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5 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL GRADUAÇÃO EM PRODUÇÃO CULTURAL KELY CRISTINA PINHEIRO DOS ANJOS A FESTA DE SÃO JORGE UMA OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE DO CULTO AO SANTO NO SUBÚRBIO CARIOCA RITO, SINCRETISMO E DEVOÇÃO Niterói, 2013

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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAO SOCIAL

    GRADUAO EM PRODUO CULTURAL

    KELY CRISTINA PINHEIRO DOS ANJOS

    A FESTA DE SO JORGE UMA OBSERVAO PARTICIPANTE DO CULTO AO SANTO NO SUBRBIO

    CARIOCA RITO, SINCRETISMO E DEVOO

    Niteri, 2013

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    KELY CRISTINA PINHEIRO DOS ANJOS

    A FESTA DE SO JORGE UMA OBSERVAO PARTICIPANTE DO CULTO AO SANTO NO SUBRBIO

    CARIOCA RITO, SINCRETISMO E DEVOO

    Monografia apresentada como requisito final de concluso do curso de graduao em Produo Cultural da Universidade Federal Fluminense.

    Orientador: Profo M

    e JOO LUIZ PEREIRA DOMINGUES

    Niteri, 2013

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    RESUMO:

    A proposta deste trabalho tem como objeto de estudo a festa de so Jorge, realizada no bairro de Quintino Bocaiva, o rito, o culto e o bem simblico atravs das relaes sociais de proximidade que ela produz no espao fsico da Igreja e suas imediaes.

    Palavras Chave: 1.FESTA 2.SO JORGE 3. RITO 4. SINCRETISMO 5. ESPAO SOCIAL

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    A FESTA DE SO JORGE UMA OBSERVAO PARTICIPANTE DO CULTO AO SANTO NO

    SUBRBIO CARIOCA RITO, SINCRETISMO E DEVOO

    Monografia apresentada como requisito final ao Curso de Graduao em Produo Cultural da Universidade Federal Fluminense, como requisito final para obteno do Grau de Bacharel.

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________________________________

    Profo. Me Joo Luiz Pereira Domingues Universidade Federal Fluminense - UFF Orientador

    __________________________________________________________ Profa. Dra. Luciane Medeiros de Souza Conrado Professora Convidada UFF __________________________________________________________ Profa. Ma Ana Paula Soares Pacheco Universidade Federal do Recncavo da Bahia - UFRB

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    SUMRIO

    APRESENTAO 12

    1.0 METODOLOGIA 14

    2.0 A VIDA DE SO JORGE 16

    3.0 ESTUDO DE CASO: A FESTA DE SO JORGE 20

    3.1- A construo imagtica do santo carismtico: rito, sincretismo e devoo a So Jorge 18 3.2 - O Culto ao santo como Bem Simblico 30 3.3 - Observando o espao da festa - O trabalho de campo e o Espao Social 34

    3.4 - A festa como Bem Cultural e as relaes de consumo no Espao Social 43 3.5 - Ocupando o territrio a ao do ordenamento pblico 48

    4.0 - CONSIDERAES FINAIS 593 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 57

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    Apresentao

    So Jorge sempre esteve presente na minha vida, em especial no perodo da

    minha infncia, que foi vivida totalmente no subrbio carioca, especificamente na

    zona norte da cidade do Rio de Janeiro. A imagem do santo, a forma pela qual

    eram invocadas, as oraes, as manifestaes de f e a prtica do culto no

    cotidiano familiar ainda permanece guardada na memria do meu imaginrio

    infantil.

    Segundo Teixeira Coelho, em Dicionrio Crtico de Polticas Culturais,

    podemos entender a relao entre as imagens, neste caso uma imagem que

    remete a um perodo da infncia e sua relao comportamental a uma

    determinada situao, determinando uma relao paralela.

    O imaginrio o conjunto das imagens e relaes de imagens

    produzidas pelo homem a partir, de um lado, de formas tanto

    quanto possvel universais e invariantes e que derivam de

    sua insero fsica, comportamental, no mundo e, de outro,

    de formas geradas em contextos particulares historicamente

    determinveis. Esses dois eixos no correm paralelos, mas

    convergem para um ponto em comum onde se da articulao

    entre um e outro e a mtua determinao de um pelo outro

    (COELHO, 2004, p. 212).

    Eu tinha So Jorge na minha vida, como um grande cavaleiro montado em

    seu suntuoso cavalo branco, sendo ele capaz de resolver qualquer situao por

    mais difcil que ela parecesse. A relao de proximidade com o meu grande heri

    fazia com que eu pudesse acreditar que a qualquer momento a sua imagem feita

    de gesso pudesse tornar-se real e partilhar comigo todos os meus medos e

    angstias. De certa forma o mito do heri j estava presente em minha vida,

    mesmo que involuntariamente eu era um membro participante da construo desta

    trajetria mtica.

    Diversas foram s situaes em que eu escutava o nome do santo louvado em

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    voz alta pela minha me, diante ou prximo de um perigo iminente:

    Valha-me meu So Jorge, meu santo guerreiro!

    Ainda me recordo claramente da sua voz clamando o nome do santo em uma

    das muitas exclamaes de apelo. A sua devoo para mim era motivo de

    curiosidade e ao mesmo tempo de respeito: como podia uma pessoa ter tanto

    poder e ser capaz de impedir que tantas situaes ruins acontecessem?

    A presena de So Jorge sempre fez parte do meu cotidiano, manifestada por

    meio do culto praticado em minha casa. Sua imagem sempre ocupou lugar de

    destaque dentro do convvio social de minha famlia.

    A proposta deste trabalho procurar atravs de um estudo de caso, a festa de

    So Jorge, o rito, o culto e a figura do santo com bem simblico refletir as relaes

    sociais que ela produz no espao fsico da Igreja e suas imediaes. E a respeito

    da festa em homenagem a So Jorge, realizada no bairro de Quintino Bocaiva,

    deste santo mrtir, cone popular muito aclamado nas periferias e subrbios

    cariocas que tentarei discorrer e abordar nesta monografia.

    O Captulo 1 discorre sobre o Mtodo de pesquisa utilizado, tendo em vista o

    papel do Produtor Cultural como leitor das diferentes culturas no mbito da festa.

    Tendo como instrumentos de verificao o mtodo qualitativo, a observao

    participante, e entrevistas para a reflexo do objeto eleito, a festa de So Jorge.

    O Captulo 2 falar a respeito da vida de So Jorge, sua entrada para o

    exercito romano, sua ascenso como Tribuno Militar - patente de Oficial concedida

    para o comando de uma legio romana - e sua passagem de homem comum

    mrtir cristo.

    O captulo 3 abordar o Estudo de Caso, a festa de So Jorge realizada no

    bairro de Quintino. O captulo abordar as percepes colhidas no Campo,

    construo da imagem do santo como Bem Simblico, o sincretismo presente no

    culto ao santo, as relaes de consumo no espao social e algumas observaes

    da ao do ordenamento pblico no espao da festa.

    O Captulo 4 culmina com as consideraes finais a respeito das observaes

    colhidas no objeto de pesquisa, a Festa de So Jorge. E prope algumas reflexes

    a respeito do que foi observado durante o perodo da pesquisa atravs do olhar do

    Produtor cultural.

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    1.0 Metodologia

    A metodologia utilizada para o processo de pesquisa deste trabalho foi o

    Estudo de Caso, onde utilizei o mtodo qualitativo, a observao participante, e

    entrevistas para a reflexo do objeto eleito, a festa de So Jorge realizada pela

    parquia de Quintino, localizada na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, nos

    anos de 2010, 2011 e 2012.

    Serviram como instrumento de reflexo as entrevistas realizadas com os

    frequentadores da festa, os devotos, os comerciantes locais e os trabalhadores

    informais que ocupam as barracas. A coleta de dados foi realizada durante os dias

    da festa com o auxlio de algumas imagens registradas e no perodo anterior a

    preparao do evento.

    Para o melhor entendimento do processo de pesquisa, ratifico que a estrutura

    metodolgica foi articulada no Estudo de Caso Especfico, entre:

    Pesquisa histrica historia do santo

    Leituras de textos com o objetivo de aprofundar o conhecimento no

    objeto a ser investigado;

    Entrevistas qualitativas, perguntas e respostas, histrias de vida,

    executadas no processo da anlise do trabalho de campo;

    Leitura das imagens (fotografias) registradas durante o trabalho de

    campo;

    A pesquisa histrica a respeito da vida de So Jorge foi extremamente

    importante, porm difcil de ser realizada, devido a vrias interpretaes

    disponveis que relatam a vida do orago. O levantamento sobre a historiografia do

    Santo, contribuiu para a compreenso da trajetria de So Jorge e sua transio

    de homem comum ao mrtir catlico, o que faz toda diferena na sua adorao por

    parte dos devotos.

    Para o entendimento do objeto a ser analisado foram realizadas leituras de

    textos que abordam temas de interesse antropolgico, tendo como parmetros os

    aspectos culturais e sociais, como tambm, o conceito das formas religiosas; mitos

    e rituais; identidade cultural; bem simblico; sincretismo cultural; sociologia e ainda

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    os que abordavam a problemtica territorial e o desenvolvimento econmico e

    social dos espaos.

    Os registros visuais tambm serviro como instrumentos de investigao. A

    utilizao da imagem como tcnica de pesquisa antropolgica, serviu para ilustrar

    a observao dos diversos aspectos simblicos presentes nos festejos em

    homenagem ao santo. Desde a missa da alvorada at o encerramento da

    festividade que culmina com a chegada da procisso da luz.

    Mesmo quando o propsito do uso de imagens na pesquisa

    possui um cunho mais documental de registro de informaes

    e situaes de campo, elas podem ser utilizadas no trabalho

    com uma srie de variaes. A produo de imagens no mbito

    da pesquisa de campo pode, nesse sentido, ater-se a uma

    aderncia realista, na qual elas figuram como material

    comprobatrio da presena do antroplogo em campo, um

    exemplo palpvel de situaes e contextos etnogrficos ou

    ainda como descries visuais destas mesmas situaes.

    (BARBOSA, 2006, p. 49).

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    2.0 A Vida de So Jorge

    So Jorge, segundo documentos da igreja, nasceu na antiga Capadcia, regio

    que atualmente pertence Turquia. De famlia nobre e crist, aps a morte do pai

    foi morar com sua me na Palestina. Ainda muito jovem seguiu carreira militar

    como seu pai. Seu carter, esprito guerreiro e habilidades com as armas lhe

    renderam ainda muito cedo o ttulo de conde, dado pelo ento imperador

    Diocleciano. Com 23 anos, Jorge recebe tambm do imperador o ttulo de tribuno

    militar por sua bravura e coragem, meses aps, sua me veio a falecer.

    Assim comearia o martrio de Jorge. Neste mesmo perodo em que esteve

    vivendo na corte do imperador, por ordem de Diocleciano, foram realizados

    diversos massacres a qualquer povo que era contrrio a sua crena pag. Desta

    forma, os cristos passaram a ser um alvo constante das tropas do imperador.

    Jorge, mesmo ocupando um cargo de prestgio na corte passou a ficar

    extremamente descontente com a situao e forma pela qual o povo cristo era

    tratado, principalmente pelas perseguies ordenadas pelo Imperador Diocleciano.

    No suportando mais esta situao toma uma atitude radical e renuncia todos os

    seus bens, doando-os aos mais necessitados.

    Embora Jorge ocupasse um cargo importante na corte do Imperador, como dito

    anteriormente, ele no concordava com seus rituais de perseguio ao

    Cristianismo. Em virtude de um edito imperial, que pretendia exterminar todos os

    cristos que no se convertessem a idolatria dos deuses romanos, Jorge declarou

    em pblico a sua f a um nico Deus. E anunciou a todos que os deuses

    idolatrados nos templos pagos romanos eram falsos deuses, e que ele prprio s

    acreditava em uma nica verdade, a da f crista.

    Como Jorge mantinha-se fiel ao Cristianismo, o Imperador Diocleciano tentou

    faz-lo desistir de sua crena impondo a ele violentas prticas de tortura durante

    vrios dias e por formas diferentes. Aps cada tortura, ele era levado diante do

    imperador, que lhe perguntava se renegaria a Jesus para adorar os dolos pagos.

    Mas a resposta era sempre contrria s ideias do Imperador, pois Jorge reafirmava

    a sua f em um nico Deus. Esta atitude de Jorge e a determinao em sua f, fez

    com que a mulher do imperador romano, diante de tanta determinao e devoo,

    se convertesse ao cristianismo, gerando uma crise interna no reinado de

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    Diocleciano. No mais suportando proporo que este caso alcanou, em 23 de

    abril do ano de 303 D.C., Diocleciano mandou degol-lo, Jorge, na cidade de

    Nicomdia.

    Os restos mortais de Jorge, aps o seu degolamento foram transportados para

    a Ldia, onde o santo foi sepultado, e onde, algum tempo mais tarde o Imperador

    cristo Constantino, mandou que fosse erguido em sua homenagem um grande

    oratrio para que o santo fosse homenageado. A popularidade do santo cresceu

    com o decorrer dos anos. J no sculo V havia cinco igrejas em Constantinopla

    dedicadas a So Jorge. As artes tambm divulgaram amplamente sua imagem.

    Em Paris, no museu do Louvre, h um quadro muito visitado do artista Rafael,

    intitulado So Jorge vencedor do Drago. Na Itlia, temos notcias de duas obras

    de colees particulares, uma do pintor Carpaccio e outra do pintor Donatello.

    Figura 1. Exterior da igreja de So Jorge Ferner Istambul/Turquia

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    Figura 2. So Jorge e o drago (c. 15031505) - leo sobre madeira (29 25

    cm) - Museu do Louvre - Paris

    So Jorge considerado mrtir pela igreja catlica em virtude da sua trajetria

    de vida, por ter morrido em decorrncia da sua f em acreditar em um s Deus,

    professando a religio crist. Historicamente este status de mrtir ganhou novos

    conceitos como morrer em decorrncia de uma causa patritica, ou seja, pela

    liberdade do seu pas ou povo ou at mesmo por um ideal social ou poltico.

    Do ponto de vista cristo, podemos dizer que mrtir aquele indivduo que

    preferiu morrer a renunciar sua f, por defender a veracidade do que consiste a

    Palavra de Deus entregando a prpria vida para este fim, para que a verdade

    fosse preservada. O que se percebe em relao imagem de So Jorge o

    indiscutvel carisma que lhe atribudo. Desde o tempo do imperador Diocleciano,

    no ano de 303 D.C., at os dias de hoje. A sua determinao e postura firme

    diante da vida, uma das causas de toda a sua popularidade junto aos seus

    devotos. No ter se rendido a vontade do Imperador, fez com que seu martrio

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    fosse inevitvel, porm inevitvel tambm se mostrou sua fora, fato que se

    percebido cada vez mais nos dias de hoje, tamanha a popularidade alcanada.

    Como se pode observar em uma de suas oraes transcrita abaixo, o que mais

    se roga a proteo contra os perigos eminentes, no s das foras externas,

    alheias a vontade humana, como tambm dos inimigos presentes no dia a dia de

    cada um de ns.

    Eu andarei vestido e armado com as armas de So Jorge para

    que meus inimigos, tendo ps no me alcancem, tendo mos

    no me peguem, tendo olhos no me vejam, e nem em

    pensamentos eles possam me fazer mal. Armas de fogo o meu

    corpo no alcanaro, facas e lanas se quebrem sem o meu

    corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem o meu

    corpo amarrar. Jesus Cristo me proteja e me defenda com o

    poder de sua santa e divina graa, Virgem de Nazar, me

    cubra com o seu manto sagrado e divino, protegendo-me em

    todas as minhas dores e aflies, e Deus, com sua divina

    misericrdia e grande poder, seja meu defensor contra as

    maldades e perseguies dos meus inimigos. Glorioso So

    Jorge, em nome de Deus, estenda-me o seu escudo e as suas

    poderosas armas, defendendo-me com a sua fora e com a

    sua grandeza, e que debaixo das patas de seu fiel ginete meus

    inimigos fiquem humildes e submissos a vs. Assim seja com o

    poder de Deus, de Jesus e da falange do Divino Esprito Santo.

    So Jorge. Rogai por Ns.

    So Jorge, segundo relatos dos documentos catlicos teve uma conduta

    inabalvel, foi justo e lutou pela verdade crist. E por ter sido justo e verdadeiro

    aos seus princpios, foi condenado a morte, pois sua verdade no era a verdade

    do poder dominante.

  • 20

    3.0 Estudo de Caso: a festa de So Jorge

    O antroplogo Roberto da Matta, em, O Trabalho de Campo como Rito de

    Passagem, sugere a associao dos rituais de passagem aos trabalhos de campo

    na antropologia. (DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introduo

    antropologia social. Petrpolis: Vozes, 1984, pp.150-173).

    Da Matta, fala a respeito do sentido real do significado do que familiar e

    extico. Argumentos tambm utilizados por Gilberto Velho, e que em algumas

    situaes sugerem sentidos que possuem correlaes.

    Podemos ento analisar o trabalho de campo como uma passagem por dois

    estgios diferentes entre si, mas, que denotam certa similaridade. Esta passagem

    se d por meio do que familiar, portanto, o que reflete nossa realidade atual, o

    que comum para o pesquisador, do que observado ento como extico, ou

    seja, a situao desconhecida.

    Para Da Matta, essa passagem formada pelos estgios de retirada,

    invisibilidade, individualizao e laos sociais. Onde, podemos verificar que nos

    momentos extremos que acontecem as principais etapas.

    Na retirada, ocorre o distanciamento do que temos como familiar, enquanto que

    no final, estabelecemos ligaes sociais com a situao desconhecida, que se

    torna, dessa forma, familiar. Logo, transformamos o familiar em extico e o extico

    em familiar, finalizando o trabalho de pesquisa.

    Em um primeiro momento, compareci a alvorada como uma simples curiosa, na

    verdade, mais me interessava participar do grande movimento causado pela festa

    em homenagem ao orago1 do que qualquer outro interesse como pesquisadora. A

    princpio este foi o primeiro impulso que me levou ao local da festa, substitudo de

    imediato, logo aps o som do toque do clarim que me causou um intenso

    sentimento efervescente de carter hibrido, que abrange esta manifestao

    popular de cunho religioso.

    O Toque do clarim chamado de Alvorada executado por um corneteiro. O

    1 s.m. O santo que d nome a uma capela, um templo ou uma freguesia. Invocao. Arruda, Bianca.As Sagas de Jorge: Festa, Devoo e Simbolismo/ Bianca Arruda. Rio de Janeiro, 2008. 112 pp., ix pp. Dissertao (mestrado): UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Ps- Graduao em Antropologia Social., 2008.

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    corneteiro um indivduo que faz parte do quadro de pessoal das foras armadas

    que pode estar representando a marinha, exrcito, aeronutica ou at mesmo o

    corpo de bombeiros. O toque da alvorada acontece nos quartis militares e tido

    como um toque de ordem, utilizado para dar incio s atividades logo ao

    amanhecer, por volta das cinco horas da manh.

    O sentido hbrido desta manifestao evidenciado pela composio do seu

    territrio que abriga durante os trs dias a festa em homenagem a So Jorge.

    Neste espao podemos observar diferentes culturas, crenas religiosas, nvel scio

    econmico e modos de vida distintos. Esta convivncia dentro do mesmo local da

    festa, por um grupo de indivduos, em um determinado perodo de tempo prope a

    reconfigurao deste espao e das relaes sociais existentes favorecendo o

    surgimento de uma nova expresso urbana mediada pela f.

    A missa da Alvorada d incio aos festejos em homenagem ao santo realizada

    pela igreja de Quintino Bocaiva na data de 23 de abril. Diversas so as

    demonstraes de f preparadas pelos fiis para louvar So Jorge neste dia, como

    o toque da alvorada ao amanhecer; as missas realizadas durante todo o dia; a

    procisso da luz que percorre as ruas do entorno; entre outras, so inmeras as

    manifestaes de f e religiosidade em virtude desta data comemorativa.

    O que tambm me causou tamanha impresso foi o nmero altssimo de

    pessoas que se aglomeram diante das escadarias da igreja por volta das 4 horas

    da manh, a fim de expressar sua f perante a imagem do Guerreiro. Sim o

    Guerreiro, desta forma que boa parte dos devotos se refere ao santo. Pessoas

    de diversas idades, de diferentes gneros e classes sociais, e tambm de religies

    distintas, compe o grande pblico que vai saud-lo neste dia 23 de abril.

    Em conversa com alguns devotos consegui colher informaes a respeito do

    motivo que os levaram at a festa.

    Sou devoto de So Jorge, venho todos os anos at a igreja

    para pedir paz, sade, proteo e dinheiro. (Marcos Paulo,

    segurana, 40 anos).

    Venho sempre na alvorada e entro na igreja para pedir paz,

    sade para mim e toda a minha famlia em especial para minha

    me. (Eliane da Silva, cozinheira, 58 anos).

  • 22

    J estive presente na igreja vrias vezes e acompanho os

    festejos h vrios anos, sou devoto de So Jorge. Aps ter

    escapado da morte reafirmei mais ainda minha f. Sou policial

    e s mesmo com muita f no santo para me manter em p. Os

    perigos so muitos... (Eduardo, Policial, 37 anos).

    O Sr Rubens comeou a freqentar a cerimnia da alvorada por iniciativa de um

    amigo seu. Quem o trouxe na verdade foi o Edson, que nesta poca vinha

    acompanhado de seu Pai, o Sr Chiquinho.

    Pode-se observar que o mesmo ritual ao qual Edson foi iniciado, ele repete a

    cada ano com um novo amigo. Rubens, tambm vem para festa com a mesma

    roupa de todos os anos. Neste ano ele s no repetiu o sapato, pois segundo ele

    seu p estava inchado, portanto no haveria como vir com o mesmo calado.

    Mas, o restante das vestimentas so as mesmas.

    O grande pedido que ele faz a So Jorge nas sua oraes de que todos ns

    tenhamos paz, para podermos andar com tranqilidade pelas ruas. Quando o

    questiono, o porqu de todos beberem a cerveja no final da missa, ele me

    responde com a voz um tanto quanto indecisa a cerveja do homem, de So

    Jorge, do guerreiro. E quando eu mais uma vez o questiono se a bebida

    realmente para louvar o santo ele me afirma desta vez com mais firmeza do

    guerreiro sim.

    Diversas homenagens so feitas nesta data por diferentes segmentos

    religiosos como: catlicos, umbandistas e candomblecistas. Cada um com seu

    ritual especfico, que por vezes, faz uso de prticas e smbolos que so comuns as

    diferentes doutrinas. Estas pessoas convivem, consomem e dividem o mesmo

    espao fsico da festa durante trs dias, tempo que dura s comemoraes na

    localidade.

    Crianas, jovens, velhos, ricos e pobres, homens e mulheres, todos se unem

    em um s pensamento em funo de um objetivo em comum: celebrar So Jorge.

    Catlicos, umbandistas e candomblecistas ocupam um mesmo espao territorial.

    Pude observar durante a festa um grande nmero de homens como devoto de So

    Jorge e na sua maioria, estes homens so jovens. Fato este que pude observar

  • 23

    pelo trabalho de campo.

    Em torno das comemoraes do dia 23 de abril, so montados altares por seus

    devotos em locais pblicos, organizam-se procisses, queima de fogos, feijoadas e

    rodas de samba. Para os devotos, suas comemoraes devem ser sempre

    adornadas de muitas alegrias, tal fato confirmado por meio de tantas celebraes

    em seu nome.

    Muito alm das fronteiras religiosas, So Jorge virou um cone popular,

    especialmente na cidade do Rio de Janeiro e em alguns pontos da regio da

    Baixada Fluminense. Vale ressaltar que neste trabalho de pesquisa

    especificamente trataremos das comemoraes realizadas no bairro de Quintino

    Boicava (nos anos de 2010/2011/2012) no espao da festa realizada pela Igreja

    de so Jorge.

    3.1 - A construo imagtica do santo carismtico: r ito, sincretismo e devoo a So Jorge.

    O feito de So Jorge em renunciar a sua prpria vida em virtude da sua crena

    e f, a superao dos seus prprios limites e da dor fsica, o idealismo e a nobreza

    do seu carter, a atitude de defesa em relao aos mais fracos e o senso de

    justia, inspiram modelos arquetpicos presentes em vrias culturas, cultos e

    religies distintas. Neste caso especfico, analiso a questo sincrtica pelo olhar da

    religio afro-brasileira, o candombl e sua relao com os santos de devoo

    catlica.

    A inspirao heroica surge muitas vezes por meio da problemtica imposta por

    um ambiente ou situao adversa, cuja soluo exige um feito grandioso ou um

    esforo extraordinrio, tal qual o sacrifcio da prpria vida, neste caso especfico,

    que culminou com a canonizao e o surgimento de um novo santo.

    Prendo-me de certa forma a esta questo porque acredito na sua relao direta

    com a aclamao do santo por grande parte da populao nos dias atuais. Esta

    problemtica evidenciada e reforada pela ideia de ser So Jorge um grande

    guerreiro, jovem e destemido, vencedor de inmeras batalhas. Seria este o

    representante que todo e qualquer povo anseia na resoluo dos seus problemas?

    So Jorge surge como o cavaleiro ou melhor o guardio guerreiro que de certa

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    forma todos gostariam de ter ao seu lado.

    A popularidade de So Jorge fomentada pelos valores que so atribudos ao

    seu poder de divindade simbolizado na figura - neste caso, entende-se como a

    figura a esttua usada para simbolizar o culto religioso - do cavaleiro que vence a

    batalha contra o drago. Sua postura digna e conduta inabalvel so alguns dos

    fatores que fortalecem e representam sua imagem2 diante dos seus devotos.

    Como um dos exemplos, podemos citar o caso de Edson, que possui extrema

    devoo pelo santo. Na verdade ele segue uma tradio familiar. Seu pai vinha

    enquanto vivo todos os anos para a festa e sempre o trazia. Nesta famlia existe

    uma particularidade, todos os homens so iniciados no culto a So Jorge. Os pais

    trazem seus filhos na Alvorada quando atingem uma certa idade, por volta dos 13

    anos e os apresentam a So Jorge. Todos usam um anel que tem como smbolo a

    imagem do santo.

    Edson j vem h mais de vinte anos e todos os anos ele repete a mesma roupa

    e sapato. A blusa vermelha e a cala e o sapato branco. Ele faz parte de um

    grupo chamado amigos do guerreiro onde todos se encontram sempre no dia 23

    na cerimnia da alvorada. Juntos eles bebem cerveja para salvar o santo, contam

    histrias, falam de suas vidas e reafirmam a sua f.

    comum a cada ano cada membro deste grupo trazer uma pessoa para ser

    iniciada no culto. Neste ano, Edson traz uma imagem que ele prprio presentear

    um amigo, amigo este que ele diz que trar na prxima festa do guerreiro. Ele

    tambm est acompanhado de seu filho mais velho, Gustavo que tem 18 anos.

    Gustavo, tambm usa o anel com o smbolo do santo e suas vestimentas tambm

    tem as cores vermelha e branca.

    Durante o tempo em que conversei com Edson, ele insisti que eu fale com o Sr

    Rubens, ele mesmo diz:

    Mas devoto do que eu s o Rubens, amigos de muitas datas e

    longas caminhadas...

  • 25

    O Sr Rubens comeou a frequentar a cerimnia da alvorada por iniciativa

    de um amigo seu, muito querido, segundo ele. Quem o trouxe na verdade foi

    Edson, que nesta poca vinha acompanhado de seu Pai, o Sr Chiquinho. Pode-se

    observar que o mesmo ritual ao qual Edson foi iniciado, ele repete a cada ano com

    um novo amigo. Rubens, tambm vem para festa com a mesma roupa de todos os

    anos. Neste ano ele s no repetiu o sapato, pois segundo ele seu p estava

    inchado, portanto no haveria como vir com o mesmo calado. Mas, o restante das

    vestimentas so as mesmas. O grande pedido que ele faz a So Jorge nas sua

    oraes o mesmo de sempre, segundo ele:

    de que todos ns tenhamos paz, para podermos andar com

    tranquilidade pelas ruas

    Quando o questiono, o porqu de todos beberem a cerveja no final da

    missa, ele me responde com a voz um tanto quanto indecisa:

    a cerveja do homem, de So Jorge, do Guerreiro...Voc

    sabe n... do Guerreiro sim.

    E quando eu mais uma vez o questiono se a bebida realmente para louvar um

    santo catlico ele me afirma desta vez cantando os seguintes versos:

    Se meu pai Ogum, Ogum!

    vencedor de demanda

    quando chega no reino

    pra saudar filhos de Umbanda

    ele trazia escudo no peito

    e uma lana na mo

    Ogum guerreiou e matou um drago

    Salve So Jorge o protetor!

    A adorao a So Jorge nos dias de hoje tambm explicada, ou melhor,

    cantada, por diversos compositores. Desde consagrados autores at a nova

    gerao da MPB. Podemos dizer que So Jorge constantemente homenageado

    em vrias letras de msica. Como exemplo, temos a composio de cinco msicos

  • 26

    brasileiros, Jorge Mautner, Jorge Arago, Jorge Vercilo, Seu Jorge e Jorge Benjor

    que atendem pelo nome de Jorge e declaram-se devotos do santo, e juntos

    escreveram a letra.

    Independente de cada um, a devoo na mdia foi com ele...

    (Fala de Jorge Arago em relao a devoo de Jorge Benjor a

    So Jorge e sua propulso na mdia. Entrevista exibida no

    programa SARAU da Globo News, em 02/05/2009.

    http://www.youtube.com/watch?v=ZOEaNfpRArA)

    A msica Lder dos Templrios, lanada em abril de 2007 em um show ao vivo

    na praia de Copacabana, projeto da gravadora EMI, fala da devoo de um povo,

    do poder de um santo guerreiro, que est na mesma esfera de seus fies, So

    Jorge apesar de uma figura divina, se faz muito prximo da vida humana. De certa

    forma, acredito que esta proximidade se d ao fato deste santo catlico agregar

    para si poderes milagrosos de que tanto faz falta atualmente para a populao de

    modo geral. So Jorge seria o grande defensor, o guerreiro que vence todas as

    batalhas contra o mal e que neste caso est totalmente ligado falta de segurana

    e a violncia desmedida pela qual a sociedade vem sendo vitimada.

    Ao observamos a letra desta msica podemos identificar elementos de grande

    relevncia no que se refere questo sincrtica que envolve o culto ao santo e

    ainda sua grande identificao junto aos seus devotos e a aproximao do mito do

    heri.

    Lder dos Templrios

    Tem f que Jorge de ajudar

    A todo Brasileiro, Brasileiro guerreiro

    So Jorge cavaleiro da flor,

    So Jorge protetor, protetor, protetor

    Oxossi da mata, Ogum do ferro

    Salamleico, leicon, salamalan

    Estrias de um Santo lutador

    Lder soberano dos templrios

  • 27

    No povo a sua fora se perpetuou

    E hoje vive em nosso imaginrio,

    E hoje vive em nosso imaginrio

    Mas todo imaginrio tem valor

    E pode transformar esse cenrio

    A mente criadora um dom maior

    Naqueles que so revolucionrios

    Naqueles que so revolucionrios

    Tem f que Jorge de ajudar

    A todo Brasileiro, Brasileiro guerreiro

    Eu sou cavaleiro da flor,

    So Jorge protetor, protetor, protetor

    So Jorge protetor, protetor, protetor

    O terreno ambguo

    Por que ele um heri

    Ele tem pulsaes humanas

    E por isso que ele to querido

    Em todos os lugares,

    Pelas crianas, pela populao

    Estrias de um Santo lutador

    Lder soberano dos templrios

    No povo a sua fora se perpetuou

    E hoje vive em nosso imaginrio,

    E hoje vive em nosso imaginrio

    Mas todo imaginrio tem valor

    E pode transformar esse cenrio

    A mente criadora um dom maior

  • 28

    Naqueles que so revolucionrios

    Naqueles que so revolucionrios

    Tem f que Jorge de ajudar

    A todo brasileiro, brasileiro guerreiro

    Eu sou cavaleiro da flor

    So Jorge protetor, protetor

    Protetor

    Tem f que Jorge de ajudar

    A todo brasileiro, brasileiro guerreiro

    Eu sou cavaleiro da flor

    So Jorge protetor, protetor

    Protetor

    So Jorge protetor, protetor

    Protetor

    So Jorge protetor, protetor

    Protetor

    De Cames a Fernando Pessoa

    Ns somos resultado

    Dessa peregrinao longnqua

    De combates e de glrias

    De afirmao do bem contra o mal,

    E mesmo na era ciberntica,

    No mundo digital, no holograma

    Ali est So Jorge

    Triunfante l na frente de todos ns,

    a pipoca da pororoca da imaginao

    Tem f que Jorge de ajudar

    A todo brasileiro, brasileiro guerreiro,

  • 29

    Eu sou cavaleiro da flor

    So Jorge protetor, protetor, protetor

    Tem f que Jorge de ajudar

    A todo brasileiro, brasileiro guerreiro

    So Jorge cavaleiro da flor

    So Jorge protetor, protetor, protetor

    So Jorge protetor, protetor, protetor

    So Jorge Guerreiro

    Santo salvador

    Sarav, dorf, motumb

    Vem nos ajudar

    Vem curar a dor

    Vem nos ajudar

    Salamleico, leicon, salamalan (que a paz de Deus esteja

    contigo)

    Shalon shalon

    Amm

    Santo Salvador

    O sincretismo cultural pode ser entendido como um fenmeno de caracterstica

    religiosa. Como os demais elementos de uma cultura, a religio constitui uma

    sntese que integra e engloba os contedos de diversas culturas e origens. No

    caso das religies afro-brasileiras e neste contexto podemos falar que este fato

    no diminui e nem esvazia a sua prtica, mas engrandece o domnio da religio,

    como ponto de encontro e de convergncia entre tradies diversificadas.

    O sincretismo cultural est divido em uma forma de

    combinao de diferentes crenas e prticas e tambm como

    forma de um sincretismo totalizante. O sincretismo totalizante,

    que procura integrar, num mesmo corpo, componentes de

  • 30

    variada extrao com a finalidade de conseguir uma

    unanimidade, manifestao de autoritarismo, e, como tal,

    pode ser encontrado subregimes como o fascismo e nazismo.

    Neste sentido, o sincretismo totalizante o oposto da

    modernidade cultural que privilegia a diversidade e a

    discordncia tolerante de crenas, prticas e pontos de vista

    como forma de desenvolvimento do conhecimento e da

    expresso. (COELHO, 2004, p.344).

    Costuma-se atribuir tambm o termo sincretismo cultural em nosso pas, quase

    que exclusivamente ao Catolicismo. Mas o sincretismo est presente tanto na

    Umbanda, como em outras tradies religiosas africanas, como o Candombl por

    exemplo.

    Na Umbanda, especialmente na cidade do Rio de Janeiro e outros estados do

    Brasil como Rio Grande do Sul e So Paulo, So Jorge identificado ou melhor,

    sincretizado como Ogum. J na Bahia, Ogum est relacionado a Santo Antnio.

    No cenrio das religies afro-brasileiras as diferentes denominaes esto

    diretamente ligadas s posies geogrficas em que o culto est localizado e de

    acordo tambm com a vinda dos negros como escravos para o Brasil na poca da

    colnia. A colonizao portuguesa coibiu a prtica da religio africana, ficando o

    negro em posio no s de desigualdade social como espiritual.

    O sentido de sincretismo hoje no Brasil encontra-se muito difundido por entre

    as manifestaes de f da sociedade. Ainda mais se considerarmos a pluralidade

    e diversidade sociocultural que compes a nossa sociedade. Essa pluralidade

    perfeitamente percebida durante todos os festejos em homenagem ao santo, que

    vo desde a cerimnia da alvorada as procisses realizadas pelas ruas do bairro

    de Quintino.

    Algumas imagens registradas durante os festejos em homenagem ao santo

    mostram este encontro de forma clara, que se torna ainda mais evidente atravs

    da construo simblica, por meio dos elementos que constituem a prtica desta

    manifestao religiosa.

  • 31

    Figura 3

    Imagem feita no dia 23 de abril no bairro da Abolio, subrbio do rio de

    janeiro. Trata-se de um altar montado em uma calada onde um grupo de amigos

    se rene para prestar homenagem ao santo.

    Junto imagem de so Jorge, encontramos uma garrafa de cerveja, alm de

    flores. comum aos devotos de So Jorge salvarem o santo bebendo cerveja e

    tambm oferecendo a bebida como forma de oferenda.

    Neste caso, pode-se observar o encontro do sagrado e do profano em um culto

    pblico, pois o altar aberto para que qualquer pessoa possa fazer suas oraes.

    O sincretismo cultural tambm se faz presente, pois, tambm uma prtica, na

    Umbanda, onde So Jorge sincretizado como Ogum, oferecer cerveja a Ogum,

    neste caso personificado na imagem do santo catlico.

    Nas cerimnias do Candombl em homenagem a Ogum, sinal de

    prosperidade, alegria e ax ao final da cerimnia religiosa ser oferecido cerveja

    aos convidados e filhos de santo como parte das comemoraes.

    Figura 4

    Nesta imagem temos o registro da procisso de So Jorge realizada pela igreja

  • 32

    de Quintino. A procisso acontece no dia 23 de abril, sempre na parte da tarde.

    Este homem, vestido de terno branco e chapu panam, nos lembra muito a figura

    de um malandro. Ele sempre vem frente da procisso de forma a organiz-la.

    Este mesmo personagem tambm participa da cerimnia da alvorada com a

    mesma vestimenta. Suas vestes, seu traquejo e gingado lembram muito o

    malandro Z Pelintra, figura presente nas grias de povo de rua (como alguns

    preferem chamar) ou Exu, nas cerimnias da Umbanda.

    Z Pelintra tem como uma das suas funes, a de ser o mensageiro dos

    Orixs. So eles os Exus, que abrem os caminhos e do passagem pelas

    encruzilhadas aos seus seguidores. Estaria ele frente da procisso abrindo os

    caminhos e encaminhando os pedidos dos devotos?

    Ogum, segundo a religio Ioruba, caminha junto a Exu, sendo ele Ogum o dono

    de todas as estradas, o senhor dos caminhos, alm do grande Guerreiro forjador

    do ao.

    Na ordem do Xir3, Exu sempre vem frente de todos os orixs, sendo Ogum, o

    seu sucessor.

    Figura 5

    Imagem da procisso do centro de Umbanda, Templo de Oxossi, em

    homenagem a So Jorge, pelas ruas do subrbio do rio de Janeiro, no bairro de

    Pilares. Durante a procisso eles param em frente igreja catlica de So

    Benedito e fazem todo um ritual. O corneteiro que acompanha a procisso executa

    o toque da alvorada, ao final todos gritam: Salve Ogum, Salve So Jorge,

    entoando cantigas de Umbanda, danando e celebrando.

    3 Xir: Ordem, sequncia de culto aos Orixs. No se trata de hierarquia, o Xir determinada ordem em que os Orixs sero louvados. Devido a sua especificidade, cada Orix dever ser cultuado seguindo a sequncia do Xir. O Xir comea com a saudao a Exu e termina com Oxal.

  • 33

    O mais interessante que esta manifestao em frente a uma igreja no feita

    de forma provocativa e sim de forma a enaltecer no to somente a Ogum, mas

    sim a todos os santos catlicos que so invocados durante este momento. Uma

    curiosidade que assim como os santos catlicos so louvados, tambm feito a

    homenagem ao orix correspondente na Umbanda. Se os devotos gritam, salve

    So Jorge, tambm dito Salve Ogum... Salve Santa Brbara, Salve Ians...Salve

    So Sebastio, Salve Oxossi... O profano e o sagrado dialogam mais uma vez, de

    forma nica.

    O sincretismo cultural foi e hoje ainda bastante utilizado por nossa sociedade

    por meio de um culto velado, muito incentivado pela marginalizao das religies

    afro-brasileiras, que desde os tempos colnias disfaravam-se por de trs das

    mscaras da religio predominante dos senhores de engenho, o catolicismo.

    Segundo o antroplogo holands Andr Droogers (1989)4, o termo sincretismo

    possui duplo sentido. usado com significado objetivo, neutro e descritivo, de

    mistura de religies, e com significado subjetivo que inclui a avaliao de tal

    mistura. Se analisarmos desta forma podemos ento dizer que todas as religies

    de certa forma so sincrticas, pois representam o resultado de grandes snteses

    que integrando elementos de vrias procedncias e de culturas diversas, forma um

    todo novo.

    Provavelmente no perodo colonial esta devoo teria se originado da

    estratgia de aceitar a dominao, como forma possvel de sobrevivncia numa

    sociedade opressora. Atualmente esta estratgia no se faz mais necessria numa

    sociedade pluralista, em que se discutem direitos das minorias e se prega a

    igualdade. Podemos dizer que o sincretismo se tornou um elemento essencial de

    todas as formas de religio, estando muito presente na religiosidade popular, nas

    procisses, nas comemoraes dos santos, nas diversas formas de pagamento de

    promessas, nas festas populares de uma forma em geral.

    possvel constatamos que o sincretismo constitui uma das caractersticas

    centrais das festas religiosas populares. Por meio do sincretismo cultural, podemos

    dizer que as religies afro-brasileiras tm algo de africano e de brasileiras, sendo,

    porm distintas das matrizes que as geraram.

    4 DROOGERS, Andr. Dialogue and Syncretism: An Interdisciplinary Approach. Amsterdam: William B. Eerdmans Publishing Co. and Editions Rodopi; Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans, 1989, pp. 7- 25.

  • 34

    Para se viver no Brasil, mesmo sendo escravo, e

    principalmente depois, sendo negro livre, era indispensvel,

    antes de mais nada, ser catlico. Por isso, os negros no Brasil

    que cultuavam as religies africanas dos orixs, voduns e

    inquices se diziam catlicos e se comportavam como tais. Alm

    dos rituais de seus ancestrais, frequentavam tambm os ritos

    catlicos. Continuaram sendo e se dizendo catlicos, mesmo

    com o advento da Repblica, quando o catolicismo perdeu a

    condio de religio oficial. (PRANDI, 2001, p. 12).

    A assimilao do Santo e do Orix era aparente e, inicialmente, serviu para

    encobrir a verdadeira devoo aos Orixs, pois no caso dos cnticos, eram

    efetuados em lngua natural dos escravos, o idioma Ioruba, que ningum entendia.

    Sua aceitao no interferiu nos ritos de forma direta a ponto de reverter e

    modificar o que deveria ser feito. Mas no existem dvidas de que este prtica

    imperialista levou muitos negros a abandonarem suas crenas, dedicando-se a

    aceitar a evangelizao, tornando-se catlicos.

    Deste cenrio multicultural e sincrtico, surgem as missas em homenagem aos

    Santos catlicos, uma prtica muito utilizada na cultura baiana, que antecedia as

    festividades dos Orixs por eles identificados. Este procedimento pode ser

    entendido como uma aparente aceitao catlica e tambm como forma de

    resistncia e preservao das religies africanas.

    De certa forma, este tipo de culto, transcorreu durante anos, atravessando a

    barreira opressora da sociedade dominante, dando origem a um novo tipo de

    adorao e devoo, mais aceitvel no perodo colonial, ainda hoje praticada por

    grande parte da sociedade.

    E bem verdade que nos dias atuais este preconceito tem diminudo

    expressivamente, falar do culto aos Orixs, da religio afro-brasileira est muito

    em voga atualmente.

    Conhecer esses modos de celebrar o culto a So Jorge a partir de suas

    perspectivas singulares foi o primeiro passo para o entendimento e respeito f e

    diversidade das crenas que identificam os diferentes grupos humanos religiosos

  • 35

    que compe a nossa sociedade e principalmente o que compe o territrio da

    festa, meu objeto de pesquisa neste momento.

    O encontro da f e crenas religiosas distintas parte integrante deste territrio

    hbrido, concebido pela mistura de gneros, com a capacidade nica de assimilar

    culturas diversas e criar a sua identidade de forma nica. Sabemos que

    historicamente esta mistura no foi feita de forma democrtica, mas, possvel

    mapear culturalmente que esta identidade encontrou um caminho.

    No Brasil, as expresses religiosas vindas da Europa, e neste caso falo do

    catolicismo, misturou-se a religies de outras origens, em especial o candombl

    vindo da frica. Que juntas instituem santos que se correspondem e refletem as

    vertentes da nossa f. Desta forma, emerge um dilogo entre os santos de

    devoo catlica e seus pares de devoo afro-brasileira.

    A figura de So Jorge, desde os tempos do imprio, constituiu um poder

    paralelo, de resistncia ordem decretada, este poder resistiu at o ltimo

    momento e trouxe consigo os princpios e desejos de uma classe desfavorecida,

    neste contexto histrico representado pelos cristos do perodo de Diocleciano.

    Seu potencial carismtico amplamente observado por meio do seu culto nos dias

    de hoje, e em parte podemos justifica-lo pela forma como ele ascendeu de

    indivduo comum a categoria de homem santificado e de como sua figura e os

    elementos que a compe, inspiram formas e modelos sincrticos.

    3.2 O Culto ao santo como Bem simblico

    O culto a So Jorge, nos dias de festa, no se resume apenas a realizao de

    missas e a procisses, como acontece com alguns outros santos catlicos, para

    So Jorge, segundo os seus devotos, preciso ter muito barulho, por este motivo

    so organizadas extensas queimas de fogos em sua homenagem, e tambm

    este para muitos, o ponto alto da sua festa. As queimas de fogos so uma parte

    importante do ritual realizado em homenagem ao santo. Elas possuem extremo

    valor simblico dentro das comemoraes. Independente do tamanho e

    grandiosidade que elas alcancem. O devoto, Preguinho, em uma das entrevistas

    realizadas no Campo, me explica o porqu da queima de fogos. Preguinho

    participa do grupo que responsvel pela queima de fogos desde 2003, realizada

  • 36

    durante a Alvorada em Quintino.

    So Jorge era um soldado romano, por isso os fogos so s 5h

    da manh... essa a hora da alvorada nos quartis para os

    militares... preciso barulho para acordar a todos por isso

    tantos fogos...e tambm uma forma de saudarmos o nosso

    guerreiro com muita alegria...a gente s solta fogos quando

    est alegre n minha filha...(entrevista realizada com o devoto

    Mrcio Machado da Cunha, mais conhecido como Preguinho,

    que integra o G.A.S.J.Q.- Grupo Alvorada So Jorge de

    Quintino ).

    A popularidade alcanada pelo santo catlico despertou o meu questionamento

    a cerca do que gera tanta mobilizao na preparao e organizao deste espao

    para a celebrao e tambm das distintas relaes construdas a partir deste

    movimento.

    Para um entendimento do culto ao santo como bem simblico foi

    necessria a observao da prtica do seu culto no to somente no territrio da

    festa assim como a sua prtica nos arredores da localidade. Tomarei como base

    neste estudo a ideia de Bem Simblico utilizada por Bourdieu (BOURDIEU, 2007).

    Para Bourdieu, um bem simblico configurado quando atribumos a um objeto

    artstico e ou cultural um valor mercantil, regido pelas leis de mercado, e a este

    resulta o status de mercadoria. Ainda de acordo com Bourdieu, estes objetos

    formam um grupo consumidor, assim como o de produtores de bens simblicos.

    Este grupo de consumidores e produtores ocupa o espao da festa durante os trs

    dias de comemoraes.

    Nos dias de hoje observado um extenso nmeros de produtos de moda onde

    podemos encontrar a figura de So Jorge estampada. Vo desde camisas, anis,

    pingentes, adesivos de carros, at mesmo bolsas de marcas conceituadas, como a

    do estilista Gilson Martins, cone carioca de estamparia de bolsas e acessrios. A

    figura do orago tambm adorna boa parte do corpo dos seus devotos por meio das

    tatuagens, uma das preferidas pelos homens.

    Em sua homenagem so compostas belas canes que falam da sua

    bravura e de todo o seu feito glorioso como podemos destacar Jorge da Capadcia

  • 37

    (Jorge Benjor); Ogum (Zeca Pagodinho), esta ltima de cunho bastante sincrtico

    que relata a devoo a Ogum, orix da cultura afro-brasileira sincretizado

    amplamente como So Jorge na cidade do rio de Janeiro.

    A popularidade de So Jorge fomentada pelos valores que so atribudos ao

    seu poder de divindade simbolizado na figura do cavaleiro que vence a batalha

    contra o drago. Sua postura digna e conduta inabalvel so alguns dos fatores

    que fortalecem e representam sua figura diante dos seus devotos. A compreenso

    deste evento religioso exige uma observao que vai alm da prtica religiosa em

    si, do culto e da forma de adorao.

    possvel notar uma publicizao da figura do santo, que extrapola os muros

    da igreja e ocupa de forma expressiva o cotidiano urbano dos frequentadores da

    festa, principalmente os que residem prximo localidade, os vizinhos da festa.

    Rita Amaral em Xir! O modo de crer e viver no candombl destaca a estrutura dos

    grupos organizados e seu entendimento como a sada para a questo

    antropolgica de grupos sociais mais complexos.

    Uma das maneiras de compreendermos o fenmeno religioso

    em contexto urbano, e, portanto a religio e a cidade em suas

    dinmicas especficas e integradas, proceder aos estudos

    dos modos de vida de cada grupo religioso a partir da

    investigao cuidadosa, de seu cotidiano no trabalho, no lazer,

    na escola, na famlia, suas preferncias, participao poltica,

    participao em outros grupos, etc. e do quanto religio

    fornece as matizes para uma nova escolha. O estudo da

    estrutura dos grupos informalmente organizados a chave

    para o desenvolvimento de uma antropologia das sociedades

    complexas, pois a complexidades, pode ser deslindada com o

    desenvolvimento da formulao simples. (AMARAL, 2002,

    p.112).

    Durante o trabalho de campo, foram registradas algumas imagens que

    mostram a figura do santo sendo homenageada fora do espao da igreja a

    publicizao do culto - e ainda adornando produtos que so comercializados no

  • 38

    espao da festa.

    Figura 6 - Altar de rua / Praa em Quintino Bocaiva, prximo a Rua Gois.

    .

    Figura 7 - Altar de rua / Rua Gois; transversal a Clarimundo de Melo.

  • 39

    Figura 8 - Santos e imagens / produtos comercializados no espao da festa

    Figura 9 - Fitas devocionais / produtos comercializados no espao da festa

  • 40

    Figura 10 - Camisas grafitadas / produtos comercializados no espao da

    festa

    3.3 - Observando o espao da festa - O trabalho de campo e o espao social

    Quintino Bocaiva um dos muitos bairros que compem a Zona Norte do Rio

    de Janeiro, uma regio que comeou a se desenvolver no final do sculo XIX ao

    longo da estao ferroviria. O nome do bairro uma homenagem feita ao

    jornalista e poltico republicano, morador da localidade, que faleceu em 1912.

    Quintino Antnio Ferreira de Sousa, que adotou o nome indgena Bocaiva para

    reafirmar seu nacionalismo.

    Para entender melhor a estrutura social da localidade, busquei a coleta de

    alguns dados no Instituto de pesquisas Pereira Passos onde foi possvel analisar o

    perfil scio econmico da populao local.

    De acordo com esses dados, possvel observar o que se segue:

    Nvel de escolaridade por chefes de domiclio no bairro

    Renda familiar

    12,26 % dos chefes de domiclio com menos de quatro anos de estudo;

    24,32 % dos chefes de domiclio com renda at dois salrios mnimos;

    9,87 % dos chefes de domiclio com 15 anos ou mais de estudo;

    17,07 % dos chefes de domiclio com rendimento igual ou superior a 10 salrios mnimos;

    2,51 % de analfabetismo em maiores de 15 anos;

    6,37 o rendimento mdio dos chefes de domiclio em salrios mnimos.

    Tabela 1. Nvel de escolaridade e renda familiar em Quintino Bocaiva -

    RJ

    Fonte: Tabela 2248 ndice de Desenvolvimento Social (IDS) e seus indicadores constituintes por bairro Municpio do Rio de Janeiro 2000.

    O bairro ainda ladeado por um complexo de favelas que compreende o Morro

    do Sau, dos Telgrafos, o morro do Dezoito, a favela Lemos Brito, o Morro da

    Caixa dgua e do Fub. A ttulo de informao, nenhuma dessas localidades

    possui Unidade de Polcia Pacificadora (UPP) at a finalizao deste trabalho.

  • 41

    A Rua Clarimundo de Melo, onde fica localizada a igreja uma das principais

    vias da regio, por onde circulam diariamente centenas de nibus e automveis.

    Existem nessa via escolas, empresas, fbricas e servios de sade. No trecho

    em que est localizada a igreja de So Jorge observei uma grande concentrao

    de bares e restaurantes, estabelecimentos que aumentam em at 70% sua renda

    lquida durante o perodo da festa, segundo as informaes dos seus proprietrios.

    J faz parte do cotidiano dos bairros do subrbio carioca este tipo de

    mobilizao social em virtude de uma manifestao religiosa, neste caso

    especfico a festa de So Jorge, que envolve toda uma comunidade, ultrapassando

    a j existente rede social organizada dentro dos muros da igreja junto aos

    paroquianos.

    O que podemos observar um tipo de cultura muito particular da localidade.

    A relao de proximidade entre os vizinhos em prol de um objetivo comum, o

    sentimento de cooperao mtua promove a organizao da festa nos arredores da

    igreja. Para o antroplogo Roberto Da Matta, o sentido da palavra cultura expressa

    o modo de ser e viver de cada indivduo em sociedade. E este modo de viver

    onde as afinidades so perceptveis, que aproxima os indivduos possibilitando

    formas de pensar similares traduzidas em uma mesma cultura.

    A construo de uma identidade social, ento, como a

    construo de uma sociedade, feita de afirmativas e de

    negativas diante de certas questes... Ou, como se diz em

    linguagem antropolgica, a cultura ou ideologia de cada

    sociedade. Porque, para mim, a palavra cultura exprime

    precisamente um estilo, um modo e um jeito, repito, de fazer

    coisas. (DA MATTA, 1986, p. 15)

    As aes elaboradas na produo da festa como a procisso dos fiis; a

    cerimnia da alvorada; a montagem das barracas; a preparao das missas; a

    colocao das bandeirinhas que enfeitam as ruas prximas igreja; a queima de

    fogos; entre outras tantas aes que fazem parte desta grande festa, mostram o

    sincronismo entre os moradores do entorno.

    Em conversa com alguns moradores do local, muitos me afirmaram que a festa

  • 42

    para So Jorge tambm inclui a ornamentao feita pelas ruas prximas igreja.

    Segundo D. Josefa, moradora do bairro h 25 anos.

    Existe muito trabalho fora dos muros da igreja, pois onde passa

    a procisso tem o trabalho de toda a vizinhana!

    A localidade marcada simbolicamente por ser o bairro onde nasceu e viveu

    durante a sua juventude o jogador de futebol Zico, o galinho de Quintino e por

    promover uma das maiores festas da cidade do Rio de Janeiro em homenagem a

    So Jorge. Mesmo com o grande aumento das religies protestantes, no bairro de

    Quintino, segundo dados do IBGE de 2010, aproximadamente 73% dos moradores

    da localidade onde o bairro est situado se declaram catlicos.

    Cheguei igreja de Quintino por volta das 20h37min do dia 22 de abril. J era

    possvel notar um grande nmero de barracas montadas na Rua Clarimundo de

    Melo, o movimento de circulao das pessoas j se tornava expressivo.

    Na caminhada at a igreja pude observar um grande nmero de barracas que

    vendiam diversos tipos de comida, bebidas, camisas com a imagem de So Jorge,

    lembrancinhas com a orao do santo, imagens em gesso, teros, quadros, rosas

    e a tradicional crista de Galo. Um tipo de flor, que muita utilizada, por parte dos

    devotos, como forma de oferenda a So Jorge, seu formato lembra o de uma crina

    de cavalo.

    A cor predominante tanto nas vestimentas dos devotos, quanto na decorao

    das ruas em torno da igreja o vermelho em maior quantidade - e branco que

    tambm est presente em todos os objetos vendidos pelas barracas. O vermelho,

    cor forte, que segundo os fies representa o fogo, tambm smbolo do que vivo

    e remete a vida em harmonia com o branco, paz, que d o colorido desta festa.

    Ao chegar igreja me direcionei ao Padre Marcelino, que o responsvel

    pela parquia. O padre Marcelino me informou que existe uma pessoa que faz

    parte da equipe da organizao da festa e que est na parquia desde a sua

    fundao. Fui tambm informado por ele que a procisso comearia s 16h do dia

    seguinte. Era possvel notar que dentro da igreja j existia um nmero grande de

    pessoas que estavam circulando, principalmente prximo a imagem do santo. A

    impresso que tive foi de que esta seria a imagem que sairia em cortejo pelas ruas

    em procisso, a mesma j estava adornada com rosas e palmas vermelhas,

    brancas e amarelas. Tambm presa imagem existia uma capa de um tecido

  • 43

    brilhante de duas cores, vermelha por dentro e branca na parte externa.

    Figura 11- Imagem de So Jorge (interior da igreja)

    Figura 12 - Ptio interno da igreja

    Continuei pela igreja e isso j era por volta das 21h10min. A minha inteno

    era observar um pouco mais o movimento e voltar para a alvorada por volta das

    04h da manh. Permaneci at s 21h35min na rua que d acesso a parquia

    depois me retirei para voltar mais tarde.

    Retornei ao bairro de Quintino por volta das 3h30h da manh, e observei um

    nmero cada vez mais crescente de pessoas que vem para assistir a missa da

    alvorada. Comeo a perceber que o espao de circulao reduzido ao mximo.

    Fica praticamente impossvel transitar de carro pelas ruas que ficam ao entorno da

    igreja. No primeiro ano que acompanhei a festa, em 2009, ainda era permitido

    estacionar nas ruas prximas a igreja. J nos anos seguintes, esta prtica fica

    totalmente proibida. Em 2010 a prefeitura do Rio de Janeiro, junto a Secretaria de

  • 44

    Ordem Pblica, a SEOP, passou a reorganizar o espao da festa, por meio da

    ao de ordenamento pblico. Para facilitar o estacionamento das pessoas que

    vo festa de carro prefeitura disponibiliza gratuitamente o espao da Escola

    Tcnica Profissionalizante, o CETEP de Quintino. As ruas prximas igreja ficam

    totalmente bloqueadas.

    Ao subir as escadarias escuto a voz de padre Marcelino que diz aos presentes

    a seguinte frase: Catlico no adora imagem, catlico a venera.. Embora o padre

    faa a questo de falar isto a todo o momento, o que se v nestes trs dias de

    festas so diversas imagens sendo adoradas e veneradas por seus fieis.

    Figura 13 - Ptio interno da igreja, minutos antes do incio da missa da

    alvorada.

    Por volta das 04h 52 feita uma orao para So Jorge, e logo em seguida

    comea o toque da alvorada. O toque da alvorada foi executado por um corneteiro

    do corpo de bombeiros do Rio de Janeiro, o toque dura em mdia de 2 a 3

    minutos. O som do clarim ecoa por todo o ptio da igreja e o silncio entre os

    milhares de devotos se torna absoluto.

    Neste momento todo o ptio da igreja, a rua que d acesso parquia, as

    escadarias, esto repletas de pessoas. Fica impossvel olhar um espao vazio no

    cho, milhares de pessoas se aglomeram para ver a queima de fogos que

    acontecer em frente igreja, logo aps o toque da alvorada. Ao olhar para os

    lados possvel observar muitas pessoas segurando imagens do santo, carteiras

    de trabalho, fotos, cordes com a medalha de So Jorge, enfim, todo e qualquer

    objeto que precisa ser abenoado e que possa vir a garantir a proteo do santo.

  • 45

    Figura 14 - Escadaria que d acesso a da igreja durante a missa da alvorada

    O que se pode observar durante a cerimnia da Alvorada a imagem de uma

    catarse coletiva. Um culto pblico, democrtico, que vai muito alm dos dogmas

    religiosos de qualquer doutrina. So Jorge emerge da condio de santo catlico e

    torna-se o santo de todos. No mais como o santo sincretizado pela umbanda e

    tambm reconhecido no candombl como Ogum. como se sua figura tivesse

    uma existncia prpria, acima de todas estas religies, sua imagem ultrapassa as

    barreiras religiosas.

    possvel observar que espritas, umbandistas, candomblecistas e cristos,

    todos esto unidos em um s pensamento, o de louvar o santo. Muitos gritam: Viva

    o guerreiro! E logo se escuta um coro, em resposta: Viva!

    Os fogos comeam a estourar sem cessar e as pessoas parecem estar em um

    transe coletivo. Muitos fazem suas oraes e pedidos, outros agradecem graa

    recebida, muitos tambm choram. Neste momento pode-se observar um grande

    nmero de crianas que esto acompanhadas de seus pais. Muitos homens, e

    grande parte deles jovens, mulheres, e famlias. possvel observar um grande

    nmero de famlias, que reunidas agradecem as graas alcanadas. Chega um

    momento em que todos entoam um cntico onde repetida a seguinte frase:

    Glria, glria, aleluia, louvemos ao senhor!.

  • 46

    Figura 15 - Devotos durante a missa da alvorada / interior da igreja

    So 05h05 da manh e termina a queima de fogos, dando incio a missa.

    Consigo observar que na vestimenta do padre, na sua batina, existe uma inscrio,

    na verdade este smbolo se trata da imagem de So Jorge, bordado na lateral das

    suas vestes. Neste momento o padre comea um sermo onde ele pede que todos

    os fiis vistam a armadura de Deus. Ele fala tambm a respeito da falta de carter

    que acomete a nossa sociedade, e como consequncia, isto retratado pela falta

    da verdade da populao em relao as suas aes e sentimentos.

    No observei na fala do padre Marcelino um discurso predominantemente

    catlico, parece que at mesmo o padre consegue observar seu pblico ecltico, o

    que o faz manter uma fala ecumnica. J nos momentos finais da missa ele cita

    que as atitudes da sociedade esto passando por um processo de banalizao,

    aonde o amor em relao ao seu prximo vem perdendo o sentido.

    Chegando ao fim da celebrao da missa, padre Marcelino pede a todos os fies

    que celebrem em paz e que a harmonia entre os homens possa prevalecer, com o

    fim da missa da alvorada, temos o incio das comemoraes na igreja de Quintino.

    Salve Jorge! A festa vai comear...

  • 47

    Figura 16 - Missa da alvorada amanhecer

    Figura 17 - Encerramento da missa da alvorada amanhecer do dia 23 de

    abril.

    Figura 18 - Momento da beno dos objetos, fim da missa da alvorada.

    Descida lateral da rampa da igreja.

  • 48

    Produtos vendidos durante a festa Camisas, velas e flores

  • 49

    3.4 A festa como Bem Cultural e as relaes de consumo no espao social

    Momentos sociais de erupo das atividades humanas em

    todos os campos da percepo e da representao da

    existncia de um grupo... por meio das festas que os homens

    reafirmam laos de solidariedade e compromissos de todos

    com a comunidade. Ao faz-lo, constroem suas identidades

    sociais e sua condio humana.

    (MAZOCO, 2007, p.6).

    A representatividade da festa de So Jorge expressa por meio de uma

    intensa carga simblica que a diferencia de uma festa comum, onde so expressos

    valores e sentimentos que foram adquiridos ao longo dos anos e que agregam

    marcas subjetivas resultado de uma memria coletiva vivenciada por meio da

    comunho de interesses comuns.

    A expressiva caracterstica hibrida de cunho scio cultural presente no espao

    desta festa caracterizado por uma manifestao popular, e nos d suporte na

    construo reflexiva deste trabalho.

    A diversidade que compe este territrio hbrido de interesse coletivo tanto pela

    sua construo, quanto pela sua instituio, legitimada pelos frequentadores locais

    - aqui considerados como uma construo resultante das prticas e das

    representaes dos agentes que compem o territrio que surge da expresso

    de uma manifestao urbana, e viabiliza a festa como um bem cultural, onde o

    culto ao santo observado como um bem simblico.

    Desta forma, propus analisar a festa de So Jorge atravs dessa rede de

    significaes e ressignificaes, da qual tambm faz parte, a relao de consumo

    e valores praticados por seus frequentadores neste espao.

    Alm dos aspectos ritualsticos e simblicos possvel observar ainda a

    possibilidade e o surgimento de uma nova economia urbana, sustentada pela

    informalidade, que opera valores culturais, valores simblicos e valores de

    mercado em um campo onde as relaes so mediadas pela f e limitadas de

    acordo com a proximidade dos agentes e suas prticas.

    A festa na parquia de Quintino envolve alm de inmeros fiis que passam

  • 50

    pela igreja para pedir a proteo do santo estimam-se segundo informaes da

    SEOP secretaria especial de ordem pblica cerca de 150 mil pessoas nos trs

    dias de festa, dados coletados nas comemoraes de 2012 -, o surgimento e

    possvel articulao de uma economia informal onde so comercializadas em

    decorrncia da f inmeras lembrancinhas que remetem a So Jorge, alm de

    alimentos, bebidas, entre outros tantos produtos. Possibilitando mesmo que de

    forma pontual o surgimento de uma economia urbana na localidade. Neste

    comrcio alternativo podemos observar desde teros com santinhos e oraes at

    blusas customizadas pela arte do Graffiti, que trazem a imagem do santo como

    destaque.

    A economia informal desempenha um papel vital nessas

    economias urbanas em desenvolvimento. Aqueles empregados

    informalmente nos centros urbanos trabalham como

    vendedores ambulantes, recicladores ou trabalhadores

    domiciliares. Os trabalhadores informais incluem trabalhadores

    assalariados fora do padro, assim como empresrios e

    autnomos produzindo mercadorias e servios legais, apesar

    de por meios irregulares ou no regulamentados. A economia

    informal uma grande fonte de emprego, mercadorias e

    servios para grupos de baixa renda e est ligada economia

    formal para qual ela produz, comercializa, distribui e presta

    servios Cidades inclusivas

    (http://www.inclusivecities.org/pt/descricao_geral.html).

    A parquia, que atualmente dirigida pelo padre Marcelino, h 63 anos realiza

    a festa em homenagem ao orago. Durante o meu trabalho de pesquisa mantive

    mais contato com o padre Marcelino e alguns paroquianos ligados as pastorais e

    que frequentam a igreja com certa assiduidade. Este grupo tambm participa do

    movimento que organiza a festa e so moradores dos arredores.

    De acordo com as informaes repassadas por padre Marcelino existem

    atualmente aproximadamente 70 paroquianos voluntrios que participam da

    organizao da festa dentro dos muros da igreja. As barracas que ficam fora do

    ptio da igreja no so de responsabilidade e nem organizadas pela parquia.

  • 51

    Estes voluntrios organizam a disposio das barracas no ptio interno da igreja,

    assim como as missas que so celebradas de hora em hora, a procisso, alm de

    se dividirem nas barracas para a venda de produtos diversos como: gneros

    alimentcios, flores, velas, artigos de devoo, entre outros que tem a renda

    revertida para as obras sociais da igreja.

    As festas populares organizam o coletivo em torno da sua

    produo que envolve dias, meses e, em alguns casos, at

    todo o ano em encontros e discusses e planejamento quanto

    realizao. Nessas ocasies os indivduos praticam a

    sociabilidade, se harmonizam, se unem. Porque s o homem

    faz festa, cria, cr e ritualiza sua existncia e sua interpretao

    de mundo.

    (MAZOCO, 2007, p. 7).

    Junto organizao da igreja, desde 2010, a prefeitura do Rio de Janeiro apoia

    de forma mais contundente a organizao do espao da festa e seus arredores.

    Por intermdio da Prefeitura do Rio de Janeiro, a Secretaria Especial de Ordem

    Pblica, disponibiliza aproximadamente cerca de 650 funcionrios entre: agentes

    de segurana, policiais militares, guardas municipais e equipamentos como duas

    ambulncias em pontos estratgicos alm de paramdicos para o suporte aos

    acontecimentos da festa. (nmeros coletados na festa de 2012)

    Cabe ressaltar a fragilidade deste campo ao qual proponho esta pesquisa, a

    festa realizada pela igreja de Quintino. Dada efemride, a festa s ocorre uma

    vez ao ano, durante trs dias. Mesmo acompanhando toda a estrutura de

    produo que dura cerca de oito meses -, o que poderia nomear como a pr-

    produo do evento, a pesquisa fica condicionada a este curto espao de

    observao dos festejos in loco.

    Muito se tem a falar sobre a questo da economia informal no espao da festa

    de So Jorge realizada pela igreja de Quintino Bocaiva. Questo est que tratarei

    de forma mais especfica futuramente, como objeto de estudo da minha pesquisa

    de mestrado.

    Os frequentadores da festa, em geral os devotos do santo, formam quase que

  • 52

    inconscientemente uma instituio sem muros, arregimentada pela f de cada

    indivduo. Esta instituio regida pela devoo alimentada por grupos sociais

    distintos, que se diferenciam no s pela doutrina religiosa que adotam, assim

    como pela condio scia econmica que os define, embora, mesmo que

    eventualmente ocupem o mesmo espao fsico.

    Utilizarei na minha narrativa e durante todo este trabalho a definio de Espao

    Social segundo a ideia de campo utilizada por Bourdieu, como descrita na

    publicao Razes Prticas sobre a teoria da Ao, e tambm abordarei os

    aspectos de como os indivduos consomem o espao social estando esta anlise

    pautada pela lgica da f.

    Segundo Bourdieu, podemos entender o espao social (BOURDIEU, PIERRE,

    2007) por meio da observao das diferenas existentes nas histrias coletivas,

    onde conseguiremos analisar as distintas relaes variveis de acordo com a

    observao das estruturas singulares reproduzidas.

    Espao social da historia comparada, que se interessa pelo

    presente, ou por uma antropologia comparativa, que se

    interessa por uma determinada regio cultural, e cujo objetivo

    apanhar o invariante, a estrutura na variante observada.

    ...tais como os princpios de construo do espao social ou os

    mecanismos de reproduo desse espao e que ele acha que

    pode representar em um modelo que tem a pretenso de

    validade universal. Ele por, assim, indicar as diferenas reais

    que separam tanto as estruturas quanto as disposies (o

    habitus) e cujo princpio preciso procurar, no na

    singularidade das naturezas ou das almas -, mas nas

    particularidades de histrias coletivas diferentes (BOURDIEU,

    2007, p. 15).

    O que gostaria de ressaltar que apesar das condies sociais no igualitrias

    e ainda das prticas religiosas distintas dos grupos que participam da festa, esses

    indivduos: catlicos, umbandistas, candomblecistas e espiritualistas de uma forma

    geral, interagem entre si e se apropriam do espao fsico, reivindicando ainda a

    ocupao simblica deste territrio.

  • 53

    As diferentes posies no espao social correspondem

    tambm diferentes estilos de vida, processos que retraduzem

    simbolicamente as diferenas objetivas inscritas nas condies

    de existncia, correspondentes s trajetrias dos sujeitos.

    (DOMINGUES, 2011, p.7).

    Esta tenso nos remete a uma disputa velada pela apropriao do espao

    simblico e ordena uma mediao pelo protagonismo social, onde so articuladas

    novas redes de significativos, construdas por meio da transculturalidade presente

    nesta manifestao popular. Este territrio hbrido cria um espao social

    representativo, onde o coletivo projeta as distines sociais existentes.

    As noes do espao social, de espao simblico ou de classe

    social, no so, nunca, examinadas em si mesmas e por si

    mesmas, so utilizadas e postas a prova em uma pesquisa

    inseparavelmente terica e emprica que a propsito de um

    objeto bem situado no espao no tempo. (BOURDIEU, 2007, p.

    14).

    neste espao social que o culto ao santo se reafirma como um bem

    simblico. Os smbolos, para a ocorrncia da transmisso de mensagens,

    precisam ser compartilhados, ter uma significao em comum para vrias pessoas,

    neste caso os devotos de So Jorge.

  • 54

    3.5 Ocupando o territrio a ao do ordenamento pblico

    O ordenamento do espao pblico implementado na festa de So Jorge desde

    2010, exerce influncia direta na forma pela qual so viabilizadas as relaes

    sociais praticadas no ambiente da festa. Este ordenamento pode regulamentar de

    forma negativa ou positiva as trocas simblicas existentes na festa, assim como a

    relao de partilha no espao.

    Em decorrncia do ordenamento do espao pblico as aes podem se tornar

    mais competitivas ou ainda homogneas no que tange as prticas comerciais,

    estabelecidas pelas relaes de consumo tanto pelo seu valor, quanto por sua

    diversidade. Podemos observar o consumo como um mediador das prticas e das

    relaes sociais estabelecidas entre os agentes no espao da festa.

    O consumo neste caso vai suprir uma necessidade subjetiva, que tem na

    devoo a sua feramente que a leva a f, ultrapassando as fronteiras sociais;

    possibilitando a formao das subjetividades presente na religiosidade.

    Consumir no espao social da festa pode ser entendido como detentor de

    significados para os indivduos. Mais do que fazer parte da festa, consumir o que

    ela oferece permite ao agente a identificao com o bem ou at mesmo ser

    identificado por ele atravs da representao das emoes, sensaes e

    experincias vivenciadas.

    O ato de consumir est presente em diversas dimenses de nossa vida social

    que por vezes passa sem a nossa percepo. E dentro desse espao, agimos de

    acordo com nossos critrios de escolha que so definidos pela nossa cultura e que

    nos definem socialmente. Podemos observar o consumo como valor cultural e

    como mediador de prtica e das relaes sociais estabelecidas no espao da

    festa.

    Em decorrncia deste ordenamento, pode-se observar um processo de

    Institucionalizao da f. Usarei este termo, ou melhor, categoria para denominar

    as intervenes que compem o conjunto de normas que estabelecem regras de

    convvio. Esta interseo feita de forma hierrquica, de cima para baixo, atravs

    da SEOP - Secretaria Especial da Ordem Pblica - que desde 2010 atua com mais

    rigor na adoo de prticas normativas do espao.

    Esta prtica tem como objetivo ocupar de forma a ordenar, segundo a SEOP o

  • 55

    espao fsico no entorno da igreja, assim como garantir a segurana e a fluidez

    das vias de acesso ao bairro de Quintino.

    Festa de So Jorge em Quintino ter ruas interditadas e desvio

    Nesta quinta-feira, dia 23, para a Festa de So Jorge na igreja

    de Quintino Bocaiva, das 15h s 19h, o trfego ser

    interditado em trechos da Rua Clarimundo de Melo, entre as

    ruas Bernardo Guimares e Padre Telmaco, e de outras trs

    vias prximas: Rua Padre Telmaco, entre as ruas Clarimundo

    de Melo e Ernani Cardoso; Ruas Elias da Silva, entre a Rua

    Nerval de Gouveia e o Viaduto Compositor Wilson Batista; e

    Rua Nerval de Gouveia, entre as ruas Bernardo Guimares e

    Elias da Silva.

    No mesmo horrio, para realizao da procisso, o trfego ser

    desviado: da Rua Ernani Cardoso para a Avenida Amaro

    Cavalcanti, os veculos devero seguir pelo Viaduto

    Washington Luiz, Avenida Dom Hlder Cmara, ruas da

    Pedreira, Gois, Euzbio de Matos, Praa dos Garis, Rua

    Manuel Vitorino, Praa Sargento Eudxio Passos e Rua

    Clarimundo de Melo; da Rua Clarimundo de Melo para a Rua

    ngelo Dantas, o roteiro ser pelas ruas Assis Carneiro, Elias

    da Silva, Viaduto Compositor Wilson Batista, ruas Gois e

    Cupertino, Avenida Dom Hlder Cmara e Viaduto Washington

    Luiz; at meia-noite de quinta-feira, exceto no horrio da

    procisso, o trfego da Rua Clarimundo de Melo para a

    Avenida Amaro Cavalcanti seguir pelas ruas Bernardo

    Guimares, Nerval de Gouveia, Elias da Silva e Assis Carneiro.

    Conforme portaria da Coordenadoria de Regulamentao e

    Infraes Virias, dia 17, no Dirio Oficial do Municpio, at 20h

    desta quinta-feira, fica autorizado estacionamento de veculos

    leves na Rua Clarimundo de Melo, entre as ruas Bernardo

    Guimares e da Repblica

    (OREPORTER.COM, 2012, online)

  • 56

    Alm de regular a ocupao do espao fsico, este processo tambm delibera o

    licenciamento para a explorao comercial - venda de produtos alimentcios e

    artigos religiosos - na Rua Clarimundo de Mello, principal acesso a igreja de

    Quintino. As barracas onde so vendidos os diversos produtos ficam dispostas ao

    longo da rua, e desde 2010, foram padronizadas. Para conseguir esta licena

    feito um sorteio pela SEOP onde 60 barraqueiros so contemplados. este

    comercio alternativo/informal que potencializa o aparecimento de uma economia

    urbana em torno da festa.

    A prtica do ordenamento estabelece as regras de convvio no territrio da

    festa, onde as relaes so determinadas de forma hierarquizada a partir do

    intervencionismo do Estado. Estas decises so deliberadas sem a participao

    da comunidade, dos comerciantes autnomos e do comrcio local, ficando

    totalmente alheios a negociao na ocupao do espao pblico.

    Segundo informaes da secretaria, a ao do ordenamento tem como objetivo

    melhorar as condies dos frequentadores da festa, permitir a fluidez no transito e

    garantir a segurana da populao.

    Durante o meu trabalho de campo pude constatar atravs das entrevistas

    realizadas que nem todos os trabalhadores pensam desta forma. Foram realizadas

    dez entrevistas com barraqueiros de diferentes pontos da festa.

    Dos dez barraqueiros entrevistados, apenas um concorda que aps o

    ordenamento suas condies de trabalhos obtiveram melhorias. A ttulo de

    informaes, este barraqueiro que tem o melhor ponto, pois sua barraca a

    primeira aps a rea isolada pela SEOP. A fim de organizar melhor o espao a

    SEOP s libera a montagem das barracas a aproximadamente 400 metros de

    distncia da igreja. Como as barracas ficam dispostas de forma linear este

    posicionamento no favorece as barracas que ficam mais distantes da rea

    permitida para montagem. Ou seja, quem est mais perto da linha inicial da

    montagem das barracas e consequentemente mais prxima da igreja consegue

    atingir consideravelmente um volume maior de consumidores.

    Os outros noves entrevistados consideram que esta organizao prejudica

    suas vendas, pois o deixam muito distantes da igreja.

    Aps o sorteio, os barraqueiros ainda precisam cumprir uma srie de

    exigncias para que a licena de explorao do espao seja concedida. E dentro

  • 57

    dessas exigncias est o pagamento de taxas para o licenciamento que so elas:

    gua, luz, IPTU e vigilncia sanitria, alm da padronizao das barracas. Todas

    essas taxas custam ao comerciante em mdia cerca de R$ 950,00. O que pude

    observar na fala dos trabalhadores da festa foi um repdio a ao do estado pela

    falta de dilogo no estabelecido entre as partes integrantes da festa. E neste caso

    a ausncia de mediao faz com que o uso do espao tenha propores

    desiguais.

    Neste momento pude observar a ausncia de uma articulao que pudesse

    equalizar ambas as vozes e suas perspectivas, penso que a figura do produtor

    cultural pode ser de grande relevncia nos processos de ordenamento que envolva

    manifestaes culturais, como esta em questo, a festa de So Jorge.

    A operao Choque de Ordem nos festejos de So Jorge em

    Quintino, zona norte do Rio de Janeiro, realizada por agentes

    da SEOP (Secretaria Especial da Ordem Pblica), neste

    sbado (23), multou 60 veculos e rebocou 26 por

    estacionamento irregular. De acordo com a SEOP, foram

    apreendidos com ambulantes no autorizados 30 flores, 86

    camisas e mil fitas. Participaram da ao em Quintino: 12

    Agentes de Controle Urbano da SEOP, 132 guardas municipais

    e 20 reboques. A organizao e padronizao das barracas

    autorizadas pela Secretaria Especial da Ordem Pblica, alm

    da fiscalizao intensa no entorno das igrejas de So Jorge em

    Quintino proporcionaram, pelo segundo ano consecutivo, mais

    conforto, segurana e tranquilidade aos devotos e moradores

    das reas disse Marcelo Maywald, subsecretrio de Controle

    Urbano da SEOP, que acompanhou a operao. A montagem

    das 60 barracas padronizadas para os festejos em Quintino foi

    definida atravs de sorteio pblico promovido pela prefeitura do

    Rio, por meio da Secretaria Especial da Ordem Pblica.

    (PORTAL R7, 2012, online)

    Uma mediao eficiente e democrtica, pautada no dilogo das partes

    envolvidas, tanto o poder pblico, quanto barraqueiros e comerciantes locais,

  • 58

    poderia minimizar transtornos e potencializar o comercio da localidade. Desta

    forma, seria possvel proporcionar maior fluidez na organizao do espao com o

    objetivo de priorizar o que se tem de mais precioso. Uma manifestao popular de

    intenso carter cultural que legitima o modo fazer de toda uma comunidade. A dos

    devotos de So Jorge.

  • 59

    4.0 - Consideraes Finais

    A proposta desta monografia foi de abordar como objeto de estudo a festa de

    So Jorge, o rito, o culto e o bem simblico por meio das relaes sociais de

    proximidade entre os frequentadores da festa e as relaes de proximidade e

    consumo produzidas no espao fsico da Igreja e suas imediaes.

    Esta manifestao foi escolhida como tema de pesquisa em primeiro momento

    muito pelo apelo carismtico que este santo produz no s na localidade como no

    estado do Rio de Janeiro. bem certo afirmar que So Jorge aclamado em

    outras partes da cidade como a regio da Leopoldina, no centro do Rio e por

    outros bairros da zona norte da cidade como: Vila Valqueire, Abolio, Madureira e

    ainda a regio da Baixada Fluminense.

    Retomo esta questo at por que acredito na sua relao direta com a

    aclamao do santo por grande parte da populao. Esta problemtica

    evidenciada e reforada pela ideia de ter sido Jorge um grande guerreiro do

    exercito romano, jovem e destemido, vencedor de inmeras batalhas, segundo

    relatos da doutrina catlica e no decorrer dos anos, legitimado pelos seus fiis. De

    fato, seria este o representante que todo e qualquer povo anseia na resoluo dos

    seus problemas. So Jorge surge como o cavaleiro ou melhor o guardio

    guerreiro que de certa forma todos gostariam de ter sempre ao seu lado.

    A ideia de falar a respeito das comemoraes em Quintino foi uma escolha de

    certa forma afetiva e muito pautada tambm pela tradio dos festejos no bairro.

    Como dito anteriormente a festa realizada h mais de 60 anos na regio e

    agrega como frequentadores no s os moradores do bairro como devotos vindos

    de todo o estado do Rio de Janeiro.

    inegvel o poder simblico que a figura do santo guerreiro evoca perante aos

    seus devotos e simpatizantes que vo desde os jovens, at famlias inteiras unidas

    pela f. Durante os trs dias da festa, foi possvel observar que os frequentadores

    do territrio consomem o espao social atravs da lgica da f de diferentes

    formas de acordo com o seu repertrio e modo de vida, fazendo uso do seu

    prprio cdigo simblico.

    Na primeira etapa deste trabalho, onde abordei a historiografia do santo,

    procurei descrever de forma breve a trajetria de So Jorge. Onde, a priori, j

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    possvel observar grande parte da fora agregada a sua imagem. Imagem esta

    que fica marcada pela construo da trajetria de um verdadeiro heri que nasce

    da legitimidade em que reside a fora do povo.

    Foi possvel observar que este herosmo est diretamente ligado ao imaginrio

    e a moralidade popular dos seus devotos. Herosmo e moralidade, no seriam

    estes valores to escassos e to necessrios nas relaes pessoais de boa parte

    da nossa sociedade nos dias atuais? Padre Marcelino diz que sim, e cobrou esta

    postura aos devotos de Jorge - durante a homilia, na missa em homenagem ao

    santo.

    Durante o trabalho de pesquisa pude perceber que existe uma relao de

    proximidade direta do culto ao santo com grande parte dos seus devotos, e isso

    possibilita e impulsiona possveis desdobramentos que permeiam as prticas

    sociais e as associaes hibridas nas relaes estabelecidas no espao da festa.

    No to somente pela sua proporo no dia 23 de abril, mais ainda pelas

    vertentes sociais e culturais observadas neste evento, como: o culto ao santo

    como um bem simblico, a festa como um bem cultural, o rito, o sincretismo

    religioso e o possvel aparecimento de uma economia urbana marcada pela

    informalidade. Todas estas variantes sociais mediadas pela lgica da f e hoje

    influenciadas atravs das prticas e aes do ordenamento pblico.

    So Jorge est em um nvel de divindade que o deixa bem prximo dos seus

    devotos, seu culto carregado de elementos simblicos, seja no uso das cores

    vermelho e branco, no toque da alvorada, na queima de fogos, nas aclamadas

    rodas de samba durante os dias de festas, nas feijoadas e na cerveja que bebida

    em sua homenagem. Independente das prticas do catolicismo, esfera a qual So

    Jorge faz parte, quem vai a Quintino para celebrar o santo passeia entre o sagrado

    e o profano e em muitos casos nem se d conta que faz parte de toda uma rede

    sincrtica de associaes.

    O feito heroico de So Jorge em renunciar a sua prpria vida em virtude da sua

    crena, a superao dos seus prprios limites e da dor fsica, o idealismo e a

    nobreza do seu carter, a atitude de defesa em relao aos mais fracos e o senso

    de justia, inspiram modelos arquetpicos presentes em vrias culturas, cultos e

    religies distintas, muito prprio da nossa cultura. Para entendermos mais

    claramente a relao do modelo arquetpico podemos utilizar o conceito adotado

    por Newton Cunha.

  • 61

    Habitualmente, um arqutipo tende a ser protagonista ou heri,

    cujas qualidades de maior evidncia, assim como os esforos

    emp