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PAPERS 2 Sonho, desejo, despertar (Traduzido) Comitê de Ação da Escola Una 2018-2020 Lucíola Macêdo (EBP) Valeria Sommer-Dupont (ECF) Laura Canedo (ELP) Manuel Zlotnik (EOL) María Cristina Aguirre (NLS) Paola Bolgiani (SLP) Coordenadora: Clara María Holguín (NEL) Equipe de tradução Coordenadora: Valeria Sommer-Dupont Responsáveis Tradução: Silvana Belmudes Responsáveis Revisão da tradução: Melina Cothros Edição - Realização gráfica Secretaria: Eugenia Serrano / Colaboradores: Daniela Teggi - M. Eugenia Cora

02 PAPERS PT TR · 2020. 7. 22. · Como consegue viver sem alguém ao seu lado? Viro para prosseguir meu caminho e o retardado joga-se da varanda. Ouvindo o baque surdo da queda

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PAPERS 2 Sonho, desejo, despertar (Traduzido)

Comitê de Ação da Escola Una 2018-2020 Lucíola Macêdo (EBP) Valeria Sommer-Dupont (ECF) Laura Canedo (ELP) Manuel Zlotnik (EOL) María Cristina Aguirre (NLS) Paola Bolgiani (SLP) Coordenadora: Clara María Holguín (NEL)

Equipe de tradução Coordenadora: Valeria Sommer-Dupont Responsáveis Tradução: Silvana Belmudes Responsáveis Revisão da tradução: Melina Cothros

Edição - Realização gráfica Secretaria: Eugenia Serrano / Colaboradores: Daniela Teggi - M. Eugenia Cora

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SUMÁRIO

EDITORIAL, Paola BOLGIANI 03

1- Gian Francesco ARZENTE (A.E.) / Do pesadelo que adormece ao sonho

que desperta 07

2- Anna AROMÍ (A.M.E.) / O fio do sono 09

3- Paola CORNU – NEL / Despertar de um real, será uma nova função do sonho? 11

4- Hervé CASTANET – ECF / O Ciframento e o real que acorda 14

5- Alberto Rudy JUSTO – EOL / Um mínimo esforço ...

Hipnose, sonho e sonambulismo 17

6- David WESTCOMBE - NLS / Talvez despertar... 21

7- Sandra Arruda GROSTEIN - EBP / É só um sonho. Sonhemos, pois, e sigamos dormindo 25

8- Anna CASTALLO – SLP / Desejo do analista, desejo de despertar? 29

9- Félix RUEDA – ELP / Despertar do sonho 33

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Editorial Paola Bolgiani

Qual a relação entre sonho, desejo e despertar? Este é o argumento que inspira o Paper 2.

Freud começa seu trabalho sobre o sonho afirmando que “Um sonho é a realização de um desejo” , mas, principalmente, como a 1

interpretação dos sonhos introduz o fato de que o desejo que o sonho satisfaz é o de dormir: “Um sonho pode ser descrito como uma fantasia a trabalhar em prol da manutenção do sono.” Será Lacan 2

quem leva essa posição freudiana a suas consequências, mostrando que não há mais realidade na vida de vigília do que no sonho. Lacan destaca que aquilo que poderia despertar não tem uma representação possível, razão pela qual o sonho e a função do desejo no sonho podem ser considerados como despertar frente ao real da pulsão.

Em 1974 Lacan vai dizer: “Nunca nos despertamos: os desejos mantêm, entretêm, tratam os sonhos” , pois “o despertar é o real em 3

seu aspecto de impossível” . Portanto, pela via da interpretação 4

significante não se encontra o despertar e continua-se sonhando. Estamos na dimensão da cadeia-significante-inconsciente, a mortificação do vivente, uma dimensão que, não obstante, é necessária para que uma análise tenha seu lugar.

FREUD, S., A interpretação dos sonhos (1899), Edição Standard Brasileira das 1

Obras Psicológicas Completas de Freud, v.IV. Rio de Janeiro, Imago,1972, p.131.

FREUD, S.,Algumas notas adicionais sobre a interpretação de sonhos como um 2

todo ( 1925), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. v.XIX. Rio de Janeiro, Imago,1976. p.159.

LACAN, J., Désir de mort, rêve et réveil, L’Ane, n.3,1981.Resposta de Lacan a 3

uma pergunta de Catherine Millot.

LACAN, J., Le séminaire, Livre XXIV, L’insu que sait de l'une-bévue s’aille à mourre, 4

in leçon du de 19 de avril de 1977, inédit.

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PAPERS 2 / Editorial

Se existe uma possibilidade de despertar, isto acontece somente na contingência de um por um, como um lampejo, como algo que não dura, e isso coloca em causa o desejo do analista que assinala o mais além da realidade significante, na qual se segue dormindo.

Disso nos testemunha Gian Francesco Arzente – AE da Scuola Lacaniana di Psicoanalisi (SLP- Itália), de sua análise, que nos oferece o primeiro texto que abre esse número de Papers. Dois sonhos que marcam a entrada ao inconsciente significante (transferencial): o primeiro, um “pesadelo adormecido”, no qual se delineia a estrutura da fantasia; o segundo que mostra o mais além da fantasia, o clarão do inconsciente real: um sonho que, em vez de ser traumático, desperta. Mas também são dois sonhos que mostram a relação diferente com o Outro e com o objeto, no início e no final da análise, graças à posição do analista.

Se o texto que abre a série mostra com precisão a perspectiva na qual nos situamos a respeito do uso do sonho no tratamento, ao mesmo tempo devemos salientar a prudência necessária para esse uso, em que o analista deve levar em conta o tempo do sujeito, a incerteza diagnóstica, a delicadeza no manejo da interpretação na transferência. Tudo isso nos é testemunhado pelo texto de Anna Aromi, demandado para esse número dos Papers para testemunhar sobre sua prática de AME. Através de um exemplo clínico e dos bons flashes de sua análise, a autora abre a pergunta se os sonhos - e quais sonhos – têm um termo.

Na mesma linha temos o texto de Paola Cornu - Nueva Escuela Lacaniana (NEL) -, que destaca a dimensão do tempo lógico da análise em relação com a função que o sonho joga no tratamento, assinalando as distintas articulações entre sonho, desejo e pulsão nos diferentes tempos em que uma análise se realiza.

Com o texto de Hervé Castanet – École de la Cause freudienne – (ECF) abrimos uma segunda linha de leitura desse número de Papers, que se refere ao lugar do real no sonho articulado ao tema do desejo e ao despertar. Relaciona a questão do sonho com a tese do inconsciente intérprete: o sonho interpreta o desejo, a análise decifra

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PAPERS 2 / Editorial

essa interpretação. Porém a análise, como a elaboração de Lacan, não se detém nesse ponto: o autor encontra na elaboração de Lacan o ponto no qual se enfatiza que há um inconsciente que nunca poderá chegar à consciência, que não pode ser interpretado e que então se tornará sucessivamente um “real sem lei”, propondo-nos, dessa maneira, uma articulação entre inconsciente transferencial e inconsciente real.

Continuando com a leitura deparamos com o texto de Alberto Rudy Justo – Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL) -, que propõe uma interessante articulação entre a hipnose, com seus efeitos sugestivos, e o inconsciente transferencial, a partir do fato de que o significante sempre tem efeitos sugestivos e o discurso é sempre hipnótico. É na dimensão do ato que pode se dar um despertar, um ato que, com Miller, ele propõe abordar a identificação ao sintoma.

Com o texto que se segue, o de David Westcombe- New Lacanian School (NLS) – voltamos a encontrar o tema do despertar como lampejo e, também, na justaposição feita pelo autor entre o momento do despertar e o momento em que o espaço de um lapso (“esp de um lap”) perdeu a possibilidade do sentido como certeza. O que parece interessante sublinhar nesse texto é a dimensão de satisfação que o autor destaca e que marca esse momento fugaz e contingente. Com esse texto também se pode formular uma pergunta - que pode ser abordada nos debates posteriores -, ou se pode-se dizer que, na experiência do sonhar, encontra-se o real.

Os dois textos que se seguem destacam uma terceira linha de leitura que toca a questão do desejo do analista. No texto de Sandra Arruda Grostein – Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) destacamos o ponto em que a autora coloca em tensão uma orientação do tratamento que parte da fantasia e uma orientação que parte do sintoma, salientando como isto conduz ao mais além do discurso. Outro ponto de interesse nesse texto é o trabalho que nos apresenta em torno do pensamento como substituto do desejo alucinatório.

Finalmente esse número do Papers conclui com o texto de Felix Rueda - Escuela Lacaniana de Psicoanálisis (ELP) - quem propõe uma

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PAPERS 2 / Editorial

tese original que sublinhamos de modo que possa ser ulteriormente elaborada e discutida. O autor propõe que possamos considerar uma dimensão de despertar dentro do sonho, de cada sonho, hipótese que apresenta ao colocar o sonho que adormece, que está situado na lógica do inconsciente transferencial, e o despertar mais do lado inconsciente real, como os dois lados de uma banda de Moebius. O que podemos considerar como sendo o ponto de torção entre estas duas caras?

O número 2 dos Papers termina aqui, mas certamente o eco que esses textos promovem e as perguntas que suscitam, não serão concluídas. Boa leitura!

Tradução: Maria Rita Guimarães

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Do pesadelo que adormece ao sonho que desperta

Gian Francesco ARZENTE - A.E.

No Livro dos sonhos Jorge Luis Borges apresenta, no capítulo 37, 1

intitulado “Convém distinguir”, uma breve citação extraida do Quarto caderno in-oitavo de Franz Kafka: “Por que comparas teu mandado interior com um sonho? Ele te parece por acaso absurdo, desconexo, inevitável, irrepetível, origem de alegrias ou terrores infundados, incomunicável em sua totalidade, porém ansioso de ser comunicado como são precisamente os sonhos? 2

Desta leitura ressurgiram da minha memória dois sonhos produzidos, um no início e outro no final da análise, que significaram respectivamente a entrada no inconsciente significante e a entrada no inconsciente real. Dois limiares, que uma vez ultrapassados, produziram dois diferentes efeitos de vertigem no meu corpo: a vertigem daquele que do alto de um penhasco, sem proteção, debruça-se no vazio temendo cair, cair em depressão, e a vertigem de quem é lançado em uma entusiasmente cavalgada e, sem medo de cair, tem vontade de contar com entusiasmo ao mundo a inédita descoberta da existência do inconsciente. O primeiro, um pesadelo do qual não conseguia despertar, adormecido; o segundo, um sonho de abertura, de saída do pesadelo do sentido, graças ao qual pude colocar-me frente ao real, despertando na contingência de inventar um novo significante, um sentido inédito.

Um

No trabalho frente à minha triste indecisão, uma interpretação do analista traz à tona un sonho recorrente na minha infância.

BORGES, J. L., Livro dos sonhos, São Paulo, Ed. Difel, 1986.1

Ibid, p. 712

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PAPERS 2 / Do pesadelo que adormece ao sonho que desperta

Encontro-me no sétimo e último andar da casa onde nasci. A casa começa a tremer por causa de um terremoto, mas me detenho colocando-me imediatamente a salvo para depois me dar conta de que todos já foram embora. Ninguém me esperou. Procuro uma saída, mas as escadas estão destruídas. Encontro abrigo na soleira da grande porta da cozinha que conduz à varanda. Por um fio, arriscando cair no vazio, o abalo do terremoto cessa e posso observar como todas as paredes das casas estão destruídas, mas não suas pilastras, que funcionam como alavanca para o homem aranha que, com suas cordas de teia, vem me resgatar para me manter a salvo. Salvo sim, mas em um mundo cinza, sem cores.

Dois

Em um luminoso e fresco dia de sol, margeio os prédios de uma cidade praiana, construidos em semicirculo definindo o litoral. De repente, me encontro em um beco sem saída e olho para cima, no alto, em uma varanda um menino que se agita. Lembro de Salvatore, um menino com quem brincava quando criança, que tinha evidentes distúrbios físicos e psíquicos. Diziam que talvez fosse um retardado. Como consegue viver sem alguém ao seu lado? Viro para prosseguir meu caminho e o retardado joga-se da varanda. Ouvindo o baque surdo da queda penso imediatamente que alguém o tenha olhado fixamente e digo com tom de reprovação às pessoas presentes: não devemos olhar consternados para essas pessoas, elas se agarram a isso e se deixam cair.

Dito isso, desperto!

Tradução: Andrea Villanova

Revisão: Marcia Zucchi

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O fio do sono

Anna AROMÍ - A.M.E.

Um sonho, quando termina? Ao despertar? Quando é contado? Nunca?

Um executivo vem me ver por que o trabalho se tornou insuportável. De seu país veio formado em uma cultura de empresa de responsabilidade e aqui ele encontra uma informalidade que o e enfurece...

Com sua parceira as coisas não estão indo bem. O amor circulava no ar enquanto viviam em diferentes países, mas agora a convivência rarefez os laços e ele se sente perturbado por impulsos violentos...

Um olhar direto, um falar asseverativo sem espaço para perguntas; um reclamar para si mesmo maior respeito, coisa que só cede ao outro formalmente, pois parece estar convencido de que o querem mal...

São poucas entrevistas e não há pressa para um diagnóstico de neurose obsessiva, sobretudo em relação a esse Outro que o quereria mal. Um dia ele se queixa de suas aftas, eritemas e coceiras ... "Um problema de pele irritável”, digo a ele. "Eu sei que Freud diria assim – responde – mas para mim é algo esotérico”. Então ele relata um sonho.

"Ele está em uma aula de cirurgia com um bisturi na mão. É um sonho estranho, não sabe como isso pode acontecer porque se trata de abrir ele mesmo o próprio tórax. Ele o faz, seguindo as instruções do professor, se disseca e encontra uma série de peças de silicone, conectadas por fios. A seu lado uma colega está fazendo o mesmo, mas com a diferença de que as peças dela estão limpas, enquanto as suas não. Então ele se dá conta de que as suas peças estão sujas de

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PAPERS 2 / O fio do sono

merda; algo rompeu e ele vê que há fios que conectam o ânus ao pênis. Ele não sabe como limpá-los e chama o professor."

O mínimo que podemos dizer sobre este sonho é que é um bisturi de auto dissecção que vem em resposta a uma interpretação, tão falha como oportuna. O sonho cumpriu sua missão na transferência: alertar ao parceiro analista quanto à rejeição do "esotérico" (teremos que ver o que isso quer dizer) e dar sua própria versão do corpo falante (um pouco inquietante).

Este sonho promete não se fechar facilmente. Por quê? Porque são os fios, os fios que unem as peças, os elementos que mais chamaram a atenção do sonhador junto com o fato de poder dissecar-se a si mesmo.

Então, haveria sonhos que se fechariam? Sonhos, eles terminam?

Durante meu exercício como AE houve um sonho na época do final de análise, o sonho de Lacoste, que recebeu numerosos comentários: cada vez que eu falava dele alguém acrescentava algo, como se não estivesse tudo terminado. No entanto, houve outros sonhos que só podia transmitir como acabados, sonhos que não pediam mais nada. Um deles era o sonho do dedão do pé.

Na época em que entrevia um final de análise, eu sonhei que do dedão do pé extraía uma substância macia sem encontrar nenhuma resistência; o dedo em si era macio, não havia osso. No fundo havia um fio branco que dava vontade de esticá-lo. Era o cabo da análise.

Alguns sonhos são como os bons chistes, trata-se de que rulen . 1

Tradução: Jorge Pimenta

Que circulem, em linguagem coloquial.1

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Despertar de um real, será uma nova função do sonho?

Paola CORNU - NEL

Freud coloca o sonho como uma formação do inconsciente, como uma operação psíquica, de "realização de desejo", ao afirmar que "sonhamos para não ter que despertar, porque queremos dormir" . A 1

interpretação do sonho encontrará com um limite: o "umbigo do sonho", o não reconhecido, sem sentido, encontro com o inominável e ponto limite no qual o desejo não pode ser representado. Podemos considerar que Freud vai mudar sua posição, ao dizer que "o sonho é uma tentativa de realização de um desejo" . Tentativa que mostra a 2

relação do sonho com a pulsão e, consequentemente, o sonho como uma interpretação do desejo - em sua raiz pulsional.

A partir da década de 1920 Freud retorna aos sonhos de angústia, afirmando que eles não poderiam mais ser pensados como realização de desejo, mas, em vez disso, eles obedeceriam - lendo-o com Lacan - ao que itera no sonho, provocando o despertar de Um real. É uma virada epistêmica na forma de pensar o sonho: passar da tentativa de realização de desejo para o despertar de Um real como função do sonho.

A partir do último ensino de Lacan, a prática é orientada pelo real e os conceitos dão um giro definindo o inconsciente como real. Em O Ser e o Um, lemos com Miller que "não há sentido que vá sem gozo e, então, não há significante, não há desejo que não esteja conectado

Freud, S., A Correspondência Completa de Sigmund Freud a Wilhelm Fliess 1

(1887-1904), Rio de Janeiro, Imago, 1986. p.355.

Freud, S., "Conferência XXIX. Revisão da Teoria dos Sonhos", Novas conferências 2

introdutórias sobre psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 22. Rio de Janeiro, Imago, 1994, p. 37.

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PAPERS 2 / Despertar de um real, será uma nova função do sonho?

com a pulsão, a raiz do Outro é o Um" . A questão que surge é: qual 3

seria a via de acesso ao inconsciente real? Essa pergunta leva em consideração , por um lado, a relação entre sonho e pulsão, e por outro, o encontro com o umbigo do sonho e o despertar, na medida em que o despertar poderá ser no sonho uma nova função mais além do dormir. Isso nos permite questionar se há um despertar possível 4

ou impossível, não-todo para o real. Será o que desperta do sonho uma via de acesso ao inconsciente real, uma janela para o Um do gozo?

O que desperta no sonho é trazido pelo falasser para a sessão em um texto falado por Um corpo em suas múltiplas formas: por um lado, como pergunta, equívoco, surpresa, fracasso, falha, maneiras de constatar o enigma de Um gozo desconhecido. Podemos escutar aí um modo de eternizar o desejo de dormir no deciframento? Por outro lado, o pesadelo, que lemos como o produto de um real contingente, como cifra como marca de gozo, traço desse encontro falhado que carrega uma escrita em que o despertar será uma fuga ao encontro com o insuportável e o real: no entanto, não-todos os sonhos podem dar conta de Um real. Será que isso depende do tempo lógico da 5

análise?

O início de uma análise teria a marca de um encontro com um real contingente, com o que despertou - fugazmente - o falasser, implicando-o na desordem do gozo do qual ele se queixa, mas que continuará a dormir pela via da vertente do inconsciente transferencial. Será o trajeto do percurso analítico orientado pelo real que lhe permitirá despertar. Podemos nos perguntar: o falasser desperta da fantasia e como um efeito disso faz sua travessia, de

Miller, J.-A., Curso de Orientação Lacaniana, "O Ser e o Um". Aula de 25 de maio 3

de 2011, Inédito.

Mandil, R., "Sonho e inconsciente real", Curinga, n. 48, 2019, p.103-109.4

Salman, S., El escándalo del cuerpo hablante 5

https://congresoamp2020.com/es/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/el-escandalo-del-cuerpo-hablante.html

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PAPERS 2 / Despertar de um real, será uma nova função do sonho?

modo a despertar advertido por Um real, como uma forma de arranjo com aquela satisfação do programa de gozo, que nessa economia libidinal o fazia manter-se sonhando? No final da análise, o que é que o não-todo desperta? Os restos sintomáticos? O incurável? Os fundamentos neuróticos do desejo do analista? Além disso, acontecerão mais desses sonhos que despertam? Na medida em que um sonho no final da análise já não convoca a interpretação, marca um fora de sentido, separado da cadeia, constatação de um real.

Lacan nos orienta quando formula que no texto do sonho "o real, é para além do sonho que temos que procurá-lo - no que o sonho revestiu, envelopou, nos escondeu" , isto é, no cifrado: o que a cifra 6

carrega é a satisfação de um real pulsional. Miller, ao propor que o "desejo de despertar é o desejo do analista na medida em que (...) ele ateste com sua presença o encontro com o real" permite pensar 7

o analista como pesadelo e se perguntar se o desejo de despertar permite o suposto saber manobrar do analista como ato que encontra um ponto de gozo inamovível e opaco através da "interpretação pesadelo" , a partir da qual não se pode fugir como no 8

sonho.

Então, de que nova função o sonho estaria dando conta no último ensino de Lacan? O uso do sonho na experiência analítica nos permitiria pensar na realização de um despertar na função do analista, em que ele opera para cernir e verificar um real, lendo e deixando o Um do gozo que itera no relato do texto-letra do sonho - Há Um. Dessa forma, cada sessão analítica teria por função encarnar o encontro sempre malogrado com o real.

Tradução: Márcia Mezêncio

Revisão: Maria Rita Guimarães

Lacan, J., O Seminário, Livro XI, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise 6

(1964), Rio de Janeiro, Zahar, 1990, p.61.

Miller, J.-A., "Despertar", Matemas I. Rio de Janeiro, Zahar, 1996. p.105.7

Cf.: Koretzky, C., Sueños y despertares. Últimas tesis sobre el despertar. Buenos 8

Aires, Grama Ediciones, 2019, p. 211.

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O Ciframento e o real que acorda Hervé CASTANET - ECF

Abordar o sonho, via régia de acesso ao inconsciente, implica em saber como esse se define. A tese do Inconsciente intérprete, que teve sua pertinência demonstrada por Jacques-Alain Miller, coloca o sonho como um ciframento em que o inconsciente está a trabalho, ativo, usando dos recursos da retórica, fazendo da língua, de seus trocadilhos e outras revelações, um sentido desmantelado.

O inconsciente intérprete usa os jogos significantes contra o sentido. O trabalho analítico é um deciframento metódico do ciframento, também metódico, do sonho. O famoso sonho da injeção de Irma que Lacan comenta no Seminário II (1954-55) ilustra esse propósito : « O sonho inicial, o sonho dos sonhos, o sonho decifrado de modo inaugural, é para Freud o da injeção de Irma » diz ele. Pois o que 1

demonstra a análise deste sonho ? A resposta é conhecida : o sonho realiza um desejo - ele interpreta esse desejo, e dando-lhe uma forma, ele se descobre. O deciframento dos hieróglifos do sonho desvela o desejo inconsciente em ação. O que importa não é saber como se interpreta este sonho da injeção mas porque Lacan faz dele o sonho dos sonhos. Esse sonho se termina por uma imagem : a fórmula química da trimetilamina, que é uma decomposição do esperma. Ora, essa fórmula não tem nenhum sentido. Ela « não fornece resposta alguma ao que quer que seja » e no entanto, ela « é justamente a resposta à questão do sentido do sonho ». Porque ? 2

« Não há outra palavra, outra solução ao problema de vocês, senão a palavra . » 3

Lacan, J., O Seminário, livro II, O eu na teoria de Freud e na técnica da 1

psicanalise, Rio de Janeiro, Zahar, 1987, p. 188. Cf.: Freud, Sigmund, A interpretação dos sonhos. Rio de janeiro, Imago, 2001. Ibid., p . 202.2

Ibid., p. 2023

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PAPERS 2 / O Ciframento e o real que acorda

Essa demonstração diz respeito a cada sonho : « não há outra palavra-chave do sonho a não ser a própria natureza do simbólico ». 4

É a afirmação da lógica significante que empurra a formula cifrada - em que o significante vira letra - até o sem-sentido.

Seria isso o todo em Freud e na leitura de Lacan ? De jeito nenhum.

Dez anos depois, em seu Seminário XI, Lacan retoma um outro sonho de Freud. A tese não é mais a mesma. Se a vida psíquica ainda é abordada do ponto de vista do simbólico, Lacan interroga o que do sonho não pode se reduzir ao significante : o lugar do real é desnudado. De fato, o que revela o sonho Pai, não vês, estou queimando ? O « fogo pega no Unterlegt, no Untertragen no real ». 5

Como entender isso ? O sonho gira entorno do « ponto mais cruel do objeto », ou seja a morte de uma criança. Poderíamos acreditar que 6

o sonho interpreta o que, para o pai, é o ponto mais cruel, criando um buraco na elaboração psíquica : a morte da criança. Mas Lacan não diz isso : ele especifica que este sonho refere-se ao real pois « O pai enquanto pai » é « nenhum ser consciente ». O pai que ordena o 7

simbólico se tornou inanalisável : inconsciente ele é, inconsciente ele permanecerá. « Pois a verdadeira forma do ateísmo não é o que Deus está morto (…) a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente . »No inconsciente nem tudo é interpretável e o pai é 8

esse umbigo que permanecerá inconsciente. Lacan tira uma conclusão, distante da de 1954-1955 : « O real, é para alem do sonho que temos que procurá-lo […] Lá está o real que comanda ». 9

A segunda tese que Lacan esboça en 1964 e que ele não largará mais é do inconsciente real. Neste momento do seminário XI, ele não usa essa formula mas isso não impede a sua elaboração futura. De fato,

Ibid., p .203.4

Lacan, J., O Seminário, livro XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanalise, 5

Rio de Janeiro, Zahar, 2008, p. 64. Ibid., p, 63.6

Ibid. 7

Ibid. p. 64.8

Ibid., p. 65.9

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PAPERS 2 / O Ciframento e o real que acorda

Lacan tira o inconsciente do discurso do Outro para defini-lo a partir das falhas desse discurso : tropeço, desfalecimento, rachadura . Pré-10

ontológico, o inconsciente « é nem ser nem não-ser, mas é algo de não-realizado. […] é o evasivo ». 11

Esse jogo entre o inconsciente que interpreta (= inconsciente transferencial) e o inconsciente real permite o uso regulado de cada sonho trazido na sessão - uso que determina a lógica do ato do analista. A partir de 1964, Lacan não cessará de dar um status para esse « evasivo » até que postula, in fine, em seu Seminário XXIII, que o real é sem lei. 12

Tradução: Andrea Orabona

Revisão: Paula Galhardo Cepil

Ibid., p. 32.10

Ibid., p. 37-38.11

Lacan, J., O Seminário, livro XXIII, O Sinthoma, Rio de janeiro, Zahar, 2007.12

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Um mínimo esforço ... Hipnose, sonho e sonambulismo

Alberto Rudy JUSTO - EOL

“(...) tenho o direito, tal como Freud, de participar-lhes meus sonhos. (...) é sobretudo o desejo de despertar que me agita” . 1

Encontramos um ponto de partida na citação de Lacan em “A terceira”, no qual o desejo no sonho e o despertar caminham juntos. É notável como, ao longo de todo o seu ensino, ele retoma o despertar como parceiro do desejo de dormir.

Sabemos que a relação entre o sonho, a realidade e o despertar foi estudada por Freud desde o começo da Psicanálise. Inicialmente, o sonho foi definido como a realização de um desejo, “uma forma particular de pensamento, possibilitada pelas condições do estado de sono” . Freud sublinhou esta condição do dormir na formação do 2

sonho para depois esclarecer sua função, definida assim: “os sonhos, são guardiões do sono” . 3

É apropriado lembrar que, previamente ao estudo dos sonhos, Freud propôs o uso da hipnose como método de intervenção clínica, através da sugestão. Neste forçamento do dormir acordado, pôde fazer uso dos poderes da linguagem articulados ao saber e ao ideal.

Estes primeiros passos do par hipnose-sugestão foram curtos, mas o caminho começou a ser traçado em direção ao sonho, inaugurando um novo par, desejo e interpretação. Assim Freud estabeleceu a hipótese que fundamentou o nascimento da Psicanálise.

Lacan, J., "A terceira", Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de 1

Psicanálise, n.62. São Paulo, Eólia, Dez. 2011, p.25.

Freud, S., Interpretação dos Sonhos, in: Edição Standard Brasileira das Obras 2

Completas de Sigmund Freud, vol. V. Rio de Janeiro, Imago, 1987, p. 466.

Ibid., p. 234.3

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PAPERS 2 / Um mínimo esforço...

Lembremos que o estudo do sonho também o levou a encontrar certos limites em sua elaboração, primeiro com os sonhos de angústia e depois com o encontro traumático no retorno do mesmo, ou no umbigo do sonho como o que não é reconhecido. Estas colocações introduziram o problema na teoria geral do sonho, segundo a qual “o sonho é uma realização (...) de um desejo (suprimido ou recalcado)” . Em segundo lugar, temos o paradoxo de 4

que é o próprio sonho que provoca o despertar.

Neste ponto podemos dizer que Freud se confrontou com o problema do despertar a partir de sua prática, na medida em que esta o conduziu a interrogar e reformular sua hipótese sobre o sonho como via de acesso ao inconsciente.

Em Lacan encontramos o uso particular do desejo de despertar emoldurado por suas duas hipóteses fundamentais: “(…) só acordamos para continuar sonhando (...) na realidade” e, no final 5

de seu ensino, “em nenhum caso existe o despertar” . Este paradoxo 6

agora está localizado entre o desejo de despertar e o despertar como um dos nomes do impossível.

No Seminário A Transferência, Lacan considerou a inclinação da demanda e do desejo e explicitou como o objeto se constitui a partir de uma objeção à satisfação . Ou seja, quando sonhamos e 7

despertamos, é porque a demanda encontrou sua satisfação. O despertar se produz, então, para conservar o desejo, ali onde se realiza o perigo de fundir-se com a satisfação da demanda.

No que diz respeito à primeira hipótese, no Seminário 11 ele retomou a frase do sonho “Pai, não vês, (...) que estou queimando?” . Longe 8

Ibid.,. p. 172.4

Lacan, J., O Seminário, livro XI, O avesso da psicanálise (1964), Rio de Janeiro, 5

Jorge Zahar ed., 1992, p. 61.

Lacan, J., El Seminario, libro XXIV, L’Insu qui sait de I’une-bevue s`aile a mourre 6

(1976-1977), lección del 17 de mayo de 1977.

Lacan, J., O Seminário, livro VIII, A Transferência (1960-19610, Rio de Janeiro, 7

Jorge Zahar ed., p. 359.

Lacan, J. O Seminário, livro XI ,Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise 8

(1964), Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1998, p. 59.

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PAPERS 2 / Um mínimo esforço...

de compartilhar da interpretação freudiana que acentuava o desejo de ver seu filho vivo, Lacan colocou o acento na frase que precipita o despertar, que se apresenta como o chamado de um filho a um pai, em uma relação que aponta para um não há, que se impõe nos limites do horror, onde sequer opera o consolo do pesadelo. “O desejo aí se presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel, do objeto” , disse Lacan, sublinhando este ponto de despertar como uma 9

passagem, um momento fugaz que separa duas cenas, um relâmpago, ao qual só se tem acesso através de um relato do sonho. “O sujeito se reduz, então, a seu puro ato de enunciação” . 10

Na segunda hipótese, como entender a rigidez da frase “Não despertamos nunca”, a qual condensa a maneira como Lacan abordou o tema do despertar e que contém este fundo de impossibilidade?

J.-A. Miller, em “Peças Soltas”, também tratou do tema do despertar, distinguindo dois despertares. O primeiro é o que se sonha de manhã. “Quando vocês vão despertar, o sonho lhes permite continuar dormindo, projetando-os na vigília, essa vigília na qual errarão como zumbis” . Mas a busca da psicanálise é por produzir um segundo 11

despertar, no qual nossa via de vigília aparece com os olhos bem fechados. Novamente esse forçamento, não mais do dormir e sim do despertar, inscreve-se em um contexto no qual o inconsciente não fica nem do lado do saber não sabido, nem do sentido, mas do lado de um saber fazer aí com o real. Une Bévue, como Lacan definiu no Seminário 24, onde o termo utilizado aponta para algo diferente da interpretação que é só um efeito de sugestão.

A sugestão é, então, o que fica no fundo, o mínimo efeito do significante sobre o outro, o imperativo. Assim, todo discurso é hipnótico, uma vez que a via da comunicação fica conectada à sugestão como efeito natural do significante, entendendo que, como disse Lacan, “há contaminação do discurso pelo sonho” . 12

Ibid., p. 60.9

Koretzky, C., Sueños y Despertares. Grama, Buenos Aires, 2019, p. 89. 10

Miller, J.A., Piezas Sueltas, Paidós, Buenos Aires, 2013, p.141.11

Miller, J.A., El ultimísimo Lacan, Paidós, Buenos Aires, 2013, p.145. 12

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PAPERS 2 / Um mínimo esforço...

Neste contexto, Lacan reclamou a invenção de um significante novo, que já não estivesse contaminado pelo sonho, um ato que desencadeie Um despertar. “Por acaso o Um está condenado ao sonambulismo, ao sonambulismo do sinthoma, à casualidade das bévues? Mas também diz algo mais, algo que tem que ser escutado, a saber, que o inconsciente não se desperta; (...) Talvez seja (...) mediante a identificação com o sinthoma, onde o despertar poderia, por assim dizer, cessar de não se escrever” . Uma maneira pela qual 13

o desejo de despertar se imponha ao desejo de dormir, não na vertigem da borda, mas talvez em algo que afinal desemboque em um sonhar acordado.

Tradução: Glacy Gonzales Gorski

Revisão da Tradução: Teresinha N. Meirelles do Prado.

Ibid., p. 145. Tradução nossa. 13

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Talvez despertar... 1

David WESTCOMBE - NLS

O sonho como realização de desejo

No capítulo 2 da Traumdeutung, Freud apresenta uma análise do “Sonho da injeção de Irma” com a conclusão triunfante que:

“Após completar o trabalho de interpretação, percebemos que o sonho é a realização de um desejo” 2

Apesar dos desafios significativos à formulação freudiana inicial da interpretação do sonho – sobretudo aqueles relacionados ao trauma físico – nas suas últimas palavras sobre a interpretação do sonho, em Explicação com base na interpretação dos sonhos, afirma:

“...o... sonho é uma tentativa de eliminar, pela realização de desejo, aquilo que perturba o sono; que ele é, portanto, o guardião do sono.” 3

“Desejo” é a tradução do termo alemão Wunsch e que foi traduzido 4

para o francês por désir. De fato, quando pensamos em “realização de desejo” temos em mente fantasia e pulsão – mas, também, desejo. O próprio Freud retoma este tema na Traumdeutung com do sonho da “Bela Açougueira”. Ali, o “desejo” é revelado na análise como sendo desejo que seu desejo não seja realizado, ou como Lacan reformulará, o desejo de um desejo insatisfeito – uma das clássicas formulações da posição histérica.

Shakespeare, W., The tragedy of Hamlet, Prince of Denmark in The new Oxford 1

Shakespeare, Oxford, 2016. Act 3, Scene 1. (ATO 3, Cena 1, linha 66). NT: no original Perchance to awaken.

Freud, S., A interpretação dos sonhos, V4, tr. Paulo César de Souza, 2

SP,Companhia das Letras, 2019, p.154.

Freud, S., Moisés e o monoteísmo, compêndio de psicanálise e outros textos, V19, 3

tr. Paulo César de Souza, SP, Companhia das Letras, 2018, p.224.

Wunsch foi traduzido por “wish” na língua inglesa.4

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PAPERS 2 / Talvez despertar...

Sem dúvida, o “desejo” teve grande importância no primeiro Lacan. Nesta época, dizia-se que o objetivo da análise era que o analisante soubesse a verdade sobre seu desejo e o articulasse ao discurso.

E, ainda, o “desejo é a sua própria interpretação” – afastando-se da visão freudiana e prenunciando as últimas passagens lacanianas do sonho como um despertar.

Também no primeiro Lacan – nesse caso, no Seminário V – há a seguinte passagem apontando novamente para a direção do “despertar” do último Lacan:

“Freud às vezes nos diz que surge alguma coisa, no pano das formações do inconsciente, que se chama surpresa... O fenômeno da surpresa tem algo de originário – quer se produza no interior de uma formação do inconsciente, na medida em que em si mesma ela choque o sujeito por seu caráter surpreendente, quer ainda quando, no momento em que é feito para o sujeito o desvelamento, provoca-se nele o sentimento de surpresa.” 5

Certamente, o real está presente na Traumdeutung – como as famosas passagens sobre o “umbigo” do sonho atestam. Lacan fala do desejo como sendo incapaz de ser completamente articulado ao discurso – há sempre um resto, um vestígio, uma sobra no real.

Despertar do sonho

No Seminário XXII, Lacan fala de uma oposição entre o despertar e o sonho ou o sonhar:

“Um despertar é um relâmpago. Quando acontece comigo – não frequentemente – isto é para dizer que não é igual para todos – no momento em que emerjo do sono. Depois tenho um breve clarão de lucidez. Isto não dura muito, é certo – eu retorno como todo mundo para esse sonho chamado realidade, no discurso no qual tomo parte,

Lacan, J., O seminário, livro II, As formações do inconsciente (1958), Rio de 5

Janeiro, Jorge Zahar, 1999, p. 96.

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PAPERS 2 / Talvez despertar...

e em que me esforço dolorosamente para abrir o caminho para o discurso analítico.” 6

No momento do sonho, estamos imersos em uma experiência, um encontro com o real, com o real inconsciente. Ao emergir do sono, pode haver um momento de consciência que se está no inconsciente real – “o eu sabe disso” – antes que haja qualquer reflexão. A experiência é como um solitário, precedendo qualquer enunciado, qualquer discurso. O sujeito, enquanto aquilo que é representado por um significante para outro significante, ainda não acordou para o dia.

Em análise, o sonho é falado, assim “refletido” e conceitualizado; um por um, esses elementos desconectados, esses fragmentos, podem ser associados e assim analisados. As associações são reunidas, peça por peça e, eventualmente, amarradas ao simbólico e ao imaginário, como consequência.

Em seu texto final, o Prefácio da edição inglesa do seminário XI , 7

Lacan escreve estar “certo de estar no inconsciente”, e depois, uma vez que a “atenção está focada nisso”, então o sujeito está “fora disso”. Em contrapartida, ao sonhar, o sujeito está de forma similar “no inconsciente”. No entanto, ao despertar, pode haver momentos de lucidez antes de se estar “fora dele”. É apenas falando mais, mais análise na presença de um “sujeito suposto saber”, que se dá um nó.

Como esse texto deixa claro – este é o inconsciente enquanto real. Ao sonhar, o sujeito está realmente sozinho no encontro com o real – “nenhuma amizade existe para apoiar esse inconsciente”.

O sonhador encontra o real como não solicitado: não há escolha e, particularmente no caso do pesadelo, não há nada que lembre a “satisfação que marca o final de análise”. Há, entretanto, como Lacan menciona no Seminário XXII, ocasionalmente, uma “lucidez” no momento de acordar, um despertar do sono e do sonho onde o “eu” pode permanecer por um breve momento no inconsciente real, antes

Lacan, J., O seminário, livro XXII, R.S.I., (1974-1975), inédito, lição de 11 de 6

fevereiro de 1975.

Lacan, J., “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, Outros escritos, RJ, Jorge 7

Zahar Ed., 2003, p. 567.

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PAPERS 2 / Talvez despertar...

que a “atenção esteja focada nisso” – e, então, o momento se perde, o sujeito dividido emerge novamente e estamos perdidos no dia, até que a noite e o sono retomem sua jornada diurna até a morte.

É nesse contexto que uma análise, levada até sua conclusão, pode resultar no sujeito experimentando esta satisfação que marca a lucidez, o despertar do fim de análise, a satisfação de ser Um sozinho na presença do analista que não é mais o “sujeito suposto saber”.

Traduzido do inglês por Luciana Brandão Lopes

Revisão: Bruna Meller.

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É só um sonho. Sonhemos, pois, e sigamos dormindo 1

Sandra Arruda GROSTEIN - EBP

Qual o uso do sonho no tratamento lacaniano? Trata-se de uma questão bastante precisa que exige resposta à altura. Isto implica uma pesquisa aprofundada em nossos textos orientadores. Tanto na obra de Freud, quanto na de Lacan, encontramos argumentos que permitem articular sonho, desejo e despertar, que pretendemos desenvolver neste texto.

Revisitando os sonhos, encontramos que a novidade introduzida por Freud, segundo Lacan no Seminário 6, é que “a realidade humana se constrói sobre um fundo alucinatório prévio, que é o universo do prazer, em sua essência ilusório.” Há, portanto, um processo 2

primário regido pelo princípio do prazer e outro secundário, que atende à realidade. O processo secundário é secundário em relação ao primário, necessariamente; logo, o que “acontece em termos de processo primário implica um movimento regressivo” quando se 3

trata de analisá-lo. Como incluir a pesquisa sobre os sonhos neste contexto?

Lacan em “Sonho de Aristóteles” considera que o analista só tem no que intervir na medida em que o analisante sonha , e, ao sonhar, 4

Freud, S., Obras Completas, Conferencias introdutórias à psicanálise, v. 13, SP, Cia 1

das Letras, 2014, p. 295.

Lacan. O Seminário, livro VI, O desejo e sua interpretação. RJ, Zahar, 2016, p. 80.2

Ibid, p.77.3

Lacan, J., O sonho de Aristóteles, Opção Lacaniana, nº 79, 2018, p. 9.4

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PAPERS 2 / É só um sonho. Sonhemos, pois, e sigamos dormindo

tenta realizar um desejo , o que o leva a dizer que o “sonho tem a 5

mesma estrutura do desejo” . 6

É, portanto, a partir dos sonhos infantis, consequentemente associados aos desejos infantis, é que Freud diz que “ficamos sabendo que o trabalho do sonho pretende, mediante a realização de um desejo, eliminar um estímulo psíquico perturbador do sono” e 7

que cada sonho tem um sentido e um valor psíquico . Propõe, então, 8

nesta articulação, que o sonho funcione “como guardião ao qual cabe proteger nosso sono das perturbações” . Não confundir, no entanto, o 9

sonho com os pensamentos oníricos latentes, cuja elaboração se dá através do ato de transformar pensamentos abstratos em imagens visuais . Freud define com precisão o que ele entende por desejo 10

nesta proposição de que o sonho é uma realização de desejo. “Um elemento essencial dessa vivência é o aparecimento de certa percepção cuja imagem mnêmica a partir de então, fica associada ao traço mnêmico da excitação criada pela necessidade. Tão logo esta necessidade volte a se manifestar, ocorre graças ao vínculo estabelecido, um impulso psíquico que procura investir novamente a imagem mnêmica da percepção e suscitar novamente a própria percepção, ou seja, reproduzir a situação da primeira satisfação. Um impulso deste tipo é que chamamos desejo.” 11

A observação analítica, diz Freud, mostra que o trabalho do sonho não se limita a traduzir os pensamentos na forma de expressão arcaica ou regressiva; nele, “o pensamento não é o outra coisa que o

Freud S., ESB Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Novas 5

conferências introdutórias sobre psicanálise, v. XXII, RJ, Imago, 1969, p. 43.

Lacan, J., O Seminário, livro VIII, A Transferência. RJ, Zahar, 1992, p. 364.6

Freud S., Obras Completas, A Interpretação dos sonhos, v. 4, SP, Cia das Letras, 7

2019, p. 288.

Freud S., Obras Completas, Complemento Metapsicológico à teoria dos sonhos, v.8

12, SP, Cia das Letras, 2010, p. 156.

Freud S., Obras Completas, Compêndio de Psicanálise, v. 19, SP, Cia das Letras, 9

2018, p. 218.

Freud S., Obras Completas, A Interpretação dos sonhos, v. 4, p. 31.10

Freud S., Obras Completas, A Interpretação dos sonhos, v. 4, p. 618.11

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PAPERS 2 / É só um sonho. Sonhemos, pois, e sigamos dormindo

substituto do desejo alucinatório, e, se o sonho é uma realização de desejo, isto se torna evidente pois nada além de um desejo pode impelir nosso aparelho psíquico a trabalhar.” 12

Podemos dizer que um sonho é, então, uma intenção traduzida para um modo de expressão arcaico que, com o auxílio de um desejo inconsciente, oculto para o sujeito, reconfigura esta intenção através das imagens, para realizar este desejo, produzindo invariavelmente uma satisfação alucinatória do desejo. 13

Retomando Lacan no “Sonho de Aristóteles”, ele ressalta que o analista tem onde intervir, pois o analisante sonha, e pergunta: “Tratar-se-ia de despertar o analisante?” Não exatamente, pois, o 14

que seria o despertar de um sonho? Reconhecer um desejo realizado ou o contrário, a impossibilidade de satisfação? No Seminário 17, Lacan retoma Freud ao dizer que “um sonho desperta justamente no momento em que poderia deixar escapar a verdade, de sorte que só acordamos para continuar sonhando.” 15

Se o desejo do sonho é o desejo de continuar dormindo, situar o despertar no contexto analítico aproxima necessariamente sonho e real, quando incluímos nesta reflexão as considerações feitas por Lacan no Seminário 8, onde ele diz: “ se o primeiro passo em direção à realidade é dado no nível do sonho, o fato de que o eu alcance essa realidade supõe certamente, que eu me desperte.” Ou ainda quando 16

articula com a demanda onde diz, claramente, que “o despertar se produz quando aparece no sonho a satisfação da demanda. 17

Ibid, p. 619.12

Freud S., Obras Completas, Complemento Metapsicológico à teoria dos sonhos, p. 13

153.

Lacan J., O sonho de Aristóteles, p.9.14

Lacan J., O Seminário, livro XVII, O avesso da psicanálise. RJ, Zahar, 1992, p. 54.15

Lacan J., O Seminário, livro VIII, A Transferência, p. 363.16

Ibid.17

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PAPERS 2 / É só um sonho. Sonhemos, pois, e sigamos dormindo

“Tratar-se-ia de despertar o analisante? Não, já que ele não quer isto de maneira nenhuma – ele sonha ou seja, importa-se com a particularidade de seu sintoma.” 18

Esta passagem nos ajuda a diferenciar dois modos de orientação na direção do tratamento lacaniano. Orientar-se pelo sintoma, de um lado, e pela fantasia de outro. Miller, em seu texto “O ultrapasse” 19

desenvolve estes dois pontos articulando-os a partir da diferença entre o ser e o existir, dizendo que orientar-se numa análise pela fantasia coloca em questão o ser e, por outro lado, quando um analista dirige um tratamento referenciado na clínica do sintoma, o que está posto em questão é a existência.

Além disso, cabe esclarecer que o “sintoma não é uma formação de fala, e sim algo correlato a uma inscrição que é permanente e se distingue do sonho, dos lapsos e do chiste.” Nesse sentido, o 20

sintoma exige ir além da fala , o que provoca um questionamento: 21

como avançar na análise em direção ao além da fala? Se o sintoma se distingue dos sonhos, qual o uso que ainda podemos fazer destes nesta clínica?

É na perspectiva deste questionamento que se pretende avançar nas pesquisas prévias ao XII Congresso para, na ocasião da realização do mesmo, tirarmos consequências na atualização do trabalho clínico. A bibliografia pesquisada orienta a leitura na direção necessariamente da relação do desejo com a sua satisfação, mas não só, aponta também para outra satisfação , própria do sintoma que se articula à 22

impossibilidade do despertar.

Lacan J., O sonho de Aristóteles, p. 9.18

Miller, J-A., Aposta no passe, RJ, Contra Capa, 2018, p. 128.19

Ibid.20

Ibid.21

Lacan, J., O Seminário, livro XX, Mais, ainda. RJ, Zahar, p. 70. 22

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Desejo do analista, desejo de despertar? Anna CASTALLO - SLP

Depois de sustentar a tese de que o sonho é a realização de desejo , 1

Freud se coloca o problema dos sonhos que têm um conteúdo onírico em plena contradição com este propósito e vê neles o apagamento do desejo de continuar a dormir.Tal passagem leva a um plano que prescinde do conteúdo do sonho, seja em termos de significados ou de significantes.Após esta passagem, os sonhos que provocam a interrupção do sono são explicados por Freud como uma forma de proteção contra um excesso de estímulo; de modo que, já em A Interpretação dos Sonhos, a evitação do real, através do sono ou do despertar, torna-se primordial em comparação com a necessidade de dormir. Isto é, além do mais, o que encontramos amplamente no ensino de Lacan.

Mas se para o falasser é prevalente o desejo de evitar o real, seja no sonho ou na vigilia pode haver um desejo genuíno de despertar?

No Seminário XXV , Lacan chega a colocar não só a impossibilidade 2

de um despertar absoluto, mas também vislumbra, no desejo de tal despertar, um enésimo modo de evitar o real, sonhando que se pode despertar para a contemplação do verdadeiro para sempre .Além 3

disso, Freud já havia alertado sobre sonhos de despertar, como aqueles em que é mais fácil reconhecer a eficácia do desejo de continuar dormindo.

Cf.: Freud S., A interpretação dos Sonhos (1900), Rio de Janeiro, Imago 1972, 1

vol. IV.

Lacan J., O Seminário , Livro XXV, O momento de concluir (1977-1978), lição de 2

15 novembro 1977, inédito.

Miller J.-A., “O inconsciente real” , Opção Lacaniana online n. 4 12.4.2007. pp 3

1-12. Cf.: Miller, El ultimisimo Lacan, (2006-07), lição de 6 de junho de 2007. Buenos Aires: Paidós. 2012.

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PAPERS 2 / Desejo do analista, desejo de despertar?

No entanto, temos sonhos em Freud e Lacan que nos permitem supor a possibilidade de um desejo real de despertar, e estes são pontos onde, na minha opinião, o desejo do analista também pode ser colocado.

Lacan no Seminário II põe foco em dois pontos culminantes do 4

sonho sobre Irma, nos quais há um encontro com o real:o ponto onde Freud encontra o irrepresentável da garganta escancarada e o ponto da escrita de uma fórmula. Lacan, tomando a expressão de Erikson, diz que Freud não desperta alí porque "é um cara durão" e "é tomado por tal paixão de saber que ele vai além" , mas poderíamos dizer que Freud não acorda porque ele é um analista e quer encontrar a causa de seu horror ao saber.

Há também um sonho de Lacan, que leva nesta direção. Em 1978 Lacan escreve: “Que eu alucine em meu sonho de despertador tocando, considero isto um bom sinal, já que, contrariamente ao que diz Freud, ocorre que, de minha parte eu acordo. Pelo menos estou neste caso, acordado.” .Lacan alucina no sonho o soar do despertador 5

e isto provoca a interrupção do sono.

Para sustentar a tese de que estes sonhos de Freud e de Lacan testemunham um desejo do analista enquanto desejo de despertar, tomemos como referência dois aspectos do desejo do analista.

● Miller define o desejo do analista como desejo“de reduzir o Outro a seu real e de liberá-lo do sentido” . No final de seu 6

ensino Lacan diz:"Um discurso sempre adormece, exceto quando não é compreendido, então desperta." . Miller retoma 7

este ponto e diz "A doença mental é o inconsciente que não se

Lacan J., O Seminário livro II, O Eu na teoria de Freud e na técnica da 4

psicanálise(1954-1955), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1985.

Lacan J., “O sonho de Aristóteles”, Opção Lacaniana.Revista Brasileira 5

Internacional de Psicanálise,.n. 79, 2019, p.9.

Miller J.-A., “Um real para o século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso 6

da AMP” , Scilicet: Um real parao século XXI , Belo Horizonte, Scriptum, 2014, p. 21-32.

Lacan J., O Seminario, Livro XXIV, L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre 7

(1976-1977), lição de 19 de abril de 1977, inédito.

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PAPERS 2 / Desejo do analista, desejo de despertar?

desperta. E (…) é preciso situá-la (…) ao nivel 2. Neste nivel não há nenhum despertar já que se vai de sentido a sentido” . 8

Lacan e Miller estão dizendo que o sentido adormece enquanto o desejo do analista libera do sentido.Isso coloca do lado do despertar não só o desejo do analista , mas também a 9

operação que está no centro do discurso do analista: trata-se, de fato, do único dos quatro discursos que não se compreende já que sob a barra encontramos S1 e S2 separados por uma barreira, assim, o vínculo entre eles é interrompido e cada significante assume um valor por si próprio. Como resultado, não há mais S2 (onde o nível 2 é adormecimento) e todos os significantes são apenas S1; os significantes, portanto, não se apresentam na sua função de representar o sujeito para um outro significante, mas por seu lado fonêmico e literal, puro som e escrita, e por seus efeitos de gozo.

● Lacan já havia dito em 1964: "o desejo do analista (...) é um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele" .Miller, 10

comentando o último Lacan, diz: "É talvez ao nível do Um, através da identificação com o sinthoma, que o despertar poderia, (...) cessar de não se inscrever" .Aqui Miller está 11

propondo como despertar o isolamento do S1 e a assunção de seus efeitos de gozo, para que o falasser possa chegar a um tu és isso,elemento já presente no desejo do analista, conforme definido por Lacan em 1964.

Miller J.-A., El ultimisimo Lacan, (2006-07), lição de 14 de março de 2007, Buenos 8

Aires, Paidós, 2012, p.145.

Sobre o desejo do analista como desejo de despertar, cf.: também Miller J.-A., 9

“Despertar!”, Matemas I, Buenos Aires., Ed.Manatial, 1994.

Lacan J., O Seminario, Livro XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise 10

(1964), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 260.

Miller J.-A., El ultimisimo Lacan, (2006-07), lição de 14 de março de 2007, 11

Buenos Aires, Paidós. 2012, p.145.

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PAPERS 2 / Desejo do analista, desejo de despertar?

Voltando, então, aos sonhos de Freud e Lacan, no sonho da injeção de Irma qual é a fórmula senão a escrita que drena cada possível efeito de sentido e manifesta o real da letra que está por trás do significante? E o que é o encontro da carne viva senão um além do representável que leva ao que o próprio Lacan chama de "a última revelação do tu és isto"? 12

Passando ao sonho que provoca o despertar de Lacan, não há nada de aspiração de um despertar absoluto, nada do sonho de despertar, porque Lacan acorda. Trata-se da alucinação de um som que desperta, presentificação da sonoridade e do real pulsional do significante, além da função de representação. Este sonho seria, então, como sustentava Freud, a realizaçãode um desejo: o desejo de reduzir o Outro ao seu real, o desejo de despertar para o real, o desejo do analista.

Tradução: Marcia Zucchi

Revisão: Andrea Vilanova

Lacan J., O Seminário livro II, O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise 12

(1954-1955), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985, p.198.

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Despertar do sonho Félix RUEDA - ELP

Despertar

Miller propõe o “despertar” como um fio a seguir tanto nos escritos freudianos como nos de Lacan, já que este termo é um dos nomes do real enquanto impossível . 1

Encontramos a primeira ponta desse fio no início da descoberta freudiana. Para Freud, todos os sonhos “servem à finalidade de prolongar o sonho em vez de despertar. Os sonhos são os guardiões do sono e não seus elementos perturbadores” . Razão pela qual seu 2

maior interesse teórico recaia sobre os sonhos que têm a capacidade de produzir o despertar pelo próprio sonho, porque tanto o sonho quanto o desejo inconsciente têm o poder de perturbar o sono, contradizendo sua tese do sonho como guardião do sono.

Freud assim explica: uma realização de desejo teria que propiciar prazer; porém, a relação que o sonhador mantém com seus desejos é particular. Ele os rejeita, sua realização não pode propiciar nenhum prazer. Pelo contrário, é a angústia que entra em cena porque o desejo evitou a censura.

Então, de acordo com a concepção freudiana, paradoxalmente, se desperta para evitar a realização do desejo do sonho. Lacan demonstrará que, onde Freud afirma que se sonha para dormir, o despertar persegue o mesmo fim. Desperta-se para a realidade, que não se opõe ao princípio do prazer, mas o prossegue, para fugir do horror que surge do sonho.

Miller, J.-A., “Despertar”, Matemas I. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1996, p. 1

102.

Freud, S., A interpretação dos sonhos, ESB., vol. IV. Rio de Janeiro, Imago Ed., 2

1972, p. 248.

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PAPERS 2 / Despertar do sonho

Essa torção topológica – despertar-se no sonho – permite relacionar o sonho e o real . Lacan propõe que o real é o que o sonho “revestiu, 3

envelopou, nos escondeu por trás da falta de representação, da qual só existe um lugar-tenente” . 4

Vamos encontrar esse lugar-tenente na resposta que Lacan deu a Ritter . Nela, ele situou essa marca da ausência de representação 5

como o não reconhecido, identificando-o com o recalcado primordial, isso que não pode ser dito, a raiz da linguagem. É o que Lacan identificou como umbigo do sonho, um buraco, um limite da análise relacionado ao real.

Lacan propôs que um parlêtre se situa de determinada maneira na linguagem e é excluído de sua própria origem pelo fato de ter nascido de um ser que o tenha desejado ou não. A “marca” dessa exclusão irremediável se encontra em algum lugar do sonho. Lalíngua é essa maneira em que foi instilado em alguém um modo de falar, da qual recebeu uma primeira marca e na qual uma palavra é equívoca . 6

Algo dessa marca volta a surgir no sonho. E já que ele contorna, recobre, traz o que não pode ser dito, uma realização de desejo que não pode acontecer, “cada sonho é um pesadelo moderado” . 7

Uma parte do sonho é sonho de despertar

Desde o início Lacan enunciou que se desperta para continuar sonhando. No entanto, em seu ultimíssimo ensino, ele radicalizou e

Cottet, S., “Prefacio”, C. Koretzky, Sueños y despertares. Buenos Aires, Grama, 3

2019, p. 12.

Lacan, J., O Seminario, livro XI, OS quatro conceitos fundamentais da psicanálise 4

(1964). Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1979, p. 61.

Lacan, J. “Respuesta de Lacan a una pregunta de Marcel Ritter”, Estudios de 5

Psicosomática, Vol 2., Buenos Aires, Atuel, 1994, p. 11.

Lacan, J., “Conferência em Genebra sobre o síntoma”, Opção Lacaniana, n. 23. 6

São Paulo, Edições Eolia, dez 1988, p. 9.

Lacan, J., O Seminário, livro XXIII, O sinthoma.(19751976) Rio de Janeiro, Jorge 7

Zahar Ed., 2007, p. 121.

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PAPERS 2 / Despertar do sonho

generalizou sua tese, asseverando que “o homem passa seu tempo a sonhar, que ele jamais desperta” . 8

Se para Freud se desperta do sonhar e do dormir, para Lacan se desperta do dormir, mas não do sonhar. Lacan disse que o homem sonha, não que durma, separando o desejo de dormir do ato de sonhar. “O desejo de dormir corresponde a uma ação fisiológica inibitória. O sonho é uma inibição ativa” . É através desse ponto 9

inibitório do sonho que Lacan situou a conexão do corpo com o simbólico, que graças, ao simbólico, “não se desperta nunca, (…) o despertar total é a morte” . 10

Porém, ele afirmou que “inclusive no despertar absoluto há uma parte do sonho que é sonho de despertar” . Inclusive disse que na 11

separação radical do sujeito do simbólico, que seria a morte, haveria sonho de despertar. Se o despertar é impossível, isso não impede que se considere uma dimensão do despertar dentro do sonho mesmo. É o sonho como “instrumento do despertar”, que Lacan generalizou nessa época de seu ensino . 12

De fato, há ao menos duas ocasiões nas quais menciona que para ele há despertar. Na primeira, situa “o momento em que efetivamente saio do dormir. Nesse momento, tenho uma breve faísca de lucidez, um relâmpago, que não dura muito, atrás do qual volto a entrar como todo mundo, nesse sonho que chamamos a realidade” . Na 13

segunda, ele disse: “Falei do despertar. Ocorre que recentemente sonhei que o despertador tocava. Freud diz que sonhamos com o

Lacan, J., “Considerações sobre a histeria”, in: Opção Lacaniana, n. 50. São Paulo, 8

Edições Eolia, dez 2007, p. 21.

Lacan, J., “Improvisation: désir de mort, rêve et réveil”, L’Âne, 3, 1981.9

Ibid. p. 3.10

Ibid. p. 3.11

Laurent, E. “O despertar do sonho ou o esp d´um desp”,https://12

congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/19-09-11_el-despertar-del-sueno-o-el-esp-de-un-sue.html

Lacan, J. Le Séminaire, livre XXII, RSI, Leçon du 11 février 1975, Ornicar? n. 4. 13

Paris, 1975, p. 92-100.

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PAPERS 2 / Despertar do sonho

despertador quando não queremos de modo algum acordar. (…) Que eu alucine em meu sonho de despertador tocando, considero isto um bom sinal, já que, contrariamente ao que diz Freud, ocorre que, de minha parte, eu acordo. Pelo menos estou, neste caso, acordado” . É 14

uma faísca que ocorre entre o sonho e o despertar.

Para Lacan, o analisante nunca deseja despertar, já que sonhando ele preserva seu sintoma . Sintoma e sonho são formações do 15

inconsciente que são parte do discurso do Outro, do qual não se desperta: “da enfermidade mental que é o inconsciente não se desperta nunca” . 16

Assim, o sonho mostra de novo sua torção topológica, já que despertar é fazê-lo do inconsciente (transferencial) e, deste, não se desperta. Mas, o sonho inclui a dimensão do real, que pode ser instrumento de despertar.

Esta é a concepção de Lacan ao final de seu ensino: para que a psicanálise opere, ela deve sair do efeito de sentido articulado ao Outro. “O efeito de sentido exigível (na operação analítica) é real” . 17

Sentido real que se transformará no Seminário 24 em significante novo. Significante fora de sentido, peça de real, que, em vez de estar contaminado pelo sonho, desencadearia um despertar que poderia cessar de não se escrever.

Tradução: Carmen Silvia Cervelatti

Revisão: Tatiane Grova

Lacan, J., “O sonho de Aristóteles”, Opção Lacaniana, n. 79. São Paulo, Ed. Eolia, 14

jul 2018, p. 9.

Ibid, p. 9.15

Lacan, J., El Seminario, libro XXIV, L’insu que sait de l’une-bevues’aile à mourre, 16

Colofón 25, Granada, 2005, p. 39.

Lacan, J., Le Séminaire, livre XXII, RSI, op. cit.17

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