05 Folhetim30 Web Tela

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Teatro

Citation preview

  • O teatro e seu avesso

    Angela Leite Lopes Angela Leite Lopes tradutora e professora do Curso de Artes Cnicas e do Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • 75

    folhetim 30

    Sai do mtodo Stanislvski! Salta em Meyerhold! Trabalha

    tudo no avesso revirado, numa outra perspectiva.1 Foi es-se um dos conselhos dados por Valre Novarina a atores

    da montagem da sua Opereta imaginria que dirigiu na Hungria em 2009. E ele explica, numa longa entrevista a

    Olivier Dubouclez, que o problema com o qual se deparou

    durante essa experincia no estava tanto relacionado com

    Stanislvski grande mestre do teatro, cujo pensamento

    tudo menos rgido mas com a to conhecida limitada com-

    preenso de seus ensinamentos, cristalizada numa leitura

    unicamente psicolgica do personagem.2

    Prosseguindo no seu relato e no seu raciocnio, Novarina

    conta que os atores no podiam conceber que a relao a ser estabelecida com aquela pea e aquele espetculo pudesse se dar por outro vis que no o do personagem. Narra ele:

    No incio, eles estavam permanentemente em busca

    do personagem, como se houvesse uma verdade a ser

    revelada, como se fosse possvel encontrar a lgica do

    papel por dentro dele: O que sinto? Qual meu estado?

    Qual o estado do personagem? Eles buscavam ref-

    gio nesse psicologismo com o qual esto habituados.3

    Novarina, por sua vez, empenhou-se em mostrar a eles

    que no se tratava de construo de personagem e sim de uma pea. No tece mais uma construo de personagem

    [...] mas presta extrema ateno aos traos (como um pin-tor), aos traos que voc traa, que voc joga nas figuras

    1 Valre Novarina. La Quatrime personne du singulier. Paris: POL, 2012, p. 52.

    2 Olivier Dubouclez; Valre Novarina. Paysage parl. Paris: Les ditions de la Transparence, 2011, p. 71.

    3 Ibid., p. 72.

  • 76

    folhetim 30

    O teatro e seu avesso

    humanas que se erguem e que sero combinadas no cre-bro e no corpo do espectador.4 Naquele contexto, no havia

    emoo a ser vivenciada, e sim um jogo a ser construdo.

    Como a tradio teatral est impregnada por um vocabu-lrio que tende facilmente para o psicolgico, Novarina usa

    e abusa de termos oriundos da visualidade: perspectiva re-

    virada, traos, figuras. De fato, ele no nos deixa esquecer

    que o teatro quer dizer a vista.5 Para ilustrar as colocaes de Novarina, aqui vai a pri-

    meira fala dessa Opereta imaginria:

    O E Mudo (de joelhos.) Pblico de opereta, fique aten-to! Paredes, fechem limites! cho, sustente ps! pes-

    soas em frente: recuem no, avancem no! teto, nos

    proteja do sol e das multides da chuva! tempo, nos

    aguarde! pessoas dentre aqui, toram por ns! Pblico

    de opereta, me impea de espalhar sangue, de esten-

    der e enrolar esses panos em tirinhas na minha cabea

    como fao nesse instante ensanguentado diante de

    ti! Pblico de opereta, me impea de pousar minha ca-

    bea no cho, pblico de opereta, impea minha ca-

    bea! Impea a opereta, pblico! pblico de opereta,

    faa com que o espao no tenha lugar! No cho daqui

    impea de agir! Pblico de opereta, no escuta que es-

    palho diante de ti essas palavras e recebe aqui minha

    cabeEeEeheEea. No centro havia um morto que s se

    exprimia em canes. (Ato I, 1. Abertura)

    Como se pode depreender dessa fala do E Mudo, o cerne da operao artstica de Novarina est na linguagem e, mais

    4 V. Novarina. La Quatrime personne du singulier, op. cit. p. 53.

    5 Ibid., p. 117. Novarina nos faz lembrar que theatron designa o lugar de onde se v.

  • 77

    folhetim 30

    Angela Leite Lopes

    especificamente, na ideia de que a linguagem um fluido

    que se derrama no espao. O que importa para ele essa

    projeo da palavra.

    Tal concepo foi primeiramente compreendida pelos atores hngaros como uma volta ao velho teatro do sculo

    XIX em que interpretar equivalia a declamar na boca de ce-

    na. Sabe-se que Stanislvski se insurge contra esse tipo de

    teatro e passa a figurar quase como seu antdoto. Perceber

    que na proposta de Novarina no se tratava nem de avano

    nem de recuo, foi algo que se deu na experincia, no passo

    a passo dos ensaios.

    No Brasil, vrios artistas vm dando passos nessa dire-

    o, ao tomar contato com a obra de Novarina ou ao enve-

    redar por outras experincias. Penso muito especialmente

    no trabalho que vem sendo desenvolvido por Ana Kfouri

    frente da sua Cia Teatral do Movimento ou em parceria com Antonio Guedes, Thierry Trmouroux e Isabel Cavalcanti.

    A Companhia de Teatro Autnomo, dirigida por Jefferson Miranda ou a Companhia Brasileira de Teatro, dirigida por Mrcio Abreu, so bons exemplos desse teatro que busca

    Opereta imaginria, direo de Valre Novarina. Teatro Csokonai, Debrecen Hungria. Da esquerda para a direita: Nelli Szcs, Jzsef Jmbor, Anna Rckevei, Artr Vranyecz, Kinga jhelyi, Attila Kristn, Jzsef Varga, Tibor Mszros e rpd Kti. Foto de Andrs Mth, 2009.

  • 78

    folhetim 30

    O teatro e seu avesso

    outros aspectos da cena e do trabalho do ator. Muitos ou-

    tros artistas e grupos que se dedicam chamada pesquisa

    de linguagem tm trajetrias consolidadas nesse caminho.

    Mas no deixa de ser curioso constatar que os rumos da

    cena na atualidade parecem ainda confluir para essa encru-

    zilhada: avanar ou recuar. Foi nesses termos, por exemplo,

    que Denis Gunoun props algumas reflexes no artigo in-

    titulado Objeo ao retorno, publicado em 2000 no nme-

    ro 8 do Folhetim. Ali, ele situava a hiptese de trabalho de Novarina nos seguintes termos: findo o drama, o que sobra

    a lngua e dela ento que se vai extrair teatralidade.6 De fato, Gunoun transita em seu texto entre um antes e

    um depois do fim da crise do drama.

    Evoco o episdio da montagem hngara de A opereta imaginria de e por Novarina junto a essa breve anlise de Denis Gunoun para desmistificar as abordagens evoluti-vas ou, pelo menos, causais do fenmeno artstico e tor-nar relativos esses parmetros de um antes e um depois.

    A crise do drama e o seu fim no chegam a ser um marco e sim um conceito para continuar traando parmetros para a dramaturgia. Dessa maneira, indica, sim, uma mudana na

    engenharia da pea teatral e no uma medida temporal. Ora,

    um sculo separa Stanislvski e Novarina, o que acarreta

    uma inevitvel diferena de ponto de vista. E justamente

    disso que se trata.

    Stanislvski debruou-se sobre o ator. Foi o primeiro

    a faz-lo e a expressar sob forma de dilogos e de notas

    o que enxergava, intua, deduzia na sua labuta diria co-

    mo ator e como encenador. Ele no se ateve a um nico

    foco, como os diversos artigos presentes neste nmero

    do Folhetim no se cansam de apontar. Mas, sem dvida

    6 Denis Gunoun. Objeo ao retorno, Folhetim. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, n. 8, p. 6, set.-dez. 2000.

  • 79

    folhetim 30

    Angela Leite Lopes

    nenhuma, Stanislvski enxergava o ser humano como su-

    jeito, dotado, por um lado, de corpo e, por outro, de espri-to, com redutos insondveis nesses seus domnios fsicos e psquicos. Concentrou-se em saber como estimular e como

    utilizar todos eles na arte de atuar, entendida por ele como

    viver um papel. 7

    Novarina debrua-se por sua vez sobre a palavra. Uma

    palavra que para ele o verdadeiro sangue. Uma palavra que fala, sopro, movimento, como se pode perceber, por exemplo, na acepo francesa do verbo ser: je suis diz ao mesmo tempo eu sou e eu sigo. Algo da ordem tanto do es-pao quanto do tempo. Ou seja, a lngua tudo menos uma

    sobra. Ela o nico lugar onde algo se d.

    A lngua no teu instrumento, teu utenslio, mas tua

    matria, a prpria matria da qual voc feito; os tra-

    tamentos aos quais voc a submete, a voc mesmo

    que voc inflige, e mudando a tua lngua, voc mes-

    mo que voc muda. Pois voc feito de palavras. No

    de nervos e de sangue. Voc foi feito pela lngua, com

    a lngua. 8

    Cito esse trecho do Teatro dos ouvidos quase que ao acaso: h inmeros outros que discorrem sobre essa sua

    ideia central. Como Stanislvski, Novarina tambm se di-

    rige ao ator de maneira privilegiada e dois de seus textos

    mais emblemticos so justamente Carta aos atores e

    7 Ver sobre esses temas os artigos que publiquei nos nmeros 6 e 9 do Folhetim: O ator e a interpretao (Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, jan.-abr. 2000) e Alm da interpretao: de Stanislvski a Grotowski (Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, jan.-abr. 2001).

    8 Valre Novarina. O teatro dos ouvidos. Trad. Angela Leite Lopes. Rio: 7Letras, 2011, p. 39-40.

  • 80

    folhetim 30

    O teatro e seu avesso

    Para Louis de Funs, respectivamente de 1974 e de 1985. Recentemente, Luzes do corpo, O avesso do esprito e A quarta pessoa do singular 9 do prosseguimento a essa sua contnua reflexo, enriquecida por experincias as mais di-

    versas: msica, pintura, filosofia, religio.

    E esse o ponto comum entre esses dois artistas: no

    distinguir o gesto artstico do gesto da reflexo. Fazer

    com que os dois confluam preferencialmente para a arte

    do ator.

    Na sua Preparao do ator, Stanislvski procura ofere-cer aos seus atores caminhos que os levem a viver o papel e assim fazer da atuao uma arte. A escolha pelos dilogos

    entre professor e alunos imaginrios certamente colaborou muito para que se viesse a apreender seu pensamento como mtodo a ser aplicado. Mas essa escolha remete no fundo

    aos primrdios do ato de pensar, desde os dilogos socr-ticos de Plato, trazendo para os ensinamentos algo desse

    movimento da palavra ao ser proferida, to cara a Novarina.

    Novarina por sua vez tambm se mostra ao mesmo tempo

    fascinado e intrigado com o que acontece com o ator. Ele

    chega a propor, em Carta aos atores:

    Ser preciso que um dia um ator entregue seu corpo

    medicina, que seja aberto, que se saiba o que acon-

    tece ali dentro, quando se est atuando. Que se saiba

    como o outro corpo feito. Porque o autor joga com

    um outro corpo que no o seu. Com um corpo que fun-

    ciona no outro sentido. Um corpo novo entra no jogo,

    na economia do jogo. Um corpo novo? Ou uma outra

    9 Cito tudo em portugus para facilitar a leitura desse artigo. Mas s Carta aos atores e Para Louis de Funs esto editadas no Brasil pela 7Letras (2009). Os outros trs livros, respectivamente Lumires du corps, LEnvers de lesprit e La Quatrime personne du singulier foram editados pela POL em 2006, 2009 e 2012.

  • 81

    folhetim 30

    Angela Leite Lopes

    economia do mesmo? No se sabe ainda. Seria preciso

    abrir. Quando ele est atuando. 10

    O desafio no se aproximar tambm da proposta de

    Novarina buscando resultados precisos. O fato de ele inse-

    rir muito humor nas suas reflexes pode servir de antdoto

    contra tais mistificaes. O humor est presente desde a

    escolha do cmico francs Louis de Funs como porta-voz

    imaginrio privilegiado das sentenas do autor at o des-vio constante das finalidades esperadas de determinadas atividades, como a dissecao para se descobrir a anatomia do outro corpo que o do ator em plena atuao. Ao mes-mo tempo, o humor serve como recurso para tornar suas reflexes absolutamente concretas. Eis como Novarina se

    refere mais uma vez aos atores hngaros por ele dirigidos

    em A opereta imaginria:

    Houve tambm, depois do perodo psicologizante, um

    perodo em que os atores hngaros faziam coisas mui-

    to abstratas, recusando arraigar as frases no dilogo

    cotidiano, na cadncia das frases das ruas. Era uma

    palavra sem interrogao, sem exclamao, sem ento-

    nao: sem a vivacidade da frase comum. Eles iam por

    um caminho errado, se tornavam exteriores e mecni-

    cos, inumanos como mquinas. Era preciso permane-

    cer inumano como homens. Inumanos como ningum.11

    Antes de mais nada, preciso fazer um parntese para

    esclarecer que ningum a traduo possvel de personne, palavra cara a Novarina por poder significar tanto algum

    10 Valre Novarina. Carta aos atores e Para Louis de Funs. Traduo de Angela Leite Lopes. Rio: 7Letras, 2009, p. 21.

    11 O. Dubouclez; V. Novarina, op. cit., p. 73.

  • 82

    folhetim 30

    O teatro e seu avesso

    quanto ningum. Como o aspecto que ele se empenha em

    valorizar no trabalho do ator o ato de desaparecer, em

    contraposio ao carter de exibio que est por assim

    dizer colado a essa funo, opto na maioria das vezes por

    traduzir simplesmente por ningum.

    Se juntarmos os sentidos presentes em personne e em je suis, temos a chave da operao artstica de Novarina e a sua principal contribuio na atualidade. Se Stanislvski

    participava, tanto pelo seu tempo quanto por seu tempe-ramento, do arcabouo final do sujeito, Novarina, por seu

    tempo e por seu temperamento, proclama que nada a no ser no perptuo vir a ser.

    Esse aspecto no pode ser expresso, traduzido, indicado

    seno no movimento que lhe prprio. Nada sem lingua-

    gem, Novarina gosta de citar essa afirmao de So Paulo.12 E o movimento que lhe prprio o que move a linguagem, a palavra, nosso verdadeiro sangue. E nos permite desco-

    brir, um sculo depois de Stanislvski, o teatro pelo avesso.

    O ator imita o homem? no, ele o joga! ele o traa no ar;

    ele lana antropglifos: figuras humanas que surgem e se desfazem. 13

    12 Valre Novarina. Valre Novarina no Rio: a onda da linguagem. Novarina em cena, organizado por Angela Leite Lopes em colaborao com Ana Kfouri e Bruno Netto dos Reys. Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2011, p. 17.

    13 V. Novarina. La Quatrime personne du singulier, op. cit., p. 92.

  • Opereta imaginria, direo de Valre Novarina. Teatro Csokonai, Debrecen Hungria. Fotos de Andrs Mth, 2009.

    Acima: Attila Kristn e Anna Rckevei. Abaixo: Kinga jhelyi e Tibor Mszros .