os cidadãos podem ter direitos

iguais entre si. E essa compatibilidade formal de ações, que o direito

possibilita, alivia os indivíduos do peso das normas morais. Esse agora

é carregado pelas leis19.

Diante da importância atribuída ao momento de formação legislativa, pode-

-se pensar em afirmar que a legitimidade do Direito se encontra no processo

legislativo; no entanto, devemos aprofundar a análise para perceber que o ponto

inicial da cadeia de legitimidade das normas jurídicas encontra porto seguro na

soberania popular.

Fundamental ao atribuir à soberania popular o condão de conferir legiti-

midade ao Direito é não a confundir com a vontade da maioria. Lembrando

conceitos teóricos do sociólogo Niklas Luhmann, Habermas vai nos advertir que

para delimitar o que seja a soberania é preciso recorrer à ideia de um paradoxo:

Cada um dos cidadãos tem a liberdade subjetiva de participação política.

Mas como uma liberdade (autonomia política) fica obrigada a confrontar-

-se com as expectativas das orientações do bem da comunidade20.

O autor da obra Facticidade e validade se comprometeu em demonstrar como

se dá a relação entre autonomia pública (política) e autonomia privada (liberda-

des subjetivas). Segundo ele, essa relação não se pauta mais por critério hierár-

quico, ou seja, por subordinação. A ideia desenvolvida sob a égide da filosofia da

consciência e na tradição metafísica do direito natural valia-se da moral ou do

direito natural como topo da pirâmide normativa, pois recebia a função de jus-

tificar o direito positivo impregnando-o de um caráter de justiça.

18 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, v. I, p. 112.19 Id., ibid., p. 113.20 Id., ibid., p. 115.

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No entanto, a relação defendida por Habermas é de cooriginariedade entre

o direito positivo e o direito natural (moral), pois devido ao desencantamento

weberiano típico das sociedades modernas o controle do próprio direito por um

elemento externo, como, por exemplo a moral, não encontra mais guarida. Ha-

bermas então explica com as seguintes palavras que “o direito positivo e a moral

pós convencional desenvolvem-se cooriginariamente a partir das reservas da

eticidade substancial em decomposição”21.

Assim, a construção social das normas jurídicas não pode mais ser cerceada

por um aspecto puramente moral. É como se o processo legislativo tivesse se li-

vrado das amarras morais não mais se submetendo a ela. Logo, o princípio de-

mocrático, representado pelo procedimento legislativo, não se prende a elemen-

tos morais, mas isso não significa que a moral é inteiramente abandonada. A

moral, em conjunto com a autonomia pública e a autonomia privada, vai exigir

uma nova fundamentação da própria soberania.

Seguindo esse entendimento, ressalta Simioni que, para Habermas:

A doutrina dos direitos subjetivos inicia quando os direitos subjetivos

morais se tornam independentes. Quando direitos subjetivos morais

passam a pretender maior legitimidade do que o direito legislado, então

a legitimidade do direito positivo tem que se fundamentar em um pro-

cesso democrático, que por sua vez se fundamenta no princípio da so-

berania popular22.

Logo, não temos como encarar a fundamentação pós tradicional da legi-

timidade do direito na visão habermasiana sem considerar a cooriginariedade

ou a codependência entre autonomia pública e privada, direitos humanos e

soberania.

Em lugar da controvérsia sobre ser melhor assegurar a autonomia das

pessoas do direito por meio de liberdades subjetivas para haver concor-

rência entre indivíduos em particular, ou então mediante reivindicações

de benefícios outorgadas a clientes da burocracia de um Estado de bem-

estar social, surge agora uma concepção jurídica procedimentalista,

segundo a qual o processo democrático precisa assegurar ao mesmo

tempo a autonomia privada e pública: os direitos subjetivos (...) não

podem ser formulados de modo adequado sem que os próprios envolvi-

dos articulem e fundamentem os aspectos considerados relevantes para

o tratamento igual ou desigual em casos típicos. Só se pode assegurar a

autonomia privada de cidadãos em igualdade de direitos quando isto se

21 Id., ibid., p. 115.22 SIMIONI, 2007, p. 143.

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dá em conjunto com a intensificação de sua autonomia civil no âmbito

do Estado23.

A fActicidAde e vAlidAde como tensão fundAmentAl do direi-to moderno

Habermas, ao longo da obra Teoria do agir comunicativo24, estabelece por

meio de sua pragmática universal uma dicotomia entre significado e validade,

sendo esse o paradoxo fundamental para explicar como a comunicação, por meio

da ação comunicativa25, pode estabelecer consensos. No entanto, ele se aproveita

dessa dicotomia para explicar a tensão, ou seja, a dicotomia que vai justificar o

Direito como mediador dos conflitos de uma sociedade moderna. Ocorre apenas

uma substituição em seu arquétipo binário, pois sai de cena o significado e entra

a facticidade. Por isso, pode-se afirmar que a tensão fundamental que justifica a

existência do Direito moderno é a famigerada tensão entre facticidade e validade.

Com o intuito de demonstrar como o Direito atua nessa questão, leciona

Durão:

A forma do direito permite explicar porque existe uma tensão entre

facticidade e validade no direito moderno, pois, para os agentes sociais

que se encontram nos sistemas sociais e usam a racionalidade estraté-

gica, o direito deve ser seguido por causa de sua facticidade, pois se

apresenta como um fato social dotado de vigência que pode ser impos-

to coercitivamente, pois tão somente exige que o comportamento ex-

terno dos cidadãos seja conforme a lei, independentemente da sua

motivação para a ação, enquanto para os agentes sociais que estão loca-

lizados no mundo da vida e usam a racionalidade comunicativa, o di-

reito deve ser obedecido por sua validade, uma vez que eles agem por

respeito à lei26.

23 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 305.

24 HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. Volume 1: Racionalidade da ação e raciona-lização social. Trad. Paulo Astor Soethe. Rev. trad. Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

25 Habermas, em sua obra Teoria do agir comunicativo, faz a distinção entre ação instrumental e ação comunicativa. O agir estratégico parte do pressuposto de que as decisões levam em con-sideração os interesses pessoais individuais, ao passo que o agir comunicativo parte do pressu-posto de que as decisões levam em conta os interpessoais do bem comum e da reciprocidade (HABERMAS, Jürgen. De l’éthique de la discussion. Traduction del Alemand por Mark Hunya-di. Paris: Les Éditions Du CERF, 1992. p. 68 e 99).

26 DURÃO, Aylton Barbieri. A tensão entre facticidade e validade no direito segundo Habermas. Universidade Estadual de Londrina. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/viewFile/17309/15876>. Acesso em: 9 mar. 2015.

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Thais Miranda Moreira

O paradoxo entre a facticidade e a validade reside no fato de que a primeira

carrega em si uma carga da essência da ação estratégica, ao passo que a segunda

encontra a sua alma em uma ação comunicativa. Em um primeiro momento,

estamos diante de um impasse, pois se apresentam as duas formas de agir (estra-

tégica e comunicativa) como excludentes, e não codependentes. Porém, diante

dessa impossibilidade é que surge o Direito com sua capacidade de ser elemento

desparadoxizante: “as normas do direito são, ao mesmo tempo e sob aspectos

diferentes, leis da coerção e leis da liberdade”27.

Desta forma, o cumprimento do Direito se dá em virtude da sua forma auto-

ritária (facticidade), ou seja, diante da possibilidade do uso de sanções; ou em

virtude do seu convencimento (validade), que em outras palavras permite que o

cidadão cumpra o direito pela sua legitimidade oriunda de um processo racional

de confecção das normas, pois os destinatários das mesmas serão os seus coautores.

Ilustrando a função estabilizadora do Direito, Simioni trabalha com o seguin-

te trecho da obra Direito e democracia: entre facticidade e validade de Habermas:

Para quem age estrategicamente, a norma jurídica se encontra no nível

dos fatos sociais que limitam, como facticidade, o espaço das opções

possíveis. Para quem age comunicativamente, a norma jurídica se en-

contra no nível das expectativas de comportamento, em relação às quais

se supõe um acordo racionalmente motivado entre parceiros jurídicos28.

De forma simples, o Direito não se interessa em determinar se um indivíduo

optou por respeitar a norma pela força coercitiva que a facticidade exerce ou se

cumpre em virtude da sua legitimidade, mas sim que ele seja capaz de cumprir

a sua função, que é a de mediar conflitos típicos da sociedade plural moderna.

Cattoni de Oliveira explica o que Habermas entende por direito moderno

da seguinte forma:

Para Habermas, o direito moderno caracteriza-se, de um lado, por ser

positivo, ou seja, instituído mediante normas modificáveis, promulga-

das por um legislador político e sustentadas por ameaça de sanção, e, de

outro, por assegurar a liberdade, ou seja, pela exigência de que garanta

equitativamente as autonomias pública e privada dos cidadãos, sendo

que sua legitimidade é devida a um processo legislativo democrático29.

27 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Direito e Racionalidade Comunicativa. A Teoria discursiva do di-reito no pensamento de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá, 2007, p. 130.

28 SIMIONI, 2007, p. 130.29 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Coesão interna entre Estado de direito e demo-

cracia na teoria discursiva do direito de Jürgen Habermas. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte: Manda-mentos, 2004. p. 171.

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Tecendo considerações acerca da legitimidade do ordenamento, Cattoni prossegue da seguinte forma:

Num nível pós-convencional de justificação, somente podem ser con-

sideradas legítimas aquelas leis passíveis de serem racionalmente aceitas

por todos os membros da comunidade jurídica, em um processo demo-

crático de formação discursiva da opinião e da vontade comum30.

Não é por outro motivo que se perquire sobre a necessidade da formação de um mínimo existencial apto a receber a chancela do direito, ou seja, discute-se como devemos debater o que seria em nossa realidade o conceito do mínimo existencial.

Por isso Habermas vai colocar o processo legislativo “no lugar propriamen-te dito da integração social”31. Neste sentido persiste Simioni:

É no processo legislativo que os participantes de uma interação saem da

condição de sujeitos privados, estrategistas, e assumem a condição de

cidadãos. Assim, na condição de cidadãos, os membros de uma comu-

nidade jurídica podem chegar a um consenso, livremente obtido pela

força do melhor argumento, sobre princípios normativos da regulamen-

tação da convivência32.

Nada mais oportuno e conveniente do que discutir o mínimo existencial obtido não por uma ação individual ou uma decisão jurídica, e sim por meio de um processo de formação consensual que determinará qual a densidade norma-tiva desse princípio, para que ele possa ser chancelado pelo Direito.

mínimo existenciAl e A reservA do possível: umA Análise hA-BermAsiAnA

O mínimo existencial e a reserva do possível são criações da jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverwaltungsgericht), e o jurista que introduziu essa celeuma no ordenamento jurídico pátrio foi Ricardo Lobo Torres, que o fez vinculando-as ao cumprimento dos direitos fundamentais. É dentro desse entendimento que podemos resgatar os ensinamentos do jurista e professor alemão Otto Bachoff, pois afirmava que a dignidade da pessoa humana era um

30 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder, ação e esfera pública em Hannah Arendt e em Jürgen Habermas: a conexão constitutiva entre direito e poder no estado democrático de direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito, política e filosofia: contribui-ções para uma teoria discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo consti-tucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 46.

31 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2 ed. Tra-dução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012. p. 52.

32 SIMIONI, 2007, p. 131.

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princípio que não reclamava apenas a liberdade, mas sim um mínimo social para

que essa vida não fosse sacrificada33.

A problemática iniciou-se em 1972, quando se discutia sobre a admissão de

alunos no curso de medicina nas faculdades da Bavaria e de Hamburg. A questão

de ordem é que seria necessário destinar 7 bilhões de marcos para atender à

demanda crescente por vagas nas universidades federais, para a qual o Estado

alegava escassez econômica para suprir. Assim, se julgou pela possibilidade de

“numerus clausulus”, ou seja de se limitar as vagas de acordo com a possibilidade

de cumprimento estatal.

Para explicar a ideia de escassez que justifica a reserva do possível e que não

pode ser alegada para o não cumprimento do mínimo existencial, Rafael José

Nadim Lazari remonta à seguinte ilustração em sua dissertação de mestrado

sobre o tema:

Narram os livros de história correlatos da segunda grande guerra mun-

dial, sobretudo aqueles que relatam o ataque-surpresa nipônico à base

de Pearl Harbor, no Havaí, em 1941, que com o acentuado volume de

feridos naquele evento trágico, em magnitude inversamente proporcio-

nal à limitada capacidade física e humana do posto médico daquele

complexo militar, adotaram as enfermeiras, num tentame imediato e

desesperado de priorizar vidas que de fato poderiam ser salvas, o triste

mas necessário modus operandi de marcar com seus batons sinais iden-

tificadores no rosto daqueles que receberiam o atendimento em detri-

mento dos que, infelizmente, seriam deixados à própria sorte34.

O mínimo existencial segue a mesma origem da reserva do possível, e por

isso possui sua gênese atribuída ao direito alemão, pois também ganhou corpo

conceitual nas jurisprudências da década de 1950 desta Corte. Logo, o que se

entende por mínimo existencial pode ser enunciado da seguinte forma: “conjun-

to de condições elementares ao homem, como forma de assegurar sua dignidade,

sem que a faixa limítrofe do estado pessoal de subsistência seja desrespeitada”35.

A discussão sobre o mínimo existencial ganha relevo na sociedade moderna,

pois as necessidades são infinitas e as possibilidades, finitas. O Direito, nesse

diapasão, deve cumprir a sua função (ser o mediador dos conflitos sociais); no

entanto, não pode trabalhar com um mínimo existencial criado de forma uni-

33 BACHOF, Otto. Begriff und Wessen des sozialen Rechtsstaates. VVDStRL, 1954. p. 42-43.34 LAZARINE, Rafael Nadim. Reserva do possível e o mínimo existencial: um necessário estudo

dialógico. Univem, Marília/SP, p. 68. Disponível em: <http://aberto.univem.edu.br/bitstre-am /handle /11077/850 /Disser ta% C3%A7% C3%A3o_Rafael%20Jos% C3%A9 %20Nadim%20de%20Lazari_2012.pdf?sequence=1>. Acesso em: 27 fev. 2014.

35 Id., ibid., p. 70.

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camente moral, pois, como analisamos anteriormente, a moral deixou de ser o fundamento de justificação do direito.

Assim, na esteira de um direito moderno que pauta a sua legitimidade em um procedimento que permite aos cidadãos estabelecer consensos orientados pelo melhor argumento, temos que esse mínimo não pode ser concretizado a não ser por este modo operandi. Quanto maior for a concretização do mínimo exis-tencial, ou seja, quanto menos pessoas viverem abaixo dessa linha limítrofe, maiores serão as chances de uma discussão na esfera pública mais elaborada e, por conseguinte, maior será a contribuição para a implementação gradativa de um direito segundo a garantia dos direitos fundamentais.

Da mesma forma que existe uma cooriginariedade entre a esfera pública e a esfera privada, uma tensão entre facticidade e validade, estamos diante de uma nova relação paradoxal, pois, de um lado, temos o mínimo existencial e, de outro, a reserva do possível.

A função do sistema social jurídico nessa tensão é realizar uma mediação, funcionando como um elemento que retira a força paradoxal dos direitos até então tratados. No entanto, para o direito fornecer sua facticidade (respeito em virtude da coação) e sua validade (respeito em virtude do consenso), necessitamos de normas forjadas por consensos de cidadãos que gozam de sua autonomia privada e que participam da esfera pública.

Entendemos que o mínimo existencial deva ser determinado normativa-mente, e não em virtude de um aspecto moral ou de bondade. Por isso a impor-tância do procedimento que garanta a formação de consensos entre os autores das normas, que por sua vez também são seus destinatários.

Após esse procedimento, o Direito tem como exigir do Estado que cumpra a garantia do mínimo existencial, independentemente do motivo do cumpri-mento (facticidade ou validade). Essa imposição será viável, pois a tensão inicial já teria sido solucionada de maneira legítima.

Assim, necessitamos identificar com bases modernas os problemas enfren-tados pela dicotomia mínimo existencial/reserva do possível, para que possamos discutir na esfera pública como a sociedade deseja enfrentar a escassez de recur-sos diante da crescente necessidade de cumprimento de direitos e como o alar-gamento do que se entende por mínimo existencial poderá contribuir para avanços na concretização da teoria contrafática do discurso, pois, na medida em que mais indivíduos ascendem, a situação de cidadãos poderá contribuir de forma mais adequada para os novos consensos.

Vale ressaltar que a toda a argumentação realizada até o presente momento deseja afastar qualquer tipo de fundamentação metafísica. Não estamos perqui-rindo sobre o conteúdo do mínimo existencial, mas sim procurando demonstrar que o seu conteúdo poderá ser formado por meio de um procedimento que não exclui parcelas da sociedade.

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Nesse diapasão, Cláudia Honório esclarece que:

Com a institucionalização jurídica do princípio do discurso, é possível

fundamentar um sistema de direitos que alie autonomia privada e pú-

blica dos cidadãos. Esse sistema garante e, ao mesmo tempo, é resultado

de um processo democrático36.

Continua a autora:

A proposta de democracia habermasiana minimiza a tensão entre a

facticidade e a validade do direito, estabelecendo uma relação de coori-

ginariedade entre soberania popular e direitos humanos, na qual ambos

se pressupõem37.

É justamente entendendo a legitimidade democrática que podemos discutir

o que se deve entender por mínimo existencial: pressuposto necessário para a

formação da vontade, pois, para a concretização da teoria do discurso, Habermas

vai elencar requisitos mínimos, e quanto mais presentes esses requisitos, melhor

serão os entendimentos intersubjetivos que em forma circular irão contribuir

para que o mínimo existencial seja cumprido de forma mais substancial.

Não é por outro motivo que Cláudia trabalha com as seguintes ideias ha-

bermasianas:

Os direitos básicos possibilitam a igualdade de chances de participação

no discurso. São, portanto, uma condição para que todos os indivíduos

exercitem seus demais direitos e possam tomar parte no processo de

constituição de direitos. Possibilitam que as pessoas sejam livres e iguais,

garantindo a autonomia privada, que, por sua vez, leva à autonomia

pública, na medida em que o cidadão é a fonte e o alvo das normas38.

As condições para um verdadeiro discurso comunicativo, de acordo com todos os requisitos necessários para a sua realização, dependem da concretização de um mínimo existencial que possibilite o gozo verdadeiro das possibilidades fornecidas pela existência de uma autonomia privada e outra, pública, sedimentadas.

considerAçÕes finAis

Após o exame das muitas contribuições fornecidas por Jürgen Habermas, analisamos as implicações dessas construções teóricas, típicas da modernidade,

36 HONÓRIO, Cláudia. Olhares sobre o mínimo existencial em julgados brasileiros. Universida-de Federal do Paraná, Curitiba, 2009, p. 31. Disponível em: <http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspa-ce/bitstream/handle/1884/17942/claudia1.pdf?sequence=1>. Acesso em: 27 fev. 2014.

37 Id., ibid., p. 32.38 Id., ibid., p. 35.

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para a melhoria da complicada relação entre mínimo existencial e a reserva do possível.

É importante salientar que um dos objetivos deste texto foi desmitificar uma intrigada relação entre direito e moral. Para tanto, realizamos um recorte tempo-ral e voltamos nosso olhar exclusivamente para a sociedade moderna. Esta foi caracterizada pela impossibilidade de se fundamentar o direito em preceitos morais, ou seja, desapareceu uma instância mítica que era superior ao direito e que conferia a ele fundamento. Por isso, afirmou-se, de acordo com Weber, que vivemos uma sociedade desencantada. No entanto, não podemos afirmar que a moral foi abandonada, pois passou a compor os próprios princípios constitucionais.

Os destinatários das normas assumiram o papel de serem seus próprios autores, transferindo para o procedimento de confecção das normas a legitimi-dade do direito que outrora era conferido a um elemento externo. Nesse sentido, fez-se necessário compreender o que entendemos da relação entre a esfera públi-ca e a esfera privada. Concluímos que, de acordo com as proposições haberma-sianas, existe uma codependência entre a autonomia privada e a pública; para ser fiel às terminologias, existe uma cooriginariedade entre ambas.

Desta feita, passamos a analisar a tensão fundamental que move o direto moderno. A dicotomia fundamental é uma variação do arquétipo formulado por Habermas na teoria da ação comunicativa, pois em vez de prosseguir com a di-cotomia entre significado e validade o autor vai valer-se da facticidade e da vali-dade. A facticidade pode ser entendida como a coerção e deve ser associada com o agir estratégico, ao passo que a validade continua a se relacionar com a ação comunicativa, por isso, capaz de formular consensos.

O Direito se insere entre essa tensão como um simplificador, pois cumpre o papel de estabilizá-la. Para o Direito é irrelevante determinar o motivo do cumprimento da norma, se pela facticidade ou pela validade; ele apenas possui o condão de garantir o seu cumprimento.

Como médium da tensão entre a facticidade e a validade, o Direito, nesse caso mais especificamente o direito constitucional, vai tentar interceder pela garantia e pelo cumprimento do mínimo existencial sem ignorar um limitador a esse direito constitucionalmente estabelecido, a cláusula da reserva do possível.

Após toda a construção teórica calcada na teoria do filósofo alemão, passa-mos a analisar o moderno conflito problematizado no presente artigo: a tensão entre o mínimo existencial e a reserva do possível. O trabalho não teve e não poderia ter a pretensão de estabelecer um conteúdo certo e determinado para o mínimo existencial, mas pretendeu deixar claro que sempre deve prevalecer um método para que esse conteúdo seja determinado.

O processo escolhido decorre dos argumentos teóricos, portanto, seria um procedimento legislativo legítimo que não só permite como também clama a

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participação de todos e busca a formação de um consenso com base nos melho-res argumentos.

A escolha metodológica de trabalhar aspectos da relação entre direito e moral, da origem das esferas pública e privada, bem como a principal tensão que permeia o direito justificam o apelo pela adoção de um procedimento democrá-tico, igualitário e participativo pela busca de consensos baseados nos melhores argumentos e sem conteúdo predeterminado. O conteúdo normativo deve ser construído caso a caso, por meio dos procedimentos comunicativos pelos auto-res e também destinatários das normas.

Enfim, espera-se que este esboço teórico sirva de fundamento, mas, princi-palmente, de ponto de partida para a compreensão de um Direito cujo propósi-to central é mediar conflitos sociais, permitindo uma efetiva participação dos indivíduos na gênese desses direitos, na medida em que eles possam ocupar os seus espaços tanto na esfera pública quanto na esfera privada, com a participação efetiva de todos em uma esfera pública de debates.

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Data de recebimento: 9/6/2014

Data de aprovação: 4/2/2015