20
Introdução No atual contexto internacional, muito marcado pela progressiva liberalização do comércio mundial e dos movimentos de capitais, pela criação e ampliação de grandes espaços de mer- cado, pelo desenvolvimento das telecomunica- ções e pela criação de novos mecanismos de contratação internacional, emergem novos desa- fios de governação para os Estados e, por con- sequência, também para os sistemas jurídicos. Neste quadro, os crimes de mercado têm vindo a assumir uma particular atenção, em especial o crime de abuso de informação (também conhe- cido em Portugal por abuso de informação pri- vilegiada), mais conhecido no direito anglo- saxónico como insider trading ou no direito francês como délit dinitié. Este crime pressu- põe que alguém usa, no mercado de valores mobiliários, uma informação economicamente relevante, a que teve acesso por uma via privile- giada, antes de a generalidade dos intervenien- tes no mercado a poderem conhecer, com bene- fício desse conhecimento prévio. Embora o insider trading goze de uma forte tra- dição reguladora no sistema norte-americano, desde a segunda metade do século XX, também na União Europeia esta questão tem vindo a ser, nos últimos anos, alvo sistemático de regula- mentação – incluindo em Portugal – no sentido da criminalização do insider trading. Porém, o caráter ilícito do insider trading nem sempre foi consensual. Desde a década de 60, algumas teorias defenderam, por um lado, que o insider trading tem um efeito positivo do ponto de vista económico (cujo expoente máximo ca- be a H. G. MANNE) e, por outro, que a crimi- nalização do insider trading decorreria mais de considerações morais, do que de verdadeiras necessidades político-criminais de proteção de bens jurídicos (posição que foi, durante algum tempo, muito defendida num amplo sector da doutrina alemã e espanhola). Em qualquer caso, estas teorias foram sendo ultrapassadas e, hoje, a criminalização do abuso de informação privilegiada tornou-se uma reali- dade, pelo que se impõe precisar o alcance des- ta figura delitiva e clarificar os distintos proble- mas de interpretação que resultam da sua com- plexa estrutura típica, dada a sua origem num contexto lícito (a negociação no mercado de valores mobiliários). Para enquadrar melhor a nossa perspetiva, começaremos por contextuali- zar o insider trading em termos histórico- jurídicos, abordando as questões terminológicas que envolvem este crime, apresentando os argu- mentos pro e contra a criminalização daquele delito e dissecando os antecedentes legislativos na União Europeia e, em especial, no sistema legislativo português. De seguida, analisaremos o regime legal atual do abuso de informação, Abuso de Informação Privilegiada - O Especial Caso dos Instrumentos de Remuneração dos Administradores * Ana Cláudia Salgueiro ** * - O presente artigo baseia-se num trabalho realizado no âmbito do seminário especializado Internacionalização das PMEs”, integrado no Doutoramento em Direito – Ciências Jurídico-Criminais, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, supervisionado pelo Professor Doutor Pedro Maia. ** - Advogada na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Doutoranda em Direito, na especialidade de Ciências Jurídico-Criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. As opiniões assumidas no texto são pessoais, não podendo ser atribuídas à CMVM.

1 Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários: Abuso de ... · criação e ampliação de grandes espaços ... fios de governação para os Estados e, por con-sequência, também

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1 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Introdução

No atual contexto internacional, muito marcado

pela progressiva liberalização do comércio

mundial e dos movimentos de capitais, pela

criação e ampliação de grandes espaços de mer-

cado, pelo desenvolvimento das telecomunica-

ções e pela criação de novos mecanismos de

contratação internacional, emergem novos desa-

fios de governação para os Estados e, por con-

sequência, também para os sistemas jurídicos.

Neste quadro, os crimes de mercado têm vindo

a assumir uma particular atenção, em especial o

crime de abuso de informação (também conhe-

cido em Portugal por abuso de informação pri-

vilegiada), mais conhecido no direito anglo-

saxónico como insider trading ou no direito

francês como délit d’initié. Este crime pressu-

põe que alguém usa, no mercado de valores

mobiliários, uma informação economicamente

relevante, a que teve acesso por uma via privile-

giada, antes de a generalidade dos intervenien-

tes no mercado a poderem conhecer, com bene-

fício desse conhecimento prévio.

Embora o insider trading goze de uma forte tra-

dição reguladora no sistema norte-americano,

desde a segunda metade do século XX, também

na União Europeia esta questão tem vindo a ser,

nos últimos anos, alvo sistemático de regula-

mentação – incluindo em Portugal – no sentido

da criminalização do insider trading.

Porém, o caráter ilícito do insider trading nem

sempre foi consensual. Desde a década de 60,

algumas teorias defenderam, por um lado, que o

insider trading tem um efeito positivo do ponto

de vista económico (cujo expoente máximo ca-

be a H. G. MANNE) e, por outro, que a crimi-

nalização do insider trading decorreria mais de

considerações morais, do que de verdadeiras

necessidades político-criminais de proteção de

bens jurídicos (posição que foi, durante algum

tempo, muito defendida num amplo sector da

doutrina alemã e espanhola).

Em qualquer caso, estas teorias foram sendo

ultrapassadas e, hoje, a criminalização do abuso

de informação privilegiada tornou-se uma reali-

dade, pelo que se impõe precisar o alcance des-

ta figura delitiva e clarificar os distintos proble-

mas de interpretação que resultam da sua com-

plexa estrutura típica, dada a sua origem num

contexto lícito (a negociação no mercado de

valores mobiliários). Para enquadrar melhor a

nossa perspetiva, começaremos por contextuali-

zar o insider trading em termos histórico-

jurídicos, abordando as questões terminológicas

que envolvem este crime, apresentando os argu-

mentos pro e contra a criminalização daquele

delito e dissecando os antecedentes legislativos

na União Europeia e, em especial, no sistema

legislativo português. De seguida, analisaremos

o regime legal atual do abuso de informação,

Abuso de Informação Privilegiada - O Especial Caso dos Instrumentos de Remuneração dos Administradores *

Ana Cláudia Salgueiro **

* - O presente artigo baseia-se num trabalho realizado no âmbito do seminário especializado “Internacionalização das PME’s”, integrado no Doutoramento em Direito – Ciências Jurídico-Criminais, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, supervisionado pelo Professor Doutor Pedro Maia. ** - Advogada na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Doutoranda em Direito, na especialidade de Ciências Jurídico-Criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. As opiniões assumidas no texto são pessoais, não podendo ser atribuídas à CMVM.

2 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

presente no Código dos Valores Mobiliários

(doravante CdVM), procedendo a uma análise

sistemática de todos os elementos que confor-

mam a descrição do tipo penal do artigo 378º,

do CdVM, dando uma especial atenção ao bem

jurídico protegido, ao tipo objetivo e ao tipo

subjetivo. Numa segunda fase, apresentaremos

algumas zonas de potencial intersecção entre o

crime de abuso de informação e matérias do

direito societário, designadamente, em três do-

mínios: na Oferta Pública de Aquisição (OPA),

na aquisição de ações em operações de manage-

ment buy-out, e, finalmente, no âmbito dos ins-

trumentos de remuneração dos administradores,

sobretudo, nos planos de atribuição de ações e

nas stock options.

Com a abordagem deste último âmbito, propo-

mo-nos também problematizar e analisar mais

detalhadamente o problema, tomando como

linhas orientadores as seguintes questões: o cri-

me de abuso de informação implica a proibição

dos instrumentos de remuneração? Ou resta

ainda espaço para tais práticas no direito so-

cietário, sem que se cometa o crime de abuso de

informação?

1. A punibilidade do Insider Trading

Insider trading exprime, literalmente, na estei-

ra de FÁTIMA GOMES, a ideia de “comércio

interior ou do que está dentro”, ou seja,

“significa a comercialização por um sujeito si-

tuado numa posição especial (o insider), tradu-

zindo-se aquela comercialização na realização

de compras ou de vendas de valores mobiliá-

rios, com base numa informação especial, de

grande relevância, desconhecida dos investido-

res, potenciais interessados, e de cuja posse re-

sulta para o utilizador uma posição de vantagem

em relação à contraparte”1.

Contudo, embora o termo insider trading2 não

se afigure a expressão mais adequada para de-

signar estes comportamentos3, “o peso da tradi-

ção e o caráter sintético e sugestivo da expres-

são conduziram à utilização daquela, pela dou-

trina e jurisprudência, com completa indistin-

ção”4.

Nesse sentido, e apesar de o legislador da União

Europeia utilizar o termo francês initié

(iniciado) – numa imposição proveniente dos

1- FÁTIMA GOMES, Insider Trading, Valadares: APDMC – Associação Portuguesa para o Desenvolvimento do Mercado de Capitais,

1996, p. 7.

2- Sendo de origem norte-americana, a expressão tem designações diversas em diferentes países. No Reino Unido utiliza-se a expressão

insider dealing, em França utiliza-se o termo délit d’initié e em Portugal utiliza-se a expressão abuso de informação privilegiada ou,

simplesmente – como veremos mais à frente –, abuso de informação.

3- Neste sentido, designadamente, MARÍA TERESA DE GISPERT PASTOR, “La protección legal de la inversión mobiliaria en Gran Bretaña”, in R. D. B. B., nº 5, ano II, 1982, pp. 55-70 (p. 56); EDUARDO CALDERÓN SUSÍN, “El abuso de información privilegiada en el mercado de valores”, in Delitos socioeconómicos en el Nuevo Código Penal, Cuadernos de Derecho Judicial, 1996, pp. 210-260 (p. 212). 4- FÁTIMA GOMES (1996), op. cit., pp. 7-8.

3 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

trabalhos iniciais do Conselho da antiga CEE –,

por se considerar que o termo insider trading

não abarcaria todos os comportamentos aqui

englobados, utilizaremos, frequentemente, esta

mesma expressão.

A prática do insider trading no ordenamento

jurídico norte-americano começou por ser proi-

bida logo no início do século XX5, por ser con-

siderada violadora das regras de formação do

negócio. Aliás, as primeiras regulações federais

sobre os mercados de valores mobiliários surgi-

ram nos anos trinta – mais propriamente, em

1933 e 19346 –, na sequência do crash da bolsa

de Nova Iorque, em 1929.

Na Europa, o primeiro sinal de preocupação

com as práticas de insider trading surgiu com

um relatório elaborado em 1966 por um grupo

de especialistas, constituído pela Comissão da

antiga CEE, sobre o desenvolvimento de um

mercado europeu de capitais. Neste relatório,

assinalou-se a necessidade de os Estados mem-

bros aproximarem os seus controlos relativos a

informação suscetível de influenciar as cotiza-

ções de mercado7.

No entanto, a necessidade de punir o insider

trading nem sempre foi consensual, tendo mes-

mo surgido algumas teorias contraditórias. O

debate sobre o mérito do insider trading procu-

rou responder, sobretudo, a duas questões: “é

justo haver negociação quando as pessoas são

informadas de forma diferenciada? É economi-

camente eficiente permitir informação privilegi-

ada?”8.

Na linha de argumentação que defende a

desregulação e a descriminalização do insider

trading, surgem alguns autores, sobretudo da

escola de Chicago9, como H. G. MANNE10 e

ROBERT J. HAFT11, que, a partir dos anos ses-

senta, romperam com o consenso que até aí im-

perava, segundo o qual as práticas de insider

trading eram prejudiciais. Estes autores defen-

deram, em síntese, que o insider trading tem um

efeito positivo do ponto de vista económico,

incorporando “os benefícios do insider trading

na remuneração devida aos corporate insiders e,

por essa via, reputava como legítima e lícita tal

prática”12. Sintetizando todo o pensamento da

escola de Chicago, H. G. MANNE afirma que

“without insider trading, the corporate system

Abuso de Informação Privilegiada...: 03

5- No entanto, JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS advertem para o facto de já no século XVIII se pôr “em destaque, por um lado, os benefícios obtidos por um grupo restrito de «iniciados» que negoceia as suas ações na posse de informações reservadas e, por outro lado, o prejuízo sofrido pelo público investidor que não dispõe de tais informações” (in O crime de abuso de informação privilegiada (insider trading). A informação enquanto problema jurídico-penal, Coimbra Editora, 2006, p. 18). A este propósito, JOSÉ ZAMYR VEJA GUTIÉRREZ aponta mesmo o ano de 1723 como sendo a origem do insider trading, data em que parece ter sido documentado o primeiro caso de denúncia desta prática (in Mercado de valores en derecho penal. Abuso de información privilegiada bursátil: “Insider Trading”, Madrid: Edisofer, 2013, p. 10; “El delito de uso de información privilegiada en el mercado de valores, especialmente en el derecho penal español”, Tese de Doutoramento, Universidad de Alcalá, Facultad de Derecho, 2010, p. 29, disponível em http://dspace.uah.es/dspace/bitstream/handle/10017/9783/TESIS%20DOCTORAL%20DEFINITIVA%20IMPRESA.pdf?sequence=1&isAllowed=y, consultado em 15-03-2015). 6- O colapso da bolsa de Nova Iorque deu lugar ao Securities Act, em 1933 e ao Securities Exchange Act, em 1934, normas que criaram um corpo jurídico contra as práticas de insider trading. Estas duas leis encontram-se hoje no United States Code Annotated (USCA), Título 15, Secção 78 p(b). 7- D. J. GÓMEZ INIESTA, La utilización abusiva de información privilegiada en el mercado de valores, Madrid: McGraw-Hill, 1997, pp. 68 e ss. 8- HAYNE E. LELAND, “Insider Trading: Should it be prohibited?”, in The Journal of Political Economy, vol. 100, nº 4, agosto de 1992, pp. 859-887 (p. 859). 9- Os designados partidários da teoria da utilidade da utilização em bolsa de informação privilegiada. 10- Para um maior aprofundamento da obra, ver Insider trading and the Stock Market, Nova Iorque: Free Press, 1966. 11- Para maiores esclarecimentos da sua teoria, ver “The effect of insider trading rules on the internal efficiency of the large Corporation”, in Michigan Law Review, nº 80, 1982, pp. 1051-1071. 12- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 22.

4 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

might not survive”13, já que “esta seria a forma

de remunerar devidamente os administradores

das sociedades (...) que, pelas suas excecionais

qualidades de liderança e de inovação, eram o

motor de criação da riqueza”14.

Mas esta teoria viria a ser muito criticada, invo-

cando-se como argumentos decisivos designa-

damente, “a ilicitude intrínseca à utilização de

informações privilegiadas e a injustiça relativa-

mente aos investidores em especial, e ao merca-

do em geral, bem como a existência de danos

provocados pelos insiders aos investidores”15.

Assim, pese embora o relevo e a atenção que a

escola de Chicago e, em especial, H. G. MAN-

NE, receberam, a verdade é que se consolidou,

tanto nos EUA, como na Europa16, o carácter

ilícito do insider trading17.

2. O quadro legal do abuso

de informação privilegiada

Na União Europeia, o relatório de um grupo de

especialistas, de 1966, constituído pela Comis-

são da antiga CEE, sobre o desenvolvimento de

um mercado europeu de capitais – como abor-

dámos supra –, constituiu um alerta para o iní-

cio da articulação de medidas para reprimir a

exploração abusiva de informação privilegiada,

dado que nem todos os países comunitários ti-

nham legislação sobre insider trading.

O primeiro passo, nesse sentido, foi dado com a

Recomendação da Comissão 77/534/CEE, de

25 de julho de 1977, relativa a um código euro-

peu de conduta respeitante às transações relati-

vas a valores mobiliários. Este código, que pri-

mava pelo aspeto deontológico, não teve grande

eficácia, visto não ser um instrumento vinculati-

vo perante os Estados membros. Um segundo

passo, no sentido de se combater as práticas de

insider trading, foi dado com a Convenção do

Conselho da Europa, de 20 de abril de 198918,

que representou, nesta matéria, o primeiro trata-

do internacional multilateral.

Mas o passo mais relevante dado pela União

Europeia, atendendo ao seu caráter vinculativo,

surgiu com a Diretiva do Conselho 89/592/

CEE, de 13 de novembro de 198919, relativa à

coordenação das regulamentações respeitantes

13- Apud ROBERT CHARLES CLARK, Corporate Law, Boston / Toronto: Little, Brown and Company, 1986, p. 277. 14- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 22. 15- FÁTIMA COSTA (1996), op. cit., p. 12. Para maiores esclarecimentos sobre os argumentos que foram sendo invocados a favor da proibição e criminalização do insider trading, ver, designadamente, JOSÉ ZAMYR VEJA GUTIÉRREZ (2010), op. cit., pp. 42-46. 16- A resposta da Europa ao insider trading revelou-se ampla. A título de exemplo, França puniu aquelas práticas em 1967, na Ordennance nº 67-833, o Reino Unido puniu (criminalmente) a partir de 1985, com a aprovação da Company Securities (Insider Dealing) Act, dentro da Financial Services Act, e a Itália puniu a partir de 1991, com a Legge nº 157, de 17 de maio de 1991. Embora a Alemanha tenha sido um dos países que, com maior força, se opôs a que a União Europeia (na altura, CEE) estabelecesse a obrigação dos Estados membros imporem medidas de carácter penal, relativamente às práticas de insider trading, a verdade é que o escândalo que ocorreu na Bolsa de Frankfurt, em 1991, relativo à atuação de um insider, modificou, em grande medida, as opiniões acerca da utilização de sanções penais. A propósito das reticências que alguns autores revelam quanto a impor medidas de carácter penal no combate às práticas de insider trading, GUIDO SANTORO analisa o insider trading no âmbito do direito civil e coloca a hipótese de aquele ser punido só no campo civil (“Insider Trading: profili civilistici”, in Contratto e impresa. Dialogui con la giurisprudenza civile e commerciale diretti da Francesco Galgano, nº 2, ano 8, 1992, pp. 663-681). O Reino Unido, por exemplo, segue maioritariamente a via do direito civil, neste domínio, com numerosos acordos extrajudiciais, sendo escassas as declarações de culpabilidade penal. A este propósito, JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS consideram que, “embora a experiência de várias ordens jurídicas (...) mostre que tanto a reação ao abuso de informação como a tutela dos investidores pode passar por mecanismos ou instrumentos não penais, é certo que a tutela penal tem sido considerada como necessária e imprescindível (...), tendo em conta a inoperatividade de sanções civis quando referidas a transações efetuadas em mercados de anónimos e a insuficiência da disciplina não penal para combater as condutas próprias do insider trading” (op. cit., p. 31). 17- Embora se possa ponderar, como o fez JOSÉ ZAMYR VEGA GUTIÉRREZ (2010), tendo por base Luzón Peña, a possibilidade de o abuso de informação ser apenas uma manifestação do chamado direito penal simbólico (op. cit., pp. 46-54). 18- Portugal não aderiu, nem ratificou esta convenção. 19- A Diretiva do Conselho 89/592/CEE teve por base a Proposta de Diretiva da Comissão da CEE, de 25 de maio de 1987, sobre coordenação das normas relativas às operações de iniciados. Dado o seu caráter de programas mínimos (artigo 6º), a Diretiva não se pronuncia sobre a natureza das correspondentes sanções. O artigo 13º limita-se a exigir que se imponham sanções suficientes para incentivar o respeito pelas disposições resultantes da Diretiva, sem decidir pela criminalização. Não obstante, esta via foi seguida pela maioria dos países membros da União Europeia. A Diretiva do Conselho 89/592/CEE foi transposta para a ordem jurídica portuguesa, por intermédio do Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de abril.

5 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

às operações de iniciados. Esta diretiva teve

como principais inovações, por um lado, obri-

gar todos os Estados membros a adotar as medi-

das necessárias para reprimir as práticas de insi-

der trading, tanto em mercados bolsistas, como

em mercados não bolsistas; e, por outro, estabe-

lecer os princípios básicos que estiveram na

base da sua adoção20.

No entanto, a União Europeia reconheceu que

esta diretiva estava incompleta, já que se limita-

va à prevenção do abuso de informação. Assim,

em 2003, a mesma diretiva foi revogada pela

Diretiva 2003/6/CE21 do Parlamento Europeu e

do Conselho, de 28 de janeiro de 200322, relati-

va ao abuso de informação privilegiada e à ma-

nipulação de mercado (abuso de mercado)23 .

Mais recentemente, surgiu o Regulamento (UE)

nº 596/2014 do Parlamento Europeu e do Con-

selho de 16 de abril de 2014, relativo ao abuso

de mercado, que revoga a Diretiva 2003/6/CE

do Parlamento Europeu e do Conselho24. O Re-

gulamento (EU) N.º 596/2014 começou a ser

aplicado - na maioria dos seus artigos - desde 3

de junho de 2016. Surgiu igualmente, a Diretiva

2014/57/UE do Parlamento Europeu e do

Conselho, de 16 de abril de 2014, relativa às

sanções penais aplicáveis ao abuso de informa-

ção privilegiada e à manipulação de mercado

(abuso de mercado), diploma que deveria ter

sido transposto até 3 de julho de 2016, prazo

dado aos Estados membros para adotarem e

publicarem as disposições legislativas, regula-

mentares e administrativas necessárias para dar

cumprimento à referida Diretiva. No entanto,

tanto o Regulamento, como a Diretiva, não

são, para já, pacíficos, já que, por exemplo,

FREDERICO DE LACERDA DA COSTA

PINTO25 entende, por um lado, que o Regula-

mento é, de alguma forma, um retrocesso, e,

por outro, que a Diretiva trará poucas inovações

para Portugal, pois, embora o diploma estabele-

ça penas mínimas, Portugal já contempla essas

exigências, estando até acima do que a Diretiva

exige como mínimo.

Em Portugal, embora a Diretiva do Conselho

89/592/CEE só tenha sido transposta por

intermédio do Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10

de abril – como acima referimos –, a verdade

é que, desde os anos oitenta, já a ordem jurídica

proibia o abuso de informação privilegiada.

A responsabilidade pela prática de insider

trading foi introduzida no ordenamento

jurídico português pelo Código das Sociedades

Abuso de Informação Privilegiada...: 05

20- Princípio da confiança dos investidores; princípio do bom funcionamento do mercado; princípio da proibição e punição dos comportamentos nacionais e transnacionais que violem aqueles princípios. 21- A Diretiva 2003/6/CE trouxe algumas inovações, designadamente: em primeiro lugar, enquanto a anterior diretiva não explicava se a informação respeitava direta ou indiretamente a emitentes ou a instrumentos financeiros, o novo diploma veio esclarecer que pode ser abrangida uma relação indireta; em segundo lugar, o artigo 2º incluiu como sujeito do delito a pessoa que detém informação privilegiada em virtude das suas atividades criminosas (nº 1, alínea d)); e, finalmente, introduziu uma nova conduta proibida, que não estava prevista na Diretiva 89/592/CEE: o mero uso da informação, tendo em vista adquirir ou alienar instrumentos financeiros com que a informação se relaciona. 22- A Diretiva 2003/124/CE da Comissão, de 22 de dezembro de 2003 veio estabelecer as modalidades de aplicação da Diretiva 2003/6/CE, no que diz respeito à definição e divulgação pública de informação privilegiada e à definição de manipulação de mercado. A Diretiva 2003/6/CE foi alterada pela Diretiva 2008/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2008 e, posteriormente, pela Diretiva 2010/78/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010. 23- Tal como HELENA BOLINA (p. 62) destaca, “a diretiva vem assumir expressamente a ideia de que ambos os tipos de conduta são danosas para o mercado e que em ambos os casos o que se visa proteger através das proibições é a integridade do mercado”. Para um maior aprofundamento sobre as inovações da Diretiva 2003/6/CE, ver HELENA BOLINA, “A manipulação de mercado e o abuso de informação privilegiada na nova Diretiva sobre o abuso de mercado (2003/6/CE)”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 18, de agosto de 2004, pp. 62-71. 24- Revoga igualmente a Diretiva 2003/124/CE da Comissão, de 22 de dezembro de 2003. 25- Reportamo-nos a considerações que o autor teceu, a este propósito, no módulo “Tutela penal do mercado de valores mobiliários”, inserido no XVIII Curso de Especialização em Direito Penal Económico, Internacional e Europeu, que decorreu na Faculdade de Direito, da Universidade de Coimbra, de 31 de janeiro a 16 de maio de 2015.

6 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Comerciais (doravante, CSC)26, onde resultava

dos artigos 449º e 450º, do CSC27 a natureza

ilícita do abuso de informação. Mais tarde, por

força do Decreto-Lei nº 184/87, de 21 de

abril28, foi introduzido o artigo 524º, do

CSC, que tipificou o crime de abuso de

informações29. No entanto, o artigo 524º, do

CSC foi revogado, em 1991, aquando da

entrada em vigor do Código do Mercado de

Valores Mobiliários30 (CódMVM), inserindo

sistematicamente, no artigo 666º, do

CódMVM31, o crime de abuso de informação,

no âmbito dos mercados de valores

mobiliários32. Em 1999, o atual Código

dos Valores Mobiliários33 (de agora em

diante, CdVM)34 coloca o crime de abuso de

informação no artigo 378º – onde se

mantém atualmente35 – o que analisaremos

detalhadamente no ponto seguinte.

26- Aprovado pelo Decreto-Lei nº 262/86, de 2 de setembro. 27- Estas disposições – que se mantêm em vigor – só contemplavam sanções não penais, como a obrigação de indemnizar os lesados, destituição judicial dos agentes responsáveis e inquérito judicial. O artigo 449º, do CSC foi alterado pelo Decreto-Lei nº 280/87, de 8 de julho e o artigo 450º, do CSC foi alterado pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de março – para um aprofundamento sobre o objeto de proteção do artigo 449º, do CSC, ver ANA BROCHADO, “A indemnização por abuso de informação privilegiada no Código das Sociedades Comerciais”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 36, agosto de 2010, pp. 32-48. Assim, a criminalização do insider trading foi deixado para o Código do Mercado de Valores Mobiliários (atual Código dos Valores Mobiliários), regulando o Código das Sociedades Comerciais apenas a responsabilidade societária. No entanto, o Código das Sociedades Comerciais prevê um crime de informações falsas (artigo 519º), que é aplicável a todas as sociedades comerciais. A propósito do enquadramento jurídico-sancionatório da falsificação de informação financeira relativa a sociedades abertas, ver FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, “Falsificação de informação financeira nas sociedades abertas”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 16, 2003, pp. 99-135. 28- Diploma que acrescentou ao Código das Sociedades Comerciais o Título VII, dedicado a disposições penais e de mera ordenação social. Enquanto o legislador português optou por colocar os crimes societários no Código das Sociedades Comerciais, o legislador espanhol optou por colocá-los no Código Penal. 29- A conduta proibida por este crime consistia em revelar ilicitamente a outrem fatos relativos à sociedade aos quais não tenha sido dada previamente publicidade (nº 1) ou que sejam suscetíveis de influir no valor dos títulos das sociedades anónimas ou das sociedades participantes na fusão (nº 2). 30- Aprovado pelo Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de abril. SUSANA AIRES DE SOUSA entende que, o fato de os crimes de abuso de informações (artigo 524º, do CSC) e de manipulação fraudulenta de cotações de títulos (artigo 525º, do CSC) – com grande probabilidade, dos crimes societários mais importantes – terem sido revogados, passando a constar do Código do Mercado dos Valores Mobiliários, reflete bem a importância que se dá aos crimes societários (reportamo-nos a considerações que a autora teceu, a este propósito, no módulo “Direito Penal da Pessoa Coletiva”, inserido no XVIII Curso de Especialização em Direito Penal Económico, Internacional e Europeu, que decorreu na Faculdade de Direito, da Universidade de Coimbra, de 31 de janeiro a 16 de maio de 2015). Para maiores considerações sobre os crimes societários, ver SUSANA AIRES DE SOUSA, “Direito Penal das Sociedades Comerciais. Qual o bem jurídico?”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 1, jan-mar de 2002, pp. 49-77; ANA MICAELA PEDROSA AUGUSTO, “Insider Trading: Perspetiva sobre o enquadramento jurídico-societário no ordenamento português”, in O Direito, nº 5, ano 136º, 2004, pp. 999-1042. Para um estudo mais aprofundado sobre os problemas de aplicação da lei no tempo, que resultaram da entrada em vigor das incriminações de abuso de informação do Código do Mercado de Valores Mobiliários, ver MIGUEL NUNO PEDROSA MACHADO, “A entrada em vigor das incriminações de abuso de informação e de manipulação do mercado do Código do Mercado de Valores Mobiliários”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 1, Fasc. 4, out-dez de 1991, pp. 609-625. 31- FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO tece algumas críticas à técnica utilizada pelo legislador de 1991, já que este se limitou, por um lado, a “transformar em normas jurídicas as regras da Diretiva [de 1989], que apenas continham indicações sobre a matéria, criando desse modo um conjunto de tipos penais estranhos à técnica jurídica nacional, com uma estrutura complexa e densa, mas ainda assim lacunar em alguns aspetos”; e, por outro lado, a recorrer “de forma exagerada a elementos subjetivos especiais para delimitar os tipos incriminadores, transpondo para crimes que, na sua essência, são de natureza económica, a técnica dos crimes contra o património” (in O novo regime dos crimes e contraordenações no Código dos Valores Mobiliários, Almedina, 2000, p. 42). 32- A este propósito, JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS consideram que esta “mudança de inserção sistemática (...) não deixa de ser relevante e significativa porquanto, sob o ponto de vista do sistema, expressa a ligação entre o crime de abuso de informação e o mercado dos valores mobiliários” (op. cit., p. 28). 33- Aprovado pelo Decreto-Lei nº 486/99, de 13 de abril. O CódMVM de 1991 previa três crimes: o abuso de informação, a manipulação do mercado e a desobediência (artigos 666º, 667º e 668º). Estas incriminações mantêm-se no CdVM de 1999, embora com uma reformulação dos tipos de ilícito. 34- A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), criada pelo Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de abril, é a entidade pública que regula, regulamenta, supervisiona, fiscaliza e sanciona no âmbito do mercado de valores mobiliários. 35- Este artigo sofreu algumas alterações nos últimos anos, com o Decreto-Lei nº 52/2006, de 15 de março, a Retificação nº 21/2006, de 30 de março e a Lei nº 28/2009, de 19 de junho, que analisaremos, com maior detalhe, em lugar próprio do artigo. De relevar ainda que, em 18 de novembro de 2005, foi publicada a Lei nº 55/2005, que autoriza o Governo a regular os crimes de abuso de informação e de manipulação do mercado, no âmbito do mercado de valores mobiliários, criando-se, desta forma, as condições para que fosse transposta para a ordem jurídica nacional a Diretiva 2003/6/CE do Parlamento e do Conselho – o que aconteceu com o Decreto-Lei nº 52/2006, de 15 de março.

7 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

3. O regime criado pelo Código

dos Valores Mobiliários

O crime de abuso de informação privilegiada

surge no artigo 378º, do CdVM, com a epígrafe

abuso de informação – nome que, em Portugal,

se adotou para o insider trading ou délit d’initié.

Segundo FREDERICO DE LACERDA DA

COSTA PINTO, “o núcleo essencial da incri-

minação” do abuso de informação “contempla

situações em que alguém usa no mercado de

valores mobiliários uma informação economi-

camente relevante a que teve acesso de uma

forma especial, antes mesmo de a generalidade

dos investidores a poder conhecer”. Assim, co-

mo conclui o mesmo autor, “quem utiliza infor-

mação privilegiada encontra-se numa situação

de vantagem ilegítima perante os demais inves-

tidores com quem negoceia, podendo com mais

segurança evitar prejuízos ou obter lucros”36.

Estes princípios de legalidade e de intervenção

mínima ou ultima ratio conduzem-nos ao prin-

cípio de nullum crimen sine iniuria, segundo o

qual todo o crime tem como finalidade a prote-

ção de um bem jurídico. Ao longo dos últimos

anos, tem sido recorrente, na doutrina, a ques-

tão de saber qual é o bem jurídico do crime de

abuso de informação, sendo inúmeras as posi-

ções quanto ao bem jurídico protegido no crime

de abuso de informação.

Inicialmente, defendeu-se, por um lado, que o

bem jurídico protegido do abuso de informação

visava proteger os interesses da empresa onde

o insider trabalhava37 e, por outro, que visava

proteger os interesses do investidor individu-

al38. No entanto, estas posições encontram-se

hoje, de alguma forma, ultrapassadas. JOSÉ

DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE

RAMOS consideram que “a incriminação do

abuso de informação pretende, por um lado,

tutelar a confiança dos investidores no correto

funcionamento do mercado39 e, por outro lado,

proteger a decisão económica individual no

sentido de que esta seja tomada em situação de

igualdade de informação para todos os

potenciais intervenientes no mercado.

Criando-se, assim, as condições de livre

concorrência entre os investidores” – corolários

constitucionais (artigos 81º, alínea f) e 99º, alí-

nea a), da CRP). Os autores concluem que, mais

do que um bem jurídico poliédrico, está em

causa um bem jurídico heterogéneo40.

No entanto, para FREDERICO DE LACERDA

DA COSTA PINTO, o bem jurídico que sobre-

tudo se visa proteger é “a função pública da

informação enquanto justo critério de distribui-

ção do risco do negócio no mercado de valores

mobiliários”. Ou seja, “está em causa, na verda-

de, a igualdade perante um bem económico (a

Abuso de Informação Privilegiada...: 07

36- FRECERIDO DE LACERDA DA COSTA PINTO, O novo regime dos crimes..., 2000, pp. 42-43. 37- A este propósito, FRECERIDO DE LACERDA DA COSTA PINTO considera que, em bom rigor, “os interesses da empresa enquanto eventual ofendido com o ato do insider já são protegidos por via das incriminações que visam tutelar os segredos patrimoniais ou industriais (artigos 195º e 196º do Código Penal) sendo uma repetição inútil integrar esse objeto de tutela na incriminação do abuso de informação” (in O novo regime dos crimes..., 2000, p. 66). 38- O penalista alemão GÜNTER STRATENWERTH, seguindo Forstmoser, agrupa em três critérios as lesões que provoca o abuso de informação privilegiada: em primeiro lugar, pode configurar um abuso de confiança, relativamente à empresa onde o insider trabalha; em segundo lugar, tais abusos constituem um engano a outros investidores e, nesse sentido, uma violação do princípio de igualdade de oportunidades; e, finalmente, prejudica interesses económicos gerais, ao vulnerar a confiança do investidor num correto e transparente funcionamento do mercado de capitais (“Zum Straftatbesand des Missbrauchts von Insiderinformationen”, in Festschrift für Frank Vischer, zum 60, 1983, pp. 667-676 (p. 668)). 39- DANIEL FERRANDIS CIPRIÁN e LUCÍA MARTÍNEZ GARAY estão de acordo quanto à confiança no correto funcionamento do mercado, enquanto bem jurídico protegido (“Tratamiento penal del abuso de información privilegiada en el mercado financiero”, in Estudios penales y criminológicos, vol. XXIII, Cursos y Congresos nº 135, Servizo de Publicacións da Universidade de Santiago de Compostela, 2001-2002, pp. 100-174 (p. 169)). 40- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., pp. 37-38.

8 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

informação) necessário para a tomada de deci-

sões económicas racionais”41.

Em qualquer uma das posições que se defenda

quanto ao bem jurídico protegido, a informação

– e, especialmente, a informação privilegiada –

assume sempre um papel importante. Pelo que,

torna-se impreterível analisar o conceito jurídi-

co-penal de informação privilegiada42.

Nos termos do artigo 378º, nº 3, do CdVM43,

“entende-se por informação privilegiada toda a

informação não tornada pública que, sendo pre-

cisa e dizendo respeito, direta ou indiretamente,

a qualquer emitente ou a valores mobiliários ou

outros instrumentos financeiros, seria idónea, se

lhe fosse dada publicidade, para influenciar de

maneira sensível o seu preço no mercado”44.

Assim, é possível, desde já, elencar quatro re-

quisitos típicos para a definição legal de infor-

mação privilegiada: 1. caráter não público; 2.

precisão; 3. referência a entidades emitentes de

valores mobiliários ou a valores mobiliários; 4.

influência sensível sobre o preço45.

Feito este enquadramento, é chegada a hora de

fazermos uma análise sucinta sobre o abuso de

informação, ao nível do tipo objetivo e do tipo

subjetivo.

3.1. O tipo objetivo do abuso de informação

Como temos vindo a salientar, a génese do abu-

so de informação está intimamente ligada ao

uso de informações relevantes para a cotização

de valores, por parte de sujeitos que se encon-

tram numa posição privilegiada, relativamente

aos demais intervenientes no mercado. Pelo que

se torna impreterível determinar, desde logo,

quem são os sujeitos ativos do abuso de

41- FRECERIDO DE LACERDA DA COSTA PINTO, O novo regime dos crimes..., 2000, p. 67; “Delitos económicos y mercados financieros. Abuso de información privilegiada y manipulación del mercado en el nuevo Código Portugués de Valores Mobiliários de 1999”, in Revista Penal, nº 6, 2000, pp. 84-103 (p. 98). 42- Para um maior aprofundamento sobre a noção jurídica de informação, ver, designadamente, ANDREA NERVI, “La nozione giuridica di informazione e la disciplina di mercato. Argomenti di discussione”, in Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, parte prima, nº 96, 1998, pp. 843-872. Para maiores esclarecimentos sobre a tutela penal da informação, ver MIGUEL PEDROSA MACHADO, “Sobre a tutela penal da informação nas sociedades anónimas: problemas da reforma legislativa”, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos doutrinários. Problemas Especiais, vol. II, Coimbra Editora, 1999, pp. 173-226. Para um maior conhecimento sobre a informação no âmbito do mercado de valores mobiliários, ver CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “A informação no direito do mercado de valores mobiliários”, in Direito dos Valores Mobiliários, Lex, 1997, pp. 333-347. 43- O artigo 248º, nº 2, do CdVM complementa a definição de informação privilegiada, referindo que esta “abrange os fatos ocorridos, existentes ou razoavelmente previsíveis, independentemente do seu grau de formalização, que, por serem suscetíveis de influir na formação dos preços dos valores mobiliários ou dos instrumentos financeiros, qualquer investidor razoável poderia normalmente utilizar, se os conhecesse, para basear, no todo ou em parte, as suas decisões de investimento”. Saliente-se que, nos termos do nº 1 daquele preceito, o dever de divulgação de informação privilegiada a cargo dos emitentes abrange apenas a informação que lhes diga diretamente respeito ou aos valores mobiliários por si emitidos, e ainda qualquer alteração à informação tornada pública. Fora do dever de divulgação fica a informação privilegiada relativa a fatos que apenas digam indiretamente respeito aos emitentes e aos valores mobiliários por si emitidos, enquanto tais fatos mantiverem essa caraterística. Já que, tal como muito bem salienta a CMVM, “na generalidade [destas] (...) situações o emitente apenas tomará delas conhecimento juntamente com o restante público ou, mesmo que as conheça antes, poderá encontrar-se impedido de divulgar publicamente as informações relevantes antecipando-se à respetiva fonte” (Entendimentos da CMVM sobre divulgação de informação privilegiada por emitentes. Conceitos, linhas de orientação, exemplos e condutas a adotar, 2008, disponível em http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/Legislacaonacional/Entendimentos/Pages/Entendimentos-da-CMVM-sobre-a-Divulga%C3%A7%C3%A3o-de-Informa%C3%A7%C3%A3o-Privilegiada-por-Emitentes---Conceitos,-Linhas-de-Orienta%C3%A7%C3%A3o,-Exempl.aspx, consultado em 26-04-2015). A este propósito, FRANCESCO GALGANO tem um entendimento contrário, defendendo que “é insider trading quando se está na posse de uma notícia reservada relativa a companhia de outras pessoas, e não quando se trata de uma notícia sobre a sua própria empresa” (“Gruppi di società, insider trading, OPA obbligatoria”, in Contratto e impresa. Dialoghi con la giurisprudenza civile e commerciale diretti da Francesco Galgano, ano 8, nº 2, 1992, pp. 637-652 (p. 640)). 44- O artigo 378º, nº 3, do CdVM exige, como requisito constitutivo da noção de informação privilegiada, que a informação seja idónea, de forma a influenciar de maneira sensível o preço do mercado, JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS questionam que mercados estão abrangidos nesta norma. Os autores concluem que “o crime de abuso de informação «lesa» todos os que real ou potencialmente estão no mercado de valores mobiliários”, mercados estes “organizados em que se «admite a negociação de valores mobiliários por um conjunto indeterminado de pessoas” (op. cit., pp. 54-61). 45- Para um estudo aprofundado sobre os conceitos de informação específica, precisa, não pública e idónea, ver, designadamente, JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., pp. 43-54; JOSÉ ZAMYR VEGA GUTIÉRREZ (2010), op. cit., pp. 237-258.

9 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

informação privilegiada46, ou seja, quem pode

praticar este crime. Na senda do artigo 378º, nos

1 e 2, do CdVM47, e utilizando a casuística nor-

te-americana, podemos considerar que a alínea

a) do nº 1 do artigo 378º, do CdVM pune os

corporate insiders (também designados de insi-

ders internos), que “abrange todos os sujeitos

que têm um vínculo jurídico especial com uma

sociedade, vínculo esse que pode derivar da sua

qualidade de membros do órgão de administra-

ção, direção, fiscalização, de funções que exer-

çam ou de participação que detenham no capital

social”48; as alíneas b) e c) alargam a incrimina-

ção até aos temporary insiders e insiders não

institucionais, ou seja, “pessoas com um víncu-

lo profissional, permanente ou temporário, a um

emitente ou, ainda, pessoas que exercem

profissão ou função pública”49; já o nº 2 pune,

em determinadas circunstâncias, os outsiders

(também conhecidos por tippies50), isto é, pes-

soas que, “não revestindo as qualidades previs-

tas pelos anteriores preceitos, têm conhecimen-

to de uma informação privilegiada que depois

utilizam” 51,52 .

A propósito dos sujeitos ativos do abuso de in-

formação privilegiada, tem-se colocado a ques-

tão de saber se o insider non trading também é

punido53, ou seja, os casos em que alguém rece-

be informação privilegiada e decide não efetuar

o negócio, ainda que essa abstenção implique

um benefício54. Relativamente a este problema,

FREDERICO DE LACERDA DA COSTA

PINTO entende que o insider non trading não

está no tipo, porque o artigo 378º, do CdVM

não prevê a omissão55.

Abuso de Informação Privilegiada...: 09

46- A doutrina espanhola tem-se debruçado bastante sobre a problemática do abuso de informação privilegiada praticado por funcionário. A este propósito, ver, designadamente, PILAR OTERO GONZÁLEZ, “Abuso de información privilegiada de funcionario (delito de)”, in Eunomía. Revista en Cultura de la Legalidad, nº 1, setembro de 2011-fevereiro de 2012, pp. 167-172; ABRAHAM CASTRO MORENO e PILAR OTERO GONZÁLEZ, El abuso de información privilegiada en la función pública, Tirant lo Blanch, 2006. Alguma doutrina portuguesa tem analisado se os jornalistas podem ser responsabilizados pela divulgação ou retenção de notícias que possam afetar o funcionamento dos mercados. A este propósito, ver INÊS FERNANDES GODINHO, “Abuso de informação e a função de jornalista”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 3, jul-set de 2002, pp. 459-495; FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, “O direito de informar e os crimes de mercado. Uma reflexão sobre as fronteiras da liberdade de imprensa e a integridade dos mercados de valores mobiliários”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 2, primeiro semestre de 1998, pp. 96-109. 47- O artigo 378º, nos 1 e 2, do CdVM determina quem são agentes do crime de abuso de informação: a) titular de um órgão de administração ou de fiscalização de um emitente (alínea a)); b) titular de uma participação no capital social de um emitente (alínea a)); c) prestador de trabalho ou serviço, com caráter permanente ou ocasional, a um emitente ou a outra entidade (alínea b)); d) pessoas que exerçam função pública (alínea c)); e) quem disponha de informação privilegiada que, por qualquer forma, tenha sido obtida através de um fato ilícito ou que suponha a prática de um fato ilícito (alínea d)); f) qualquer pessoa não abrangida pelo artigo 378º, nº 1, do CdVM que tenha conhecimento de informação privilegiada. 48- FÁTIMA GOMES (1996), op. cit., p. 67. 49- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 62. 50- Tal como GONÇALO NICOLAU CERQUEIRA SOPAS DE MELO BANDEIRA recorda, “já em 1997 a doutrina alemã criticava, com razão, a exclusão do tippies do tipo «legal de proibição»” (in “Abuso de mercado e «responsabilidade penal» das pessoas (não) coletivas. Contributo para a compreensão dos bens jurídicos coletivos e dos «tipos cumulativos», na mundialização”, Tese de Doutoramento, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2008, p. 177). 51- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 62. 52- Para além desta distinção, também se diferencia entre insiders primários e insiders secundários, estes últimos, pessoas que recebem dos primeiros a informação relevante. Para um maior conhecimento, ver J. J. VIEIRA PERES, «O delito de “insider trading” e a obrigação de informação», in Problemas societários e fiscais do mercado de valores mobiliários, Edifisco, 1992, pp. 79-99 (pp. 89-90). 53- Outro problema que surge no âmbito do abuso de informação é o scalping. Definido por MIGUEL BRITO BASTOS como “o comportamento do agente que, após a aquisição de determinados valores mobiliários, recomenda a terceiros a aquisição do mesmo, alienando seguidamente os valores previamente adquiridos, destarte obtendo um lucro correspondente a uma subida das cotações derivada da sua própria recomendação” (pp. 293-294), tem sido alvo de forte discussão na doutrina, relativamente à qualificação deste comportamento como insider trading ou como manipulação de mercado. Para um maior conhecimento da problemática, ver MIGUEL BRITO BASTOS, “Scalping: abuso de informação privilegiada ou manipulação de mercado?”, in Revista de Concorrência e Regulação, ano III, nº 9, jan-mar de 2012, pp. 293-324. 54- Um exemplo paradigmático: A queria comprar ações de um banco, fala com B, seu vizinho, que é primo de um administrador do banco, que o aconselha a não investir e A não investe. 55- Reportamo-nos a considerações que o autor teceu, a este propósito, no módulo “Tutela penal do mercado de valores mobiliários”, inserido no XVIII Curso de Especialização em Direito Penal Económico, Internacional e Europeu, que decorreu na Faculdade de Direito, da Universidade de Coimbra, de 31 de janeiro a 16 de maio de 2015. Sobre este problema, ver, designadamente, JOSÉ ZAMYR VEGA GUTIÉRREZ (2010), op. cit., pp. 314-322; JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., pp. 109-110.

10 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Relativamente às condutas proibidas56, para

além da proibição genérica de uso indevido de

informação privilegiada, o artigo 378º, do

CdVM indica as seguintes: 1. transmitir essa

informação, fora do âmbito normal das suas

funções; 2. utilizar a informação privilegiada,

isto é, não pode, com base nela e relativamente

a valores mobiliários ou instrumentos financei-

ros, negociar, aconselhar alguém a negociar ou

ordenar, para si ou para outrem, direta ou indi-

retamente, a subscrição, aquisição, venda ou

troca, sendo sempre necessário que qualquer

uma dessas operações seja feita com base na

informação privilegiada57. Este conjunto de

comportamentos penalmente proibidos podem

ser cometidos na forma consumada ou na forma

tentada, e ainda em qualquer uma das modali-

dades de comparticipação previstas no Código

Penal (artigos 22º, 26º e 27º)58.

Finalmente, coloca-se a questão de saber se as

pessoas coletivas respondem criminalmente

pelo crime de abuso de informação. O problema

surge, sobretudo, porque as pessoas coletivas

podem integrar os órgãos de administração e de

fiscalização, podendo inclusive ser titulares de

participações sociais no capital social de emi-

tentes59. Até à alteração do artigo 11º, do Códi-

go Penal – com a Lei nº 59/2007, de 4 de se-

tembro –, a maioria da doutrina defendia que o

artigo 378º, do CdVM “não apresenta uma res-

trição expressa às pessoas singulares nem o

alargamento explícito das margens de punibili-

dade até às pessoas coletivas”60. Assim, a reso-

lução do problema passava pela convocação do

artigo 11º, do Código Penal, que preceituava a

regra geral de a responsabilidade criminal se

reportar a pessoas singulares – salvo disposição

em contrário.

No entanto, desde 2007, as pessoas coletivas

respondem criminalmente, no âmbito do Códi-

go Penal, o que permite, pelo menos, questionar

se não haverá aqui uma mudança de paradigma,

também no âmbito do Código dos Valores Mo-

biliários, passando a pessoa coletiva a respon-

der pelo crime de abuso de informação61.

3.2. O tipo subjetivo do abuso de informação

O crime de abuso de informação só pode ser

imputável a título doloso, por força do disposto

no artigo 13º, do Código Penal, não se punindo

por negligência.

Finalmente, acresce ainda referir que o crime de

abuso de informação é punido com penas prin-

cipais (artigo 378º, nºs 1 e 2, do CdVM), penas

acessórias (artigo 380º, do CdVM) e com con-

sequências jurídicas especiais ao nível da perda

56- Em Espanha exige-se a obtenção, para si ou para terceiro, de um benefício superior a €600.000,00 ou que cause um prejuízo de idêntica quantidade (artigo 285º, do Código Penal espanhol). Para maiores considerações sobre esta exigência, ver JOSÉ ZAMYR VEGA GUTIÉRREZ, “Valoración político-criminal del insider trading como delito económico: la reforma por LO 5/2010, una oportunidade perdida”, in Revista Jurídica de la Universidad Autónoma de Madrid, nº 25, 2012-I, pp. 211-229. Em Portugal não existe este sistema de quantia mínima, adotado pelo legislador espanhol. 57- O que significa que, tal como FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO (2000) adverte, “a simples posse da informação não constitui uma conduta criminosa, podendo apenas ter relevância por referência aos crimes previstos no Código Penal, nomeadamente de acesso ilegítimo a segredos (artigos 194º a 197º do Código Penal)” (O novo regime dos crimes..., p. 43). 58- No CódMVM de 1991 havia um regime de atenuação para a errada convicção do agente que transmitia a informação privilegiada a outrem, sempre que aquele estivesse fundadamente convencido de que o recetor da informação a manteria sob reserva e não a utilizaria. Esta atenuação foi suprimida no CdVM de 1999. 59- Tal como JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU refere, as pessoas coletivas privadas e públicas podem participar no ato constituinte de sociedades, tornando-se, assim, sócias (in Curso de Direito Comercial. Das Sociedades, 4ª edição, Almedina, 2011, pp. 98-103). 60- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 89. No mesmo sentido, FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO (2000), O novo regime dos crimes..., pp. 34-35. 61- No entanto, parece-nos que, para já, a maioria da doutrina continua a excluir a responsabilidade criminal das pessoas coletivas do âmbito do CdVM, limitando a sua responsabilidade ao nível contraordenacional (artigos 248º, nº 4, 394º, nº 1, alínea i) e 401º e ss, do CdVM) ou enquanto partes civis (artigo 378º, nº 7, do CdVM).

11 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

das vantagens económicas do crime (artigo 380º

-A, do CdVM; artigo 111º e ss, do Código Pe-

nal; artigos 449º e 450º, do CSC).

4. Zonas de potencial interseção

Feito este enquadramento detalhado do crime

de abuso de informação, enunciando alguns

problemas que têm sido colocados a propósito

do mesmo e a forma como têm vindo a ser re-

solvidos, torna-se agora importante analisar,

concretamente, zonas de potencial intersecção

entre o crime de abuso de informação e maté-

rias do direito societário. Já que, por um lado, o

direito não é estanque e, por outro, o crime de

abuso de informação integra-se no âmbito do

mercado de valores mobiliários, o que permite

esta relação umbilical entre matérias do direito

penal e matérias do direito societário. Acresce

que, neste mundo globalizado e sempre promo-

tor de constantes mutações, surgem hoje zonas

particularmente sensíveis na delimitação das

condutas proibidas pelo crime de abuso de in-

formação. Este problema torna-se ainda mais

complexo, quando sabemos estar no âmbito de

práticas que surgem num contexto lícito – a

negociação no mercado de valores mobiliários

–, mas que, sem o devido controlo, facilmente

podem resvalar para zonas de ilícitos penais.

Nos tempos mais recentes – e até, de alguma

forma, a reboque da crise económico-financeira

de 200862 –, têm surgido alguns questionamen-

tos, designadamente, em três domínios do âm-

bito societário. Em primeiro lugar, no âmbito

da Oferta Pública de Aquisição (OPA)63, opera-

ção muito propícia à prática do crime de abuso

de informação e que muitas vezes é alvo de um

amplo escrutínio por parte da CMVM64. O pro-

blema coloca-se quando uma entidade emitente

inicia o processo de eventual lançamento de

uma OPA sobre uma empresa concorrente, mas,

antes do anúncio do lançamento, vários admi-

nistradores compram para si e para a própria

empresa ações da entidade visada. Ou seja, com

conhecimento de informações que não foram

ainda tornadas públicas e que podem influenci-

ar o preço, beneficiando do desconhecimento de

quem vendeu que as ações iriam proximamente

valorizar, com o anúncio da oferta. Embora

exista uma obrigação legal de anúncio prelimi-

nar – estabelecido pela lei para prevenir o insi-

der trading –, a verdade é que estes casos conti-

nuam a ocorrer com alguma frequência.

Em segundo lugar, no âmbito da aquisição de

ações em operações de management buy-out65.

O problema coloca-se também, já que, de acor-

do com o ordenamento jurídico português, os

adquirentes terão, em regra, que lançar uma

OPA sobre as ações da respetiva sociedade.

Como salientam JOSÉ DE FARIA COSTA e

MARIA ELISABETE RAMOS, “a disciplina

do insider trading proíbe que os administrado-

res adquiram ações em posse de informação

privilegiada que obtiveram em razão do exercí-

cio das suas funções”, sendo que, “se os admi-

nistradores pretendem «comprar a sociedade»

Abuso de Informação Privilegiada...: 11

62- Teve origem em 2006, nos EUA, com a quebra de instituições de crédito, que concediam empréstimos hipotecários de alto risco, arrastando vários bancos para uma situação de insolvência, tendo uma forte repercussão nas bolsas de valores de todo o mundo. Esta crise do subprime foi assumida publicamente, em inícios de 2007, como uma crise financeira, desembocando, em 2008, numa crise económica. 63- ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO refere que “há oferta pública quando uma pessoa dirija a uma generalidade de outras pessoas, uma proposta contratual”. Uma das ofertas públicas mobiliárias mais recorrente é a oferta pública de aquisição, em que o oferente propõe “adquirir ações; para tanto, ele dirige uma proposta a todos os detentores das ações pretendidas, no sentido de que lhas vendam, mediante um preço” (“Ofertas Públicas de Aquisição”, in Direito dos Valores Mobiliários, Lex, 1997, p. 267). Embora a OPA seja facultativa, casos há em que a lei pode torná-la obrigatória (artigo 187º e ss., CdVM). Para um conhecimento mais aprofundado sobre o regime da OPA, ver, designadamente, JOSÉ DIOGO HORTA OSÓRIO, Da tomada do controlo de sociedades (takeovers) por leveraged buy-out e a sua harmonização com o direito português, Almedina, 2001, pp. 119-131; PAULO CÂMARA, “As ofertas públicas de aquisição”, in Aquisição de empresas, Coimbra Editora, 2011, pp. 157-210. 64- O mais recente caso de que há conhecimento, onde já existem duas condenações ainda não transitadas em julgado, relaciona-se com a OPA lançada pela Tagus sobre a Brisa, em 29 de março de 2012. Há ainda algumas suspeitas de abuso de informação na OPA lançada pelo grupo mexicano Ángeles sobre o capital da Espírito Santo Saúde, em agosto / setembro de 2014. 65- Expressão anglo-saxónica que “designa uma operação em que os quadros diretivos adquirem o capital da empresa e assumem a sua gestão”. Distingue-se do management buy-in, por neste “serem quadros exteriores à empresa que assumem a sua gestão” (disponível em http://www.iapmei.pt/iapmei-art-03.php?id=319, consultado em 04-04-2015). A este propósito, ver ainda JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., pp. 100-108.

12 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

que administram, é plausível que beneficiem de

um conhecimento avantajado sobre a situação

atual da sociedade e poderão, com menor incer-

teza, traçar quadros de prospetiva”66. O que os

poderá colocar numa posição de vantagem face

a todos os outros intervenientes no mercado.

Ora, se a incriminação do abuso de informação

não impossibilita que os administradores adqui-

ram ações da sociedade que eles administram, a

verdade é que, ao abrigo do artigo 378º, nº 1,

alínea a), do CdVM, proíbe que tal negociação

seja realizada na posse de informação privilegi-

ada, obtida em razão das funções exercidas.

Pelo que, JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA

ELISABETE RAMOS defendem que, “nesta

situação, o crime de abuso de informação impe-

de-os de explorarem esta assimetria informati-

va, designadamente através da negociação de

ações da sociedade visada (ou seja, comprando

ações enquanto permanece não pública a infor-

mação sobre a futura oferta pública de aquisi-

ção e vendendo no contexto desta)”67.

Por último, no âmbito dos instrumentos de re-

muneração dos administradores – estamos a

pensar, sobretudo, nos planos de atribuição de

ações e nas stock options –, domínio onde pre-

tendemos questionar se o crime de abuso de

informação implica a proibição dos instrumen-

tos de remuneração ou se resta ainda espaço

para tais práticas. E é este problema que optá-

mos por abordar no próximo ponto, guardando

os dois primeiros problemas para investigações

futuras.

4.1. O especial caso dos instrumentos

de remuneração dos administradores

Na última década, assistimos a duas crises com

repercussões financeiras, envolvendo, direta ou

indiretamente, a problemática das remunerações

dos administradores das sociedades, com possí-

veis interseções com o crime de abuso de infor-

mação: a primeira, com grandes falências inter-

nacionais, de onde se destaca a Enron68; e a se-

gunda, com a crise financeira global no período

de 2007-201069.

Neste sentido, antes mesmo de entrarmos no

cerne do problema nuclear do nosso trabalho,

impõe-se que façamos um breve enquadramen-

to sobre os instrumentos de remuneração dos

administradores, tendo em vista, especialmente,

os planos de atribuição de ações e os planos de

opção de ações70 (stock options plans)71.

Tradicionalmente, as remunerações dos admi-

nistradores das sociedades eram constituídas

unicamente por dinheiro – remuneração fixa.

66- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 103. 67- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS, op. cit., p. 107. 68- A Enron Corporation, companhia americana líder na área da energia, entrou em insolvência em 2001 – tendo apresentado extraordinárias alegadas receitas em 2000 –, tendo-se descoberto que utilizava inúmeros artifícios de contabilidade e práticas suspeitas de gestão. A insolvência desta grande empresa não se ficou a dever à revelação destas práticas – que levou inclusive à dissolução de Arthur Andersen, uma das cinco maiores sociedades de auditoria e contabilidade do mundo na altura, que colaborou com aquela empresa, tendo mesmo ajudado a encobrir as fraudes –, mas ao enorme endividamento que a empresa foi contraindo para financiar essas suas atividades duvidosas. Em consequência do escândalo, foi criada nos EUA, em 2002, a Sarbanes-Oxley Act, lei que procurou aumentar a transparência dos mercados, através da reforma da contabilidade pública das empresas, e a responsabilidade das empresas de auditoria – disponível em http://www.soxlaw.com/, consultada em 08-06-2015. 69- Uma crise que ainda faz sentir os seus efeitos no tempo presente. De acordo com PEDRO MAIA, “a grande crise financeira que eclodiu em 2008 [veio] (...), por um lado, dar grande publicidade às elevadas remunerações de, pelo menos, alguns CEOs e, por outro lado, evidenciar que existia uma relativa imunidade dessas elevadas remunerações ao desempenho das sociedades. Sociedades que faliram tinham acabado de atribuir prémios de desempenho de elevados montantes aos seus CEOs” (in “Voto e Corporate Governance. Um novo paradigma para a sociedade anónima”, volume II, Tese de Doutoramento, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2009, p. 879). 70- Como adverte PEDRO MAIA (2009), estes dois instrumentos são “habitualmente tratados em conjunto, enquanto mecanismos equivalentes para alinhar os interesses dos managers com os interesses dos acionistas e assim tomados por alguma doutrina” (op. cit., p. 904). Dada a semelhança entre os planos de atribuição de ações e os planos de opção de ações, focaremos o artigo sobretudo nestes últimos. 71- Não é nosso objetivo ser demasiado minuciosos, ao nível das questões societárias, nesta exposição introdutória ao problema, já que pretendemos, sobretudo, fazer um correto e necessário enquadramento, com vista a dar um bom suporte ao problema que queremos efetivamente abordar.

13 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

No entanto, nas últimas décadas, tem-se enten-

dido que a variabilidade das remunerações –

uma remuneração assente numa fração variável

– pode permitir um alinhamento dos interesses

dos administradores com os interesses dos acio-

nistas72. Como refere PEDRO MAIA, “o ali-

nhamento dos interesses dos managers com os

interesses dos acionistas pela via da remunera-

ção – assente numa estrutura remuneratória que

faça variar os ganhos dos administradores em

função dos ganhos dos acionistas –, apresentan-

do embora inconvenientes e riscos, é, segundo

os seus defensores, a mais eficaz de todas”73. Já

que, “ao menos teoricamente, permite resolver

o problema de agência74 com um custo mínimo,

uma vez que a sociedade, id est, os acionistas só

suportarão o custo de maior remuneração no

caso de terem obtido, eles próprios, um acrésci-

mo de ganho”75. No entanto, o mesmo autor

adverte para o fato de que «as remunerações,

sendo variáveis, podem não conter bons incenti-

vos e não “alinhar” os interesses dos managers

com os dos acionistas, pois, (...) remuneração

com “incentivos” não significa, necessariamen-

te, remuneração que alinhe interesses dos mana-

gers com interesses dos acionistas». Pode, isso

sim, “estabelecer incentivos que levem os ma-

nagers a prosseguir interesses que não sejam

inteiramente coincidentes com os dos acionis-

tas»76.

Como avançámos supra, os planos de atribuição

de ações77 – em que a remuneração consta da

atribuição de ações – e os stock options plans78

– consistindo a remuneração na atribuição de

Abuso de Informação Privilegiada...: 13

72- Aliás, a própria CMVM aprovou em 1999 as “Recomendações sobre o Governo das Sociedades Cotadas”, onde referia, no ponto 8, que “a remuneração dos membros do órgão de administração deve ser estruturada por forma a permitir o alinhamento dos interesses daqueles com os interesses da sociedade”, disponível em http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/Legislacaonacional/C%C3%B3dGoverno%20das%20Sociedades/AnexosGovSoc/Pages/2003_IV.aspx, consultado em 08-06-2015. 73- Neste alinhamento de interesses, em tese, os acionistas “satisfazem os seus interesses com a valorização das ações (e / ou a distribuição de dividendos)” e os administradores “satisfazem os seus interesses aumentando a sua remuneração” (PEDRO MAIA, op. cit., 2009, p. 868). 74- A propósito do problema de agência, ver, designadamente, PEDRO MAIA (2009), op. cit., pp. 905-907; 913. 75- PEDRO MAIA (2009), op. cit., p. 907. 76- PEDRO MAIA (2009), op. cit., p. 909. A este propósito, FÁTIMA GOMES acrescenta mesmo que o debate que se tem vindo a fazer sobre a remuneração dos dirigentes salienta como principais falhas do sistema as seguintes: “a remuneração pelo insucesso, a assunção excessiva de riscos, a prevalência pela performance de curto prazo, a prossecução do interesse dos acionistas e gestores sem consideração de outros valores, a promiscuidade na análise financeira e contabilística e a falta de independência dos profissionais envolvidos, a deficiente informação prestada aos mercados e consequente capacidade de influenciar os resultados apresentados” («Remuneração de administradores de sociedades anónimas “cotadas”, em geral, e no sector financeiro, em particular», in I Congresso Direito das Sociedades em Revista, Almedina, 2011, pp. 297-333 (p. 297)). 77- FÁTIMA GOMES refere que os planos de atribuição de ações comungam de caraterísticas semelhantes aos planos de stock options, “mas apresentam a particularidade de visarem a atribuição de ações já emitidas ou que venham a sê-lo, pela própria entidade concedente do benefício ou de sociedade coligada, originando uma aquisição derivada de ações, que pode ser realizada a título gratuito ou oneroso”. Embora podendo ser realizada a título oneroso, a aquisição de ações é normalmente gratuita, “no sentido de não pressupor uma contraparti-da patrimonial ou pecuniária por parte do beneficiário, mas tão-só uma prestação de serviço ou trabalho com determinadas caraterísticas, que são avaliadas pela concedente e, caso se verifiquem, originam a atribuição das ações” (in O direito aos lucros e o dever de participar nas perdas nas sociedades anónimas, Almedina, 2011, pp. 506-507). 78- Estes instrumentos de remuneração são enquadráveis nos chamados pay incentives, isto é, planos de incentivos que assentam em salário, ou seja, formalmente constituem remuneração, consistindo em pagamentos anuais aos administradores. Aos pay incentives opõem-se os portfolio incentives, ou seja, planos de incentivos assentes na detenção de ações, não constituindo formalmente remuneração (PEDRO MAIA (2009), op. cit., p. 914).

14 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

opções de compra de ações79 – constituem dois

instrumentos de remuneração dos administrado-

res. Nos anos 80 e 9080, estes instrumentos re-

muneratórios começaram a ser fortemente utili-

zados nos EUA81 – estendendo-se depois à ge-

neralidade dos países desenvolvidos –, sendo

esta alteração “acompanhada de um significati-

vo aumento dos valores médios das remunera-

ções”82.

Em Portugal, o regime da remuneração dos ad-

ministradores das sociedades comerciais encon-

tra-se previsto no CSC, na parte relativa às soci-

edades anónimas. Nos termos do artigo 399º, nº

1, do CSC83, compete à assembleia geral de

acionistas ou a uma comissão por aquela nome-

ada fixar as remunerações de cada um dos ad-

ministradores. No entanto, de acordo com o

artigo 429º, do CSC, a remuneração dos mem-

bros do conselho de administração executivo

compete ao conselho geral e de supervisão ou a

uma comissão de remuneração, podendo, contu-

do, competir à assembleia geral de acionistas ou

a uma comissão por esta nomeada, no caso em

que o contrato de sociedade assim o determinar.

Se a remuneração dos membros do conselho de

administração ou do conselho de administração

executivo consistir parcialmente numa percen-

tagem de lucros do exercício, o valor máximo

dessa percentagem tem de se encontrar fixado

79- Na esteira de FÁTIMA GOMES (2011), podemos entender stock options como uma «situação jurídica que se cria em benefício de alguém – dirigente, trabalhador ou outra pessoa –, atribuindo-se-lhe o direito de adquirir ações de uma sociedade, a própria emitente ou outra, mediante um preço predefinido, normalmente o valor nominal, num prazo que se estabelece; o beneficiário fica investido numa situação de poder solicitar a (...) aquisição das ações “prometidas”, nas condições acordadas, e a sociedade emitente na obrigação de lhe atribuir tais ações». Acrescenta ainda a autora que «a especificidade da operação reconduz-se à atribuição de um direito de opção ao beneficiário, que apenas a exercerá, se e na medida em que do seu exercício possa retirar vantagens económicas, em especial quando o valor de mercado das ações for superior ao valor que contratualmente foi fixado para o exercício da opção» (in O direito aos lucros..., pp. 471-472). As stock options podem ser “at-the-money” e “in-the-money”. São “at-the-money” quando “o seu valor é o da ação à data em que a opção se emite (p. 919). São “in-the-money” quando “o valor do exercício da opção (stick price) é inferior ao valor da ação (spot price) à data em que a stock option se emite” (p. 920). Para um aprofundamento desta distinção, ver PEDRO MAIA (2009), op. cit., pp. 918-925. As stock options podem ainda ser europeias, “por se tratar de uma opção que só pode ser exercida numa determinada data futura” e americanas, por poderem “ser exercidas em qualquer momento até à data da sua extinção”. No entanto, esta qualificação “nada tem que ver com o local em que a opção é emitida ou negociada, mas apenas com a referida caraterística. Por isso, pode haver opções americanas negociadas na Europa e, inversamente, opções europeias emitidas e negociadas nos Estados Unidos” (PEDRO MAIA, op. cit., 2009, p. 919). Relativamente a outras classificações das stock options, ver, designadamente, ROBERT CHARLES CLARK, op. cit., pp. 202-209; FÁTIMA GOMES (2011), O direito aos lucros..., pp. 475-476. Inicialmente, os planos de stock options eram destinados aos gestores de topo, no entanto, hoje, estão cada vez mais disseminados pelos quadros médios e pelo restante pessoal. A este propósito, a própria União Europeia publicou, em 2003, um relatório de peritos sobre os planos de opções de ações para empregados (employee stock options) – in Opções de ações para empregados. O enquadramento jurídico e administrativo dos Planos de Opções de Ações para Empregados na UE, disponível em http://ec.europa.eu/enterprise/newsroom/cf/_getdocument.cfm?doc_id=3703, consultado em 23-04-2015. Em Portugal, o Relatório Anual sobre o Governo das Sociedades Cotadas em Portugal, da CMVM, de 2012 (p. 41), refere que “apenas a Cimpor, o Banco BPI e a Martifer apresentam planos de stock options para os demais trabalhadores e colaboradores. Em oito sociedades existiam sistemas de remuneração baseados em ações dos quais eram beneficiários os trabalhadores e colaboradores da empresa” – disponível em http://www.cgov.pt/images/stories/ficheiros/relatrio_anual_sobre_o_governo_das_sociedades_cotadas_pt_cmvm_2012.pdf, consultado em 28-05-2015. 80- PEDRO MAIA (2009), na esteira de Henry W. Ballantine, adverte que «apesar de a remuneração com stock options ser habitualmente vista como uma originalidade dos anos 80/90, o certo é que já na primeira metade do século se praticava “com frequência”» (op. cit., p. 880). 81- Para um aprofundamento das razões que contribuíram para um aumento exponencial de sociedades que passaram a remunerar os administradores através de stock options, ver PEDRO MAIA (2009), op. cit., pp. 895-896. 82- PEDRO MAIA (2009), op. cit., p. 880. É oportuno referir que num relatório de peritos da União Europeia (2003) sobre as opções de ações para empregados, considerou-se que “para muitas PME, os planos de opções de ações não são adequados, uma vez que implicam custos administrativos relativamente elevados e exigem uma estrutura do capital com base em ações. No entanto, para PME com clara orientação para o crescimento (...), os planos de ações para empregados são um instrumento que oferece muitas vantagens. (...) Especial-mente para as jovens empresas, que frequentemente não dispõem ainda de fluxos de caixa suficientes para pagar salários competitivos, os planos de opções de ações para empregados são por vezes a única forma de remuneração com que podem atrair e manter empregados de alto calibre” (op. cit., pp. 8-9). No entanto, em Portugal, atendendo à realidade das nossas PMEs, este instrumento, eventualmente, ainda não será economicamente apetecível. Para essa conclusão, temos por base a Recomendação 2003/361/CE da Comissão, de 6 de maio de 2003, relativa à definição de micro, pequenas e médias empresas, que, no seu artigo 2º, nº 1, refere que “a categoria das micro, pequenas e médias empresas (PME) é constituída por empresas que empregam menos de 250 pessoas e cujo volume de negócios anual não excede 50 milhões de euros ou cujo balanço total anual não excede 43 milhões de euros” – o mais recente Regulamento (UE) nº 1287/2013 do Parlamento e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013, que cria um Programa para a Competitividade das Empresas e das Pequenas e Médias Empresas (COSME) continua a remeter para a definição da Recomendação de 2003. 83- Embora a maioria da doutrina não atribua grande relevância à alteração introduzida no referido preceito pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de março, PEDRO MAIA (2009) revela alguma preocupação quanto à alteração. Já que, se a redação anterior «permitia que a remuneração, em vez de ser fixada pela assembleia, fosse estabelecida por uma “comissão de acionistas”, em 2006, o legislador suprimiu esta exigência, tendo passado, por isso, a ser possível que a referida comissão de remunerações, designada pela assembleia, se componha, no todo em parte, de não-acionistas» (op. cit., p. 1008).

15 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

no contrato de sociedade (artigos 399º e 429º,

do CSC)84.

Como temos vindo a referir, os instrumentos de

remuneração dos administradores não têm esta-

do, nos últimos anos, isentos de críticas. Assim,

na esteira de FÁTIMA GOMES85, impõe-se

sistematizar as principais vantagens e desvanta-

gens que têm sido apontadas às stock options86.

As vantagens atribuídas às opções de ações são,

designadamente, as seguintes: “atrair e reter

pessoas-chave na empresa, proporcionar ganhos

financeiros a quem tem realmente impacto nos

resultados da empresa – ao associar a compo-

nente variável da remuneração ao desempenho

individual e à evolução dos resultados da em-

presa –, alinhar os interesses dos acionistas com

os dos colaboradores, levando à partilha do su-

cesso da empresa (...); o fato de não provoca-

rem um impacto contabilístico imediato nos

resultados da empresa”. No entanto, no verso da

medalha têm sido apontadas as seguintes des-

vantagens das stock options: a possibilidade de

criar “um potencial conflito entre os titulares

das opções e os acionistas”, dada a diferença de

risco suportado por estas duas categorias de

sujeitos; “a atribuição destes direitos aos diri-

gentes (...) não incentiva a que os gestores pros-

sigam objetivos de médio e longo prazo, o que

opera em detrimento dos acionistas, dando pre-

ferência à valorização (...) de curto prazo”;

acresce ainda que “é comum que a atribuição de

stock options ocorra imediatamente antes de as

ações se valorizarem, oferecendo aos dirigentes

um direito de opção mais benéfico porque toma

por referência a cotação ou valor da ação pré-

valorização”; finalmente, é frequente que “a

atribuição ou exercício dos direitos de opção

estejam associados à utilização indevida, e até

ilícita, de informação privilegiada, traduzindo-

se na prática de um ilícito criminal típico do

mercado de capitais conhecido pela designação

de insider trading”. O que nos traz ao cerne do

nosso problema, que passaremos a analisar de

imediato.

Para percebermos melhor a problemática que

pode estar aqui em causa, teremos por referên-

cia as questões colocadas por EDUARDO

RIBEIRO BOTTINO87: “imaginemos um admi-

nistrador cujo plano de bonificação preveja o

direito de optar por receber a sua remuneração

em ações ao invés de dinheiro e que o prazo

para essa opção seja entre os meses de novem-

bro e dezembro. Esse administrador está obriga-

do a fazer a divulgação de um fato relevante

que causará a diminuição do valor das ações e

deverá fazê-lo no início de novembro; por outro

lado, já é possível antever que em dezembro

será divulgado o melhor resultado da empresa

em vários anos, o que elevará o preço das ações

novamente. O exercício do direito de aquisição

das ações entre um e outro fato relevante cons-

tituiria o uso de informação privilegiada? Esta-

ria o gestor obrigado a adquiri-la antes da divul-

gação do primeiro fato? (...) Será que o gestor

deveria aguardar a divulgação dos lucros para

exercer o seu direito de aquisição? E se esse

direito expirasse antes da data prevista para a

Abuso de Informação Privilegiada...: 15

84- Advertimos para o fato de que, tanto a remuneração dos membros do conselho geral e de supervisão, como a do Presidente da assembleia geral, são exclusivamente constituídas por uma quantia fixa (artigos 422º-A e 423º-D; 374º-A, nº 3 e 422º-A, do CSC). 85- FÁTIMA GOMES (2011), O direito aos lucros..., pp. 478-479. A este propósito, ver, igualmente, RENATO PEREIRA, PAULO FARIA e JOSÉ VIEIRA DOS REIS, Stock Options. Elementos financeiros, contabilísticos e fiscais, bnomics, 2009, pp. 18-19. 86- Para um maior conhecimento sobre os problemas que as stock options levantam ao nível contabilístico, ver ANTÓNIO FERNANDES DE OLIVEIRA, “Remuneração de Administradores e Planos de Aquisição de Ações”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 19, dez. de 2004, pp. 28-44. Para um aprofundamento sobre os problemas das stock options no âmbito da tributação em sede de IRS, ver, designadamente, RICARDO RODRIGUES PEREIRA, “A tributação em sede de IRS dos planos de opção, de subscrição ou de aquisição de ações estabelecidos em benefício de trabalhadores ou membros de órgãos sociais”, in Revista Fiscal, nº 3, mar/abr de 2010, pp. 13-28; J. L. SALDANHA SANCHES e RUI BARREIRA, “O regime atual das stock options”, in Fiscalidade. Revista de Direito e Gestão Fiscal, nºs 7/8, jul-out de 2001, pp. 5-16. 87- EDUARDO RIBEIRO FARIA DE OLIVEIRA THIAGO BOTTINO, “Seletividade do sistema penal nos crimes contra o mercado de capitais (Lei nº 6.385/76)”, in Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI, realizado em Fortaleza, nos dias 9, 10, 11 e 12 de junho de 2010, pp. 923-924, disponível em http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3244.pdf, consultado em 23-03-2015.

16 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

a divulgação dos resultados do ano?”88.

Na verdade, nos últimos anos, têm sido desen-

volvidos vários estudos, no sentido de procurar

alguma relação entre a data de constituição ou

de exercício da stock option e o abuso de infor-

mação privilegiada. Isto é, tem sido questiona-

do se a escolha da data de constituição da stock

option é meramente fruto de sorte, o chamado

good timing, ou se, de fato, a escolha do mo-

mento teve por base um conhecimento e uso de

informação privilegiada, estando, desta forma,

o administrador numa posição de vantagem em

relação a todos os demais intervenientes no

mercado. O primeiro trabalho doutrinal a anali-

sar este problema data de 1997 e foi desenvol-

vido por DAVID YERMACK. Nesta investiga-

ção, o autor concluiu, designadamente, que

“padrões de divulgações de resultados trimes-

trais das empresas são consistentes com uma

interpretação de que os CEOs recebem prémios

de stock option pouco antes de notícias favorá-

veis sobre a empresa”89. Também ERIK LIE,

num estudo sobre o mesmo problema, entendeu

que, “a menos que os executivos possuam uma

capacidade extraordinária de prever os movi-

mentos futuros do mercado, que impulsionam

estes retornos previstos, os resultados sugerem

que pelo menos alguns prémios são cronome-

trados retroativamente”90. A este propósito,

PEDRO MAIA considera que “o administrador

tem interesse em que a ação valorize o mais

possível entre a data em que é adquirida a stock

option e a data do respetivo exercício”. No en-

tanto, “a data em que se constitui a stock option

a favor do administrador pode não estar exata-

mente definida no contrato celebrado com a

sociedade”. Assim, “se o administrador tiver a

possibilidade de escolher ou de influenciar o dia

preciso em que a stock option se constitui, en-

tão terá a possibilidade de escolher um dia em

que a ação tenha um valor de cotação

(anormalmente baixo). Desse modo, bastará que

as ações voltem à cotação normal para que o

administrador lucre com a stock option”91.

O que nos permite concluir, tal como o

fizeram DANIEL NATHAN e BRIAN NEIL

HOFFMAN, que “o exercício das stock options

pode criar riscos adicionais de violação de leis

dos valores mobiliários, dependendo de como

elas são exercidas”92.

Perante este quadro, no mínimo, preocupante,

de alegadas – e algumas comprovadas – esco-

lhas oportunistas e ilícitas da data de constitui-

ção ou exercício das stock options, têm havido

algumas tentativas de regulamentação, por par-

te, tanto das instituições europeias, como das

autoridades portuguesas, no sentido de reforçar

o controlo destas zonas de potencial intersecção

88- A este propósito, recordamos o escândalo que ocorreu em Espanha, revelado em 16 junho de 2000, pelo jornal El Mundo, sobre abuso de informação privilegiada por parte de Juan Villalonga, na compra de opções de ações da Telefónica, da qual aquele era presidente (disponível em http://www.elmundo.es/especiales/2007/10/comunicacion/18elmundo/telefonica.html, consultado em 14-06-2015). 89- DAVID YERMACK, “Good Timing: CEO stock option awards and company news announcements”, in The Journal of Finance, vol. 52, issue 2, junho de 1997, pp. 449-476 (p. 449). 90- ERIK LIE, “On the timing of CEO stock option awards”, in Management Science, vol. 51, nº 5, maio de 2005, pp. 802-812 (p. 802). De acordo com PEDRO MAIA (2009), nos tempos mais recentes, tem sido «detetada a sistemática “coincidência” entre a data de atribuição de stock options e a data da melhor cotação das ações para o efeito, fato que talvez não tivesse origem num mero acaso, mas sim numa verdadeira manipulação da data atribuída à stock option, antedatando-a». Ou seja, «se, por exemplo, a mais baixa cotação das ações se tivesse verificado no dia 15 de janeiro, era essa mesma a data que, posteriormente, se atribuía à stock option – antedatando-a –, para desse modo se facultar ao manager o máximo ganho possível» (op. cit., p. 931-932). 91- PEDRO MAIA (2009), op. cit., p. 929. O autor adverte que «isto só poderá suceder quanto às stock options cuja atribuição não esteja previamente calendarizada (...). Quanto às calendarizadas (...), a intervenção dos CEOs só poderá afetar a sua remuneração através de uma “gestão da informação” ao mercado» (p. 929). 92- DANIEL NATHAN e BRIAN NEIL HOFFMAN, “Is exercising employee stock options ilegal insider trading? Maybe”, in New Y ork Law Journal, de 5-12-2013, p. 4, disponível em http://media.mofo.com/files/Uploads/images/131205-Is-Exercising-Employee-Stock-Options-Illegal-Insider-Trading.pdf, consultado em 02-06-2015. A este propósito, também JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS consideram que “da análise das decisões de exercício de opções de aquisição de ações resulta uma névoa de suspeita de que os administradores, no exercício de uma certa discricionariedade na periodização de receitas e de despesas, concentrariam num dado período tudo o que pudesse influenciar positivamente os resultados (impulsionando a subida de cotação), sendo anormalmente baixos os resultados no período pós-exercício dessas opções” (op. cit., p. 97).

17 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

e de desenvolver os instrumentos normativos

nesse sentido93. Como exemplo desta regula-

mentação que tem sido levada a cabo pela Uni-

ão Europeia encontramos, designadamente, a

Recomendação da Comissão 2004/913/CE94, de

14 de dezembro de 2004, relativa à instituição

de um regime adequado de remuneração dos

administradores de sociedades cotadas. Esta

Recomendação exige que seja prestada infor-

mação, de base individual, sobre a remuneração

dos dirigentes. Na secção IV, a Recomendação

exige ainda que os sistemas de remuneração

com base em ações sejam previamente aprova-

dos pelos acionistas (ponto 6.1). Em 30 de abril

de 2009, surge a Recomendação da Comissão

2009/385/CE, que complementa a Recomenda-

ção 2004/913/CE, no que respeita ao regime de

remuneração dos administradores de sociedades

cotadas, a par da Recomendação da Comissão

2009/384/CE, relativa às políticas de remunera-

ção no setor dos serviços financeiros95.

Em Portugal96, a CMVM, sensível a este

problema relacionado com o governo das socie-

dades (corporate governance)97, tem emitido

algumas recomendações, designadamente, a

“Recomendação da CMVM sobre o governo

das sociedades cotadas”98, aprovada em 199999,

que propõe que “a remuneração dos membros

do órgão de administração deve ser estruturada

por forma a permitir o alinhamento dos interes-

ses daqueles com os interesses da sociedade e

deve ser objeto de divulgação anual em termos

individuais”. Em 2001, algumas das recomen-

dações aprovadas em 1999 foram elevadas a

verdadeiros deveres prescritos pelo Regulamen-

to da CMVM nº 7/2001100, relativo ao governo

das sociedades cotadas. Este Regulamento de-

termina que “as sociedades emitentes de ações

admitidas à negociação em mercado regulamen-

tado enviem à CMVM informação relativa a

planos de atribuição de ações e ou de opções de

aquisição de ações (...) a membros do órgão de

Abuso de Informação Privilegiada...: 17

93- Nos EUA, com a aprovação da Sarbanes-Oxley Act, de 2002, conseguiu-se dificultar em grande medida estas práticas abusivas, já que a secção 403 desta lei impôs a comunicação da aquisição de ações por insiders, no prazo máximo de dois dias úteis após a transação, quando antes a comunicação era feita mensalmente, podendo ir até 45 dias, em certos casos. 94- Torna-se necessário advertir que esta Recomendação é dirigida aos Estados-membros e não às sociedades, sem caráter vinculativo. Em 2005, surgiu igualmente a Recomendação da Comissão 2005/162/CE, de 15 de fevereiro de 2005, relativa ao papel dos administradores não executivos ou membros do conselho de supervisão de sociedades cotadas e aos comités do conselho de administração ou de supervisão. Esta Recomendação exigia a criação de um Comité de Supervisão, no âmbito do conselho de administração ou de supervisão (ponto 3.1, do Anexo I). 95- Em 2010, surgiu a Resolução do Parlamento Europeu, de 7 de julho, sobre a remuneração dos administradores de sociedades cotadas e as políticas de remuneração no sector dos serviços financeiros. Mais recentemente, foi publicada a Diretiva 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013, relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e à supervisão prudencial das instituições de crédito e empresas de investimento. A referida diretiva dispõe de uma panóplia de normas relativas às políticas de remuneração e à supervisão das mesmas. 96- No direito português, a construção da estrutura remuneratória está prevista nos artigos 399º e 429º do CSC, consoante o modelo de governo societário adotado. De acordo com o artigo 399º, nº 2, do CSC, “a remuneração pode ser certa ou consistir parcialmente numa percentagem dos lucros de exercício (...)”. 97- Como refere PEDRO ALEXANDRE TAVARES DA SILVA, “o governo das sociedades procura evitar os problemas que surgem da separação da propriedade e do controlo (...), bem como relativamente aos acionistas maioritários e minoritários. Visa ainda melhorar a confiança dos investidores, que é necessária para o adequado funcionamento de uma economia de mercado (...)” (“Fatores que influenciam o cumprimento das Recomendações da CMVM sobre o Governo das Sociedades Cotadas em Portugal”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 46, dez. de 2013, pp. 62-87 (p. 63)). Para um aprofundamento sobre o corporate governance, ver, designadamente, PAULO CÂMARA, “Códigos de Governo das Sociedades”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 15, dez. de 2002, pp. 65-90. 98- Mais recentemente, em 2013, surgiu o “Código de Governo das Sociedades da CMVM”, em forma de recomendações (disponível em http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/Legislacaonacional/Recomendacoes/Documents/C%C3%B3digo%20de%20Governo%20das%20Sociedades%202013.pdf, consultado em 02-05-2015). 99- Para um conhecimento mais aprofundado sobre a Recomendação da CMVM de 1999, ver CARLOS ALVES e VICTOR MENDES, “As Recomendações da CMVM relativas ao Corporate Governance e a Performance das Sociedades”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 12, dez. de 2001, pp. 57-88. 100- Alterado pelos Regulamentos da CMVM nos 11/2003, 10/2005, 3/2006, 1/2007, 5/2008 e 1/2010, este último entretanto revogado pelo Regulamento da CMVM nº 4/2013.

18 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

administração, nos sete dias úteis posteriores à

respetiva aprovação”. Mais recentemente, foi

aprovado o Regulamento da CMVM nº 4/2013,

cuja principal novidade consistiu em permitir

aos “(...) emitentes de ações admitidas à negoci-

ação em mercado regulamentado situado ou a

funcionar em Portugal [que adotem] (...) o Có-

digo da CMVM ou um código de governo so-

cietário emitido por entidade vocacionada para

o efeito” (artigo 2º, nº 1), sem necessidade de

qualquer apreciação prévia por parte da

CMVM. Nos termos do artigo 245º-A, do

CdVM, “os emitentes de ações admitidas à ne-

gociação em mercado regulamentado situado ou

a funcionar em Portugal divulgam, em capítulo

do relatório anual de gestão elaborado para o

efeito ou em anexo a este, um relatório detalha-

do sobre a estrutura e as práticas de governo

societário”.

Em 19 de junho de 2009, foi publicada a Lei nº

28/2009101, que “(...) estabelece o regime de

aprovação e de divulgação da política de remu-

neração dos membros dos órgãos de administra-

ção e de fiscalização das entidades de interesse

público102 (...)” (artigo 1º). Nos termos do artigo

2º, nº 1, da referida lei, “o órgão de administra-

ção ou a comissão de remuneração, caso exista,

das entidades de interesse público (...), subme-

tem, anualmente, a aprovação da assembleia

geral uma declaração sobre política de remune-

ração dos membros dos respetivos órgãos de

administração e de fiscalização”. Acrescenta o

artigo 3º que “as entidades de interesse público,

ou sendo emitentes de ações admitidas à nego-

ciação em mercado regulamentado no docu-

mento a que se refere o artigo 245º-A do Códi-

go dos Valores Mobiliários (...), divulgam nos

documentos anuais de prestação de contas a

política de remuneração dos membros dos ór-

gãos de administração e de fiscalização (...),

bem como o montante anual da remuneração

auferida pelos membros dos referidos órgãos,

de forma agregada e individual”.

Após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº

185/2009, de 12 de agosto, foram aditados os

números 5 e 6 ao artigo 420º, do CSC. Estes

números passaram a exigir que o conselho fis-

cal único, o conselho fiscal e o conselho geral e

de supervisão – nas sociedades que sejam emi-

tentes de valores mobiliários admitidos à nego-

ciação em mercado regulamentado – devem

atestar se o relatório sobre as estruturas e práti-

cas de governo societário divulgado inclui os

elementos referidos no artigo 245º-A, do

CdVM.

Mas serão estes instrumentos de controlo sufici-

entes para evitar que, no âmbito dos planos de

atribuição de ações e dos planos de opção de

ações, ocorra o crime de abuso de informação

privilegiada? A mera existência de uma comis-

são de remunerações será suficiente?103 Cremos

que não, pois se esta e aqueles têm permitido

uma redução das zonas de interseção, a verdade

é que o enorme poder de discricionariedade que

as sociedades detêm, nestas matérias, permite

que estas práticas ainda ocorram com alguma

frequência. O que impõe a criação de novas e

mais eficazes medidas104.

101- Alterada pelo Decreto-Lei nº 157/2014, de 24 de outubro. 102- Consideram-se “entidades de interesse público” as enumeradas no Decreto-Lei nº 225/2008, de 20 de novembro (artigo 2º, nº 1, da Lei nº 28/2009), a que acrescem as sociedades financeiras e as sociedades gestoras de fundos de capital de risco e de fundos de pensões (artigo 2º, nº 2, da referida lei). O Decreto-Lei nº 225/2008 foi, no entanto, revogado pela Lei nº 148/2015, de 9 de setembro, que aprova o Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria, que enumera as “entidades de interesse público” no seu artigo 3º. 103- JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA ELISABETE RAMOS consideram que “a mera existência de uma comissão de remunerações não afasta completamente o risco de conflitos de interesses, porque se ela for integrada por pessoas ligadas ao órgão de administração ou por este influenciadas (ao fim e ao cabo, pessoas ligadas ao núcleo que elegeu todo o conselho ou a maioria dos membros), então perpetua-se o risco de conflito de interesses entre o órgão de administração e os acionistas” (op. cit., p. 98). 104- ANTÓNIO FERNANDES DE OLIVEIRA sugere que, para se evitar a manipulação de ganhos no exercício dos direitos de aquisição de ações, propiciada, em parte, pelas vantagens informativas dos administradores, «“basta” que se desenhem as opções de forma a que os resultados (ou parte deles) fiquem congelados por um período X (...) para efeitos de eventuais retificações, para menos, em função da evolução da cotação, no período pós-exercício» (op. cit., p. 41). Ainda a este propósito, CARLOS MOREDA DE LECEA defende que, “nestes momentos de globalização económica em que os capitais se transferem em segundos de uma bolsa a outra, é necessário continuar a harmonizar as leis dos distintos países para impedir esta conduta imoral” (“El abuso de información privilegiada (insider trading): una perspectiva ética”, in Scripta Theologica, nº 28, 1996/1, pp. 121-146 (p. 146)).

19 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Considerações finais

Ultimando este percurso de análise do crime de

abuso de informação, cumpre-nos agora proce-

der às últimas considerações sobre a temática

em apreciação.

Desde logo, após um estudo detalhado do pro-

blema em questão, concluímos que, na esteira

de FÁTIMA GOMES, o mercado de capitais é

um “local privilegiado de transação de valores

mobiliários, com as suas especificidades pró-

prias, nomeadamente a constante procura de

informação atempada de quaisquer elementos

que possam influir na decisão de investimento

ou desinvestimento, a sua atualização perma-

nente e a fluidez na circulação”, o que “impôs a

adoção de medidas tendentes a impedir com-

portamentos baseados na utilização de informa-

ções não divulgadas à generalidade dos investi-

dores”105. E é neste quadro que surge o crime de

abuso de informação – igualmente conhecido

por abuso de informação privilegiada, insider

trading, insider dealing ou délit d’initié.

O insider trading nem sempre foi considerado

como crime, o que discordamos, pois partilha-

mos da posição que defende a criminalização

do insider trading, atendendo aos efeitos nefas-

tos que provoca. Defendemos, igualmente, que

a resposta a este problema deverá ser, sobretu-

do, penal.

A par dos EUA, também a Europa começou a

revelar preocupação com as práticas de insider

trading, a partir da década de 60, altura em

que surgiu o primeiro relatório de especialistas

sobre a matéria, constituído pela Comissão da

CEE e que culminou com a Diretiva do Conse-

lho 89/592/CEE, de 13 de novembro de 1989,

considerada como constituindo o passo mais

relevante, dado pela União Europeia, no âmbi-

to das regulamentações respeitantes às opera-

ções de iniciados.

Em Portugal, já desde os anos oitenta que a or-

dem jurídica portuguesa proibia a prática do

insider trading, altura em que o crime de abuso

de informação foi introduzido no Código das

Sociedades Comerciais (Decreto-Lei nº

184/87). Posteriormente, em 1991, aquando da

entrada em vigor do Código do Mercado de

Valores Mobiliários (que em 1999 passou a

designar-se Código de Valores Mobiliários), o

crime de abuso de informação foi inserido neste

diploma, onde se encontra atualmente no artigo

378º, do CdVM.

Um dos problemas mais debatidos na doutrina

sobre o crime de abuso de informação é a ques-

tão do bem jurídico. Apesar das divergências

doutrinais, entendamos que está em causa um

bem jurídico heterogéneo, como defendem

JOSÉ DE FARIA COSTA e MARIA

ELISABETE RAMOS, ou que o bem jurídico

que se visa proteger é a função pública da infor-

mação, como defende FREDERICO DE

LACERDA DA COSTA PINTO, a verdade é

que, em qualquer dos casos, a informação – e,

sobretudo, a informação privilegiada – assume

um papel preponderante. O conceito de infor-

mação privilegiada, definido no artigo 378º, nº

3, do CdVM, implica quatro caraterísticas típi-

cas: caráter não público; precisão; referência a

entidades emitentes de valores mobiliários ou a

valores mobiliários; e influência sensível sobre

o preço.

Relativamente aos sujeitos ativos do crime de

abuso de informação, o artigo 378º, nºs 1 e 2, do

CdVM pune os corporate insiders (ou insiders

internos), os temporary insiders e insiders não

institucionais e, ainda, os outsiders (ou tippies).

A este propósito, como clarificámos, é de real-

çar que, desde 2006, deixou de se exigir que

o conhecimento da informação privilegiada

chegasse ao agente por via de uma fonte interna

do emitente (direta ou indiretamente), bastando

o seu conhecimento de que a informação de que

Abuso de Informação Privilegiada...: 19

105- FÁTIMA GOMES (1996), op. cit., pp. 3-4.

20 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

dispõe é informação privilegiada, havendo, des-

ta forma, um alargamento do leque de sujeitos

ativos.

Mantém-se ainda em discussão, na doutrina, o

problema de saber se o insider non trading deve

ser punido. Relativamente a este problema, em-

bora ele ainda nos suscite algumas reservas, a

verdade é que, desde já, nos parece que a proi-

bição do insider trading só obriga o insider a

abster-se de realizar operações na posse de in-

formação privilegiada, mas não implica um de-

ver de negociar, sobretudo quando as operações

desembocam em prejuízos patrimoniais para

aquele. Acresce que, se o insider non trading

fosse punido, debater-nos-íamos sempre com

dificuldades probatórias.

Já quanto ao problema de saber se as pessoas

coletivas respondem penalmente pelo crime de

abuso de informação, a partir do momento em

que o Código Penal, no seu artigo 11º, começou

a prever a responsabilidade criminal das pesso-

as coletivas, cremos que, também ao nível do

Código dos Valores Mobiliários, esta questão

deveria ser seriamente repensada.

Apesar de o crime de abuso de informação ser

já há alguns anos largamente trabalhado e deba-

tido pela doutrina, a verdade é que existem ain-

da zonas problemáticas, nomeadamente, quan-

do em interação com matérias do direito so-

cietário, como sejam, a Oferta Pública de Aqui-

sição (OPA), a aquisição de ações em opera-

ções de management buy-out, e, finalmente, no

âmbito dos instrumentos de remuneração dos

administradores, sobretudo, nos planos de atri-

buição de ações e nas stock options. E foi sobre

este último problema – instrumentos de remu-

neração dos administradores – que nos detive-

mos por largo tempo, na última parte do artigo,

já que nos parece existir muitas zonas de inter-

secção entre o direito legítimo de remuneração

do administrador e o abuso de informação ine-

rente a esse cargo.

Se, tradicionalmente, as remunerações dos ad-

ministradores das sociedades eram constituídas

unicamente por dinheiro – remuneração fixa –,

a verdade é que, nas últimas décadas, tem-se

entendido que uma remuneração assente numa

fração variável pode permitir um alinhamento

dos interesses dos administradores com os inte-

resses dos acionistas – ideia que, entretanto,

tem sido contestada por alguns autores, como

vimos em lugar apropriado. Os planos de atri-

buição de ações e os planos de stock options

constituem instrumentos de remuneração, que

começaram a ser fortemente utilizados, nos

EUA, nos anos 80 e 90, passando, pouco de-

pois, a ser igualmente difundidos na Europa.

Ocorre que, como enfatizámos, um dos proble-

mas que tem sido atribuído aos planos de stock

options, é a sua associação à utilização indevi-

da, e até ilícita, de informação privilegiada,

questionando-se, por exemplo, se a escolha da

data da constituição da stock option é meramen-

te fruto de um good timing, ou se teve na base

um conhecimento e abuso de informação privi-

legiada – havendo já alguns estudos e casos

reais que nos levam neste sentido. Esta situação

permite ao administrador colocar-se numa posi-

ção de vantagem em relação a todos os demais

intervenientes no mercado, podendo mesmo

falar-se, nalguns casos, de uma atribuição opor-

tunística das stock options.

Assim, embora o crime de abuso de informação

não implique a proibição dos instrumentos de

remuneração – restando ainda espaço para tais

práticas no direito societário –, a verdade é que

se impõe a criação de novas e mais eficazes

medidas. Medidas essas que têm vindo, gradu-

almente, a surgir, tanto no âmbito da União Eu-

ropeia, como no seio do regime jurídico portu-

guês, mas que, dado o enorme poder de discri-

cionariedade das sociedades, o problema ainda

se mantém, apesar de se colocar com menor

acuidade.