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1 Cruel cantora Era uma tarde escaldante na grande Berlim. Clima propício para que grupos de amigos se refugiassem em aconchegantes pubs a fim de tomarem do trincado schoppen alemão enquanto se dispendiam em conversas embriagadas sobre tudo que vinha à mente – nada de censura, nada de tabu. À simpática cantora responsável por alegrar um pequeno pub localizado numa periferia da capital germânica, as cenas dos grupos rindo e conversando euforicamente era reconfortante. No fundo, aquilo a ajudava a continuar naquele trabalho mal remunerado e que nunca garantia reconhecimento. A única vez que um cliente viera lhe elogiar pessoalmente tinha sido com a finalidade quase óbvia de leva-la para a cama. Mas ela não se orgulhava de ter sido ingenuamente ludibriada. O bar em que trabalhava era o maior e mais bem frequentado da proximidade, mas estava longe de alcançar o ideal esplendor das famosas casas de chope da Alemanha. Como a freguesia havia crescido recentemente, os donos ainda discutiam o nome próprio que dariam ao recinto, com a possiblidade remota de trocar o simples letreiro da entrada, que dizia apenas “Das Bierhaus”. Mas seguia a aparência tradicional de roupagem rústica, com balcão e piso de madeira bem polida, mesas e cadeiras confortáveis, grandes copos de vidros grossos para servir chope de qualidade. Ao fim da canção Time After Time, da Cyndi Lauper, da qual ela gostava especialmente de cantar pois achava que cabia perfeitamente em seu tom áspero de voz, a dona do pub aproximou- se dela sutilmente. Ela já sabia o que era, e respirou calmamente. O filho dos proprietários trabalhava de garçom no bar durante a tarde, mas ultimamente sempre saia escondido antes do horário combinado; ela desconfiava que ele usava drogas, mas não ousava mencionar aos pais. Para a cantora, portanto, sobrava o

1 - Cruel Cantora (Versão Utilizável)

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capítulo de uma fanfic postada no fórum da Pokémon Mythology

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1Cruel cantora

Era uma tarde escaldante na grande Berlim. Clima propício para que grupos de amigos se refugiassem em aconchegantes pubs a fim de tomarem do trincado schoppen alemão enquanto se dispendiam em conversas embriagadas sobre tudo que vinha à mente – nada de censura, nada de tabu.

À simpática cantora responsável por alegrar um pequeno pub localizado numa periferia da capital germânica, as cenas dos grupos rindo e conversando euforicamente era reconfortante. No fundo, aquilo a ajudava a continuar naquele trabalho mal remunerado e que nunca garantia reconhecimento. A única vez que um cliente viera lhe elogiar pessoalmente tinha sido com a finalidade quase óbvia de leva-la para a cama. Mas ela não se orgulhava de ter sido ingenuamente ludibriada.

O bar em que trabalhava era o maior e mais bem frequentado da proximidade, mas estava longe de alcançar o ideal esplendor das famosas casas de chope da Alemanha. Como a freguesia havia crescido recentemente, os donos ainda discutiam o nome próprio que dariam ao recinto, com a possiblidade remota de trocar o simples letreiro da entrada, que dizia apenas “Das Bierhaus”. Mas seguia a aparência tradicional de roupagem rústica, com balcão e piso de madeira bem polida, mesas e cadeiras confortáveis, grandes copos de vidros grossos para servir chope de qualidade.

Ao fim da canção Time After Time, da Cyndi Lauper, da qual ela gostava especialmente de cantar pois achava que cabia perfeitamente em seu tom áspero de voz, a dona do pub aproximou-se dela sutilmente. Ela já sabia o que era, e respirou calmamente. O filho dos proprietários trabalhava de garçom no bar durante a tarde, mas ultimamente sempre saia escondido antes do horário combinado; ela desconfiava que ele usava drogas, mas não ousava mencionar aos pais. Para a cantora, portanto, sobrava o trabalho de garçonete. Não se revoltava, aquele trabalho era sua maior segurança.

– Desculpe, querida, mas preciso de você para servir – desse a patroa.

Ela assentiu com a cabeça, guardando o violão na caixa atrás de si. Depois seguiu direto para o balcão, onde vestiu o avental e foi à mesa ocupada por clientes recém-chegados. Sorriu com simpatia, embora estivesse um tanto estressada com a situação que se repetia pela terceira vez na semana.

– O que desejam? – Perguntou.

Eram três rapazes jovens e bem apessoados. Conversavam entre si por cochichos e sem estardalhaço. Depois de alguns segundos inquirindo-se sobre o que pedir, um deles respondeu:

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– Três copos da Weissbier trincando, por favor.

Ela consentiu um pouco envergonhada. O sangue subiu-lhe à face involuntariamente e marcou sua pele clara. O homem que falou tinha voz grave, a pele negra, e seus olhos escuros a fitavam com um fervor apaixonado, com uma confiança inabalável. Além da insegurança que sentia ao ver alguém se interessar por ela, sempre tivera um fetiche incontrolável por homens negros possantes.

Deu as costas ao grupo e receitou o novo pedido à dona, que se servia de cozinheira no próprio pub.

– Obrigada, Evelyn. Você é uma boa moça – disse a mulher, olhando a cantora de seu pub com profunda sinceridade.

Evelyn sorriu fracamente em resposta, ainda em choque pelo contato com o olhar inconveniente do freguês. Nunca se sentira uma mulher realmente bela ou altiva. Tinha estatura média, a pele clara comum à raça ariana, olhos bem azuis. O único item que considerava admirável em si eram as madeixas longas e negras, que escorriam quase retas até a cintura. Desejava ainda, no fundo, que fossem mais encaracoladas ou até crespas. Características estéticas que, para ela, conferiam muito mais expressividade ao ser humano.

– Viu as olhadelas que o grandão te lança, querida? – Disse a patroa, sonhadora; apoiara os cotovelos no balcão, o chope ao lado aguardando ser entregue. – Já se foi a época em que os bonitões ficavam de chacota pra cima de mim.

– Ele é muito bonito... – Evelyn respondeu, a voz fraca.

– Deixe dessa timidez, menina. Cadê a mulher que solta a voz ali na frente sem o menor medo? Aproveite, porque esse tempo de juventude não volta depois – cutucou o ombro de Evelyn, apontando a mesa. – Agora vá, o chope está trincando.

Inconsequente, andou estabanada até onde se encontravam os três amigos tão bem comportados. Só se lembrou realmente de que estava diante de um cara que a observava com tanto interesse depois de já ter lhes entregue o chope.

– Obrigado – ele agradeceu.

Ela tremeu ao som daquela voz grave, tão sútil e harmônica. Sentiu dor na cabeça e ficou um pouco tonta. Desequilibrada, teve de apoiar-se com força numa das cadeiras para que não caísse. Os homens sentados à mesa olharam com espanto; um deles perguntou se ela se sentia bem. Respondeu que sim e andou depressa até à patroa, avisando-a que precisava usar o banheiro com urgência. Era a maldita menstruação. Nunca se sentia bem quando estava menstruada, e parecia que nunca se acostumaria. Recordava sua menarca, o dia desesperador em que sangue escorrera da sua parte mais íntima pela primeira vez. Desde então, tudo virara um inferno. O

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mais estranho era que nos últimos dias seu sistema hormonal estava todo desregulado, o que só piorava a situação. Naquela semana, tivera de usar absorvente todos os dias, para precaver. Pensou que precisaria ir a um médico no dia seguinte. Então lembrou-se, um tanto assustada, de que amanhã completaria 23 anos. Riu de si mesma, enquanto se limpava e trocava o absorvente.

Enquanto ria, uma dor monstruosa apossou-se de seu ventre. Ela olhou para baixo, onde estava para colocar o absorvente inutilizado, e um grito lhe escapou. Um sangue escuro, quase negro, escorria de sua vagina em enormes jorros, de uma maneira que nunca antes vira. Cobriu a intimidade com a mão e tentou se levantar. Caiu no chão atapetado do toalete e berrou como uma condenada. Sentia seus órgãos internos sendo literalmente torturados e dilacerados.

Jogada no chão, começou a se contorcer descontroladamente e os berros não mais cessaram. Ao longe, num universo que parecia outro, alguém batia numa porta, perguntando algo que ela nunca pôde compreender. As batidas na porta aumentavam a força à medida que seus próprios gritos e contorções convulsivas ficavam mais intensas. Num momento de súbito terror, abriu os olhos e levantou a cabeça. Então achou que estava louca. No lugar da sua barriga e da perna, estava um corpo repleto de pelos grossos, de cor bege. Quando a dor aumentou, jogou a cabeça contra o chão e sucumbiu num pesadelo delirante.

Fora, na porta do banheiro, a proprietária do pub já estava em prantos, gritando por ajuda, depois das tentativas infrutíferas de chamar por Evelyn e de tentar abrir a porta trancada. Um homem negro e forte, um dos últimos fregueses a entrar no bar, se aproximou calmamente para ajudar, enquanto o resto do pub observava com tensão o que aconteceria. Naquele momento os gritos e sons de coisas caindo e se quebrando dentro do toalete já haviam cessado. O pequeno pub estava num silêncio mudo. A dona chamou pela cantora outra vez e não obteve resposta.

– Vou tentar arrombar a porta. Todos se afastem, por favor.

A proprietária e alguns fregueses mais próximos se afastaram. O homem agarrou a maçaneta e começou a balançar a porta com força, mas logo provou ser mais resistente do que ele esperava. Pegou distancia, impulsionou-se e bateu o ombro contra a porta.

No mesmo instante ela caiu, mas para o espanto de quem assistia, a porta abrira-se de dentro para fora, e não o contrário. Debaixo da porta, o homem negro encontrava-se estatelado, as pálpebras fechadas; havia desmaiado.

E ali, à frente de uma seleta freguesia de um dos milhares pubs alemães, estava um demônio retirado dos mitos de uma das mais ancestrais civilizações humanas. O corpo de Evelyn tornara-se robusto e estava coberto por uma grossa cabeleira marrom clara, os braços e pernas foram substituídos por grandes patas, as garras bem expostas, como uma leoa. Enormes asas de águias estendiam-se horizontalmente a partir de sua coluna. A cabeça e o busto, porém, mantinham-se o da mulher outrora tão simpática. Os seios maduros e sem sequer um rastro de pelos contrastavam com a pelagem que encobria o resto do corpo. Os longos cabelos negros

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avultavam sobre sua nova forma, e os olhos azuis eram agora desvairados. Era a lendária Esfinge, a cruel cantora que ressurgira dos recônditos da mitologia grega.

Pânico tomou conta dos clientes do pequeno pub. Vários saíram correndo, tombando uns contra os outros. Alguns, mais corajosos e curiosos, permaneceram, estáticos, próximos à saída do bar, observando com certa admiração e espanto aquele monstro idílico.

A Esfinge parara pouco depois do toalete e observava com calma o lugar onde se encontrava. Subitamente, ela abriu suas asas e saltou em cima do balcão de atendimento, onde a dona do pub estava encolhida de medo. Nisto, a mulher começou a gritar à plenos pulmões, as lagrimas escorrendo por sua face.

– Decifra-me, ou devoro-te – anunciou a voz áspera e ritmada da cruel cantora. – Qual o animal que, do repouso dos humanos é implacável inimigo, tornou mil amantes invejosos de sua sorte, se alimenta de sangue e encontra vida nos braços daquele que procura sua morte?

Uma expressão de confusão se apossou da dona do bar. Ela olhava para os lados, sem conseguir parar de chorar. Parecia não decidir se dava atenção ao que a criatura lhe dizia, se gritava por socorro ou se, como decisão fatídica, caia logo, desmaiada. A voz da cantora assomou-se novamente aos sons estardalhados da proprietária da casa de chope.

– Decifra-me, ou devoro-te.

A mulher saiu correndo abruptamente em disparada na direção da porta que dava para a rua. À poucos metros de atingir a saída, a Esfinge alcançou-a por cima, impiedosa. Colocou-se de pé diante dela, mesmo quadrupede, e com as duas patas dianteiras envolveu o pescoço de sua ex-patroa. Começou a estrangula-la. As tentativas de se livrar daquelas fortes patas mostraram-se completamente infrutíferas. Em poucos segundos, o rosto da mulher já estava vermelho e inchado; sangue escorria por suas costas, descendo de onde as garras da Esfinge a haviam perfurado. Quando morreu – ou quase – a cantora jogou a mulher ao chão e lançou-se sobre ela sem qualquer cerimônia, abocanhando sua barriga e alimentando-se de suas vísceras.

As outras pessoas que ainda se encontravam no pub começaram a gritar alucinadas, correndo sem controle para fora, atropelando-se e derrubando-as umas às outras. A Esfinge continuou sua refeição como se nada pudesse abala-la.

O alarido na rua chamou a atenção de um homem à paisana, que logo se colocou a caminho. Quando chegou à entrada do pub, todos já haviam saído, exceto pelo outro que estava preso debaixo da porta e pela Esfinge que devorava a mulher. Era um homem com pele negra e lisa, o rosto marcado por uma barba bem feita; o cabelo crespo descia pelas costas e sobre a própria face num penteado rastafári. Os olhos, únicos, eram de um preto puro. Sob as finas roupas que trajava, os músculos naturais sobressaiam-se. Na boca, um charuto.

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Parado, observava de longe o que acontecia dentro do pub. Assistia com extremo asco à uma das cenas mais bizarras que já vira. O mais incrível era que não se assemelhava em nada às imagens dos filmes de terror mais qualificados pela crítica. Acontecia com a maior naturalidade que se possa imaginar. A cabeça perfeita de uma mulher se enfiando nas entranhas de outro ser humano, devorando todo órgão que cruzasse à sua frente.

– Então isso é a Esfinge... Pensei que me sentiria atraído – desdenhou.

Então suspirou profundamente e fechou os olhos. Pela primeira vez a atenção da Esfinge desviou-se do cadáver. Ela dirigiu seu olhar para o intruso, a cauda como de uma cobra serpeando de um lado ao outro. Com a cabeça virada, sorriu num tom sarcástico para aquele homem. Ele abriu os olhos e pôde jurar que, se não fosse pelo sangue que sujava toda a face dela, seria uma simples menina – sim, uma menina – zombando dele. A cantora se voltou completamente e começou a se aproximar.

– Nada disso, pode ficar quietinha aí – disse, grave.

Fitou-a com as pálpebras bem abertas, e a cor preta de seus olhos começou a se desdobrar gradualmente numa miríade de colorações, do azul bordô ao dourado brilhante às cores inominadas, até se fixar finalmente num carmesim estonteante.

– Decifra-me

– Ou devoro-te – cortou-a o homem.

A Esfinge travara em sua frente e ele pensava que conseguira até que ela prosseguiu.

– Qual o animal que, do repouso dos humanos é implacável inimigo, se alimenta de sangue e encontra vida nos braços daquele que procura sua morte?

Ele arregalou os olhos, confuso. Sequer imaginava a resposta. Mas outro fato o assustava. Não estava conseguindo fazer seu poder ocular atingi-la de maneira adequada, e agora um terror sufocante se apossava pouco a pouco dele, sentido até em seu estômago. Então isso era estar diante da Esfinge. Continuou a fita-la, impregnando o máximo de força que podia ao poder que tinha, porque se sentia incapaz de pensar em qualquer outra coisa além dessa que era sua necessidade primordial – continuar vivo. Os lábios tremiam; o charuto caiu no chão. Da sua boca escorreu um fino fio de sangue; então ele repetiu, peremptório:

– Decifre-se, ou devoro-te. – Da sua voz emanava acidez.

A Esfinge ficou estativa novamente. Segundos depois, espantada consigo mesma, ela soltou:

– A pulga – respondeu-se.

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Em seguida, a cantora emitiu um uivo estridente e totalmente desafinado, e ele viu que aquele som não era nem humano nem animal. O monstro olhou-o com um profundo ódio emanando daquela imensidão azul. Depois pulou para fora do pub, deu voou rasantes, jogando-se no chão e esfacelando o próprio corpo. Como último ataque a si mesma, ela se sentou no meio do asfalto e, com dentes humanos, mordeu o próprio seio até atingir o coração.

Neste momento, as sirenes de caros policiais e ambulâncias ouviram-se chegando na rua, onde a Esfinge encontrava-se arremessada. Um forte homem negro se distanciava do lugar, andando pela calçada. Carregava na mão esquerda uma garrafa de cerveja, e na direita um novo charuto.