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    Currculosem Fronteiras, v.12, n.1, pp. 98-109, Jan/Abr 2012

    ISSN 1645-1384 (online) www.curriculosemfronteiras.org 98

    RELAES TNICO-RACIAIS,EDUCAO E DESCOLONIZAODOS CURRCULOS

    Nilma Lino Gomes

    Universidade Federal de Minas Gerais UFMG

    ResumoEste artigo discute as tenses e os processos de descolonizao dos currculos na escola brasileira.Enfatiza a possibilidade de uma mudana epistemolgica e poltica no que se refere ao trato daquesto tnico-racial na escola e na teoria educacional proporcionada pela introduo obrigatriado ensino de Histria da frica e das culturas afro-brasileiras nos currculos das escolas pblicas e

    particulares do ensino fundamental e mdio.

    Palavras-chave: Currculo; educao; relaes tnico-raciais; descolonizao

    AbstractThis paper discusses the tensions and the processes of curriculum decolonization in Brazilianschools. It emphasizes the possibilities of epistemological changes and policies related to ethnic-racial issues in schools as well as the educational theories derived from the mandatory teaching of

    African history and Afro-Brazilian cultures in the curricula of public and private, basic and middleschools.

    Key words: Curriculum, education, ethnic-racial relations, decolonization

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    Vivemos um momento mpar no campo do conhecimento. O debate sobre adiversidade epistemolgica do mundo encontra maior espao nas cincias humanas esociais. nesse contexto que a educao participa como um campo que articula de maneiratensa a teoria e a prtica. Podemos dizer que, embora no seja uma relao linear, os

    avanos, as novas indagaes e os limites da teoria educacional tm repercusses na prticapedaggica, assim como os desafios colocados por essa mesma prtica impactam a teoria,indagam conceitos e categorias, questionam interpretaes clssicas sobre o fenmenoeducativo que ocorre dentro e fora do espao escolar.

    Esse processo atinge os currculos que, cada vez mais so inquiridos a mudar. Osdilemas para os formuladores de polticas, gestores, cursos de formao de professores epara as escolas no que se refere ao currculo so outros: adequar-se as avaliaesstandartizadas nacionais e internacionais ou construir propostas criativas que dialoguem,de fato, com a realidade sociocultural brasileira, articulando conhecimento cientfico e osoutros conhecimentos produzidos pelos sujeitos sociais em suas realidades sociais,culturais, histricas e polticas? Compreender o currculo como parte do processo deformao humana ou persistir em enxerg-lo como rol de contedos que preparam osestudantes para o mercado ou para o vestibular? E onde entra a autonomia do docente? Eonde ficam as condies do trabalho docente, hoje, no Brasil e na Amrica Latina? Comolidar com o currculo em um contexto de desigualdades e diversidade?

    Nesse contexto, possvel dizer que a teoria educacional e o campo do currculoparticipam de um movimento apontado por Santos (2006) composto por duas vertentes: ainterna, que questiona o carter monoltico do cnone epistemolgico e se interroga sobre arelevncia epistemolgica, sociolgica e poltica da diversidade interna de prticascientficas dos diferentes modos de fazer cincia e da pluralidade interna da cincia; e aexterna, que se interroga sobre a exclusividade epistemolgica da cincia e se concentra nasrelaes entre a cincia e outros conhecimentos, ou seja, aquela que diz respeito pluralidade externa da cincia. Segundo o autor acima citado, essas vertentes podem sercompreendidas como dois conjuntos de epistemologias que procuram, a partir de diferentesperspectivas, responder s premissas culturais da diversidade e da globalizao.

    Pode-se dizer que, na teoria educacional e na prtica do currculo, esses dois conjuntosde epistemologias so produzidos por um movimento dinmico: as reflexes internas cincia e as questes colocadas pelos sujeitos sociais organizados em movimentos sociais eaes coletivas ao campo educacional. Quanto mais se amplia o direito educao, quantomais se universaliza a educao bsica e se democratiza o acesso ao ensino superior, maisentram para o espao escolar sujeitos antes invisibilizados ou desconsiderados comosujeitos de conhecimento. Eles chegam com os seus conhecimentos, demandas polticas,valores, corporeidade, condies de vida, sofrimentos e vitrias. Questionam nossoscurrculos colonizados e colonizadores e exigem propostas emancipatrias. Quais so asrespostas epistemolgicas do campo da educao a esse movimento? Ser que elas so tofortes como a dura realidade dos sujeitos que as demandam? Ou so fracas, burocrticas ecom os olhos fixos na relao entre conhecimento e os ndices internacionais dedesempenho escolar?

    Por isso, uma anlise que nos permita avanar ou compreender de maneira mais

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    profunda esse momento da educao brasileira no pode prescindir de uma leitura atentaque articule as duras condies materiais de existncia vivida pelos sujeitos sociais sdinmicas culturais, identitrias e polticas. nesse contexto que se encontra a demandacurricular de introduo obrigatria do ensino de Histria da frica e das culturas afro-

    brasileiras nas escolas da educao bsica. Ela exige mudana de prticas e descolonizaodos currculos da educao bsica e superior em relao frica e aos afro-brasileiros.Mudanas de representao e de prticas. Exige questionamento dos lugares de poder.Indaga a relao entre direitos e privilgios arraigada em nossa cultura poltica eeducacional, em nossas escolas e na prpria universidade.

    Mas a escola bsica e a universidade no podero fazer sozinhas a reflexo sobre esseprocesso. Para tal, o debate epistemolgico sobre o dilogo interno e externo cincia necessrio. E sobre esse debate que o presente artigo se prope discutir a partir dasreflexes geradas por uma experincia singular: o musical Besouro Cordo-de-Ouro,dirigido por Joo das Neves e apresentado no 4 FAN (Festival Internacional de ArteNegra) no dia 25 de novembro de 2007, em Belo Horizonte, Minas Gerais.1 A pea narra atrajetria, a histria e as lutas daquele que considerado um dos mais importantes nomesda capoeira, no Brasil, tambm conhecido como Besouro de Mangang. a partir darelao entre a pea teatral, a histria desse homem negro, a nossa ignorncia cultural eepistmica sobre as relaes tnico-raciais, no Brasil, que as indagaes sobre o currculosero aqui formuladas. Vamos, ento, primeiramente, adentrar o espao cnico e conhecer aencenao teatral e o seu personagem central.

    As indagaes ao currculo que vem das trajetrias afro-brasileiras

    As artes tm reconhecido a centralidade das tensas relaes tnico-raciais queacompanham a nossa formao social e cultural. A pea Besouro Cordo-de-Ouro pode serreconhecida com um exemplo.

    Somos todos convidados a entrar. O cmodo pequeno, abafado e poucoiluminado. O sussurro das vozes, o calor e a penumbra tornam o lugar misteriosoe, ao mesmo tempo, um pouco apavorante. O cho coberto de areia grossa. Aopisarmos, os gros arranham os nossos ps e sujam os nossos sapatos, causandoincmodo. No centro da sala, deparamo-nos com um caixo. Os amigos e asamigas do morto nos convidam a olhar pela ltima vez aquele ilustre capoeiristacujo corpo, antes to gil, permanece agora rgido e frio.No entanto, qual no foi a nossa surpresa ao olharmos dentro do caixo e nosdepararmos com a nossa prpria imagem refletida no espelho que se encontravano interior do atade. O morto no estava l. Mas a sua presena impregnada noespelho e na imagem que o mesmo refletia nos transmitia uma mensagem clara:a finitude da vida iguala a todos e para a morte no existe poder, credo, raa,etnia, classe social, gerao e nem gnero. Somos todos humanos, ao mesmotempo, cheios de potencial de vida e repletos de finitude.Ainda sem compreender o que acontecia, seguimos os amigos e as amigas do

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    morto que nos chamaram para uma espcie de procisso e nos levaram a umoutro cmodo mais iluminado, cujas paredes estavam cobertas de velhosengradados de bebida, com algumas cadeiras e muitas almofadas no cho. Nomeio um pequeno crculo e ao fundo alguns instrumentos musicais.De repente, com voz firme, um dos amigos do morto comeou a entoar, na

    forma de canto, a vida daquele que agora j no estava mais fisicamente entrens. Logo em seguida, outros homens e mulheres comeam a participar danarrativa-canto e contam a histria daquele homem que logo seria enterrado. Ahistria era contada por meio da msica, da fala, da dana, de gestos e golpes decapoeira. No decorrer do enterro, todos ns compreendemos no s a histriadaquele que seria enterrado, como tambm um pouco mais da histria dacapoeira no Brasil e sua inter-relao com a frica e a dispora africana.

    O espetculo teatral cuja cena de abertura foi acima descrita representou um momentompar e, ao assisti-lo, no tive como deixar de relacionar a experincia ali narrada com ahistria de luta da populao negra, no Brasil, e os processo de educao e reeducao queesse segmento implementa a si mesmo e nossa sociedade. Processos esses aindainvisibilizados pelos currculos escolares e pela prpria teoria educacional. Naquelemomento, talvez poucas pessoas conhecessem a histria do Besouro, o qual ganhou maiorvisibilidade fora do crculo da capoeira aps o sucesso dessa pea teatral exibida em vrioslugares do pas. A popularidade do capoeirista tambm passou a atingir um pblico maiorquando sua histria foi transformada em filme exibido em diversos estados brasileiros eassistido, inclusive, fora do pas.2 Nesse artigo farei menes ao teatro e no me aterei aofilme. Mas a minha sugesto ao leitor que o assista para compreender como a histria deBesouro fala muito da trajetria de negros e negras no Brasil, assim como de muitas outraspessoas que, a seu modo, implementaram vrios tipos de luta pela liberdade e peladignidade.

    A trajetria de Besouro, suas experincias, desafios, luta por justia, contradies ecoragem vividas nos anos 20 do sculo passado so conhecidas no s dentro do universoda capoeira, mas tambm por aqueles que vivenciam com orgulho a cultura afro-brasileira.So vivncias fortes da trajetria de um homem que remetem a situaes especficas dapopulao negra e, ao mesmo tempo, s lutas das camadas populares no Brasil. Nos dizeresde Milton Nascimento, um povo que nunca perde a esperana de ter f na vida.

    No decorrer da pea, encenada por atores e atrizes negros, cariocas e mineiros, atrajetria de Manoel Henrique Pereira, o Besouro Cordo-de-Ouro, lendrio capoeirista daregio de Santo Amaro, na Bahia, era narrada, interpretada, vivida, sentida de maneirainterativa entre atores e pblico. Os jovens atores se misturavam no meio do povo,assentavam com a platia, conversavam e olhavam. A reao era imediata: o pblico ouvia,via, sentia, vibrava, batia palmas, sorria, chorava, cantava e, at mesmo, jogava capoeira.

    A histria de Besouro Cordo-de-Ouro era contada e cantada, tocada e sentida com afala, a musicalidade, os gestos e a corporeidade. Os jovens atores e atrizes danavam comfora e intensidade e emitiam vrios sons. Por meio da histria daquele capoeirista, narradade forma artstica e ritualstica, muito do Brasil ps-abolio, da vida dos negros na Bahia,da luta e resistncia negras, dos encontros e desencontros afetivos, da poltica, da

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    violentas. Esse contexto complexo atinge as escolas, as universidades, o campo deproduo do conhecimento e a formao de professores/as. Juntamente s formas novas deexplorao capitalista surgem movimentos de luta pela democracia, governos populares,reaes contra-hegemnicas de pases considerados perifricos ou em desenvolvimento.

    Esse processo atinge os currculos, os sujeitos e suas prticas, instando-os a um processo derenovao. No mais a renovao restrita teoria, mas aquela que cobra uma real relaoteoria e prtica. E mais: uma renovao do imaginrio pedaggico e da relao entre ossujeitos da educao. Os currculos passam a ser um dos territrios em disputa, sobretudodesses novos sujeitos sociais organizados em aes coletivas e movimentos sociais(Arroyo, 2011).

    Retomo a minha experincia no espetculo teatral anteriormente descrito. As cenas, avivncia, as emoes que senti naquele momento foram preciosas. Transformaram-me,fizeram-me refletir. Naquele dia, ao olhar para o pblico, vi alunos da graduao, colegasda universidade, amigos da militncia, artistas, pessoas jovens, adultas e velhas, negras ebrancas, com escolarizao superior ou sem ela, de vrios nveis socioeconmicos que,juntos, eram movidos pela arte, culminando em um sentimento de estar juntos. A vida docapoeirista Besouro Cordo-de-Ouro no era percebida como a histria de mais umhomem negro do interior da Bahia, mas como a histria do nosso pas e de um povo quehistoricamente sempre lutou pela liberdade. O legado da luta do povo negro no Brasilatinge a todos independentemente do sexo, raa, classe social e idade.

    Naquele lugar vi tambm outros rostos muito conhecidos: eram professoras eprofessores da educao bsica de vrias escolas de Belo Horizonte que participavam nos daquele espetculo, mas de todo o FAN. Na sada, uma delas me parou e disse:

    - Pois . S mesmo a Lei n 10.639/03 poderia me estimular a ver um espetculo comoesse!

    Aquela fala me causou um impacto. No era pelo fato de, mesmo em um momento delazer, a minha pessoa ser associada ao trabalho acadmico e discusso sobre a questoracial. Quanto a isso, todos ns sabemos que o tempo da escola e o ser professor/a invademnossa vida nos momentos mais inusitados. Naquele momento, fui tomada de surpresa aorefletir sobre o alcance do trabalho realizado por mim e por todos aqueles que investempoltico-pedaggica e academicamente no processo de formao de professores/as para adiversidade tnico-racial. Embevecida como estava com o teatro, no imaginava quepoderia encontrar, ali, algum que me dissesse ter sido motivada a assistir ao espetculo porcausa de uma legislao educacional! Ao voltar para casa, passei a refletir sobre aimportncia da alterao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (Lei 9394/96)atravs da sano da Lei n 10.639/03 e sua regulamentao pelo parecer CNE/CP 03/2004e pela resoluo CNE/CP 01/2004 (BRASIL, 2005), a ponto de suscitar naquela e talvez emoutros docentes o desejo de conhecer, compreender e experenciar a cultura negra e buscarcaminhos diversos para tal, que no somente o contedo livresco. A fala daquela professoraestava apontando para algum movimento de mudana que considero um passo importantena construo de uma ruptura epistemolgica e cultural causada pela introduo maissistemtica da discusso sobre a questo racial e a Histria da frica na escola. Umaruptura cuja ampliao tem se dado, com limites e avanos, por fora da lei. E uma lei que

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    no somente mais uma norma: resultado de ao poltica e da luta de um povo cujahistria, sujeitos e protagonistas ainda so pouco conhecidos, assim como Besouro Cordo-de-Ouro, o capoeirista cuja histria foi contada durante o espetculo teatral.

    Novas indagaes ou um novo contexto?

    Diante disso, podemos fazer algumas indagaes: como o campo da formao deprofessores e professoras lida com essas rupturas? Como a alterao da LDB pela Lei n10.639/03 se insere nesse contexto? Que novos paradigmas esto se desenhando nohorizonte pedaggico mediante a insero cada vez maior do trato da diversidade cultural etnico-racial nos currculos? Gostaria de destacar dois pontos para a nossa reflexo.

    O primeiro refere-se ao lugar da questo racial nos currculos. As reflexes de Santom(1995) sobre a relao entre currculo e culturas negadas e silenciadas ainda tm inspiradomuitas opinies pedaggicas sobre o trato da questo racial e a diversidade tnico-racial naescola. Segundo o autor:

    Quando se analisam de maneira atenta os contedos que so desenvolvidos deforma explcita na maioria das instituies escolares e aquilo que enfatizadonas propostas curriculares, chama fortemente a ateno arrasadora presenadas culturas que podemos chamar de hegemnicas. As culturas ou vozes dosgrupos sociais minoritrios e/ou marginalizados que no dispem de estruturasimportantes de poder continuam ser silenciadas, quando no estereotipadas edeformadas, para anular suas possibilidades de reao (p. 163).

    Numa perspectiva de descolonizao dos currculos e na compreenso das rupturasepistemolgicas e culturais trazidas pela questo racial na educao brasileira, concordo

    com o fato de que esse olhar um alerta importante. A compreenso das formas por meiodas quais a cultura negra, as questes de gnero, a juventude, as lutas dos movimentossociais e dos grupos populares so marginalizadas, tratadas de maneira desconectada com avida social mais ampla e at mesmo discriminadas no cotidiano da escola e nos currculospode ser considerado um avano e uma ruptura epistemolgica no campo educacional. Noentanto, devemos ir mais alm.

    Gonalves (1985) j chamava a ateno, na dcada de 80, para o lugar ocupado pelosilncio sobre a questo racial na escola. Na sua dissertao de mestrado, intitulada Osilncio: um ritual pedaggico a favor da discriminao racial: um estudo acerca dadiscriminao racial como fator de seletividade na escola pblica de primeiro grau: 1 a 4

    srie, o autor atentava para algo mais profundo.

    O autor destacava o fato de que a presena da cultura na escola e na sala de aula no semanifesta somente de forma imaterial nem um tema capaz de homogeneizar tudo e todos.Pelo contrrio, ela descontnua, conflituosa e tensa e se materializa por meio de gestos,palavras e aes, muitas vezes, intencionais. Na escola, no currculo e na sala de aula,convivem de maneira tensa valores, ideologias, smbolos, interpretaes, vivncias e

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    preconceitos. Nesse contexto, a discriminao racial se faz presente como fator deseletividade na instituio escolar e o silncio um dos rituais pedaggicos por meio doqual ela se expressa. No se pode confundir esse silncio com o desconhecimento sobre oassunto ou a sua invisibilidade. preciso coloc-lo no contexto do racismo ambguo

    brasileiro e do mito da democracia racial e sua expresso na realidade social e escolar. Osilncio diz de algo que se sabe, mas no se quer falar ou impedido de falar. No que serefere questo racial, h que se perguntar: por que no se fala? Em que paradigmascurriculares a escola brasileira se pauta a ponto de no poder falar sobre a questo racial?E quando se fala? O que, como e quando se fala? O que se omite ao falar?

    O ato defalar sobre algum assunto ou tema na escola no uma via de mo nica. Eleimplica respostas do outro, interpretaes diferentes e confrontos de idias. A introduoda Lei n 10.639/03 no como mais disciplinas e novos contedos, mas como umamudana cultural e poltica no campo curricular e epistemolgico poder romper com osilncio e desvelar esse e outros rituais pedaggicos a favor da discriminao racial.

    Nesse sentido, a mudana estrutural proposta por essa legislao abre caminhos para aconstruo de uma educao anti-racista que acarreta uma ruptura epistemolgica ecurricular, na medida em que torna pblico e legtimo o falar sobre a questo afro-brasileira e africana. Mas no qualquer tipo de fala. a fala pautada no dilogointercultural. E no qualquer dilogo intercultural. aquele que se prope seremancipatrio no interior da escola, ou seja, que pressupe e considera a existncia de umoutro, conquanto sujeito ativo e concreto, com quem se fala e de quem se fala. E nessesentido, incorpora conflitos, tenses e divergncias. No h nenhuma harmonia e nemquietude e tampouco passividade quando encaramos, de fato, que as diferentes culturase os sujeitos que as produzem devem ter o direito de dialogar e interferir na produo denovos projetos curriculares, educativos e de sociedade. Esse outro dever ter o direito livre expresso da sua fala e de suas opinies. Tudo isso diz respeito ao reconhecimento danossa igualdade enquanto seres humanos e sujeitos de direitos e da nossa diferena comosujeitos singulares em gnero, raa, idade, nvel socioeconmico e tantos outros. Refere-setambm aos conflitos, choques geracionais e entendimento das situaes-limite vivenciadaspelos estudantes das nossas escolas, sobretudo aquelas voltadas para os segmentosempobrecidos da nossa populao.

    O segundo ponto referente relao entre a formao de professores/as e as rupturasepistemolgicas e culturais produzidas no contexto da Lei n 10.639/03, entendidaenquanto LDB e por isso mesmo obrigatria, nos leva a formular mais algumas questesdesafiadoras: como lidar com a diversidade cultural e tnico-racial em sala de aula? possvel superar o modelo monocultural de conhecimento e de ensino? Juntamente aosautores Gonalves e Gonalves e Silva (2000, p. 62), podemos indagar: possvel aosprofessores e professoras incluir a eqidade de oportunidades educacionais entre seusobjetivos? Como socializar, por meio do currculo e de procedimentos de ensino, para atuarem uma sociedade multicultural?

    Podemos dizer que os movimentos sociais, e, com destaque, os de carter identitrio(mulheres, negros, indgena, LGBT, quilombolas, povos do campo), h muito vm tentandoresponder a essas questes e tm reivindicado da escola e do campo da formao de

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    professores um posicionamento, reflexes tericas e prticas pedaggicas que tambmrespondam a essas demandas sociais e polticas.

    sempre bom destacar que os movimentos sociais tm como inteno poltica atingirde forma positiva toda a sociedade e no somente os grupos sociais por eles representados.

    Em sociedades pluritnicas e multirraciais como o Brasil, os avanos em prol da articulaodiversidade e cidadania podero ser compreendidos como ganhos para a construo de umademocracia, de fato, que tenha como norte poltico a igualdade de oportunidades para osdiferentes segmentos tnico-raciais e sociais e supere o to propalado mito da democraciaracial.

    Tais demandas encontram maior ressonncia, hoje, em algumas iniciativas dos rgosgovernamentais, em centros de pesquisa, escolas de educao bsica e algumasexperincias concretas de formao inicial e continuada de professores/as, porm, aindacom severas resistncias.

    No campo do currculo, tais demandas tambm tm encontrado lugar na medida emque esse j se indaga sobre os limites e as possibilidades de construo de um currculointercultural, o lugar da diversidade nos discursos e prticas curriculares, o peso dasdiferenas na relao entre currculo e poder, entre outros.

    Mas o trato da questo racial no currculo e as mudanas advindas da obrigatoriedadedo ensino de Histria da frica e das culturas afro-brasileiras nos currculos das escolas daeducao bsica s podero ser considerados como um dos passos no processo de rupturaepistemolgica e cultural na educao brasileira se esses no forem confundidos comnovos contedos escolares a serem inseridos ou como mais uma disciplina. Trata -se, narealidade, de uma mudana estrutural, conceitual, epistemolgica e poltica.

    Outro paradigma epistemolgico?

    Estamos, portanto, em um campo de tenses e de relaes de poder que nos leva aquestionar as concepes, representaes e esteretipos sobre a frica, os africanos, osnegros brasileiros e sua cultura construdos histrica e socialmente nos processos dedominao, colonizao e escravido e as formas como esses so reeditados ao longo doacirramento do capitalismo e, atualmente, no contexto da globalizao capitalista. Comonos diz Meneses (2007): Falar sobre frica significa pois questionar e desafiar crenasqueridas, pressupostos afirmados e mltiplas sensibilidades (p. 56).

    A autora ainda adverte que civilizao, nao, cultura, raa, etnia, tribos soconstrues da modernidade. A ligao indelvel entre os conceitos de brbaro e decivilizado produziu um mapa moderno do mundo onde a humanidade comparada emfuno de uma referncia nica, considerada universal. Segundo a autora, apesar de teremsido construdas, essas categorias permanecem elementos essenciais da configurao esignificao atuais da modernidade. A organizao do mundo em torno desses conceitosespaciais parte central da forma como hoje percebemos o mundo, o que justificaplenamente o seu significado histricoo poder para moldar a histria (p .57).

    E ainda de acordo com a autora: O mapa cognitivo que estas construes geram

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    exigem hoje, em contexto de debates ps-coloniais, um processo de desconstruo quepermita revelar as realidades ocultas pela fora de qualquer proposta hegemnica (Santos,2006; Meneses, 2007, p. 57).

    Parafraseando a autora, podemos dizer que a Lei n 10.639/03, o parecer CNE/CP

    03/2004 e a resoluo CNE/CP 01/2004 apontam para a escola, o currculo e a formao deprofessores/as a necessidade de uma construo alternativa da histria do mundo, e no sda frica. Paula Meneses (2007, p. 57) ainda nos alerta para o fato de que tal postura requeruma histria responsvel que jogue uma funo pedaggica pblica (Wrebner, 1996;Meneses, 2003; Dirlick, 2006). Trata-se de uma (re)construo histrica alternativa eemancipatria, que procure construir uma histria outra que se oponha perspectivaeurocntrica dominante. A autora ainda nos diz que em lugar de generalizaes esimplificaes que pretendem encaixar a frica (e eu acrescentaria, a questo racial noBrasil) no esquema desenvolvido para explicar de forma linear o progresso civilizatrio doOcidente, o desafio que se coloca duplo: explicar a persistncia da relao colonial naconstruo da histria mundial, ao mesmo tempo em que se propem alternativas leiturada histria, no sentido de construir histrias contextuais que, articuladas em rede, permitamuma viso cosmopolita sobre o mundo (Said, 1993; Appadurai, 1996; Appiah, 1998;Gilroy, 1993; Diouf, 1999, Meneses, 2007).

    Nesse sentido, mais do que a efetivao poltica de uma antiga reivindicao doMovimento Negro para a educao, a Lei n 10.639/03, o parecer CNE/CP 03/2004 e aresoluo CNE/CP 01/2004 e os desdobramentos deles advindos nos processos deformao de professores/as, na pesquisa acadmica, na produo de material didtico, naliteratura, entre outros, devero ser considerados como mais um passo no processo dedescolonizao do currculo. Esse processo resulta na construo de projetos educativosemancipatrios e, como tal, abriga um conflito, nos dizeres de Santos (1996).

    Na perspectiva desse autor, o conflito ocupa o centro de toda experincia pedaggicaemancipatria. Ele serve antes de tudo para tornar vulnervel e desestabilizar os modelosepistemolgicos dominantes e para olhar o passado atravs do sofrimento humano, que, porvia deles e da iniciativa humana a eles referida, foi indesculpavelmente causado. Esse olharproduzir imagens desestabilizadoras, susceptveis de desenvolver nos estudantes e nosprofessores a capacidade de espanto e de indignao e uma postura de inconformismo, asquais so necessrias para olhar com empenho os modelos dominados ou emergentes pormeio dos quais possvel aprender um novo tipo de relacionamento entre saberes e,portanto, entre pessoas e entre grupos sociais. Poder emergir da um relacionamento maisigualitrio e mais justo, que nos faa apreender o mundo de forma edificante, emancipatriae multicultural.

    Portanto, a descolonizao do currculo implica conflito, confronto, negociaes eproduz algo novo. Ela se insere em outros processos de descolonizao maiores e maisprofundos, ou seja, do poder e do saber. Estamos diante de confrontos entre distintasexperincias histricas, econmicas e vises de mundo. Nesse processo, a superao daperspectiva eurocntrica de conhecimento e do mundo torna-se um desafio para a escola, oseducadores e as educadoras, o currculo e a formao docente. Compreender anaturalizao das diferenas culturais entre grupos humanos por meio de sua codificao

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    com a idia de raa; entender a distorcida relocalizao temporal das diferenas, de modoque tudo aquilo que no-europeu percebido como passado (Quijano, 2005) ecompreender a ressignificao e politizao do conceito de raa social no contextobrasileiro (Munanga e Gomes, 2006) so operaes intelectuais necessrias a um processo

    de ruptura epistemolgica e cultural na educao brasileira. Esse processo poder, portanto,ajudar-nos a descolonizar os nossos currculos no s na educao bsica, mas tambm noscursos superiores.

    Finalizando...

    Alguns dos elementos abordados neste artigo estavam presentes no contexto domusical Besouro Cordo-de-Ouro com o qual iniciei as reflexes. A prpria existncia domusical, o tema por ele privilegiado, a escolha de atores e atrizes negras e a formaprofissional e artstica por meio da qual a msica, a dana, as crenas, a corporeidade dematriz afro-brasileira foram apresentadas no espetculo, sem o risco da folclorizao dacultura, revela que algo est mudando. Ser que tal mudana vem acontecendo mesmoque de maneira lenta na escola brasileira, no campo do currculo e na formao deprofessores/as? Ser que tal mudana vem ocorrendo com mais fora aps a alterao daLDB, mediante a sano da Lei 10.639/03 e sua regulamentao pelo parecer CNE/CP03/2004 e pela resoluo CNE/CP 01/2004? E ser que esse momento pode sercompreendido como parte de um processo de descolonizao dos currculos? Esse ainda um campo em aberto a investigar e um desafio para as pesquisas que articulem diversidadetnico-racial, currculo e formao de professores.

    Notas

    1 Musical dirigido por Joo das Neves, que revela a trajetria de Manoel Henrique Pereira, o Besouro Cordo-de-Ouro,lendrio capoeirista da regio de Santo Amaro, na Bahia. O espetculo tem texto, msicas e letras inditos docompositor Paulo Csar Pinheiro, direo musical de Luciana Rabello e elenco instrudo por dois mestres capoeiristas.Gostaria de agradecer a professora Ins Teixeira, da FAE/UFMG, pelo convite, companhia e oportunidade de assistir omusical Besouro Cordo-de-Ouro.

    2 Filme Besouro, o Cordo de Ouro dirigido por Joo Daniel Tikhomiroff sobre Besouro Mangang que estreou no Brasilno dia 30 de outubro de 2009.

    3 Lei que altera a LDBEN, 9394/96, e estabelece a obrigatoriedade do ensino de Histria da frica e das culturas afro-brasileiras nos currculos das escolas pblicas e particulares do ensino fundamental e mdio da Educao Bsica. Em10/03/08, a Lei 10.639/03 tambm foi alterada e passou a incluir a histria e a cultura dos povos indgenas, recebendo onmero 11.645/08. Tal legislao foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Educao pelo Parecer CNE/CP03/2004 e pela Resoluo CNE/CP 01/2004.

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  • 7/27/2019 1 artigo

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    Relaes tnico-raciais, educao e descolonizao dos currculos

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    Cor respondncia

    Nilma Lino GomesProfessora Associada da Faculdade de Educao da UFMG. Doutora em AntropologiaSocial/USP e Ps-Doutora em Sociologia Faculdade de Economia Universidade de Coimbra.Coordenadora Geral do Programa Aes Afirmativas na UFMG. Bolsista de produtividade CNPQ.

    E-mail: [email protected]

    Texto publicado em Currculo sem Fronteiras com autorizao da autora.