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A GENEALOGIA DOS DEUSES: COMPARANDO HESÍODO COM APOLODORO Como proémio à análise comparativa das obras de Hesíodo, Teogonia, e de Apolodoro, Biblioteca, no que diz respeito à genealo- gia e ao nascimento dos deuses olímpicos, será talvez oportuno efec- tuar uma sintética biografia dos supracitados autores, visando, sobre- tudo, estabelecer o enquadramento histórico-cronológico das suas obras. Atentando ao que Braudel escreveu sobre a narração precipi- tada, dramática e de pouco fôlego sobre os acontecimentos marcados pelo tempo breve, típica da história tradicional 1 , não será legítimo atribuir as obras de Hesíodo e Apolodoro exclusivamente aos seus génios pessoais. De facto, Teogonia e Biblioteca foram também fruto das épocas em que os autores viveram, dos espaços sócio-económicos em que se moveram, dos paradigmas culturais que hauriram e da pró- pria mentalidade vigente que eles fixaram por escrito nas suas obras. Tampouco se reconstituiria a realidade sobre as épocas dos refe- ridos autores (época arcaica para Hesíodo e, para Apolodoro, a época helenística, segundo alguns, ou o tempo de Castor e Cícero, segundo outros) se nos restringíssemos a uma particularidade local (e.g., a Beócia de Hesíodo) ou a uma qualquer série diacrónica de factos de matiz político (e.g., a derrota de Perseu em Pidna em 168 a.C., o saque de Corinto pelos Romanos em 146 a.C. e o saque de Atenas por Sula em 86 a.C.). Há todo um tempo conjuntural para as estruturas sociais que pode compassar com a cadência a que se desenrolam os acontecimentos sócio-económicos e confluir para a sociedade grega dessas épocas, tal como afirmou Braudel 2 . _________________ 1 Vide F. Braudel, História e Ciências Sociais, Lisboa, 1990 6 , 9. 2 Idem, ibid., 12. Segundo C. Mossé e A. Schnapp-Gourbeillon, Síntese da História Grega, Porto, 1994, 136 e passim, a época arcaica, em que Hesíodo viveu, é o tempo da evolução para a fixação, e da fixação, da pólis; o tempo da génese da implementação da Democracia ateniense em consequência da crise agrária da sociedade aristocrática, da «revolução» hoplita, da emergência dos artesãos e da invenção da moeda; o tempo do

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  • A GENEALOGIA DOS DEUSES: COMPARANDO HESODO COM APOLODORO

    Como promio anlise comparativa das obras de Hesodo, Teogonia, e de Apolodoro, Biblioteca, no que diz respeito genealo-gia e ao nascimento dos deuses olmpicos, ser talvez oportuno efec-tuar uma sinttica biografia dos supracitados autores, visando, sobre-tudo, estabelecer o enquadramento histrico-cronolgico das suas obras. Atentando ao que Braudel escreveu sobre a narrao precipi-tada, dramtica e de pouco flego sobre os acontecimentos marcados pelo tempo breve, tpica da histria tradicional1, no ser legtimo atribuir as obras de Hesodo e Apolodoro exclusivamente aos seus gnios pessoais. De facto, Teogonia e Biblioteca foram tambm fruto das pocas em que os autores viveram, dos espaos scio-econmicos em que se moveram, dos paradigmas culturais que hauriram e da pr-pria mentalidade vigente que eles fixaram por escrito nas suas obras.

    Tampouco se reconstituiria a realidade sobre as pocas dos refe-ridos autores (poca arcaica para Hesodo e, para Apolodoro, a poca helenstica, segundo alguns, ou o tempo de Castor e Ccero, segundo outros) se nos restringssemos a uma particularidade local (e.g., a Becia de Hesodo) ou a uma qualquer srie diacrnica de factos de matiz poltico (e.g., a derrota de Perseu em Pidna em 168 a.C., o saque de Corinto pelos Romanos em 146 a.C. e o saque de Atenas por Sula em 86 a.C.). H todo um tempo conjuntural para as estruturas sociais que pode compassar com a cadncia a que se desenrolam os acontecimentos scio-econmicos e confluir para a sociedade grega dessas pocas, tal como afirmou Braudel2. _________________

    1 Vide F. Braudel, Histria e Cincias Sociais, Lisboa, 19906, 9. 2 Idem, ibid., 12. Segundo C. Moss e A. Schnapp-Gourbeillon,

    Sntese da Histria Grega, Porto, 1994, 136 e passim, a poca arcaica, em que Hesodo viveu, o tempo da evoluo para a fixao, e da fixao, da plis; o tempo da gnese da implementao da Democracia ateniense em consequncia da crise agrria da sociedade aristocrtica, da revoluo hoplita, da emergncia dos artesos e da inveno da moeda; o tempo do

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    Pesa ainda o facto de, por vezes, e na ptica da longa durao histrica que um prisma reproduz e em que se enquadram as evolu-es culturais e mentais e, portanto, as religiosas, a aco humana no passado ter decorrido segundo cadncias consideravelmente lentas que so dominadas pelas estruturas fixas de coerncia entre realidades e massas sociais e pelos enquadramentos mentais. De facto, isto concomitante com o que Braudel estabeleceu3.

    Acresce que, na esteira de Propp e para autores como Lvi-Strauss, a questo do estudo dos mitos reside em descobrir aquilo que comum em todos os cdigos ou elementos invariantes das diferentes narrativas, as estruturas, traduzindo o que est expresso na linguagem ou cdigo numa expresso de outra linguagem diversa4. Apesar da partilha de estruturas comuns, as diferenas culturais existem. No existem por vontade pr-determinada dos povos, mas porque assim o determinaram condicionalismos vrios5.

    Alm das estruturas do mito e das suas narrativas, e na esteira de Malinowski, Burkert estabelece que, mais do que o seu contedo, a funcionalidade do mito transposto para o comportamento da socie-dade humana que se revela crucial para o seu estudo: O que sur-preendente aqui que para a religio da plis pressuposto e enun-ciado explicitamente aquilo que o mundo dos deuses, manifestamente, no lhe pode realizar: o facto de ser o fundamento da ordem moral. _________________

    surgimento de uma ruptura na mentalidade que gera uma nova sensibilidade religiosa com continuidade diacrnica assegurada com cultos ancestrais como o de Demter em Elusis; o tempo da colonizao grega do Mediterrneo.

    3 Cf. F. Braudel, op. cit., 10.

    4 C. Lvi-Strauss, Mito e Significado, Lisboa, 2000, 23: As histrias

    de carcter mitolgico so, ou parecem ser, arbitrrias, sem significado, absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte. Uma criao fantasiosa da mente num determinado lugar seria obrigatoriamente nica no se esperaria encontrar a mesma criao num lugar completamente diferente.

    5 Idem, ibid., 34: Na realidade, as diferenas [culturais] so

    extremamente fecundas. O progresso s se verificou a partir das diferenas.

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    (...) Sem o medo dos deuses, caem todas as barreiras morais. (...) A religio, a moralidade e a prpria organizao da sociedade revelam-se indissoluvelmente ligadas entre si na instituio do juramento. (...) Assim, todas as formas essenciais de comunidade no s foram orna-mentadas, mas tambm forjadas pela religio. (...) Paralelamente, havia inmeras comunidades cultuais que se misturavam com as estruturas familiares.6.

    Lvi-Strauss, um estruturalista, tambm reconhece que, alm de se desvendarem as estruturas dos mitos, o realce do seu papel funcio-nal nas sociedades crucial para a reconstituio histrica: Se se souber que um povo, seja ele qual for, determinado pelas necessida-des mais simples da vida // est-se apto a explicar as suas institui-es sociais, as suas crenas, a sua mitologia e todo o resto.7. Os mitos, como outras realizaes da Humanidade, surgem pois como forma de introduzir ordem num determinado sistema, dando-lhe signi-ficado8. _________________

    6 Vide W. Burkert, Religio Grega na poca Clssica e Arcaica,

    Lisboa, 1993, 473 e passim. 7 Cf. C. Lvi-Strauss, op. cit., 29-30. W. Burkert, Mito e Mitologia,

    Lisboa, 1991, 18, estabelece aquilo que Lvi-Strauss corrobora, ao afirmar que o mito no se define pelo seu contedo, mas sim pela sua funcionalidade no mundo.

    8 Cf. C. Lvi-Strauss, op. cit., 63, afirma: No ando longe de pensar

    que, nas nossas sociedades, a Histria substitui a Mitologia e desempenha a mesma funo, j que para as sociedades sem escrita e sem arquivos, a Mitologia tem por finalidade assegurar, com elevado grau de certeza a certeza completa obviamente impossvel que o futuro permanecer fiel ao presente e ao passado. P. Grimal, A Mitologia Grega, Mem Martins, 19892, 15 e passim, corrobora as opinies de Lvi-Strauss, de Burkert e mesmo de Braudel: () Todos os povos, num momento da sua evoluo, tiveram lendas, isto , narrativas maravilhosas s quais acrescentaram, durante algum tempo, a f pelo menos at certo grau. A maior parte das vezes, as lendas, porque fazem intervir foras ou seres considerados como superiores aos humanos, pertencem ao domnio da religio. Apresentam-se, ento, como um sistema, mais ou menos coerente, de criao do mundo, sendo criador cada um dos gestos do heri de quem se cantam os feitos e acarretando

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    Afigura-se assim pertinente efectuar algumas comparaes com mitologias diferentes da grega, com o intuito de salientar as estruturas significantes comuns ou distintas. o caso, por exemplo, da compara-o com os mitos hititas (povo tambm indo-europeu) que constituem o Ciclo de Kumarbi e os que constam da Teogonia hesidica. Tal como refere Bernab9, apesar das mltiplas coincidncias que se podem encontrar entre estas narrativas mitolgicas, tambm existem diferenas suficientemente acentuadas que as tornam distintas. Poderia ter-se a noo errada de que os mitos do Ciclo de Kumarbi tinham sido assimilados de forma acrtica pelos Helenos, sem modificaes especficas, ou que a afinidade ideolgica entre as culturas hitita e grega era acentuada. Esta presuno seria incorrecta, pois, na ptica de Bernab10, as concepes religiosas dos supracitados mitos so profundamente diversas. Assim, apesar das aces comuns a todas as civilizaes humanas, nomeadamente as que se referem satisfao das suas necessidades bsicas e fisiolgicas ou de impulso sexual, o envolvimento cultural ou entendimento que cada civilizao tem delas distinto, na medida em que esse entendimento abrange tambm conceitos scio-familiares, uso de tecnologia, intercmbio econmico, linguagem, arte e religio.

    precisamente atravs das caractersticas peculiares dos mitos e dos ritos de cada povo que ele exprime a sua religiosidade de forma idiossincrtica e reproduz a sua mundivivncia, razo pela qual se

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    consequncias que se repercutem no universo inteiro. () O mito no espartilhado nos seus termos. Ele esboa uma imagem, um smbolo, se quisermos, de uma realidade que seria, de outro modo, inefvel. () Verifica-se que o mito no uma realidade independente, mas que evolui com as condies histricas e tnicas e, por vezes, conserva testemunhos imprevistos sobre estados de outro modo esquecidos..

    9 Vide A. Bernab, Los Mitos Hititas sobre Kumarbi y la Teogona de

    Hesodo: Semejanas en la Forma y Diversidad de Concepcin Religiosa, Cadmo, 10, Lisboa, 2000, 147.

    10 Idem, ibid., 147-166.

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    tentar identificar a estrutura mental que regeu o comportamento grego na sua vertente scio-religiosa.

    No que se reporta aos autores e s obras em estudo, poder comear por dizer-se que Hesodo teve origens humildes. Era descen-dente de uma famlia modesta e oriunda da sia Menor que, por difi-culdades econmicas, se mudou para a Grcia continental, mais espe-cificamente para Ascra, na Becia11. O poeta ter partilhado a sua existncia com a Humanidade no sc. VIII a.C. ou no sc. VII a.C.12. morte do pai, as suas terras foram divididas por Hesodo e pelo irmo, Perses, recebendo este, e segundo deciso dos reis comedores de presentes13, o maior quinho, injustia que foi julgada e referen-ciada pelo autor na sua obra. Vivendo como agricultor modesto, Hesodo no deixou de escrever vrias obras de poesia didctica e genealgica, tendo sido mesmo laureado num concurso14. Alis, foi com Hesodo (e, j antes, com Homero) que se estabeleceu alguma ordem no divino grego, atravs da fixao por escrito da tradio oral.

    Burkert analisou a obra hesidica em estudo e considera que h elementos orientais (hititas) inclusos nos acontecimentos que ordena-ram o mundo divino e o cosmo na obra hesidica. O poeta e a sua obra foram tambm enaltecidos por Vegetti, que corrobora a opinio de Burkert sobre a ordenao do divino grego com Hesodo15. _________________

    11 Vide H. Evelyn-White, Introduction in Hesiod, The Homeric

    Hymns and Homerica, Cambridge, 19642, XIII. 12

    Idem, ibid., XXVI. Segundo M. H. Rocha Pereira, Estudos de Histria da Cultura Clssica, I Cultura Grega, Lisboa, 19988, 155, Hesodo ter vivido em finais do sc. VIII a.C., pois o individualismo contido no seu discurso - o poeta fala de si prprio, revela os seus nome e ofcio, conta a sua experincia pessoal - aponta claramente o incio da poca arcaica.

    13 Cf. Hesodo et al., Os Trabalhos e os Dias in Prometeu Antigo.

    Notas introd. de P. Ferreira da Cunha. Trad. A. Santos, Porto, 1992, 82. 14

    Cf. H. Evelyn-White, Introduction in op. cit., XIII. 15

    Vide W. Burkert, Mito e Mitologia, Lisboa, 1991, 49-50, onde o autor afirma: Esta [Teogonia] comea com uma pergunta, como que o mundo e os deuses se originaram, especialmente o que que houve em

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    Apesar de Apolodoro ter vivido muito depois de Hesodo, se se pretendesse fazer uma pequena biografia sua surgiriam algumas con-trariedades, nomeadamente no que se refere exacta identificao do escritor. Frazer assevera que nada sabido com absoluta certeza sobre o autor de Biblioteca, nem tampouco se pode conjecturar muito sobre o assunto, colocando, apesar disso, a sua existncia (ou pelo menos a escrita da obra) entre os sculos I e II d.C.16. _________________

    primeiro lugar: foi o Chaos, uma fenda no abismo hiante; mas logo a seguir surgiram a Terra, como lugar seguro de tudo, e Eros, o deus da unio amorosa. A partir de ento possvel o acasalamento: Chaos produz o Escuro e a Noite, ambos se unem e geram Aither, o cu brilhante do dia, e o Dia (feminino); a Terra d luz o Cu, Uranos, e ainda Montanhas e Mar; do abrao de Cu e Terra saem mais pares divinos, mais tarde chamados Tits, entre os quais Oceano e Ttis, bem como Kronos e Rhea. Uranos no quer deixar os filhos luz do dia, at que Kronos lhe corta as partes genitais com uma foice a separao violenta do Cu e Terra encontra-se mais uma vez em mitos cosmognicos, mas o motivo da castrao provm abertamente da tradio hitita-hurrita. Ento so filhos de Kronos e Rhea os deuses propriamente ditos da religio grega, Zeus, Hera, Posidon; Kronos engole-os, para afirmar a sua soberania sozinho, porm Zeus salvo, derruba os Tits e investido rei dos deuses. Uma srie de casamentos circunscreve o seu poder e produz a prxima e ltima gerao dos deuses, com Apolo, rtemis, Hermes e outros. M. Vegetti, O Homem e os Deuses in O Homem Grego. Dir. de J.-P. Vernant, Lisboa, 1993, 237, por seu turno, escreve: Quando Hesodo tentou dar uma nova ordem ao universo religioso homrico, compondo com a Teogonia aquele que foi o primeiro e, no fundo, o nico manual religioso grego, s pde partir desta experincia de base [Ilada] e, por isso, as relaes entre os deuses-personagens no sero ordenadas segundo a trama dos conceitos e das construes teolgicas, mas segundo a ordem genealgica das geraes e da alternncia dos poderes, isto , segundo a ordem prpria dos laos que existem entre individualidades singulares, vivas e agentes.

    16 Vide J. Frazer, Introduction in Apollodorus, The Library,

    Cambridge, 2001, XIV XVI: Portanto, e no que se reporta evidncia externa, o nosso autor pode ter escrito em qualquer altura entre meados do sc. I a.C. e o princpio do sc. IX d.C. Quando nos viramos para a evidncia interna prestada pela sua linguagem, que o nico teste em aberto para ns, somos levados a estabelecer a cronologia do seu livro [Biblioteca] para datas

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    Grimal tem opinio diversa da de Frazer e entende que Apolo-doro viveu no sc. II a.C., por razes que se prendem com a crtica interna do prprio texto17.

    Grimal e Frazer comentam e aquilatam a Biblioteca de Apolo-doro a nveis distintos. Para Grimal, a Biblioteca divide os mitos em grandes ciclos: a Teogonia seguida dos incios das raas humanas, a partir de Deucalio e Pirra. Depois vm as lendas argivas, as tebanas e as ticas. A Eptome contm resumos narrativos das epopeias homri-cas e cclicas18. Frazer tece elogios obra, descrevendo a Biblioteca como um compndio singelo e despretensioso dos mitos e das lendas hericas dos Gregos, tal como foram fixados. Para Frazer, a obra de Apolodoro detm um valor documental incontroverso sobre o que os Gregos acreditavam no que sua origem, pr-histria e raa se reporta: compilada fielmente, embora acriticamente, a partir das melhores fontes a que tinha acesso, a Biblioteca presenteia-nos com a histria do mundo, tal como os Gregos a conceberam, desde o incio sombrio at aos tempos em que a nvoa da fbula se comea a dissipar e se revelam os verdadeiros actores da cena19.

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    muito mais prximas da primeira do que da segunda. (.) A mim parece-me que s podemos afirmar com segurana que Biblioteca foi escrita provavelmente no sc. I ou no sc. II da nossa era.

    17 Cf. P. Grimal, Introduo in Dicionrio da Mitologia Grega e

    Romana. Coord. ed. portug. de V. Jabouille, Algs, 19993, XLIII: A tenta-tiva mais importante, que conduz simultaneamente a uma recolha e a um sistema, aquela que os manuscritos atribuem a Apolodoro, um gramtico ateniense cuja actividade se localiza em meados do sc. II antes da nossa era. () A Biblioteca que possumos sob o seu nome no obra sua, pelo menos de redaco conservada. Embora o problema esteja longe de estar resolvido, provvel que a verso que chegou at ns remonte a um abreviador do sc. I d.C., que se contentou em seguir o plano e os dados gerais da obra primitiva, sem trazer qualquer contribuio pessoal. Se no se verificasse esta hiptese, isto , se a obra fosse posterior ao sc. II a.C., seria difcil explicar a total ausncia de aluses ao mundo romano.

    18 Idem, ibid., XLIII.

    19 J. Frazer, Introduction in op. cit., XVII e passim.

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    Para uma interpretao comparativa das obras em estudo, a Teogonia de Hesodo e a Biblioteca de Apolodoro, analise-se como Hesodo inicia o seu poema:

    Para comear, cantemos as Musas do Parnaso, rainhas do Hlicon, a grande e divina montanha. () Foram elas que um dia ensinaram a Hesodo um belo canto, enquanto ele apascentava os seus cordeiros junto do Hlicon divino. Eis as primeiras palavras que elas me dirigiram, as deusas, Musas do Olimpo, filhas de Zeus que tem a gide: Pastores, que viveis nos campos, tristes oprbrios da terra, que nada mais sois que ventres! Ns sabemos contar iluses e realidades; mas tambm, quando queremos, revelamos a verdade!20

    O individualismo contido no seu discurso constitui, como j referido21, um elemento de identificao cronolgica da obra: a poca arcaica. Por outro lado, o didactismo do texto notrio quando o poeta revela explicitamente, neste passo, o propsito de ensinar a verdade, fazendo-o inspirado pelas Musas. sintomtico o facto de Apolodoro no o ter feito, tenha vivido no sc. II a.C. ou nos scs. I ou II d.C.22, na medida em que escreveu a sua obra vrios sculos depois de Hesodo, quando j a poca arcaica tinha dado lugar ao racionalismo da idade filosfica, e esta ao evemerismo. Na idade filosfica, os mitos sobre os deuses perderam a hiptese de salvao, restringindo-se o seu uso alegoria. Com o evemerismo, o mito dei-xou de ser uma realidade para passar a ser a fbula que a transmisso oral popular edificou. Sobre este conflito conceptual entre o raciona-lismo e a crena mitolgica, Pierre Grimal elucida: O mito ope-se ao logos, como a fantasia razo, a palavra que conta que demons-

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    20 Hes., Theog., 1-28. Verso portuguesa: Hesodo et al., Teogonia

    in op. cit., 59. 21

    Vide supra, n. 12. 22

    Vide supra, sobre a incerteza da poca em que Apolodoro viveu.

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    tra. Logos e mythos so as duas metades da linguagem, duas funes igualmente fundamentais da vida do esprito. () O logos verda-deiro, se justo e conforme lgica; falso, se dissimula qualquer artimanha secreta (um sofisma). Mas o mito no tem outro fim, seno ele prprio. Acreditamos nele ou no, a nosso bel-prazer. () essa (...) a caracterstica mais surpreendente do mito grego: verifica-mos que ele est integrado em todas as actividades do esprito.23

    Subsequentemente, Hesodo conta as origens do mundo, do cosmo, do universo que, como diz Vernant, se constri primeiro a partir de trs entidades primordiais, Caos, Geia e Eros, e, depois, de duas entidades geradas por Geia, rano e Ponto, sendo todas elas simultaneamente potncias naturais e divindades24. Efectivamente, Hesodo recita assim a formao do cosmos na Teogonia:

    No princpio era o Abismo medonho, o espao, que separa o cu e a terra, indefinidamente prolongado; depois a Terra de grandes entranhas, base segura para sempre oferecida a todos os vivos e Eros, o mais belo entre os deuses imortais (). Do Abismo nasceram rebo e a negra Noite. E, da Noite, por sua vez, saram ter e a Luz do Dia, que ela concebeu e teve da sua unio com rebo. A terra, primeiramente, concebeu um ser igual a si mesma, capaz de a cobrir toda inteira, o Cu Estrelado, que devia oferecer aos deuses bem-aventurados um refgio seguro para todo o sempre. Ela ps, tambm, no mundo as altas Montanhas, agradvel remanso dos deuses, as Ninfas, habitantes dos montes acidentados. Deu ainda luz o mar infecundo das furiosas tempestades, o Mar sem ajuda dum amor terno. Mas, em seguida, dos braos do Cu ela teve Oceano dos turbilhes profundos Coios, Crios, Hiprion, Jpeto Tia, Reia, Tmis e Mnemsine Febo, coroado de oiro e a adorvel Ttis. O mais jovem

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    23 P. Grimal, A Mitologia Grega, Mem Martins, 19892, 17.

    24 J.-P. Vernant, O Universo, os Deuses, os Homens. Vernant Conta

    as Histrias dos Mitos Gregos, Lisboa, 2000, 22.

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    de todos eles, Crono, o deus de pensamentos astutos, o mais terrvel de todos os seus filhos; e Crono odiou o seu fecundo pai.25.

    Note-se que Apolodoro tambm considera Dione como uma Titnide, enquanto Hesodo a determina como filha de Oceano e Ttis, i.e., na gerao seguinte dos deuses. Estas translaces tempo-rais que algumas personagens do divino grego experimentaram da Teogonia para a Biblioteca podem ser uma evidncia da dinmica dos mitos, cujo contedo se vai paulatinamente ajustando verdade que eles deviam expressar para cada gerao de Gregos.

    O relato de Hesodo sucede-se com a restante descendncia da Terra e/ou de rano26. Curiosamente, e ao invs do que se passa na narrativa de Hesodo, Apolodoro inicia a sua descrio com o reinado de rano que, em unio com a Terra, gera a descendncia j descrita antes por Hesodo:

    O Cu foi o primeiro que governou em todo o mundo, e que tendo casado com a Terra dela gerou os primeiros filhos (...)27

    A eliminao do ser primignio Caos (Abismo) na narrativa de Apolodoro ter possivelmente como razes a alterao da mentalidade dos Gregos, que na poca helenstica vem o mundo de uma forma,

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    25 Hes., op. cit., 116-138. Verso portuguesa: Hesodo et al.,

    Teogonia in op. cit., 61. 26

    Vide J.-P. Vernant, op. cit., 17-27, onde o autor descreve com exmia beleza os nascimentos j referidos bem como os dos Ciclopes, dos Hecatnquiros (seres de cinquenta cabeas e cem braos), das Ernias, dos Gigantes, das Melades ou Ninfas dos Freixos, estes ltimos nascidos de Geia quando salpicada pelo sangue na sequncia da castrao de rano por Crono.

    27 Apollod., Bibl., I,1,1. Verso latina: Apollodori Atheniensis,

    Biblioteches. Benedicto Aegio Spoletino Interprete, Romae: in Aedibus Antoni Bladi, 1555, 1: Coelus primus orbis uniuersi imperio praefuit, quique ducta uxore Tellure priores ex ea filios sustulit (...).

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    avant la lettre, mais maniquesta do que nas pocas arcaica e cls-sica (onde a ordem se opunha desordem), o advento do racionalismo e a evoluo do conhecimento cientfico.

    Como se pode ainda averiguar pela primeira frase de qualquer das narrativas cosmognicas de Hesodo e de Apolodoro, aquela situa-se na origem dos tempos, no se sabe quando.

    Hesodo prossegue ento a descrio da cosmogonia:

    Terrveis filhos eram, pois, os que haviam nascido da Terra e do Cu, que o pai detestava desde o primeiro dia. Apenas nasciam, em vez de os deixar ver a luz do dia, escondia-os no seio da Terra e, enquanto que o Cu se comprazia nesta obra maldosa, a enorme Terra gemia, nas suas profundidades, sufocando de dor. E ento ima-gina um ardil prfido e cruel. Rapidamente criou um metal branco como o ao; faz uma grande lmina e dirige-se aos seus filhos, excitando-lhes a coragem (). Ela falou e o terror apoderou-se de todos e nenhum disse uma palavra. Apenas, sem vacilar, o grande Crono, de pensamentos ardilosos, replicou nestes termos a sua me: Sou eu, me, dou-te a minha palavra, que exe-cutarei a misso. De um pai abominvel no tenho pena, embora seja o meu pai, pois foi ele o primeiro a conce-ber obras infames. () E o grande Cu chega, trazendo a Noite; e envolvendo a Terra, vido de amor, ei-lo que se aproxima e expande em todos os sentidos. Mas o filho, no seu posto, estendeu a mo esquerda, enquanto que na direita empunhava a enorme lmina de dentes pontiagudos; e, subitamente, cortou os testculos de seu pai lanando-os fora, para longe de si. () Quanto aos testculos, apenas os cortou com o ao, lanou-os para o mar das mars sem repouso, que os arrastou para o largo durante muito tempo; e por toda a parte se espalhou uma espuma branca que saa do membro divino. Desta espuma uma jovem se formou. () donde [Ctera] foi para a Chipre, que recolhe as ondas do mar; e l que desembarca a bela e venerada deusa () e que os deu-ses, assim como os homens, chamam Afrodite (). Eros

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    e o belo Desejo, sem demora, lhe fizeram a corte, logo que ela nasceu e foi para junto dos deuses.28

    Com a descrio anterior, o poeta fica com a criao do mundo e da natureza praticamente concluda, e enceta ento a descrio da origem de alguns dos deuses gregos. Rompendo com a tradio, o que constitui um aspecto paradigmtico da sua obra, Hesodo fixou a cos-mogonia antes da teogonia. Esta composio racionalista, observada por Kirk29, ter provavelmente estado na gnese do pensamento abs-tracto grego.

    Por outro lado, e como j referido30, Burkert interpreta aquela descrio de Hesodo como uma separao violenta entre a Terra e o Cu, estrutura significante que semelhante do mito hitita do Poema de Kumarbi. Esta interpretao corroborada por Bernab31.

    Maria Helena da Rocha Pereira fornece e discute as duas res-postas mais frequentes que tm sido apresentadas para o uso do mito hitita por Hesodo32: o conhecimento do referido mito atravs do seu pai, originrio da sia Menor, ou, em alternativa, a transmisso do mito atravs dos Fencios e a subsequente divulgao na Becia. Se para a Autora a primeira hiptese se reveste de uma adversidade de ordem histrica, pois alm da regio de origem do pai de Hesodo no ter nunca pertencido ao reino hitita a ocupao jnica a s se estabe-leceu definitivamente a partir de 800 a.C., a segunda soluo proposta exibe maior plausibilidade, na medida em que coloca a verso babil-nica do mito mais prxima da grega e anterior verso hitita. Alm _________________

    28 Hes., op. cit., 154-202. Verso portuguesa: Hesodo et al.,

    Teogonia in op. cit., 62. interessante notar que o mais novo dos filhos do Cu que empreende a tarefa da castrao do pai - vide infra, comentrio de P. Grimal sobre o assunto.

    29 G. S. Kirk, The Structure and Aim of Theogony in Hesiode et son

    Influence, Entretiens Hardt, VII, Geneve, 1962, 61-107. 30

    Vide supra, n. 15. 31

    A. Bernab, op. cit., 150. 32

    Vide M. H. Rocha Pereira, op. cit., 159-160.

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    disso, na segunda soluo proposta, ventilada a hiptese de a trans-misso se ter efectuado em tempos minicos, na poca de comrcio com a Mesopotmia, ou seja, proposto que a absoro do mito seja anterior ao prprio Hesodo.

    Apolodoro narra de forma semelhante o acto de castrao de rano, excepto no que se reporta participao dos filhos de Geia e origem de Afrodite, respectivamente:

    Ento, todos eles excepto Um, Oceano, atacam o pai, e Crono corta os genitais do Cu e atirou-os para o mar; (...)33

    Ora, Zeus () De Dione [teve] Afrodite; ()34.

    O facto de Apolodoro fixar por escrito a participao de quase todos os filhos de rano (excepto Oceano) na deposio cruel e vio-lenta do pai pode eventualmente traduzir um refinamento do pensa-mento grego: a repugnncia pela violncia dos tempos teognicos mais remotos (aquando do governo desptico de rano) e o apreo pela justia, ordem e equilbrio do posterior governo divino de Zeus.

    Quanto a Afrodite, enquanto Apolodoro a coloca genealogica-mente na terceira gerao dos deuses, como descendente de Zeus, semelhana do que j Homero fizera, sobretudo na Ilada, Hesodo narra a sua existncia como praticamente contempornea de Crono, i.e., na primeira gerao dos Tits. Aparentemente, esta obliterao que Apolodoro fez da deusa Afrodite da primeira gerao divina (note-se que a seria nica deusa do Panteo Olmpico dessa gerao), para a inserir na terceira gerao dos deuses, pode ser o sintoma do acrscimo da importncia da deusa oriental no Panteo, qui como _________________

    33 Apollod., op. cit., I,1,4. Verso latina: Apollodori Atheniensis, op.

    cit., 1 vs, 2: Tum ii omnes praeter Vnum Oceanum in patrem impetum faciunt, et Saturnus praesecta Coeli genitalia deiecit in pelagus; (...).

    34 Idem, ibid., I,3,1. Verso latina: Apollodori Atheniensis, op.cit., 4,

    4 vs: Iupiter autem (...) Ex Dione Venerem; (...).

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    consequncia da helenizao do Mediterrneo. Fica por explicar, no entanto, a origem da Afrodite homrica, que diversa da origem da Afrodite hesidica35. Ter Hesodo pretendido desmontar uma construo de Homero, que na sua opinio seria uma inverdade? No se assevera tarefa concretizvel responder a esta questo, mesmo com a declarada pretenso hesidica de narrar poeticamente a verdade ditada pelas Musas do Olimpo. De qualquer forma, Afrodite era uma das deusas do panteo helnico e o seu nascimento mtico a partir da espuma do mar gerada com o sangue dos genitais de rano poder traduzir uma provenincia longnqua. Apesar de se considerar de origem oriental, a etimologia de Afrodite no esclarecedora36.

    Ser tambm de relevar que para Hesodo e Apolodoro, e tal como se infere da leitura dos passos j transcritos das obras em an-lise, rano, ao ser castrado, perde sangue que a fonte do nascimento de personagens secundrias. Este processo narrativo est baseado em princpios etiolgicos e associativos, tal como explana Bernab em pormenor37.

    Hesodo progride com a sua cosmogonia, nomeadamente com a descendncia da Noite, as linhagens do Ponto e as descendncias dos

    _________________

    35 P. Grimal, Afrodite in Dicionrio da Mitologia Grega e Romana,

    10, regista: Afrodite a deusa do Amor, identificada em Roma com a velha divindade itlica Vnus. Duas diferentes tradies se referem ao seu nascimento. Ora fazem dela filha de Zeus e Dione, ora filha de rano, cujos rgos sexuais, cortados por Crono, caram no mar e geraram a deusa, ().

    36 J. Sousa Brando, Afrodite in Dicionrio Mtico-Etimolgico da

    Mitologia Grega, I-(A-I), Prespolis, 1991, 29-35, esclarece sobre a etimologia da denominao da deusa: Afrodite no possui etimologia, at ao momento. (...) porque a deusa, (), nasceu da espumarada provocada no mar pelo sangue e esperma de rano mutilado por Crono. De qualquer forma, a etimologia popular, i.e., a procedncia de Aphrodte de aphrs teve a honra de ser mencionada por Plato. () Trata-se, na realidade, de uma deusa de indiscutvel procedncia oriental. Existe, no entanto, uma Afrodite bem mais antiga [do que a da Ilada], cujo nascimento descrito por Hesodo na Teogonia.

    37 Vide A. Bernab, op. cit., 155.

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    pares Oceano-Ttis e Tia-Hiprion, introduzindo simultaneamente divindades secundrias, i.e., urdindo a teogonia. Aps o elogio a Hcate, o poeta narra o nascimento de Zeus e seus irmos, e os pri-meiros actos para a ascenso de Zeus ao poder:

    Reia submeteu-se lei de Crono e deu-lhe filhos

    gloriosos, Histie, Demter, Hera dos botins de oiro; e o poderoso Hades, que estabeleceu a sua morada debaixo da Terra, deus de corao impiedoso; e o retumbante Agitador da Terra; e o prudente Zeus, pai dos deuses e dos homens, cujo trovo faz vacilar a vasta Terra. Mas os seus primeiros filhos, o grande Crono devorava-os, desde o instante em que cada um deles descia do ventre sagrado de sua me, para os seus joelhos. O seu corao temia que um outro dos altivos netos do Cu obtivesse a honra real entre os Imortais. Ele sabia, graas Terra e ao Cu Estrelado, que o seu destino era sucumbir um dia s mos do seu prprio filho, se ele fosse to poderoso como ele prprio era - pelo querer do grande Zeus38. () depois, guiaram-na [Cu e Terra guiaram a sua filha Reia] at Lictos, no frtil pas de Creta, no dia em que devia dar luz o ltimo dos seus filhos, o grande Zeus; e foi a enorme Terra que recebeu o seu filho para o criar e tratar na grande Creta. () Depois, cingindo uma grande pedra nos cueiros, entregou-a ao poderoso senhor, filho do Cu, o primeiro rei dos deuses, que a agarrou das suas mos e a engoliu, o desgraado!, sem que o seu corao suspeitasse por um instante que, no lugar desta pedra, estava o seu filho, invencvel e impassvel, que conservava a vida e que devia brevemente, pela fora dos seus braos, triunfar dele,

    _________________

    38 Como poderia Zeus, que ainda no era nascido, conjecturar contra

    seu pai?, perguntou-se um comentador, que provavelmente substituiu Zeus por seu pai num manuscrito posterior em consequncia da adversidade com que se deparou. Para Evelyn-White, in Hesiod, op. cit., 113, n. 2, o sintagma original faria parte da profecia, o que explica a aparente incongruncia.

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    expuls-lo-ia do seu trono e reinar entre os Imortais. () e, com o desenrolar dos anos, o grande Crono, de pensamentos traioeiros, expeliu todos os seus filhos, vencido pela sagacidade e fora de seu filho, vomitando primeiro a pedra devorada por ele na ltima vez. () Depois, [Zeus] libertou os irmos de seu pai dos laos malditos, os filhos do Cu, que seu pai aprisionara no seu desvario. Aqueles no se esqueceram de reconhecer os seus favores: deram-lhe o trovo, o raio fumegante e resplandecente, que de incio a enorme Terra guardava escondidos, e dos quais Zeus doravante se assegura para comandar ao mesmo tempo mortais e imortais.39

    Tal como na sucesso de Cu por Crono, o mais novo dos filhos de Crono que empreende a tarefa da deposio do pai. Este elemento repetitivo leva-nos a conjecturar sobre a possibilidade de, entre os Gregos antigos, a sucesso se efectuar atravs do filho mais novo40. Pierre Grimal salienta este aspecto paradigmtico da mitolo-gia grega.41

    Como se infere das narrativas poticas, outro aspecto paradig-mtico da mitologia grega diz respeito ao facto de no haver em nenhum momento um acto criador nico: nenhum deus pensa o uni-verso globalmente, o que talvez traduza a repugnncia do pensamento grego pela explicao total e absoluta. Denota, contudo, simultanea-mente, a sensibilidade do pensamento grego diversidade do uni-_________________

    39 Hes., op. cit., 453-506. Verso portuguesa: Hesodo et al.,

    Teogonia in op. cit., 67-68. 40

    Vide J. Frazer in Apollodorus, op. cit., 4, n. 3. 41

    Vide P. Grimal, A Mitologia Grega, Mem Martins, 19892, 38-39: Conclui-se que o essencial das lendas teognicas consiste numa srie de substituies, cada gerao sucedendo, pela violncia, que a tinha precedido no poder sobre o mundo. E verifica-se, por duas vezes, que o mais jovem dos deuses (...), que conquista a proeminncia: Crono, o mais novo dos Tits, e Zeus, o mais novo dos Crnidas. opinio geral reconhecer neste facto o vestgio de um estado social no qual a sucesso pertencia ao mais jovem dos filhos.

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    verso: todo o corpus cosmognico e teognico que estabelece o mtodo da criao do universo e do mundo.

    Se bem que mais sinteticamente, Apolodoro narra o nascimento de alguns dos deuses olmpicos de forma semelhante, substituindo, contudo, o nome de Hades por Pluto que, como descreve Grimal, constitui um nome assimilado ao deus latino42 e um epteto usado por se temer que a sua evocao o encolerizasse43:

    E primeiramente [engoliu] Hstia, em seguida Demter, e Hera. Depois destas engoliu Pluto e Posdon.44

    Apesar de se manter fiel ao mito genealgico de Hesodo, no que diz respeito expulso pelo vmito dos filhos que engolira, Apolodoro narra o facto como consequncia de uma poo dada por Mtis a Crono, e no como um fruto da interveno da Terra, i.e., torna o mito mais plausvel inscrevendo na sequncia narrativa uma causa fisiolgica para a nusea:

    Em seguida, quando Zeus atingiu a idade certa e do vigor, alia-se a Mtis, filha de Oceano, que faz Crono beber uma droga: aquele que constrangido vomitou, primeiro a pedra, e depois os filhos que ele antes engolira: ()45

    _________________

    42 Idem, Pluto in Dicionrio da Mitologia Grega e Romana, 380.

    43 Idem, Hades in ibid.., 189-190.

    44 Apollod., op. cit., I,1,5. Verso Latina: Apollodori Atheniensis, op.

    cit., 2: Et Vestam prius, Cererem deinde, et Iunonem. Post has Plutonem et Neptunum deglutiuit..

    45 Idem, ibid., I,2,1. Verso Latina: Apollodori Atheniensis, op. cit.,

    2 vs: Mox, ubi Iupiter iustae atque integrae fuit aetatis, Metin Oceani filiam sociam capit, quae Saturno pharmacum bibendum propinat: cuius ille ui coactus lapidem prius, deinde quos antea filios deuorarat euomit: (...).

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    Segundo Maria Helena da Rocha Pereira46, o nmero dos Olmpicos , tal como est representado no friso do Prtenon, invaria-velmente doze. Dos supracitados deuses, faziam parte Zeus47, Hera, Posdon e Demter.

    As transcries efectuadas permitem asseverar que Hesodo e Apolodoro usaram como fio condutor, para as suas narrativas genea-_________________

    46 M. H. Rocha Pereira, op. cit., 332-336. W. Burkert, Religio Grega

    na poca Clssica e Arcaica, Lisboa, 1993, 425, corrobora o nmero de deuses que constituem o Panteo helnico: Os deuses olmpicos podem ser reunidos no tradicional nmero doze, (...).

    47 P. Grimal, Zeusin Dicionrio da Mitologia Grega e Romana,

    1999, 467-471, redige: Zeus o mais importante deus do Panteo helnico. , essencialmente, o deus da Luz, do cu claro, tal como do raio, mas no se identifica com o Cu, do mesmo modo que Apolo no se identifica com o Sol nem Posdon com o Mar. No pensamento helnico, os deuses perderam o valor csmico que podem ter tido num outro momento da sua evoluo. () nos Poemas Homricos que criada a personagem de Zeus, rei dos homens e dos deuses (...) Na maior parte do tempo, Zeus permanece no cimo do monte Olimpo, mas tambm viaja. () Zeus preside no s s manifestaes celestes como provoca a chuva, lana os raios e os relmpagos poder simbolizado pela sua gide mas, sobretudo, mantm a ordem e a justia do mundo. () Esta concepo de Zeus como potncia universal desenvolveu-se a partir dos Poemas Homricos e chega, entre os filsofos helensticos, concepo de uma providncia nica (). Cronologicamente, a primeira das esposas de Zeus Mtis, a filha de Oceano. () Mas Geia predisse a Zeus que, se Mtis desse luz uma filha, // conceberia um filho que destronaria o pai. Por isso Zeus engoliu Mtis e, quando chegou o momento do parto, Prometeu (algumas fontes referem Hefesto) fendeu com um golpe de machado o crnio de Zeus, de onde saiu, completamente armada, a deusa Atena. Zeus desposou em seguida Tmis, uma das Titnides, e dela teve filhas, (). Zeus uniu-se ainda a Dione, uma das Titnides, e nela gerou Afrodite. () Com Eurnome, filha de Oceano, concebeu (). De outra Titnide, Mnemsina, que simboliza a memria, teve (). Por fim, com Leto, gerou Apolo e rtemis. s neste momento que, segundo Hesodo, se situa o casamento sagrado com Hera, sua irm. Mas geralmente considerado muito mais antigo. Deste casamento nasceram Hebe, Iltia e Ares. Com uma outra das suas irms, Demter, Zeus teve uma filha: Persfone. Estas so as unies de Zeus com as deusas, mas as suas unies passageiras com mortais so inumerveis.

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    lgicas at ao nascimento do pai dos deuses e dos homens, o inte-resse que cada uma das divindades que antecederam Zeus tinha em evitar ser destronada pelos seus sucessores48. rano tentou-o, evi-tando que os filhos nascessem, e foi contrariado pela castrao efec-tuada por Crono. Este engoliu os filhos, mas foi ludibriado pela pr-pria mulher, que lhe deu uma pedra a engolir em lugar de Zeus que, assim salvo, acabou por destron-lo. Existe nesta sucesso divina uma evidente sequncia repetitiva de transgresso e punio, que culmina com a ascenso definitiva de Zeus ao poder divino. Tal ascenso, contudo, vista de forma distinta da dos seus antecessores: no um acto de violncia ou de desejo pessoal, mas sim de justia, pacfico e fruto do consenso dos deuses que, inclusivamente, rogam a Zeus que os governe49. E com Zeus que nasce a ordem do universo. As suas aces de preservao do trono so tambm entendidas como actos justos, correctos, naturais, estabelecidos pelo destino para preservar a ordem universal50.

    Burkert escreve tambm a propsito das parcas formas estereo-tipadas da narrativa e das estruturas que esto subjacentes ao mito: () a continuao tpica da histria do nascimento refere perigo mortal, perseguio e exposio do recm-nascido. Naturalmente que a criana salva, cresce no meio de animais, ladres, pastores ao encontro do seu grande destino. () tambm Zeus teve de ser ali-mentado por uma cabra, escondido do pai na gruta cretense, () Sob um aspecto mais geral nota-se a estrutura narrativa do duplo combate com o soberano interino no-bom, no qual est embutido o do filho do deus perseguido.51 Esta estrutura confirma-se na narrativa hesi-_________________

    48 Note-se que, enquanto que so clara e explicitamente trs rano,

    Crono e Zeus os deuses que governaram segundo Apolodoro, na Teogonia de Hesodo no se pode afirmar que rano tenha governado o mundo. Alis, Hesodo explicita mesmo que Crono, o filho do Cu, foi o primeiro rei dos deuses - vide supra, sobre a descrio da ascenso de Zeus ao poder.

    49 Vide Hes., op. cit., 881-885.

    50 Vide P. Grimal, A Mitologia Grega, Mem Martins, 19892, 76.

    51 Vide W. Burkert, Mito e Mitologia, Lisboa, 1991, 21-22.

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    dica pois, como se afirmou, h um perigo iminente envolvendo o nascimento de Zeus e o seu crescimento, que resolvido, e que seguido de esforos hericos por parte do deus para a sua ascenso ao poder: a Titanomaquia52 e, aps uma descrio do Trtaro, a luta contra Tifeu (ou Tfon)53. Faz-se notar, a ttulo de curiosidade, que na Teogonia Tfon um ser desordeiro, porque primignio, i.e., anterior ao estabelecimento da ordem por Zeus, sem que, contudo, a causa pela qual Geia o gerou seja explcita. Para Apolodoro, no entanto, Geia pariu Tfon como um plano de vingana.

    Importa ainda salientar que Apolodoro narra a Titanomaquia de forma semelhante descrio hesidica, exceptuando-se dois aspec-tos: o primeiro o facto de os Ciclopes darem insgnias aos deuses para estes alcanarem a vitria (a Zeus ofertaram o trovo e o raio que tinham forjado, a Hades um capacete e a Posdon um tridente); o segundo o facto dos vencedores olmpicos partilharem entre si, e sorte, o poder (Zeus obteve o domnio do cu, Posdon o domnio do mar, e Pluto [Hades] o domnio do mundo subterrneo54). No , _________________

    52 Cf. Hes., op. cit., 617-721. Zeus apoiou-se nos irmos, os que fizera

    voltar vida quando obrigou Cronos a vomit-los, para atacar Cronos e os Tits, encetando uma guerra que durou dez anos. Esta guerra, Titanomaquia, culminou com a vitria de Zeus e dos Olmpicos, auxiliados pelos Ciclopes e Hecatnquiros que, a conselho de Geia, tinham entretanto sido libertados por Zeus do cativeiro a que Crono os submetera. Os Tits, por desgnios de Zeus, foram expulsos do Cu e aprisionados no Trtaro.

    53 Idem, ibid., 820-880. Zeus combate o monstro ofdio Tfon, filho de

    Geia e Trtaro, vencendo-o e enviando-o prisioneiro para o Trtaro. Para Apollod., op. cit., I,4,3, pp. 47-51, o combate mais rude que Zeus teve de travar, aps ter obtido a vitria sobre os Gigantes (este elemento , como referido, posterior Teogonia), foi contra Tfon, um monstro hbrido de homem e fera que atacou o Cu (fazendo os outros deuses fugirem para o Egipto). No decurso da luta, Zeus foi feito prisioneiro e foi mutilado pelo monstro. Mas um estratagema de Hermes e Aegipan permitiu refazer e libertar Zeus que, por fim, alcanou a vitria esmagando Tfon sob o monte Etna. As chamas que saem do Etna eram atribudas s chamas lanadas pelo monstro.

    54 Apollod., op. cit., I,2,1. Vide supra, sobre a descrio da ascenso

    de Zeus ao poder.

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    contudo, desde a sua origem que os trs filhos de Crono Hades, Posdon e Zeus detm os seus domnios. Estes s lhes foram atribu-dos aps a vitria sobre os Tits e de forma aleatria. J antes, no entanto, durante a luta com os Tits, os Ciclopes lhe haviam atribudo uma arma definidora das suas futuras funes divinas, o que pode parecer contraditrio com a narrativa cronolgica dos factos. Para Grimal, trata-se apenas de tornar concomitante a narrativa de ambio histrica com uma espcie de descrio imanente do ciclo.55

    Zeus tornou-se ento, e como descrito, na divindade suprema do panteo helnico. Zeus indubitavelmente um deus de origem indo-europeia. H, actualmente, um conhecimento sedimentado sobre a etimologia do tenimo Zeus que, pertencendo ao grupo lingustico indo-europeu, corrobora a sua gnese56. Por outro lado, e como deci-fra Vernant, a estrutura conceptual que sustenta o panteo helnico est quase completamente desvanecida da tradio indo-europeia da tripartio funcional que Dumzil props: Zeus no figura em nenhum agrupamento trifuncional anlogo trade pr-capitolina Jpiter-Marte-Quirino /.../ Como soberano, Zeus encarna, face tota-lidade dos outros deuses, a maior fora, o poder supremo /.../ Zeus representa justia, a exacta distribuio de honras e das funes, o respeito pelos privilgios de que cada um pode valer-se, o zelo pelo que devido mesmo aos mais fracos..57

    Por fim, Hesodo entra na narrativa do nascimento dos restantes deuses que formam os Doze Olmpicos: Atena, Hefesto58, Apolo, _________________

    55 Vide P. Grimal, A Mitologia Grega, Mem Martins, 19892, 53.

    56 J. Sousa Brando, Zeus in Dicionrio Mtico-Etimolgico da

    Mitologia Grega, II-(J-Z), Prespolis, 19972, 493-501, escreve: (...) o nome de um antigo deus indo-europeu do cu e da luz. A raiz indo-europeia *dei, brilhar, () Zeus pois a luz, o cu claro, o brilho.

    57 Vide J.-P. Vernant, O Mito e a Religio na Grcia Antiga, Lisboa,

    1991, 33-40. 58

    P. Grimal, Hefesto in Dicionrio da Mitologia Grega e Romana, 19993, 195, escreve: Hefesto o deus do Fogo. Hefesto um deus coxo; davam-se vrias explicaes mticas para o seu defeito fsico. A mais vulgar

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    rtemis, Ares, Hermes e Dioniso. Sobre o nascimento de Atena e Hefesto, Hesodo fixou por escrito o seguinte:

    E Zeus, o rei dos deuses, primeiramente tomou

    Prudncia [Mtis] para esposa () Mas, no preciso momento em que ela ia ter Atena, a deusa dos olhos garos, iludindo traioeiramente o seu corao com palavras blandiciosas, Zeus escondeu-a nas suas entranhas, aconselhado pela Terra e pelo Cu estrelado () a fim de que a deusa o fizesse conhecer sempre o que lhe era propcio ou nefasto. () E, completamente s, [Zeus] do seu rosto deu o ser a Tritognia dos olhos garos [Atena], terrvel provocadora de tumultos, infati-gvel condutora de exrcitos, augusta deusa, que se comprazia nos clamores, nas guerras e nos combates. Hera, sem a unio com Zeus essa deu luz o ilustre Hefesto, sem unio amorosa, por clera e desafio lanado ao seu esposo; Hefesto, o mais industrioso dos netos do Cu.59

    Apolodoro, no que se reporta ao nascimento de Atena, narra uma sequncia similar de Hesodo, excepto no que diz respeito previso, pois para Apolodoro s Geia avisa Zeus do perigo da des-cendncia de Mtis, i.e., no h participao do Cu.

    Por outro lado, enquanto Hesodo omisso em ajudas para o nascimento de Atena, explicitando mesmo que Zeus o faz sozinho,

    _________________

    a referida na Ilada: Hera discutia com Zeus a respeito de Hracles e Hefesto tomou o partido da me. Ento Zeus agarrou-o por um p e atirou-o do Olimpo abaixo; Hefesto caiu durante um dia inteiro; ao anoitecer embateu em terra, na ilha de Lemnos, onde tombou, mal respirando j. A, foi recolhido pelos Sntios que o reanimaram; mas ficou coxo para sempre. () o deus dos metais e da metalurgia. () Foi a ele que Ttis recorreu para forjar as armas de Aquiles [Ilada]. .

    59 Hes., op. cit., 886-929. Verso portuguesa: Hesodo et al.,

    Teogonia in op. cit., 75-76.

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    Apolodoro refere o auxlio com um machado de Prometeu, ou de Hefesto para outras fontes60.

    Para o nascimento de Hefesto, a narrativa de Apolodoro no difere muito da de Hesodo. No entanto, Apolodoro ressalvou na sua narrativa que, segundo Homero, Hefesto era tambm filho de Zeus e que tinha ficado coxo devido queda do Olimpo61. Tal como para Afrodite, Apolodoro apresenta uma verso adulterada em relao de Hesodo, e faz de Hefesto um filho de Zeus, provavelmente para pre-servar a qualidade de Hera como cnjuge exemplar, para Apolodoro a legtima e primeira mulher de Zeus.

    Como Burkert explica, o papel social do mito est patente no par central Zeus-Hera da primeira gerao dos Olmpicos, que cons-titui o arqutipo do par conjugal em geral. Os problemas conjugais entre eles, que os poetas relatam, reflectem as tenses endgenas de uma sociedade patriarcal, cuja reafirmao contnua a si prpria se processa pela anttese62. J Apolo e rtemis constituem o par irmo-irm, cujo arqutipo se associa intimamente conscincia grega, enquanto Hefesto e Atena estabelecem o par arqutipo dos artesos.

    Atente-se, mais uma vez, na analogia existente entre o nasci-mento de Atena, da cabea de Zeus, e o nascimento tambm de um deus da cabea de Kumarbi, embora neste ltimo caso a identificao do sexo do deus nascido no esteja clarificada63. Em Hesodo, porm, o tema aparece de forma secundria e muito mais tardia do que no mito hitita, tudo indicando tratar-se de uma solu- o de recurso para o nascimento de Atena, j que Zeus engolira Mtis.

    _________________

    60 Vide Apollod., op. cit., I,3,6.

    61 Idem, ibid., I,3,5.

    62 W. Burkert, Religio Grega na poca Clssica e Arcaica, Lisboa,

    1993, 424-429. 63

    A. Bernab, op. cit., 156, 165, n. 26.

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    Compare-se agora a similitude das linhas que Hesodo reservou, respectivamente, para os nascimentos de Apolo e rtemis com as que Apolodoro escreveu:

    Leto teve Apolo e a arqueira Artemisa, filhos maravilhosos, entre os netos do Cu, depois de ter conhecido entre os seus braos o amor com Zeus, que tem a gide.64

    Com efeito, escondida de Zeus, Hera perseguiu

    Leto por todos os lugares da Terra, at que chegou a Delos e a mesmo deu primeiro luz rtemis, de quem recebendo ajuda como parteira, a me pariu em seguida Apolo.65

    Embora as etimologias dos tenimos dos deuses tenham dife-renas, rtemis e Apolo so considerados irmos gmeos por alguns autores. Em Apolodoro parece tambm haver uma clara inteno punitiva aos amores de Leto com Zeus: a perseguio de Leto por Hera. Esta inteno, ausente em Hesodo, advir provavelmente do facto de Hera ter sido, na Biblioteca, a primeira mulher de Zeus (em Hesodo, Hera foi a terceira mulher de Zeus). Esta alterao na cronologia conjugal de Hera e Zeus, entre Hesodo e Apolodoro, pode representar a cristalizao de um mito de raiz popular.

    E de filhos de unies exclusivamente divinas, que ascenderam ao panteo helnico, falta apenas referir a descendncia de Zeus e Hera: dos filhos do casal divino, apenas Ares atingiu tal honra. Do

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    64 Hes., op. cit., 918-920. Verso portuguesa: Hesodo et al.,

    Teogonia in op. cit., 75. 65

    Apollod., op. cit., I,4,1. Verso Latina: Apollodori Atheniensis, op. cit., 6, 6 vs: Siquidem Latonam ab Ioue compressam per uniuersum terrarum orbem Iuno insectata est, donec Delum peruenit atque ibi Dianam prius peperit, qua obstetrice adiuta mater Apollinem deinceps edidit.

  • A genealogia dos deuses ________________________________________________________

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    nascimento de Ares, os registos de Hesodo e Apolodoro so singelos e semelhantes. Tem-se respectivamente:

    E enfim, ele [Zeus] fez de Hera a sua ltima e

    preferida esposa e ela concebeu os filhos Hebe, Ares e Ilitia, unida de amor ao rei dos homens e dos deuses.66

    Ora, Zeus casou-se com Hera e dela gerou Hebe, Ilitia e Ares ()67

    Note-se que os passos anteriores, transcritos das obras em an-lise, confirmam que em Apolodoro Hera a primeira mulher de Zeus, enquanto em Hesodo a sua ltima e definitiva esposa.

    Os dois restantes deuses do grupo dos Doze do Panteo helnico so fruto de unies de Zeus com mortais. Hesodo relata assim os nascimentos de Hermes e Dioniso:

    Zeus teve ainda de Maia, a filha de Atlas, o ilustre Hermes, arauto dos deuses, depois de levada ao seu leito sagrado. Smele, filha de Cadmo, unida a ele por amor, deu-lhe um filho ilustre, Dioniso, rico em alegrias. Imor-tal nascido de uma mortal. Hoje, ambos so deuses.68

    Apolodoro narra de forma idntica o primeiro nascimento:

    Com efeito, Maia, a mais idosa [filha de Atlas], deson-rada por Zeus, gera Hermes na caverna de Cilene.69

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    66 Hes., op. cit., 921-923. Verso portuguesa: Hesodo et al.,

    Teogonia in op. cit., 75. 67

    Apollod., op. cit., I,3,1. Verso Latina: Verso Latina: Apollodori Atheniensis, op. cit., 4: Iupiter autem Iunonem sibi connubio iunxit ex eaque Heben, Ilithyian et Argen procreauit (...).

    68 Hes., op. cit., 938-942. Verso portuguesa: Hesodo et al.,

    Teogonia in op. cit., 76. 69

    Apollod., op. cit., III,10,2. Verso Latina: Apollodori Atheniensis, op. cit., 113: Siquidem Maia nata maxima ab Ioue in Cyllenes antro uitiata Mercurium parit..

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    J no que se refere a Dioniso, Apolodoro baseia-se em fontes posteriores a Hesodo e recita o nascimento do deus com um enredo mais elaborado, provavelmente resultante de acrescentos subsequentes Teogonia:

    Zeus, tendo desejado ardentemente Smele, dormiu com ela s escondidas de Hera. Ora, esta [Smele], iludida por Hera () pediu [a Zeus] que consigo se deitasse, tal como se viesse para se juntar ao cnjuge [Hera]. Zeus, no sendo capaz de recusar, veio para o leito nupcial de Smele transportado numa quadriga com raios e com troves, lanando um raio amante: pelo que, de medo, Smele expulsa de si o feto de seis meses. Zeus, arrebatando-o do meio do fogo colocou-o na coxa. () Depois, no momento conveniente, soltos os fios, Zeus gerou Dioniso, e confiou-o a Hermes. //70

    Concludas as narrativas de Hesodo e Apolodoro sobre a genealogia e o nascimento dos deuses olmpicos, pode-se verificar que Zeus aparece nestas narrativas como uma divindade de virilidade inesgotvel, i.e., Zeus tambm uma potncia sexual. Alm das unies com divindades, Zeus teve inmeras unies com mortais, nem todas aqui referidas, mas contadas em mitos cujo objectivo original ter sido, talvez, estabelecer uma genealogia com valor local para ligar de alguma forma cada um dos ramos tnicos gregos Aqueus, Jnios, Drios e Elios ou at cada uma das famlias aristocrticas _________________

    70 Apollod., op. cit., III,4,3. Verso Latina: Apollodori Atheniensis,

    op. cit., 92, 92 vs: Iupiter cum Semelen arderet, cum ea clam Iunone concumbit. Haec autem ab Iunone decepta, (...) ut, qualis cum coniuge congressurus adueniret, secum decumberet, postulauit, quod cum Iupiter abnuere non posset; curru inuectus in per amatae Semeles thalamum praemisso fulmine cum fulgetris simul et tonitribus aduenit: quare Semele metu externata semestrem partum eiicit. Iupiter hunc e medio abreptum igne femori infuit. (...) Congruo deinde tempore solutis filis Iupiter Dionysium gignit, eumque Mercurio tradidit..

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    ancestrais ao pai dos deuses e dos homens. O seu ciclo , pois, aquele que desvenda as camadas mais profundas da religio grega: o Zeus cretense, por exemplo, no possivelmente igual ao Zeus frgio na sua gnese. natural que os mitos ligados a cada uma dessas per-sonalidades se tenham sobreposto, sem que, contudo, tenham criado uma teologia coerente.71

    Como sntese conclusiva da comparao efectuada entre a Teo-gonia e a Biblioteca poder primeiro realar-se que os mitos teogni-cos dos Helenos no foram estticos. Ao invs, esses mitos transfor-maram-se atravs de todo o pensamento antigo, de acordo com a mentalidade de cada poca, pois as diferentes geraes de Gregos no lhes pediam que exprimissem sempre a mesma verdade. Os Gregos, nas pocas pica, trgica e filosfica, experimentaram vivncias dis-tintas com os seus mitos, que transparecem nas suas obras dando-nos uma viso da sua mundivivncia. As existncias de Hesodo e Apolo-doro so intercaladas por vrios sculos, que foram determinantes na evoluo da histria poltica, socio-econmica, cultural e da mentali-dade dos Gregos. Esta diacronia evolutiva, em que ocorreram rupturas estruturais, ser talvez uma das causas mais relevantes para as dife-renas, obliteraes e acrescentos que se detectaram entre as duas narrativas em comparao. O denominador comum das adulteraes detectadas parece ser sempre a dotao de maior coerncia do con-tedo do mito e a certificao de que este preserva, ou melhora, a ordem do mundo ou, mais tarde, a prevalncia do bem sobre o mal.

    Em segundo lugar, poder-se- salientar a humanizao que as personagens mticas tiveram - neste caso, os deuses - ao longo do tempo, em consequncia da reflexo humana e da imanncia dos deu-ses gregos. Na verdade, dos tempos da sucesso do impiedoso dspota rano pelo perverso Crono, em que triunfava a fora brutal nas som-brias lutas na cosmogonia e teogonia mais remotas, passou-se para o reinado de Zeus que, apesar de ter sido conquistado com alguma vio-

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    71 Vide P. Grimal, A Mitologia Grega, Mem Martins, 19892, 77-80.

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    lncia, era visto pelos Gregos antigos como justo, equilibrado e garante da ordem universal. Poder talvez inferir-se que, nesta ptica, a segunda e terceira geraes dos deuses helnicos que pertencem ao Panteo constituram um paradigma modelar de comportamento para a sociedade civil e, por isso, foram assumindo formas antropomrficas.

    Deste estudo, ainda axiomtico que os Gregos da poca arcaica procuraram explicar a posio do homem na realidade circun-dante, narrando o passado ancestral segundo os paradigmas mais comuns aos mitos: do caos nasce a ordem; o heri ou o deus experi-mentam um nascimento sob um perigo iminente; o heri ou o deus so expostos para serem salvos; a supresso dos diversos perigos pelo heri ou pelo deus e o confronto com o oponente malvolo permite-lhes ascender ao poder. Ainda assim, os Helenos explicaram o mundo envolvente de forma original apesar de, simultaneamente, ter havido assimilao de componentes orientais (como o Ciclo de Kumarbi hitita), sendo essa assimilao, contudo, adaptada de forma a tornar o contedo compatvel com a mentalidade religiosa grega. As narrativas mitolgicas visaram, sobretudo, a compreenso do hic et nunc, por contraponto da ordem do momento em vivncia contra o caos da ori-gem dos tempos.

    Por ltimo, os textos analisados permitem apurar que os Hele-nos revelaram a sua sensibilidade diversidade do universo de forma original: para eles, o universo no foi fruto da concepo de um s deus mas sim de todo um corpus cosmognico e teognico.

    VIRIATO SEMIO