07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da França hoje

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    1/28

    HISTRIA SOCIAL Campinas - SP NO 3 127-154 1996

    TEMPO E HISTRIA: COMO ESCREVERA HISTRIA DA FRANA HOJE?*

    Franois Hartog**

    A frmula de Chateaubriand no prefcio dos seustudes historiques, A Frana deve recompor seus anais a fim de harmoniz-los com os pro-gressos da inteligncia, poderia figurar como epgrafe do Lieux de mmoire [Lugares de Memria] de Pierre Nora. No, evidentemente, que a situaofosse a mesma, mas para Chateaubriand depois de 1830 assim como paraNora no incio dos anos oitenta, tratava-se de partir de um diagnstico sobreo presente e averigu-lo. Para reconstruir sobre um novo patamar, diziaChateaubriand, necessrio perguntar, inicialmente, o que recompor querdizer no caso de Nora: Como escrever a histria da Frana hoje1?

    * Traduo de Ana Cludia Fonseca Brefe. Artigo originalmente publicado na revista Annales ESC , 1995, no 6, pp. 1219 1236. Somos gratos ao autor por seus esclare-cimentos relativos a esta traduo. Reviso de Cristina Meneguello.

    ** Franois Hartog diretor de estudos na cole des Hautes tudes en Sciences So-ciales, em Paris, e seus campos de pesquisa esto especialmente voltados para ahistoriografia e histria intelectual, antiga e moderna. autor, dentre outros, de Le XIX sicle et lhistoire:le cas Fustel de Coulanges, Premiers temps de la Grece - l Age de Bronze et lepoque archaique, Miroir d Herodote- essai sur la presentation de l autre.

    1 Les Lieux de mmoire, III, Les France, I (1993). Paris, Gallimard, pp. 11-32. Opresente artigo desenvolve o tema de uma conferncia apresentada no DarthmouthCollege, em julho de 1994, graas ao amvel convite dos professores L. D. Kritz-man e R. Stamelman.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    2/28

    128 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    De fato, os anos oitenta so o momento dos Lieux de mmoire(1984-1993). O projeto, concebido antes de 1989, foi finalizado posteriormente.Pensvamos ento no bicentenrio da Revoluo, mas a queda do muro deBerlim, com a qual ningum sonhava, pegou a todos desprevenidos. O proje-to situa-se, portanto, nos dois lados de 1989. Ele acompanha, registra e re-flete sobre a onda memorial que se estendeu sobre a Frana, depois de mea-dos dos anos setenta.2 suficiente mencionar, entre muitos testemunhospossveis, o filme Le Changrin et la Piti (1971), o livro de R. Paxton

    sobre Vichy (1972); Le cheval dorgueil(1977), de P. Jakes Hlias; Lesyndrome de Vichyde H. Rousso (1987),Os assassinos da memria(1987),de P. Vidal-Naquet, ou, num outro registro, a ativa renovao dos centroshistricos das cidades, a proliferao dos eco-museus ou o sucesso do temado patrimnio. Mas, de Chateaubriand Nora, notamos de imediato umadiferena em relao ao tempo: o novo patamar trazido pelo progressoda inteligncia remete a uma viso do tempo como progresso. Este era otema da perfectibilidade, ainda que no momento de empreender aquilo quese tornaria os Lieux, Nora considerasse somente o presente: o desapareci-mento rpido de nossa memria nacional parecia convidar-me a um invent-

    rio dos lugares onde ela seletivamente se encarnou.Os Lieux de mmoireforam uma empresa coletiva numa escala, deresto, absolutamente excepcional na edio francesa. Fernand Braudel teve aaudcia de se lanar a uma longa e solitria histria da Frana, nos moldesde Michelet, mas comeou muito mais tarde, no podendo explorar at o fimessa Identidadeda Frana na qual singularidade e permanncia se renem.Os Lieuxso tambm a obra de um historiador que nos d sua interpreta-o, no sentido musical do termo, suas Buscase, em outros termos (guar-dadas as devidas propores), sua Buscada histria da Frana. Eu gostariade questionar essa interpretao e o projeto intelectual que a sustenta privi-

    legiando, entre todas as outras dimenses, aquela da relao com o tempo.

    2 Talvez, essa onda tenha encetado o seu refluxo. Ver TODOROV, Tzvetan. 1995. Les abus de la mmoire. Paris: Arla.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    3/28

    FRANOISHARTOG 129

    Regimes de historicidade e escritas da histria

    Nos tempora sumus. Esta expresso de Santo Agostinho, Ns somostempo, conveniente para rejeitar a idia de um tempo que, assim como otempo astronmico, nos seria puramente exterior e sobre o qual no tera-mos nenhuma ao, tal como freqentemente para Braudel. Ainda na con-cluso de Lidentit de la France, a longa durao definida como umaenorme superfcie de gua quase parada que, insensvel mas irresistivel-mente, tudo arrasta sobre ela.

    Permitam-me aqui uma digresso e a introduo da noo de regimede historicidade. Entendo essa noo como uma formulao erudita da expe-rincia do tempo que, em troca, modela nossa forma de dizer e viver nossoprprio tempo. Um regime de historicidade abre e circunscreve um espaode trabalho e de pensamento. Ele d ritmo escrita do tempo, representauma ordem qual podemos aderir ou, ao contrrio (e mais freqentemen-te), da qual queremos escapar, procurando elaborar outra. Posso dizer que afrase emprestada de Tocqueville, Quando o passado no mais esclarece ofuturo, o esprito caminha nas trevas, esclarece meu propsito. Antes(quando o passado esclarecia o futuro, quando a relao do passado com ofuturo era regrada pela referncia ao passado) era o tempo dahistoriamagistra vitae[histria mestra da vida]. Quando, ainda em 1796, Chateaubri-and pensava que poderia iluminar, tendo nas mos o facho das revoluespassadas, a noite das revolues futuras, seu paralelo entre as revoluesantigas e modernas fazia parte daquele paradigma.3 Mas este antigo regimede historicidade se desfez. Na Frana, a Revoluo marcou a transformaodesta economia do tempo. Doravante, no mais o passado que deve escla-recer o futuro, mas, inversamente, cabe ao futuro esclarecer o passado.

    3 CHATEAUBRIAND, 1978.Essai historique, politique et moral sur les rvolutionsanciennes et modernes, consideres dans leurs rapports avec la Rvolution franaise. Paris, Gallimard. HARTOG, F. 1994 Les anciens, les modernes, lessauvages ou letemps des sauvages.Chateaubriand. Le tremblement du temps,BERCHET, J.C. (org.), Universit de Toulouse-Le-Mirail, pp. 177-200.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    4/28

    130 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    Tocqueville testemunhou essa inverso. Ele, para compreender o passadorecente da Frana, julgou necessrio fazer uma viagem ao futuro, Amrica,para descobrir l a nova sociedade mesmo se, aparentemente paradoxal, suatese essencial seja marcar a continuidade entre a monarquia e a Revoluo.

    So outros os aspectos do regime moderno de historicidade que seinstala entre o fim do sculo XVIII e o incio do sculo XIX. Reinhart Ko-selleck mostrou como, a partir de 1860, se formulava na Alemanhadie Neu- zeit [os novos tempos], em ruptura com o antigo regime de escrita da hist-ria organizado em torno da histria mestra da vida.4 Nesta perspectiva aRevoluo Francesa, segundo seus protagonistas e aqueles que quase imedi-atamente tentaram relat-la pode ser lida como um conflito entre dois regi-mes de historicidade. Do ponto de vista da histria, as caractersticas desteregime moderno, esclarecidas por Koselleck, so a passagem do pluraldieGeschichten[as histrias] para o singulardie Geschichte[a Histria]: a His-tria em si que, segundo a frmula de Droysen, se tornar conhecimento desi mesma. Ela concebida como processo, segundo a idia de que os acon-tecimentos advm no apenas no tempo, mas atravs (durch), dele.

    A exigncia de previses substitui as lies da histria. O historiadorno elabora mais o exemplar, mas est em busca do nico. Nahistoriamagistra, o exemplar reatava o passado ao futuro atravs da imagem domodelo a imitar. Com o regime moderno, o exemplar desapareceu para darlugar quilo que no se repete mais. O passado , por princpio, ultrapassa-do. O futuro, ou melhor, o ponto de vista do futuro comanda: A Histriatornou-se essencialmente uma intimao endereada pelo Futuro ao Con-temporneo. Para completar essa frmula de Julien Gracq, eu acrescentariaque a intimao se estende tambm ao passado e se impe aos historiadores

    que, ao longo do sculo XIX, organizaram e conceberam sua disciplina co- 4 KOSELLECK, R. 1990. Le futur pass. Contribution la smantique des temps

    historiques. J. e M.-C. Hoock (trad.). Paris, ditions de lcole des Hautes tudesen Sciences Sociales. (edio alem de 1979).

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    5/28

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    6/28

    132 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    sado por numerosas crises do tempo. Absolutamente o contrrio. Um re-gime de historicidade no uma entidade metafsica, descida do cu, masum quadro de pensamento de longa durao, uma respirao, uma rtmica,uma ordem do tempo que permite e que probe pensar certas coisas. Contes-tado to logo instaurado, um regime de historicidade reformula, reciclaelementos anteriores da relao com o tempo, para faz-los dizer outra coisade maneira diferente (tal como ahistoria magistraretomada pelo cristianis-mo e historiadores medievais). A passagem de um regime a outro conduz a

    perodos de cruzamentos: o perodo revolucionrio um bom exemplo disto.Um regime, enfim, no existe jamais em estado puro.Este no o lugar para retraar a histria ou os avatares desse regime

    moderno e, assim, limito-me a indicar duas crises: seu questionamento con-temporneo, sobre o qual me deterei um pouco pois ele proporciona justa-mente o contexto que tornou possvel os Lieux,e, antes ainda, a profundacrise que se manifesta em torno de 1914, antes da guerra e mais ainda depoisdela, nos anos vinte. Basta evocar aqui um nome: Walter Benjamin, queentre 1929 e 1940, contra o Historismuse aquilo que surgia como a falnciadefinitiva da filosofia hegeliana da histria, procurou formular um novo

    conceito de histria, operando a partir de um outro tempo histrico (contra otempo que ele caracterizava como homogneo, linear e vazio). Do mesmomodo, na Frana no fim dos anos vinte, alguns historiadores voltaram-separa uma histria econmica e social, contra a histria positivista, factual,poltica, nacional e superficial e em busca de profundezas e temporalidadesregradas por outros ritmos que a simples sucesso linear dos acontecimentospolticos. Mais profunda, mais ampla, adaptando-se aos ciclos, ela seria emsuma mais verdadeira. Esta deveria ser tambm uma forma de responderquilo que Maurice Halbwachs ento assinalou como o ritmo cada vezmais acelerado de uma vida social6.

    Em seguida, a despeito da catstrofe da Segunda Guerra Mundial, ou-tros fatores como a impossibilidade de fazer frente quilo que tinha ocorri- 6HALBWACHS, M. 1994. Les cadres sociaux de la mmoire, 1925. Paris: Albin

    Michel, p. 262.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    7/28

    FRANOISHARTOG 133

    do, as estratgias do esquecimento, a utopia revolucionria, as esperanas demudar a sociedade, a reconstruo, a modernizao, a planificao, a com-petio, a confrontao Leste-Oeste, os progressos econmicos e tcnicos,as mudanas rpidas, enfim, a acelerao da histria e do tempo concorre-ram igualmente para manter ou mesmo relanar o regime moderno de histo-ricidade e os hinos ao progresso: O futuro radioso socialista, o milagrealemo capitalista, osTrinta gloriososfranceses7. Pouco a pouco, todavia, ofuturo iria ceder terreno ao presente, que tomaria mais e mais espao at

    parecer ocup-lo inteiramente. Entramos, ento, no tempo do presentismo.

    O presentismo

    Eis aqui algumas referncias, sobretudo literrias, para ajudar a abor-dar este fenmeno massivo, que d sua fisionomia prpria ao sculo XX.Contra o passado, que tambm a morte, privilegia-se a vida e o presente.Pertencem a esta ampla corrente, em primeiro lugar, asConsideraes in-tempestivas(1874), de Nietzsche, mas tambmO imoralista(1902), deGide, ou o Helda Gabler , de Ibsen, ou ainda as reflexes nos anos trinta deValry sobre ou contra a histria8. Se quer responder ou escapar suafalncia, a histria, mesmo a profissional, deve provar que o passado no a morte, que ele no quer sufocar a vida. necessrio encontrar uma for-ma de relao entre o passado e o presente, de tal modo que o passado nopretenda ditar a conduta ao presente e tampouco permanea completamente

    7 Os Trinta gloriosos ou a Revoluo invisvel de 1949-75, obra de J. Fourastie(1979) que pe em evidncia o grande crescimento econmico da Frana nesse pe-

    rodo, mesmo em meio a aspectos negativos. (N.T.)8 Em muitas ocasies Lucien Febvre responde a Valry , abandonado-lhe a histria

    sem vida e reprovando-o de ignorar a histria viva. Conferir: FEBVRE, Lucien.1992.Combats pour lhistoire[Combates pela Histria]. Paris: Armand Colin, pp.24, 102 e 423.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    8/28

    134 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    inerte. Parece-me que a insistncia dos primeiros Annalessobre a necessriapreocupao com o presente tambm ganha sentido em relao a este con-texto intelectual. Em outro registro, a reflexo desiludida de T. S. Eliot tes-temunha o expansionismo do presente: In our age... there is coming intoexistence a new kind of provincialism which perhaps deserves a new name. It is a provincialism, not of shape, but of time; one for which... the world isthe property solely of the living, a property in which the dead hold noshares9. Os mortos no tem mais seu lugar, talvez nem mesmo qualquerlugar. A morte no tardar a se tornar obscena.

    A nuseade Sartre, publicada em 1938, fornece um outro indcio. Onarrador Roquentin escreve um livro de histria. De fato, ele trabalha emuma biografia do marqus de Rollebon (que se parece com Talleyrand). Masum dia, subitamente, torna-se impossvel continuar porque se impe a ele,como uma evidncia tangvel, que jamais haveria algo do presente alm doprprio presente. O presente era o que existe e tudo o que no era presenteno existiria. O passado no existia. De modo algum. O Sr. de Rollebonacabava de morrer pela segunda vez. De modo semelhante, as coisas pare-cem inteiras, mas atrs delas no h nada, o passado no nada. Vinte cin-

    co anos mais tarde, o mesmo Sartre escreveria As palavras, comeando as-sim: Na Alsace, por volta de 1850, um professor saturado das crianas,aceita se passar por merceeiro....

    A crtica do progresso. Certamente, otoposno novo, mas podemoslevantar, aqui, sua reativao e seu deslocamento por C. Lvi-Strauss, emseus Tristes Trpicos(1955), imediatamente famosos. Ele propunha umaverso renovada do bom selvagem no contexto da descolonizao. Sua apai-xonada defesa de Rousseau e sua crtica limitada estreita concepo doprogresso nas sociedades modernas terminavam numa meditao sobre o

    9 ELIOT, T.S.1957.On Poetry and Poets. Londres, p. 69. Em nossa poca...estsurgindo um novo tipo de provincianismo que talvez merea um novo nome. Umprovincianismo no de forma, mas de tempo; para o qual...o mundo propriedadesomente dos vivos, uma propriedade da qual os mortos no detm nenhuma parte.(N.R.)

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    9/28

    FRANOISHARTOG 135

    mundo que havia comeado sem o homem e acabaria sem ele e, assim, aantropologia deveria ser compreendida principalmente como entropologia.Nos anos seguintes, o selvagem torna-se moda: usa-se o pensamento selva-gem, analisa-se o pensamento mtico, valoriza-se o Selvagem contra oEstado, embora houvesse tambm repercusses e evases do mundo dosselvagens.

    O slogan esquecer o futuro provavelmente a contribuio dos a-nos sessenta ao estrito encerramento sobre o presente. As utopias revolucio-

    nrias, progressistas e futuristas em seu princpio, deveriam operar em umhorizonte que pouco ultrapassasse o crculo do presente:Tout, tout de suite!,diziam os muros de Paris em 1968. Neles se inscreve um pouco depois:No future. Vieram, com efeito, os anos setenta, as desiluses, a clivagem daidia revolucionria, a crise econmica de 1974, e as respostas mais ou me-nos desesperadas ou cnicas que, em todo caso, apostaram no presente, so-mente nele e em nada alm. Mas esse no era exatamente ocarpe diemdoshomens da Renascena.

    Nessa progressiva invaso do horizonte por um presente mais e maisampliado, hipertrofiado, est claro que a fora motriz foi o crescimento r-

    pido e as exigncias sempre maiores de uma sociedade de consumo, onde asdescobertas cientficas, as inovaes tcnicas e a busca de ganhos tornam ascoisas e os homens cada vez mais obsoletos. A mdia, cujo extraordinriodesenvolvimento acompanhou esse movimento que sua razo de ser, deri-va do mesmo: produzindo, consumindo e reciclando cada vez mais rapida-mente mais palavras e imagens.

    Passamos, portanto, em nossa relao com o tempo, do futurismo aopresentismo: a um presente que seu prprio horizonte, sem futuro e sempassado, ou engendrando quase diariamente o passado e o futuro, dos quaisnecessita quotidianamente. No faltam indcios desta atitude: a morte, sobrea qual Aris, vindo do tradicionalismo, foi o primeiro a chamar nossa aten-o, cada vez mais escamoteada; a valorizao crescente da juventude nassociedades que j comeavam a envelhecer; todas as tcnicas de supressodo tempo, graas ao desenvolvimento dos meios de comunicao (a comuni-

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    10/28

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    11/28

    FRANOISHARTOG 137

    acontecimento conquistou na sociedade industrial.12 Se o enfoque no pre-sente est certo e claramente reivindicado, o modo de ser do passado aque-le do surgimento no presente, sob o controle do historiador. Nora semprerecusou o princpio de uma ruptura estrita entre passado e presente comobase da histria moderna. Os Lieuxemanam do mesmo princpio. Enfim, aonos aproximarmos de meados dos anos oitenta, a impulso das histriasnacionais indica seguramente uma resposta diferente, mas qual questo?

    As falhas do presente

    A economia (miditica) do presente no cessa de produzir e de con-sumir o acontecimento. Mas com uma particularidade: o presente, no mo-mento mesmo em que se d, deseja ver a si mesmo como j histrico, como j passado, voltando-se de uma certa maneira sobre si e antecipando o olharque lhe dirigiremos quando ele for completamente passado, como se quises-se prever o passado, se tornar passado antes mesmo de ter advindo plena-mente como presente. Esse olhar aquele do presente sobre si mesmo. Um

    presente que seu prprio passado, ou, ainda, sonha com o domnio do tem-po ou, principalmente, com a sua supresso. Um exemplo entre dezenas deoutros possveis: os jornalistas entrevistaram, em 10 de maio de 1994, opresidente Mitterrand, exatamente um ano antes do fim do seu mandato.Todo o jogo consistiu em faz-lo falar como se estivssemos um ano maistarde, como se ele j tivesse partido ou mesmo morto e enterrado, pois pe-dia-se que ele indicasse o epitfio que escolhera para si!

    Simetricamente, nosso presente est ansioso por previses, seno porpredies. Ele se cerca de especialistas que consulta sem cessar (o historia-dor, quando solicitado, se mostra transformado em especialista). O pre-

    sente encontra seu abre-te ssamo nas pesquisas de opinio: projeo nofuturo, sem sair do presente. A resposta hoje, imagem instantnea, trans- 12 NORA, P. 1974. Le retour de lvnement. In: Faire de lhistoire. Paris,

    Gallimard, 1, pp. 225-6.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    12/28

    138 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    portada para seis meses adiante e tende insensivelmente a se tornar a ima-gem efetiva de situaes seis meses mais tarde. Aquilo que voc escolhehoje a imagem daquilo que voc escolher dentro de seis meses, daquiloque voc j escolhera. A durao somente introduzida sob a forma de umasrie que permite traar uma curva das pesquisas. Mas mesmo as pesquisasse enganam!

    Uma outra falha do presente surge por volta dos anos setenta. Essepresente, j inquieto, se encontra em busca de suas razes e identidades,

    preocupado com a memria e com as genealogias (sabemos do lugar tomadopelas pesquisas genealgicas nos arquivos), com a conservao (monumen-tos, objetos, modos de vida, paisagens, espcies animais) e ansioso peladefesa do ecossistema. Viver o pas e a ecologia tornam-se temas mobiliza-dores e em pleno desenvolvimento. Conservao e reabilitao substituram,notadamente nas polticas urbanas, o simples imperativo de modernizao,cuja brilhante e brutal evidncia no foi at agora questionada. Como sequisssemos preservar, reconstituir, um passado j desaparecido ou em viasde se apagar irremediavelmente.

    Dois exemplos esclarecem essa mudana de atitude em relao ao

    tempo. Touvier, o antigo chefe da milcia de Lyon, foi condenado por cri-mes contra a humanidade. Em 1972 ele tinha sido condecorado pelo presi-dente Pompidou e, em 1994, foi condenado. Ora, exatamente o mesmoTouvier. O tempo funcionou contrapelo: longe de trazer o esquecimento,ele reavivou, reconstruiu e imps a lembrana. Em 1970, Pompidou (cujovigsimo aniversrio de morte comemoramos de maneira balladuriana13 esem grande sucesso), lana a construo de um novo museu.de arte contem-pornea, o grande petroleiro de Beaubourg, e comea a destruio dos Hal-les. Como conseqncia um buraco (o Buraco dos Halles), que o novoprefeito de Paris, um tal Chirac, acabaria por preencher a seu modo. Fim de

    13Referncia irnica Edouard Balladur, ministro da Economia e das Finanas e daPrivatizao de 1986 a 1988 e primeiro ministro entre 1993 e 1995, cuja iniciativade comemorar o aniversrio de morte de Pompidou resultou num absoluto fracasso.(N.T.)

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    13/28

    FRANOISHARTOG 139

    1993, Mitterrand inaugura o grande Louvre, com sua pirmide de vidro, queapresenta um aspecto bem sucedido da arquitetura ps-moderna. O Louvre,que perdeu sua ltima funo rgia com a sada do ministrio das Finanas,tornou-se inteiramente espao museal: o primeiro lugar do patrimnio uni-versal da Frana (com sua galeria de compras no subsolo).

    Assim esse presente que reina aparentemente sozinho, dilatado,vaidoso, revela-se inquieto. Ele gostaria de ser o ponto de vista sobre simesmo e descobre a impossibilidade de se manter. No limite da ruptura, ele

    se mostra incapaz de preencher o espao que ele mesmo abriu, entre o cam-po da experincia e o horizonte da espera. O passado bate porta, o futurona janela e o presente descobre que o solo desmorona sob seus ps. Magrittepoderia ter pintado este quadro!

    Trs palavras resumem as mudanas:memria, mas trata-se de fato deuma memria voluntria, provocada (aquela da histria oral), reconstruda(da histria, para que se possa contarsua histria); patrimnio,1980 tinhasido decretado o ano do patrimnio. O sucesso da palavra e do tema (defesa,valorizao, promoo do patrimnio) vai ao lado da crise da noo de pa-trimnio nacional;comemorao,de uma comemorao a outra poderia

    ser o ttulo de uma crnica dos ltimos dez anos. Estes trs termos apontamtodos em direo a outro, que seu foco: a identidade.

    As comemoraes definem um novo calendrio da vida pblica, im-pondo-lhe seus ritmos e seus prazos. Ela se curva perante a elas e as utiliza,tentando conciliar memria, pedagogia e mensagens polticas para o mo-mento imediato. A visita de Mitterrand ao Panteo, em 10 de maio de 1981inscreve-se nessa perspectiva: descida inaugural ao pas dos mortos ilustresda Repblica, uma rosa mo (Michelet tinha um ramo de ouro), para revi-ficar os lugares desrticos e preparar-se para escrever uma nova pgina dahistria da Frana. Fomos, assim, de comemorao em comemorao, num

    ritmo acelerado. Todos os rearranjos em torno da memria ocorrem no mo-mento em que se aproximava a comemorao maior: aquela da Revoluo,que instigava a atualizar e a questionar o prprio fato de comemorar. Aquilonos valeu, em meio polmica, a comemorao dos 1000 anos da monar-

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    14/28

    140 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    quia capetngia, legitimada por uma missa solene com a presena do presi-dente da Repblica. A esta exploso comemorativa sucedeu imediatamente arajada de cinqentenrios da Segunda Guerra.

    Longe de ser um fenmeno somente francs, a comemorao flores-ceu um pouco em todos os lugares: a Alemanha, por exemplo, praticou-acom o mesmo ardor depois dos anos oitenta. suficiente mencionar o cin-qentenrio do nascimento de Lutero em 1983, o aniversrio dos setecentose cinquenta anos da fundao de Berlim em 1985, ou a (controversa) inau-

    gurao da Neue Wache [Nova Onda] em Berlim, em 1993, como memo-rial central da Repblica federal.14

    Memria-Histria

    Em 1974 foi publicadoFaire de lhistoire[Histria] e , dirigido porJacques Le Goff e Pierre Nora, que pretendia esclarecer e promover umnovo tipo de histria. A memria no fora includa entre os novos objetosou novas abordagens. Quatro anos mais tarde, o dicionrio de La Nouvellehistoire [A nova histria] comporta uma entrada Memria coletiva, redi-gida por Pierre Nora, em que se pode ler o primeiro esboo do programa dos Lieux de mmoire15. Em 1984 sai o primeiro volume dos Lieuxque, inician-do justamente com a comemorao, retorna em direo memria, interro-gando-se sobre a partillha entre histria e memria e se propondo a de-monstrar que a memria tambm tem uma histria. Para faz-lo, Nora ne-cessita de um instrumento heurstico: ser o lugar de memria.

    14FRANCOIS, .1994. Nation retrouve, nation contre-coeur. LAllemagne descommmorations. In: Le Dbat , 78, pp. 62-70.

    15 LE GOFF, J.; CHARTIER, R.; REVEL, J. (dir.) 1978.La nouvelle histoire. Paris.Trataria-se, escreveu Pierre Nora, de partir dos lugares, no sentido preciso do ter-mo, onde uma sociedade (...) registra voluntariamente suas lembranas ou as reen-contra como uma parte necessria de sua personalidade: lugares topogrficos (...)lugares monumentais (...) lugares simblicos (...) lugares funcionais (...): estes me-moriais tm sua histria, p. 401.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    15/28

    FRANOISHARTOG 141

    Se os historiadores sempre estiveram relacionados com a memria,tambm sempre suspeitaram dela. Tucdides j a recusava como no confi-vel: ela esquece, deforma, obedece a uma economia do prazer. O olho, aevidncia da autpsia, triunfa sobre a orelha. A histria cientfica do sculoXIX comeou por estabelecer uma ruptura clara entre o passado e o presen-te. isto que sempre fez de Michelet um transgressor, ele que atravessou ereatravessou tantas vezes o rio dos mortos. A histria deveria comear londe termina a memria: nos arquivos escritos.

    O texto de abertura dos Lieux,Entre memria e histria, parte damar memorial buscando analis-la e extrair-lhe as conseqncias do pontode vista das formas de escrita da histria e do exerccio do ofcio do histori-ador. Para Nora, indo quase que exaustivamente de um termo a outro comose procurasse um caminho entre eles, torna-se claro que a histria nacionalmodelo Lavisse seria, no fundo, uma memria passada pelo filtro da hist-ria, uma memria autentificada, transubstanciada em histria, no cruza-mento da histria crtica e da memria republicana: uma histria-memria.Em 14 de julho de 1790, escreveu Lavisse, a unidade nacional sucedeu aunidade monrquica que se revelou indestrutvel. Da a identificao daRevoluo com a Nao, da Nao com a Repblica, e da Repblica a umregime que podemos acreditar definitivo. Esta era a operao historiogrfi-ca de Lavisse. No restante, os vinte e sete volumes se contentavam com umanarrativa contnua, recortada em fatias cronolgicas sem surpresa e seminventividade, com indicaes das fontes. Dois tempos importantes sobres-saem no conjunto: oTableau de la geographie de la France,emprestado deVidal de la Blanche, e o Louis XIV do prprio Lavisse.

    Lavisse assinalava ainda esta singularidade concernente histria daFrana: se a Revoluo a tinha separado de seu passado, reconstru-la seria

    ento um trabalho de erudio e de histria, no de memria. O que legi-timava portanto a histria no seu papel de instrutora nacional, a pietas erga patriam, pressupunha o conhecimento da ptria. Estava clara a funo, oumelhor, a misso da histria.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    16/28

    142 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    Lavisse representou, certamente, um dos pontos de partida da reflexode Nora historiador. a ele que Nora consagrou um de seus primeiros arti-gos (Lavisse, o instrutor nacional e o infatigvel pedagogo da nao con-sumada, em 1962)16. A Histoirede Lavisse desempenhou, a, o papel delaboratrio. A Republique, primeiro tomo dos Lieux, resulta efetivamente daleitura crtica de Lavisse, um Lavisse visto nos bastidores, de onde se mostraa fabricao de uma histria nacional, ao mesmo tempo desmontando-acomo memria nacional, fazendo justamente um primeiro ensaio da noo

    de lugar de memria. Seria suficiente partir dos lugares comuns da Rep-blica (as Trs Cores, o 14 de julho, o Panteo...), desdobr-la e question-la,para chegar a uma primeira definio de lugar como aquilo que ao mesmotempo material, funcional e simblico: objeto insondvel, no qual o passadose acha recuperado no presente. Mas para Nora, hoje, o elo com estes luga-res simblicos tornou-se muito tnue: eles so como estas conchas que ficam nas margens quando o mar da memria viva se retira. Eles esto l,mas somente uma relao ativa que possamos manter com eles (o que os Lieuxpropem), uma relao de segundo grau, pode reativar aquilo que elesforam na histria.

    Em 1980, para entender o que acontece entre a memria e a histria eos lances dessa nova demanda por memria, Nora comea por se transportarpara um sculo atrs quando, conforme Lavisse, somente a histria estavaem questo. 1980 vem olhar 1880, e 1880, refletindo este olhar, devolve ainteligibilidade sobre 1980. A aproximao dos dois momentos , em simesma, esclarecedora: ele compreende que a histria de Lavisse , em seuprincpio, a memria (republicana) promovida dignidade de histria e quea exigncia contempornea de memria , de fato, uma demanda de histria.Ele tambm mostra que aquilo que estava atado nos anos de 1880-1890 (asntese republicana, com a sua santssima trindade laica da Repblica, Na-o e Frana) est, um sculo mais tarde, a um passo de se desatar. Em que

    16 NORA, P.1962. E. Lavisse: son rle dans la formation du sentiment national. In: Revue historique, juillet-septembre.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    17/28

    FRANOISHARTOG 143

    se transformam cada um desses termos, se o sopro do esprito republicanono os une mais, ou se eles tendem a retomar sua autonomia? O que resta daNao sem a Repblica? o fim da Frana?

    A enquete dos Lieuxps rapidamente em evidncia uma periodizaodas pulses memoriais: em torno de 1830 (com a obra de Guizot), de 1880(com a fixao dos rituais e da histria republicana), de 1980 (o ponto departida da enquete dos Lieux). Eu acrescentaria 1914, menos visvel semdvida, na medida em que no se traduz pela organizao de instituies

    centrais da histria ou pela produo de grandes histrias nacionais, retoma-das ou renovadas, mas sobretudo por uma contestao da histria oficial,uma valorizao da memria contra a histria e a busca de uma outra hist-ria, ou seja, de um outro tempo histrico.

    1914: O nome de Walter Benjamin, que pensa entre a Frana e a A-lemanha, basta aqui para designar e ilustrar esse momento de profunda crisedo tempo, que a guerra apenas reavivou. Ele se esforou por construir umnovo conceito de histria contra o historicismo, que pe em seu centro anoo de rememorao (Eingedenken). Forjando a noo a partir do pre-sente, ele estima, combinando messianismo e revoluo, que o tempo hist-

    rico nasce propriamente quando se opera uma conjuno fulgurante entrepassado e presente.

    Dessa crise do tempo, o prprio projeto de La Recherche du temps perdu [Em busca do tempo perdido] (da qual, alis, Benjamin foi tradutor) um outro sinal. Ele , para terminar esse livro vindouro que deveria justa-mente escrever o tempo, a forma do Tempo, depois que, na biblioteca doprncipe de Guermantes, a evidncia da idia do Tempo fora imposta aonarrador. Quase encontramos a o lugar de memria. Proust fala de lugardistante e de lugar atual e, de um ao outro, h a sensao do outrora coma ressurreio da memria que a irrupo do passado no presente. Assim, aSra. de Saint-Loup aparece ao narrador como uma espcie de lugar de me-mria. No seria ela, tal como nas florestas, as estrelas das encruzilhadasonde convergem as estradas, tambm em nossa vida, dos pontos os maisdiferentes? Vm desembocar nela os dois grandes caminhos onde ele teria

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    18/28

    144 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    feito tantos passeios e tantos sonhos. O livro termina nessa presena fsi-ca, completamente vertical, do tempo: O homem como se tivesse o com-primento, no de seu corpo, mas de seus anos de vida, est equilibradosobre as ondas vivas do tempo, algumas mais altas do que campanrios.Tal como o duque de Guermantes, vacilando sobre suas pernas.

    Proust conduz a Bergson e a suas anlises da durao. Desenha-se a toda uma configurao intelectual, que ultrapassa em muito a Frana. Pode-mos tambm reunir Charles Pguy, adversrio declarado e feroz da histria

    tal como a encarnaram Lavisse, Langlois e Seignobos. Contra a histria,Pguy (apoiando-se em Bergson) invoca a memria. Contra o sacrossantomtodo histrico, ele escolheu Hugo e Michelet. EmClio (julho de 1913),ele ope a histria essencialmente longitudinal a uma memria essenci-almente vertical. A histria passa ao longe, ou seja, ao largo. E a me-mria consiste, acima de tudo, estando dentro do acontecimento, em no sairdele, a permanecer nele e a remont-lo por dentro.17 Pguy no cessa evi-dentemente de sonhar com o Affaire: Eu diria, pronunciaria, enunciaria,transmitiria um certoaffaire Dreyfus, oaffaire Dreyfus real, de que todosns desta gerao fomos cmplices. No total, a histria inscrio, en-

    quanto a memria rememorao.Os historiadores profissionais ou no respondem a estes questiona-

    mentos - Lavisse publica a seqncia de sua Histria com LHistoire deFrance contemporaine(1789-1919) em 1922 - ou vo se desviar do nacionalpara o econmico e o social e para suas temporalidades em profundidade.

    1980: Todos constataram que, depois de meados dos anos oitenta, semultiplicaram e sucederam nas livrarias as Histrias de Franaou da Fran-a. Seria necessrio ver nisto um prolongamento do sucesso editorial que ahistria conhecera nos anos setenta, mas com uma clara alterao de rumo?Ao menos em princpio seria tambm uma resposta combinada crise dahistria na escola: as crianas no sabem mais as datas? E, em primeiro lu-gar, uma resposta de direita a uma histria dita de esquerda, antes que todo

    17 PGUY, C.1992.Oeuvres compltes III .Paris, Gallimard, pp. 1176-78.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    19/28

    FRANOISHARTOG 145

    mundo abrace a defesa, justamente, da Repblica? Uma primeira percepoinstitucional da escalada memorial e uma resposta, mais ou menos explcita, interrogao identitria? Mas poderiam os historiadores voltar a ser osinstrutores da Nao ou da Repblica, mesmo com a mediao da televiso?Em seus ltimos anos Braudel, que acabara de publicar a primeira parte desua Identit de la France,tornou-se, para grande surpresa, o encarregadodeste magistrio.18

    Uma rpida leitura dos prefcios destas primeiras Histrias convence

    que o encaminhamento intelectualmente mais interessante em relao aofenmeno da memria foi aquele proposto pelos Lieux de mmoire. Respon-dendo provocao memorial, ento em plena expanso, eles converteramas interrogaes em forma de questionamento da maneira pela qual as hist-rias da Frana tinham sido escritas. Como, em certos momentos chave, opassado (mas qual passado e o que do passado?) teria sido retomado no pre-sente, para faz-lo um passado significativo? Isso sem jamais perder de vistaque o objetivo de Nora, claramente fixado desde o incio (antes de ter segui-do essas vazes e retomadas do passado no presente dentro de toda umaretrica), o de se voltar em direo ao hoje, para tentar, assim instrudo

    pelo longo desvio, melhor compreender e melhor fazer compreender. Dopresente ao presente. uma contribuio ao debate, de certa maneira mili-tante, mas simplesmente cvico.

    O lugar, na primeira definio que Nora daria, o lugar que operaem La Rpublique.Nos trs tomos dos Lieux, encontramos essa definio emais duas. O tomo I La Rpublique, ponto de partida efetivamente necess-rio, culmina, todavia, em uma Repblica que se d a ver como sendo, elamesma, sua prpria memria. um percurso um pouco nostlgico de luga-res quase mortos ou bastante abandonados: o tempo praticamente passadode uma Repblica datada, que no se sustenta muito bem sobre suas altas

    18 Aps a publicao de seu livro, Braudel foi considerado autoridade no assunto esolicitado sempre que se tratava da identidade francesa. (N.T.).

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    20/28

    146 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    (talvez nem to altas) ondas do tempo. Nesse primeiro volume est a mor-talha de prpura em que dormem os deuses mortos.

    Para relanar a empresa e ir alm do simples face a face 1980-1880,conviria retomar a noo de lugar, retrabalh-la, propor-lhe uma concep-o mais ampla, mais dinmica sobretudo, para questionar as obras La Nation e Les France. Primeira extenso: o lugar designar, ao mesmotempo, as manifestaes mais evidentes da tradio nacional, os memoriaiscannicos e os instrumentos que concorreram para a sua formao, como o

    Dictionnarie pdagogiquede Ferdinand Buisson, mostrando como uns eoutros criam um sistema. Para alm dos memoriais repertoriados como tais,o lugar tambm deve permitir descortinar os blocos macios de nossasrepresentaes e de nossa mitologia nacional, revitalizar os lugares torna-dos comuns. Finalmente, o lugar de memria toda unidade significativa,de ordem material ou ideal, cuja vontade dos homens ou o trabalho do tem-po fez um elemento simblico do patrimnio memorial de uma comunidadequalquer.19 Samos do quadro do patrimnio nacional. Principalmente ahistria, sob a tica dos Lieux, uma histria de segundo grau, e Nora orepete incessantemente, uma histria simblica.

    Na contracorrente de Proust, a expresso lugar de memria remetes artes da memria, que nos conduzem arte oratria da Antigidade. Suadefinio foi dada por Ccero: O lugar,locus, o local (os cmodos de umacasa ou colunas) onde o orador convidado a ordenar asimagens das coisasque ele quer reter. Recomenda-se que ele escolha imagens vivas (imagesagentes). Neste sentido, os Lieuxusam uma concepo retrica da memria.O lugar do orador sempre artifcio. O mesmo vale para o lugar, segundoNora, que jamais simplesmente dado: ele construdo e reconstrudo semcessar.

    O que faz o lugar ele ser uma encruzilhada onde se encontram di-ferentes caminhos da memria, e tambm sua capacidade de ser incessan-

    19 NORA, P. Comment crire lhistoire de France. In: Les FranceI. Paris,

    Gallimard, p 20.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    21/28

    FRANOISHARTOG 147

    temente remodelado e continuamente retomado e revisitado. No melhor doscasos, um lugar de memria que perdeu sua destinao primeira nada mais que a lembrana de um lugar (por exemplo, Os Gauleses e Os Francosaps 1914). O volume I dosFrance, sob o ttulo Conflitos e partilhas(oumesmo Conflitos partilhados), traz a melhor demonstrao disso. O lugaralargado permite a inveno de lugares novos (objetos) e a interrogaopermite a inveno de lugares devidamente marcados como tais. A anliseminuciosa da direita e da esquerda, o desdobramento dessas duas noes-

    memria por Marcel Gauchet, em que possvel ler toda a histria modernada Frana, traz uma explicao convincente. No estamos, portanto, nem noinventrio dos altos lugares nem no catlogo da Redoute20 nem em umahistria ps-moderna, nem obrigatoriamente na histria dos vencedores.

    Partindo da surpresa diante do sucesso do fenmeno comemorativo,Nora pode, no final do seu percurso, mostrar o que ele chama de a inversoda dinmica da comemorao. No cessamos de comemorar em nome datrilogia Memria, Identidade, Patrimnio, mas a palavra mesma mudou desentido. No incio a comemorao foi religiosa (Faa isto em minha mem-ria: no momento mesmo em que a Ceia acontece, ela j dada como a ser

    comemorada; ela inclui a ausncia); os rituais monrquicos no assinalavama comemorao (o rei est morto! viva o rei!), que depois se torna comemo-rao, atravs da transferncia da sacralidade nacional, republicana e laicacom o Quatorze de julho, no qual 1880, 1789 e 1790 se correspondem e seprevem mutuamente. A seu modo, Pguy havia dito emClio: A tomadada Bastilha foi propriamente uma festa, foi a primeira celebrao, a primeiracomemorao e por assim dizer o primeiro aniversrio da tomada da Basti-lha... A festa da Federao no foi a primeira comemorao, o primeiro ani-versrio da tomada da Bastilha. A tomada da Bastilha foi a primeira festa daFederao, uma Federaoavant la lettre.21

    Hoje porm, segundo Nora, a comemorao tornou-se patrimonial, ouseja, irradiada ou desnacionalizada, mesmo quando ela quer se fazer reco- 20 Grande loja de departamentos francesa que faz vendas atravs de catlogo. (N.T.)21 PGUY, C.Op. cit., pp. 1083-84.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    22/28

    148 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    nhecer pelo Estado, que quase no se reencontra mais na noo de patrim-nio nacional.22 Mais precisamente, a nao em si mesma se transforma empatrimnio (ao passo que, doravante, o patrimnio entendido menos comoum bem que possumos e mais como aquilo que constitui nossa identidade).Como se a Frana deixasse de ser uma histria que nos divide para se tor-nar um cultura que nos rene.23 Nesse movimento que conduz do polticoao cultural, Nora marca a emergncia de um nacional sem nacionalismo.A Frana do final do sculo XX estaria a um passo de se tornar umaKultur

    Nation, enquanto a Alemanha, que havia tomado este caminho em resposta ausncia de uma unidade poltica, reencontra-se como uma nao, talvez fora mas no podendo se poupar da questo do nacional. Estaria a o come-o de uma interessante troca histrica.

    Em todo caso, restringindo-nos Frana, teramos passado, com aTerceira Repblica e sob o magistrio de Lavisse, de uma memria (republi-cana) transmutada em histria a uma histria que hoje se viveria, seria lida ereapropriada por uns e por outros como memria, sob o estmulo do deverde memria. Os ltimos dez ou quinze anos marcariam, ento, a passagemda nao histrica nao memorial.

    Os Lieux, um pouco comoEm busca do tempo perdidoterminam emum livro futuro que seria a verdadeira Histria da Frana, tal como pode-ramos escrev-la hoje, e que so os livros que acabamos de ler! Tomandouma outra referncia literria (e Nora no se poupa desse recurso, pois hnele uma tentao e uma ambio literria e a convico de que literatura ehistria se comunicam), os Lieuxpodem tambm serem lidos como um Bildungsroman.24 Que resta da Repblica, pergunta ele, quando lhe reti-ramos o jacobinismo centralizador (...)? Que resta da Nao quando lhe

    22 LENIAUD, J.-M.1992. Lutopie franaise. Essai sur le patrimoine. Prface deMarc Fumaroli. Paris, Mengs.

    23 NORA, P.Op. cit . p. 29.24 Romance de aprendizagem, pedaggico. Estilo prprio ao fim do seculo XVIII,

    inicio do XIX, sobre um jovem heri (ou herona) e seu amadurecimento, como p.ex. A montanha mgica,de T. Mann ou David Copperfiled,de C. Dickens. (N.R.).

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    23/28

    FRANOISHARTOG 149

    retiramos o nacionalismo (...)? Que resta da Frana quando lhe retiramos ouniversalismo? Uma aprendizagem de si. Assim se acaba, se posso escrev-lo cum grano salis,25 o romance de aprendizado de Pierre Nora.

    Os Lieux como sintoma

    Os Lieuxforam considerados sobretudo um diagnstico da situao

    presente e uma resposta a essa situao, e tambm um prognstico. Parafinalizar, gostaria de prolongar algumas das minhas observaes, encarandoos Lieuxcomo um sintoma. Evidentemente, eles pertencem ao momento aoqual se consagram a configurar, mas a maneira pela qual eles operam nosalgo mais sobre nosso presente. Pela permanente preocupao historiogrfi-ca que os atravessa, eles testemunham, com efeito, esta tendncia do presen-te a se historicizar. No se trata de egocentrismo, mas de explicitao dospressupostos do trabalho do historiador.

    A exemplo da unidade nacional criada pela Revoluo que, paraLavisse, era definitiva e indestrutvel, sua Histoirese apresentava como a

    histria definitiva da nao acabada, endereada ao presente e ao futuro:uma espcie dektmapara sempre.26 Tratava-se de aperfeioar a Repblica,mas nada de fundamental deveria mudar. ainda nisto que Lavisse gostariade poder acreditar em 1921, quando redigiu a concluso de sua Histoire, naqual chegara at 1919. Os Lieux de mmoirese pretendem uma histria dopresente, para o presente, respondendo crise do presente, j que este, con-forme afirma Nora, tornou-se a categoria de compreenso de ns mesmos.Se h um momento dos Lieux, os Lieuxso portanto, tambm, os lugaresdo momento, ou lugares para o momento. Histria da Frana para o hoje, osLieux escrevem tambm (conscientemente) uma histria de nosso presente.

    25Com um gro de sal, com uma pitada de malcia. (N.R.)26Uma possesso, um dado adquirido para restar atravs dos tempos. Aluso ex-

    presso utilizada por Tucdides no Livro I da Histria da Guerra do Peloponeso. (N.R.)

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    24/28

    150 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    Resulta que, para Nora, o historiador no pode mais ser aquele que atravessapassado e futuro, pontfice como Monod ou profeta como Michelet, que lia,no passado, o futuro advindo ou a advir, e o proclamava. Se ele ainda a-quele que atravessa, o faz apenas no interior do crculo do presente, entre ademanda cega e a resposta esclarecida, entre a presso pblica e a solitriapacincia do laboratrio, entre aquilo que ele sente e aquilo que ele sabe.

    Mas o presente e o presentismo que o acompanham se revelaram in-sustentveis. tambm possvel interpretar a demanda de memria como

    uma expresso desta crise de nossa relao com o tempo e uma forma deresponder-lhe (mas a memria que se reclama e se proclama no transmis-so, mas precisamente reconstruo de um passado ignorado, esquecido,falsificado, ao qual ela deve permitir a reapropriao e at mesmo a reativa-o). Um dos problemas que se apresentam atualmente o de restabeleceruma circulao entre o presente e o passado, e tambm o futuro, sem nosabandonarmos tirania de nenhum dos trs termos.

    Ora, a epistemologia desenvolvida nos Lieuxao mesmo tempo que a-presenta e reivindica a centralidade do presente, a contorna e dela escapa.Como? Fazendo justamente da passagem do passado ao presente, de sua

    comunicao que caracteriza o funcionamento da memria, o ponto de par-tida de sua operao historiogrfica: converter a memria no em contedo,mas em forma do questionamento histrico e da escrita da histria. J evo-quei aqui que o historiador clssico comeava por estabelecer a clara sepa-rao entre os dois (a histria deveria ser somente a cincia do passado e ohistoriador um simples olhar flutuante no silncio dos arquivos). Na contra-corrente, a lgica dos Lieuxleva a considerar o prprio historiador como umlugar de memria. Encontramos a figura de Michelet, mas tambm a de No-ra, editor dosEnsaios de ego-histria.27

    Mais globalmente, nos ltimos dez anos, vemos um sinal dessa rela-o diferente com o tempo no movimento de retorno sobre si mesmas que asdisciplinas, inclusive as cientficas, as instituies e mesmo as empresas

    27 Essais dego-histoire.1987. Paris, Gallimard.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    25/28

    FRANOISHARTOG 151

    conheceram, repentinamente preocupadas com seus arquivos e sua histria.A disciplina histrica tambm conhece essa perspectiva e esse encaminha-mento historiogrficos, notadamente como trabalho reflexivo sobre seuspressupostos e suas prticas,28 mas a empresa dos Lieuxos impulsionou paramais longe, se esforando em incluir sua prpria historiografia na medida deseu prprio desenrolar.

    Sintoma, ela o tambm no sentido de que o lugar de memria obtevesucesso: ele ascendeu rapidamente ao uso e aos fatos, at mesmo lei. Clas-

    sificao a ttulo de lugar de memria do Olympia ou do Fouquets.29

    Olugar veio em socorro do Patrimnio nacional, transbordado e ultrapassa-do. Concebido em um regime de histria nacional, o Patrimnio, aquele daDireo do Patrimnio do ministrio da Cultura e da lei de 1913, se viu,com efeito, intimado a responder s demandas de uma memria nacionalirradiada. Parece que o lugar poderia fornecer a categoria que os legislado-res da Terceira Repblica no puderam evidentemente conceber. Mas, derepente, o lugar encontra-se recuperado pelo fenmeno histrico que teriaconduzido a sua elaborao e sobre o qual ele pretendia projetar, inversa-mente, a sua inteligibilidade. O instrumento cognitivo que deveria servir

    para cercar e melhor compreender a invasora comemorao tornou-se, elemesmo, um elemento a mais do dispositivo, chamado a socorrer o Patrim-nio e a comemorao. Prova de que o diagnstico de Nora acertado, embo-ra corra o risco de ver sua empresa dirigida unicamente atualidade e con-sumida pelo prprio fenmeno que ela ajudaria a compreender.

    Os Lieuxtambm so sintoma do hoje quanto concepo de mem-ria neles utilizada. Suponhamos por um instante esta enquete dos lugaresfeita h vinte anos, e estou convencido que o inconsciente (lapso, o vazio dememria, a anamnsia, o deslocamento etc.) teria desempenhado um papel

    28 Ver, por exemplo: BOUTIER, J. & JULIA, D. (dir.)Pass recomposs. Champset chantiers delhistoire. 1995. Paris, ditions Autrement.

    29 Olympia, uma casa de shows e Fouquet, um dos restaurantes mais requintados ecaros de Paris. (N.T.)

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    26/28

    152 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    importante. A memria dos Lieux uma memria sem inconsciente, salvometafrico, no por princpio mas de fato: eu falo da concepo retrica dolugar. O investigador no visa mais atingir o impensado do lugar, mas sobre-tudo reconstituir aquilo que o tornou pensvel. Da, talvez, uma certa difi-culdade de dizer os no lugares, ou os maus lugares de histria ou damemria nacional?

    O apelo memria manisfesta a crise do presentismo (os Lieuxaveri-guam essa demanda e lhe respondem de maneira crtica, propondo o lugar

    como instrumento cognitivo). Entendo o presentismo, assim nomeado pelareferncia e oposio ao futurismo, como a expresso de um profundo ques-tionamento do regime moderno de historicidade. O futuro, o progresso e asideologias que a ele se prendem perderam sua fora de convico no mo-mento mesmo que a distncia entre horizonte de espera e campo da experi-ncia tornaram-se mximos. notvel como, atualmente, a reintroduo dadimenso do futuro se d principalmente pelo desvio da preocupao com aconservao: sobre um modo negativo, para impedir, ou simplesmente retar-dar a destruio, o empobrecimento, a poluio de nosso mundo. O sucessoda ecologia pressupe um reconhecimento partilhado da conservao, em si

    mesma, como valor.E veio 1989, que simboliza o 9 de novembro com a queda do muro de

    Berlim e o fim da ideologia que se concebera como o degrau mais alto damodernidade. No o fim da histria, mas hipoteticamente, fim ou quebra noregime moderno de historicidade. Depois de 1989, podemos apreender me-lhor as novas relaes com o tempo que se procura. Fim no significa queno haja mais futuro, mas que se reconhea que, mais que nunca, ele im-previsvel (tanto quanto 1989 obriga a repensar o mundo e que as regras do jogo mudaram). Do ponto de vista do passado, o fim da tirania do futuroteve como conseqncia torn-lo opaco, faz-lo igualmente um passado emgrande parte imprevisvel.30 No se trata apenas de contingncia, tal como

    30 Sobre as reviravoltas do tempo histrico na Rssia, ver: GARROS, V.1992. Danslex-URSS: de la difficult dcrire lhistoire. In: Annales ESC,n. 4-5, pp. 989-1002.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    27/28

    FRANOISHARTOG 153

    na crtica de R. Aron causalidade segundo Simiand. Esse passado reaberto,nem linear e nem unvoco, um passado que vamos percorrer como umcampo onde se entrecruzam os passados que foram um tempo de futurospossveis: alguns vieram a ser, outros foram impedidos, massacrados.31 Os Lieux, mostrando como certos lugares so cristalizados, remodelados,deformados e esquecidos participam, indiscutivelmente, de um inventriocrtico da histria-memria da Frana. Atentos a toda economia do passadono presente, eles propem um modo de circulao entre passado e presente.

    1989 tambm conduziu ou reconduziu a nao ao primeiro plano: anao causa furor ou pelo menos, traz problemas. Ferimos muitos em seunome e sob o seu manto. Entretanto, convm no negligenciar que a questonacional surgira antes de 1989. Estas questes, de forma e intensidade vari-veis, podem se reatar, de certo modo, crise do presentismo. Elas so umaexpresso e uma forma de responder a ele. Mas na Alemanha ainda noreunificada, que se definiria voluntariamente como um Estado ps-nacional,os anos 1980 viram a publicao de inmeras Histrias da Alemanha, tantoquanto se multiplicaram os colquios sobre a identidade alem, no momentoexato em que estvamos convencidos - dos dois lados - do carter durvel da

    ruptura entre os dois Estados. Na Frana, os Lieuxlevaram a reconhecer, aomesmo tempo, a presena do nacional e sua profunda transformao. Noseria mais a nao messinica, mas uma nao-patrimnio, ou ainda umanao como cultura partilhada, portadora de um nacional sem nacionalismo,vivendo pacificada dentro de uma Frana qual restaria cultivar sua mem-ria como se cultiva um jardim. esta considervel mutao que os Lieuxseesforam em mostrar, acompanhando-a e formulando-a. Este seria o momen-to dos Lieux.

    H garantias disso? Esse deslocamento de um modelo de nao paraoutro to claro e irreversvel? Aquilo que se passa nos ltimos seis anos a

    31 RICOEUR, P.1985.Temps et rcit III [Tempo e narrativa].Paris, ditions du Seuil,p. 313. LEPETIT, B. 1995. Le prsent de lhistoire In: Les formes delexprience. Une autre historie sociale. Paris, Albin Michel, pp. 295-8.

  • 8/8/2019 07-HARTOG, Francois - Tempo e Historia - Como escrever a historia da Frana hoje

    28/28

    154 TEMPO EHISTRIA: COMOESCREVER AHISTRIA DAFRANAHOJE?

    Leste, mas tambm a Oeste e na prpria Frana leva a reabrir a questo.Como a Alemanha viver como nao? E a Europa, o que pode ela ser? Co-mo fazer sua histria? Em todo caso, hoje, os historiadores no podem es-camotear a questo da histria nacional. Como escrev-la ou reescrev-la,sem reativar ahistoria magistra, a tirania do passado nem os pressupostosdo sculo XIX, unindo progresso e nao, nacional e nacionalismo? Nesteaspecto, com cincia e inventividade os Lieuxbalizaram um caminho a seretomar e levar adiante, em uma perspectiva decididamente comparativista,

    e colocaram uma noo nossa disposio.32

    Escrever tambm propor umaresposta questo de como circular entre passado, presente, e tambm futu-ro. Porm, um futuro liberto de pretensiosos futurismos e pouco monopoli-zado pelos futurlogos, estes de atitude sria e sempre certos de suas opi-nies (e afinal, o que aconteceu com eles nestes ltimos anos?)

    32 Le Dbat , 78, 1994.