1. Introdução ao Direito Internacional 1

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    Direito Internacional Pblico Uma Viso Cabo-VerdianaNotas de Aula/2009-2010

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    CAPTULO I

    INTRODUO AO DIREITO INTERNACIONAL PBLICO

    1. Trs Vises da Ordem Internacional

    Existem diversas abordagens que podem ser feitas sobre o Direito

    Internacional, que se amparam em diversos pressupostos tericos ou filosficos. Muitas

    vezes conhecer tais fundamentos, explcitos ou implcitos, so to determinantes como

    conhecer as regras e processos concretos do Direito Internacional, porque sobre eles

    exercem uma influncia directa. Essa mesma pluralidade tambm se encontra presente

    na nossa viso da ordem internacional, o sistema no qual se insere o Direito

    Internacional. Assim sendo, ainda antes de discutir questes fundacionais do Direito

    Internacional ser fundamental incidir sobre algumas vises da ordem internacional

    cujo conhecimento decisivo para o bom entendimento do sub-sistema normativo que

    objecto deste curso. Evidentemente, neste quadro, temos que recorrer cincias da

    relaes internacionais no sentido mais amplo para proceder a esta discusso.

    Apesar de existirem diversas formas de se apresentar esta discusso, tanto por

    juristas, como por cientistas sociais e polticos, destacaremos trs vises, chamadas de

    idealista (1.1), realista (1.2) e eclticas (1.3), defendendo, ao final, que s esta ltima se

    sustenta verdadeiramente enquanto modelo explicativo e normativo para o ordem

    internacional. Complementarmente proceder-se- discusso de aspectos da poltica

    externa da Repblica de Cabo Verde luz dessas vises sobre a ordem internacional

    (1.4).

    1.1. Viso IdealistaTrata-se de modelo que encontra as suas razes remotas no estoicismo romano e

    em certa medida na interpretao pacifista radical do cristianismo primitivo, e

    seguimentos com autores como Erasmo de Roterdo1, diversos movimentos pacifistas e

    federalistas internacionais, chegando a um pice terico com a obra do grande filsofo

    Immanuel Kant, Zum Ewigen Frieden [A Paz Perptua] de 1795, na qual o pensador

    prussiano prope a criao de uma Federao Global de Povos (Vlkerbund)2 e,

    alegadamente, o fim dos conflitos que assolavam a humanidade. Apesar de na nossa

    1 No geral, ver Erasmo de Roterdo,A guerra e a queixa da paz, Trad. portuguesa de A. Guimares Pinto,Lisboa, Edies 70, 1999.2

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    opinio tal interpretao pacifista radical de Kant ser um equvoco completo3, no se

    pode deixar de consentir que a leitura idealista da ordem internacional est, de certa

    forma, ligada ao pensamento do filsofo de Knigsberg.

    A base dessa concepo est aliercada num optimismo iluminista e numa

    concepo antropolgica positiva transplantada para a ordem internacional. As naes

    deixariam a guerra de lado e passariam a cooperar de boa f para uma ordem

    internacional pacfica, baseada no comrcio e desenvolvimento para todos, submetida

    ao Direito Internacional ou at Cosmopolita e a um conjunto de instituies

    supranacionais. Qualquer diferendo seria resolvida por rgos judicirios prprios e os

    Estados acatariam as suas decises sem qualquer problema.

    Ora, evidentemente o grosso das relaes internacionais no so reconhecveis a

    partir deste quadro traado pelo pensamento mais idealista. Outrossim, a maior parte

    das relaes marcada no pela fidcia mxima entre os Estados, mas pela

    desconfiana total, o comrcio internacional teve uma expanso considervel com o

    engrandecimento da comunidade internacional e a globalizao, mas tambm os

    conflitos tornaram-se mais comuns, especialmente dentro dessas unidades

    denominadas Estados; finalmente, longe de se submeterem a instituies

    internacionais, a maior parte dos Estados tem, com efeito, tentando guardar intacta a

    sua soberania e o seu poder de deciso; isso se reflecte claramente na submisso de

    controvrsias a soluo judiciria internacional. Na maior parte dos casos ou os

    Estados rejeitam qualquer soluo pacfica, preferindo resolver litgios atravs do uso

    da fora ou, na melhor das hipteses, tenta compor poltica ou diplomaticamente os

    seus litgios sem recorrer a tribunais.

    Claro est que sempre se pode dizer que a criao e consolidao da Unio

    Europeia demonstrativa de uma ordem internacional cooperativa e solidria. Trata-se

    de assertiva verdadeira, mas somente em parte. Antes de mais em razo da

    representatividade geogrfica dessa organizao regional. Ela s europeia e no

    mundial. Portanto, no mximo seria comprovado com o exemplo e correctamente ao

    nosso ver que uma interpretao idealista pode ser feita em relao ao processo de

    integrao no Velho Continente, mas no em relao ao Mundo. Mais: pode -se

    correctamente defender-se que relaes similares, embora no institucionalizadas,

    ocorrem com todos os Estados liberais, criando uma espcie de comunidade liberal de

    Estados. Porm, tal concluso padeceria das mesmas virtudes e defeitos da anterior.

    Isto , aplicvel a um conjunto de Estados, mas no susceptvel de qualquer

    universalizao do verdadeiro sentido da palavra. De outra parte, arguir-se- que

    diversos rgos que fazem parte das Naes Unidas demonstram que uma viso

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    idealista da ordem internacional perfeitamente sustentvel. No bem assim. Na

    realidade, dependendo da matria nota-se uma deferncia maior ou menor em relao

    a instituies internacionais. Determinadas questes podem contar com uma razovel e

    previsvel cumprimento por parte das instituies internacionais, outras so mais

    difceis de suscitar o cumprimento de decises ou recomendaes internacionais. O

    exemplo mais apontado de sucesso nesse quadro, evidentemente retirando as

    instituies europeias, o Sistema de Soluo de Controvrsias na Organizao

    Mundial do Comrcio, mas este ndice de eficcia justifica-se em razo do interesse dos

    Estados em fazer parte dessa instituio do que propriamente de uma tendncia

    generalizante de cumprir qualquer deciso internacional.

    1.2. Realismo PolticoO realismo politico desenvolve outra viso da ordem internacional muito mais

    cinzenta do que a apresentada pelos idealistas. Longe de ser um espao de cooperao

    entre os povos para o benefcio mtuo, a esfera internacional traduzir-se-ia num espao

    de conflito em que cada unidade procura, na medida do possvel, proteger os seus

    interesses e consolidar o seu poder.

    Esta tradio muito antiga. Aplicada esfera internacional provavelmente

    antecede a anteriormente discutida, tendo tido como expoente mximo na Antiguidade

    o historiador ateniense Tucdides, autor da famosaHistria da Guerra do Peloponeso,

    maravilhosa descrio e discusso sobre o conflito com o mesmo nome. Seguiram-se

    autores da lavra de Maquiavel (pelo menos o do Princpe), no renascimento, Hobbes,

    na modernidade, e, mais contemporaneamente, Carl Schmitt. No entanto, quem mais

    ficou associado a esta concepo da ordem internacional foi o alemo (mais tarde

    americano) Hans Joachim Morgenthau (1904-19804), autor da obra Poltica entre as

    Naes. A Luta pelo Poder e pela Paz5, autor que fez escola e cuja influncia mantida

    em relao a um conjunto de especialistas em relaes internacionais (designadamente

    Waltz, Mearsheimer, Walt e vrios outros6).

    Globalmente as ideias sobre a ordem internacional permanecem constantes, ou

    seja, uma viso largamente pessimista e a noo de que nessa esfera as unidades lutam

    para concretizar o interesse nacional, expandir, manter ou proteger-se do poder. No

    4 Sobre Morgenthau ver Christopher Frei,Hans J. Morgenthau. An Intellectual Biography, Baton Rouge,Louisiana State University Press, 2001, para a vida e obra, :::::.5 Hans Joachim Morgenthau, Politics among Nations. The Struggle for Power and Peace, 7. ed., NewYork, McGraw-Hill, 2006 [orig. 1948].6 Ver um conjunto de textos desses pensadores em Hans Joachim Morgenthau, Politics among Nations.The Struggle for Power and Peace, Kenneth Thompson & W. David Clinton (ed.), 7. ed., New York,

    McGraw-Hill, 2006, pp. 569-627 (inclui textos de John Mearsheimer, J. Samuel Barkin, Richard Little,Ashley Tellis, William Crowe, Brent Scrowcroft, David Newson num anexo intitulado Updating realism forthe Twenty-First Century).

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    um espao para diletantismos, nem para pacifismos, mas, ao invs, para uma

    preparao total com o fito de atingir esses objectivos que todos Estados perseguem.

    Claro est que, como em relao corrente idealista, a verdade que o saldo do

    realismo misto, no se podendo deixar de notar que a sua leitura da realidade

    internacional provavelmente no seria aplicvel a todos os diversos tipos de relaes

    que se concretizam, designadamente entre Estados que partilham valores comuns,

    designadamente ligados ao sistema poltico e jurdico como o exemplo da integrao

    europeia demonstra parcialmente. Assim sendo, nem todas as relaes so marcadas

    pela busca incessante do poder, nem to pouco estaria caracterizada pela manifestao

    total do factor poder ou da menorizao de regras jurdicas, muito embora deva dizer-

    se que tal assertiva uma descrio exagerada e caricaturial do realismo poltico. Seja

    como for, correcto dizer-se que existir, dentro do pensamento realista, uma

    tendncia em menosprezar o papel da moral na justificao da aco poltica na esfera

    internacional e alguma descrena em aces altrustas.

    1.3. Vises eclcticasEntre uma e outra viso, procurando ultrapassar as limitaes tericas e

    prticas de ambas esto colocadas as vises eclticas, que utiliza uma leitura a um

    tempo influenciada por elementos realistas e idealistas. Em certa medida a sua

    longevidade equiparada que se notou nas outras grandes vises da ordem

    internacional. Um exemplo claro desta concepo pode ser notado no desenvolvimento

    da teoria da guerra justa pelos telogos cristos medievais a partir de Santo Agostinho,

    que claramente encontrou uma soluo para um problema prtico na interseco entre

    o pensamento realista sobre a guerra, de acordo com o qual ela sempre aceitvel

    desde que o Estado dela necessidade, e o pacifismo radical dos cristos primitivos,

    concluindo que, na Cidade dos Homens, da imperfeio a violncia por vezes era

    necessria e legtima para que os bons pudessem fazer face aos maus. Assim sendo, por

    um lado, determinados tipos de guerras (por territrio, glria ou recursos)

    continuavam sendo ilegtimas, ao passo que outras, caso tivesse causa justa podiam ser

    consideradas como sendo justificadas.

    Esta mesma perspectiva, em certa medida pode ser encontrada na longa lista de

    autores que contriburam para o desenvolvimento do Direito Internacional,

    designadamente Francisco de Vitria, Francisco Surez, Alberico Gentili, Hugo Grotius,

    Samuel Pufendorf e Emerich de Vattel, somente para citar alguns. No mesmo sentido,

    de apontar a influncia dessa viso eclctica em concepes mais contemporneas ds

    relaes internacionais sejam elas provenientes das cincias polticas o

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    institucionalismo ou da filosofia poltica por exemplo, o Direito dos Povos de John

    Rawls.

    Resumidamente, pode-se dizer que enfatizam a ideia de que parcialmente as

    relaes internacionais desenvolveram-se em determinados espaos e em relao a

    certos tipos de conexes num sentido predominantemente idealista, cosmopolita, anti-

    soberanista, jurdico e pacifista, traduzindo-se num conjunto de instituies como a

    prevalncia do direito na esfera internacional, a soluo pacfica e judiciria dos

    diferendos, a mitigao da soberania, a tranferncia de poderes para instituies supra-

    nacionais, etc. Isso se verifica, efecticamente, nos casos da Unio Europeia e no

    concernente s relaes entre Estados Liberais e entre estes e determinados Estados

    que no o sendo assumem determinadas pressupostos que permitem a sua associao

    pacfica sem partilha integral de valores pblicos.

    No entanto, por outro lado, certos espaos so marcados ainda por um cenrio

    clssico de desconfiana entre os Estados, de relativizao do Direito Internacional face

    poltica, de resistncia a soluo internacional de controvrsias, de recurso fora em

    determinados casos, de defesa entusistica da soberania dos Estados.

    Seja como for, como no se pode conhecer o Direito Internacional sem ter

    noes mais generalizantes sobre a ordem mais ampla na qual ele se insere,

    importante ter presente as diversas caracterizaes dessa ordem, mesmo antes de se

    dar incio ao estudo de uma das suas componentes, o Direito Internacional, uma vez

    que existe umbilicalmente uma conexo entre uma e outra, de tal sorte que

    dependendo da forma como concebermos esta ordem teremos mais ou menos uma

    forma de ver o Direito Internacional. Isso, no entanto, no influi na autonomia do

    Direito Internacional face aos outros componentes dessa ordem internacional,

    claramente diferenciveis como podemos ver em seguida.

    1.4. Definio e conduo da poltica externa cabo-verdiana luz das vises

    sobre a ordem mundial

    Para finalizar esta discusso mais afeitas s relaes internacionais do que,

    efectivamente, ao Direito Internacional no sentido mais estrito, mas, em todo o caso,

    fundamental para qualquer interpretao minimamente adequada dessa realidade, faz-

    se necessrio discutir o problema da viso sobre a ordem internacional que foi recebida

    em Cabo Verde ou que, alternativamente, guiou ou resulta da poltica externa cabo-

    verdiana. F-lo-emos a dois tempos. Primeiro, analisando genericamente as

    disposies constitucionais relativamente s relaes internacionais, principalmente as

    directrizes estabelecidas pelo artigo 11 da Constituio, e, em seguida, por via de

    comentrios a respeito da conduo da poltica externa nacional.

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    Antes de mais, preciso que fique claro que a definio da poltica externa,

    apesar de tudo, raramente completamente livre. Mesmo os Estados mais poderosos

    tm que contar com determinadas condicionantes, designadamente de direito interno

    ou de cariz constitucional. Se assim , forosamente o micro-Estado, expresso que

    serve tambm para caracterizar o nosso, ter ainda maiores restries nesse quadro,

    designadamente as que resultam da sua pequenez e reduzida extenso territorial e,

    sobretudo, da deficiente presena de poder palpvel, particularmente do poder militar e

    econmico na esfera internacional. Evidentemente, isso sempre constrange a poltica

    externa de um Estado e dirige-a, pelo menos simbolicamente, a utilizar categorias

    idealistas para, paradoxalmente, proteger os seus interesses, aproximando-se das

    instituies internacionais, advogando o respeito escrupuloso pelo Direito

    Internacional e apelando justia e paz internacionais. Para mais, a dependncia,

    particularmente econmica, resulta em limitaes extensas na poltica externa que ele

    pode delinear em relao aos Estados que apoiam o seu desenvolvimento ou lhe

    prestam auxlio militar, nos ltimos tempos particularmente consubstanciado nos

    acordos de patrulhamento das zonas martimas sob soberania ou jurisdio de Cabo

    Verde.

    A diasporidade da nao tambm pode exercer uma influncia considervel

    sobre a formulao da nossa poltica externa, considerando que h que se manter

    relaes amigveis e de verdadeira proximidade com os Estados que acolhem os nossos

    imigrantes, ponderar sobre determinadas medidas internas com reflexo sobre essa

    comunidade emigrante, entre um conjunto de preocupaes que deve dirigir a

    formulao e conduo da nossa poltica externa.

    Finalmente, preciso considerar que o prprio Estado de Direito

    Democrtico, modalidade em que a comunidade poltica escolheu se organizar, que

    impe determinadas condicionantes de poltica externa que no devem ser olvidadas

    ou descuidadas. Neste sentido, qualquer Estado de Direito Democrtico, cuidando de

    entender o carcter das relaes internacionais, deve fazer, nos limites do possvel, o

    que estiver ao seu alcance para manter a coerncia entre o modelo poltico interno e a

    poltica externa que conduz. Por exemplo, no seria adequado um Estado de Direito

    Democrtico propugnar na esfera internacional por valores distintos daqueles que

    ostenta domesticamente, designadamente ligados defesa da democracia, dos direitos

    humanos e da justia entre os povos, nem emprestar o seu nome defesa de

    personalidades ou regime duvidosos como por vezes acaba por acontecer.

    Feitas estas consideraes urge dizer que do ponto de vista constitucional, Cabo

    Verde dos pases que consagra na sua Constituio um conjunto de princpios e

    directrizes em matria de poltica externa, limitando a partir de um prisma

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    genuinamente interno. A tentativa, na nossa opinio, nem sempre coerente, mas, em

    todo o caso, o importante a ressaltar pelo menos nesta fase que tal preocupao

    acabou por reflectir na Lei Magna da Repblica, mais precisamente no artigo 11,

    denominado sugestivamente de Relaes Internacionais.

    Se se analisar cuidadosamente o dispositivo, ver-se- com naturalidade que,

    efectivamente, ele reflecte um vis nitidamente idealista, estando presentes todas as

    grandes linhas dessa viso: a) ideal de aplicao da paz e justia nas relaes

    internacionais; b) auxlio s instituies internacionais; c) deferncia em relao ao

    Direito Internacional. Para alm disto, existem um conjunto de solues especficas

    dentro da estrutura constitucional que refora e operacionaliza, para alm da evocao

    de princpios gerais, esses valores norteadores. So claros exemplos o efeito directo

    garantido aos actos normativos das organizaes supra-nacionais de que Cabo Verde

    faa parte (12 (3)), a clusula de abertura a direitos consagrados em convenes

    internacionais, ou, ainda, a domesticao de tribunais internacionais criados por

    tratados que Cabo Verde faz parte. Num plano mais limitado tambm no deixa de ser

    parcialmente representativo, o regime de recepo facilitado reservado para as normas

    internacionais, a hierarquia digna dessas normas no ordenamento jurdico interno,

    entre outras solues que, com razo, alguns dizem manifestar uma amizade com o

    Direito Internacional por parte da Constituio da Repblica.

    Agora, disso no se pode depreender que esta seja contenha no seu bojo uma

    concepo diletante da esfera internacional, como se esta fosse plenamente pacfica,

    cooperativa e guiada pelas instituies internacionais e pelo Direito Internacional e

    jamais por interesses mesquinhos e particulares das entidades que dela fazem parte.

    Longe disso! Primeiro, porque o fenmeno blico pressuposto pela

    Constituio da Repblica. No sem sentido que se prev a declarao de guerra ou de

    estado de stio em situao de agresso externa ou ainda o servio militar obrigatrio;

    segundo, no concernente ao Direito Internacional facto que ocupa uma posio digna,

    mas, ainda assim, inferior Constituio da Repblica, portanto lei maior da

    comunidade poltica; terceiro, as relaes internacionais da Repblica so igualmente

    condicionadas pela necessidade de garantir a reciprocidade de vantagens, o que

    significa que elementos realistas no deixaram de fazer parte do pensamento do

    legislador constituinte no momento em que este elaborou ou reviu a Lei Fundamental

    da Repblica.

    Alis, acaso se entenda necessrio concluir o ponto, cremos que a concluso

    mais bvia seria de que a Constituio da Repblica, como a maioria delas, reflecte uma

    concepo eclctica das relaes internacionais com um vis predominantemente

    idealista, mas com elementos fortes de realismo. Em certa medida, trata-se de uma

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    necessidade bvia e incontornvel de se mesclar critrios fundacionais e estratgico-

    pragmticos na definio da poltica externa de qualquer Estado de Direito

    Democrtico.

    Por sua vez, do ponto de vista da conduo da poltica externa as coisas no tm

    sido to claras. A percepo geral que esta sempre teve altos e baixos, mas que se

    traduz numa das principais debilidades nacionais medida em que as relaes

    internacionais se tornam cada vez mais complexas e necessrio ponderar um

    conjunto de elementos conflituantes. A partir de uma perspectiva interna, o que se

    observa, muitas vezes, so iniciativas e execues muito pouco abonatrias e

    auspiciosas, particularmente quando se trata de negociar determinados acordos e

    parcerias mais exigentes que se afastam do quadro das relaes verticais de auxlio com

    organizaes internacionais e Estados soberanos. No raras vezes, a Repblica e os seus

    representante aparecem em relevantes actos internacionais de negociao sem

    directrizes, sem linhas vermelhas ou fixao de mbitos de concesso, a crena na boa

    f das contra-partes em cuidar tanto do interesse deles como do nosso, algo que, por

    motivos bvios, tem um potencial de causao de prejuzos que no nos pode deixar

    indiferentes. sinal para dizer que, por vezes, a nossa ingenuidade, por outras, o nosso

    excesso de morabeza so manifestaes claras, ainda que trgicas, de um certo

    idealismo na conduo da poltica externa.

    2. O Conceito de Direito Internacional Pblico

    Antes de se dar incio ao estudo de qualquer ramo das cincias jurdicas

    necessrio determinar o seu objecto de estudo. Ora, essa necessidade coloca o estudioso

    perante um dilema. que se, por um lado, a determinao do conceito de uma

    realidade que se quer apreender fundamental, por outro, no se pode esquecer que se

    trata de empreitada demasiado complicada para quem est a comear um percurso.

    Normalmente, o acto de estabelecimento de um conceito acessvel somente queles

    que conhecem vertical e horizontalmente toda a realidade que se pretende estudar. A

    determinao do conceito implica sempre numa aco de demarcao de fronteiras e

    fixar o que est dentro e o que est fora , e, de outra parte, na sintetizao em uma

    nica frase de uma realidade complexa, composta por diversas normas, sujeitos, fontes,

    institutos, etc. Por conseguinte, trata-se de um percurso cujos contornos somente se

    tornam acessveis queles que o caminham e que repetem, vezes sem conta, o mesmo

    trajecto. S depois disso que, eventualmente, ele pode vir a ser devidamente

    conhecido.

    De outra parte, preciso ter pelo menos um sentido do percurso, pois, caso

    contrrio, ficaramos parados, sem rumo. Sendo certo que um difcil dilema escolher

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    entre caminhar no sentido incorrecto e no caminhar, de outra parte, sempre

    importante seguir na direco certa. Por isso, mesmo sendo impossvel determinar o

    conceito de algo a priori, fundamental que se tenha um norte mnimo, uma imagem,

    por mais turva e nebulosa que seja, do caminho e da meta que se pretende atingir.

    Ora, neste contexto que se pode incluir a discusso a respeito do conceito de

    direito internacional pblico7. No se trata de um conceito de fcil determinao, mas

    necessrio fix-lo de alguma forma, quanto mais no seja para nos dar um norte para o

    qual seguir. Ser o que nos predispomos a fazer nesta apresentao inicial do tema.

    Elaborar uma noo precria de direito internacional pblico que, abandonando a

    pretenso de determinar um conceito, almeja apenas dar um sentido para se dar incio

    a um percurso com conscincia da posio do destino.

    F-lo-emos atravs da decomposio dos seus termos: Direito, Internacional

    e Pblico.

    2.1. Direito: conceito que tem recebido ao longo da histria diversos significados e

    gerado diversos entendimentos e a sensao de insatisfao. Sculos depois da sua

    existncia, ainda no se tem qualquer conceito sobre o que seja o direito 8. Ser que o

    direito tem que ser obrigatoriamente justo? Ser que ele se consegue justificar auto-

    poieticamente ou ser que o seu fundamento de validade sempre externo? Devemos

    adoptar uma base jusnaturalista ou positivista para o direito? Bem, respostas no so o

    mais importante neste momento, mas, fundamentalmente, enunciar o problema das

    divergncias doutrinrias sobre o conceito do direito.

    Relativamente ao conceito de direito internacional pblico os problemas so

    ainda mais complexos9. Como determinar o conceito de uma ordem jurdica que, pela

    sua prpria natureza descentralizada, tem relaes to prximas com outras ordens

    normativas como a poltica e a moral? Ser que ele apenas a verticalizao de

    princpios morais, a expresso da poltica internacional ou autnoma em relao a estes

    sistemas? Deveremos utilizar o justo como critrio do jurdico nessa esfera ou no? A

    7 Complementarmente, veja-se ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,8 Em geral, vide os textos representativos desta discusso compilados em Dennis Patterson (ed.), An

    Anthology of Philosophy of Law and Legal Theory, Malden, Mass/Oxford, Blackwell Publishing, 2003,com textos clssicos de, entre outros, Oliver Wendell Holmes, Karl Llewellyn, Ronald Dworkin, H.L.A.Hart, Lon Fuller, Jules Coleman, John Finnis, Richard Posner, Duncan Kennedy, Wesley Hohfeld, e emClarende Morris (org.), Os grandes filosfos do direito, Traduo de Reinaldo Guarany, So Paulo, MartinsFontes, 2002, com trechos representativos de autores como, inter alia, Aristteles, Ccero, Toms deAquino, Hobbes, Kant, Bentham, John Austin e Benjamim Cardozo; a aplicao dessas teorias aoraciocnio jurdico concreto foi alvo de duas obras fictcias de Lon Fuller, as quais tambm se recomenda aleitura, O caso dos exploradores de cavernas, Traduo de Ivo de Paula, So Paulo, LEUD, 2003, e em LonFuller; Dimitri Dimoulis, O caso dos denunciantes invejosos. Introduo prtica s relaes entre direito,moral e justia, 3. ed., So Paulo, Revista dos Tribunais, 2006 (com argumentao e votos criados por

    Fuller e por Dimoulis).9 Trata-se de questo que tem preocupado diversos internacionalistas, designadamente os principaismanuais do mundo anglfono, francfono e lusfono (v., por todos,

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    doutrina, naturalmente, to dspare quanto relativamente ao prprio conceito de

    direito. Jusnaturalismo, positivismo jurdico, realismo poltico, teorias crticas,

    degladiam-se para explicar o conceito de direito na ordem internacional. E das

    premissas fundacionais que adoptarmos, seguem-se as solues para determinar o

    direito aplicvel ao caso concreto em muitas das situaes que surgem na ordem

    internacional. Um exemplo, e mais prximo a um dos autores, o das intervenes

    humanitrias unilaterais. Poder ser considerada juridicamente correcto o uso da fora

    por um Estado contra outro, mesmo na ausncia de autorizao do Conselho de

    Segurana para proteger direitos humanos? Ser que a justia dos fins incorporada ao

    prprio direito, de tal sorte a reconfigurar o seu sentido ou dele mantm-se margem,

    existindo apenas no plano moral, pelo menos at ser admitida na esfera jurdica por

    deciso desta e de acordo com os seus pressupostos de admisso? Outro poderia ser da

    obrigao de auxlio. Deve um Estado abastado auxiliar congneres empobrecidos em

    perodos de catstrofe? Ser este um dever jurdico ou meramente moral?

    As relaes com a esfera do poltico no so menos complexas. Poder uma

    nao hegemnica alterar por si s o Direito Internacional atravs de umfiatpoltico?10

    Poder, por outro lado, esta mesma nao evitar a criao de uma norma a ela

    aplicvel, por via de uma recusa contnua da sua existncia?11 Ser que esta

    manifestaes de poder podero ser consideradas jurdicas ou meros actos arbitrrios,

    cujo nico fundamento de legitimidade esprio, neste caso se encontrar na fora?

    No existem respostas consensuais a estas questes.

    De toda a maneira, cremos ser possvel, de toda a polmica relativa ao conceito

    de Direito Internacional Pblico, concluir que a maioria das correntes concordaria que

    o direito um sistema de regras12. Se so, ou devem ser, conformes ao justo; se se

    legitimam a si prprias; se se dobram perante o fenmeno poder, so contas de outro

    rosrio. O facto que possvel de todas essas posies racionais, razoveis e

    igualmente fundamentadas conceituao do direito inferir uma sentido minimalista de

    que um Sistema de Normas.

    2.2. Por internacional literalmente dever-se- entender entre naes. Porm, a

    nomenclatura poder nos induzir em erro apesar de ter sido adoptada quase

    unanimemente em todos os idiomas: Droit International13, International Law14, Law

    10111213 Aproveita-se a oportunidade para referenciar os principais manuais em idioma francs que utilizam aexpresso no ttulo. Cf. Pierre-Marie Dupuy, Droit International Public, 4. ed., Paris, 1998; Nguyen Quoc

    Dihn,Droit International Public, 7. ed., L.G.D.J., 2002;14 Ver David Harris, Cases and Materials on International Law, 6. ed., London, Sweet & Maxwell, 2004;....

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    of Nations15, Diritto Internazionale16, Derecho Internacional17, pois as naes

    enquanto tais sequer possuem personalidade jurdica internacional18. No so elas que

    podem concluir tratados ou esto sujeitas a responsabilidade por actos ilcitos. Quando

    se faz referncia contempornea ao Direito Internacional pretender-se- entender

    entre Estados, muito embora provavelmente tal referncia seja um tanto redutora nos

    dias que correm, haja em vista a propalada personalidade jurdica de organizaes

    internacionais, de indivduos e de outras entidades na esfera internacional 19. Claro est

    que, do ponto de vista histrico, a assertiva francamente problemtica; na nossa

    opinio j existiram outros ordenamentos jurdicos internacionais anteriores ao nosso

    que no tinham o Estado no centro do sistema e, como tais, seriam condenadas a um

    estado pr-jurdico internacional, algo que cremos no corresponder verdade 20. Por

    conseguinte, fundamental que se consiga, ainda dentro dos limites preconizados, se

    estabelecer um conceito precrio de direito internacional pblico, um significado para o

    internacional. E a que nos parece mais aproximada da realidade entre comunidades

    polticas21.

    2.3. Por sua vez, o termo pblico poder ser enganador, pois no acrescenta qualquer

    elemento semntico ou cientfico expresso22. Na realidade todo o direito entre

    naes, Estados ou comunidades polticas necessariamente pblico. Provavelmente a

    ideia ter surgido como uma qualificao e um elemento diferenciador em relao ao

    direito internacional privado23. Mas, o problema que o direito internacional privado

    no direito internacional, mas direito interno com elementos internacionais, devendo

    com maior correco ser chamado de direito privado internacional do que direito

    internacional pblico. Mesmo que se diga existirem tratados que regulam questes

    jurdico-privadas, como leis uniformes e outras, na verdade estam fazem parte do

    direito internacional e so obviamente direito pblico apesar de tratarem de questes

    privadas (comerciais, famlia ou sucesses), tanto quanto uma norma constitucional

    que trata, por exemplo, da questo da propriedade ou da famlia continua a ser direito

    pblico.

    151617 Por exemplo, Oriol Casanovas y La Rosa, Casos y Materiales de Derecho Internacional Publico , 4. ed.,Madrid, Tecnos, 1990; Santiago Benavada, Derecho Internacional Publico, 8. ed., Santiago, LexisNexis,2004.18 Para aprofundamentos, ver Cap. III.1920 Cf. neste captulo ponto 3.21 Esta considerao partilhada por diversos internacionalistas, especialmente os que tm umapreocupao com a histria da disciplina.22 Com a mesma perspectiva, Franois Rigaux, Droit International Priv I: Thorie Gnerale, Bruxelles,Larcier, 1977, p. 91.23 Aprofundar em ..............................

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    13

    2.4. Seja como for, a partir desta sucinta anlise das partes que compem a expresso

    Direito Internacional Pblico possvel inferir o tal conceito provisrio: O sistema

    positivo de normas que tem por objecto regular as relaes entre comunidades polticas

    e outras entidades s quais elas reconhecem personalidade jurdica. Tal conceito ao

    mesmo tempo aberto e fechado. Por um lado, por motivos ligados de incluso temporal

    o conceito de comunidades polticas substitui o mais restrictivo Estado, por outro,

    garante-se-lhe centralidade no sistema internacional ao subordinar a existncia de

    outras entidades ao crivo de admissibilidade aos critrios que ele prprio estabelece.

    Veremos se tal conceito se confirma pela anlise dos contedos tpicos da parte geral do

    direito internacional.

    2.3. Enquanto processo de estabelecimento de fronteiras, uma empreitada de

    conceituao no se esgota numa dimenso positiva de dizer o que algo , mas tambm

    demarcar claramente aquilo que ele no . Por isso, urge distinguir o direito

    internacional de outros domnios jurdicos e extra-jurdicos que lhe so prximos.

    Comearemos por estes:

    2.3.1. Com domnios no-jurdicos, ressalta-se, principalmente, a necessidade de se

    distinguir o direito internacional da poltica internacional, da moral internacional e da

    cortesia internacional (comitas gentium).

    a) Distino entre Direito e Poltica Internacional. A poltica internacional24, como a

    poltica interna, cuida, no obstante as diversas naturezas que j lhe atriburam, do

    fenmeno poder. Ora, de um ponto de vista internacional, este fenmeno visto pelos

    actores internacionais como um factor essencial, para o qual necessrio

    estratgicamente sopesar vantagens e desvantagens de determinados actos e posies.

    Neste sentido, como abalizados estudos notaram classicamente, a poltica, ao seu

    modo, e de forma muito sui generis, assume caractersticas normativas. So as

    chamadas leis da poltica ou normas de prudncia25, que implicam na necessidade de

    serem seguidas determinadas directrizes e boas prticas a fim de concretizar os

    objectivos polticos de uma determinadas entidades nas suas relaes com as outras.

    Normalmente, qualquer actor internacional tentar maximizar o ser poder na

    ordem internacional, seja hardou soft, e fa-lo- promovendo os seus interesses a partir

    24 Recomenda-se a leitura do clssico da matria, Hans Joachim Morgenthau, Politics among Nations. TheStruggle for Power and Peace,passim,e Carl Schmitt, ;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;25 Conforme o mais influente realista internacionalista acentuou, o realismo poltico acredita que apoltica, tal como a sociedade em geral, governada por leis objectivas que tem as suas razes na naturezahumana (Hans Joachim Morgenthau,Politics among Nations. The Struggle for Power and Peace, p. 4).

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    de uma estratgia bem delineada de cooperao e conflito. Assim sendo, o

    unilateralismo marca a poltica, no sendo esta submetida a outras regras para alm

    das que ele prprio se coloca motivados por propsitos estratgicos. Neste sentido,

    diferencia-se do Direito Internacional, medida em que este um conjunto de normas

    que resultando do factor poder, tenta condicion-lo e control-lo de alguma forma,

    circunscrevendo a liberdade poltica de aco dos actores internacionais a partir de

    normas que produzem em conjunto.

    Com isto no se quer dizer, obviamente, que o Direito Internacional pretenda

    neutralizar ou neutralize efectivamente o factor poder. Longe disso, ele agasalhado

    em vrios institutos do direito internacional26; somente que dele se distingue medida

    que reduz a ordem internacional a normas jurdicas, garantindo, neste sentido,

    controlo e fiscalizao do fenmeno poder.

    b) Distino entre Direito Internacional e Moral Internacional. A moral, numa

    definio rasa, a arte do justo e do correcto. Por conseguinte, a moral internacional

    seria a arte do justo e do correcto na esfera internacional27. Est claro que existem

    claras dvidas sobre o que o justo e o correcto. Quanto a ns seguimos a moral de

    matriz deontolgica kantiana, de acordo com a qual a conduta correcta a que pode ser

    universalizvel28. dar ou esperar do outro o que ns prprios lhe d-mos ou

    concedemos. Evidentemente, tal orientao moral poder ser acusada de invivel por

    no levar em considerao as divergncias de fundamentao entre as vrias ordens

    civilizacionais que levaria universalizao de normas distintas. No conseguiremos

    resolver em absoluto este problema, apenas reiterar a concepo kantiano-universalista

    da moral internacional, por mais que sobre ela pesem crticas de eurocentrismo,

    subjectivismo e absolutismo moral29. A partir dela podemos inferir alguns princpios de

    justia na ordem internacional. Quando que podemos fazer a guerra contra outro

    Estado ou comunidade poltica? Quais so critrios que faro dela uma guerra justa? 30

    Quando que um Estado ou organizao internacional tm um dever de auxlio a

    calamidades naturais ou humanas em outros ou de cooperar num fundo de combate

    pobreza, a doenas infecto-contagiosas ou ao desemprego31. Seja como for, a moral

    26 Um exemplo claro desta realidade a influncia do factor poder no prprio processo de formao denormas na esfera internacional, designadamente de normas costumeiras internacionais (v. infra Cap. II, eMichael Byers, Custom, Power and the Power of Rules. International Relations and Customary

    International Law, Cambridge, Cambridge University Press, 1999).27 A respeito da aplicao da moral nas relaes internacionais, veja-se, por todos, Charles Beitz, PoliticalTheory and International Relations with a new afterword by the author, Princeton, Princeton UniversityPress, 1999 [orig. 1979] (geral, mas com forte nfase em questes econmicas);28 Citar primeira frmula do imperativo categrico,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,29 Algumas dessas crticas resultam de dentro do pensamento de matriz kantiana, designadamente por um

    dos mais famosos pensadores da actualidade, Jrgen Habermas, .........................30 Cf.;;;;;31 Pogge

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    internacional distingue-se do Direito Internacional, medida em que no se configura

    como um sistema de normas positivas, mas apenas princpios que reflectem a justia e

    a correco. Neste sentido, no s no so iguais, como tambm podem ocasionalmente

    entrar em conflito, particularmente porque os comandos normativos podero ser

    contrrios e incompatveis entre si32.

    c) Distino entre a Cortesia Internacional e o Direito Internacional Pblico. As

    normas de cortesia internacional ou igualmente chamadas de Comitas Gentium33,

    correspondem a um conjunto de prticas nas relaes internacionais que,

    curiosamente, so repetidas, mas que no tm qualquer reconhecimento jurdico.

    Similares s normas de trato social34, so resultado da cortesia de um sujeito de direito

    internacional em relao a outro, mas no podem ser invocadas em tribunal ou sujeit-

    lo a responsabilidade internacional. Cumpre-as se quiser ou quando quiser, estando, no

    entanto, sujeito reciprocidade de tratamento por parte dos seus congneres. Sendo

    assim, a distino com o direito internacional evidente, j que este no s recomenda,

    mas obriga a aco ou omisso, sob pena de configurao de acto ilcito e advenincia

    de responsabilidade. A prtica no s reiterada neste ltimo caso, como existe

    convico de que juridicamante obrigatria. Na verdade, essas distines no so

    absolutas. Por ora, no entanto, bastaria reter esta concepo.

    2.3.1. Com domnios jurdicos, essencial distinguir o direito internacional do direito

    comparado, do direito pblico externo, do direito comunitrio e do do direito

    internacional privado,

    a) Distino entre Direito Internacional e Direito Comunitrio35. O Direito

    Comunitrio36 j teve maiores conexes com o Direito Internacional. Na realidade,

    pode ser dito que durante muito tempo fez parte do Direito Internacional37, ainda que

    com reconhecidas especificidades, mas com a evoluo deste ramo do Direito,

    especialmente no mbito do processo de integrao europeia, algumas das

    caractersticas estruturais de ambas so claramente distintas. Actualmente, com tal

    32 Dar algum exemplo, ;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;;; int. Hum.33 Sobre esta questo ver ::::::::::::::::::::::::34 Ver, por exemplo, ::::::::::::::::35 Acompanhar esta discusso igualmente em Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional

    Pblico: Introduo, Fontes, Relevncia, Sujeitos, Domnio, Garantia, pp. 56-58 (entendendo no geralque o Direito comunitrio o ramo do direito com o qual o Direito Internacional tem mais afinidades).36 Genericamente, ver Miguel Gorjo- Henriques,Direito Comunitrio, 2.ed., Coimbra, Almedina, 2003.37 Ver Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Pblico: Introduo, Fontes, Relevncia,

    Sujeitos, Domnio, Garantia, p. 57.

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    evoluo o Direito Comunitrio, pelo menos o europeu38, rumo supra-nacionalidade

    deixou em larga medida de ser um direito internacional, ainda que constitucionalmente

    continue a usar instrumentos deste ramo do direito39, para se aproximar de um direito

    interno supra-nacional, acabando por manifestar caractersticas hbridas40,

    concomitantemente de direito internacional, mas igualmente, e, acima de tudo, de um

    direito pblico europeu, particularmente no que toca ao chamado Direito Comunitrio

    derivado41. Pode-se dizer, assim, que o grau de separao entre o Direito Comunitrio e

    o Direito Internacional depende no nvel de integrao regional que d origem ao

    primeiro. Quanto maior a verticalizao, maior a distncia.

    b) Distino entre o Direito Internacional e Direito Pblico Externo. Muitas vezes

    confunde-se o Direito Pblico Externo (ou com abrangncia menor o chamado Direito

    Constitucional Internacional42, o mais discutido) e o Direito Internacional. Todavia, as

    distines entre ambos so muito claras e relevam em ltima instncia, a diferena

    entre o internacional e o interno. O Direito Pblico Externo faz parte do direito interno

    no obstante as suas conexes internacionais. Na realidade, a rea do direito interno

    que regula as relaes internacionais e a poltica externa de um determinado Estado

    (designadamente da Repblica de Cabo Verde43) pronunciando-se, constitucional ou

    infra-constitucionalmente, sobre uma srie de questes: como deve decorrer o processo

    de vinculao a tratados, quais so as autoridades competentes para tal; quais so os

    princpios que devem orientar a poltica externa do Estado; qual posio do tratado

    ou do direito internacional geral face s outras fontes do direito interno; quem pode e

    em que circunstncias se pode declarar guerra a outro Estado; quando o Estado estar

    impedido de prestar cooperao judiciria em matria criminal a outro (limites

    relativos nacionalidade, pena aplicvel; s garantias processuais); em que

    circunstncias e atravs de que procedimentos o estatuto de refugiado poder ser

    concedido e a expulso de estrangeiros realizada; quais so os crimes contra a ordem

    internacional, como est organizada administrativamente a poltica externa do Estado,

    38 Sobre este ponto em especfico, Odete Maria de Oliveira, Unio Europeia. Processos de integrao emutao, Curitiba, Juru, 1999 (uma leitura externa, com as particularidades positivas e negativas queenseja), Louis le Hard de Beaulieu,L Union Europene. Introduction l tude de l ordre juridique et desinstitutions communautaires, Namur, Presses Universitaires de Namur, 1998 (representando ummomento mais atrasado do projecto de integrao) e Miguel Gorjo-Henriques, Direito Comunitrio,

    passim.39 Designadamente porque o regime jurdico primrio, foi e continua a ser processado atravs de actosjurdicos internacionais, essencialmente tratados, seja ao nvel da criao, como no da reviso (porexemplo, v. Miguel Gorjo- Henriques,Direito Comunitrio, pp. 221-234).40 Neste sentido, Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Pblico: Introduo, Fontes,

    Relevncia, Sujeitos, Domnio, Garantia, p. 5841 Seguir igualmente Miguel Gorjo- Henriques,Direito Comunitrio, pp. 234-252.42 Em especial, vide na doutrina lusfona, Celso de Albuquerque Mello, Direito Constitucional

    Internacional Uma Introduo, 2. ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2000.43 Em geral para o caso de Cabo Verde, remetemos ao nosso Jos Pina Delgado, ..................

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    17

    etc. Da ter, respectivamente, uma dimenso constitucional44 (Direito Constitucional

    Internacional), administrativa (Direito Administrativo Internacional45) e penal (Direito

    Penal Internacional46).

    Por conseguinte, todas elas so matrias que regulam a relao entre os Estados,

    porm, fazem-no a partir de uma perspectiva interna, do ponto de vista dos Estados

    unilateralmente e s a ele vinculando. Neste sentido, no que toca s partes do sistema

    jurdico que cada um ocupa, as distines so claras. J no assim no concernente

    disciplina do Direito Internacional, que regra geral, inclui aspectos do Direito Pblico

    Externo, principalmente de Direito Constitucional Internacional: a recepo das fontes

    do direito internacional nos ordenamentos jurdicos nacionais, posio hierrquica da

    norma jurdica internacional no direito domstico, processo de vinculao

    internacional do Estado (neste caso, do cabo-verdiano, por motivos evidentes)47.

    c) Distino entre o Direito Comparado e Direito Internacional. O Direito Comparado,

    por vezes leccionado como sistemas jurdicos comparados, no um ramo do direito

    com princpios, regras e institutos prprios. Na realidade, trata-se de uma disciplina

    acadmica destinada anlise paralela de ordenamentos jurdicos distintos48 e um

    mtodo de estudo49. Da a sua dimenso internacional. No entanto, f-lo comparando

    os seus ramos do direito interno sejam eles do direito pblico (Direito Pblico

    Comparado; Direito Constitucional Comparado; Direito Administrativo Comparado,

    etc.) ou do direito privado (Direito Civil Comparado; Direito Comercial Comparado;

    Direito Comparado do Trabalho, etc.), ou o que mais frequente, a famlias distintas do

    direito (Direito Romano-Germnico, Direito Comum Common Law , Direito

    Islmico, Direito Hindu, Direitos Africanos, etc.), o que, por vezes, se pode revelar

    ainda mais problemtico.

    d) Distino entre o Direito Internacional Privado e Direito Internacional Pblico50.

    Como j tivmos a ocasio de adiantar, as similitudes e potencial de causao de

    44 So neste contexto representativos os exemplos dos artigos 11 (.....) e 12 (.....), da Constituio daRepblica de Cabo Verde4546 Paradigmaticamente, ver, art. 4 CP/Cap. Crimes ...., Lei do Estrangeiro ...........47 Ver infra Cap. III.48 Todos os estudos reflectem esta perspectiva bvia, como comprova a leitura de diversos comparatistas(v. por todos, Eric Agostini, Direito Comparado, Trad. port. de Fernando Couto, Porto, Rs, s.d., p. 22,chamando-a de disciplina; ::::::::::::::::::::) e internacionalistas (cf. JBG, .....49 Ver o mesmo Eric Agostini,Direito Comparado, pp. 24-26.50 Seguir igualmente a discusso feita em Franois Rigaux, Droit International Priv I: Thrie Gnerale,Franois Rigaux,Droit International Priv I: Thorie gnrale, pp. 90-93; Lus de Lima Pinheiro, Direito

    Internacional Privado I: Introduo e Direito dos Conflitos; Parte Geral, Coimbra, Almedina, 2001, pp.254-269, bem como em Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Pblico: Introduo,

    Fontes, Relevncia, Sujeitos, Domnio, Garantia, 2. ed., Coimbra, Almedina, 2004, pp. 53-54;

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    confuso entre Direito Internacional Pblico e o Direito Internacional Privado51 so

    claramente sobredimensionados, muito embora compreensveis haja em vista que este

    tem igualmente fortes conexes internacionais como a sua prpria denominao

    explicita52. No so diferenas que se configuram no plano cientfico, pois como se

    sabe, o Direito Internacional Privado enquando disciplina jurdica possui fontes

    provenientes do Direito Internacional53, como do Direito Interno, mas essencialmente

    quando se analisa as fronteiras entre uma e outra como ramos diferentes do prprio

    direito e j no mais das cincias jurdicas. que, apesar das relaes prximas que se

    desemvolvem entre ambas54, ao nvel acima destacado, a rigor, o Direito Internacional

    Privado no Direito Internacional, antes direito interno, conforme reconhecem quase

    unanimemente publicistas55 e privatistas56. Consubstancia-se, de facto, e

    tradicionalmente num conjunto de regras destinado a solucionar conflitos de leis entre

    ordenamento jurdicos distintos que entram em contacto entre si em situao privada57,

    para evitar resultados conflitantes. Mais recentemente tem-se caracterizado igualmente

    51 A respeito deste ramo do direito, ver, por todos, Manuel Almeida Ribeiro, Introduo ao DireitoInternacional Privado, Coimbra, Almedina, 2000; Lus de Lima Pinheiro, Direito Internacional PrivadoI: Introduo e Direito dos Conflitos; Parte Geral,passim;52 Cf., e.g., Manuel Almeida Ribeiro, Introduo ao Direito Internacional Privado, p. 8: Quando umadeterminada situao jurdica contacta com mais que uma ordem jurdica, por interessar a mais de umEstado, estamos perante uma situao jurdica internacional.53 Conforme assevera Lus de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado I: Introduo e Direito dosConflitos; Parte Geral, p. 254, J sabemos que no se pode distinguir Direito Internacional Pblico deDireito Internacional Privado no plano das fontes. As fontes do Direito Internacional Pblico podemtambm ser fontes do Direito Internacional Privado.54 Recomenda-se, para maiores aprofundamentos, Lus de Lima Pinheiro,Direito Internacional Privado I:

    Introduo e Direito dos Conflitos; Parte Geral, pp. 254-269.55 Veja-se, por exemplo, Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Pblico: Introduo,

    Fontes, Relevncia, Sujeitos, Domnio, Garantia, p. 54 (destacando a unilateralidade e internalidade doDireito Internacional Privado).56 Isto est patente no grosso das definies de Direito Internacional Privado, que aps destacar o carcterjurdico internacional da matria por exemplo, a definio Manuel Almeida Ribeiro, Introduo aoDireito Internacional Privado, p. 8, supra-citada , reconhecem que, ao fim e ao cabo, o DireitoInternacional Privado um sistema que regula os conflitos de leis internas de ordenamentos jurdicos(Quando estamos perante um problema de determinao da lei aplicvel de entre vrias leis quecoexistem no tempo, mas que pertencem a ordens jurdicas distintas, dizemos que estamos perante umconflito de leis no espao. Os conflitos de leis no espao resolvem-se atravs de regras de DireitoInternacional Privado); com maior elaborao terica, ver, por ltimo, Franois Rigaux, Droit

    International Priv I: Thorie Gnerale, p. 92 (chamando-o de ramo do direito interno), e Lus de Lima

    Pinheiro,Direito Internacional Privado I: Introduo e Direito dos Conflitos; Parte Geral, passim, p. 23,identificando o carcter nacional do Direito Internacional Privado, concretamente de um DireitoInternacional Privado portugus, e clarifincando, de forma muito precisa, qual o entendimento que ointernacional deve suscitar nesse contextos (Por internacional quer-se significar a existncia decontactos relavantes com mais de um Estado soberano, com mais de uma sociedade politicamenteorganizada em Estado soberano. Este conceito de internacional no se confunde com o conceito derelao internacional para o Direito Internacional Pblico (...), da ele prprio propor alteraesconceptuais neste quadro, ainda que sejam em certa medida discutveis (O recurso ao adjectivotransnacional permite evitar esta ambiguidade da palavra internacional) (p. 24) e concluir que assituaes transnacionais carecidas de regulao jurdica so em regra apreciadas segundo o DireitoInternacional Privado de uma ordem jurdica estadual (p. 25).57 J no estamos seguros do afastamento do carcter privado desse ramo do direito, como defende opublicta da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Jorge Bacelar Gouveia, Manual de

    Direito Internacional Pblico: Introduo, Fontes, Relevncia, Sujeitos, Domnio, Garantia, p. 54(dizendo que o Direito Internacional no (...) privado, porque procede escolha de uma legislao

    aplicvel, convocando diversos sistemas normativos estaduais, atravs de uma determinao imposta porfontes do Direito Pblico, a comear pela Constituio, no propriamente por vontade das partesenvolvidas no plano internacional).

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    por uma tentativa de harmonizao e, por vezes, de unificao de regras aplicveis a

    questes privadas. Seja como for, de modo algum poder ser considerado diferente do

    Direito Internacional, pois, mesmo os tratados que corporificam essa tentativa de

    harmonizao e unificao fazem parte das normas secundrias do direito

    internacional pblico e so, portanto, direito pblico.

    O verdadeiro Direito Internacional Privado corresponderia ao conjunto de

    normas de Direito Internacional que tm por objecto a regulao de matria privada,

    mas isto, como foi dito, no deixa de ser Direito Internacional, como no deixa de ser

    Direito Internacional, o Direito Internacional Penal, o Direito Internacional

    Administrativo ou o Direito Internacional do Trabalho, entre vrias partes que o

    compem.

    No nos parece ser decisivo igualmente que se traga colao uma eventual

    personalidade internacional do indivduo, designadamente o seu acesso a jurisdies

    internacionais como sugerindo o carcter verdadeiramente internacional do Direito

    Internacional Privado58. que singelamente dito, o indivduos nestas condies

    encontra-se ficcionalmente corporizando ente pblico, est numa relao caracterizada

    pelo jus imperii de um Estado ou organizao internacional o mais comum e,

    ademais, possui-a de forma muito reflexiva e indirecta, no quadro de uma permisso do

    Estado.

    Para bem do rigor, alis, haveria que se pensar em altera o nome de Direito

    Internacional Privado para Direito Privado Internacional, como, alis, j se utilizou ao

    longo da histria da disciplina por parte da doutrina59 e tem sido por vezes indicado por

    estudiosos da matria60.

    2. Evoluo do Direito Internacional

    Evidentemente um curso introdutrio parte geral do Direito Internacional no

    o local mais adequado para serem feitas longas consideraes sobre a evoluo desse

    58 Ver Lus de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado I: Introduo e Direito dos Conflitos; ParteGeral, p. 71, que apesar de dizer que indiscutvel que as situaes transnacionais relevam na ordemjurdica internacional quando os particulares sujeitos dessas relaes tm acesso a jurisdicesinternacionais, no deixa de lhe resevar um espao no seio do Direito Internacional e no no dito DireitoInternacional Privado.59 Alis, aparentemente, a expresso foi utilizada pela primeira vez no Sculo XIX pelo jurista norte-americano Joseph Story em 1834 (v. Manuel Almeida Ribeiro, Introduo ao Direito Internacional

    Privado, p. 10), mas ter ocorrido um problema de traduo com a sua transposio para as lnguaslatinas, pois traduzida por Direito Internacional Privado ao invs de Direito Privado Internacional, o maisadequado para International Private Law. Alis, dentro da tradio lusfona, conta Manuel AlmeidaRibeiro, Introduo ao Direito Internacional Privado, p. 10, que A.L. Magalhes Pedroza utilizou aexpresso Direito Privado Internacional nas suas lices de 1878.60 Ver tambm Franois Rigaux, Droit International Priv I: Thorie Gnerale, p. 93, salientando, sem a

    criticar integralmente e nem se pronunciar como ns em relao ordem dos termos da expresso, queno h nenhuma parte que acentua o carcter eminentemente estadual e interno do Direito InternacionalPrivado.

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    ramo do direito internacional61. No obstante, de outra parte, no seria muito judicioso

    deixar-se de fazer referncia aos aspectos histricos desta matria, sob pena de se

    retirar um elemento crucial para o seu bom entendimento. Sendo coerentes com a ideia

    de que para existir internacional no necessrio existir Estado na acepo mais estrita

    da palavra, mas comunidades polticas independentes, com qualquer configurao

    (tribo, cl, imprio ou uma cidade-Estado)62, a sua insero num sistema internacional

    (isto , num conjunto de congneres que com ele tm relaes, por vezes de cooperao,

    por vezes de conflito) e que essas interaces estejam submetidas a regulao jurdica63,

    comearemos a nossa narrativa pelas pocas mais remotas da antiguidade.

    que, na nossa opinio o Direito Internacional existe desde as mais priscas

    eras, pois praticamente desde os estgios iniciais de existncia da humanidade

    comunidades polticas independentes tm relaes entre si, submetendo-as a regulao

    jurdica. Ora, sobre esta matria pode-se destacar algumas fases mais marcantes e que

    assim podem ser divididas: a) fase pr-estatal; b) fase estatal; e c) fase ps-estatal.

    1. 1. Fase Pr-Estatal

    61 Estudos de excelente qualidade integralmente dedicados histria do direito internacional tm vindo alume. Por todos, cf. Arthur Nussbaum, A Concise History of the Law of Nations, New York, MacMillan,1950; Georg Stadmller, Histria del Derecho Internacional Pblico. Hasta el Congreso de Viena

    [Geschichte des Vlkerrechts. Bis zum Wiener Kongress], trad. castelhana de A. Truyol y Serra, Madrid,Aguillar, 1971; Karl Heinz Ziegler, Vlkerechtsgeschichte:Ein Studienbuch, Mnchen, Beck, 1994; AntonioTruyol y Serra,Histoire du droit international public, Paris, Economica, 1995; Wilhem Grewe, The Epochsof International Law, Traduo de Michael Byers, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 2000; DominiqueGaurier, Histoire du Droit International: auteurs, doctrine et developments de lantiquit laube du

    periode contemporaine, Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2005; Marie-Hlne Renaut, Histoiredu droit international public, Paris, Ellipses, 2007.62 Neste mesmo sentido, cf. Baro Korff, Introduction a lHistoire du Droit International Public, Recueildes Cours de LAcadmie de Droit International, t. 1, 1923. p. 6, conhecido historiador do direitointernacional do incio do sculo XX: ao mesmo tempo que se desenvolve um centro de cultura de umcerto nvel de civilizao, um Estado de qualquer importncia, aparecem simultaneamente relaes com omundo exterior, que tomam a forma de todo um sistema de instituies 63 No essencial, esta ideia j vem sendo esposada consistente por vrios historiadores e tericos do DireitoInternacional Pblico, designadamente Wilhelm Grewe, The Epochs of International Law, p. 7 (Noexiste qualquer razo compeling para se inferir uma ideia da ordem jurdica internacional a partir de umadas suas manifestaes temporalmente limitadas. A questo de saber se um Direito das Naes existiu na

    Antiguidade e na Idade Mdia s pode ser razoavelmente respondida afastando-se do arrazoamentoconvencional e das categorias do Direito Internacional Moderno e considerando as caractersticasestruturais de uma ordem jurdica internacional como sendo um critrio essencial de examinao. Emsuma, somente se pode considerar que existe uma ordem jurdica internacional se existe uma pluralidadede corpos polticos relativamente independentes (embora no necessariamente iguais) que esto ligadosentre si por relaes polticas, econmicas e culturais e que no esto submetidos a qualquer autoridadecom poderes legislativos e executivos abrangentes. Nas suas relaes, esses corpos polticos devemobservar normas que so consideradas vinculativas com base numa conscincia jurdica fundada emvalores comuns religiosos, culturais e outros), e Randall Lesaffer, International Law and Its History: TheStory of an Unrequited Love In: Matthew Craven; Malgosia Fitzmaurice & Maria Vogiatzi (eds.), Time,

    History, and International Law, Leiden/Boston, Martinus Nijhoff, 2007, pp. 27-41 (O debate sobre asorigens do moderno Direito Europeu das Naes no o debate adequado sobre a Histria do DireitoInternacional e o seu resultado no pode determinar o objecto do tpico. Direito Internacional comoconceito histrico deve ser definido como o direito que regula as relaes entre comunidades polticas queno reconhecem uma autoridade maior. (...). Enquanto tal o Direito Internacional de todos os tempos e

    lugares e merece ser alvo de inquiry histrico, independentemente das suas relaes com o modernoDireito das Naes e com o Direito Internacional Contemporneo) (p. 32).

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    Pode-se considerar que a fase pr-estatal do Direito Internacional a mais

    antiga de um ponto de vista histrico. Na realidade ela existe somente para efeitos

    didcticos e para marcar negativamente neste caso, a fase anterior ao surgimento do

    actor internacional que marcou de forma mais efectiva o sistema internacional e a sua

    regulao jurdica: o Estado. Assim sendo, na verdade, o que une essa fase pr-estatal

    precisamente o facto de ter surgido antes do sistema internacional baseado em Estados

    criado na Europa na aurora da modernidade. O resto dos aspectos marcam-se por uma

    grande diversidade que quase torna dispicinda, salvo o ponto j recortado, a prpria

    existncia dessa fase anterior ao sistema de Estados. Da podermos dividi-la em vrios

    momentos e mesmo assim somente os aspectos mais relevantes e conhecidos.

    1.1.1. O Direito Internacional nos estgios originrios de existncia da

    humanidade

    A maioria dos internacionalistas provavelmente acharia estranha a ideia de um

    direito internacional nos estgios originrios da humanidade, particularmente entre

    sujeitos to improvveis quanto tribos e outras organizaes socialmente to pouco

    complexas. Mas, o facto que se aplicarmos os critrios acima apontados, sistemas

    jurdicos internacionais tiveram existncia nesse perodo. Primeiro, tais organizaes

    sociais constituam verdadeiras comunidades polticas, com um modelo prprio de

    organizao do poder, instituies prprias e com nveis de solidariedade suficientes

    para garantir a coeso interna do grupo; segundo, por contingncias geogrficas e

    econmicas a formao de sistemas internacionais seriam inevitveis, pois a

    necessidade impeliria agrupamentos congneres a conviver no mesmo espao

    geogrfico cooperao. E foi o que realmente aconteceu com grupos humanos em

    diversas regies do globo, resultanto da uma regulao ainda limitada e pouco

    rebuscada, mas ainda assim representativa das principais reas objecto das relaes

    entre os povos nos perodos originrios de existncia da humanidade: o comrcio, cujo

    exemplo mais relevante, era o comrcio mudo de que se tem notcia em diversas partes

    do Mundo64 e a regulao da guerra, particularmente dos motivos que lhe podiam dar

    64 Veja-se a este respeito o relato de John Gilissen, Uma introduo histrica ao direito, p. 44: Nocomrcio mudo, o grupo depe num dado lugar, em que sabe que outro grupo passar, os bens que desejatrocar, e depois abandona o lugar; o outro grupo examina o que lhe oferecido, pe outras mercadorias aolado, e depois retira-se; o primeiro grupo volta, examina a mercadoria oferecida em contrapartida e, ou aleva e a operao de troca est terminada ou a deixa como estava; neste caso, o outro grupo volta e, ouleva o que tinha oferecido e todo o processo est terminado ou ento oferece ou coisa, e assimsucessivamente. Opotlach, conhecido sobretudo dos ndios da Amrica, mas tambm dos Berberes, e sobo nome de Kula entre os Polinsios, a ddiva pblica e ostentatria de bens, de riquezas, ou at deescravos, por um grupo a outro. uma espcie de desafio, porque o outro no pode recusar; ele deve reagiraceitando, e entregando ao primeiro grupo bens de valor pelo menos igual. A operao est assim

    impregnada de um certo misticismo, ligando as coisas aos homens e, ao mesmo tempo, de uma certaostentao de poder sem obrigar ao combate. Opotlach, uma vez dessacralizado, parece estar na origem derelaes econmicas mais vastas

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    origem e garantir causa justa e proteco divina. Como todo o direito desse perodo

    caracteriza-se pela indeferenciao entre a moral (de ndole religiosa) e o direito, pela

    reduzida abrangncia material e pela predominncia do costume como fonte do direito,

    neste caso internacional65. Neste sentido, poder at ser considerado um sistema

    jurdico pouco complexo se o compararmos ao actual, mas disso no decorrer

    necessariamente bices sua existncia, como, alis, o prprio Tribunal Internacional

    de Justia j se pronunciou66.

    1.1.2. O Direito Internacional entre as Grandes Civilizaes do Oriente

    Mdio

    Desenvolvimentos assinalveis ocorreram no Mdio Oriente, regio do mundo,

    bero da humanidade e que atravs da descoberta da escrita e a promoo da

    urbanizao deu origem a um novo estgio de desenvolvimento da humanidade com

    reflexos claros sobre as instituies e o direito. No foi diferente com o Direito

    Internacional do perodo. Apesar dos desafios, em se tratando de uma etapa das

    relaes internacionais to marcada por guerras, imprios e conquistas, o facto que os

    requisitos essenciais para a existncia de um sistema jurdico internacional tambm

    estiveram presentes nessa regio do Globo: a) existncia de comunidades polticas

    independentes, muito embora fosse comum o estabelecimento de relaes tuteladas

    pelo direito entre Estados suseranos e Estados vassalos; b) indubitavelmente

    existiram diversos sistemas internacionais67, desde logo inicialmente entre as cidades-

    Estado da Sumria; entre os imprios do perodo Babilnia, Egipto, Assria e Prsia,

    Hitita entre si e com outros Estados vizinhos, designadamente com os Estados judeus

    (Israel e Jud) e inclusivamente com Estados europeus, de origem grega ou da Grcia;

    65 No essencial, veja-se igualmente este trecho de David Bederman, Religion and the Sources ofInternational Law in Antiquity In: Mark Janis & Carolyn Evans (eds.), Religion and International Law,Leiden/Boston, Martinus Nijhoff, 1999, p. 1: Um nmero de caractersticas foi atribudo aos sistemas

    jurdicos primitivos. Algumas delas descrevem o contedo da doutrina jurdica primitiva, nomeadamente aausncia de certeza e segurana de expectativas, a abrangncia limitada das normas, e o uso da retaliao(ao invs de sanes sociais) como elemento decisivo da execuo. Outros caracterizam o que se podechamar elementos processuais do direito primitivo. Fices jurdicas, que transformavam doutrinasatravs da alterao subtil dos seus pressupostos conforme as exigncias sociais, competed com oformalismo que exaltava a forma (a integridade do ritual) sobre a substncia (a adaptabilidade das regras).Alm disso, as prprias fontes da obrigao jurdica podem ser chamadas primitivas. Dois fenmenosforam observados neste particular. Primeiro, existe a importncia do costume em determinar o contedodas normas (); [segundo], a influncia pervasive da religio sobre o direito.66Case Concerning the Right of Passage over Indian Territory, Portugal v. Ind ia, Merits, Judgment of 12April 1960 In: I.C.J Reports International Court of Justice Reports of Judgments, Advisory Opinionsand Orders, The Hague, International Court of Justice, 1960, pp. 6-46, esp. p. 37 It is sufficient to statethat the validity of a treaty concluded as long ago as the last quarter of the eighteenth century, in theconditions then prevailing in the Indian Peninsula, should not be judged upon the basis of practices andprocedures which have since developed only gradually, que, para alm disto, um exemplo marcante da

    importncia do conhecimento da histria pelo internacionalista, mesmo aquele que tenha um vies maisprtico.67 No geral, cf. com a mesma tese, Antonio Truyol y Serra, Histoire du droit international public, p. 6.

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    c) Essas relaes, em mltiplas dimenses, estavam submetidas ao Direito

    Internacional.

    Efectivamente, a crescente sedentarizao e urbanizao no Mdio Oriente, deu

    origem formao de civilizaes humanas cada vez mais desenvolvidas e complexas.

    Apesar das guerras endmicas e das tentativas expansionistas da maioria das

    comunidades polticas, no s as relaes de cooperao, nomeadamente comerciais 68-69, encontravam-se reguladas, como tambm mesmo a guerra, paradoxalmente, estava

    limitada pelo direito criado por esses povos e garantido pelos Deuses70.

    Ocorre igualmente um alargamento material e formal do direito. Neste ltimo

    caso, as fontes do direito internacional so expandidas para incluir tratados ao invs de

    se limitarem ao costume. Surgem os primeiros tratados desde o perodo mais antigo da

    Sumria e a sua complexidade e densidade vai aumentando com o tempo e atingem o

    seu auge com os tratados concludos por potncias iguais, como o famoso tratado entre

    Ramss II do Egipto e Hattusil I, rei dos Hititas71. Por outro lado, d-se igualmente a

    expanso material do Direito Internacional na antiguidade, designadamente passando

    68 Vide, por exemplo, para o caso do Egpto, ainda assim durante muito tempo, o mais isolado dos Estados,Francis Rey, Relations internationales de L Egypte Ancienne du 15me au 13eme Secle Avant Jsus -Christ, Revue Gnrale de Droit International Public, (referncias indisponveis no texto, encontrar naBFDL), pp. 35-52, destacando que por terra ou pelo mar, o Egpto estava em contactos constantes com aMesopotamia, a Sria, a Fencia, o Chipre, Creta e a Grcia continental e insular. Disso resultava umagrande corrente comercial () (pp. 36-37); a regio da Mesopotmia, por maioria de razo, no eradiferente, conforme atestam vrios especialistas do perodo, como Russ VerSteeg, Early MesopotamiamComercial Law, University of Toledo Law Review, v. 30, n., 1998-1999, pp. 183-214, especialmente pp.188-193, mostrando que os parceiros comerciais das naes da Mesopotmia estendiam-se doMediterrneo ndia (ocasionalmente), e as transaes envolviam uma pluralidade de produtos, e a regiode Israel tambm no, conforme comprova e.g., Prosper Weil, Le judasme et ... dveloppement du droitinternational, Recueil des Cours de lAcadmie de Droit International, t. 151, n. 3, 1976, pp. 280-281(discutindo as relaes comerciais reguladas por acordos internacioanais entre Israel e o Rei de Tiro, cujoobjecto era o envio de produtos agrcolas por aquele e de madeira por este).69 Para alm do comrcio, essas relaes internacionais de cooperao eram marcadas pela prestao deassistncia tcnica. O exemplo de Prosper Weil, Le judasme et dveloppement du droit international,

    Recueil des Cours de lAcadmie de Droit International, t. 151, n. 3, 1976, pp. 280-281, de alguns tratados,que implicavam no envio de tcnicos de construo civil especializados e que foram utilizados por Salomona edificao do Templo de Jeruslem, ilustrativo. Dali ser muito justamente considerado um excelenteexemplo de assistncia tcnica internacional (v. Ibid., p. 281)70 Por todos, cf. David Bederman, International Law in Antiquity, Cambridge, UK, Cambridge UniversityPress, 2001, pp. 21-31, sustentando a tese de que existiram Estados conscientes do seu prprio estatuto e

    da sua soberania, conduzindo as suas relaes internacionais de modo previsvel que enfatizavam anecessidade de relaes diplomticas, a santidade dos acordos, e controlos ao incio e conduta da guerra(p. 21), e Olga Boutkevitch, O Direito Internacional do Mundo Antigo (em ucraniano), 2005, 864 p. (comrecenso feita por Anatoli Kovler, Journal of the History of International Law, v. 7, 2005, pp. 107-112; oartigo History of Ancient International Law: Challenges and Prospects, pp...., provalmente uma versocondensada de algumas questes trabalhadas no livro), Pter Kvacs, Relativities in Unilateralism andBilateralism of the International Law of Antiquity, Journal of the History of International Law, v. 6,2004, pp. 173-186, especialmente p. 174 (O Direito Internacional existiu por milhares de anos);Dominique Garnier, Histoire du Droit International: auteurs, doctrine et developments de lantiquit laube du periode contemporaine, pp. 39-49. Foram encontrados, alis, vrios desses tratados,nomeadamente os que os Hititas concluram (v. Gary Beckman, Hitite Diplomatic Texts, passim), bemcomo, por exemplo, aqueles que os Egpcios (.. ) e os assrios (..) tomaram parte.71 Para maiores desenvolvimentos, vejam-se as contribuies de Donald Magnetti, The Function of theOath in the Ancient Near Eastern International Treaty, American Journal of International Law, v. 82,1978, pp. 815-829; Karl-Heinz Ziegler, Conclusion and Publication of International Treaties in Antiquity,

    Israel Law Review, v. 29, 1995, pp. 233-249; David Bederman,InternationalLaw in Antiquity, pp. 61-65;Amnon Altman, The Role of the Historical Prologue in the Hittite Vassal Treaties: An Early Experimentin Securing Treaty Compliance,Journal of the History of International Law, v. 6, 2004, pp. 43-64.

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    a incluir, alm dos j existentes comrcio e guerra, a cooperao judiciria em matria

    penal como a extradio (essencialmente por delitos polticos) ou o asilo. Algumas das

    caractersticas desse ordenamento jurdico-internacional so: influncia da religio,

    expanso material do direito e dos actores internacionais e consequentemente dos

    sujeitos do direito internacional.

    1.1.3. O Direito Internacional entre as Cidades da Grcia Antiga

    Seria, primeira vista, despiciendo discutir a existncia de comunidades

    polticas independentes e de um sistema internacional na Antiga Grcia. No o ser, no

    entanto. que a configurao interna das comunidades polticas da Antiga Grcia, em

    cidades-Estado independentes poder colocar dvidas sobre a sua real independncia,

    pressuposto bsico para a existncia de um Direito Internacional. No entanto, qualquer

    anlise minimamente sria das experincias institucionais, levaria a considerar a

    independncia pelo menos formal das cidades gregas, no s das cidades hegemnicas,

    Esparta e Atenas, mas igualmente das outras72. As pequenas cidades da Antiga Grcia

    no eram menos dependentes da maior parte dos Estados soberanos de hoje em relao

    a potncias globais ou regionais. Consequentemente, no seria difcil estender essas

    consideraes para a existncia de um sistema internacional entre as cidades gregas e,

    por maioria de razo, suas relaes com comunidades polticas no-gregas.

    Curiosamente, mesmo nestes casos existiria um pequeno obstculo: o princpio grego,

    mas tambm adoptado por outros povos, designadamente pelos prprios persas, da sua

    superioridade sobre os demais, algo quase incompatvel com a existncia do Direito

    Internacional. Sinteticamente deve-se dizer que, no obstante esses pontos de partida,

    as relaes juridicamente reguladas pelo direito existiram nesses casos73. Esse

    pressuposto teve, evidentemente as suas implicaes, o Direito Internacional pan-

    helnico era muito mais desenvolvido do que aquele que regulava as relaes com

    outros povos brbaros.

    Relativamente a esta questo, deve-se dizer que, por motivos bvios, d-se a

    expanso material desse ramo do direito. Surgem novas instituies jurdico-

    internacionais ligadas ao direito diplomtico, ao direito de guerra e do comrcio

    72 David Bederman,International Law in Antiquity, p. 32, denomina-o de paradoxo singular das relaesgregas. Fortes sentimentos de lealdade face prpria polis conflituavam com uma identificao relativa superioridade da cultura grega e a inferioridade de outros povos.73 Na realidade, sustentam alguns, talvez com algum exagero, que o particularismo grego cingia-se aosescritos de filsofos polticos como Aristteles e Plato, ou a uma ideologia especfica da cidade de Atenasque pretendia evitar alianas entre as suas inimigas tradicionais de Esparta e Tebas com o Imprio Persacomo veio efectivamente a acontecer, no reflectindo, portanto, um sentimento helnico generalizado (v.David Bederman,International Law in Antiquity, p. 37. Era imperioso para Atenas prevenir a construo

    de alianas dentro da comunidade helnica, e a retrica particularista foi criada precipuamente como uminstrumento de propaganda contra a inevitvel aliana que seria forma por Esparta, as suas aliadas, e aPrsia contra Atenas, e que levou ao incio da Guerra do Peloponeso em 431 A.C).

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    internacional, direito internacional privado, tratados, mecanismos de soluo de

    controvrsias, etc74, muito embora, como dito, o seu desenvolvimento tenha sido

    prejudicado pelo facto de qualquer dessas civilizaes tomarem como ponto de partida

    a sua superioridade intrnseca sobre as outras, inviabilizando a expanso horizontal e

    vertical do sistema jurdico-internacional e limitando a determinadas questes bsicas

    necessrias a operacionalizar as relaes inevitveis entre os povos.

    1.1.4. O Direito Internacional no Perodo Romano

    A contribuio romana, curiosamente d-se essencialmente no direito pblico

    externo, ao invs da rea do Direito Internacional stricto senso. No que os romanos

    no constitussem comunidades polticas ou no estivessem inseridos em sistemas

    internacionais, mas porque o seu senso de auto-restrio por via do direito, implicava

    claramente na limitao jurdica domstica da sua conduta internacional e das suas

    relaes com o comunidades polticas e indivduos estrangeiros.

    Os mecanismos internos para a declarao de guerra, o sistema de tratados

    desenvolvidos para a sua unio com Estados aliados ou dependentes e o direito do

    estrangeiro (jus gentium) foram os maiores reflexos disso. Assim, a concepo da

    guerra justa encontra a sua base no direito fecial romano. Antes da declarao de

    guerra o colgio de sacerdotes com esse nome cuidava de comprovar a existncia de

    justia na causa romano, permitindo, ademais, que, antes da guerra, o povo que havia

    causado qualquer dano ou injuriado Roma, tivesse a oportunidade de se redimir,

    pagando uma indemnizao ou entregando um suspeito para ser julgado em Roma75.

    1.1.5. O Direito Internacional no Perodo Medieval

    Como se sabe, o Imprio Romano entrou em decadncia e gradualmente em

    colapso com invases permanentes de povos germnicos do Norte. O curioso que

    durante algum tempo, estes formalmente se encontravam submetidos ao Imprio

    (como povos aliados) e, mais importantemente, foram aculturados com base nas

    instituies e valores romanos. Da no ter sido estranho que o ideal do Imprio

    Romano sempre tenha permanecido presente no iderio medieval. Alm do mais, trata-

    se de perodo marcado essencialmente pelo cristianismo, particularmente quando este

    passou a ter expresso institucional interna e internacional. Tanto no perodo

    merovngio, como no carolngio, embora de modos completamente distintos, d-se a

    unio entre o cristianismo e poder franco, culminando, em 800, com o reconhecimento

    74 Em geral, vide George Tndikes, Droit International et Communauts Fdrales dans la Grce desCits (V-III Sicles avant J.C), passim, e David Bederman,International Law in Antiquity,passim, para

    um interpretao mais recente.75 A respeito do processo de declarao de guerra, alm das fontes clssicas, recomenda-se o resumo feitopor David Bederman,International Law in Antiquity, pp. 231-233.

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    do Papa como factor de legitimao do poder. Desde aquela altura ele passa a ter um

    papel importante, na restrio dos efeitos da guerra, designadamente como rbitro76 e

    (quase) legislador universal77. Neste sentido, vai ser importante a criao da Respublica

    Christiana, onde ele vai partilhar o poder com o Imperador da Cristandade. Existem

    dvidas a respeito da eficcia desse sistema em razo da independncia de facto de

    vrias comunidades polticas face ao Sacro Imprio Romano Germnico, ao facto do

    Papa ter passado a ser respeitado somente na qualidade de governante secular com

    domnio sobre um territrio prprio e da resistncia de respeitar algumas das suas

    decises. Seja como for, este direito internacional formalmente hierrquico, mas

    composto por comunidades

    polticas independentes de facto, era a caracterstica principal do Direito Internacional

    Medieval e funcionavam, pelo menos simbolicamente, at ao perodo de decadncia, a

    partir do Sculo XIII, de forma adequada. Foi esta a principal caracterstica do sistema

    jurdico-internacional medieval: uma estrutura piramidal, com o Papa e o imperador

    cabea, mas paradoxalmente constituda por vrias comunidades polticas

    independentes.

    1. 2. Fase Estatal (1648-1919)

    neste ponto que as principais mudanas vo ocorrer. A estrutura formalmente

    hierrquica, mas j paritria de facto, na maior parte das relaes, vai sendo

    paulatinamente alterada pelo o reconhecimento da independncia e igualdade dos

    Estados. A emergncia da fase estatal do direito internacional est intimamente

    relacionada desintegrao da unidade da cristandade pelo advento da reforma

    protestante. Com efeito, desde que Martinho Lutero promoveu o cisma em relao

    Igreja de Roma e vrios prncipes germnicos converteram-se ao protestantismo, a

    Europa vai dividir-se em dois campos opostos, e com o avanar dos tempos em vrios

    outros, com o surgimento de diversas correntes protestantes. Sero essas guerras

    76 Cf: MULLER, J. LOuevre de Toutes le Confessions Chrttienes (glises) pour la Paix Internationale.Recueil des Cours de LAcadmie de Droit International, t. 31, n. 1, 1930. p. 335-350; complementarmenteGeorg Stadtmller, Histria del Derecho Internacional Pblico, p. 79-80, mostrando que a arbitragem,principalmente a papal, teve um papel central na soluo internacional de conflitos, tendo sido utilizadacom grande intensidade e com ndices de eficcia notveis. O curioso que no se tratava de meromecanismo disposio das partes. Era verdadeiramente imposta aos querelantes pela autoridade doSumo Pontfice.77 Em especial sobre esta questo, vide Ludwig Quidde, Histoire de la paix publique en Allemagne auMoyen Age, Recueil des Cours de LAcadmie de Droit International, t...., n. 3, 1929, pp. 475-482, que,com base na experincia francesa, a sua expanso pela Europa, especialmente na Alemanha, e a suaadopo oficial pela Igreja, foi prctica aceite por duzentos anos a interdio de combate em dias sob pena

    de excomungo : entre a noite de mercredi e o nascer do Sl de Segunda, justificando-se pelo facto deCristo ter ascendido o Cu na jeudi, pela sua Paixo na Sexta, pelo seu sepultamento no Sbado e por oDomingo ser um dia especialmente dedicado a Deus (p. 476).

  • 7/28/2019 1. Introduo ao Direito Internacional 1

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    Jos Pina Delgado Liriam Tiujo Delgado

    Direito Internacional Pblico Uma Viso Cabo-VerdianaNotas de Aula/2009-2010

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    religiosas78, particularmente as que ocorreram na Alemanha que vo paulatinamente

    dar origem ao chamado Jus Publicum Europaeum, o moderno sistema de Estados. Os

    seus antecedentes so a Paz de Augsburgo de 1555 e a Paz de Vervins de 1598 79, mas o

    momento simblico de ruptura acontece, embora discutivelmente, com a chamada Paz

    de Vestflia de 164880.

    1.2.1. Perodo do Direito Pblico Europeu

    Seja como for, o ano de 1648 considerado, pelo menos simbolicamente, como

    um marco para o direito internacional que d origem ao seu perodo mais marcante e

    representativo: o sistema europeu de Estados. Composto por diversas unidades

    polticas independentes, que se subordinam ao direito internacional de modo

    voluntrio81. No tendo qualquer entidade acima deles dependem de si prprios para

    produzir as normas do sistema, atravs da prti