Document01

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8

    ANLISE SCIO-HISTRICA DO PROCESSO DE PERSONALIZAO DE PROFESSORES

    Introduo

    Enquanto professora da disciplina Psicologia da Personalidade no curso de Psicologia Licenciatura em Psicologia e Formao de Psiclogos da UNESP-Bauru, temos feito desta categoria terica - personalidade o objeto central de nossos estudos. Ao longo de nossa trajetria profissional, temos nos contraposto categoricamente s correntes da psicologia para as quais a personalidade representa um sistema fechado sobre si mesmo, um centro organizador que desde o nascimento dos indivduos dirige suas estruturas psicolgicas. A personalidade acaba por ser abordada nesses modelos tericos, enquanto algo existente dentro do homem que se atualizar sob dadas condies de existncia. Em nossa avaliao, esta forma de conceber a personalidade tem resultado em modelos explicativos essencialmente idealistas, em concepes naturalistas e deterministas, que em ltima instncia, coincidem com maneiras de se pensar o prprio homem. Tais concepes tm nutrido uma Psicologia que parcamente avana em direo consecuo de seu objetivo, qual seja, uma efetiva compreenso da dimenso psicolgica dos seres humanos. O grande problema dessas abordagens, reside no fato de que ao se debruarem sobre seu objeto o tomam em separado da totalidade histrico-social que o sustenta. Ao perder sua sustentao, perdem-se as possibilidades de apreend-lo em sua concretude, substituindo-se esta apreenso por outras, abstratas e vazias. Nossa crtica a essas abordagens determinou a adeso aos pressupostos filosficos e metodolgicos do materialismo histrico e dialtico, luz dos quais analisamos o processo de personalizao. Esta adeso no decorre de uma superficial opo terica, ela resulta de um processo de estudos e reflexes que nos confere a certeza de que a epistemologia marxiana que guarda as possibilidades para o verdadeiro conhecimento cientfico sobre a pessoa humana, isto , sobre a realidade objetiva que este termo denomina e que, em ltima instncia, o indivduo real, vivo, que atua e se revela enquanto sntese de um sistema de relaes sociais e ao mesmo tempo, enquanto sujeito destas relaes.

  • 9

    Por outro lado, temos que o objetivo maior do conhecimento cientfico reside em orientar aes humanas transformadoras da realidade e assim sendo, no nos basta apenas conhecer, interpretar um dado objeto ou fenmeno, mas sim, produzir um conhecimento que possa estar a servio de todos os homens. Neste sentido buscar no materialismo histrico e dialtico os fundamentos para o estudo da personalidade humana, e neste trabalho em particular, do processo de personalizao de professores, para alm de uma questo metodolgica tambm uma questo tico-poltica. Anlise Scio-Histrica do Processo de Personalizao de Professor o ttulo deste trabalho, que busca destacar e compreender nos marcos do materialismo histrico os elementos constituintes da formao da personalidade do professor, naquilo em que a riqueza (ou empobrecimento) deste processo se pe em relao com seu fazer pedaggico. Em se tratando da apresentao deste trabalho, o leitor poder se perguntar qual a razo do tratamento especial conferido personalidade do professor, ou seja, por que no estudo da personalidade focalizar um tipo especfico de trabalhador? A resposta a esta indagao, que se articula aos prprios objetivos desta pesquisa, demanda uma brevssima apresentao do sistema terico que a sustenta. Este sistema constitudo por trs pressupostos fundamentais. O primeiro deles diz respeito ao papel central do trabalho no desenvolvimento humano. Mas por que o trabalho? Porque este a atividade vital do homem, ou seja, se o que caracteriza uma espcie para alm de sua organizao biolgica, a atividade que ela executa para produzir e reproduzir sua vida, no caso do homem esta atividade o trabalho pelo qual ele se relaciona com a natureza e com os outros homens, criando as condies necessrias de produo e reproduo da humanidade. O segundo pressuposto diz respeito ao carter material da existncia humana, ou seja, os homens se organizam em sociedade para produzirem a sua vida, portanto, as bases das relaes sociais so as relaes de produo, as formas organizativas de trabalho. O terceiro pressuposto, refere-se ao carter histrico do desenvolvimento humano, ou seja, como os homens organizam sua existncia atravs do tempo, diz respeito ao movimento e contradies do mundo, dos homens e de suas relaes.

  • 10

    Pelo mtodo dialtico buscar-se- compreenso da realidade resultante do metabolismo homem-natureza, metabolismo este, produzido pela atividade humana em sua materialidade e movimento. Assim sendo, vemos que o trabalho, atividade vital humana (em seu sentido marxiano filosfico, muito mais que ocupao, tarefa executada pelo homem) categoria nuclear de anlise no materialismo histrico e dialtico, o que determina sua anlise em relao alienao. Sob as condies histricas da produo capitalista o trabalho expropriado de sua mxima expresso humanizadora, posto que tais condies estabelecem uma ciso entre o trabalhador e o produto de seu trabalho, entre o trabalhador e o processo de produo e consequentemente, entre o trabalhador, o gnero humano e s mesmo. Esta expropriao determina o processo inverso realizao plena do trabalho no desenvolvimento do homem, ou seja, determina a sua alienao. Sob a gide da alienao os homens tornam-se menos homens, empobrecem-se, convertendo-se em mercadorias tanto mais desvalorizadas quanto mais alimentam o capital, propriedade de alguns homens em detrimento da maioria deles. Desta forma, vemos que a organizao social capitalista se caracteriza pela alienao do trabalho e do trabalhador, culminando no esvaziamento do homem em suas relaes para com a natureza, para com os outros homens e consequentemente para consigo mesmo, ou seja, culmina no esvaziamento de sua prpria personalidade.

    Portanto, na perspectiva marxiana a atividade e em especial o trabalho desempenham papel decisivo na constituio da personalidade, posto que o sentido da existncia mediatizado pelo sentido da atividade, pelo sentido do trabalho. A personalidade, por sua vez, est diretamente relacionada ao sentido da existncia, mesmo quando este sentido dado de forma alienada. Tecidas estas consideraes, podemos agora retornar questo anteriormente lanada sobre a especificidade do processo de personalizao do professor. Para tanto, vamos tomar a alienao no apenas do ponto de vista do trabalhador mas tambm, e principalmente, do ponto de vista do produto do trabalho. No seio da sociedade capitalista o professor um trabalhador como outro qualquer1, entretanto, o produto de seu trabalho no se materializa num dado

    1 H uma distino fundamental entre o trabalho do professor e o do operrio que no ser aqui explorada em toda

    sua extenso mas que no podemos deixar de mencionar: o trabalho do professor no produz valor, no sentido

  • 11

    objeto fsico. O produto do trabalho educativo se revela na promoo da humanizao dos homens, na consolidao de condies facilitadoras para que os indivduos se apropriem do saber historicamente sistematizado pelo gnero humano. Portanto, encontra-se na dependncia do desenvolvimento genrico de seu autor, e consequentemente em ntima relao com seu processo de personalizao. Diferentemente, temos outras formas de trabalho cujo produto se objetiva num dado material e que no se altera pela alienao de seu autor, ou por outra, no se encontra na dependncia do desenvolvimento genrico de sua personalidade. A alienao, por exemplo, do operrio da indstria automobilstica no compromete a qualidade do automvel que ele contribui para construir, mas a alienao do trabalhador professor interfere decisivamente na qualidade do produto de seu trabalho. O trabalho educativo pressupe o homem frente a outro homem de quem no pode estar estranho (alienado), fundando-se numa relao que por natureza interpessoal e mediada pelas apropriaes e objetivaes destes homens. Desta forma, consideramos que a personalidade do professor varivel interveniente no ato educativo pois educar exige um claro posicionamento poltico e pedaggico, pressupe a ao intencional do educador a todo momento, implica permanentes tomadas de decises. A intencionalidade por sua vez, um pressuposto da conscincia e esta, ncleo da personalidade, de onde deduzimos no existir ao educativa que no seja permeada pela personalidade do educador. pelo reconhecimento de sua importncia que entendemos necessria uma slida compreenso do que ela . Assim sendo, este trabalho busca primeiramente, afirmar a importncia do processo de personalizao do professor na objetivao de sua atividade enquanto educador, medida em que procura responder s seguintes questes:

    Existe no pensamento educacional contemporneo o reconhecimento da importncia acima referida? Em caso afirmativo, existe uma slida teoria da personalidade a lhe dar sustentao?

    Na sociedade capitalista em que nos inserimos pode ser transformador o tratamento dispensado personalidade que no reconhea as relaes de alienao e suas conseqncias na construo da subjetividade humana?

    econmico dessa categoria em Marx. Isso implica que no pode haver apropriao de mais valia do trabalho do professor, o que no quer dizer, entretanto, que ele no possa ser explorado. A iniciativa privada no campo da educao obtm lucro com o trabalho do professor, mas esta explorao no pode ser analisada em termos de extrao de mais valia.

  • 12

    O processo educativo pode ter como uma de suas referncias bsicas a personalidade do professor? Estas e outras questes derivadas destas, permeiam todo este estudo, que organizamos da seguinte forma. Num primeiro momento, intitulado A Personalidade do Professor Em Questo, buscaremos no iderio pedaggico das duas ltimas dcadas consideraes tericas e/ou metodolgicas que apontem o processo de personalizao do professor enquanto varivel interveniente no processo pedaggico. A partir das consideraes encontradas, avanaremos em direo a uma anlise pautada no apenas no reconhecimento de sua importncia, mas acima de tudo, orientada pela necessidade de se identificar a concepo de personalidade que se apresente e suas implicaes para a educao. Tendo em vista que partimos do pressuposto de que a personalidade do professor desempenha importante papel no ato educativo, e considerando tambm a complexidade da categoria personalidade, temos que sua utilizao no pode ser desprovida dos fundamentos tericos que lhe conferem significao. o atendimento a esta premissa que permeia o segundo e o terceiro momentos desta investigao. No captulo intitulado Da Concepo de Homem Concepo de Psiquismo, procuraremos solidificar a compreenso do psiquismo humano (condio primria para o desenvolvimento da personalidade) na trajetria histrico-social da humanidade, apreendida em sua materialidade. Trata-se portanto, de se responder a uma questo central: quem o homem que por sua histria de desenvolvimento se expressa enquanto personalidade. A resposta a esta questo abre-nos as possibilidades para o tratamento mais direto do processo de personalizao, o que faremos no captulo intitulado O Processo de Personalizao. Para tanto, necessria sua explicao pela anlise de sua gnese, propriedades e funes, anlise esta que reitera a intervinculao homem-sociedade. Assim sendo, enfocar o processo de personalizao em sua totalidade, demanda tambm situ-lo num dado contexto histrico-social. Ao faz-lo deparamo-nos com as condies objetivas de existncia e portanto, com as possibilidades que elas encerram (ou negam) para a efetiva construo da personalidade.

  • 13

    No quarto e ltimo momento, captulo intitulado Anlise Emprica do Processo de Personalizao de Professor, realizaremos uma investigao sobre este processo por meio do relato oral auto-biogrfico de uma professora. Buscaremos identificar, a partir da representao particular desta pessoa sobre sua vida, pela mediao das abstraes tericas sistematizadas nos momentos anteriores desta investigao, a realidade representada. Esta realidade por sua vez, sustenta o processo de personalizao no de um professor mas dos professores, e neste sentido, pretendemos avanar da singularidade deste processo em direo sua universalidade, portanto, em direo ao conhecimento geral das bases reais do processo de personalizao de professores. a partir destas bases que finalizaremos as respostas s questes que orientam este trabalho, certos de que muito ainda restar por ser feito, pois acreditamos que sempre, uma boa resposta engendra novas indagaes.

  • 14

    CAPTULO I

    A PERSONALIDADE DO PROFESSOR EM QUESTO Em pesquisas atuais encontramos uma referncia crescente importncia da subjetividade do professor, tendo em vista o papel de sua expresso tanto no que se refere sua formao quanto no seu exerccio profissional. Afirmam-se novos pressupostos para a formao de professores fundados na promoo dos meios para o desenvolvimento do pensamento autnomo e no incentivo s estratgias de autoformao, onde grande nfase concedida ao desenvolvimento pessoal. As caractersticas pessoais, as vivncias profissionais, as histrias de vida, a construo da identidade, etc., com maior freqncia tornam-se objetos da investigao educacional, que aponta a impropriedade de se estudar o ensino sem levar -se em conta a subjetividade do professor. Nvoa (1997, p.p. 15/31) apresenta uma reflexo sistematizada sobre a formao profissional, em especial sobre a formao de professores, cujos princpios orientadores assentam-se na nfase concedida experincia profissional e histria de vida, entendendo que a formao profissional representa um processo de reflexo atravs de uma dinmica de compreenso-retrospectiva. Ou seja, pensar a formao do professor significa promover condies para que ele mesmo reflita sobre o modo pelo qual se forma. Neste sentido, enfatiza a dimenso individual do processo de formao atribuindo grande importncia participao do sujeito neste processo. A formao deve acima de tudo estimular estratgias de auto-formao, ou seja , promover o processo de aprender a aprender. Ao se estimular junto aos professores as estratgias de auto-formao pressupe-se um processo de generalizao, pelo qual esta premissa se estende, tambm, para os educandos. Nesta perspectiva, a experincia pessoal, a histria de vida, torna-se central pois entende-se que fundamentar a educao no sujeito que aprende condio bsica para a construo de uma nova cultura sobre o ato educativo. Esta cultura caracteriza-se por levar em conta no apenas as aquisies acadmicas, mas tambm e principalmente, a maneira como se constitui a prpria vida tanto dos professores quanto dos alunos. Nesta direo, Nvoa, afirma:

  • 15

    A maneira como cada um de ns ensina est diretamente dependente daquilo que somos como pessoa quando exercemos o ensino (...) Eis-nos de novo face pessoa e ao profissional, ao ser e ao ensinar. Aqui estamos. Ns e a profisso. E as opes que cada um de ns tem de fazer como professor, as quais cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar e desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa maneira de ser. impossvel separar o eu profissional do eu pessoal. (1992, p. 17)

    Verifica-se portanto, nesta orientao, uma forte emergncia de estratgias de personalizao e individualizao educacionais, que sugerem a formao do professor centrada na atividade cotidiana da sala de aula, na sua maneira de ser professor, centrada portanto, em sua experincia prpria. O saber da experincia adquire grande importncia, ocupando um espao outrora concedido formao terica, metodolgica e tcnica.

    O trabalho centrado na pessoa do professor e na

    sua experincia particularmente relevante nos perodos de crise e de mudanas, pois uma das fontes mais importantes de stress o sentimento de que no se dominam as situaes e os contextos de interveno profissional (Nvoa 1997, p. 26)

    Para que ento, as crises e as mudanas possam ser enfrentadas pelo professor, afirma-se a formao de professores reflexivos, que assumam a responsabilidade de seu prprio desenvolvimento profissional a ser promovido em unidade com seu desenvolvimento pessoal. A reflexo se apresenta enquanto um novo objetivo para a formao de professores, ou enquanto o mais importante atributo a caracterizar o professor, pois se tem nela, o instrumento fundamental do desenvolvimento do pensamento e da ao. O objeto desta reflexo se pe enquanto a prpria prtica, tendo em vista que ela representa a realizao efetiva das estratgias e procedimentos formativos (Garcia 1997, p.p. 59/65).

  • 16

    concedendo grande nfase ao papel da reflexo na formao e prticas docentes que este autor chama-nos a ateno para os riscos de uma utilizao indiscriminada deste conceito, propondo, com base em Zeichner & Liston (1987 in: Garca 1997, p. 63) uma distino entre trs nveis diferentes de reflexo, ou seja, entre reflexo tcnica, prtica e crtica. O primeiro nvel corresponde anlise das aes explcitas, dos procedimentos adotados e que so passveis de observao direta e indireta. O segundo nvel inclui a reflexo sobre o conhecimento prtico, isto , o conhecimento daquilo que j foi realizado e sobre aquilo que se pretende realizar. O terceiro nvel, das consideraes ticas, implica a anlise poltica da prpria prtica, afirmando a necessidade do desenvolvimento da conscincia crtica nos professores, pela qual possam analisar suas possibilidades de ao e as restries de natureza social, cultural e ideolgica do sistema educativo. Tendo como objetivo a promoo da reflexo a formao concebida essencialmente enquanto um trabalho que a pessoa (em formao) realiza sobre s prpria ao longo da vida e do percurso profissional, ou seja, se apresenta enquanto reflexo na ao. Referindo-se importncia da reflexo na ao, Gomez (1997) a considera uma exigncia para a superao da racionalidade tcnica, ou seja, para a superao de uma relao linear e mecnica entre o conhecimento cientfico-tcnico e a prtica na sala de aula. A reflexo na ao, por este autor, assim definida:

    (...) um processo onde parte-se da anlise das prticas dos professores quando enfrentam problemas mais complexos da vida escolar, para a compreenso do modo como utilizam o conhecimento cientfico, como resolvem situaes incertas e desconhecidas, como elaboram e modificam rotinas, como experimentam hipteses de trabalho, como utilizam tcnicas e instrumentos conhecidos e como recriam estratgias e inventam procedimentos e recursos (p. 102)

    Portanto, o xito do profissional assenta-se em sua capacidade para manejar situaes concretas do cotidiano e resolver problemas prticos mediante a integrao inteligente e criativa do conhecimento e da tcnica. A capacidade de analisar situaes significa nesta perspectiva, possibilitar permanentemente a

  • 17

    elaborao de aes adequadas em relao aos contextos e s prprias possibilidades existentes, o que em ltima instncia, representa preparar os professores para as aceleradas mudanas sociais caractersticas do mundo atual. Grande parte dos estudos vistos neste trabalho que versam sobre o professor parece adotar como um pressuposto de importncia decisiva, o de que a sociedade contempornea passaria por um processo de profundas e aceleradas mudanas, o que exigiria do professor a capacidade de acompanhar tais mudanas. Neste sentido, as novas concepes sobre a formao do professor parecem ter como objetivo central o de desenvolver tal capacidade nesse profissional. Entretanto, a despeito da centralidade desse pressuposto, a maioria dos estudos no se detem numa caracterizao mais precisa de quais mudanas sociais estariam ocorrendo e quais as causas das mesmas. Segundo Esteve (1991, p.p. 97/108), o despreparo dos professores para o enfrentamento destas mudanas tem gerado o que denomina de mal estar docente, decorrente de um conjunto de fatores que revelam a presso das mudanas sociais ocorridas nos ltimos vinte anos sobre o exerccio de suas funes. Dentre estes fatores o autor aponta o aumento das exigncias em relao ao professor decorrente da inibio educativa de outros agentes de socializao, como por exemplo, a famlia; o desenvolvimento de fontes de informaes alternativas escola; a ruptura do consenso social sobre a educao e o aumento de contradies e fragmentao no exerccio da docncia, que geram um esvaziamento dos valores educacionais de referncia. Considera ainda que paralelamente a estas ocorrncias vo surgindo novas expectativas em relao ao sistema educativo, que deixando de ser um ensino para a minoria e se convertendo em um ensino de massas, no deu conta de se tornar mais heterogneo, flexvel, aberto e diversificado. Ocorre tambm, a modificao do apoio da sociedade ao sistema educativo, que pouco a pouco, vai abandonando a idia de educao enquanto promessa de futuro melhor, culminando numa avaliao em sentido negativo do trabalho do professor. Isto acirra sua desvalorizao social e salarial, acompanhada do depauperamento de suas condies de trabalho e da complexificao, pelo aumento dos conflitos, da relao professor aluno, quando ento, o professor no consegue encontrar novos modelos, mais justos e participativos, na construo da convivncia e da disciplina.

  • 18

    Como conseqncia, o mal estar docente gera uma crise de identidade nos professores e os conduz a diferentes reaes, agrupadas por este autor em quatro grandes grupos:

    O grupo de professores que aceita a idia da mudana do sistema de ensino como uma necessidade inevitvel da mudana social. A sua atitude em relao mudana positiva, ainda que reconhecendo que devero transformar a sua atitude na sala de aula, adaptando-se s novas exigncias (...). Um segundo grupo de professores, incapaz de fazer frente ansiedade que lhes causa a mudana (o desconhecido), tem atitude de inibio. Conscientes de que no podem opor-se abertamente uma ampla corrente de mudana, esto decididos a suportar o temporal com o propsito oculto de continuar fazendo na sala de aula o que sempre tm feito (...). Em terceiro lugar, h um grupo de professores que alimentam, face mudana do sistema de ensino, sentimentos profundamente contraditrios: por um lado, do-se conta de que pode ser uma condio de progresso e uma exigncia de mudana social; mas, por outro, o seu desacordo ou cepticismo em relao capacidade real de mudana fazem com que se mantenham reticentes (...). Um quarto grupo tem medo da mudana. So professores que se encontram em situaes instveis, por falta de habilitaes adequadas ou porque pensam que as reformas deixaro a descoberto as suas insuficincias no campo dos contedos, das metodologias de ensino ou das relaes com os alunos (...). Este grupo de professores vive o ensino com ansiedade, ao dar-se conta de que carecem de recursos adequados para levar prtica o tipo de ensino que, idealmente, gostariam de fazer (...). (Esteve 1991, p. 110)

    A crise de identidade gerada pelo mal estar docente repercute diretamente na personalidade dos professores, tendo como principais conseqncias:

  • 19

    Sentimentos de desajustamento e insatisfao perante os problemas reais da prtica de ensino. Pedidos de transferncia, como forma de fugir situaes conflituosas. Desenvolvimento de esquemas de inibio, como forma de cortar a implicao pessoal com o trabalho que se realiza. Desejo manifesto de abandonar a docncia (realizado ou no). Absentismo laboral, como mecanismo de cortar a tenso acumulada. Esgotamento, como conseqncia da tenso acumulada. Stress Ansiedade Depreciao do eu. Autoculpabilizao perante a incapacidade de ter sucesso no ensino. Reaes neurticas. Depresses. Ansiedade, como estado permanente associado em termos de causa-efeito a diagnsticos de doena mental. (idem, p. 113)

    Pela anlise de Esteve as expresses do professor face o desajustamento produzido pela acelerao das mudanas exigem transformaes radicais em sua formao. Para este autor fundamental a reviso e implementao de mudanas na formao inicial, que prioritariamente, deve considerar nos processos seletivos, no apenas os critrios de qualificao intelectual mas tambm critrios de personalidade; deve substituir abordagens normativas centradas nos modelos do bom professor, naquilo que o professor deve ser, etc., por abordagens descritivas centradas na atuao real do professor, naquilo que ele e faz; deve adequar os contedos da formao inicial realidade prtica do ensino, bem como incluir desde o incio do processo a formao prtica2. Para alm das mudanas na formao inicial, considera indispensvel a formao permanente

    2 Nessa posio de Esteve est contida uma concepo que parece ignorar inteiramente a dintino entre a

    realidade alienada, isto , a empiria fetichista que no ultrapassa o nvel das aparncias e as possibilidade reais de criao de uma nova realidade, de uma nova prtica, a partir da crtica ao fetichismo da realidade social capitalista. Ignorada esta distino, no resta ao sujeito mais que a pobre opo entre os modelos prescritos idealistas ou o falso realismo da aceitao da vida tal como ela .

  • 20

    para que os professores possam assimilar em exerccio as profundas transformaes que se produzem no ensino (idem, p.p. 117/120). Tambm tendo como foco de ateno o mal estar docente, Codo (1999) organiza uma pesquisa sobre as condies de trabalho e sade mental dos trabalhadores em educao no Brasil, pela qual busca compreender o sentimento de desnimo, de apatia e despersonalizao que se abate sobre os trabalhadores encarregados de cuidar de outros (dentre os quais se incluem os professores), propondo a apreenso deste quadro enquanto manifestao da sndrome de Burnot. Na definio de Farber (1991): Burnot uma sndrome do trabalho, que se origina da discrepncia da percepo individual entre esforo e conseqncia, percepo esta influenciada por fatores individuais, organizacionais e sociais (in: Codo 1999, p. 241). Esta sndrome abrange trs componentes bsicos que podem aparecer tanto associados quanto indepentes, sendo eles: exausto emocional, despersonalizao e falta de envolvimento pessoal no trabalho. Por exausto emocional entende-se o estado em que os vnculos afetivos, caracterstica estrutural dos trabalhadores que envolvem o cuidado para com o outro, encontram-se desgastados. O professor nesta situao percebe esgotados seus recursos emocionais prprios, em decorrncia do desgaste resultante dos inmeros desafios com os quais deve lidar em seu dia a dia. A despersonalizao caraterizada pela substituio do vnculo afetivo por um vnculo racional, pela qual se perde o sentimento de que se est lidando com outro ser humano. As relaes interpessoais acabam se caraterizando pela dissimulao afetiva, por atitudes negativas, exacerbadamente crticas, comprometendo como conseqncia a prpria integrao social do professor. J a falta de envolvimento pessoal resulta da perda do sentido do prprio trabalho, perda esta, associada uma baixa realizao no mesmo. Por no conseguir atingir seus objetivos o professor passa a experienciar sentimentos de impotncia, de incapacidade, avaliando negativamente a s prprio. A pesquisa realizada aponta ainda, serem bastante incipientes os dados por ora obtidos sobre a suceptibilidade dos educadores ao burnot, embora sinalize sua manifestao tanto em relao com caractersticas de personalidade dos professores quanto em relao com caractersticas do ambiente de trabalho.

  • 21

    Cavaco (1991, p. p. 158/159),considera que medida com que as profundas mudanas sociais afetam diretamente a escola e os professores, no s necessrio recriar a escola como tambm a formao dos professores ou seja, da mesma forma com que urgente uma nova escola tambm o um novo professor. Para a formao deste novo professor afirma a premncia da superao das concepes tradicionais que o colocam a merc da eficcia do seu fazer, enquanto agente social circunscrito sala de aula. Defende enquanto fundamental considera-lo de forma integrada, como homem / cidado / professor, inserido ativamente numa dada sociedade e num dado tempo. Neste sentido, reitera a necessidade de se compreender o professor como pessoa, ou seja, reconhecer que aquilo que ele diz e faz mediado por aquilo que ele , por sua personalidade.

    (...) na construo da identidade profissional de professor se intercruzam a dimenso pessoal, a linha de continuidade que resulta daquilo que ele , com os trajetos partilhados com os outros, nos diversos contextos de que participa, daqui a importncia de se considerar os espaos e as situaes de reflexo partilhada como facilitadores do desenvolvimento pessoal e profissional (...) (p. 161).

    Assim, a pretenso de formao de um novo professor demanda compreend-lo enquanto pessoa, nas suas relaes para com o mundo e para consigo prprio. Berger (1991) atendendo tambm orientao personalizadora da formao pedaggica enfatiza a importncia do saber experiencial, colocando a pessoa como sujeito e ponto de referncia central do processo de formao, afirmando que:

    ... necessrio funcionar menos a partir de uma anlise de necessidades, ou seja, das lacunas que colocam o sujeito em formao numa posio negativa, do que funcionar a partir de um balano de seus saberes, das suas competncias, das suas aquisies (p. 235).

  • 22

    Deste ponto de vista defende a importncia do reconhecimento dos adquiridos experienciais, enquanto condio para uma formao que leva em conta a necessidade de auto-formao, bem como, as novas realidades e exigncias do mundo do trabalho. Nesta mesma orientao de pensamento, Canrio afirma:

    Encarar a experincia de vida como um ponto de

    partida fundamental, para organizar processos deliberados de formao, implica um olhar retrospectivo e crtico sobre o processo anteriormente realizado, que torna possvel: identificar como formadoras situaes, vivncias, distintas de situaes formalizadas de formao; identificar capacidades e saberes adquiridos na ao e que apelam a processos de formalizao. O reconhecimento dos adquiridos experienciais, surge, assim, como uma prtica recente que permite encarar o adulto como o principal recurso da sua formao e evitar o erro de pretender ensinar s pessoas coisas que elas j sabem. (1998, p. 80).

    A importncia atribuda ao reconhecimento dos adquiridos tem como fundamento no apenas a cumulatividade das experincias vividas, mas a capacidade do indivduo para reelabor-las e transfer-las para outras situaes, integrando-as no processo de autoconstruo da pessoa. Fica evidente portanto, que este paradigma atribui uma importncia decisiva para aquilo que a vida ensina, destacando como principais recursos da formao, a experincia e a personalidade dos formandos. Ainda segundo Canrio:

    O professor exerce uma atividade profissional,

    que pode ser inscrita nas profisses de ajuda, marcada pela relao face a face, quase permanente, com o destinatrio. Nessa atividade investe o professor toda a sua personalidade, o que justifica os elevadssimos nveis de stress que acompanham esta profisso, na medida em que os insucessos profissionais no podem deixar de ser

  • 23

    sentidos, tambm, como insucessos pessoais. A conseqncia do fato de o professor ser, em primeiro lugar, uma pessoa, que a natureza de sua atividade se define tanto por aquilo que ele sabe, como por aquilo que ele . (1997, p. 12).

    Esta citao, para alm de afirmar a personalidade do professor enquanto uma dimenso essencial de seu trabalho, enquanto realizao de sua histria cognitiva, afetiva e social, possibilita-nos alguns questionamentos. At que ponto trabalhos de outros profissionais no implicariam o mesmo sentimento de fracasso pessoal perante o fracasso profissional? E em no sendo este sentimento um fato complicador apenas para o professor, deixaria de ser um problema? Em suma, vemos aqui preterido o reconhecimento do esvaziamento que sofre o trabalho de todos os homens em decorrncia do processo de alienao. Moita (1992, p. 114), concebendo tambm a formao dos professores e o exerccio profissional enquanto um processo pessoal e singular, prope que estes sejam compreendidos enquanto construo da identidade profissional que impreterivelmente ocorre em unidade e consonncia com a construo da identidade pessoal. Devem portanto, atender dinmica pela qual, ao longo da vida, cada pessoa se forma e se transforma. O processo de formao profissional, pelo qual se constri a identidade profissional um processo essencialmente interativo, tanto no que se refere s relaes para com diferentes universos scio-culturais quanto, e principalmente, no que se refere s relaes com a identidade pessoal, com o eu.

    Identidade pessoal / Identidade profissional: uma

    grande variedade de relaes que se estabelecem. H nessas relaes uma atividade de autocriao e de transformao vividas entre a tenso e a harmonia, a distncia e a proximidade, a integrao e a desintegrao. A pessoa o elemento central, procurando a unificao possvel e sendo atravessada por mltiplas contradies e ambiguidades (Moita, p. 139).

  • 24

    Tendo a formao enquanto um processo pessoal e singular onde se intercruzam dados da vida social, familiar e profissional, esta autora realiza um estudo por meio da abordagem biogrfica, ou histria de vida, buscando compreender como as pessoas se formam e quais as relaes que se pode encontrar entre a formao pessoal e a profissional.

    Conclui que os percursos de vida so tambm os percursos de formao, que as experincias profissionais apenas se tornam formadoras quando as pessoas assumem-na pessoalmente enquanto tal, que a profisso desempenha o papel mediador na atuao do indivduo junto ao espao macro social, bem como constata que os processos de formao, visto que diretamente relacionados a uma dada esfera da vida, repercutem, influenciam todas as demais. Pela aparente semelhana que o estudo desta autora mantm para com o que realizaremos em nossa investigao, abrimos aqu um parnteses para explicitar as bases metodolgicas que tornam nossos trabalhos essencialmente diferentes.

    Moita apresenta a abordagem biogrfica enquanto uma metodologia especfica, dado que se compatibiliza com proposies vinculadas pesquisa qualitativa. Utiliza-se do mtodo de investigao fenomenolgico, pelo qual: o saber que se procura do tipo compreensivo hermenutico, profundamente enraizado nos discursos dos narradores (1992, p. 117). Nosso trabalho fundamentado na epistemologia materialista histrico-dialtica. O relato oral auto-biogrfico, a histria de vida, somente a tcnica, a ferramenta utilizada para a interpretao da realidade investigada, a ser para alm de compreendida, conhecida em sua essncia, em sua concreticidade. O uso que fazemos da tcnica de histria de vida diferencia-se substancialmente da abordagem dessa autora, antes de mais nada por uma questo relativa concepo de histria, posto que no aderimos s concepes que a reduzem ao micro, ao particular, s histrias singulares de indivduos annimos. Consideramos fundamental a perspectiva da totalidade e a anlise objetiva das determinaes econmicas e polticas da estrutura social. Procuramos nunca perder de vista o fato histrico fundamental de que vivemos numa sociedade capitalista, produtora de mercadorias, universalizadora do valor de troca, enfim, uma sociedade essencialmente alienada e alienante. Fora desse contexto, a histria de vida pouco ou nada tem a oferecer para a construo do conhecimento cientfico.

  • 25

    Fechando o parnteses e retomando o tema central deste captulo, outra tese bastante defendida por este iderio refere-se nfase concedida ao contexto existencial de formao, tanto pessoal quanto profissional. Os autores que o representam, como os j citados anteriormente neste texto, fazem referncias frequentes importncia das relaes interpessoais, das relaes indivduo-grupo, indivduo-instituies etc., concebendo a educao enquanto um movimento scio-educativo que se concretiza no processo global e dinmico das interaes ou, num dilogo com os contextos. Referindo-se formao em geral dos indivduos, mas destacando a formao profissional dos professores, Canrio (1997) afirma:

    ... as situaes profissionais vividas pelos professores ocorrem no quadro de sistemas coletivos de ao cujas regras so, ao mesmo tempo produzidas e aprendidas pelos atores sociais em presena. nesta perspectiva que podemos falar de um jogo coletivo, sucetvel de mltiplas e contigentes configuraes, em funo da singularidade dos contextos. na medida em que a dimenso organizacional atravessa a produo, em contexto, das prticas profissionais, que estas no so compreensveis apenas em termos de efeitos de disposies, mas, de um modo muito importante, tambm em termos de efeitos de situao (...) (1997, p. 8)

    Assim sendo, encontramos no iderio pedaggico das duas ltimas dcadas, iderio este que anuncia um novo paradigma educacional para o sculo XXI, freqentes referncias personalidade e histria de vida de professores. Constatamos portanto, no pensamento educacional contemporneo o reconhecimento da importncia do processo de personalizao do professor para sua atividade enquanto educador. Em que pese ser importante este reconhecimento e as idias veiculadas neste iderio, duas questes nos parecem dignas de nota, sendo a primeira, de natureza filosfica-poltico-ideolgica e a segunda, de natureza terico - metodolgica no tocante categoria personalidade.

  • 26

    Este novo paradigma no estabelece relaes objetivas e prescisas entre seus postulados e os efeitos na conscincia dos professores e alunos, e por conseqncia na organizao poltico-pedaggica da escola. As complexas relaes entre educao e sociedade, que cada vez mais tm colocado a escola a servio da manuteno da ordem globalizante e neoliberal vigente em detrimento da promoo do desenvolvimento de seus membros, sejam eles alunos ou professores, diluem-se em anlises que colocam a escola e o professor enquanto vtimas do tempo e da organizao social, que em sua estrutura poltica e econmica no efetivamente questionada. Neste sentido, acaba por no conferir a devida nfase formao de indivduos que possam modificar tais relaes, bem como construo e apropriao dos conhecimentos historicamente sistematizados. Deste modo, as mudanas aventadas no que tange formao dos professores e ao trabalho docente correm um grande risco: converterem-se em estratgias de adaptao. Concordamos com Duarte (2000a), quando afirma que este iderio, identificado com o lema aprender a aprender, expressa proposies educacionais a servio do projeto neoliberal ...considerado projeto poltico de adequao das estruturas e instituies sociais s caractersticas do processo de reproduo do capital no final do sculo XX (p. 3) No bojo das consideraes negativas sobre o papel informativo da escolarizao, sobre a pedagogia cientfica que legitima a racionalizao do ensino, sobre a excessiva valorizao dos saberes cientficos etc., deixam implcita a secundarizao da educao escolar. Por diferentes estratgias, tais como, a afirmao de que no s atravs da escola que se ensina e que se aprende, pela apologia do saber experiencial, pelo primado do conhecimento que a vida proporciona etc., ratifica-se a cotidianidade do contexto escolar, a ter como cruel conseqncia (no considerada por estas novas teorias!) o analfabetismo histrico, poltico e conceitual (Manacorda 1989, p. 359). Destacar como figura central do cenrio educacional a pessoa do professor e sua formao pode ter duas conseqncias nefastas. A primeira delas, representa deslocar a ateno do conhecimento para o auto-conhecimento, fato j experienciado com o movimento escolanovista que teve como resultado uma baixa qualidade de ensino decorrente da despreocupao para com a transmisso do saber historicamente sistematizado.

  • 27

    A segunda conseqncia, que mantm ntima relao com a primeira, implica em que, ao conferir primazia ao professor e sua formao, retira-se de foco aquilo que est no mago da crise educaional contemporneo, ou seja, a funo social da escola Consideramos que a funo essencial da escola a socializao do saber historicamente produzido tendo em vista a mxima humanizao dos indivduos, e que esta funo no se exerce na centralizao das esferas do cotidiano. Como afirma Heller (1970, p. 18), o homem j nasce inserido em sua cotidianidade e seu desenvolvimento primrio identifica-se com a aquisio das habilidades e conhecimentos necessrios para viv-la por si mesmo. Entretanto, a mxima humanizao dos indivduos pressupe a apropriao de formas de elevao acima da vida cotidiana, pressupe um processo em direo ao humano-genrico.

    O meio para essa superao dialtica (...) parcial

    ou total da particularidade, para sua decolagem da cotidianidade e sua elevao ao humano-genrico, a homogeneizao. Sabemos que a vida cotidiana heterognea, que solicita todas as nossas capacidades em vrias direes, mas nenhuma capacidade com intensidade especial. Na expresso de Georg Lukcs: o homem inteiro...) quem intervm na cotidianidade. O que significa homogeneizao? Significa, por um lado, que concentramos toda nossa ateno sobre uma nica questo e suspenderemos qualquer outra atividade durante a execuo da anterior tarefa; e, por outro lado, que empregamos nossa inteira individualidade humana na resoluo dessa tarefa. Utilizemos outra expresso de Lukcs: transformamo-nos assim em um homem inteiramente (...) E significa, finalmente, que esse processo no se pode realizar arbitrariamente, mas to-somente de modo tal que nossa particularidade individual se dissipe na atividade humano-genrica que escolhemos consciente e autonomamente, isto , enquanto indivduos (idem, p. 27)

  • 28

    claro que a referida elevao no tarefa exclusiva da instituio escolar, porm, para sua efetivao a escola desempenha um papel insubstituvel. a finalidade emancipatria da educao que no se pode perder de vista, uma vez que ela representa o desenvolvimento da verdadeira conscincia, por meio da apropriao dos conhecimentos, dos conceitos, das habilidades, dos mtodos e tcnicas etc., de forma a poderem os homens intervir na realidade e tomar parte enquanto sujeitos do desenvolvimento genrico da humanidade. A afirmao da finalidade emancipatria da educao exige portanto, que se considere o ato educativo enquanto a atividade por meio da qual os indivduos se apropriam das objetivaes humanizadoras produzidas pelos homens histrica e socialmente, condio para sua humanizao e consequente emancipao.

    O trabalho educativo , portanto, uma atividade

    intencionalmente dirigida por fins. Da o trabalho educativo diferenciar-se de formas espontneas de educao, ocorridas em outras atividades, tambm dirigidas por fins, mas que no so os de produzir a humanidade no indivduo. Quando isso ocorre, nessas atividades, trata-se de um resultado indireto e inintencional. Portanto, a produo no ato educativo direta em dois sentidos. O primeiro e mais bvio o de que se trata de uma relao direta entre educador e educando. O segundo, no to bvio, mas tambm presente, o de que a educao, a humanizao do indivduo o resultado mais direto do trabalho educativo. Outros tipos de resultado podem exisitir, mas sero indiretos (Duarte 1998, p. 88).

    Portanto, este novo iderio, ao preterir uma slida reflexo sobre as relaes escola-sociedade, sobre as funes sociais da escola e especialmente, sobre o ato educativo, vem propor um conjunto de referncias a partir das quais (e especialmente pela via da formao de um novo professor) possa a escola resolver a sua crise de identidade e preparar-se para o prximo sculo. E neste sentido, Scheibe (2000, p. 20), alerta sobre os riscos da recepo no crtica de conceitos, metodologias, categorias etc., que insurgem no campo educacional, reafirmando a

  • 29

    importncia da mediao terica como forma de apreenso do real, bem como do ato de ensinar enquanto efetivao da necessria transmisso de conhecimentos. Estas novas referncias apresentadas por discursos bastante sedutores sobre valorizao da pessoa e sua subjetividade, sobre histrias de vidas de professores, sobre a importncia dos conhecimentos adquiridos experiencialmente, sobre a criatividade da atividade docente, sobre a valorizao da prtica pessoal, sobre articulao entre aprendizagem e cotidiano etc ... representam, outrossim, estratgias para o mais absoluto esvaziamento do trabalho educacional. Os professores j no mais precisaro aprender o conhecimento historicamente acumulado, pois j no mais precisaro ensin-lo aos seus alunos, e ambos, professores e alunos, cada vez mais empobrecidos de conhecimentos pelos quais possam compreender e intervir na realidade, com maior facilidade, adaptar-se-o a ela pela primazia da alienao. O que acaba restando, o atendimento palavra de ordem: aprender a aprender. necessrio portanto, que se desvele o sentido ideolgico deste lema, ou seja, aprender a aprender ... o que? Sem a pretenso de garantir a profundidade necessria resposta desta interrogao, temos que, em sntese, torna-se fundamental aprender a aprender estratgias contnuas de adaptabilidade s depauperadas condies de vida e de trabalho promovidas pela sociedade capitalista neoliberal, ou seja, aprender formas pelas quais o existente obscuressa cada vez mais a conscincia. Neste sentido, reportamo-nos a Adorno (2000), ao considerar que:

    A educao seria impotente e ideolgica se

    ignorasse o objetivo de adaptao e no preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porm ela seria igualmente questionvel se ficasse nisto, produzindo nada alm de well adjusted people, pessoas bem ajustadas, em conseqncia do que a situao existente se impe precisamente no que tem de pior (p. 143).

    Atender portanto a este novo iderio, implica preparar os indivduos para suportar uma organizao poltica e econmica que os aguarda estruturada sob a gide do capital e os desafia para uma necessria integrao adaptativa. Usurpar os indivduos das condies imprescindveis ao desenvolvimento da conscincia

  • 30

    transformadora, significa coloc-los sob imediata ao do meio, que tem como conseqncia a manuteno das estruturas sociais alienantes e das aes individuais alienadas, significa de fato, permitir que a situao existente se imponha no que tem de pior! Pelas razes expostas consideramos que a nenhum ttulo pode ser preterido o papel poltico da educao, que apenas se efetiva quando sua finalidade maior, a socializao do conhecimento sistematizado garantida. Assim sendo:

    (...) se o fato educativo um politikum e um social, consequentemente, tambm verdadeiro que toda situao poltica e social determina sensivelmente a educao: portanto, nenhuma batalha pedaggica pode ser separada da batalha poltica e social (Manacorda 1989, p. 360).

    A segunda questo a que nos referimos, resultante da anlise deste novo

    iderio e que de ordem terico-metodolgica sobre personalidade, suscita dois eixos de anlise.

    O primeiro refere-se ao aporte terico pelo qual possa ser compreendido o conceito personalidade. Por sua abrangncia a utilizao deste termo despida dos fundamentos filosficos e tericos no passa de mera abstrao, torna-se incua, podendo contribuir para mais um tipo de psicologizao do espao escolar que com certeza favorece seu empobrecimento. O conceito personalidade em seu sentido literal aparece desde as suas origens associado noo de pessoa. Pessoa, termo derivado do latim persona, que significa mscara caracterizadora do personagem teatral desgna, no sentido mais geral do termo, o homem em suas relaes com o mundo. Segundo Abbagnano (1998, p.p. 761/763) distinguem-se trs fases nos estudos e utilizao do conceito pessoa. Primeiramente, este termo foi introduzido na linguagem filosfica pelo estoicismo popular para designar os papis representados pelo homem na vida. O conceito de papel, neste sentido, aponta o conjunto de relaes que situam o homem em dada situao e o definem com respeito a ela. Nesta fase a relao homem-situao tomada no em sentido acidental, ou aparente, enquanto mscara que oculta a essncia da substncia, mas sim enquanto a relao que a expressa e afirma.

  • 31

    Na segunda fase o termo pessoa aparece enquanto auto-relao, ou seja, em sentido de relao do homem para consigo mesmo, para com o Eu enquanto conscincia de s. Este termo passa a designar o homem enquanto ser capaz de representar-se conscientemente e que desenvolve uma unidade apta a persistir e atravessar todas as transformaes pelas quais passa. O homem ento uma pessoa pelo desenvolvimento da identidade consciente do eu, pela qual adquire o conhecimento distintivo de s mesmo e do universo. Pessoa, portanto, identifica-se com conscincia, enquanto simples referncia ao homem em sua individualidade. Contra esta interpretao de pessoa surgem posies filosficas, caracterizadoras da terceira fase, que se recusam a reduzir o ser do homem conscincia ou auto-conscincia. Destacam-se dentre estas posies aquelas veiculadas pela antropologia da esquerda hegeliana e pelo marxismo, que embora no tenham como objetivo central o estudo deste conceito, iniciam sua renovao evidenciando um aspecto at ento preterido: a pessoa humana constituda ou condicionada essencialmente pelas relaes de produo e de trabalho, de que o homem participa com a natureza e com os outros homens para satisfazer suas necessidades (idem, p. 762). Neste sentido, o conceito de pessoa no se identifica nem com essncia nem com o eu ou conscincia, representando outrossim, o poder fazer sobre o mundo, o domnio das possibilidades de ao. Este conceito de pessoa pressupe ainda, um atributo adicional, ou seja, a ao da pessoa sobre o mundo precedida pelo agir efetivo, guarda portanto, intencionalidade. O homem pessoa como unidade individual porque heterorrelao intencional, isto , essencialmente construdo e definido por suas relaes com os outros e com o mundo. Ainda segundo Abbagnano (idem, p. 758), o termo personalidade desgna condies ou modo de ser da pessoa, a organizao que a pessoa imprime multiplicidade de relaes que a constituem, e por esta razo, um conceito muitas vezes utilizado enquanto sinnimo de pessoa. Fizemos estas referncias aos diferentes sentidos filosficos do termo pessoa pois a partir deles fica bastante evidente que no novo iderio pedaggico, o conceito de pessoa, aparece em acentuada conformidade com a segunda fase acima descrita, que afirma uma concepo idealista, identificando pessoa e auto-conscincia. esta concepo de pessoa que tem historicamente contaminado teorias de personalidade, dotando-as de significados essencialmente idealistas e abstratos, por onde a personalidade acaba sendo interpretada como um sistema

  • 32

    fechado sobre s mesmo. Assim sendo, a pessoa e a personalidade do professor aparecem tomadas como unidade e propriedade de um ser particular, proposio caracterstica de um humanismo abstrato que suplanta a realidade concreta, ou por outra, a concebe de forma tambm abstrata. Referindo-se ao humanismo abstrato, Merani considera que este:

    (...) configura a conscincia alienada do sistema industrial, que procura satisfazer as aspiraes humanas mudando apenas as condies de superfcie, quer dizer, modificando a quantidade e variedade das coisas capazes de satisfazer as necessidades imediatas, que asseguram imutabilidade e apresentam a boa vontade como fenmeno de imobilidade histrica atingida graas eficcia do sistema (1972, p. 61)

    Neste humanismo os indivduos no so os sujeitos de suas prprias realizaes e unicamente executam ordens recebidas tanto de fora, da sociedade, que atua enquanto um mundo sobrenatural, como de dentro, da subjetividade, que lhe consubstancial. As interrelaes entre mundo externo e mundo interno so admitidas, uma ao de causa e efeito reconhecida, mas quer parta do indivduo ou da sociedade a sua direo sempre linear (Merani 1976, p.28). Segundo Jacoby (1977), outra caracterstica do humanismo abstrato a apologia da subjetividade, por onde grande nfase concebida s relaes humanas, aos sentimentos, s emoes etc. O culto da subjetividade aparece e se torna fundamental exatamente quando esta mais aviltada, representando portanto, para alm do reconhecimento de sua importncia, uma reao paliativa ameaa de seu desaparecimento. A subjetividade humana tomada em s mesma, cabendo ao indivduo conhecer-se e transformar-se tendo em vista a conquista da autonomiae da liberdade pessoal. A natureza histrico-social da vida pessoal, as mediaes polticas e econmicas que operam na construo da subjetividade, estas so questes, absolutamente fora de discusso. Portanto:

    A promessa que uma centralizao na

    subjetividade humana oferece fica desperdiada, a menos que se considere o lugar que lhe cabe na sociedade em

  • 33

    geral. (...) Isto porque o culto da subjetividade humana no a negao da sociedade burguesa e sim a substncia desta. (...) A venerao da subjetividade e das relaes humanas representa um progresso no culto fetichista. A rejeio da teoria que busca compreender a objetividade em benefcio de sentimentos subjetivos, reconstitui ao contrrio uma suspeita tradio cartesiana: sinto, logo existo. O impulso ntimo da sociedade burguesa jogar o sujeito de volta sobre si mesmo. (...) Receitar mais subjetividade para auxiliar o sujeito avariado, corresponde a receitar a doena como cura (idem, p.p. 120/121)

    Na medida em que o novo paradigma apela subjetividade, personalidade

    do professor, sem contudo explicitar uma clara concepo sobre a mesma abre possibilidades para que seus postulados sejam interpretados pela via do humanismo abstrato, ou do (anti) humanismo da alienao. O conjunto de proposies sobre personalidade em suas relaes com a sociedade, se apresentam de tal forma, que ambas, personalidade e sociedade aparecem enquanto estruturas naturais. A sociedade aparece enquanto o meio ao qual a personalidade deve adaptar-se por fora das circunstncias, e a personalidade enquanto epifenmeno da existncia social dos homens. Isto ilustra a questo levantada por Ges (2000), a partir de sua leitura do Manuscrito de 1929 de Vigotski, sobre os riscos de simplificao das anlises sobre as relaes eu-outro ou indivduo-sociedade.

    Se eu e o outro so noes que tm um carter

    concreto e no devem ser tomadas como abstraes, e se a relao eu-outro diz respeito a acontecimentos reais, mas no se reduz a instncias meramente empricas, ento colocam-se algumas conseqncias: o estudo das relaes sociais no pode restringir-se ao exame do plano observvel das interaes face a face (...) os efeitos dos outros sobre o indivduo no dependem somente das formas de atuao direta; os outros no so apenas as pessoas fisicamente presentes, mas tambm figuras-tipo da cultura ou

  • 34

    representantes dos cdigos e normas, participantes das prticas sociais (p. 128).

    As consideraes apresentadas por Ges sobre as relaes indivduo-

    sociedade nos induzem ao segundo eixo de anlise sobre as referncias postas no iderio pedaggico em questo, no que tange pessoa do professor. As pesquisas que respaldam este iderio concedem grande nfase s abordagens biogrficas, integrando um movimento social que defende a premncia de se resgatar o sujeito face s estruturas e aos sistemas sociais.

    Neste sentido, Nvoa afirma que: As Cincias da Educao e da Formao no se alheiam deste movimento e os mtodos biogrficos, a autoformao e as biografias educativas assumem desde o final dos anos 70 uma importncia crescente no universo educacional (1992, p. 18).

    A centralizao de esforos nesta direo apresenta-se justificada pela necessidade de se produzir um tipo de conhecimento que esteja mais prximo do cotidiano dos professores, e portanto, da realidade educacional.

    Tem-se o indivduo enquanto via de acesso e parmetro para o conhecimento da totalidade social, tomando-se porm, a relao parte-todo de modo essencialmente linear. exatamente esta orientao metodolgica que nos parece merecedora de uma anlise mais acurada.

    Heller (1991 p.p. 110/115) levanta uma indagao sobre a possibilidade de se conhecer uma dada estrutura social examinando-se a vida e o pensamento cotidianos de indivduos singulares. Pela complexidade desta questo a resposta fornecida por esta autora se apresenta em dois sentidos: negativo e afirmativo.

    Negando esta possibilidade considera que com a propriedade privada, com a diviso social do trabalho e a alienao, a vida cotidiana dos indivduos singulares encontra-se extremamente diferenciada segundo princpios ordenadores representados pela classe, pela comunidade, pelo estrato social etc. Estes princpios ordenadores sustentam discrepncias que criam obstculos para que o homem particular estabelea uma relao imediata com a sociedade em sua totalidade. Ao sustentarem as condies que alienam o indivduo do gnero humano, impedem que a vida particular expresse inteiramente a estrutura conjunta da sociedade qual pertence ou, sua genericidade.

    Heller, afirma que:

  • 35

    O grau de desenvolvimento e o modo com que esto organizadas a produo e a distribuio, o estado da arte e a cincia, a estrutura das instituies e os tipos de atividade humana que se desenvolvem nelas: estes so os fatores que em primeiro lugar nos indicam que tipo de sociedade temos perante ns, o que fornecem ao gnero humano e o que suprimem do desenvolvimento precedente. evidente que no existe nem pode existir (nem sequer depois que tenha sido suprimida a alienao) nenhuma sociedade na qual a totalidade da vida cotidiana represente por si mesma as objetivaes genricas (idem, p. 111).

    Mas para alm destas constataes a autora afirma que no se pode tomar tal negativa de modo absoluto, posto que os indivduos particulares nascem num mundo determinado e apropriam-se de suas caractersticas. Embora existam objetivaes genricas que possam nunca participar da vida cotidiana de determinados estratos sociais em determinadas pocas, no possvel afirmar que suas funes estejam absolutamente ausentes dela. O desenvolvimento genrico se reflete na vida cotidiana e nela explicitvel pelos contedos da cultura dos usos, pelos contedos de valor que pautam as relaes pessoais diretas entre os homens, pelas objetivaes proporcionadas pelo desenvolvimento tecnolgico etc., e assim sendo, possvel afirmar que a vida particular cotidiana reflete a sociedade na qual se integra.

    Heller afirma ainda, que se por um lado no podemos conhecer a totalidade social a partir da expresso particular de um indivduo singular, por outro lado apenas este que pode nos revelar um tipo de conhecimento decisivo sobre ela, isto , quais as condies que guarda para o desenvolvimento de seus membros particulares, o que lhes promove e o que lhes impede, ou por outra, em que medida sua estrutura sustenta um maior ou menor grau de alienao. Ou seja, conhecendo-se o desenvolvimento alcanado pelo gnero humano numa dada poca possvel analisar o quo alienada uma dada sociedade existente nessa poca, atravs do conhecimento da vida concreta dos indivduos. Quanto mais essa vida estiver aqum das riquezas materiais, intelectuais, estticas e ticas j alcanadas pelo gnero humano, mais alienada ser essa sociedade.

  • 36

    A partir destas consideraes nos parece impossvel construir qualquer conhecimento, quer sobre indivduos quer sobre a totalidade social tomando-se qualquer um deles em separado. Esta afirmao entretanto, no postula a impossibilidade de se ter o indivduo particular como referncia bsica na construo do conhecimento, mas reafirma outrossim, que apenas pela anlise dialtica da relao entre o singular e o universal, entre o indivduo particular e a totalidade social que se torna possvel um conhecimento concreto sobre ambos, ou seja, apenas por esta via que a nfase conferida ao particular no se converte no abandono da construo de um saber na perspectiva da totalidade.

    Em sntese, verificamos que a personalidade do professor tem sido reconhecida no cenrio educacional enquanto merecedora de ateno e anlise, entretanto, o destaque a ela conferido parece-nos proporcional ausncia de uma slida compreenso sobre a mesma.

    Este fato reitera nosso propsito de anlise da personalidade do professor, anlise esta fundamentada nos preceitos filosficos, tericos e metodolgicos do materialismo histrico e dialtico, e para tanto, avancemos em direo ao conhecimento sobre o homem e o desenvolvimento de seu psiquismo.

  • 37

    CAPTULO II

    DA CONCEPO DE HOMEM CONCEPO DE PSIQUISMO Buscando neste estudo a compreenso da categoria personalidade nos marcos do materialismo histrico e dialtico e, para evitarmos equvocos ou confuses advindas de diferentes interpretaes terico conceituais, temos como fundamental fazer algumas explicitaes. A primeira explicitao diz respeito concepo de homem, isto porque, a personalidade a personalidade do homem o que o homem? Responder a esta pergunta condio bsica para uma psicologia da personalidade que se queira objetiva e concreta. A segunda explicitao refere-se concepo de psiquismo advinda dos postulados acerca do homem, uma vez que este representa o agente do processo de personalizao. Neste momento, versaremos sobre estas duas questes, ou seja, sobre a concepo de homem e sobre o desenvolvimento do psiquismo, com base nas quais avanaremos em direo ao processo de personalizao. 1 - A Concepo Scio Histrica de Homem Muitas seriam as possibilidades para uma explanao sobre a concepo scio-histrica de homem. Sem preterir outras importantes contribuies, definimos enquanto eixo norteador algumas obras de Marx, pelas quais buscamos resposta nossa primeira pergunta fundamental: o que o homem? Marx, em sua poca, levantou de forma contundente o problema da existncia humana e sobretudo o problema da relao entre indivduo e sociedade,ou melhor, entre indivduo e gnero humano. Apreendido o pensamento marxiano em sua dimenso histrica, vemos nele uma evoluo, um movimento, que supera tanto a filosofia do idealismo objetivo de Hegel, como tambm o materialismo intuitivo de Feuerbach (o velho materialismo), centrando ateno no materialismo que considera a atividade humana objetiva o trabalho como categoria central, propondo o materialismo da prxis, como foi resumido nas clebres Teses sobre Feuerbach, de Marx (1987). Nesta trajetria vemos que Marx esteve todo tempo buscando resposta a uma questo central: como transformar o homem escravizado por suas obras

  • 38

    alienadas em um ser universal e livre. Ou, como garantir o pleno desenvolvimento de sua personalidade. Segundo Schaff (1967, pp.113 - 124) na poca em que Marx principiou sua produo, a alienao representou para ele um dos mais importantes problemas da sociedade. O tema da alienao j era bastante discutido, passando, com Hegel, a s-lo de forma mais intensa. Mesmo considerando a multiplicidade de formas de alienao na vida da sociedade, Marx evidenciou o fato de que sua base reside em condies econmicas, isto , tem sua base nas relaes sociais de produo e permeia todas as esferas da vida humana. Conforme posto no 1 Manuscrito Econmico-Filosfico de 1844 e em obras posteriores, Marx parte das prprias categorias econmicas existentes, utilizando-as com o objetivo de caracterizar como a realidade percebida nas suas aparncias e de desvelar seus mecanismos no imediatamente perceptiveis, mas que determinam essas aparncias. Considera que a alienao econmica decorre da organizao social ancorada na propriedade privada dos meios de produo, determinante de formas especficas de diviso de trabalho, de relao do homem para com o produto de seu trabalho, posto ento sob a forma de mercadoria, da explorao do homem pelo homem, da existncia efetiva de alguns homens em detrimento de outros etc.

    Na medida em que analisa o trabalho em relao com a organizao social calcada na propriedade privada, pontua o desvirtuamento das caractersticas do prprio trabalho.

    O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produo aumenta em poder e extenso. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior o nmero de bens que produz. Com a valorizao do mundo das coisas aumenta em proporo direta a desvalorizao do mundo dos homens. O trabalho no produz apenas mercadorias, produz-se tambm a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporo em que produz bens. (Marx 1989, p. 159).

    Para melhor compreendermos esta afirmao, importante que nos

    afastemos um pouco do trabalho em sua forma alienada (questo sobre a qual

  • 39

    trataremos posteriormente) e entendamos seu sentido ontolgico, tal como posto por Marx.

    Marx coloca o trabalho no centro da humanizao (ou desumanizao) do homem, e por esta razo, acreditamos que uma compreenso ontolgica do homem demanda o desvelamento do sentido ontolgico do trabalho.

    Objetivando apenas a organizao do texto que ora se apresenta, abordaremos num primeiro momento o trabalho em relao humanizao do homem, o que faremos discorrendo sobre as categorias propostas por Mrkus (1974a): o trabalho e a natureza do homem, o trabalho e a conscincia do homem, o trabalho e a socialidade do homem, o trabalho e a universalidade do homem, o trabalho e a liberdade do homem. Esta organizao cumpre apenas uma funo didtica, no podendo tais categorias serem compreendidas isoladamente, sob a pena de serem absolutamente descaracterizadas.

    Num segundo momento, abordaremos o trabalho em sua forma alienada, condio da desumanizao do homem. 1.1. O Trabalho e a Humanizao do Homem 1.1.1. O Trabalho e a Natureza do Homem O homem uma parte da natureza que s pode sobreviver por seu constante metabolismo com ela. Este metabolismo garantido por sua atividade vital, o que o torna um ser natural ativo.

    Antes de tudo, o trabalho um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua prpria ao, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matria natural como uma fora natural. Ele pe em movimento as foras naturais pertencentes sua corporalidade, braos e pernas, cabea e mo, a fim de apropriar-se da matria natural numa forma para sua prpria vida. Ao atuar, por meio desse movimento sobre a Natureza externa a ele e ao modific-la, ele modifica, ao mesmo tempo sua prpria natureza (Marx 1989, p. 149).

  • 40

    O homem , portanto, um ser pertencente a uma espcie animal, contando com um determinado nvel de estruturao biolgica que guarda dadas particularidades estruturais orgnicas. Estas particularidades so frutos de uma histria evolutiva que compreende inicialmente o estgio da evoluo exclusivamente biolgica, acentuadamente marcada pelas relaes naturais e adaptativas do ser natureza, estgio este, seguido por aquele onde, graas a um dado nvel de desenvolvimento biolgico j alcanado, principia um desenvolvimento ainda que embrionrio, de vida social. Este segundo, preparatrio para o surgimento da espcie homo-sapiens, no qual o desenvolvimento humano j no condicionado, ou determinado, pela evoluo biolgica, mas sim, pelo desenvolvimento de funes novas, prprias da vida em sociedade. O desenvolvimento humano pressupe a superao de um sistema de vida fechado, dominado por uma natureza dada (plano biolgico) que lhe garante uma organizao hominizada, em direo a um sistema de vida aberto, criador de uma natureza adquirida (plano histrico) que se pode chamar de natureza humanizada (Leontiev 1978 a, p. 262). pelo trabalho, atividade vital humana que tal processo se d, possibilitando ao homem por meio de sua vida produtiva, construir sua histria.

    O significado humano da natureza s existe para o homem social, porque s neste caso que a natureza surge como lao com o homem, como existncia de si para os outros e dos outros para si, e ainda como elemento vital da realidade humana: s aqui se revela como fundamento da prpria experincia humana. S neste caso que a existncia natural do homem tornou-se a sua existncia humana e a natureza se tornou, para ele, humana. (Marx 1989, p.p. 194 - 195).

    Portanto, a atividade vital humana que garante a existncia no s da vida individual mas de toda a sociedade que a sustenta.

    Esta atividade, por sua vez, s se verifica na medida em que encerra uma finalidade precedente ao produto efetivo, ao resultado final. Neste sentido, a atividade no determinada casualmente, mas por um projeto ideal, que mesmo no tendo existncia efetiva concreta, determina e regula seus diferentes atos.

  • 41

    esta dimenso teleolgica, s garantida pela mediao da conscincia, que distingue a atividade especificamente humana das demais formas vivas de atividade. Segundo Vsquez:

    Esta atividade implica a interveno da conscincia, graas qual o resultado existe duas vezes e em tempos diferentes -: como resultado ideal e como produto real. O resultado ideal que se pretende obter, existe primeiro idealmente, como mero produto da conscincia, e os diversos atos do processo se articulam ou estruturam de acordo com o resultado que se d primeiro no tempo, isto , o resultado ideal. Em virtude dessa antecipao do resultado que se deseja obter, a atividade propriamente humana tem um carter consciente. (1977, p. 187).

    Portanto, toda ao verdadeiramente humana pressupe a conscincia de

    uma finalidade, que precede a transformao concreta da realidade, natural ou social e, deste modo, a atividade vital humana ao material consciente e objetiva, ou seja: prxis.

    A prxis compreende a dimenso autocriativa do homem, manifestando-se tanto em sua atividade objetiva, pela qual transforma a natureza, quanto na construo de sua prpria subjetividade. Pela prxis o homem realiza o seu ser, e neste sentido, Kosik afirma:

    (...) o homem, sobre o fundamento da prxis e na prxis como processo autocriativo, cria tambm a capacidade de penetrar historicamente por trs de si e em torno de si, e, por conseguinte, de estar aberto para o ser em geral. O homem no est encerrado na sua animalidade ou na sua sociabilidade porque no apenas um ser antropolgico; ele est aberto compreenso do ser sobre o fundamento da prxis, e por isso um ser antropocsmico. (1976, p. 206).

  • 42

    A prxis a atividade vital humana por excelncia pela qual os sujeitos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e transformando-se a si mesmos. Duarte (1993) caracteriza a dinmica prpria da atividade vital humana pela relao entre apropriao e objetivao, que se efetiva pela produo e utilizao de instrumentos, pela linguagem e pelas relaes entre os seres humanos. Vejamos com um pouco mais de detalhes as proposies deste autor. A relao entre apropriao objetivao ocorre sempre em condies que so histricas e desta forma, para que os indivduos se objetivem enquanto seres humanos preciso que se insiram na histria. Esta insero d-se pela apropriao das objetivaes resultantes das atividades das geraes passadas. A objetivao porm, no resultado automtico da atividade humana, ou por outra: nem todo resultado de uma atividade humana pode ser considerado uma objetivao (Duarte, 1993: 134). Assim sendo, a objetivao concebida enquanto resultante da atividade humana por suas relaes com os produtos da histria, vindo portanto, compo-la e enriquece-la, e dessa forma, a apropriao da objetivao ao mesmo tempo a apropriao sinttica da atividade histrica. A relao entre apropriao e objetivao mediada pelas aes de outros indivduos. As objetivaes trazem consigo toda uma significao social, representam o resultado de uma ampla prtica social, e assim , que no se pode conceber esta relao enquanto uma relao automtica, independente, que se d entre o indivduo e as objetivaes. Esta relao pressupe, necessariamente, a mediao do outro, e portanto estar sempre na dependncia da qualidade desta mediao. Por este processo vemos que a formao do homem enquanto um ser humano sua formao enquanto um ser pertence ao gnero humano, formao enquanto ser genrico.

    O homem um ser genrico, no s no sentido

    de que faz objeto seu, prtica e teoricamente, a espcie (tanto a sua prpria como a das outras coisas), mas tambm e agora trata-se apenas de outra expresso para a mesma coisa no sentido de que ele se comporta perante si prprio como o gnero presente, vivo, como um ser universal, e portanto livre (Marx 1989: 163).

  • 43

    O gnero humano se pe, portanto, enquanto produto das relaes entre objetivaes e apropriaes que acumulam-se historicamente pela atividade social. A formao do homem integra o processo histrico de objetivao do gnero humano. Pelo processo do trabalho, atividade vital humana, o homem constri sua genericidade, de tal forma que a vida individual e a vida genrica encontram-se sempre imbricadas uma na outra. Este processo, por sua vez, um processo essencialmente comunitrio, realizado pelos homens em inter-relaes, expresso de vida social.

    A construo prtica de um mundo objetivo, a manipulao da natureza inorgnica, a confirmao do homem como ser genrico consciente isto , ser que considera o gnero como seu prprio ser ou se tem a si como ser genrico. (Marx, 1989: 165).

    Vimos at o presente que o trabalho um processo que liga o homem natureza, representando aes que ao operarem no sentido de mudanas na natureza operam tambm na construo do prprio homem, modificando sua natureza, desenvolvendo suas faculdades e constituindo-o de fato enquanto ser humano. Destacam-se neste processo dois elementos interdependentes que podem ser considerados bsicos em sua caracterizao, ou seja: o trabalho implica o fabrico e uso de instrumentos assim como se efetiva em condies comuns coletivas. Por este processo que o homem estabelece uma relao especial com a natureza (mediatizada pelo instrumento) e ao mesmo tempo para com outros homens (relao mediatizada pela sociedade). Estes elementos, por sua vez, exigiro um nvel de organizao do homem determinante de aes que j no podem ser garantidas por relaes naturais, biolgicas. Estaro submetidas a relaes que so sociais, dando origem a uma forma particularmente humana de contacto com a realidade, representada pela conscincia. 1.1.2 O Trabalho e a Conscincia do Homem

  • 44

    Segundo Marx, pelo trabalho que o homem se firma enquanto sujeito de sua existncia construindo um mundo humano e humanizando-se nesta contruo, e enquanto prxis encerra uma trplice orientao: o que fazer, para que fazer e como fazer, efetivando-se apenas em condies sociais coletivas. As caractersticas da prxis criam assim, uma nova necessidade: a de que o sujeito da ao possa refleti-la psiquicamente, pois o sentido do ato no se encerra em si mesmo mas se pe sempre em ligaes com condies sociais mais amplas. O homem ao romper com as barreiras biolgicas de sua espcie, rompe tambm a fuso (animal) necessidade-objeto, o mundo e ele mesmo se lhe surgem enquanto objetos. na base deste rompimento que se desenvolvem novas funes cognitivas como o pensamento e o raciocnio, condies para pr-ideao, para a intencionalidade, para o ser consciente. Segundo Leontiev (1978a) o trabalho engendra a estruturao da conscincia, que por sua vez se concretiza pela linguagem, razo pela qual temos que a conscincia inseparvel da linguagem, e ambas, inseparveis do trabalho. Ao superar os limites da representao imediata da realidade (prpria dos animais) o homem passa a representar cognitivamente os fenmenos da realidade denominando-os com palavras de sua linguagem, e como resultado se formam os conceitos e os significados. Pela linguagem passa a ser possvel entre os homens no apenas o intercmbio de objetos, mas acima de tudo o intercmbio de pensamentos. Graas linguagem que permite fixar e transmitir de uma gerao a outra as representaes, os conhecimentos, o homem tem podido refletir o mundo, estruturando sua conscincia.

    Na caracterizao do ser consciente humano Marx pressupe sempre a intencionalidade do mesmo. A conscincia de algo, tem uma orientao objetual. Por um lado, a conscincia aparece como reproduo intelectual da realidade, como conhecimento do mundo circundante, do homem nele, do sujeito material ativo mesmo. Por outro lado, a conscincia aparece como a produo espiritual dos fins, dos ideais e valores que se realizam por meio da atividade. (Mrkus 1974a, p.p. 35 - 36).

  • 45

    Isto significa que a natureza das imagens psquicas sensoriais reside em seu carter objetivo, no fato de serem gestadas durante os processos de atividade que vinculam o homem ao mundo circundante. Tais imagens psquicas por sua vez, vo adquiririndo para o indivduo uma nova qualidade, qual seja,seu carter significativo. A formao da conscincia assenta-se, portanto, no metabolismo homem natureza, no qual a princpio, o processo de domnio dos significados, da criao da intencionalidade, dependem da atividade externa com objetos materiais e da comunicao representada principalmente pela linguagem. pela relao entre apropriao objetivao que se formam os significados abstratos, os conceitos, cujos movimentos viro representar a atividade mental interna, que elaborada socialmente compor a conscincia do indivduo.

    O animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital. No se distingue dela. a sua prpria atividade. Mas o homem faz da atividade vital o objeto da vontade e da conscincia. Possui uma atividade vital consciente. Ela no uma determinao com a qual imediatamente coincide. A atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos animais. S por esta razo que ele um ser consciente, quer dizer, a sua vida constitui para ele um objeto, porque um ser genrico. (Marx 1989, p.p. 164 165).

    Para Marx, a existncia da conscincia pressupe o ser consciente, o que torna possvel a conscincia da genericidade e o estabelecimento de uma relao consciente para com ela. Esta afirmao demanda, porm, observarmos que embora a atividade consciente pressuponha a conscincia da genericidade, por si mesma no garante a relao consciente para com ela. A atividade consciente atributo do homem, dado que inclusive o diferencia dos animais. Apenas o homem pode fazer de sua atividade objeto de sua prpria anlise, pode dela distanciar-se. Se por um lado, t-la enquanto objeto de anlise pode ampliar seu controle, ou a auto-determinao da atividade, por outro, torna possvel a existncia da alienao. Neste sentido, o ser genrico, para alm de

  • 46

    pressupor apenas a conscincia da genericidade, determina o estabelecimento de uma relao consciente para com ela. Por outro lado, a conscincia possibilita a pr-ideao da atividade orientando-a por sua finalidade. a intencionalidade enquanto prxis que permite ao homem a universalidade de sua produo, tornando-o livre perante seu produto permitindo-lhe que se manifeste enquanto verdadeiro ser genrico.

    A conscincia no na realidade seno a conscincia da prtica existente, e sua orientao ou intencionalidade objetual advm igualmente do carter material objetual desta prtica. (Mrkus 1974, p. 37)

    Portanto, Marx rompe decisivamente com qualquer concepo idealista, supra-histrica de conscincia, evidenciando a impossibilidade de sua compreenso na abstrao do sujeito real e concreto, historicamente determinado. 1.1.3 O Trabalho e a Socialidade do Homem

    At o presente, e por vrias vezes, j fizemos afirmaes que tangenciaram a socialidade humana. Vejamos agora mais acuradamente sua representao para Marx.

    A atividade social e o usufruto social no existem apenas na forma de uma atividade diretamente comunitria e de um usufruto diretamente comunal, embora a atividade e o esprito comunais, isto , a atividade e o esprito que se exprimem e confirmam diretamente na associao real com os outros homens, ocorrem em toda a parte onde a imediata expresso da sociabilidade dimana do contedo da atividade ou corresponde sua natureza. (1989, p. 195).

    Primeiramente, temos que a socialidade no pode ser identificada ou reduzida ao simples viver e agir em coletividade, exigindo o reconhecimento de que os elementos constitutivos da atividade e do prprio homem decorrem de

  • 47

    objetivaes sociais resultantes de relaes que os homens foram estabelecendo ao longo da histria, so elementos pertencentes ao gnero humano. A insero social do homem, se d pela apropriao das objetivaes existentes, e por esta via torna-se-lhe possvel objetivar-se enquanto um ser genrico. Ao objetivar-se enquanto um ser genrico que o homem desenvolve suas capacidades, suas habilidades, seus sentidos, enfim, as propriedades que lhe conferem a condio de ser humano.

    As capacidades, as necessidades, as formas de trfico etc., objetivadas na realidade social material se convertem, por sua apropriao, em elementos intrnsecos, de contedo, do ser humano do indivduo, e a individualidade concreta especificamente humana no se origina seno atravs da participao ativa no mundo produzido pelo homem, atravs de uma determinada apropriao deste. (Mrkus 1974, p. 31).

    Portanto, a socialidade do homem guarda tambm a sua historicidade e neste sentido a sociedade no apenas o meio ao qual o homem se submete para adaptar-se por fora das circunstncias, mas sim, aquele que tem criado o prprio ser humano. Desta relao homem sociedade, sustentada pelos processos de apropriao e objetivao, apreende-se que este no objeto passivo das influncias e determinaes sociais, mas acima de tudo, o sujeito de sua criao, sendo ao mesmo tempo o produto da sociedade, aquele que a produz. 1.1.4 O Trabalho e a Universalidade do Homem

    A universalidade do homem apresenta-se-nos enquanto possibilidade resultante de sua atividade vital social e consciente, manifestando-se em todos os momentos de sua histria. Conforme j visto anteriormente, a atividade vital humana uma manifestao cuja funo localizar o homem na realidade objetiva natural ao

  • 48

    mesmo tempo em que a transforma em realidade humana, tanto subjetiva como objetivamente. Desta forma, a atividade vital humana no pode ser compreendida enquanto soma de aes instintivas, mas enquanto um processo (trabalho) sustentado por uma cadeia de aes e relaes que articulam o indivduo coletividade. As conexes existentes entre esta cadeia so, por sua vez, possibilitadas pela conscincia, que em unidade (e decorrncia) com a atividade vital, torna possvel ao homem transformar a matria foras essenciais da natureza, em idia e a transformao da idia em nova matria objetivao das foras essenciais do homem, em produto humano (corpo inorgnico). Ou seja, ao criar um mundo objetivo, ao transformar a natureza, o homem supera a estreiteza de sua corporalidade orgnica construindo um corpo inorgnico, de tal forma que apenas este mundo, produzido pelos homens, poder satisfazer suas necessidades, sustentar a sua prpria vida.

    A universalidade do homem aparece praticamente na universalidade que faz de toda a natureza o seu corpo inorgnico: 1) como imediato meio de vida; e igualmente 2) como objeto material e instrumento de sua atividade vital. (Marx 1989, p. 164).

    Neste sentido, evidente que a caminhada percorrida pelo homem em direo sua universalizao inicia-se a partir do instante no qual o homem atue sobre a natureza para produzir os meios necessrios satisfao de suas necessidades vitais. Por esta caminhada as relaes se invertem a tal ponto que o homem, por sua humanizao, passa satisfazer suas necessidades vitais para poder atuar, ou seja, a atividade que encerra apenas a satisfao de necessidades vitais biolgicas, vai tornando-se cada vez mais prpria e especfica dos animais, deixando de representar a humanidade essencial.

    Assim, os objetos vo cada vez mais adquirindo funo estimuladora e orientadora da atividade (a produo criando necessidades, que criam novas produes, etc.), e o mundo das objetivaes que mobiliza a atividade humana enriquece-se, tornando-se cada vez mais universal.

  • 49

    Se o trabalho constitui o ser do homem, ento

    esse essencialmente um ser natural, universal, tanto no sentido de que potencialmente capaz de transformar em objeto de suas necessidades ou de sua atividade todos os fenmenos da natureza, quanto no sentido de que chega a se-lo tambm, de assumir em si e irradiar de si todas as foras essenciais da natureza, isto , capaz de adaptar crescentemente sua atividade totalidade das leis naturais e, consequentemente de alterar com profundidade cada vez maior sua prpria forma em expanso progressiva. (Mrkus 1974, p. 19).

    no processo histrico-social de criao de necessidades que o homem desenvolve suas potencialidades e capacidades, objetivando-se nos produtos de sua ao e apropriando-se de tais objetivaes na universalidade de suas funes histrico-sociais. 1.1.5 O Trabalho e a Liberdade do Homem

    A atividade humana por ser objetivadora, social e consciente, realiza o processo histrico de constituio do gnero humano, pelo qual e no qual o homem apropria-se de todas as foras essenciais da natureza, constri e significa os objetos atribuindo-lhes funes histrico-sociais, a serem tambm apropriadas promove a universalizao humana. Considerando-se a complexidade deste processo, temos que o mesmo s se revela possvel (ao mesmo tempo em que promove), pela superao dos limites da espcie humana. Ou seja, quanto mais o homem se apropria das foras essenciais da natureza mais supera os limites de seu corpo orgnico, mais enriquece seu corpo inorgnico, mais livre se revela. E o que representa liberdade para Marx? Segundo Mrkus (1974, p. 52), a resposta a esta questo envolve especialmente dois aspectos. O primeiro deles, reporta-nos ao fato de que Marx rechaa a concepo idealista, abstrata de liberdade pela qual esta se pe enquanto iseno de toda determinao ou limitao histrico-social.

  • 50

    A liberdade no nenhuma propriedade metafsica do homem, pela qual ele possa desvincular-se do mundo real, das circunstncia histricas. O segundo, refere-se ao fato de que o conceito de liberdade aparece na obra de Marx tanto num sentido abstrato-negativo quanto no sentido concreto-positivo, sendo porm tais sentidos, intimamente vinculados. Em seu sentido abstrato-negativo a liberdade pressupe a capacidade de livrar-se, de romper aprisionamentos, a capacidade para liberar-se de determinaes limitativas. Tal fato, revela-se enquanto possibilidade humana na medida em que apenas o homem, pela atividade consciente, pode distanciar-se de suas condies de existncia e converte-las em objeto de sua atividade. Apenas o homem pode preparar seu futuro (abstrao) pela transcedncia de seu presente (negao). O sentido abstrato-negativo de liberdade guarda a dimenso de prxis transformadora, de superao, aponta a possibilidade do homem, por sua atividade consciente, para dominar, transpor, vencer de ser um eterno movimento do devir. O sentido concreto-positivo de liberdade, advm, exatamente de seu sentido abstrato-negativo, isto porque na medida em que a liberdade em sua negatividade pressupe um movimento de liberao, exige a possibilidade para tanto. O aspecto concreto-positivo da liberdade, portanto, representa a objetivao das foras produtivas humanas necessrias ao domnio do homem sobre as foras da natureza (quer de sua prpria, quer da natureza externa), domnio este pelo qual pode orientar teleogicamente sua atividade, condio para a prxis transformadora. Segundo Lukcs (1979) a superao apontada por Marx, de uma concepo abstrata e especulativa de liberdade, demanda que esta seja apreendida enquanto momento da realidade concreta, jamais portanto, uma construo subjetiva. O fenmeno da liberdade aparece em Marx enquanto categoria integrante do trabalho, tendo em vista que apenas por ele torna-se possvel o recuo das barreiras naturais. So portanto, as condies de objetivao que fundamentam (e determinam) as alternativas e as escolhas frente diversas possibilidades em uma situao concreta.

  • 51

    Assim, para Lukcs, a liberdade real produto da prxis humana real, ou seja, no processo de trabalho no s o mundo dos homens diferencia-se do mundo natural como tambm seu realizador se transforma num permanente movimento em direo ao dever-ser.

    pela prxis que o homem realiza tanto sua objetivao e domnio sobre a natureza quanto a sua prpria liberdade. Assim, a liberdade no um estado, mas a atividade histrica que cria a realidade social. A prxis, por sua vez, atividade terico-prtica, ou seja, ao mesmo tempo subjetiva e objetiva, dependente e independente da conscincia, ideal e material. Implica a sujeio do seu lado material ao seu lado ideal, como tambm a modificao do ideal perante as exigncias do prprio real.

    O sujeito da prxis no prescinde da sua subjetividade, mas a transcende em direo sua objetivao integrando o processo social de transformao da realidade. A conquista da liberdade pressupe uma luta material, guiada pela conscincia e realizada no mbito histrico-social. A liberdade, tal como concebida por Marx, no pode jamais ser considerada parte da existncia social, e neste sentido, Teixeira afirma:

    (...) somente a sociedade propriamente humana permite a realizao da liberdade individual, porque o homem o ser que se faz, desenvolve e transforma na associao livre com os outros indvidu