080-083_Moradia_2381

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 080-083_Moradia_2381

    1/4

    80 z DEZEMBRO DE 2015

    Dos pases desenvolvidos aos

    mais pobres, habitao pblica se tornou

    ativo financeiro, indicam estudos

    urante seis anos, de 2008 a 2014, a arquiteta e ur-banista Raquel Rolnik exerceu a funo de relatorapara o direito moradia adequada na Organizaodas Naes Unidas (ONU), o que a levou a realizarduas misses de observao por ano em pases comdiversos contextos, polticas e situaes relaciona-dos habitao. Apesar das diferenas, Raquel, pro-fessora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

    da Universidade de So Paulo (FAU-USP), pdeestabelecer nexos de um processo global que qua-lificou como financeirizao das cidades, quadroque no exclui o Brasil. A reflexo despertada pelaexperincia do trabalho com a ONU est no livrorecm-lanado Guerra dos lugares: A colonizaoda terra e da moradia na era das finanas (BoitempoEditorial), com dois captulos dedicados ao cenriomundial e um terceiro ao Brasil.

    Uma das primeiras misses de Raquel foi nosEstados Unidos, em 2009, no auge da crise ha-bitacional iniciada dois anos antes, que ficou co-nhecida como crise do subprime, nome dado

    Moradia

    como produto

    HUMANIDADES URBANISMOy

    Mrcio Ferrari

    ao crdito bancrio oferecido a pessoas de baixarenda. Era uma camada social que antes no tinhaacesso ao financiamento para comprar casas porserem consideradas de alto risco. O desmoro-namento do sistema de hipotecas, ou estouro dabolha imobiliria, epicentro de uma crise eco-nmica mundial, forneceu a Raquel um fio demeada. Foi possvel perceber que o paradigma

    mundial hegemnico das polticas habitacionais a ideia da moradia como bem individual obtidopor meio do mercado, diz a urbanista. Mais doque mercadoria, a produo de habitaes tor-nou-se um ativo financeiro, uma nova fronteirade ganhos para o mercado de capitais.

    No caso dos Estados Unidos, o crdito imobi-lirio, com a permisso do governo, veio acom-panhado de um processo de securitizao lan-amento de outros produtos financeiros, comottulos e obrigaes, lastreados nas hipotecas egerando um lucrativo mercado secundrio paraos bancos. O fenmeno tambm provocou o au-

    DJUANCARLOSROJAS/NOTIMEX

  • 7/25/2019 080-083_Moradia_2381

    2/4

    PESQUISA FAPESP 238z 81

    Despejos: um crime

    organizado, diz o cartaz

    no protesto de 2013 em

    Madri: alguns detentores

    de hipotecas ficaram sem

    as casas e com dvidas

  • 7/25/2019 080-083_Moradia_2381

    3/4

    82 z DEZEMBRO DE 2015

    mento da oferta de recursos para o financiamento,a procura de propriedades mais caras e o cresci-mento dos preos dos imveis, criando, em mui-tos casos, a necessidade de novos emprstimos.Quando a escalada de valorizao se esgotou (oestouro da bolha), as prestaes aumentaram, asdvidas se acumularam e comearam as execueshipotecrias. Dada a natureza transnacional dosmercados financeiros, situaes semelhantes sereproduziram pelo mundo, inclusive em pasesdistantes e com processos histricos muito dife-rentes, como o Cazaquisto e a Crocia, ambospertencentes ao antigo bloco comunista. NosEstados Unidos as pessoas perderam suas casaspara os bancos e em outros lugares, como a Es-panha, foram despejadas e ainda ficaram comdvidas a pagar, relata Raquel.

    Embora o impacto maior e mais imediatodesse processo incida sobre o direito terra e moradia dos mais pobres e so-cialmente vulnerveis aqueles a quem sedestinam as iniciativas de produo de ha-

    bitaes sociais , os reflexos atingem a sociedadeinteira. Gradativamente, o modelo de financei-rizao substitui todas as outras polticas habi-tacionais e formas de produo de moradia, dizRaquel. Mesmo em lugares como o Reino Unido,em que, graas a polticas de bem-estar social dops-guerra, o problema de escassez de moradiaera apenas residual, o capital financeiro avana.

    Saindo do sistema baseado no aluguel social dasresidncias, o pas passou por um processo detransferncia de propriedade aos moradores ehoje um dos casos de pases desenvolvidos emque o mercado de hipoteca residencial representamais de 50% do produto interno bruto.

    No mundo todo, no se trata de aes gover-namentais transferidas para a iniciativa privadaem nome da desonerao do Estado. Emborapossam parecer, e os prprios discursos oficiaissejam nesse sentido, os processos so conduzi-dos e regulamentados pela mquina pblica, comrecursos pblicos (diretamente ou via isenode impostos, como ocorreu no Reino Unido noperodo de transferncia da propriedade das ha-bitaes a baixo preo para os moradores). Naverso desse modelo em pases como o Mxico,o Chile, a frica do Sul e o Brasil, o Estado ofe-

    rece diretamente s famlias o subsdio comprade produtos do mercado imobilirio criados emmassa em periferias homogneas que se trans-formaram em cidades-dormitrios, diz Raquel.

    Embora os vnculos entre as polticas habitacio-nais pelo mundo sejam articulados pelo carter glo-

    balizado e expansionista dos mercados de capitais,a pesquisadora alerta para o perigo de se consideraro processo de financeirizao como algo impostode cima para baixo, como uma fora imperialista. muito importante ressaltar que a experinciade cada pas singular, afirma Raquel. A lgicado modelo depende de uma hegemonia polti-

    Condomnio do

    Minha Casa

    Minha Vida em

    Londrina (PR):

    projeto com

    fundos pblicos

    e lucros privados

    FOTOS

    1OLGALEIRIA/OLHARIMAGEM

    2JUSTINSULLIVAN/AF

    P

    1

  • 7/25/2019 080-083_Moradia_2381

    4/4

    PESQUISA FAPESP 238z 83

    ca construda localmente.Cada pas adapta seus pro-cedimentos para no afastaros recursos de que necessitapara seus projetos. Isso aju-da a entender como a finan-ceirizao da moradia e daterra urbana se implanta noBrasil, via Minha Casa Minha

    Vida, num governo de coali-zo liderado pelo PT, com umdiscurso antineoliberal e umaproposta desenvolvimentis-ta, prossegue a urbanista,que foi secretria nacionalde Programas Urbanos doMinistrio das Cidades entre2003 e 2007, durante o pri-meiro mandato do presiden-te Luiz Incio Lula da Silva.

    Segundo Raquel, a poltica pblica de ha-bitao no perodo ps-ditadura militarcontinuou seguindo o esquema bsico queorientou a fundao, em 1964, do BancoNacional de Habitao (BNH). Articula-

    do com a indstria de construo civil, o Estadoprometia fazer de cada trabalhador um pro-prietrio. Desde 1967, o sistema financiadocom um fundo pblico, o Fundo de Garantia doTempo de Servio (FGTS). No perodo anteriorao Minha Casa Minha Vida, criado em 2009, Ra-quel observou a existncia de articulaes entre ocapital financeiro e lderes do PT, especialmenteos ligados ao movimento sindical e a fundos depenso, e a criao de vnculos desses grupos como setor imobilirio corporativo, aquele ligadoa torres de escritrios, shopping centerse hotis,o mais vinculado ao capital financeiro interna-

    cional. Nesse perodo, mui-tas empresas da construocivil abriram seu capital embolsas de valores.

    O xito foi to grande quemunicpios e estados abrirammo de seus projetos e o Mi-nha Casa Minha Vida tornou--se a nica poltica habita-

    cional do Brasil, diz Raquel.Essa afirmao foi verificadaem campo por uma pesqui-sa realizada com apoio daFAPESP e pela participaoem uma investigao finan-ciada pelo CNPq/Minist-rio das Cidades. Os poucosmunicpios paulistas que ti-nham um sistema prprio dehabitao social se desfize-

    ram de seus sistemas. Raquel relaciona ainda o

    processo de financeirizao s reformulaesurbansticas baseadas em remoo, como as queocorrem em funo das obras relacionadas aosmegaeventos esportivos no Brasil. Com o pretextode desapropriar reas para fins considerados prio-ritrios pelo poder pblico, terrenos altamentevalorizados ocupados por assentamentos infor-mais so entregues ao capital privado. Acredi-tvamos que a tendncia poltica em relao sfavelas do Rio de Janeiro, por exemplo, no eramais remover, mas levar melhorias, lamenta AlexFerreira Magalhes, do Instituto de Pesquisa ePlanejamento Urbano e Regional da Universi-

    dade Federal do Rio de Janeiro (Ippur-UFRJ). esse o sentido da expresso guerra dos luga-

    res, que d ttulo ao livro de Raquel Rolnik. VeraTelles, professora do Departamento de Sociologiada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Hu-manas (FFLCH) da USP, compara esse conceito ideia de acumulao por despossesso, cria-do pelo gegrafo britnico David Harvey, que vnas polticas pblicas hegemnicas uma lgicade expropriao. E vai mais alm, citando a so-ciloga holandesa Saskia Sassen, para quem essalgica , na realidade, de expulso: por meio de

    guerras, degradao ambiental e situaes quecriam o fenmeno dos refugiados, entre outrosfenmenos, destravam territrios que, ao seremreconstrudos, criam mercados poderosos. n

    Impacto da

    financeirizao

    afeta primeiro

    as camadasmais pobres,

    mas reflexos

    atingem toda

    a sociedade

    Moradia

    embargada na

    crise do subprime

    nos Estados

    Unidos em 2009,

    aps o estouro

    da bolha

    2

    Livro

    ROLNIK, R. Guerra dos lugares: A colonizao da terra e da moradia na

    era das finanas. So Paulo: Boitempo, 2015, 424 p.

    Projeto

    Planejamento territorial e financiamento do desenvolvimento urbano

    nos municpios do estado de So Paulo: marchas e contramarchas (n

    2010/18636-0);ModalidadeAuxlio Pesquisa Regular; Pesquisado-

    ra responsvelRaquel Rolnik (FAU-USP); InvestimentoR$ 55.197,00.