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1ª edição - Travessa.com.brimg.travessa.com.br/capitulo/TINTA_NEGRA/LUGAR_DE_REPORTER_… · 1ª edição mauro junior josé roberto de ponte o jornalismo de RicaRdo Kotscho lugar

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1ª edição

mauro junior josé roberto de ponte

o jornalismo de RicaRdo Kotscho

lugar de repórter é na rua

25mm

1,5mm para a dobra do seixo

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PAGINA DE CREDITOS

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sumáRio

intuitivo, passional, RepóRteR

Por Clóvis Rossi 7

um homem de bem e do bem

Por Eliane Cantanhêde 11

1. Caindo na rede 15 2. De jornaleiro a repórter 25 3. Indo para a rua pelo Estadão 33 4. No meio do Golpe de 1964 47 5. As mordomias de Brasília 65 6. Correspondente alemão 81 7. A República do Mino 101 8. Viajando com a Folha 117 9. Abrindo trincheiras 13310. Na praça da Sé, o repórter das Diretas 14311. Visitando os garimpeiros em Serra Pelada 15912. A morte de Tancredo 16913. Na Copa de 86, a última convocação 17714. Mudando para o Jornal do Brasil 18715. O assessor da campanha de 1989 20116. A campanha das Caravanas 21517. De freelancer a “repórter de latinha” 22918. Voltando para a rua em grande estilo 23719. Reencontrando o jornal 27320. Atendendo ao pedido de um amigo 28921. O secretário do Planalto 29922. De repente, blogueiro 331

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Em 2010, trabalhando na varanda de casa

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Caindo na rede

“Quando eu leio Ricardo Kotscho, tenho a sensação de beber um copo d’água quando estou com sede. É um homem raro, de primeira linha. Ele se

revela um brasileiro com muita sensibilidade. Parece que nasceu sabendo escrever. É muito humilde. Jornalista como ele só a cada século.

É um fenômeno, e ponto final.”

José Hamilton

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cigarro sempre aceso no canto da boca e óculos quase caindo do nariz.� Os olhos se movimentam sem parar, do caderninho de anotações para o tex-to, para lá e para cá, como se transportassem as informações para as mãos, segundo a segundo. Os dedos acelerados, batendo com força no teclado, que-bram o silêncio da sala. É Ricardo Kotscho, curvado na frente do computa-dor, concentrado, compenetrado, prestes a concluir mais um texto. E esse é dos grandes. Será matéria de capa da revista.

Cinco laudas recheadas de informações e histórias de personagens desco-bertos em mais uma viagem pelos grotões do Brasil. Uma reportagem rica em detalhes que o repórter levou dois dias para apurar e escrever.

Mais de 3 mil quilômetros do quarto no qual está hospedado no interior do Ceará, uma equipe de editores aguarda ansiosamente pelo envio da repor-tagem para a redação, em São Paulo. Pronto! É hora de revisar: “Puta merda! Deu pau! Cadê a porra do texto?”, foi a reação dele.

Bateu desespero. O texto sumiu! Por um descuido, Ricardo Kotscho detonou o trabalho em um piscar de olhos. Meteu o dedo onde não devia, na tecla errada do laptop que a empresa havia emprestado ao repórter, na tentativa de facilitar seu trabalho. Para piorar a situação, ele nem fazia ideia de como recuperar aquele texto. A tela escureceu. Foi uma tremen-da confusão.

“E eu lá vou saber o que é control Z, shift? Na máquina de escrever, isso não existe”, respondeu a um técnico da revista que ligou tentando ajudá-lo.

Mas a reportagem tinha de ser publicada. E Ricardo Kotscho, na época repórter sênior, precisava se virar. Primeiro, virou o laptop de ponta-cabeça, para ver se tirava o texto de lá. Hilário! Insatisfeito e desesperado, tentou abrir a máquina na marra para ver se ela estava prendendo a reportagem. Como papel enroscado na impressora, sabe? Não deu outra. Ele quase detonou o computador.

“Avisa ao pessoal aí que eu vou dar um jeito nisso. Mais tarde, o texto es-tará chegando”, foi o recado que ele mandou por telefone aos editores.

Mas repórter também precisa ter sorte. E ele teve. Naquele ano de 2000, a filha mais velha, Mariana, era repórter da TV Verdes Mares — afi-

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liada da TV Globo em Fortaleza — e conseguiu ajudar o pai. Mariana deu um jeito de recuperar o trabalho. E-mail enviado com sucesso. Não, fax enviado com sucesso. Foi assim que ele conseguiu mandar o texto aos edi-tores da revista.

[...]

Ricardo Kotscho confessa: nunca se deu bem com esse negócio de moderni-zação tecnológica no jornalismo. Celular, sempre evitou. Usar um computa-dor na redação, só se não houvesse outro jeito ou se fosse obrigado. Tanto que, na primeira tentativa de mexer numa maquina recém-chegada à sucur-sal do Jornal do Brasil, em São Paulo, em 1990, levou uma semana para des-cobrir onde ficava o botão para ligar o equipamento.

Mas essa fase já passou e Ricardo Kotscho mudou. Depois de 45 anos de estrada, inevitavelmente, ele mudou. Fisicamente, ficou mais careca, como já era de se esperar. Só não parou de fumar e beber, apesar dos esforços dos amigos e da família. Também se tornou mais conhecido, ganhou mais ami-gos, conquistou mais respeito e foi mais valorizado no meio. Consequência de uma carreira bem-sucedida e premiada.

E quem diria, hein! Ricardo Kotscho entrou de uma vez por todas numa rotina: “Ficar conectado o dia inteiro não é rotina não, meu caro. Isso é tra-balho pesado!”.

Em almoço com os autores e a família

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Ele adora! Acorda bem cedo, às 7h em ponto, e vai logo para a cozinha pegar uma xícara de café, na medida — cigarro e café, combinação perfeita para ele. A bebida é preparada pela prestativa dona Edite, uma simpática se-nhora que trabalha na casa da família há quase trinta anos.

Jornais e revistas na mão, televisão sintonizada no noticiário. Kotscho pre-cisa estar atualizado. Não demora muito e lá vai ele ligar o aparelho mais utilizado em casa nos últimos tempos. Claro, o computador portátil (ou no-tebook, laptop, seja como for).

Com muito custo, ele aposentou para sempre a lendária máquina de escrever, companheira fiel durante anos. Kotscho ainda preserva uma be-líssima Remington, uma relíquia que ganhou de presente de alguns ami-gos — entre eles, Luís Inácio Lula da Silva, na época ainda candidato presidenciável — quando o repórter completou 25 anos de carreira, em 1989, e era assessor de imprensa de Lula. Kotscho viu aquela máquina numa lojinha de velharias no interior de Minas Gerais, durante uma via-gem com os colegas de trabalho. O fato curioso é que ninguém queria deixá-lo comprar a Remington. Dias depois, em São Paulo, durante uma festa num bar, Lula chamou o repórter para subir ao palco e lhe entregou o presente. Uma surpresa agradável. Infelizmente, a máquina nunca fun-cionou. Mas teve como destino a estante de casa. Tornou-se enfeite para o visitante apreciar.

Kotscho e Mara, sua esposa

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O notebook fica sempre no mesmo lugar, numa mesinha de madeira colocada na varanda do apartamento, com vista para a Alameda Lorena, no Jardim Paulista, em São Paulo — uma rua bem movimentada e arborizada, cheia de bons lugares para comer e beber, e com vizinhos aparentemente tranquilos. A varanda é a nova redação de Ricardo Kotscho desde que resol-veu sair de uma redação de verdade: “Trabalho aqui mais de doze horas por dia e sem direito a horas extras! Minha mulher já anda dizendo que isso é uma escravidão”.

Em cima da mesinha, cigarro sempre aceso escorado no cinzeiro, telefo-ne residencial, celular, bloquinho de anotações, caneta e agenda — que, de tão grossa, parece mais um álbum de casamento sem fotografias —, com milhares de telefones anotados durante a carreira. É o tal caderno de fontes (atualizado dia após dia pela esposa, Mara), um valioso bem que todo repórter precisa ter, como sempre ensinam os professores nos primeiros dias de aula na universidade.

Automaticamente, a internet é acessada. E lá está, no alto da tela, o site em destaque na página inicial. Vai começar o Balaio do Kotscho, a principal diversão do velho repórter.

[...]

O ritmo não para. É intenso o dia inteiro. É mais ou menos assim: toca o te-lefone. É o vice-presidente da República, José Alencar, convidando o amigo para um almoço. Toca o celular, agora é o próprio presidente Lula marcando um jantar ou um encontro na casa dele. Telefone outra vez e, do outro lado da linha, um colega de profissão falando — às vezes, resmungando — sobre o texto do dia que foi publicado no Balaio. Mensagem nova na caixa de e-mail. É mais um comentário postado no blog que ele precisa ler e enviar em seguida para a página, onde fica à disposição de todos os leitores. O cen-sor — ou o sensor — é ele mesmo.

Assim, entre uma conversa e outra, novas ideias vão surgindo. Para atua-lizar o Balaio com textos fresquinhos, Kotscho adotou um estilo diferente daquele que o consagrou como um dos melhores repórteres do Brasil durante quatro décadas. Não vai mais para a rua: “Só vou de vez em quando. É raro. Mas continuo acreditando que lugar de repórter ainda é na rua. Se não fosse assim, como eu me pautaria?”.

Pois é. Ricardo Kotscho não encara mais as andanças pelo país em busca de novas histórias. Cansou? Não! Acomodou-se? Também não. Encontrou

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um jeito mais prático de produzir sem exigir tanto do corpo: “Já que a tecno-logia permite isso, tenho que aproveitar. O mundo mudou”.

As histórias vêm até ele por meio dos noticiários. E, com essa matéria-prima abundante, Kotscho desenvolve, em primeira pessoa, os textos posta-dos no blog. Porém, não deixa de explorar também situações do cotidiano, que acontecem com ele, inclusive: “Eu me encaixo como um cidadão co-mum, que paga as contas, abastece o carro, vai à padaria comprar o leite, o pãozinho... É uma forma de me aproximar cada dia mais da linguagem do povo, que conhece a dura vida do trabalhador e encara os problemas brasilei-ros com bom humor e muita coragem”.

Mas ele ainda pratica a reportagem, sim, na essência. E faz isso na revista do amigo fotógrafo e agora empresário Hélio Campos Mello, a Brasileiros. Pelo menos uma vez por mês, os dois viajam para o interior do Brasil em busca de novas histórias. Como essa é a praia deles, já que tra-balharam juntos na IstoÉ, no final dos anos 1970, sempre trazem grandes reportagens. A revista não tem grande circulação, se comparada com as mais tradicionais do mercado, mas preserva uma equipe de excelentes repórteres. Kotscho trabalha desde 2008 na Brasileiros.

[...]

com William Waack e familiares

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Vida de blogueiro é assim: tudo que ele escreve com opinião gera mais opinião. É uma grande bola de neve que não para de crescer, a exem-plo do número de admiradores. Surgem novos críticos, a credibilidade aumenta, ou diminui, e o nome fica sempre em evidência, fala-se bem ou mal.

E sabe como é. Amigos também colaboram. Mas amigo que é amigo de verdade vai além. Sente-se no direito de ler, analisar e expressar o que pensa. Na maioria das vezes, com bastante sinceridade, como o jornalista Raul Martins Bastos. Os dois se conhecem desde os anos 1960 e, até hoje, fazem reuniões com antigos companheiros, a chamada “Turma do Estadão”.

“Ricardo Kotscho está deixando de ser aquele sujeito que viaja e vai em busca da notícia, do personagem. Não tem mais contato com o entre-vistado. Particularmente, eu não gosto disso. E falo isso pra ele. O negócio do Kotscho agora é ficar sentado escrevendo o que pensa sobre os outros e falando de política, do Lula. Só que tem um detalhe: ele não deixa de ser brilhante. Não perdeu a capacidade de escrever bem. E nunca vai perder”, declara Bastos.

Achou a declaração polêmica? De certa forma, é. Tanto que, vez ou ou-tra, gera calorosas discussões em redações, salas de aula, nos botecos em que alguns jornalistas se reúnem para conversar, além dos próprios amigos do criador do blog.

Não é comum no Brasil ver um jornalista ao estilo de Ricardo Kotscho, acostumado a escrever grandes reportagens — algumas merecedoras de prê-mios —, migrar para a internet. Existem casos raros. E, destes, nem todos conseguem despertar a atenção necessária para obter sucesso.

Kotscho não pensa em parar tão cedo. Vive recomeçando a carreira. É que esse jeito incansável de lidar com o jornalismo vem de longe.

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