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Dos pases desenvolvidos aos
mais pobres, habitao pblica se tornou
ativo financeiro, indicam estudos
urante seis anos, de 2008 a 2014, a arquiteta e ur-banista Raquel Rolnik exerceu a funo de relatorapara o direito moradia adequada na Organizaodas Naes Unidas (ONU), o que a levou a realizarduas misses de observao por ano em pases comdiversos contextos, polticas e situaes relaciona-dos habitao. Apesar das diferenas, Raquel, pro-fessora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de So Paulo (FAU-USP), pdeestabelecer nexos de um processo global que qua-lificou como financeirizao das cidades, quadroque no exclui o Brasil. A reflexo despertada pelaexperincia do trabalho com a ONU est no livrorecm-lanado Guerra dos lugares: A colonizaoda terra e da moradia na era das finanas (BoitempoEditorial), com dois captulos dedicados ao cenriomundial e um terceiro ao Brasil.
Uma das primeiras misses de Raquel foi nosEstados Unidos, em 2009, no auge da crise ha-bitacional iniciada dois anos antes, que ficou co-nhecida como crise do subprime, nome dado
Moradia
como produto
HUMANIDADES URBANISMOy
Mrcio Ferrari
ao crdito bancrio oferecido a pessoas de baixarenda. Era uma camada social que antes no tinhaacesso ao financiamento para comprar casas porserem consideradas de alto risco. O desmoro-namento do sistema de hipotecas, ou estouro dabolha imobiliria, epicentro de uma crise eco-nmica mundial, forneceu a Raquel um fio demeada. Foi possvel perceber que o paradigma
mundial hegemnico das polticas habitacionais a ideia da moradia como bem individual obtidopor meio do mercado, diz a urbanista. Mais doque mercadoria, a produo de habitaes tor-nou-se um ativo financeiro, uma nova fronteirade ganhos para o mercado de capitais.
No caso dos Estados Unidos, o crdito imobi-lirio, com a permisso do governo, veio acom-panhado de um processo de securitizao lan-amento de outros produtos financeiros, comottulos e obrigaes, lastreados nas hipotecas egerando um lucrativo mercado secundrio paraos bancos. O fenmeno tambm provocou o au-
DJUANCARLOSROJAS/NOTIMEX
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Despejos: um crime
organizado, diz o cartaz
no protesto de 2013 em
Madri: alguns detentores
de hipotecas ficaram sem
as casas e com dvidas
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mento da oferta de recursos para o financiamento,a procura de propriedades mais caras e o cresci-mento dos preos dos imveis, criando, em mui-tos casos, a necessidade de novos emprstimos.Quando a escalada de valorizao se esgotou (oestouro da bolha), as prestaes aumentaram, asdvidas se acumularam e comearam as execueshipotecrias. Dada a natureza transnacional dosmercados financeiros, situaes semelhantes sereproduziram pelo mundo, inclusive em pasesdistantes e com processos histricos muito dife-rentes, como o Cazaquisto e a Crocia, ambospertencentes ao antigo bloco comunista. NosEstados Unidos as pessoas perderam suas casaspara os bancos e em outros lugares, como a Es-panha, foram despejadas e ainda ficaram comdvidas a pagar, relata Raquel.
Embora o impacto maior e mais imediatodesse processo incida sobre o direito terra e moradia dos mais pobres e so-cialmente vulnerveis aqueles a quem sedestinam as iniciativas de produo de ha-
bitaes sociais , os reflexos atingem a sociedadeinteira. Gradativamente, o modelo de financei-rizao substitui todas as outras polticas habi-tacionais e formas de produo de moradia, dizRaquel. Mesmo em lugares como o Reino Unido,em que, graas a polticas de bem-estar social dops-guerra, o problema de escassez de moradiaera apenas residual, o capital financeiro avana.
Saindo do sistema baseado no aluguel social dasresidncias, o pas passou por um processo detransferncia de propriedade aos moradores ehoje um dos casos de pases desenvolvidos emque o mercado de hipoteca residencial representamais de 50% do produto interno bruto.
No mundo todo, no se trata de aes gover-namentais transferidas para a iniciativa privadaem nome da desonerao do Estado. Emborapossam parecer, e os prprios discursos oficiaissejam nesse sentido, os processos so conduzi-dos e regulamentados pela mquina pblica, comrecursos pblicos (diretamente ou via isenode impostos, como ocorreu no Reino Unido noperodo de transferncia da propriedade das ha-bitaes a baixo preo para os moradores). Naverso desse modelo em pases como o Mxico,o Chile, a frica do Sul e o Brasil, o Estado ofe-
rece diretamente s famlias o subsdio comprade produtos do mercado imobilirio criados emmassa em periferias homogneas que se trans-formaram em cidades-dormitrios, diz Raquel.
Embora os vnculos entre as polticas habitacio-nais pelo mundo sejam articulados pelo carter glo-
balizado e expansionista dos mercados de capitais,a pesquisadora alerta para o perigo de se consideraro processo de financeirizao como algo impostode cima para baixo, como uma fora imperialista. muito importante ressaltar que a experinciade cada pas singular, afirma Raquel. A lgicado modelo depende de uma hegemonia polti-
Condomnio do
Minha Casa
Minha Vida em
Londrina (PR):
projeto com
fundos pblicos
e lucros privados
FOTOS
1OLGALEIRIA/OLHARIMAGEM
2JUSTINSULLIVAN/AF
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ca construda localmente.Cada pas adapta seus pro-cedimentos para no afastaros recursos de que necessitapara seus projetos. Isso aju-da a entender como a finan-ceirizao da moradia e daterra urbana se implanta noBrasil, via Minha Casa Minha
Vida, num governo de coali-zo liderado pelo PT, com umdiscurso antineoliberal e umaproposta desenvolvimentis-ta, prossegue a urbanista,que foi secretria nacionalde Programas Urbanos doMinistrio das Cidades entre2003 e 2007, durante o pri-meiro mandato do presiden-te Luiz Incio Lula da Silva.
Segundo Raquel, a poltica pblica de ha-bitao no perodo ps-ditadura militarcontinuou seguindo o esquema bsico queorientou a fundao, em 1964, do BancoNacional de Habitao (BNH). Articula-
do com a indstria de construo civil, o Estadoprometia fazer de cada trabalhador um pro-prietrio. Desde 1967, o sistema financiadocom um fundo pblico, o Fundo de Garantia doTempo de Servio (FGTS). No perodo anteriorao Minha Casa Minha Vida, criado em 2009, Ra-quel observou a existncia de articulaes entre ocapital financeiro e lderes do PT, especialmenteos ligados ao movimento sindical e a fundos depenso, e a criao de vnculos desses grupos como setor imobilirio corporativo, aquele ligadoa torres de escritrios, shopping centerse hotis,o mais vinculado ao capital financeiro interna-
cional. Nesse perodo, mui-tas empresas da construocivil abriram seu capital embolsas de valores.
O xito foi to grande quemunicpios e estados abrirammo de seus projetos e o Mi-nha Casa Minha Vida tornou--se a nica poltica habita-
cional do Brasil, diz Raquel.Essa afirmao foi verificadaem campo por uma pesqui-sa realizada com apoio daFAPESP e pela participaoem uma investigao finan-ciada pelo CNPq/Minist-rio das Cidades. Os poucosmunicpios paulistas que ti-nham um sistema prprio dehabitao social se desfize-
ram de seus sistemas. Raquel relaciona ainda o
processo de financeirizao s reformulaesurbansticas baseadas em remoo, como as queocorrem em funo das obras relacionadas aosmegaeventos esportivos no Brasil. Com o pretextode desapropriar reas para fins considerados prio-ritrios pelo poder pblico, terrenos altamentevalorizados ocupados por assentamentos infor-mais so entregues ao capital privado. Acredi-tvamos que a tendncia poltica em relao sfavelas do Rio de Janeiro, por exemplo, no eramais remover, mas levar melhorias, lamenta AlexFerreira Magalhes, do Instituto de Pesquisa ePlanejamento Urbano e Regional da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro (Ippur-UFRJ). esse o sentido da expresso guerra dos luga-
res, que d ttulo ao livro de Raquel Rolnik. VeraTelles, professora do Departamento de Sociologiada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Hu-manas (FFLCH) da USP, compara esse conceito ideia de acumulao por despossesso, cria-do pelo gegrafo britnico David Harvey, que vnas polticas pblicas hegemnicas uma lgicade expropriao. E vai mais alm, citando a so-ciloga holandesa Saskia Sassen, para quem essalgica , na realidade, de expulso: por meio de
guerras, degradao ambiental e situaes quecriam o fenmeno dos refugiados, entre outrosfenmenos, destravam territrios que, ao seremreconstrudos, criam mercados poderosos. n
Impacto da
financeirizao
afeta primeiro
as camadasmais pobres,
mas reflexos
atingem toda
a sociedade
Moradia
embargada na
crise do subprime
nos Estados
Unidos em 2009,
aps o estouro
da bolha
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Livro
ROLNIK, R. Guerra dos lugares: A colonizao da terra e da moradia na
era das finanas. So Paulo: Boitempo, 2015, 424 p.
Projeto
Planejamento territorial e financiamento do desenvolvimento urbano
nos municpios do estado de So Paulo: marchas e contramarchas (n
2010/18636-0);ModalidadeAuxlio Pesquisa Regular; Pesquisado-
ra responsvelRaquel Rolnik (FAU-USP); InvestimentoR$ 55.197,00.