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1 A POPULAÇÃO 1 DOS CAMPOS NATURAIS DA ILHA DE MARAJÓ 2 E AS MUDANÇAS SOCIAIS 3 Euzalina da Silva Ferrão 4 Resumo: O objetivo desse trabalho é mostrar como a população dos Campos Naturais da ilha de Marajó (PA) tem vivenciado propostas recentes de como: mudanças sociais às políticas de certificação do gado, demarcação de terras e do seguro-defeso da pesca. O campo de estudo é a população dos Campos Naturais da ilha de Marajó, municípios de Muaná e Cachoeira do Arari, que vivem historicamente envolvidos com algum tipo de economia pecuária, mas que tem na pesca artesanal, para abastecimento doméstico e comercialização do excedente 5 , assume garantia sazonal da aquisição de outros produtos de consumo. A maioria dessa população está ligada direta ou indiretamente à terra de fazendas com criação de gado, mas com a inserção nas políticas de bolsa-família, seguro-defeso e aposentadoria rural, entre outras principalmente, passaram a ter outra forma de relação com o seu local de moradia, saem do seu lugar ou muitos reivindicam o direito a terra. A discussão central busca trazer a compreensão de se e como essas categorias que entram no cotidiano das pessoas provocam mudanças nas relações sociais. O material resulta de pesquisa feita no período de 2012, 2013 e 2014 quando fiz estudo para meu projeto de tese de doutorado. Palavras-chaves: Ilha de Marajó, mudanças, certificação, demarcação, seguro-defeso 1 A população que tratarei nesse artigo é aquela que possuem uma pequena criação de gado bovino e/ou bubalina e também está inserida numa diversidade de atividade produtiva, denominada localmente de Criador de gado, ou como ela mesma se classifica “tenho algum gadinho”. No entanto, poderá falar de alguns trabalhadores em grande propriedade de criação de gado denominada localmente de fazenda. 2 O Marajó é um arquipélago composto principalmente por três ilhas: ilha de Marajó, Mexiana e Caviana. Havendo uma divisão em microrregiões: Furo de Breves e Arari. Mas historicamente dividia-se em região das ilhas e região dos campos. Aqui opto por usar essa última divisão, apenas acrescentando a palavra naturais. No entanto, qualquer uma das classificações representa os mesmos municípios. No caso dos Campos esta contém os municípios de Cachoeira do Arari, Chaves, Muaná, Ponta de Pedras, Salvaterra, Santa Cruz do Arari e Soure. É especificamente com esses municípios que realizei minha pesquisa de campo. Portanto foi com dados de pesquisa nos dois municípios: Cachoeira e Muaná. 3 Estou usando mudanças sociais no sentido de transformações sociais. 4 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia PPGSA, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas IFCH, da Universidade Federal do Pará UFPA; Professora de Sociologia da Secretaria Estadual de Educação do Pará (SEDUC/PA) 5 Vale ressaltar que a palavra excedente colocada aqui tem sentido da produção que não tem fins comerciais e não geram capital.

1 DOS CAMPOS NATURAIS DA ILHA DE MARAJÓ2 E AS …...Figura nº1: Cópia do desenho do curral feito por Guimarães no meu caderno de campo O desenho acima, é a cópia do molde feito

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1

A POPULAÇÃO1 DOS CAMPOS NATURAIS DA ILHA DE MARAJÓ

2 E AS

MUDANÇAS SOCIAIS3

Euzalina da Silva Ferrão4

Resumo: O objetivo desse trabalho é mostrar como a população dos Campos Naturais

da ilha de Marajó (PA) tem vivenciado propostas recentes de como: mudanças sociais

às políticas de certificação do gado, demarcação de terras e do seguro-defeso da pesca.

O campo de estudo é a população dos Campos Naturais da ilha de Marajó, municípios

de Muaná e Cachoeira do Arari, que vivem historicamente envolvidos com algum tipo

de economia pecuária, mas que tem na pesca artesanal, para abastecimento doméstico e

comercialização do excedente5, assume garantia sazonal da aquisição de outros produtos

de consumo. A maioria dessa população está ligada direta ou indiretamente à terra de

fazendas com criação de gado, mas com a inserção nas políticas de bolsa-família,

seguro-defeso e aposentadoria rural, entre outras principalmente, passaram a ter outra

forma de relação com o seu local de moradia, saem do seu lugar ou muitos reivindicam

o direito a terra. A discussão central busca trazer a compreensão de se e como essas

categorias que entram no cotidiano das pessoas provocam mudanças nas relações

sociais. O material resulta de pesquisa feita no período de 2012, 2013 e 2014 quando fiz

estudo para meu projeto de tese de doutorado.

Palavras-chaves: Ilha de Marajó, mudanças, certificação, demarcação, seguro-defeso

1 A população que tratarei nesse artigo é aquela que possuem uma pequena criação de gado bovino e/ou

bubalina e também está inserida numa diversidade de atividade produtiva, denominada localmente de

Criador de gado, ou como ela mesma se classifica “tenho algum gadinho”. No entanto, poderá falar de

alguns trabalhadores em grande propriedade de criação de gado denominada localmente de fazenda. 2 O Marajó é um arquipélago composto principalmente por três ilhas: ilha de Marajó, Mexiana e Caviana.

Havendo uma divisão em microrregiões: Furo de Breves e Arari. Mas historicamente dividia-se em região

das ilhas e região dos campos. Aqui opto por usar essa última divisão, apenas acrescentando a palavra

“naturais”. No entanto, qualquer uma das classificações representa os mesmos municípios. No caso dos

Campos esta contém os municípios de Cachoeira do Arari, Chaves, Muaná, Ponta de Pedras, Salvaterra,

Santa Cruz do Arari e Soure. É especificamente com esses municípios que realizei minha pesquisa de

campo. Portanto foi com dados de pesquisa nos dois municípios: Cachoeira e Muaná. 3 Estou usando mudanças sociais no sentido de transformações sociais.

4 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA, do Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas – IFCH, da Universidade Federal do Pará – UFPA; Professora de

Sociologia da Secretaria Estadual de Educação do Pará (SEDUC/PA) 5 Vale ressaltar que a palavra excedente colocada aqui tem sentido da produção que não tem fins

comerciais e não geram capital.

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1 INTRODUÇÃO

Durante a frenquente idas a campo para levantamento de dados, na pesquisa de minha

tese de doutorado nos anos de 2012, 2013 e 2014 a certificação do gado, a demarcação

das terras e o seguro-defeso da pesca eram os assuntos mais tratados nas conversas, nos

encontros com as pessoas. Percebia que havia um processo de “aprendizado” – se é que

posso assim dizer – em relação às tais políticas que vinham sendo implantadas naquela

área.

A vacinação do gado contra a febre aftosa é um fato que tem mexido com as estrutura

sociais na ilha. No período de campanha a percepção é maior devido à grande

movimentação das pessoas para não perder o momento em que os técnicos estão com

postos próximo à suas terras. Principalmente, porque a vacinação é parte importante

para a certificação do animal, como vantagem tanto para o criador que organiza a

documentação do animal, quanto para o governo que garante a qualidade do mercado

brasileiro como área livre de febre aftosa, em boa condição sanitária e sem embargo

comercial.

Por sua vez, o cadastramento e registro do pescador nas associações de pescadores,

basicamente, para receber o seguro defeso, dos meses de reprodução do pescado,

movimenta e altera o cotidiano das pessoas nos municípios da ilha. Elas precisam

organizar a documentação, ir para comparecerem em filas que se estendem da noite e

dia para o outro.

A demarcação de terras realizada pelo Grupo Regional de Patrimônio da União – GRPU

é fato que tem contribuído para a mudança em muitos aspectos da vida social da

população nos municípios da ilha de Marajó. Esse acontecimento atinge muitas famílias

apresenta ou provoca uma nova organização no espaço social. Muitos se sentem

beneficiados, porque conseguiram receber a titulação da terra onde moram, depois de

muitos anos e por várias gerações de família ocuparem aquela terra enquanto para

outros e motivo de muitos conflitos.

A demarcação das terras, a certificação do gado e o seguro defeso são fenômenos

recentes que provocam mudança social ou mudanças sociais na vida da população, na

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microrregião dos Campos Naturais da ilha de Marajó comparável com o ocorrido

quando surgiu a chamada aposentadoria rural.

Nesse estudo tomo como referencial teórico a noção de transformações sociais de

Marshall Sahlins (2003), para a compreensão dos eventos (certificação de gado,

demarcação de terra e seguro defeso) e as categorias apresentadas nesse percurso. Como

elas interagem na estrutura social. Para compreensão de como o poder e o processo de

dominação se estabelecem, bem como, se o que parece como uma mudança na vida das

pessoas pode ou deve ser procedimento de permanência, apóio-me na noção de espaço

social de Pierre Bourdieu (1998), principalmente por serem estes fenômenos centrados

nas correlações de poder, necessitando entender quem o delega e quem é delegado.

2 UM DIA COM UM “VELHO AMIGO VAQUEIRO”6 QUE SE TORNOU

“NOVO CRIADOR”

Era setembro de 2014 quando fui realizar a última etapa de minha pesquisa para a tese,

estava na casa de meus pais7, quando Guimarães

8, amigo de infância, vaqueiro e agora

criador por ter comprado gado, mas continua morando na terra vizinha pertencente aos

filhos de seus padrinhos e permitiu a criação, chegou, por volta das onze horas da

manhã ele veio de bicicleta9 em vez de montar cavalo ou búfalo

10 como é usual na

microrregião. Como é costume local, nós o convidamos para o almoço e ele

imediatamente aceitou. Havia ido até a beira do rio Atuá para conversar com os técnicos

da Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (ADEPARÁ) do escritório do

município de Muaná sobre a vacinação de seus trinta e quatros animais. Para surpresa

6 Vaqueiro é uma palavra relativa ao gado vacum vaca+um: diz-se do gado que compreende vaca, bois e

novilhos..., (Lchaellis, 2000). Velho vaqueiro, porque na juventude, morava na fazenda dos padrinhos

onde era uma espécie de vaqueiro e de pessoa de confiança, porque tinha uma relação mais familiar do

que os demais empregados da casa. Logo casou e passou a ser morador na terra dos padrinhos, depois,

após a morte dos padrinhos lhe foi cedido o lugar para ter seu sítio, podendo criar seus animais: os porcos,

búfalos, bois e cavalos. 7 Minha família possui propriedade na microrregião dos Campos Naturais da ilha de Marajó, no

município de Muaná. 8 Vou usar nomes fictícios para identificação das pessoas que tratarei neste artigo

9 A bicicleta, principalmente durante o período de seca, nos últimos anos vem substituindo a montaria a

cavalo ou ao boi/búfalo como se praticava antigamente na ilha. 10

Na região dos campos de Marajó a maior parte das pessoas denominam o búfalo de montaria de boi,

porque é castrado e manso para montar.

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dele os técnicos não podiam vacinar seus animais, pois ele havia ultrapassado a cota de

20 cabeças de gado de grande porte que o governo estabeleceu para aplicar a vacina

gratuitamente.

Guimarães se interessou em saber de minha ida à propriedade de meus pais, pois sabia

que há alguns anos que eu não ia por lá. Nesse passo, a conversa engrenou, falei da

pesquisa e ele começou a falar dos acontecimentos ocorridos ao longo dos anos em que

estive afastada. Explicou que os técnicos da ADEPARÁ estavam em campanha de

vacinação do gado e como esta acontecia.

No ano de 2014 a campanha havia alterado a cota para 20 animais a serem em

vacinados gratuitamente e como Guimarães possuía mais de 20 reses precisava comprar

as vacinas, obrigatoriamente dentro do prazo de vigência da campanha para aplicar em

seus animais. O prazo estava se esgotando e os técnicos estavam de viagem para outras

localidades e não poderiam vacinar os animais do Guimarães; no entanto, isso não seria

problema, porque ele, em outra campanha, foi treinado pelos técnicos e podia aplicar,

ele mesmo, nos seus animais.

De todo modo, Guimarães estava preocupado e precisava comprar a vacina logo para

não ter complicação com a documentação de certificação. Sem a documentação em

ordem a venda do gado é difícil, mas por outro lado, informava que a vacinação também

ajuda no combate ao furto de gado. Ficando, assim, mais complicado, para o ladrão

comercializar (o gado) sem dados de procedência, pois a ADEPARÁ exige a

documentação para o caso do abate de animais.

A certificação dos animais é importante para que o governo possua o controle sobre a

produção pecuária do Estado e tem como meta preparar uma área livre para

comercialização, e para isso a região de pecuária da ilha de Marajó precisa ser uma área

livre de febre aftosa, para que sua produção seja exportada para dentro ou para fora do

mercado brasileiro. Essa é uma exigência de mercado oficial, para a produção da ilha

assim como para outras regiões do Brasil.

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5

2.1 ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO DE CRIAÇÃO

Guimarães e os demais trabalhadores e/ou pequenos criadores estão envolvidos na

organização de suas áreas de criação, principalmente, para adequação da infra-estrutura

do curral de acordo com os moldes exigidos adequados para a vacinação. O antigo

curral sem a área antes própria usada para a vacinação essa está ultrapassado. O criador

que não possui um curral apropriado tem que conduzir seu animal até um ponto, isto é,

uma fazenda, ou outro local onde possa vacinar os animais. Por exemplo, os que

possuíam dentro do total dos 20 animais levam para as fazendas onde os técnicos já

estavam vacinando e isso provoca uma circulação de pessoas e de animais de um lugar

para outro.

Os proprietários, denominados localmente fazendeiros, que possuem muitos animais

compram as vacinas e os técnicos do Estado as aplicar assim; muitas vezes, as fazendas

se tornam postos de vacinação e as pessoas que possuem menos cabeças e não têm o

curral apropriado vacinam seus animais nesses postos; dentre os que vacinam assim

estão aqueles que têm apenas um animal.

O amigo vaqueiro e agora novo criador construiu um curral apropriado, isto é:

cumprindo com as exigências técnicas. O curral novo possui separação comportando

sub-currais. Ele mesmo construiu e explicou que foi arquiteto, engenheiro, mestre de

obras e madeireiro juntamente com os filhos. Fazendo a planta do curral de uma área de

8x16 metros, as fundações, derrubando árvores, serrando madeira e construindo.

Guimarães contabilizou os custos para compra do material necessário (madeira, arame,

prego). Segundo ele, o esforço foi necessário para que o custo não fosse alto. A

construção de um curral do padrão para comportar 50 animais é muito onerosa,

chegando, aproximadamente, a um montante de R$ 12.000,00 (doze mil reais) ou mais.

Assim, o novo desenho, do curral, para vacinação equivale a novos aprendizados que

entram na vida das pessoas.

Page 6: 1 DOS CAMPOS NATURAIS DA ILHA DE MARAJÓ2 E AS …...Figura nº1: Cópia do desenho do curral feito por Guimarães no meu caderno de campo O desenho acima, é a cópia do molde feito

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Figura nº1: Cópia do desenho do curral feito por Guimarães no meu caderno de campo

O desenho acima, é a cópia do molde feito detalhadamente pelo vaqueiro/criador com

sua contabilidade do material necessário para a construção do curral. Mostrando que de

4 em 4 o tarogo11

deve ser duplicado para reforçar o curral. Veja-se também que

existem cinco sub-currais e uma manga12

para aplicação da vacina.

Na ilha, os currais eram, em geral, divididos em dois e mais currais, propriamente ditos

e o barracão para a ordenha. Com a orientação para vacinação houve o acréscimo de

outras áreas, ou seja, outros currais e uma área apropriada para vacinação dos animais.

Esse fato é uma mudança que parece estar apenas na estrutura do curral, mas

proporciona a entrada de uma nova categoria determinada “de fora”. Determinando uma

necessidade que não foi desejada, nem solicitada pelo grupo local, mas projetada pelo

poder do Estado, não formalmente, mas na medida em que a vacinação obriga o

proprietário vacinar o animal dentro de um curral do novo modelo, cria uma motivação

local para a construção do mesmo.

11

Nome dado por ele para as hastes que são o apoio da cerca. 12

Outro nome dado localmente para identificar a área que se estreita para aplicação da vacina.

Page 7: 1 DOS CAMPOS NATURAIS DA ILHA DE MARAJÓ2 E AS …...Figura nº1: Cópia do desenho do curral feito por Guimarães no meu caderno de campo O desenho acima, é a cópia do molde feito

7

2.2 ORIENTAÇÃO DE REGISTRO DE VACINAÇÃO

No escritório da ADEPARÁ, em Muaná, solicitei informação relacionada ao

procedimento de vacinação e, além disto, foi fornecido, pelo funcionário técnico

administrativo, um modelo de ficha de classificação dos animais (apresentada na pagina

nº8). A partir dessa ficha e ouvindo as conversas dos pequenos criadores e vaqueiros

pude compreender que as exigências para adequação da criação do gado são: instalação

física, conhecimento de armazenamento da vacina em locais refrigerados,

preenchimento da ficha que apresenta uma classificação por sexo e por idade. O

pequeno produtor13

, principalmente, precisa ter conhecimento das planilhas de controle

dos animais, a sua propriedade14

com titulação no seu nome ou documento de

autorização de animais em “terra de terceiro”, pois no cadastro precisa constar local de

origem (precisando colocar os documentos da terra em ordem); assim há uma

reordenação na vida local. Com isso, as pessoas adquirem uma nova função. No

entanto, elas devem saber ler, conhecer os trâmites da documentação, porque a relação

com os técnicos nos órgãos públicos é frequente, por exemplo, para dar baixa quando

comercializam, morre e nasce um animal.

Há, claramente, uma nova função instalada que necessariamente obriga o trabalhador

(pequeno criador e/ou vaqueiro ainda não letrado) com escolarização. A pouca ou

nenhuma escolaridade, dos antigos vaqueiros e pequenos criadores tem dificultado aos

mesmos para fazerem o controle dos animais. Muitos não sabem ler os manuais, anotar

nas fichas de controle a quantidade de animais e, por isso, a linguagem oral ainda

é,praticamente, a única forma de transmissão de conhecimento.

13

Trato aqui do pequeno produtor porque ele não tem formação e nem tem pessoal com os conhecimentos

do que o Estado exige. O grande produtor, denominado na ilha de Marajó, fazendeiro, aquele que possue

grande quantidade de gado, também precisa se adequar às exigências; no entanto, ele, muitas vezes tem

ou é capacitado (médico veterinário, zootécnistas, técnicos em pecuária) e muitas vezes têm um escritório

para tratar da empresa pecuária. São poucos técnicos na região para uma grande demanda. 14

Na ilha de Marajó a criação é extensiva e é costume pessoas ganharem, comprarem ou possuirem

poucos animais e deixarem na propriedade de terceiros.

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Vacinação de animais (bovino e bubalino)

Idade do animal Macho Fêmea

0 a 1 ano

1 a 2 anos

2 a 3 anos

+ 3 anos

Total de gado

Quadro nº 1: Ficha para classificação dos animais

A classificação dos animais fora historicamente construída pelas pessoas da

microrregião, entre elas o Guimarães, da seguinte maneira: vaca, boi, novilho, novilha,

garrote, garrota, bezerro e bezerra. Agora com as fichas de vacinação a classificação

passou a ser por sexo (macho ou fêmea) e idade (0 a 1 ano, 1 a 2 anos, 2 a 3 anos e + 3

anos). Diante dessa classificação, alguns animais como as fêmeas em fase de procriação

e os animais de 0 a 1 ano de idade recebem vacinação diferenciada. Neste sentido,

entendo que os novos agentes, o governo, na pessoa de seus técnicos e o mercado

internacional, através da exigência documental, entram no espaço social, de acordo com

o pensamento de Bourdieu (1996), vão redesenhando-o e dando lugar para outra ordem

de dominação, mas aos poucos se percebe que estava havendo uma continuidade dos

processos de dominação, agora com a inserção de nova categoria (com o evento da

“Vacinação” 15

) o mercado.

Tudo que vem ocorrendo faz pensar em mudança, mas se verifica ao mesmo tempo que

é a permanência de dominação, tendo e visa que o Estado é fonte determinante das

mudanças (BOURDIEU, 2011). As pessoas mudam suas práticas e passam a utilizar

outras por exigência externa e elas passam obedecer internamente.

No entanto, muitas vezes, não se cumpre as determinações, porque a fiscalização não é

intensiva, por haver, naquela época apenas dois técnicos para visitar os domicílios, da

ADEPARÁ em Muaná, por exemplo. Sendo que muitos abatem e a comercializam nas

15

Segundo Sahlins (2003, p.50), Enquanto a categoria dada é reavaliada no curso da referência

histórica, as relações entre as categorias mudam: a estrutura é transformada.

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proximidades de sua propriedade para atender a vizinhança, na maioria das vezes e

como é um número pequeno, às vezes um animal.

A vacinação é uma etapa da reorganização do gado para o adequar ao quadro do país

fora ou sem febre aftosa, a aplicação é anualmente, com a campanha no mês de

setembro. O proprietário precisa ter: gado cadastrado, curral adequado, pistola para

aplicação da vacina, ambiente para conservar a vacina em baixa temperatura e

propriedade própria ou informada pelo proprietário.

Tornar a ilha de Marajó como uma das áreas do Brasil de exportação de carne bovina e

bubalina dentro de exigências internacionais tem feito as pessoas criadoras certificarem

seus animais para apresentarem condições sanitárias compatíveis às exigências do

mercado. Isso, segundo os técnicos do Estado, está sendo lento, porque culturalmente as

práticas locais eram outras. Por outro lado, a maior parte da ilha não possui energia

elétrica ou de outra natureza para instalação de refrigeradores. A região precisa

adequação aos padrões exigidos pelos órgãos fiscalizadores para que o sistema opere

totalmente.

3 POR CAUSA DA DEMARCAÇÃO, A MÃE DONA DA HERANÇA, SERIA

EXPULSA DA TERRA

Diagrama nº 1: Família de Corra Mau-Tempo (ego é o circulo preenchido; circulo feminino; triangulo

masculino; sinais aberto para cima é casamento; circulo e triângulo riscado morreu; sinal de casamento

riscado é separação, reta vertical descendência e reta na horizontal irmão).

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Às margens do rio Atuá, em Muaná, três famílias16

moram há mais de cinqüenta anos e

disputam entre si os melhores lugares da Terra Frondosa para morar. Duas dessas

famílias adquiriram as terras por herança, por serem os primeiros a construir moradia

naquela terra, uma terceira, através de compra. Cora filha de uma dessas três primeiras

famílias moradoras tinha 89 anos de idade em 2013. Viúva, vive na terra de herança do

pai que só teve uma filha; ela teve outros irmãos por parte de mãe, mas todos já

faleceram.

Cora casou e levou o marido para morar na Terra Frondosa herdada, mesmo que a

família deste tivesse terras. Do casamento teve cincos filhos (quatro filhas e um filho).

Duas filhas já morreram, mas deixaram filhos: uma deixou dez e a outra três. As outras

duas filhas casadas moram nessa terra herdada por Cora e o filho mora na sede do

município.

Cecília a filha primogênita, com 60 anos de idade em 2013, casada, mãe de dez filhos,

mora na terra da mãe desde que casou e construiu sua casa próxima da mãe, sempre

manteve plantação de roça e plantio de açaí nessa terra, e quando resolveu construir

uma casa na terra herança do pai, sua estadia na terra do pai foi curta, porque entrou em

conflito com um irmão do pai.

Aos poucos os filhos de Cecília foram casando e construindo as casas na terra de

herança de Cora, e aos poucos Cecília foi se apropriando de uma grande parte da terra.

Não satisfeita com apenas a casa da beira do rio, Cecília construiu outra casa na área de

campo para fazer criação de gado. Assim, aumentou ainda mais o domínio na terra com

relação aos demais filhos de Cora.

Saramago o segundo filho de Cora, na ordem de nascimento, é um levantado do chão17

.

Desde que cresceu e se tornou adulto passou a morar sem paradeiro, casou com uma

vizinha, filha de família herdeira que comprou a Terra Frondosa; por ser um homem que

vive sem paradeiro, logo a mulher o deixou.

16

Vou tratar aqui apenas da família que compõe o diagrama de parentesco apresentado 17

Referência ao nome da obra José de Saramago (2012).

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11

Clarisse, a terceira filha casou e construiu a casa no terreiro da mãe; teve dez filhos,

porém, morreu após nascer o décimo filho, deixou o viúvo18

com os filhos, a maioria,

pequenos e meninas. O viúvo migrou para cidade de Muaná, onde a filha primogênita

casada passou a morar. A casa foi “desmanchada”19

com a ida do viúvo de Clarisse para

cidade levando todos os filhos.

Virginia, a quarta filha, casada e mãe de quatro filhos, após ter morado com a mãe

marido (sogra) saiu e voltou para construir uma casa no local da casa de Cora (mãe).

Cora passou a morar com Virginia e trouxe mais os três netos que criava, sendo uma

menina e um menino, filhos de Clarisse e um menino, filho de Eneida20

.

Virginia e o marido resolveram melhorar o açaizal nativo, fazendo limpeza e depois

tornou parte cultivada, plantando açaí e cupuaçu como cultura permanente. Esse fato fez

com que Cecília passasse a invadir a área manejada e cultivada pela a irmã com o

marido. Os filhos de Clarisse foram incentivados por Cecília a obrigarem Cora a não

utilizar as plantações que foram deixadas por Clarisse e o marido. No determinado dia

Cecília seus filhos e os filhos de Clarisse invadiram a casa onde mora Cora para lhe

agredir fisicamente, mas ela foi salva quando Virginia, o marido e os filhos foram

chamados pelas crianças que estavam na casa. Esse fato foi parar na polícia.

Neste entremeio, a GRPU passou demarcando as terras localizadas nas margens do rio

Atuá, bem como em demais rios; como a terra de Cora tem frente para a margem do rio

foi realocada às pessoas que tinham casa construída lá. Dentre estes, todos os filhos de

Cecília que moram na terra. Por esse motivo, a técnica da União solicitada por Cecília

estava exigindo que Cora saísse da terra. No momento da pesquisa já havia processo no

fórum e foram vários boletins de ocorrências feitos na delegacia por parte dos

responsáveis de Cora, no caso Virginia, para que a senhora anciã com 89 anos

permanecesse na terra.

Conflitos semelhantes se instalaram na região, atingindo várias famílias. Reportagens de

jornais em Belém trazem repetidamente casos de conflitos originados na maneira como

os técnicos da Gerência Regional de Patrimônio da União - GRPU chegaram à região

18

Ele morreu alguns anos depois da morte de Clarisse 19

Significa na linguagem local desconstruída, como era de madeira, provavelmente é levada para usar na

construção de uma nova moradia. 20

Eneida morreu nova e deixando três filhos: um menino, que Cora cria e duas meninas, que o pai cria;

hoje estão entre 15 e 18 anos. Quando viva morava em outro local.

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12

demarcando a terra reconhecem posse para aquele que possuía uma moradia no local,

cumprindo as prerrogativas de que a terra na ilha de Marajó originalmente pertencia a

União, por isso, ninguém podia alegar que era proprietário, o resultado disso tem sido o

aumento de conflitos entre as famílias, que historicamente eram “proprietárias”, re-

configurando e re-significando do status quo ou costume da ordem que antes dizia em

que propriedade deveria ser adquirida por herança.

A história desta família de sobrenome Mau-Tempo21

mostra o procedimento derivado

de códigos identificáveis por pessoas antes vinculadas à terra, mas hoje em dia são

substituídos pelos novos re-ordenadores do espaço social. Mais uma vez se verifica a

máxima de que “a aparente mudança é permanência” porque os de fora determinam o

processo de mudança. Para “os de dentro” apesar disso, os indivíduos não são pacíficos,

têm sua parcela de contribuição no fato histórico, isto é: somam a orientação dos de fora

com o saber local para construir uma linguagem integradora, capaz de juntar o novo

conhecimento com o antigo.

3 O TÍTULO E A GARANTIA DA TERRA DE PRODUÇÃO

Diagrama nº 2: Família de Graciliano Sonhador (ego é o riangulo preenchido; o triângulo em negrito é

Florestan quem recebeu a adoação; circulo feminino; triangulo masculino; sinais abertura para cima é

casamento; circulo e triângulo riscado morreu; sinal riscado abertura para cima é separação, reta vertical

descendência e reta na horizontal com ligação para baixo é irmão).

Outra história que fez parte das demarcações das terras no rio Atuá, e da qual

acompanhei diz respeito a algumas situações, é a da família de Graciliano. Ele morou a

maior parte da vida em uma terra que sempre foi considerada pertencente a um

21

Copiando o sobrenome da família personagem do romance de José Saramago na obra “Levantado do

Chão” (2012).

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fazendeiro, ocupante de um cargo de alto escalão do estado do Pará. Graciliano morreu

e deixaram quatros filhos, Zélia, filha primogênita, separada do marido; Rachel, casada

e com a casa construída próximo a casa do pai; Florestan empregado em uma fazenda e,

Lindanor solteira22

morando na casa do pai.

Lindanor, a filha mais nova casou e passou a morar na fazenda onde seu irmão Florestan

era o feitor e o marido dela trabalhava como vaqueiro; Rachel depois mudou para outro

rio. Zélia continuou morando na casa, até que Florestan se aposentou e trouxe a família

para morar lá. A irmã saiu e foi morar na terra de herança do pai de um dos filhos.

Com a aposentadoria rural, Florestan veio morar na terra em que a família morava.

Agora, a terra tem título de posse em nome de Florestan doada pelo fazendeiro e com

certificação do GRPU. As irmãs dele mudaram de lugar, a irmã mais velha passou a

morar na terra que o filho que herdou do pai; Rachel, a irmã do meio, mudou para outro

rio, e Lindanor, a mais nova, mora na cidade de Muaná. Essa família não viveu conflito

entre seus membros por causa da terra. A titulação, em nome de Florestan foi um

consenso.

5 O VAQUEIRO QUER SER PESCADOR

Seguindo meus percursos durante a pesquisa para a tese, em 2012 fui ao município de

Cachoeira do Arari e estive conversando com o presidente do Sindicato de

Trabalhadores Rurais – STR, no intuito de tentar compreender a vida dos trabalhadores

das áreas de fazendas. Este, imediatamente falou das mudanças que vinham ocorrendo.

Para ele, entre os principais problemas havia a decadência das fazendas, impulsionada,

em grande parte, pelo aumento do furto de gado, fazendo com que os pequenos

fazendeiros e criadores de gado, os mais afetados, estivessem migrando para as cidades.

No estudo realizado por Rosa Acevedo Marin e Eliana Telles Rodriguês (2013) informa

que no bairro do Choque, em Cachoeira do Arari, é um bairro formado pescadores e

pescadoras, basicamente, muitas dessas pessoas migraram de fazendas ou vão e voltam

22

Depois ela casou com o irmão da cunhada.

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às fazendas e praticam a pesca. Sendo que a Colônia de Pescadores e pescadoras de

Cachoeira do Arari é a Z-40.

Foto nº1: Seca no Lago Arari (NOLAR, 2012)

Outro fenômeno (este sempre presente) é o clima, que nos meses de seca (verão)

deixava as áreas de criação de gado com o solo inapropriado para a vegetação de

consumo do gado, além da relativa seca ou falta de água. Nesse período, os criadores

perdem muitos animais. O gado se desloca à procura de água e fraco, porque não tem

como se alimentar, ao se aproximar dos locais de água, como o rio Arari, atola-se e

morre dentro do rio.

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Foto nº 2: Animal morto as margens do rio Arari (FERRÃO, 2014)

Na Secretaria de Agricultura do município conversei com o secretario e ele dizia: Acho

que é um costume. Acho que veio dos antigos [o costume] é não se preocupar com o

investimento ... não investir ... Eles não investem nas fazendas. Eles querem criar, mas

só deixando] criar por conta da natureza (Osvaldo, 60 anos). O furto, a seca e a falta de

investimento tem causado a mobilidade das pessoas do campo para a cidade e até

migrando para outros lugares, como para a capital do Estado.

Na imprensa local são recorrentes as reportagens que apontam a população da ilha de

Marajó dentre os grupos atingidos pelo seguro-defeso da pesca e de maior número de

beneficiados por esta política, no estado do Pará. Segundo o presidente do STR de

Cachoeira do Arari, entre a população que busca o beneficio estão os vaqueiros.

Quanto aos trabalhadores tanto os “vaqueiros”, ou aqueles considerados “moradores”,

tem saído da condição de trabalhadores rurais vinculados a outra atividade, como

vaqueiro ou simplesmente ouro trabalhador, para se associar nas associações de pesca

como pescador artesanal. Neste sentido, muitos abandonam os trabalhos com a carteira

assinada para fazer o cadastro na associação de pescadores. Por esse motivo há um

aumento no número de pessoas identificadas como pescadoras (de ambos os sexos).

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No STR de Muaná o presidente informa também que há um esvaziamento com a saída

dos sindicalizados para a associação de pesca. Segundo o presidente este fato não tem

sentido, porque ser sindicalizado não inviabiliza ter a condição de associado em

entidade de pescador artesanal.

Foto nº3: Fila de cadastramento e recadastramento de Seguro defeso. (FERRÃO, 2015)

Nos dias de cadastramento nas sedes municipais há um número enorme de trabalhadores

que procuram as associações. Em Muaná, por exemplo, a Colônia de Pescadores de

Muaná Z-59 têm mais de dez associações entre elas: ASPRIM, AMARAJOARA,

Associação de Pescadores e Agroextrativista do Município de Muaná – ASPEAGRO,

Associação dos produtores Rurais e Pescadores do Furo Muaná – ASPEFUM,

Associação dos trabalhadores rurais da Comunidade Frei Fabiano do Município de

Muaná – ASTRAFAB (no entanto as pessoas conhecem as associações mais pelo nome

ou apelido do proprietário)23

. As pessoas vão para a fila no início da noite para

conseguir a ficha distribuída. Algumas famílias têm todos os membros associados.

23

Em Muaná quando perguntei as pessoas associadas souberam dizer apenas daquela que são sócias,

como as acima citadas. Outro fato é que os presidentes são, para o povo em geral, considerados de donos.

Assim soube que tem a do Tatu, do Durval, da Bena, da Araci, do Arlindo, do Cametá, do Barbudo.

Sendo a senhora Araci a presidente da Colônia de pesca de Muaná.

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Em conversa com trabalhadores no município de Muaná eles dizem que saem do

sindicato, porque não tem um retorno imediato, e na associação, a cada ano há um

recurso que serve para ajudar no período que estão fora da pesca. No entanto, os jornais

locais têm publicado notícias de escândalos atingindo os responsáveis pelas associações.

Polícia Federal desmascara máfia do defeso

Polícia Federal flagrou 500 falsos pescadores que recebiam

o Seguro Defeso dentro do esquema A Polícia Federal

começou a desmontar um esquema criminoso que atuava no

interior do Pará em municípios que foram inseridos no

programa “Seguro Defeso”, do Governo Federal, para

beneficiar pescadores durante o período de proibição da

pesca no Pará. Pelas denúncias apresentadas ao Ministério

Público Federal, o esquema criminoso vinha atuando no

Estado desde 2003, quando estavam registrados em todo

Pará cerca de 40 mil pescadores. A partir de então começou

o que foi denominado de “pororoca do defeso” e das

licenças de pesca provisórias, atingindo hoje a cifra de 130

mil pescadores em todo o Pará. Os municípios alvos da

quadrilha são Ponta de Pedras, Moju, Limoeiro do Ajuru,

Breu Branco, Tucuruí, Abaetetuba, IgarapéMiri, Chaves,

Muaná, Cametá e Mocajuba, sendo que o município de

Muaná, na Ilha do Marajó24

, tem o maior número de

irregularidades já descoberto. (Diário do Pará, s/d)25

.

Reportagens dessa natureza são recorrentes nos jornais da capital do Estado,

diante disso, se acirra o cadastramento e ao mesmo tempo existe a retirada de pessoas

do cadastro de associações. Apesar dessa polêmica, emergente no cadastramento de

pessoas com ganho indevido, o seguro defeso, juntamente com outras tantas bolsas

como a bolsa família, o auxilio maternidade e a bolsa verde para algumas famílias com

que o arranjo mais os inexatos mais o ganho monetário era difícil e por isso existia

dificuldade de possuir bens duráveis, porque o que ganham durante o ano, fora desse

período, só dar para garantir a alimentação. Esse é o exemplo da família de João

Ubaldo a seguir.

João Ubaldo tem 58 anos de idade, viúvo, teve três filhas do casamento, é

sindicalizado no STR, mas procurou a associação de pesca e se cadastrou há quatro

anos atrás e todos esses anos tem recebido o seguro defeso; não trabalha agora com a

pesca, mas na juventude pescou para ajudar a família no sustento da casa. Continuou

no sindicato porque está próximo da idade de se aposentar como trabalhador rural. Ele

24

Grifo de minha autoria para destacar a região da ilha de Marajó. 25

Site consultado http://www.diariodopara.com.br/impressao.php?idnot=99874, em 16/06/2015

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mora com duas filhas: ambas têm dois filhos cada uma e recebem bolsa família. A

filha mais nova, além disso, também é cadastrada no seguro defeso.

O recurso financeiro de João Ubaldo, mais o da filha serviram para ele reformar

a casa que estava para “cair”. A cada ano ele acrescenta uma parte da casa. Ele conta

que já construiu um quarto para cada filha. A filha comprou um aparelho televisor,

móveis de quarto e cozinha. Diz que sem essa ajuda financeira não era possível

investir na melhoria de seu imóvel.

Guimarães, aquele meu amigo vaqueiro – acima referido – que se tornou criador,

também recebe bolsa família, porque tem uma filha de 15 anos e que ainda “estuda”. É

membro na associação de pescadores e recebe seguro-defeso, sendo que ele é dos

pescadores no período da seca quando o peixe baixa no rio. Arma tapagem26

no rio

para o peixe ficar; pesca com tarrafa, “malhadeira”27

e caniço. Consegue uma boa

produção, que permite vender o excedente. Guimarães também é sindicalizado e como

só tinha 53 anos de idade em 2014, ainda terá alguns anos trabalhando até a

aposentadoria rural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os três fenômenos que relatei – a certificação do gado, a demarcação da terra e o

seguro defeso da pesca – me fizeram compreender que as possíveis mudanças sociais

que se apresentam naquele espaço social estão carregadas de “permanências”.

Principalmente a certificação do gado, porque esta ocorre e resulta do interesse do

mercado externo, na medida em que, o Estado brasileiro para responder à demanda do

mercado internacional passa a cumprir os registros, vacinando o gado e cadastrando os

produtores e os animais, para ter o controle da produção local. Mas o fato altera a

relação entre os pequenos produtores, e antes os mesmos passam a re-significar a ação

no local e que produz uma nova configuração da pecuária na ilha.

A demarcação da terra tem sido, na região, como um processo ambíguo, porque, por

um lado produz conflitos resultantes do entendimento dos técnicos que não

consideram a história de vida das pessoas nativas do lugar; mas por outro lado tem

garantido os antigos moradores que viveram por muitos anos e por varias gerações na

26

Termo usado no local para denominar a represa para prender o peixe 27

Espécie de rede que apreende o peixe

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mesma terra, afinal conseguindo o título de propriedade da terra que em moram,

podem fazer investimento. Isso é bom? Parece que sim – porque a população consegue

uma mudança social que se realiza melhoria, mesmo que ela aconteça a partir da ação

do estado, vinda de cima para baixo, sem um processo organizativo das pessoas.

O seguro defeso é um salário que o trabalhador rural pode investir, melhorar com a

moradia, possibilitar o acesso a algum bem durável, como os eletro domésticos que

dificilmente adquiriria. Mesmo diante de todos os escândalos com o seguro defeso e a

aposentadoria rural, vaqueiros e outros trabalhadores dos Campos Naturais vêm saindo

das antigas relações de trabalho e se estabelecendo na cidade dos municípios

comprando sua casa, e inchando a “periferia” para disponibilizar aos filhos a

possibilidade de estudar.

Nesse sentido, vejo a necessidade de refletir sobre a aplicação dos recursos

disponibilizados a esse grupo social. Mesmo sabendo que muitos não são pescadores

(essa abordagem é importante mencionar), mas o que se quer aqui – se aponta e se a

busca – é uma compreensão alcançada através dos dados de pesquisa no campo. Essa

compreensão mostra que os trabalhadores estão seguindo (aos presidentes) das

entidades porque querem ganhar o beneficio. A questão de ser uma prática criminosa

ou qualquer outra classificação que se cogite é irrelevante para muitas dessas pessoas

– parece ser esse o caso – contanto que elas obtenham o ganho esperado.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth; TELLES RODRIGUES, Eliane. Identidades

coletivas nas narrativas dos pescadores do bairro do Choque, na ilha de Marajó,

Pará.Varsóvia, Revista del Cesla, nº16, 2013, PP 159-176

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. Sobre a teoria da ação. Campinas SP: Papirus,

1996.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003

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SARAMAGO, José. Levantado do chão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

Site consultado http://www.diariodopara.com.br/impressao.php?idnot=99874, em

16/06/2015