07245 Paulo Rónai biografia

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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGSTICOS E LITERRIOS EM INGLS

ZSUZSANNA FILOMENA SPIRY

Paulo Rnai, um brasileiro made in Hungary

So Paulo 2009

ZSUZSANNA FILOMENA SPIRY

Paulo Rnai, um brasileiro made in Hungary

Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Estudos Lingsticos e Literrios em Ingls. rea de Concentrao: Estudos Lingsticos Literrios em Ingls Orientadora: Prof a Dra Lenita Maria Rimoli Esteves e

So Paulo 2009

AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogao na Publicao Servio de Biblioteca e Documentao Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

Spiry, Zsuzsanna Filomena Paulo Rnai: um brasileiro made in Hungary / Zsuzsanna Filomena Spiry; orientadora Lenita Maria Rimoli Esteves. -- So Paulo, 2009. 202 p. Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingsticos e Literrios em Ingls) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. 1. Rnai, Paulo 1907-1992. 2. Humanista. 3. Fillogo. literrio. 5. Tradutor. I. Ttulo. II. Esteves, Lenita Maria Rimoli. 4. Crtico

ZSUZSANNA FILOMENA SPIRY

Paulo Rnai, um brasileiro made in Hungary

Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre. rea de Concentrao: Estudos Lingsticos e Literrios em Ingls

BANCA EXAMINADORA

Aos meus Mestres, que se manifestaram atravs de tantas presenas amigas, que me presentearam com o eterno gosto e curiosidade pela descoberta. Ao meu filho Juliano, como estmulo.

AGRADECIMENTOS

Lenita, mestre e amiga, que com seu jeito particular de ser sempre respeitou e estimulou o meu jeito particular de ser. Minha gratido, eterna. Aos professores John Milton e Marileide Esqueda, por sua participao na banca de qualificao. Nora Tausz Rnai, pela porta de sua casa sempre aberta, pelo seu prazer e entusiasmo em ajudar e apoiar. Laura e Cora Rnai, pelo seu incentivo, carinho e torcida. Mesmo que distncia. A Arthur McDermott, que no meio do caminho virou um amigo querido, pelo incentivo e torcida. E tambm pelos livros e material de Paulo Rnai que me enviou da Austrlia distante, com desprendimento. Ao Prof. Istvn Jancs, entusiasta do meu projeto, sempre pronto a apoiar. E ao Prof. Aleksandar Javonavic pelas sugestes e conversas elucidativas. A Nelson Ascher, que generosamente colocou minha disposio seus vastos conhecimentos da cultura e literatura hngara. A Marcelo Tpia que atendeu pacientemente aos meus questionamentos. Na Hungria, ao Dr. Drtos Lszl e a Hornyi Kroly que nunca se cansaram em responder s minhas infindveis perguntas, pelo seu apoio prestativo e amigo, e ao Prof. Kabdeb Lrnt, entusiasta do projeto. Aos amigos do GTG pelo seu incentivo e companheirismo. Solange em especial, pelo seu tempo e disponibilidade. famlia Joarlette, especialmente Jaqueline e Marie-Ange, amigas queridas que alm do apoio sempre presente, me ajudaram com as leituras em francs. Ao entusiasmo de minha sobrinha Sandra. s minhas irms, o apoio familiar. Gabizinha, minha doce netinha, to compreensiva com minhas ausncias, por me incentivar a caprichar na lio de casa. Aos amigos que sempre torceram pelo sucesso do meu projeto. s pessoas da colnia hngara, que, como va Piller, me apoiaram de vrias formas, e Ildik St que discutiu comigo algumas tradues do hngaro. E principalmente a Paulo Rnai, que viveu to plenamente.

Com a trplice herana cultural que o destino me imps judeu, hngaro, brasileiro, e, ainda por cima, professor de latim, francs e italiano, como poderia no trabalhar na aproximao dos indivduos e dos povos, no contato das culturas e dos coraes? Mrito tem o Brasil, que, rodeandome de calor humano, possibilitou, compreensivo e tolerante, que seguisse a minha vocao. Paulo Rnai

ResumoSPIRY, Z. Paulo Rnai, um brasileiro made in Hungary. 2009. 202 f. Dissertao de Mestrado Departamento de Letras Modernas, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo. So Paulo, 2009. Quando, aos 34 anos de idade, Paulo Rnai forado a se exilar da Hungria por ser judeu, ele j um profissional em plena atividade. Doutor em filologia e lnguas neolatinas, ele leciona francs e italiano em Budapeste; paralelamente, desempenha intensa atividade tradutria e j desponta na crtica literria. Depois de aprender portugus sozinho, em 1939 publica uma antologia de poetas brasileiros. Ao chegar ao Brasil, em 1941, salvo dos nazistas graas a um convite do governo de Getlio Vargas, imediatamente capaz de dar continuidade sua atividade profissional. professor de latim e francs em vrias instituies, inclusive no Colgio Pedro II do Rio de Janeiro, onde assume a ctedra de francs. Intensifica sua atividade crtica em jornais de grande circulao e ao longo dos 50 anos que iria viver no pas que adota como ptria poucos anos depois de aqui aportar, participa de muitos projetos culturais, como por exemplo, a organizao da edio e superviso da traduo dos 17 volumes de A Comdia Humana de Balzac, a edio pstuma de duas obras de Joo Guimares Rosa, para citar alguns. Alm de seus livros, entre artigos e resenhas, Rnai publica mais de 1.100 vezes. Visando delinear seu perfil intelectual, pesquisou-se sua produo literria, tanto na Hungria como no Brasil: primeiro em seu acervo particular, e depois nas mais diversas fontes e recursos. A anlise do mapeamento resultante estimulou novas pesquisas no sentido de determinar as bases tericas que fundamentaram a intelectualidade de Paulo Rnai, e o impacto desse arcabouo terico na caracterizao de sua atividade. Concluiu-se que todas as suas facetas de profissional erudito fillogo, humanista, tradutor, lexicgrafo e at mesmo a atividade pedaggica formam um todo coeso e contribuem entre si para enriquecer a funo de crtico literrio. Palavras chave: Paulo Rnai, humanista, fillogo, crtico literrio, tradutor.

AbstractSPIRY, Zs. Paulo Rnai, a Brazilian made in Hungary. 2009. 202 p. Masters degree thesis Modern Languages Department, School of Philosophy, Literature and Social Sciences, University of So Paulo. So Paulo, 2009.

When, at the age of 34, Paulo Rnai was forced into exile from Hungary due to his Jewish origin, he was already a fully-active professional. With a PhD in Philology and Romantic languages, Rnai taught French and Italian in Budapest. In addition, he was a very active translator and began to become known in the field of literary criticism. After teaching himself Portuguese, Rnai published an anthology of Brazilian poetry in 1939. Upon his arrival in Brazil, in 1941, after being saved from the Nazis through an invitation from the Getlio Vargas government, he was able to resume his career immediately. He taught Latin and French in several institutions, including Colgio Pedro II in Rio de Janeiro , where he assumed the French chair. He intensified his activity in the field of literary criticism, publishing in leading newspapers. Throughout the half century that he would live in his adopted country, he partook in many cultural projects, such as the translation supervision and publication of the 17-volume La Comdie Humaine by Balzac and the editing of two posthumous books by Guimares Rosa, just to name a few. In addition to his books, including articles and reviews, Rnai published more than 1,100 times. In an attempt to delineate his intellectual profile, his literary production has been researched both in Hungary and in Brazil, initially in his private library, and later in several sources. The analysis of the resulting mapping stimulated further research toward the theoretical foundation of Paulo Rnais intellectual character, as well as the impact of that theoretical foundation on his contributions. It was concluded that all of his erudite capabilities, whether philological, humanistic, lexicographic, pedagogical, or related to translation, came together as a cohesive whole and contributed to enriching his performance as a literary critic. Key words: Paulo Rnai, humanist, philologist, literary critic, translator.

ndice

ItemIntroduo Cap. I Caminhos da Pesquisa Cap. II Biografia e Obra Cap. III Crtico Literrio Cap. IV Tradutor Cap. V Concluso Bibliografia

Pg.11 18 31 50 87 115 120

AnexosAnexo I Cronologia Anexo II Produo Literria - ndice (a) Hungria e Brasil (b) Artigos e Resenhas (c) Contos da Semana 126 138 142 174 190

INTRODUOEste um daqueles projetos que, pode-se dizer, tm vida prpria. O objetivo inicial era estudar a vida e a obra para entender a mente, o intelecto de Paulo Rnai. Mas na medida em que o mapeamento de sua produo intelectual foi revelando os contornos de seu perfil, novas necessidades foram tomando as rdeas da pesquisa e juntamente com os resultados das anlises, elas foram delineando os rumos a serem tomados. Se no incio partiu-se dos dados biogrficos como foco do projeto, com o desenrolar das pesquisas, apesar da importncia dos fatos e do rumo que eles impingir am vida de Rnai, percebeu-se que esses dados j haviam sido registrados por diversos pesquisadores e o que realmente fazia falta era um delineamento mais apurado de seu legado intelectual. Sem esgotar a lista, a seguir esto mencionados alguns desses registros biogrficos, que valem a pena ser consultados.

Aurlio Buarque de Holanda, no prefcio de A Traduo Vivida, de Paulo Rnai, testemunha uma convivncia intelectual de dcadas. R Magalhes Jr, no prefcio de Guia Prtico da Traduo Francesa, de Paulo Rnai, enfatiza a colaborao que este prestou indstria editorial brasileira. Em vrios escritos artigos e ensaios Nelson Ascher delineia diversos aspectos da contribuio de Rnai vida cultural brasileira. Em seu muito comentado prefcio Antologia do Conto Hngaro de Rnai Pequena Palavra Joo Guimares Rosa descreve tanto aspectos biogrficos relevantes, como lida com as origens da lngua magiar e diversos aspectos culturais de Rnai. Tanto em Lnguas, Poetas e Bacharis Uma Crnica da Traduo no Brasil, como na Routledge Encyclopedia of Translation Studies, Lia Wyler & Helosa Gonalves Barbosa fazem uma descrio da vida e da contribuio de Rnai traduo no Brasil. Em 1994, o Centro Interdepartamental de Traduo e Terminologia (CITRAT) da FFLCH/USP lana sua revista TradTerm Cadernos de Traduo e Terminologia, com uma seo de Homenagem a Paulo Rnai, contendo trs artigos que, no conjunto, lidam de forma abrangente com sua vida e a obra. Marileide Esqueda apresenta tanto sua dissertao de mestrado como sua tese de doutorado ao Instituto de Estudos da Linguagem, da UNICAMP, sobre Paulo Rnai; alm de uma pesquisa abrangente sobre sua vida e de listar uma parte de suas publicaes, descreve o lanamento brasileiro de A Comdia Humana de Balzac,

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organizada por Rnai para a Editora Globo, e analisa aspectos relevantes desse trabalho, tais como as 7.493 notas de rodap que Rnai introduz na edio brasileira. A dissertao de mestrado de Andria Aredes, apresentada Faculdade de Cincias e Letras da UNESP de Assis, tambm sobre Paulo Rnai, mais especificamente sobre os artigos que ele publica no caderno Suplemento Literrio de O Estado de So Paulo. Alm de questes biogrficas de Rnai, Aredes apresenta uma anlise bem abrange nte do mercado periodstico brasileiro da poca. Apesar da abordagem de Aredes coincidir com a abordagem deste trabalho, a amostra com que ela trabalha representa apenas cerca de 10% da efetiva produo ronaiana como crtico. O projeto de concluso de curso de Daniel Roberto Pinto para o Instituto Rio Branco, em 1999/2000, um trabalho indito com foco direcionado para aspectos culturais: Pontes Sobre o Abismo, Esboo da Vida e Obra de Paulo Rnai.

Alm desses, possvel localizar na Internet diversos sites que, apesar de nem sempre precisos, trazem biografias de Rnai.

http://www.dicionariodetradutores.ufsc.br/pt/PauloRonai.htm DITRA Dicionrio de Tradutores Literrios no Brasil. Publicao mantida pelo Ncleo de Traduo da UFSC; seu objetivo fazer um levantamento dos tradutores literrios do Brasil e traar o seu perfil. http://acervos.ims.uol.com.br/php/level.php?lang=pt&component=37&item=42 Pgina do Instituto Moreira Sales, em homenagem aos 100 anos de nascimento de Paulo Rnai, apresenta uma biografia bastante detalhada. http://opiniaoenoticia.com.br/interna.php?id=9947 Na coluna Grandes Brasileiros, artigobiografia de Rnai elaborado por Alexandre Teixeira, advogado da famlia. http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/cron/cb/2007/070828.php Pgina de

Felipe Fortuna - poeta e ensasta, jornalista cultural em um portal de literatura e cultura, em celebrao ao centenrio de Rnai. Nem tudo, porm, totalmente fiel realidade. Por exemplo, comum as pessoas afirmarem erroneamente que Rnai traduziu A Comdia Humana, de Balzac. Ou ento, quando se referem produo literria de Rnai, exceo de Ascher e Aredes, comum as pessoas deixarem de mencionar suas publicaes em jornais e revistas, veculos importantes no caso de Rnai, pois foram utilizados para a divulgao de seu trabalho de crtico literrio.12

Ao longo de suas obras, o prprio Rnai d vrias pistas autobiogrficas. Em carta a Afrnio Coutinho, de 13/09/1958, ao enviar seus dados para este preparar seu discurso de recepo para a cerimnia em que Rnai iria tomar posse da ctedra de francs no Colgio Pedro II, como fonte de informao, ele faz meno ao Pequena Palavra, de Guimares Rosa; tambm faz meno sua prpria introduo de Antologia do Conto Hngaro, alm dos dois primeiros captulos de Como Aprendi o Portugus e ao penltimo de Escola de Tradutores. A respeito de seus amigos e ambiente de vida em Budapeste e na Europa em geral, Rnai cita o captulo O poeta de Bor que tambm figura em Como Aprendi o Portugus e nas notas introdutivas aos escritores de Antologia do Conto Hngaro. Na carta para Afrnio Coutinho, entretanto, Rnai no menciona o penltimo captulo de seu A Traduo Vivida, que, na verdade, uma espcie de biografia de sua atividade tradutria. Sem falar dos inmeros artigos de jornal que falam sobre Paulo Rnai. A ttulo de exemplo, cito o artigo Adeus Paulo Rnai, de Antonio Carlos Villaa publicado no Jornal do Brasil dia 11/12/1992, dez dias aps o falecimento de Rnai que, apesar de obiturio, surpreendentemente tem um tom pitoresco. medida que as pesquisas foram avanando e tomando corpo e o legado ronaiano foi revelando suas reais dimenses, caracterizar o perfil de sua obra passou a ter uma prioridade maior do que as questes biogrficas propriamente ditas; mesmo assim elas no foram deixadas de lado, como se ver ao longo de todo este texto;1 e tambm no Anexo I Cronologia, que traz relacionados, em ordem cronolgica, a maioria dos fatos relevantes da vida de Paulo Rnai, o maior nmero possvel. Examinar alguns aspectos tericos subjacentes obra ronaiana tambm tornou-se uma necessidade. No que as vozes acima mencionadas no lhe fizessem jus, ao contrrio. Privilegiando um ou outro aspecto, todas elas delinearam alguns contornos intelectuais de Rnai, com enfoques especficos. O objetivo deste texto, porm, possibilitar um olhar nico totalidade da obra ronaiana reunindo-a em um nico mapeamento vide Anexo II , e fundamentar as bases tericas em que seu pensamento foi moldado. Sugere-se, pois, que este Anexo II seja examinado juntamente com o Captulo II Biografia e Obra, que apresenta alguns comentrios complementares. Sempre que uma deciso organizacional foi necessria, adotou-se a ordem cronolgica como princpio norteador, em funo da enorme quantidade e variedade de material que teve de ser manipulado. Desta forma, os eventos e publicaes esto separados em dois perodos significativos: a fase Hungria, desde o nascimento at a vinda1

Thelma Mdice Nbrega, em Sob o Signo dos Signos, Uma Biografia de Haroldo de Campos , declara ser esse seu objetivo: realizar um perfil intelectual de Haroldo de Campos, para construir paralelos entre sua obra e sua personalidade. Ao examinar as trs obras que ela cita como modelos para sua tese Rodrgez Monegal, Ellmann e Kenner , a impresso que se tem que cada autor mergulha de tal forma em seu biografado que ao invs de estar lendo o texto do bigrafo, se l o prprio biografado. Este porm, no um objetivo perseguido por este texto. 13

para o Brasil, e o perodo seguinte, a fase Brasil. Com base nesse mesmo princpio cronolgico, as publicaes que ocorreram na Hungria durante a fase Brasil, foram relacionadas em item prprio, junto com a fase Brasil. No sculo XXI, pesquisar uma vida e uma obra que aconteceu em dois mundos to distantes como a Hungria e o Brasil, em pocas to diferentes como o perodo anterior 2 Guerra Mundial na Hungria, e a segunda metade do sculo XX no Brasil, no poderia deixar de apresentar particularidades especficas. Por isso, no Captulo I Caminhos da Pesquisa, discutem-se alguns aspectos biogrficos que influenciaram o rumo que a vida de Rnai tomou por exemplo, o peso de ele ter nascido em uma famlia judia, na Eu ropa Central, s vsperas da 1 Guerra Mundial , e se apresentam algumas dificuldades enfrentadas durante o transcorrer das pesquisas de um material com caractersticas to variadas no tempo e no espao. A partir do resultado da anlise do perfil da obra e determinada a dimenso da atividade crtica na vida do intelectual Paulo Rnai, julgou-se necessrio caracterizar essa atividade separadamente da atividade tradutria. Por isso, elas so comentadas nos captulos III e IV, respectivamente. Sempre que algum segmento em hngaro mencionado ao longo desse texto, adotou-se o critrio de oferecer, junto, uma traduo para o portugus. Pela significncia da informao para o objetivo deste trabalho, todas as tradues produzidas por Rnai, e relacionadas no Anexo II, tm anotadas a lngua fonte e / ou a lngua alvo. Por exemplo, em Paris, Rnai publica tradues do hngaro para o francs. Em Budapeste tambm, pois trabalha para vrias publicaes francesas na capital hngara. Mas em Budapeste ele tambm publica tradues de vrias outras lnguas para o hngaro, inclusive do latim e do portugus. A mesma coisa no Brasil. Apesar de evidente, mister observar tambm que por ser Paulo Rnai o autor das obras, textos, tradues, publicaes e artigos relacionados no Anexo II, no registro de cada item bibliogrfico, seu nome como autor ou tradutor foi omitido. Todo o resto segue as normas ABNT, exceo dos artigos de jornal. Para no confundir o leitor, devido grande variedade de materiais ao longo deste texto, achou-se por bem manter uma nica forma de notao para autor, ttulo, local e data, inclusive para artigos de jornais e revistas. Quando existir, a traduo dos ttulos hngaros foi colocada entre parntesis, mas no em itlico, por no se tratar de ttulo oficial. s vezes, devido relevncia, em se tratando de material publicado na Hungria, apresenta-se uma brevssima explicao no final do registro do item. O critrio aqui adotado um pouco diferente do critrio usado por Andr Figueiredo Rodrigues em Como Elaborar Referncias Bibliogrficas. Ele sugere que no caso de artigos de jornal, o ttulo do artigo seja mantido em fonte normal e que o nome do jornal fique em itlico o inverso do que se requer para o ttulo de um livro. Mas devido grande variedade14

de material com que se lida neste trabalho, s vezes em uma nica seo, como j mencionado, resolveu-se manter uma notao nica. Alm disso, Rodrigues sugere que a cidade onde o jornal publicado tambm conste do registro da publicao. Como o A nexo II muito extenso, com mais de 1000 itens, e a grande maioria dos artigos aparece sempre nos mesmos jornais, em vez de repetir a informao em cada item, optou -se por fazer uma legenda no incio da relao 2. A mesma coisa no caso dos jornais e peridicos estrangeiros, cujas principais caractersticas tambm esto descritas em legenda, no incio da lista. S que no caso destes peridicos estrangeiros, devido importncia analtica e variedade simultnea dessa informao, o local de publicao mantido no registro, na lngua original. O objetivo facilitar a pesquisa e recuperao de qualquer item registrado, em seu pas de origem, tal como publicado. 3 Alguns assuntos deixaram de ser tratados neste projeto. No porque no fossem relevantes. Foi necessrio delimitar para no abrir demais o leque. Por exemplo, a pilha de artigos que saram na mdia sobre Paulo Rnai no menor do que a pilha de artigos publicados por ele, e ela merece que lhe seja dedicada ateno, no futuro. Outro tema pesquisado inicialmente mas que aqui acabou perdendo espao foi o mapeamento da crtica brasileira no perodo em que Rnai participou dela ativamente. Graas ao acesso que se teve a vrios textos acadmicos na rea, como Aredes, por exemplo, foi possvel levantar uma bibliografia bem completa a respeito. Entretanto, as caractersticas da produo literria de Rnai direcionaram o foco da presente anlise para ngulos mais inexplorados e o estudo do panorama da crtica literria brasileira e do papel especfico de Rnai neste cenrio tambm foi adiado para projetos futuros. O relacionamento de Rnai com as editoras tambm um tema que mereceria uma pesquisa mais aprofundada. Como na poca anos 40 e 50, talvez at anos 60 as coisas aconteciam muito mais de boca do que com contrato assinado, existe muito pouca informao oficial sobre esse assunto. O nico registro que ele tem em carteira de trabalho com a Editora Globo, no cargo de chefe de escritrio. Mas ao longo das pesquisas encontrou-se vrios indcios de que a atuao de Rnai junto s editoras era muito mais efetiva. Por exemplo, quando se l um artigo de Fernando Py4

em que este conta como

conheceu Rnai e de como havia sido convidado por ele para colaborar com resenhas de livros na extinta revista Comentrio, que ento dirigia. Mas no se localizou nenhum

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Esse critrio adotado tambm pela Biblioteca Nacional na publicao O Conto Brasileiro e sua Crtica, de Celuta M. Gomes. Como a obra , na verdade, um grande catlogo de livros publicados sobre o tema conto e os artigos crticos que sairam em jornais e peridicos, sobre os mesmos livros, existem milhares de citaes a peridicos. Ento, no registro em si, a publicao traz o nome do jornal em forma abreviada, como um cdigo, e no final do volume existe uma tabela com os ttulos, respectivas abreviaturas e locais de publicao.4

PY, Fernando. Paulo Rnai. Dirio de Petrpolis, 13/12/1992.

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registro oficial sobre isso. Pelo menos no por enquanto. Ou, sobre a mesma revista, no formulrio que preencheu para a Universidade da Flrida, em 1966, quando foi trabalhar l como Visiting Professor, no campo emprego secundrio, Rnai declara ter sido Secretrio da Revista Comentrio, entre 1960-1962, e tambm do Instituto Cultural Brasil Israel, entre 1963-1965, assim como da Editora Delta, na posio de literary adviser, desde 1960. Em outro campo do formulrio ele tambm menciona ser professor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, uma atividade a que, em outro documento, Rnai refere-se como sendo a de conferencista sobre a histria do teatro. Em outro documento, um curriculum escrito em francs, Rnai confirma sua colaborao com a Delta-Larousse, nos campos da literatura e da gramtica, e informa sobre a colaborao com a Enciclopdia Barsa, uma edio brasileira da Encyclopedia Britnica. Na carta para Afrnio Coutinho acima mencionada, Rnai tambm faz referncia questo do relacionamento com editoras: Da biografia no constam minhas atividades profissionais em editoras e jornais da Hungria e do Brasil; neste ltimo, lembrarei a Atlntica Editora, o Instituto Nacional do Livro e a Editora Globo, assim como o Dirio de Notcias e A Cigarra (em ambos tenho uma seo de parceria como Aurlio). O exame um pouco mais apurado do item Livros Prefaciados, no Anexo II, vai nos revelar que Rnai prefaciou vrias publicaes da BUPBiblioteca Universal Popular, pode-se dizer de forma sistemtica. E, coincidentemente, o primeiro lanamento de seus Contos Hngaros tambm foi feito pela BUP. Esta mesma impresso se faz presente com a EDIOURO. Por mais que sejam fundamentadas, evidentemente essas impresses no passam de conjecturas elaboradas a partir das pesquisas e anlises feitas neste projeto, mas que necessitam de um aprofundamento maior. No penltimo captulo de A Traduo Vivida, nessa espcie de autobiografia tradutria, Rnai faz meno a trabalhos que fez para as editoras: Delta, Tecnoprint lanadora das Edies de Ouro e Nova Fronteira, mas que no se limitam a trabalhos de tradutor. natural um autor chamar sua casa publicadora de a minha editora como Rnai faz ao agradecer uma homenagem recebida da Editora Nova Fronteira, ou mesmo querer consagrar palavras de gratido memria do fundador desta casa, meu grande amigo Carlos Lacerda. Porm, a impresso de que ele teria participado dessas casas no somente como autor, se verifica, por exemplo, no final do livro de Prosper Mrime, da Ediouro, quando se examina a relao dos Clssicos de Bolso publicados pela casa: dela figuram vrios autores exticos como chineses, indianos, etc, uma relao que lembra muito os autores constantes da coluna Contos da Semana e do Mar de Histrias. Porm, no se dispe de documentos ou registros em carteira de trabalho que comprovem de fato essas atividades editoriais.

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O texto que se apresenta, pois, nas prximas pginas, no retrata tudo que foi feito para se alcanar este resultado final. Mas oferece os elementos bsicos para se compreender um intelecto que trabalhou no Brasil mas que havia sido moldado em um ambiente cultural diferente. E para se apreciar o seu legado intelectual, na totalidade, como um conjunto coeso.

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I Caminhos da Pesquisa

A resposta a uma indagao prvia parecia sempre trazer em seu bojo outras tantas questes a serem elucidadas sobre Paulo Rnai. Rapidamente ficou claro que a biografia que se pesquisava no era a de um tradutor pura e simplesmente. Em primeiro lugar, como se v encapsulado no ttulo Paulo Rnai um brasileiro made in Hungary no se tratava de pesquisar sua vida e obra somente em solo nacional. Estava-se diante de um intelectual que havia sido moldado na Europa em um momento histrico complexo, em um pas que, apesar de pequeno, tinha os ps firmemente fincados na sala de visita s do imprio dos Habsburgos. Um pas que apesar de sua cultura milenar, estava isolad o pela barreira imposta por sua lngua singular e por isso detinha um arcabouo literrio especfico. Afinal qual seria o verdadeiro perfil de um humanista cuja intelectualidade havia sido forjada na Hungria, no fervilhante momento histrico entre guerras, mas que provinha de uma origem judaica? Que tipo de influncias essa conjuntura de coisas teria sobre sua formao intelectual? E na sua profisso, ter origem judaica fazia alguma diferena? Essa condio imps limites sua carreira? Ter se tornado um amante das belas letras foi motivado unicamente pelo fato de ter nascido filho de um livreiro? E por que Brasil? Por que no Austrlia, como fazia supor um atestado de sade que ele fez no Consulado Britnico no incio de 1939 e que trazia explicitamente por motivo de viagem Austrlia? Para delinear o perfil intelectual de Paulo Rnai, isto , a base terica que embasa seu pensamento de tradutor, seria suficiente considerar seu epteto de humanista? Por que tanta gente diferente, atuando em tantas diferentes reas do saber, identifica Rnai de outras tan tas formas diferentes? E o que significou sua opo pelo Brasil? Simplesmente um continuum ou um recomeo? Segundo carta que escreve a um amigo hngaro, em 1959, Rnai afirma que no, que desde o instante em que pisou em solo brasileiro foi capaz de dar c ontinuidade carreira que tinha iniciado na Hungria. Ento a questo central, o norte que orientou as indagaes, era: nesse homem multifacetado, h vrios profissionais? Ou haveria algum trao comum, mais forte?

Vrios autores emergem, aqui, de uma mesma pessoa. Paulo Rnai revela-se lingista e crtico, memorialista e testemunha de seu tempo, especialista na cultura oral e literria de vrios povos e pases, latinista e educador. Mostra -se, antes de mais nada, um mestre da lngua portuguesa e do ensasm o, um humanista capaz de 5 conciliar todos esses temas, mantendo seu interesse vivo e instigante para todos.

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Como aprendi portugus. Rio de Janeiro: Globo, 1975. (contracapa) 18

Apenas doze anos aps a chegada de Rnai ao Brasil, Ceclia Meireles, no prefcio de As Cartas a um Jovem Poeta, refere-se a ele como poliglota e erudito j incorporado s letras brasileiras. Para mencionar alguns exemplos. Conforme a pesquisa avanava e ia se fazendo contato com os ensaios crticos de Rnai, cada vez ia ficando mais evidente o significado e o peso de sua origem e formao hngaras nos contornos de seu fazer intelectual e as pesquisas iam se direcionando cada vez mais para sua formao humanstica, na Hungria da virada do sculo XX, para uma pessoa que nasceu dez anos antes da Primeira Guerra Mundial, filho de um livreiro judeu portanto em uma famlia de certa posio econmica e intelectual. Paralelamente a esse perfil mais geral, comearam a surgir questes de ordem pessoal: em que medida Rnai foi influenciado pelo meio em que cresceu e se desenvolveu intelectualmente? Ou seja, quem eram os dolos de sua juventude? Com o que se divertiam aqueles jovens do comeo do sc. XX? O que alimentava seus sonhos e esperanas? Parece que o ambiente cultural da poca da juventude de Rnai extremamente propcio para os moldes do perfil intelectual que ele viria a desenvolver. O trecho a seguir, extrado de um texto contemporneo que conta a histria do surgimento de um jornal em Budapeste, parece ilustrar bem esse mundo da juventude ronaiana.1932-ben trtnt, hogy ngy budapesti hsz v krli fiatalember elhatrozta, havi folyiratot indt a legjabb r-klt nemzedk egyttes megszlaltatsra. Kamasz gimnazista koruk ta j bartok voltak, verseiket gyakran egytt olvastk fel ugyanannak a nhny gimnazista lnynak, akikkel nyron t eniszezni, tlen korcsolyzni jrtak, s akikkel egytt beszlgettek -vitatkoztak irodalomrl, mvszetekrl, olykor mg filozfiai krdsekrl is. Aconteceu em 1932. Quatro jovens de Budapeste, no entusiasmo de seus vinte anos, decidiram lanar um peridico mensal impresso, direcionado sua gerao de escritores e poetas, para que esses tivessem uma arena onde se manifestar, se fazer ouvir. Desde o vio de seus anos de adolescncia eram bons amigos. Com freqncia, juntos declamavam seus prprios versos para aquele mesmo punhado de garotas do ginsio com quem costumavam jogar tnis no vero, patinar no inverno, com quem, juntos, discutiam sobre literatura, artes, e s vezes at conversavam 7 sobre suas questes filosficas . [minha traduo, do hngaro]6

As influncias intelectuais de sua juventude juntamente com os eventos histricos em que estiveram inseridas, marcaram e acompanharam Rnai pelo resto da vida. Em uma entrevista ao Jornal de Braslia, publicada em 28/09/1977, ao citar Ady Endre como seu autor preferido, ele declara com todas as letras: Ele foi o dolo da minha mocidade . Raras

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Em entrevista a Egon e Frieda Wolff, Participao e Contribuio de Judeus ao Desenvolvimento do Brasil, (publicao prpria), Rio de Janeiro, 1985, (p.109), Rnai conta que O primeiro livro que meu pai me deu era de Balzac. Mas geralmente a livraria estava minha disposio e como meus pais gostavam de ler, eu tambm comecei a gostar. 7 http://mek.oszk.hu/01100/01149/html/szaboz.htm Trecho do artigo que conta a histria de Szab Zoltn, um dos fundadores do jornal Nvtelen Jegyz, Budapeste, Hungria, em 1932. 19

vezes Rnai , ele prprio, personagem de seus escritos. Mas ao apresentar Kosztolnyi Dezs na Revista USP n 7 (1990), ele descreve um pouco o ambiente cultural da Hungria de sua juventude:Nascido em Budapeste em 1907, durante o decnio de ouro da moderna literatura hngara (comparvel, no Brasil, dcada do modernismo) pude conhecer de vista alguns componentes da pliade aglomerada em redor da revista Nyugat [...]. No era difcil encontr-los: sucediam-se os saraus, tardes de autgrafos, recitais de poesia, que os jovens de minha gerao freqentavam com entusiasmo. [...] A gente cruzav a nas ruas com os grandes nomes das letras, entrevia-os atravs das vidraas dos cafs.

Uma mocidade que tinha como dolos os intelectuais que tambm participavam ativamente da vida social e poltica do pas. Rnai viveu os anos de sua juventude em um ambiente literrio fervilhante. Quando indagado sobre o que fazia de Ady Endre um grande poeta, tantos anos depois, em 1977, Rnai ainda fala com entusiasmo:

impossvel dar, em poucas palavras, uma idia da riqueza, do lan e da vibrao da poesia de Ady e de sua extraordinria repercusso. Seus poemas incendiavam o ambiente literrio, atacavam todos os tabus, agitavam os espritos, suscitavam protestos ferozes e defesas arrebatadoras, dividiam o pas em dois campos opostos. A sua fora consistia na intensidade com que vivia todos os conflitos que so os temas ancestrais da poesia: o espanto do vivo ante a morte, do homem em face de Deus, do indivduo diante a sociedade, do pobre ante a riqueza, do homem em face da mulher, do descendente em relao aos seus antepassados. [...] Desnudava com sinceridade nunca vista as chagas de sua alma, seus conflitos e suas angstias. Sua linguagem revolucionria fazia com que s acusaes de impatriotismo e de imoralidade se juntasse a da incompreensibilidade. A posteridade lhe fez justia. Hoje um clssico, mas um clssico vivo, cujos versos todos sabem de cor e que exerce influncia descomunal at hoje.

Confirmando a impresso inicial sobre sua intelectualidade diferenciada, nesse pequeno trecho Rnai fala de muitas coisas. Primeiro, ele destaca a importncia vital que o gnero poesia teve, e tem, sobre sua intelectualidade. Como se ver mais adiante, existe uma significativa parcela da produo literria hngara voltada para o que, em outro trecho dessa mesma entrevista, Rnai chama de poesia cvica. Ento, devido sua significncia para Rnai, as pesquisas teriam que se estender tambm nessa direo, numa parcela mnima que fosse. Em seguida, quando menciona os temas ancestrais da poesia, Rnai demonstra sua intimidade com esse gnero literrio, um dos gneros que ir acompanh-lo ao longo da vida, de vrias maneiras. Portanto, mais um item para o rol das pesquisas. E esse ambiente literrio que ele cita? Quais suas caractersticas, seus principais cones? Impossvel delinear um perfil sem tambm dar os contornos do contexto a que pertence. Teria ento a Hungria um sistema literrio independente? E se sim, quais suas particularidades? Mais um item na lista a pesquisar. E a traduo, que papel desempenha

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nesse sistema literrio especfico? Sim, porque a traduo tem um papel evidente na produo literria de Rnai, mas ser que ela detm a posio mais alta como querem alguns que j estudaram, parcialmente pelo menos, a sua obra? Como se ver ao longo d os captulos a seguir, existem novas perspectivas a serem consideradas. Voltando s origens culturais de Rnai, como ele destacou na entrevista acima, enquanto vivo 1877 a 1919 , Ady foi o que poderamos chamar de um revolucionrio, que usava sua pena para incendiar paixes. Ora, exatamente na poca de sua morte que encontramos o jovem Rnai vivendo as emoes de um garoto de 12 anos, publicando seus primeiros poemas em um jornalzinho de ginsio, datilografado e ilustrado com desenhos mo livre. A morte de Ady havia acontecido apenas 6 meses antes quando aqueles garotos colocaram um desses seus poemas incendirios na primeira pgina de seu jornalzinho. A Primeira Guerra Mundial tinha acabado de terminar e a Hungria estava prestes a perder 2/3 de seu territrio nacional, como de fato aconteceu com a assinatura do Tratado de Trianon, em 04/06/1920. As palavras de Ady reverberavam nas jovens mentes com o entusiasmo de sua mocidade. E foi nesse ambiente fervilhante e patritico que o jovem Rnai cresceu e teve sua cultura moldada. As indagaes continuam: que influncia esse ambiente teve em sua vida intelectual? E que parcela veio na sua mala quando desembarcou no Brasil nos idos de 1941? Poucos no Brasil tem alguma intimidade com a cultura e a intelectualidade hngara. Era necessrio conversar com quem havia tido contato com Rnai enquanto vivo e poderia dar um panorama de um ponto de vista de um estudioso dessa cultura. Em entrevista por e mail, Nelson Ascher d uma sntese do papel que, em sua opinio, Ady desempenhou na vida intelectual de Rnai e faz isso comparando com outro intelectual hngaro George Lukcs - que tambm havia sido influenciado pelo mesmo Ady Endre, mas com resultados bem diversos.Quanto ao Ady, embora o que o Rnai tenha escrito sobre ele seja mnimo, d para se ver que possua uma viso mais ampla e profunda do poeta do que Lukcs. Ady, para Rnai, descortinava horizontes, enquanto para o filsofo ele era sobretudo a confirmao de idias que ele j acalentava antes. Lukcs, bom hegeliano e, d epois, marxista, achava que a literatura existia para se dissolver na realidade, ou seja, que ela era apenas um momento negativo de auto-reflexo, mas um momento que, de uma realidade alienada poderia conduzir a outra realidade, esta sim autoconsciente. Da que Rnai se aproximasse de Ady (e de demais autores) buscando tudo o que 8 eles podiam oferecer.

Dois hngaros, judeus, intelectuais, que menos de uma gerao separava, ambos influenciados pelo mesmo poeta incendirio... Evidentemente no se poderia compreender a mentalidade ronaiana sem passar uma vista dolhos nas questes aqui sugeridas, as quais

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Nelson Ascher, em entrevista pessoal, por e-mail. 21

de alguma forma j haviam sido abordadas quando da pesquisa do significado da problemtica judaica na vida de Rnai, uma questo evidente demais para no s er analisada. J histria que Rnai por pouco no consegue entrar na universidade por causa exatamente de sua origem judaica. Na poca estava vigente na Hungria uma lei que limitava a entrada de judeus na universidade a um total de 3% das vagas o famoso numerus clausus. Quando foi se inscrever pela primeira vez, Rnai foi barrado por conta da tal lei. Quando porm, um de seus antigos colegas de ginsio, que j havia se inscrito, ficou sabendo que ele tinha sido barrado, indignado, o colega de Rnai foi falar com o Diretor da escola e disse que de bom grado cederia seu lugar pois era inadmissvel que no houvesse lugar na faculdade para o aluno mais brilhante do ginsio. Na questo do nascimento em famlia judaica, chama a ateno o fato de que, devido s caractersticas de suas prticas religiosas por exemplo, a constante repetio do Pentateuco desde a poca dos juzes (cerca de 3.000 anos atrs) no existe judeu analfabeto: segundo essa milenar tradio judaica, obrigao do pai ensinar o filho a ler, como forma de inici-lo nas prticas religiosas. Detalhes desse ensino compulsrio chegam a ser prescritos nas escrituras, segundo os textos consultados. 9 Tanto assim que ao implantarem suas escolas para garantir um mnimo de instruo judaica10

os povos judeus

espalhados pela Europa desde a Idade Mdia tiveram um papel pioneiro e preponderante na disseminao do sistema escolar que viria a compor o ensino livre contemporneo. Ainda segundo essas fontes, no incio do sc. XIX particularmente na Alemanha praticava-se o simultanschule, isto , cristo e judeus freqentando as mesmas instituies de ensino mas recebendo instruo religiosa em separado. Nesse ponto da pesquisa, e relevante para ela, necessrio considerar a questo da emancipao judaica Hashkalah que ocorreu na educao e tambm em todas as esferas culturais. Posterior, mas impulsionado pelo iluminismo, esse movimento irrompe com fora total no sculo XVIII. O iluminismo judaico, um movimento ascendente, tambm conhecido como messianismo judaico, e que significou uma rpida assimilao e insero na cultura dos pases em que at ento os judeus viviam sombra da sociedade fato histrico que, tal qual escravos e servos, os judeus no tinham nem direito cidadania , produz intelectuais de grande relevncia para a moderna histria da humanidade. A Hungria no fica de fora desse movimento generalizado, e Lukcs um desses cones. Em um artigo localizado no Museu Eletrnico da Hungria 11, que trata da influncia de Ady Endre sobre a intelectualidade hngara, destaca-se que foi Lukcs quem primeiro percebeu a centralidade do pensamento revolucionrio de Ady. Tambm Istvn Mszros,9

Encyclopaedia Judaica, Israel: Jerusalem, 1971. Verbete: Jewish Education. Vol.6, p.382. ROTH, Cecil (org.) Enciclopdia Judaica. Biblioteca Coleo de Cultura Judaica. Rio de Janeiro: Ed. Tradio, 1967. http://mek.oszk.hu/02200/02228/html/06/64.html10

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em entrevista Carta Maior 12, refere-se a essa influncia e, se no acrescenta, refora o que j foi dito at aqui.Fui criado em Budapeste, onde o desenvolvimento cultural - especialmente no que se refere s relaes estreitas entre a literatura criativa e o pensamento social e poltico era muito especial, talvez nico. Isso porque os maiores e mais radi cais poetas da 13 nossa literatura nacional, como Sndor Petfi, Endre Ady e Attila Jzsef , eram tambm os mais profundos e abrangentes pensadores hngaros de sua poca. Nos seus apaixonados escritos lricos tanto quanto em suas reflexes tericas, eles trataram dos mais desafiadores temas da sociedade na sua perspectiva histrica, oferecendo solues revolucionrias, elevadas e abrangentemente perspicazes, capazes de resistir ao teste do tempo. No surpreendentemente, Heinrich Heine, amigo de Marx, escreveu que sentiu uma enorme presso de sua prpria "cam isa-defora alem" quando leu a poesia de seu grande contemporneo hngaro, Sndor Petfi. [Nota: aqui Mszros est se referindo quilo que anteriormente foi chamado de poesia cvica.] [...] O papel especial desempenhado pelos poetas mais eminentes na cultura hngara, incluindo nela o campo da teoria, ajuda a explicar por que o dolo intelectual e poltico do jovem Lukcs era ningum menos que seu contemporneo mais velho, Endre Ady. [...] Em um de seus poemas, Ady criou a frase proftica que se provou dramaticamente real alguns anos mais tarde: "Estamos nos precipitando para a revoluo". Dessa realidade Lukcs participou ativamente como ministro da Cultura e, na fase final da revoluo, como comissrio poltico de uma das divises militares. [...] Meu cuidadoso e no sistematizado estudo dos textos filosficos comeou no ltimo ano da guerra, quando tive a chance de ler alguns trechos escritos por Marx, Engels, Kant e Hegel. A mudana qualitativa dessa leitura ocorreu quando, no incio de 1946, descobri em uma livraria uma coletnea de ensaios crticos de Lukcs. Eles tratavam de algumas das maiores figuras e temas da literatura hngara, [...] insistindo com paixo na responsabilidade dos intelectuais, tocou-me diretamente.

Ou seja, devido especificidade cultural que esse fato representa, e o seu papel central no argumento que se quer desenvolver aqui, necessrio insistir na importncia desse duplo papel que a intelectualidade hngara desempenha na sociedade como um todo. Ady influencia tanto o pensamento lukcsiano quanto o ronaiano, mas de maneira bem diferente. Enquanto Lukcs v em seu dolo inspirao e motivao para sua adeso ao movimento revolucionrio, Rnai, apoltico, segue a vertente esttica de Ady Endre. O mot o de Paulo Rnai o campo da esttica, a literatura. Pode ser que a diferen a de idade entre eles, apesar de pequena, exera alguma influncia, afinal, quando Rnai chega fase adulta, assiste, e sofre na carne, destruio da idlica Hungria de sua infncia. J Lukcs vive e participa dos grandes eventos do primeiro quarto do sc. XX sob outra perspectiva. Ao contrrio de Lukcs, Rnai no participa do messianismo judaico nos moldes descritos por Michael Lwy14. no campo da esttica que vai concentrar sua vivncia intelectual. Mas, no caso da Hungria, importante deixar claro, mais uma vez, que ficar no campo da esttica no deixa de ser tambm uma forma de resistncia. Rnai v nisso uma12 13

Entrevista especial para a Carta Maior http://agenciacartamaior.uol.com.br/ Mszros no faz a inverso de nomes como hbito quando se menciona nome hngaro. 14 LWY, Michael. Redeno e Utopia O judasmo libertrio na Europa Central. So Paulo: Cia. das Letras, 1989. 23

razo histrica, como bem mostra na Apresentao de seus Contos Hngaros, com algumas resumidas, mas bem delineadas palavras sobre o advento magiar nas terras da Europa central....um bloco tnico, lingstico e cultural sui generis, ilhado entre vizinhos que pertencem aos grupos eslavo, germnico e latino. Vindas da sia, as nmades tribos magiares fixaram-se s margens do Danbio no fim do sculo IX e por uma centena de anos se tornaram, com suas incurses, o flagelo da Europa Ocidental. Mas por volta do ano 1.000 j as encontramos unidas num reino slido e integradas no catolicismo. A tal ponto chegou a sua identificao com o Ocidente, qu e desde o sculo XIII formaram um baluarte de proteo em que se quebraram as ondas de 15 invaso dos trtaros e dos turcos, ambos seus parentes. Porm, no sculo XVI, no resistindo expanso do imprio turco, tiveram os hngaros grande parte do seu territrio ocupada pelo Crescente. Libertados cento e cinqenta anos depois com o auxlio da ustria dos Habsburgos, pagaram a ajuda com a prpria independncia e l se vo outros dois sculos passados em penosos esforos para recuperar a autonomia. [...] Arrastada Primeira Guerra Mundial por seus laos com a ustria, dela saiu mutilada, com a perda de dois teros de seu territrio; envolvida na Segunda Guerra Mundial, foi campo das mais encarniadas batalhas e sofreu terrvel sangria em suas reservas humanas. Libertada pelas tropas russas em 1945, dentro em pouco passou rbita sovitica. [...] Compreende-se que nesta sucesso de crises, que punham em perigo a prpria existncia da nao, o simples uso da lngua magiar significasse mais de uma vez um ato de resistncia, e a literatura adquirisse o 16 17 acento pattico de uma profisso de f.

Mesmo no seguindo uma via revolucionria como a de Lukcs ou de muitos outros, em sua crena, Rnai no deixa de exercer o seu papel na luta pela preservao da identidade nacional, quando, j no Brasil, ou mesmo ainda na Hungria, passa a divulgar as letras hngaras. Apesar de ser declaradamente agnstico, Rnai no consegue se esquivar das influncias que o fato de ter nascido em uma famlia judia ter sobre o percurso de sua vida. At no seu diploma de doutor em filologia, no campo onde o aluno identificado, sua condio de judeu citada. Mas mais significativo para os contornos especficos de sua persona pertencer, estar inserido na cultura hngara. Esse pertencimento, esse sentimento nacionalista bem ilustrado por Istvn Szab em seu filme Sunshine O Despertar de um Sculo18

, em que conta a saga de trs geraes de uma mesma famlia

15

Joo Guimares Rosa, em Pequena Palavra, faz uma descrio detalhada da origem comum da lngua hngara com a grande famlia turaniana . In: Antologia do Conto Hngaro, de Paulo Rnai. 16 Rnai, evidentemente, usa o termo pattico no sentido 2, do Dicionrio Aurlio: que revela forte emoo; apaixonado . Novo Dicionrio Eletrnico Aurlio verso 5.0 (em CD) 17 Contos Hngaros. So Paulo: EDUSP, 1991. (p.12) 18 Em especial, duas cenas chamam a ateno para as questes levantadas aqui: a carta que Ignazts recebe de seu pai, quando vai deixar a casa paterna e se transformar em um juiz, que em poucas palavras, resume as mesmas questes histricas aqui destacadas o papel ancestral da educao na cultura judaica, a excluso social sofrida pelos judeus ao longo da histria, a habilidade adaptabilidade que a excluso social indiretamente provocou e, a cena em que seu filho, apesar de ter sido um campeo olmpico e com isso ter conquistado as maiores glrias para sua ptria, morto pelos guardas hngaros nacionalistas, no campo de concentrao, surdos sua resposta pergunta quem voc?: sou um hngaro, campeo olmpico! A crena, a confiana na proteo, mas principalmente no significado de pertencer nao hngara, nesta cena, fica elevada ao grau mximo. 24

judia de Budapeste e demonstra, com cenas tocantes, como o sentimento nacionalista estava acima da condio religiosa. Apesar das condies de seu nascimento judeu, Rnai um intelectual que, sem ufanismos, ama a sua lngua materna e toda literatura hngara. Um exemplo ilustra bem o que isso significa. Em funo deste projeto, recentemente contactei um pesquisador na Hungria, e ele fez o favor de localizar um artigo de Rnai - A magyar nyelv titkaibl. (Dos segredos da lngua magiar) publicado no jornal Kultura, em 03/08/1953 - cuja referncia eu havia localizado em uma biblioteca da Hungria, via Internet. Como no havia mquina xerox disponvel na tal biblioteca, no dia 31 de janeiro de 2009 esse senhor digitou uma cpia do texto de Rnai em seu laptop e me enviou por e-mail com o seguinte comentrio:Szp rs s meghat, Rnai lettja felsznes ismeretnek fnyben is. Az az ember, aki ldzttnek rezhette magt a sajt hazjban s emigrciba knyszerlt, ilyen szpen valljon magyarsgrl, az anyanyelvrl. Kroly Hornyi. Trata-se de um texto belo e tocante, principalmente em face dos detalhes da histria de vida de Rnai. tocante que aquele homem que se sentiu perseguido em sua prpria ptria e foi forado a emigrar, confesse sua magiaridade e seu amor pela lngua materna, de maneira to bela. Kroly Hornyi. [por e-mail] [minha traduo, do hngaro]

Entre a data do artigo e o e-mail, passaram-se mais de 55 anos. Mesmo assim o sentimento nacionalista arraigado na intelectualidade, no ser individual de Rnai e que ele havia transmitido atravs daquele texto, no arrefecera ou perdera o seu frescor. Apesar de sua ptria ter lhe virado as costas fato ao qual ele faz meno ainda em 1987, por ocasio da homenagem que recebe do Governo Hngaro Rnai no perdera o amor pela sua lngua materna. Forado pelas circunstncias da vida, Rnai deixou a Hungria, como muitos outros emigrantes europeus, e integrou-se completamente vida de sua nova ptria. Seus escritos, apesar de deixarem transparecer seu amor pela lngua e cultura hngaras, revelam entretanto que o exlio no o fez perder o verdadeiro sentido do humanista, o amor pela literatura como um todo. Portanto, os fatos levam ao entendimento de que este o contexto em que ele tem que ser analisado. Moldado na cultura hngara sim, condizente com a agenda da intelectualidade hngara sim, mas, segundo Ascher, acima de tudo, Rnai um intelectual humanista inserido na Weltliteratur, um conceito que neste trabalho deve ser considerado nos termos a seguir, conforme Carlos Rizzon 19:Ao conceituar Weltliteratur, em 1827, Goethe buscava opor-se s classificaes restritas e compartimentadas entre literatura nacional e literatura mundial para resgatar na poesia um patrimnio comum da humanidade. [...]. Dessa forma, sua

Biblioteca: tempos e espaos de uma leitura. http://www.dobrasdaleitura.com/revisao/bibliotecarizzon.html 25

viso possibilitava uma interao entre literaturas atravs de trocas interculturais, onde as literaturas nacionais sofreriam transformaes pelo contato entre autores e obras de diferentes pases. Nessa perspectiva, adquire vital importncia o processo de traduo, caracterizado por Goethe como mediao e interao entre as transaes culturais. [...] A busca pela literatura do outro e sua reciprocidade preconizada por Goethe revela o que Todorov considerou como significao compartilhada, ocasionando ento as transformaes das literaturas nacionais a partir das trocas universais no pela perda das especificidades, mas no reconhecimento da universalidade do que lhe prprio de cada manifestao literria. Assim possvel reconhecer na linguagem sertaneja de um Guimares Rosa reflexes de questes existenciais amplas e profundas, capazes de compreenso em qualquer cultura. [grifo meu]

Ento o olhar que se dirige a Rnai no deve estar restrito aos limites das fronteiras da Hungria. O objetivo avaliar de que maneira se opera esse reconhecimento da universalidade no olhar crtico de Paulo Rnai. Ou, dito com outras palavras pelo The Literary Encyclopedia:The German term Weltliteratur and the heightened awareness of literary exchanges and relations across national borders have their roots in the cosmopolitan aspirations 20 of major literary figures as well as literary critics of the Age of Goethe.

Com base nessas concluses, a pesquisa voltou-se ento para a questo central da formao humanista que Rnai havia recebido na Hungria. Considerando que aos 17, talvez 18 anos, ele j atuava como tradutor profissional, seria importante verificar o que ele havia estudado at ento. Em seu certificado de exame de concluso do ginsio 21 equivalente ao Baccalaurat francs constam as seguintes matrias: lngua e literatura hngara, lngua e literatura latina, histria, matemtica, fsica, doutrina religiosa, lngua e literatura grega, lngua e literatura alem, iniciao filosofia, geografia, histria natural e geometria. O nvel do ensino, somado aptido de Rnai para lnguas, foram fortes o suficiente para transformar o aluno em tradutor profissional ainda mal sado do ginsio. Em um de seus ensaios Rnai conta que, nessa poca, s de latim tinha 6 horas de aula semanais. E os documentos pessoais localizados no seu acervo particular, por exemplo o caderno onde anotava seus poemas preferidos, provam que ele de fato conhecia as lnguas que havia estudado: poemas em grego ele anotava no alfabeto grego. Sua esposa relata que quando tinha que ajudar a cuidar da filha que chorava no bero, para entreter a criana Rnai comeava a recitar os clssicos gregos para ela, e esse ato produzia um efeito de admirao imediato na criana que, ento, esquecia seu choro. Outro fato notvel, a histria da faculdade em que Rnai estudou comea em 1395! Trata-se da segunda faculdade mais antiga da Europa. Ao longo de sua histria ela produziu

20 21

http://www.litencyc.com/php/stopics.php?rec=true&UID=5529 O curso ginasial, na Hungria da poca, terminava com um exame que dava direito a ingressar na faculdade, diretamente. Naquele momento o estudante j havia freqentado a escola por 12 anos. O que leva a crer que apesar de se chamar ginsio e durar 8 anos, de fato, os ltimos 4 anos do curso equivaliam ao curso secundrio brasileiro. 26

cinco prmios Nobel: um filsofo, dois fsicos, um qumico e um bioqumico. Alm disso, Rnai estudou na Sorbonne durante trs anos, com bolsa de estudo do governo francs. Ver anexo I Cronologia, para maiores detalhes. Rnai empreende sua primeira viagem ao exterior, sozinho, aos 20 anos de idade, em janeiro de 1928. A caminho de Paris, ele faz uma turn intelectual pela Europa e visita todos os museus e loca is histricos de importncia em seu roteiro. Um fato curioso mas significativo, no momento em que atravessa a fronteira da Hungria, Rnai passa a fazer as anotaes em seu dirio em francs e esse hbito ele ir cultivar pelo resto de sua vida. A questo que tambm mereceu ateno durante as pesquisas foi o estado das coisas no Brasil que acolheu Rnai em 1941. Como era o pas poca de sua chegada? Um solo frtil para um intelectual do quilate de Rnai, segundo o retrato pintado por Lia Wyler22.A educao deveria servir ao duplo propsito de produzir mo-de-obra qualificada e difundir o iderio estadonovista, o que inclua necessariamente a alfabetizao, bem como a publicao local de livros de ensino e literatura, revistas e jornais de interesse educativo. [...] Para acelerar essas realizaes, Vargas criou, em 1937, o Instituto Nacional do Livro, cuja ao abrangeria apenas tradues escolhidas e subsidiadas de obras raras e preciosas que interessassem cultura nacional.

Wyler destaca o baixo ndice de alfabetizao do pas, a difcil situao da indstria livreira, uma combinao de dificuldades imposta pela restrio s importaes em funo da guerra deflagrada nos mercados fornecedores e pela agenda poltica do governo de Vargas, enfim uma seqncia de fatores que tornou favorvel a atividade tradutria para os escritores nacionais. Segundo Wyler traduzia-se muita obra de fico e muitas obras tcnicas. [...] Com isso crescia o nmero de tradutores no mercado, embora a maioria no tivesse conscincia de sua importncia para as editoras e da difuso do conhecimento estrangeiro em nosso pas.23

nessa poca, porm, que, apesar de um grande nmero de

tradues de qualidade duvidosa e da baixa remunerao percebida pelos tradutores, a traduo comea gradualmente a ser vista como atividade de relevncia. no incio dos anos 40 que se comea a discutir que talvez a profissionalizao da atividade tradutria seja soluo para a crise de qualidade. Em detalhes, Wyler conta a histria da Editora Globo e de sua famosa Sala dos Tradutores; o nome de Paulo Rnai citado por Wyler pela primeira vez como um doutor em lnguas neolatinas e grande especialista em Balzac. Conforme a importncia e a dimenso da crtica literria nas atividades de Rnai foram se destacando, ficou evidente a necessidade de estender a pesquisa tambm nessa direo, assim como o veculo em que a atividade exercida, isto , o jornal. A consulta ao

22

WYLER, Lia. Lnguas, Poetas e Bacharis Uma Crnica da Traduo no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco Ed, 2003. 23 Idem, p.115 27

trabalho de Andria Aredes, Um Estrangeiro Entre Ns

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, foi de grande utilidade pois para

estudar os artigos publicados por Paulo Rnai no Suplemento Literrio de O Estado de So Paulo, primeiro ela delinea o perfil da atividade jornalstica como veculo para a crtica literria. Sua abrangente bibliografia na rea bastante til. E o olhar que ela lana sobre a obra ronaiana identifica nele a atividade crtica. Faltava desvendar as questes relativas ao ensaio como forma da crtica literria. Esse gnero que Rnai traz em sua bagagem cultural j amplamente difundido na Europa, sendo Lukcs um de seus estudiosos. Para ele, diz Jordo Machado, o ensaio uma crtica cientfica caracterizada como gnero artstico marcado pela ironia, instrumento reflexivo com o qual seria possvel alcanar a realidade da alma e se separar da vida cotidiana 25

. Mas

ironia algo que no se encontra em Rnai, por isso a questo merecia um estudo um pouco mais aprofundado. Ento, para caracterizar o estilo ensastico de Rnai, a pesquisa se direcionou para as duas formas mais conhecidas de ensaio como gnero literrio: o ensaio em lngua alem e o ensaio na tradio francesa. Antes e tambm paralelamente ao estudo e anlise das questes mencionadas at aqui, a produo literria de Paulo Rnai foi sendo arrolada. Todas as fontes, digamos biogrficas (ver Introduo), listavam suas obras com maior ou menor abrangncia e preciso no tocante s edies, e assim por diante. Mas e o resto? Em sua tese, Esqueda 26 menciona que Rnai prefaciou um grande nmero de obras, relaciona alguns autores, mas quais obras exatamente? Apesar de sua minuciosa classificao das publicaes de Rnai por ano de publicao, inclusive as reedies, Esqueda no arrola um nico artigo de jornal em sua bibliografia ronaiana, muito menos a produo na Hungria. E na comparao feita com as obras ronaianas listadas pelas outras biografias acima mencionadas, percebeu-se que todas as listas apresentavam diferenas entre si, portanto esse seria um trabalho a ser feito. Alm disso, desde a primeira visita que fiz ao acervo particular de Rnai em No va Friburgo (RJ) e a primeira folheada em seus livros de ensaios, ficou claro que sua produo literria no se restringia aos livros publicados; que, se fosse para dimensionar sua atividade literria, as fontes de pesquisa teriam que ser ampliadas. Afinal, o que exatamente Rnai havia produzido e publicado na Hungria? Como localizar esse material? E no Brasil, seria mais fcil? Logo descobri que nem sempre assim. Recorri a muitas fontes, sempre que possvel via Internet: em primeiro lugar aos catlogos de bibliotecas importantes como a da FFLCH/USP via sistema DEDALUS, e todas

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AREDES, A. Um Estrangeiro Entre Ns: a produo crtica de Paulo Rnai (1907-1992) no Suplemento Literrio dO Estado de S. Paulo. Faculdade de Cincias e Letras de Assis, UNESP, Assis, 2007. 25 JORDO MACHADO, C.E., As Formas e a Vida Esttica e tica no Jovem Lukcs (1910-1918), 2004. 26 ESQUEDA, Marileide. O tradutor Paulo Rnai: o desejo da traduo e do traduzir. UNICAMP/IEL, 2004. Tese de doutorado. 28

que pudesse acessar online, bibliotecas pblicas como a Mrio de Andrade, de So Paulo, a Fundao Biblioteca Nacional, e a UNICAMP, para citar alguns. Visitei todos os sebos que encontrei online e, principalmente, o Google como ferramenta de pesquisa foi de uma utilidade mpar. Ao localizar uma referncia cruzada do nome Paulo Rnai com qualquer outra obra, conferia na biblioteca sua veracidade. Visitei pessoalmente a biblioteca Jos Mindlin. Apesar da quantidade de material que a Hungria tem digitalizado, minhas dificuldades ao fazer pesquisas online nos sites hngaros resumiam-se s diferenas de sistemas. Por sorte, junto com as bibliotecas pblicas digitalizadas, eles mantm bibliotecrios que do assistncia online. Uma parcela muito importante desta pesquisa devida ajuda recebida de Dr. Drtos Lszl, bibliotecrio do MEK, Magyar Eletronikus Knyvtr (Biblioteca Eletrnica da Hungria) http://mek.oszk.hu. Esse bibliotecrio tambm me assistiu na pesquisa de questes relativas aos assuntos hngaros em geral, como os artigos usados como referncia neste estudo. Com o tempo tambm descobri que para as pesquisas na Hungria era muito mais eficiente usar www.Google.hu, o que comprova a existncia de diferenas de sistemas. Contudo, a maior fonte de referncias foi mesmo o prprio acervo particular de Paulo Rnai. Ele tinha um senso organizacional apuradssimo. Encontrei vrias pastas de recortes, ordenados por ordem cronolgica, com uma folha ndice no comeo, feita a mo, com a indicao de cada recorte contido na pasta, data, ttulo e respectivo jornal. E na folha onde colava o artigo, Rnai tambm anotava caso o artigo tivesse tambm sado em outro jornal que no aquele guardado. Nas duas visitas de trabalho que fiz ao acervo de Rnai, no Stio Pois (a primeira visita havia sido de reconhecimento do terreno, digamos assim ) coletei uma parcela significativa do material listado no Anexo II. poca da minha qualificao, depois da primeira visita, existiam na lista desse anexo, 128 artigos de jornal publicados por Rnai no Brasil. Hoje, com as pesquisas elaboradas no ltimo ano, esse nmero supera a marca de 400 artigos, e estima-se que ainda faltem cerca de 160 (ver captulo II Biografia e Obra) para completar a srie de artigos crticos de Paulo Rnai, publicados em jornais brasileiros. Isso, sem falar no material internacional. Encontrei vrias menes a colaboraes que Rnai teria feito a alguns jornais ou revistas europias, algumas feitas pelo prprio Rnai, mas os artigos no foram localizados. Quanto aos artigos e poemas publicados na Hungria, a grande maioria foi localizada no prprio acervo Rnai: pastas com cpias, as folhas ndice preenchidas com a identificao do contedo, enfim, no foi nem uma nem duas vezes que tive a impresso de que Rnai havia preparado aquelas pastas e listas especialmente para facilitar o trabalho de mapeamento de sua obra. bem provvel que ele prprio fosse o primeiro a se beneficiar de seu eficiente sistema de administrao de arquivos. Ainda na Hungria, ainda no comeo29

de sua carreira, ele j mantinha um caderno onde registrava quanto ganhava com as tradues e essas notas facilitaram muito a catalogao aqui elaborada. O mtodo adotado para este projeto, isto , confrontao das informaes localizadas no acervo Rnai com os dados digitalizados na Hungria, permitiu um bom grau de confiabilidade aos registros feitos no Anexo II. A lista dos livros prefaciados por Rnai e localizados no ltimo ano atravs de pesquisas cruzadas na Internet e nas bibliotecas mencionadas cresceu de 22, poca da qualificao, para os atuais 67 itens. Est completa? mais provvel que no. Infelizmente os jornais brasileiros no permitem acesso a seus arquivos, ou se permitem a um custo exorbitante para os pesquisadores. Digitalizao ento, como na Hungria, um sonho que provavelmente no se concretizar. De qualquer forma, exceo dos artigos de jornal no Brasil e publicaes em revistas especializadas no exterior, acredito que a relao da produo literria de Paulo Rnai, listada no Anexo II, est bastante prxima de seu total real. No momento das anlises, entretanto, uma dificuldade relacionada com o desenrolar deste projeto ficou muito evidenciada: a grande distncia fsica entre o meu local de trabalho e a fonte das minhas informaes o Stio Pois , em Nova Friburgo, RJ , uma vez que a residncia dos Rnai fica a uma distncia de 620 km de So Paulo. Na ltima visita fotografei toda a biblioteca, ento posso constatar, por exemplo, se Rnai tinha acesso a determinada obra, ou no. Mas o que fazer se, aps ler um texto que porventura eu tenha escaneado ou xerocado na ltima visita, no posso dar seqncia anlise, pois eventualmente no tenho comigo algum documento que permitiria isso. Posso ver nas fotos das prateleiras do acervo que existe determinada pasta, mas no posso consult-la de imediato. Tenho que esperar uma nova visita a Friburgo. Com isso a completitude das pesquisas e as conseqentes anlises ficam de certa maneira prejudicadas.

30

II Biografia e Obra

... Paulo, who crammed two lives into one. Arthur McDermott 27

Desde que nasci sou filho de livreiro vivo entre livros e tenho por eles uma ternura especial. Facilmente poderia renunciar a escrever, nunca a ler. 28 Paulo Rnai

A produo literria de Paulo Rnai to vasta e variada que este captulo objetiva apresentar algumas caractersticas de seu trabalho, detalhes ou comentrios que liguem as obra a fatos da vida, que, s vezes, no ficam evidentes s pela leitura dos ttulos. A seqncia da organizao temtica a mesma do Anexo II.

Notas biogrficasA histria de Paulo Rnai com a literatura antiga, remonta sua adolescncia. Aos 12 anos de idade ele j publica alguns poemas prprios no jornalzinho do ginsio. Em 1925, aos 18 anos de idade, ele participa com outros 42 concorrentes e fica em 4 lugar em um concurso nacional sobre poesia e literatura hngara dos sculos XVI e XVII. Muito tempo depois, Rnai ainda gosta tanto de poesia que tem em casa uma dessas brochuras que se usa na escola, em que, com letra miudinha, mas caprichada, anota seus poemas preferidos, e, em momentos de lazer, declama para as filhas. Quando a 2 Guerra j corria solta e ele foi internado em um campo de trabalhos forados, conta sua esposa que , para ocupar a mente, ele ficava declamando os picos gregos. Um outro caso que merece ser contado o de um artigo em hngaro que durante as pesquisas chamou a minha ateno. Nele, em 1980, um famoso produtor cinematogrfico da Hungria, Gyertyn Ervin, relata como, aos 13 anos, havia descoberto a poesia de Jozsef Attila considerado um dos trs maiores poetas nacionais de todos os tempos, juntamente com Petfi Sndor e Ady Endre - que acabou influenciando todo o seu trabalho ao longo da carreira. Conta ele que um dia, em 1938, um dos professores do ginsio havia adoecido e ento enviaram um jovem professor substituto

27

Um amigo de Paulo Rnai que hoje vive na Austrlia . Carta a Afrnio Coutinho, em 13/09/1958.

31

em seu lugar Rnai Pl

29

que na hora inventou uma brincadeira interessante para os

rapazes: ele declamava uma linha de um poema qualquer, e os rapazes tinham que adivinhar o autor e a obra a que a estrofe pertencia. Depois de alguns acertos da classe, eis que Rnai declama uma estrofe e a classe inteira emudece; ningum se habilita. Conta Gyertyn que at hoje se lembra da cara de surpresa de Rnai quando estew perguntou Rapazes, vocs no conhecem Jzsef Attila? Em uma entrevista por telefone, o Sr. Gyertyn Ervin me contou que devido poltica de excluso, que no permitia aos judeus galgar posies acadmicas nas universidades, no Ginsio Israelita30 a vida intelectual era muito intensa e de alto nvel. Conhecer todos os meandros da arte potica, porm, no garante uma carreira a Rnai no campo da poesia, mas o conhecimento o transforma em tradutor e crtico gabaritado. A sua bibliografia deixa esse fato evidente, pois a evoluo que ocorre no transcurso de sua carreira a primeira coisa que salta aos olhos. Suas primeiras publicaes, aos 19 anos, so de tradues de poesias, de clssicos como Horcio, Catulo e outros, para o hngaro. Aos poucos, alm do latim, outras lnguas entram na lista, como o italiano, e em 1931 aparece a sua primeira verso de poesia do hngaro para o francs. Em 1937 j se tem traduo de poemas a partir de vrias outras lnguas: espanhol, grego, e em fevereiro de 1938 a primeira traduo de um poema do portugus, que, a partir da comearia a ser freqente. Qual o significado desse percurso? A resposta, em parte, est contida naquela entrevista de Istvn Mszros citada anteriormente, quando ele menciona que os grandes poetas nacionais so tambm os mais profundos e abrangentes pensadores que no somente produzem poesia ou incendiam paixes com suas reflexes tericas, mas tomam para si a nobre tarefa de traduzir a literatura universal , e consideram esse ato um servio nao, porque assim a disponibilizam para a populao hngara que de outra forma se veria presa no isolacionismo da lngua ptria, e tambm porque consideram o ato tradutrio como prtica literria. O prprio Rnai, em seus ensaios, explica esse efeito colateral indireto que o exerccio da traduo proporciona.

Levei muitos anos para perceber as complicaes de seu m ecanismo. medida que 31 aprendia outras lnguas que me espantava com a minha.

Depois que completa seus estudos na Frana, a partir de 1931, Rnai tambm comea a publicar tradues de contos, textos e poemas do hngaro para o francs, tanto em Budapeste como em Paris. Enquanto estuda na capital francesa, envia artigos para

Nome de Paulo Rnai em hngaro. Os ltimos quatro anos do ginsio, na Hungria da poca, era m equivalentes ao nosso atual 2 ciclo. Retrato ntimo de um Idioma. In: Como Aprendi Portugus e Outras Aventuras. So Paulo: Globo, 1992. (p.116) 32

publicao em Budapeste, e sua carreira literria j se consolida. quando comeam a surgir seus textos crticos, sobre literatura hngara na Frana e litera tura francesa na Hungria, alm de continuar a escrever e publicar sobre os poetas latinos clssicos. Quando, em 1938, Rnai tambm comea a publicar crticas sobre autores brasileiros demonstra que seus estudos sobre a nossa literatura j estavam bem avanados. Conforme a carreira de crtico literrio de Rnai vai se consolidando e seus caminhos vo se afastando da potica como prtica, ele sente que o rumo de seu futuro outro. Em 01/09/1929, ele registra seu ltimo poema nas pginas de um livrinho datilografado que havia montado com suas composies: dedicado aos seus prprios poemas, diz sentir que suas palavras estariam mais voltadas para a prosa e que a fonte da inspirao potica havia secado. Rnai aprendera a arte, conhece todos os seus meandros como se v em muitos de seus textos, mas no se sente poeta. Apesar de ter iniciado sua carreira literria com traduo de poesia e a primeira seleta de literatura brasileira que produz em 1939 32 ser de poesia, Rnai cada vez mais vai encontrando seu lugar na crtica, que j pratica d esde essa poca, como se observa no item 1.2 do Anexo II. Por exemplo, seu artigo crtico sobre a traduo francesa de Dom Casmurro, de Machado de Assis, publicado em Budapeste dia 11/02/1939, e, fato curioso, chega a ser integralmente transcrito e publicado tambm no Brasil, no dia 19/08/1939. E aos poucos, a partir de 1938, Rnai comea a se revelar como um estudioso das letras brasileiras e seus artigos sobre o tema comeam a sair com freqncia na imprensa hngara, juntamente com os outros temas que lhe so caros: Balzac, Ady Endre, literatura hngara e francesa, para citar alguns. Aos poucos Rnai tambm comea a publicar livros , conforme Anexo II-a - fase Hungria.

Questes pessoais

Apesar de, em seus escritos, estar sempre testemunhando que determinado texto lhe causou emoo emoo esttica, bem entendido , no se percebe Rnai falar de questes pessoais ou expor seus sentimentos em pblico. Certa vez, em carta a um amigo de longa data Arthur McDermott que hoje, com 93 anos, mora na Austrlia , ele fala um pouco do destino dos membros de sua famlia e acrescenta que s fez isso pois o amigo havia insistido muito, que no era de seu feitio tratar de assuntos dessa ordem pessoal. Ainda assim, de vez em quando, deixa indcios de que os eventos na Europa o marcaram profundamente: nas passagens em que precisa fazer alguma referncia ao tempo cronolgico, no raro encontrar associao de datas com os acontecimentos que32

Brazilia zen Mai Brazil Kltk (Mensagem do Brasil Poetas Brasileiros da Atualidade). Budapeste: Vajda Jnos Kiad, 1939. 33

marcaram e ditaram o rumo de sua vida, como, por exemplo, a 2 Guerra Mundial. Mesmo anos mais tarde, em 1983, em uma entrevista para o Museu de Literatura Petfi Sndor, de Budapeste, ao citar o lanamento de seu primeiro livro sobre o Brasil, em 1939, relembra que o lanamento foi no mesmo dia em que a 2 Guerra Mundial foi deflagrada. Ou quando laureado pelo Governo Hngaro em 1987 (ver Cronologia de vida, Anexo I), depois de tantos anos, lembra as palavras que haviam sido carimbadas em seu passaporte nos idos de dezembro de 1940: sem validade para retornar. Quer dizer, ele tocado pelos acontecimentos, mas lida com o assunto com muita discrio. Contrariando esse hbito, porm, no incio de sua fase brasileira, ainda morando sozinho no Rio de Janeiro, em 23/04/1944, em uma carta dirigida a um amigo que ele chama de meu caro Chico, ele revela o motivo pelo qual no pode fazer as conferncias que tinha sido convidado para fazer. E acrescenta:Num minuto em que minha me, minha mulher, minhas irms, meus amigos, tudo o que tenho de caro no mundo, esto sendo humilhados e torturados, no me sinto capaz de falar a um auditrio sobre assuntos literrios ou cientficos. J tenho muita dificuldade em continuar as minhas aulas e qualquer outra atividade que exige conversa, contacto pessoal, etc. [...] Talvez mais tarde, quando a situao mudar ou quando eu me tiver resignado, aproveite o honroso convite que m e fizeram mas 33 agora no posso.

Sempre to discreto com relao sua vida pessoal, excepcionalmente Rnai demonstra que na verdade sofria, e muito, com os eventos que marcaram sua vida. A esposa a que ele se refere na carta a primeira mulher, que havia ficado na Hungria e com quem ele havia se casado por procurao na tentativa de salv-la. Mas, no ano seguinte ela seria retirada do Consulado Portugus em Budapeste, onde se encontrava refugiada, e assassinada pelos nazistas. Rnai faz de tudo para tentar trazer a famlia para o Brasil, chega at a escrever para Getlio Vargas, mas seu sucesso s parcial. Salva a me, as irms e os cunhados, mas no a esposa e a sogra. somente anos mais tarde, em 1952, na mesma poca em que comea a lecionar no Colgio Pedro II, que Rnai se casa com Nora Tausz, que aqui conhecera no ano anterior. A senhora Nora Tausz Rnai, que apesar de ser italiana fala hngaro perfeitamente, e que foi sua parceira por mais de 4 1 anos, quem at hoje zela pelo acervo que Rnai deixou no Stio Pois . Graas a esse zelo, uma parcela muito significativa deste trabalho pode ser realizada.

Produo literria

A observao da produo literria de Rnai na Hungria e no Brasil, resumida no quadro a seguir, permite perceber a continuidade: exceo de traduo de poetas latinos e33

Carta localizada na pasta de correspondncia geral, no acervo Rnai. 34

poesia em geral, e, por razes bvias, de traduo do hngaro para o francs, todo o restante ocorre tambm no Brasil, com maior ou menor freqncia. Esse fato comprova o movimento que ele mesmo pressente em 1929, quando constata que suas palavras so mais voltadas para a prosa. E tambm permite concluir que, mesmo se no tivesse sido obrigado pelas circunstncias a abandonar a Hungria, o futuro do crtico literrio Paulo Rnai no teria sido diferente.

Resumo da Produo Literria de Paulo RnaiHUNGRIA Traduo de poemas (do latim, francs, grego, italiano, espanhol, portugus, e para o francs) Textos traduzidos do hngaro p/ francs contos e antologias poticas publicados em Budapeste contos e antologias poticas publicados em Paris Dicionrios Livros Didticos Livros de Paulo Rnai (no Brasil: 17 em portugus, 1 em francs, e 1 livro traduzido para alemo e japons) Antologias de Contos BRASIL

53 + 29*

-

95 32 1 2 5 1 do Po 2 do Fr, 1 do Lat 18 em Hu 26 em Fr 2 em Hu

5 15 20 17 6 do Hu, 3 do Ale, 1 do Lat, 1 do Ita, 4 do Fr, 1 do Ing, 1 do Gal 11 67 321 em Po

Traduo de livros

Organizao de edio Livros Prefciados Publicaes em jornais: artigos prprios resenhas Diversos (na Hungria, ps 1941)

15 em Fr 13

204 em Po 59 (*)

* republicaes que aparecem na Hungria, depois de 1941. (*) inclui publicaes em outros lugares que no Brasil e Hungria, inclusive aps sua morte.

Por agrupar obras de naturezas muito diferentes, o quadro acima deve ser avaliado com reservas. Seu intuito apenas mostrar em um nico quadro geral, toda a produo35

literria de Paulo Rnai, numa tentativa de vislumbrar seus traos mais caractersticos. A ressalva fica por conta da mistura que o quadro apresenta, ao dar peso igual tanto para um artigo de jornal como para o Mar de Histrias, por exemplo, uma publicao em 10 volumes, que envolve diversas tarefas. Apesar dessa restrio, o quadro tem suas vantagens. Permite, por exemplo, confirmar que a vinda de Rnai para o Brasil no significou um corte em sua vida profissional. Outra considerao a ser feita: a fase produtiva na Hungria englobou um perodo de cerca de 10 anos, enquanto no Brasil seguramente mais de 45. Com isto os nmeros, em valores absolutos, no so comparveis. Entretanto, os grandes nmeros ficam evidentes, como no caso da publicao de artigos em jornais e revistas. Se somarmos todas as aparies de Rnai em jornais, seja na Hungria como no Brasil, sejam poemas ou artigos, e considerarmos que a Coluna Contos da Semana significou para Rnai 256 aparies no jornal no quadro considerado como uma nica unidade , salvo lacunas no levantamento, chega-se a um total superior a 1100. Alm disso, a anlise da relao de artigos e resenhas demonstra que entre 1952 e 1967 faltam muitos artigos na srie. E esse fato facilmente verificvel, por exemplo, quando se comparam os livros de Rnai com a relao de artigos listados neste texto. Encontros com o Brasil tem 30 ensaios, todos previamente publicados em jornais. Da srie histrica, porm, s constam 14 ensaios. E quase todos os 16 faltantes referem -se ao mesmo perodo. Dos 30 ensaios que compem Como Aprendi Portugus, 13 no constam da srie histrica do Anexo IIb e a maioria deles tambm pertence ao perodo em questo, ou anterior. Tambm nos artigos sobre Paulo Rnai j se encontrou meno a artigos que ele teria publicado e que tambm no constam da relao do Anexo II-b. Ou seja, existem claras evidncias de que o arquivo do Anexo II-b, apesar de bem extenso, ainda no est completo. Uma estimativa puramente matemtica, por mdia histrica, sugere que devem estar faltando cerca de 160 artigos, o que elevaria o total estimado acima, para algo prximo de 1.300 aparies em jornais, entre artigos que vo desde meia coluna at pgina e meia, ou duas pginas inteiras de jornal. Se, porm, se considerar que dos cinco livros de ensaios de Rnai esto ausentes da relao cerca de 70 artigos, o nmero estimado nem to improvvel. E mais, esse estimativa de 1.300 aparies em jornais e revistas ainda deixa de fora, por exemplo, colaboraes como a Provncia de So Pedro, de Porto Alegre ou mesmo a coluna Letras, do Jornal de Transportes e diversas outras colaboraes citadas no item 2.9 do Anexo II-a, ou ainda o trabalho que ele teria realizado na extinta revista Comentrio, que ficou fora desta pesquisa. Portanto, o nmero total pode ser algo em torno de 1 .500 aparies em jornais e revistas, nmero esse que nitidamente confirma a atividade crtica exercida por Paulo Rnai, como sendo muito representativa de sua carreira literria.

36

Comentrios especficos sobre os itens do Anexo II

A seguir, os comentrios de cada item do Anexo IIa, com destaque para eventuais particularidades.

Item 1.1 tradues de poemas para o hngaro O primeiro poema de Rnai de que se tem notcia, saiu no jornalzinho da escola, em 15 de junho de 1919, quando ele ainda tinha 12 anos de idade. Entretanto, na relao desse item 1.1 somente foram considerados os itens publicados profissionalmente. Com isso a srie histrica se inicia em 24/01/1926 poucos meses antes de Rnai completar 19 anos com suas tradues de poemas do latim para o hngaro, publicadas em Budapeste. Como se v no Anexo I Cronologia, em julho de 1926 Rnai j havia recebido seu primeiro certificado de francs. E nto, em julho de 1927, sai o primeiro texto de Rnai, na verdade notas que ele acrescenta traduo dos poemas. Em 1931, na srie de poemas traduzidos, aparece a primeira publicao em Paris, onde ele est estudando na Sorbonne. Mas, como pode ser observado no item 1.2, a essas alturas ele j est publicando tradues de contos tambm e enviando artigos da Frana (ver item 1.3). O que digno de nota nessa srie de traduo de poemas que aos poucos Rnai vai publicando tradues feitas a partir de novas lnguas. Em janeiro de 1932 surgem as primeiras tradues de poemas do italiano e tambm algumas tradues de poemas do hngaro para o francs. Depois surge a primeira traduo de poema do espanhol para o hngaro, em 1937, e, dia 27/02/1938 a primeira traduo de portugus: um poema de Anthero de Quental. Em maio do mesmo ano sai a traduo de um poema de Correa Jnior, e em uma edio dominical de julho de 1938 a traduo de mais trs poemas brasileiros. Como se observa na srie, Rnai publica tradues de poemas do grego tambm. Que o nmero das tradues e das lnguas no leve a concluses equivocadas. Publicar tradues poticas em terra de mestres em traduo pot ica no pouca coisa. Muito menos ser capaz de fazer isso a partir de vrias lnguas diferentes. A qualidade do trabalho de Rnai nesse segmento da traduo inconteste, como demonstram as republicaes que continuaram a ocorrer depois que ele saiu da Hungria, e que esto listadas no item 1.1.1 e indicadas com um * no quadro. As antologias se sucedem na Hungria, e as tradues de Rnai so alinhadas com as de grandes mestres. H publicaes que inclusive se dedicam a colocar lado a lado as diversas verses do mesmo poema latino, por exemplo. Como se v no quadro, 29 ttulos esto listados, sendo que o ltimo de que temos notcia data de 2002.

37

Item 1.2 tradues de artigos do hngaro para o francs Em 1931, quando Rnai ainda est estudando na Sorbonne em Paris, comeam a aparecer suas tradues do hngaro para o francs, tanto em Paris como em Budapeste. Em geral so artigos literrios produzidos por ele ou tradues de contos. Em maio de 1932 aparece a primeira publicao em francs na Hungria, para a Nouvelle Revue de Hongrie. Por nove anos, a partir dessa data, Rnai vai colaborar regularmente com esta revista, uma publicao mensal, cujo objetivo divulgar a cultura hngara para o mundo francfono, principalmente aqueles que habitam em Budapeste. Apesar da declarao de Rnai 34 de que mensalmente publicava tradues de contos, artigos literrios e s vezes poemas, na relao do Anexo II-a somente constam os textos que puderam efetivamente ser comprovados como tendo sido assinados por ele. Mesmo tendo localizado, no seu acervo particular, as provas de impresso de muito mais textos, s foram includos nesta lista os itens que puderam ser devidamente comprovados nas bibliotecas eletrnicas da Hungria. Constam da relao 79 textos assinados por Rnai na Nouvelle Revue de Hongrie, quando, considerando o perodo que ele trabalhou para a revista, o total deveria ser no mnimo 9435

, ou mais, pois o prprio

Rnai conta que no era raro traduzir mais de um material. interessante destacar que a maioria das tradues de Rnai, nesta revista, eram de contos, portanto cada publicao representa duas, trs ou at mais pginas. Sem mencionar o nmero especial de jun -set de 1940, para o qual Rnai traduziu um romance de Tersnszky, de 47 pginas. No item 2.8 onde esto relacionadas as publicaes na Hungria ps chegada ao Brasil, h tambm a traduo de um conto de Kosztolnyi Dezs, de 40 pginas, que saiu na mesma revista. Portanto, um volume considervel e que, segundo relatos de Rnai em vrios ensaios, serviu a vrios propsitos em termos de aperfeioamento de seu desempenho como tradutor. No final do item 1.2, esto arrolados alguns itens de um jornal chamado Express du Matin, mais uma publicao francesa de Budapeste. No foi possvel localizar as datas desses artigos. A nica coisa que se sabe que o jornal circulou entre 1933 e 1934. E certamente a relao dos artigos que constam deste item no est completa. No ensaio da Escola de Tradutores mencionado acima, Rnai tambm conta que trabalhou para uma Agncia Telegrfica em Budapeste36 que fornecia um extrato dirio das principais notcias dos jornais hngaros s embaixadas estrangeiras. Em cerca de uma hora, diariamente, ele tinha que traduzir seis laudas de texto, do hngaro para o francs.37 Como se v no Anexo I-Cronologia, este trabalho durou cinco anos. Se fizermos as contas, 634 35

Ver Escola de Tradutores, 2 ed., 1981, p.162. Na prtica Rnai trabalhou muito mais para a Nouvelle Revue de Hongrie. Em entrevista ao Museu Literrio Petfi Sndor, gravada em 05/01/1983, o prprio tradutor conta que era ele quem traduzia a grande maioria do material literrio da revista, mas que nem sempre recebia o crdito por isso. 36 Ver na Cronologia, Anexo I, Budapest Kurir, de 01/01/1934 a 31/12/1938. 37 Ver Escola de Tradutores, 2 ed., 1981, p. 164-5. 38

laudas dia x 365 dias x 5 anos, mesmo que se desconte fins de semana ou feriados, o total de laudas que Rnai produziu s para esta Agncia d 9.360 laudas, ou 1.560 aparies dirias de 6 laudas cada. Um trabalho que aqui no foi considerado.

Item 1.3 textos redigidos por Paulo Rnai ou traduzidos para hngaro Os quatro primeiros poemas que constam deste item foram relacionados pelo seu significado histrico, apesar de no serem publicaes profissionais, digamos assim. So poemas escritos por Rnai, vencedores de concursos, e que de certa forma marcaram o comeo de sua carreira literria. O primeiro artigo que de fato pode ser considerado como marco inicial data de 08/01/1928, quando comea a carreira do crtico literrio Paulo Rnai como atestam os assuntos dos artigos e ensaios que ele comea a publicar, tanto em Budapeste como em Paris, onde na poca est complementando seus estudos de francs. So 45 textos, entre artigos e resenhas. O que sobressai neste conjunto a temtica e o contedo dos artigos, voltados para literatura, filologia, teatro, Balzac, e os poetas latinos. Em 23/08/1931 surge pela primeira vez o ttulo de Doutor junto com a assinatura de Rnai, que na Europa tem um significado especial. Na Frana ele publica sobre literatura hngara. Suas resenhas so verdadeiros ensaios literrios de mais de duas pginas. Entre seus temas, o ensino do italiano na Hungria que na poca estava se expandindo. Na Hungria, alm de latim e francs, Rnai tambm professor de Italiano, motivo por que ele produz material didtico em italiano (vide item 1.5). Nos mesmos jornais para os quais traduz contos e artigos literrios do hngaro para o francs, Rnai publica seus artigos crticos em francs. O contedo deste item confirma que a carreira do crtico literrio Paulo Rnai j estava consolidada. Em 11/02/1939 Rnai publica em Budapeste, uma crtica sobre o lanamento da traduo francesa de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Como se ver no item 2.8, com uma defasagem de alguns meses, pelo menos dois desses artigos de 1939 iro aparecer tambm no Brasil. E a partir desta poca, como j mencionado, Rnai no pra mais de publicar sobre temas brasileiros.

Item 1.4 livros publicados em hngaro Acredita-se que Rnai no publicou mais livros na Hungria simplesmente porque no teve tempo. Apesar de estarem listadas cinco obras neste item, na verdade somente trs foram publicados antes de Rnai vir para o Brasil. Sua tese de doutorado sobre Balzac, seu livro Brazlia zen sobre poesia brasileira que lhe abriu as portas do Brasil e o livro de poesias de Ribeiro Couto. [Ver captulo III onde se apresenta um comentrio e alguns trechos da introduo de seu livro Brazlia zen.] A obra Latin s Mosoly, que saiu em 1980, uma seleo de textos extrados de trs dos livros de Rnai lanados no Brasil e Boszorknyszombat, de 1986, um livro de contos brasileiros,39

organizado, selecionado e anotado por Rnai: comea com um conto de Machado de Assis, passando por Lima Barreto, Monteiro Lobato, Mrio de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, etc., um total de 18 autores brasileiros.

Item 1.5 livros didticos publicados na Hungria da mesma forma como viria a fazer no Brasil, no futuro, na Hungria Rnai tambm lana livros didticos para apoiar sua atividade didtica. O terceiro item da lista, apesar de no ter sado na forma de livro, foi registrado neste item por se tratar de um curso de francs. E segundo sua entrevista ao Museu Literrio em 1983, o curso implicava tambm a correo das tarefas que as leitoras enviavam para o jornal.

Item 1.6 traduo de livros para o hngaro com todas as atividades que tinha, sobrava pouco tempo livre para Rnai se dedicar a outros tipos de traduo; m esmo assim publica trs livros traduzidos para hngaro, sendo o ltimo uma antologia de poetas latinos, fruto de suas prprias tradues latinistas.

A seguir comea a fase Brasil.

Item 2.1 Livros de Paulo Rnai Especialista em Balzac, reconhecido e premiado tanto internacionalmente como no Brasil (ver Anexo I-Cronologia), Rnai escreve muito sobre o autor de A Comdia Humana, d palestras, escreve longos artigos para jornais como O Estado de So Paulo, onde, entre outubro e dezembro de 1945 publica nad