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1 Literatura e Violência no Brasil e na Argentina durante o Século XIX: Uma Análise da Trajetória e da … · dos caudilhos na luta pela Independência da Argentina. Esse universo

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Literatura e Violência no Brasil e na Argentina durante o Século XIX: Uma

Análise da Trajetória e da Obras de Domingos Faustino Sarmiento e Euclides da

Cunha.

IVAL DE ASSIS CRIPA1

Domingos Faustino Sarmiento nasceu numa aldeia na Província de San Juan, em

1811. Veio de um lar humilde, foi professor, jornalista e escritor. Lutou contra o tirano

Rosas, chegou à patente de General e foi presidente da Argentina. Seu principal livro foi

“Facundo, Civilização e Barbárie”. Trata-se de um texto literário, uma biografia, escrita

contra um inimigo político de Sarmiento, Facundo Quiroga, que segundo Sarmiento

representava a Argentina corroída pelo colonialismo e barbarizada pelo atraso. É uma

biografia de um caudilho.2

Para compreender a trajetória e a obra de Sarmiento é preciso recuperar um pouco

da história do Vice Reinado do Rio da Prata, após a Independência que, para Leon Pomer,

tratava-se de “uma diversidade sem unidade”. Não havia, ali, nem vínculos administrativos,

nem laços mercantis capazes de unificar regiões separadas por enormes distâncias quase

desertas. De um lado, havia as praças comerciais como Buenos Aires e Montevidéu, de

outro, as cidades do interior de pequena importância. Nem todas as regiões do Prata

estavam aptas para produzir produtos exportáveis.

Para a Europa interessava os couros e os gados da Argentina. Do Peru e do Chile

interessava a prata. Tratava-se de uma região como uma enorme heterogeneidade das

estruturas produtivas e com estruturas sociais díspares e singulares de região para região.

1 Professor do Centro Universitário UNIFIEO, em Osasco. Esse texto foi apresentado no núcleo de oficinas “Atelier Clio” – Oficinas de História, no curso de Pós-Graduação Latu Sensu da Faculdade de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC em 10/5/2014. O Autor desenvolve pesquisa de Pós-Doutorado sobre história e literatura no Brasil e no México durante o século XIX, no Centro de Estudos Sobre a América Latina e o Caribe na PUC/SP. 2 Parte dos dados sobre a biografia de Sarmiento e sobre o contexto argentino foi extraída de: POMER, Leon. (org). Sarmiento: Política. São Paulo: Ática, (coleção Grandes cientistas sociais), 1983.

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2 No Noroeste e Centro Oeste do Vice Reinado da Prata havia uma presença maciça de mão

de obra indígena organizada num complexo esquema de divisão do trabalho. Com o

declínio da mineração no Alto do Peru tais sociedades declinam em sua estrutura produtiva

para a agricultura e o artesanato e suas economias retornam, de uma economia monetária,

para uma economia natural baseada na troca. A mão de obra foi vendida ou alugada para

mineiros chilenos e bolivianos.3

A Argentina, recostada sobre a Cordilheira dos Andes, se fixou mais solidamente.

Nesse país, a população nativa diminuiu rapidamente e a atividade predominante era a

criação do gado. Nas planícies próximas a Buenos Aires, Santa Fé e Entre Rios praticou-se

a criação extensiva de gado com pouca necessidade de mão de obra. O trabalho utilizado

era livre e tinha como salário alimentos, couro, alojamento e às vezes dinheiro, afirma Leon

Pomer. Essa sociedade rural, baseada na pecuária extensiva, é a sociedade desagregada que

descreve Sarmiento. Uma sociedade em que predominam os vaqueiros ou gaúchos que

desenvolvem habilidades de guerra: o manejo da faca, a cavalgadura e o porte de armas. Os

vaqueiros são ao mesmo tempo trabalhadores na lida com o gado e um exército a serviço

dos caudilhos na luta pela Independência da Argentina. Esse universo é a “barbárie” para

Sarmiento:

Esta é a história das cidades argentinas. Todas elas têm que reivindicar glórias, civilização e notabilidade. Agora o nível barbarizador pesa sobre elas. A barbárie do interior chegou a penetrar até as ruas de Buenos Aires. De 1810 a 1840 as províncias que encerravam em suas cidades tanta civilização foram demasiado bárbaras para destruir com seu impulso a obra colossal de revolução da independência. Agora que nada lhes resta do que tinham em homens, luzes e instrução, o que será delas? A ignorância e a pobreza, que é conseqüência, estão como as aves de rapina esperando que as cidades do interior dêem o último suspiro para devorar sua presa, para transformá-lo em campo, estância. Buenos Aires pode voltar a ser o que foi, porque a civilização européia é tão forte ali que, apesar das brutalidades do governo, há de sustentar-se. Mas as províncias se apoiarão em quê? Dois séculos não serão suficientes para trazê-las de volta ao caminho que abandonaram, desde que a geração presente educa seus filhos na barbárie

3 Ver: Apresentação da obra e da biografia de Sarmiento em: POMER, Leon. (org). Sarmiento: Política. São Paulo: Ática, (coleção Grandes cientistas sociais), 1983.

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3 que a atingiu. Perguntaram-nos agora por que combatemos? Combatemos para trazer as cidades de volta à vida própria. (SARMIENTO, Domingos Faustino. Facundo, Civilização e Bárbárie. Tradução Jaime A P. Clasen. – Petrópolis, Vozes, Rio de Janeiro, 1996, pág. 125).

Sarmiento e os membros da geração de 1837, dos quais vou falar mais adiante,

concordavam de forma quase unânime com a idéia da inadequação dos grupos étnicos da

Argentina, ou suas “raças”, afirma Shumway (2008, p.189), como eram chamados. Em uma

passagem de “O Facundo” Sarmiento afirma:

Além do mais, da fusão destas três famílias [espanhola, africana e indígena], resultou um todo homogêneo, que se distingue por seu amor à ociosidade e incapacidade industrial, quando a educação e as exigências de uma posição social não lhe dão esporadas e o tiram de seu ritmo habitual. Muito deve ter contribuído para produzir este resultado infeliz a incorporação dos indígenas feita pela colonização. As raças americanas vivem na ociosidade e se mostram incapazes, mesmo pela coação, de se dedicarem a um trabalho duro e contínuo. Isto sugeriu a idéia de introduzir negros na América, que tão fatais resultados produziu. Mas não se mostrou melhor dotada de ação a raça espanhola quando se viu, nos desertos americanos, abandonada a seus próprios instintos. (SARMIENTO, Domingos Faustino. FACUNDO..., 1996, p. 73).

Como vencer a barbárie? Segundo Sarmiento, a educação seria o antídoto para

neutralizar os vícios do homem rural, além de uma política de imigração que estimulasse a

vinda de uma elite mais culta para a Argentina! Seria preciso, também, para vencer a

barbárie, acabar com o latifúndio. “Civilizar” a Argentina para Sarmiento significava

incorporar os usos e costumes norte-americanos e europeus. As cidades eram, para ele, o

refúgio da civilização e o seu centro irradiador: “O homem da cidade veste o traje europeu,

vive a vida civilizada tal como conhecemos em toda parte; ali estão as leis, as idéias de

progresso, os meios de instrução, alguma organização municipal, o governo regular etc”

(SARMIENTO, FACUNDO..., 1996, p. 75). Buenos Aires seria, para ele, um tentáculo da

Europa no Prata: a melhor de todas as cidades, com homens de fraque, que eram cultos.

Buenos Aires, diz Sarmiento, a mais europeizada e adiantada cidade da região do Prata.

Sarmiento pertenceu à geração de intelectuais conhecida como Geração de 1837.

Dela faziam parte: Juan Batista Alberdi, Juan Maria Gutierrez, Vicente Fidel Lopes,

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4 Esteban Echeverria. Inspirados na filosofia iluminista, essa geração propunha que, para

uma sociedade “atrasada”, a solução era uma democracia restrita para poucos, ou seja, um

governo aristocrático. A Geração de 1837 provém de um Salão Literário organizado em

maio de 1837, diz Nicolas Shumway, em uma livraria de Buenos Aires, onde se reuniam

para ler, discutir e conversar. Essa associação tinha como fonte de inspiração as jovens

sociedades revolucionárias que despontavam em toda a Europa e ficou conhecida como La

Asociación de Mayo, como referência ao movimento de Independência de maio de 1810

(Shumway, p.172).

A Geração de 1837 foi formada por um grupo de jovens entusiastas, quase todos

entre vinte e trinta anos, que organizaram uma sociedade literária e estabeleceram uma

atitude crítica com relação ao seu país. O grupo, afirma Shumway, produziu algumas

“ficções diretrizes” das mais duradouras na Argentina e assumiu a responsabilidade de duas

importantes tarefas: “identificar, sem idealizar, os problemas enfrentados pela Argentina e

criar um programa de ação que faria dela uma nação moderna. Ao descrever os problemas

nacionais, criou o que se tornou um gênero pouco feliz da literatura argentina: a explicação

do seu fracasso.” (Shumway, 2008, p.157). Tal obsessão pelo fracasso dava-se em função

de que durante os anos de sua formação todos os membros desse grupo testemunharam o

insucesso das províncias em formar uma unidade, a incapacidade dos liberais portenhos em

criar uma política inclusiva, o fracasso das massas em eleger políticos responsáveis, afirma

Shumway.

Segundo Maria Lígia Prado (1999), o contexto pós-independência foi um momento

em que a Argentina estava dividida politicamente entre os que defendiam um governo

centralizado, campo de Sarmiento e da Geração de 1837, os Unitários, contra os

Federalistas, defensores da autonomia radical das províncias, campo de Juán Manuel Rosas

e outros caudilhos. A história da Geração de 1837 e a identidade do grupo como um todo

está paradoxalmente associada à hegemonia de Juan Manoel Rosas, um ditador que

dominou a Argentina entre 1829 e 1852. Durante a ditadura de Rosas, os membros da

Geração de 1837 foram obrigados a refletir sobre os motivos que levaram seu país a

instituir uma ditadura.

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5 Dado a importância da polêmica, só podemos falar em Estado Nacional organizado

na Argentina após 1862, quando Bartolomeu Mitre assumiu a presidência nacional. E

segundo Nicolas Shumway, “Apesar do século e meio que nos separa de seus primeiros

textos, pode-se dizer que a Geração de 1837 continua sendo o grupo intelectual mais

reputado do país.” (Shumway, 2008, p.157). Os escritos dos membros da Geração de 1837

uma característica dos escritores hispano-americanos que se mantém até os dias atuais, pois

suas obras, afirma Shumway, têm um acabamento imperfeito, “como pão retirado do forno

na última hora”, para usar uma expressão de A. Reyes. Isso se deve ao fato de que estamos

falando da produção intelectual de homens de ação, que vivendo em uma sociedade caótica,

seus escritos não são um fim em si mesmo.

A Geração de 1837 não pode ser avaliada sem o pano de fundo da ditadura de

Rosas. Em Buenos Aires, o estancieiro Juan Manuel Rosas chegou ao governo provincial

em 1829 e permaneceu no poder até 1842, quando foi derrotado na batalha de Caseros

pelos unitaristas. Rosas governou Buenos Aires e toda a Argentina a partir de uma série de

pactos com outros governadores, caudilhos locais e sempre com mão de ferro. Conseguiu

respaldo popular, atendendo às demandas dos setores pecuaristas, pois legalizou a

propriedade da terra e disciplinou as forças de trabalho, atendendo algumas reivindicações

populares. Foi um período de polarização política e de guerras civis intermitentes entre os

Federalistas (Rosas e Facundo Quiroga) versus os Unitaristas (grupo de Sarmiento).

Para não assustar seus inimigos, Rosas preferiu usar seu poder com prudência

durante o primeiro mandato. Passou a defender a propriedade “liberando” ou

desapropriando mais terras indígenas e fortificou a defesa contra possíveis reações desses

indígenas. Conseguiu impor um mínimo de responsabilidade fiscal para conter a dívida alta

do governo e impressionou até os ingleses com sua gestão, diz Shumway. Aprofundou as

relações com os ingleses, restringiu a liberdade de imprensa, negligenciou a educação,

apoiou o clero conservador, fortaleceu o exército e conteve seus críticos, mandando os

membros da Geração de 1837 e Sarmiento para o exílio, principalmente no Chile.

Em novembro de 1832, no prazo prescrito, Rosas renunciou após restituir à Câmara

os poderes “extraordinários” que havia recebido. Mas após o fracasso de duas rápidas

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6 administrações, diz Shumway, a câmara voltou a nomear Rosas governador que, após forte

pressão da burguesia latifundiária, sua principal base política, concordou em aceitar o

cargo, desde que lhe fosse outorgada a “totalidade do poder público”. Segundo Nicolas

Shumway, começava assim a ditadura Rosas, uma ditadura que não foi imposta pela força,

nem por um golpe militar, mas contou com o consentimento dos legisladores e da

sociedade argentina que estavam exauridos pela guerra. (Ver Shumway, 2008, p.164).

Embora fosse oficialmente governador de Buenos Aires, nos dezessete anos seguintes

Rosas dominou a política argentina. Rosas se manteve no poder até 1852 sem realizar

eleições, pois para efeito de relações públicas, afirma Shumway, realizava eleições mas

sem candidato opositor. Rosas costumava enviar rotineiramente sua renúncia ao congresso

que ele mesmo havia composto e que por isso rejeitava seu pedido, fazendo com que ele

voltasse ao cargo. Tanto que mesmo Sarmiento, que era seu inimigo mais conhecido,

chegou a afirmar que “por respeito à verdade histórica [que] nunca houve um governo mais

popular, mais desejado ou mais apoiado pela opinião pública” (SARMIENTO, Domingos

Faustino. p. 30, APUD Shumway, P. 164).

Rosas também era apoiado pelos pobres, que foram seduzidos pelo seu carisma

paternalista e imperial, que falava e cavalgava como um gaúcho, mas ostentava ares de

realeza. Rosas não era um intelectual, mas foi influenciado pelo seu primo Tomás Manuel

Anchorena, um reacionário inspirado no pensamento conservador de Edward Burke e

Joseph de Maistre, críticos da Revolução Francesa.

Embora desfrutasse de grande popularidade, Rosas não era um “verdadeiro

populista” diz Shumway: “Rosas assim revelou o outro lado, o lado antipopular, do

federalismo argentino: uma noção aristocrática de autoridade e privilégio que podia

beneficiar os pobres por apenas um impulso paternalista, mas que nunca considerava os de

berço humilde como cidadãos iguais a todos os outros em um governo pluralista. O que ele

fez foi restaurar a sociedade hierarquizada dos monarcas espanhóis” (Shumway, 2008, p.

166).

Vamos recuperar agora, alguns dados da biografia de Sarmiento. Em 1827, lutou

contra os caudilhos José Félix Aldão e Juan Facundo Quiroga, o que fez com que fosse

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7 obrigado a emigrar para o Chile, em 1831, com vinte anos de idade. Para escapar da

repressão, muitos dos adversários de Rosas foram para o exílio, no Uruguai ou no Chile,

onde se organizavam para lutar contra Rosas. Em 1852, em Montevidéu, se alistou nas

tropas do General Urquiza que derrotou Juan Manuel Rosas. Em 1855, Sarmiento era

redator do jornal “El nacional”, em Buenos Aires, e, em 1857, foi eleito Senador

Provincial. Em 1852, foi eleito Governador da Província de San Juan. Em 1864,

embaixador argentino nos EUA. Em 1868, recebeu o título de doutor honoris causa pela

Universidade do Michigan. Nos EUA, foi eleito presidente da Argentina em 1868, onde

ficou no poder até 1874. Como Presidente, ajudou a combater o Paraguai comandado por

José Gaspar Rodrigues Francia. Incomodava-lhe a reforma agrária e a política protecionista

de Francia. Sarmiento considerava o Paraguai um país guarani e bárbaro.

Vale dizer que apesar do atraso e da crueldade, o governo de Rosas teve a seu favor

algumas realizações: a economia cresceu de forma significativa e novas terras foram

liberadas, indo para as mãos dos latifundiários. Rosas conseguiu negociar a dívida

Argentina com os credores ingleses de forma habilidosa, assegurando-se de que os gastos

com a dívida não prejudicassem o pagamento dos militares e dos funcionários (ver:

Shumway, 2008, p.167).

Passamos, agora, para a discussão da obra, “Facundo, Civilização e Barbárie”, a

partir da análise de Maria Lígia Prado em, “Para ler O Facundo de Sarmiento”. Segundo a

autora, o livro de Sarmiento é considerado um clássico do pensamento político latino-

americano. Como veremos adiante, Euclides da Cunha foi influenciado por Sarmiento ao

escrever “Os Sertões”. “O Facundo, Civilização e Barbárie na Argentina” foi publicado em

1845, mas só foi editado em português em 1923. Esse atraso deve-se, como afirma Maria

Lígia Prado, às difíceis relações entre o Brasil e os demais países da América Latina.

Sarmiento, diz a autora, no afã de entender a Argentina, construiu uma interpretação

carregada de idéias, imagens e símbolos compartilhados na mesma época por seus

contemporâneos brasileiros, também ocupados em compreender o Brasil.

Segundo Lígia Prado, para Sarmiento, na linha da tradição romântica, o homem

aparecia como produto do meio. Na primeira parte do livro de Sarmiento, como “Os

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8 Sertões” de Euclides da Cunha, é elaborada uma análise do meio geográfico da Argentina.

Para Sarmiento, um grande mal do território argentino era a sua vastidão e a região dos

pampas despovoada criava o terreno propício para as tendências autoritárias dominantes

(Prado, 1999, p. 162). Dessa paisagem brotava a originalidade e a especificidade de um

povo, diz Sarmiento, as quais permitiram o surgimento de tipos: o cantor, o baqueano, o

rastreador e o gaúcho.

Sobre a maneira como o meio forma o homem, Sarmiento afirma em “O Facundo”:

Se das condições da vida pastoril, tal como a constituíram a colonização e a incúria, nascem graves dificuldades para uma organização política qualquer e muitas mais para o triunfo da civilização europeia, de suas instituições, (...) é sobretudo da luta entre civilização europeia e barbárie indígena, entre a inteligência e a matéria; luta imponente na América, e que dá lugar a cenas tão peculiares, tão características e tão fora do círculo de ideias em que foi educado o espírito europeu (SARMIENTO, FACUNDO..., 1996, p.85).

O meio geográfico, na perspectiva de Sarmiento, foi responsável pelo surgimento

de outro tipo na Argentina: o gaúcho mau,

(....) Chamam-no Gaúcho Mau sem que esse epíteto lhe seja totalmente desfavorável. A justiça o persegue há muitos anos; seu nome é temido, pronunciado em voz baixa, mas sem ódio e quase com respeito. É um personagem misterioso; mora no pampa, seu albergue são as moitas de cardos, vive de perdizes e mulitas, quando quer se regalar com uma língua, laça uma vaca, derruba-a sozinho, mata-a tira seu bocado predileto e abandona o resto às aves silvestres. (SARMIENTO, FACUNDO..., 1996, p. 95).

A segunda parte do livro, depois de discutir o meio natural e os tipos que surgem

nesse meio, Sarmiento dedica-se à biografia propriamente dita de Facundo, para mostrar

que ele era um produto natural da sociedade argentina em um determinado ponto de sua

evolução. Facundo seria um tipo de primitivo barbarismo, com seu instintivo ódio às leis e

sua vida de perigos e ferocidade, os quais o aproximavam de um animal selvagem (Prado,

1999, p.162).

Maria Lígia Prado levanta a seguinte questão sobre o livro de Sarmiento: como

Facundo serviu como arma ideológica para dois campos políticos em disputa? Considerado

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9 um dos fundadores do Estado Nacional argentino Sarmiento recebeu aplausos daqueles que

apoiavam o regime político idealizado pelos liberais depois da queda de Rosas. Até mesmo

os socialistas, como o fundador do partido, Juan B. Justo, colocava Sarmiento na galeria

dos grandes homens argentinos, da qual Rosas não fazia parte. Mas quando, nos anos 30 do

século XX, ganhou força a corrente que fazia a crítica do Estado Liberal, a partir de uma

ótica nacionalista, Rosas assumiu o papel de “verdadeiro” representante da argentinidade e

o gaúcho tornou-se expressão do ser nacional, diz Prado (1999, p. 166). Sarmiento e a

geração de 1837 passaram a ser considerados os ideólogos da imposição de idéias estranhas

e importadas, que pretendiam desnaturalizar a Argentina.

Vale considerar, ainda, a partir do texto de Lígia Prado que, tanto Sarmiento, como

os membros da geração de 1837, tinham clareza da importância da escrita da história para a

construção da nacionalidade. A tarefa de construir a nação se associava à tarefa de escrever

a história. Com tais objetivos, Sarmiento escreveu o Facundo. Em sua última obra

importante, “Conflictos Y Armonías de las Razas em América”, Sarmiento retornou às

explicações raciais para o fracasso da Argentina diz Shumway (2008, p.190). O livro foi

escrito em 1883, quando Sarmiento tinha 75 anos e ele o considerava um “Facundo

envelhecido”. Nesse livro, diz Shumway (2008, p.190), Sarmiento argumenta que apesar

da Constituição ilustrada, de uma aparente democracia, da prosperidade, do transporte

modernizado, das escolas, das academias e das universidades, e de todos os recursos do

progresso, “a sociedade argentina de 1883, ainda melhor vestida e mais educada que no

tempo de Rosas, continua prejudicada pela corrupção, o personalismo e um desprezo

generalizado pelas instituições. (...) Sugere que o fracasso da democracia na América

espanhola pode ser explicado simplesmente levando-se em conta a inadequação dos povos

latinos para se governarem, especialmente quando combinados com ‘indígenas bárbaros’.

(Idem, p.190).

Para Sarmiento, todos os líderes latino-americanos eram considerados bárbaros:

Rosas, Francia, no Paraguai, e Artigas proviriam de uma “mistura infeliz” de sangue latino

e indígena. No ensaio “El Constitucionalismo em la América del Sur”, um de seus últimos

textos, Sarmiento voltou ao tema da incapacidade política da raça e afirma: “de todos os

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10 povos cristãos, só as raças latinas da América do Sul não foram capazes, por mais de

setenta anos, de organizar um governo efetivo e duradouro” (SARMIENTO, Obras

Completas, VOL 38, P. 273, APUD Shumway, 2008, p. 191). Para Sarmiento, a Argentina

só estaria em melhor situação porque, diferente dos outros países hispano-americanos, tinha

uma população branca mais numerosa. Todos os escritores do grupo de 1837, de um modo

geral, concordavam com esses argumentos de Sarmiento.

III-Os “Sertões” de Euclides da Cunha, história e Literatura.

Segundo Bertold Zilly, Os Sertões não é apenas uma epopéia do interior do Brasil e

da Guerra de Canudos, mas também a ‘crítica contundente’ a aspectos destrutivos do

processo de modernização e incorporação dos “países novos” (como se dizia naquela

época) ou do Terceiro Mundo (como se diria hoje) ao mercado mundial, processo

aparentemente sem alternativa diante da decadência de modelos de desenvolvimento não-

capitalista.” (ZILLY, 1991, p. 37). Segundo Zilly, o livro mais famoso sobre a Guerra de

Canudos é, ao mesmo tempo, uma fonte histórica e uma narrativa historiográfica. A

narrativa historiográfica euclidiana segue os moldes de H. Taine, citado por ele no

prefácio, que apesar de positivista e cientificista e, por isso, preocupado em mostrar e

interpretar as tendências “objetivas” da sociedade e da história, possuía uma vertente

romântica e reivindicava uma historiografia em que os historiadores se colocassem na

perspectiva dos agentes históricos. (ZILLY, 1991, p. 41).

No capítulo A LUTA d’os Sertões e nos capítulos subsequentes, Euclides da Cunha

narrou os acontecimentos da guerra que levou à destruição da comunidade reunida em

torno de Antônio Conselheiro e que, segundo ele, foi uma luta travada em nome da “Ordem

Republicana.” Na verdade, segundo Roberto Ventura, ele procurou mostrar como os dois

lados do conflito –o litoral e o Sertão, encontravam-se tomados por fanatismos religiosos e

políticos. Como se a luta fosse uma “cruzada” pela República. Para transpor o abismo entre

o interior “bárbaro” e o nordeste e o Brasil europeizado do litoral, segundo Zilly, Euclides

da Cunha tinha que estabelecer pontes e ligações entre o “conhecido e o desconhecido.” Na

verdade, se a formação da intelectualidade brasileira e latino-americana eram europeizadas,

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11 o referencial dessa elite era a história e a literatura da Antigüidade, da França, de Portugal,

o evolucionismo e o positivismo. Segundo Zilly,

o método básico para explicar e para evidenciar plasticamente a alteridade total da realidade sertaneja é a comparação, implícita ou explícita, a analogia com o que é familiar ao leitor e ao próprio autor. Dessa perspectiva, a linguagem figurada serviria não apenas à comunicação com o leitor, mas também à comunicação esclarecedora consigo mesmo. Então, esse linguajar difícil para o leitor é, pelo menos em parte, resultado de uma busca desesperada para dizer o indizível, para exprimir a realidade do interior do Brasil com parâmetros do litoral, caracterizado como uma ‘civilização de empréstimos’ (citação do próprio Euclides), ou seja, uma civilização do Velho Mundo. (ZILLY, 1991, p. 43)

Sarmiento explicava o terror e a anarquia do período após a independência e de

formação da República como uma luta entre civilização e barbárie, como vimos. Para

Euclides da Cunha, o sertanejo como expressão da barbárie brasileira em Euclides da

Cunha:

Convindo em que o meio não forma as raças, no caso especial variou demais nos diversos pontos do território as dosagens de três elementos essenciais. Preparou o advento de sub-raças diferentes pela própria diversidade das condições de adaptação. Além disso, (é hoje fato inegável) as condições exteriores atuam gravemente sobre as próprias sociedades constituídas, que se deslocam em migrações seculares aparelhadas embora pelos recursos de uma cultura superior (....). Entre nós, vimo-lo, a intensidade destes últimos está longe da uniformidade proclamada. Distribuíram, como o indica a história, de modo diverso as nossas camadas étnicas, originando uma mestiçagem dissímil. Não há um tipo antropológico brasileiro. Procuremos, porém, nesse intrincado caldeamento a miragem fugitiva de uma sub-raça, efêmera talvez. Inaptos para discriminar as nossas raças nascentes, acolhamo-nos a nosso assunto. Definamos rapidamente os antecedentes históricos dos jagunços. (Euclides da Cunha, 2000, p. 76-77)

Para estabelecer alguns pontos de contato entre a perspectiva de Euclides da Cunha

e a de Sarmiento, vale recuperar a discussão sobre uma possível analogia entre o “gaúcho

do sul” e os sertanejos citada por Euclides da Cunha:

o gaúcho do sul, ao encontrá-lo nesse instante, sobreolhá-lo-ia comiserado. O vaqueiro do norte é sua antítese. Na postura, no gesto, na palavra, na índole e nos hábitos não há equipará-los. O primeiro, filho dos planos sem

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12 fins, afeito às correrias fáceis nos pampas e adaptado a uma natureza carinhosa que o encanta, tem, certo, feição mais cavalheiresca e atraente. A luta pela vida não lhe assume o caráter selvagem da dos sertões do norte. Não conhece os horrores da seca e os combates cruentos com a terra árida e exsicada. Não o entristecem as cenas periódicas de devastação e miséria, o quadro assombrador da absoluta pobreza do solo calcinado, exaurido pela adustão dos sóis bravios do equador. Não tem, no meio das horas tranqüilas da felicidade, a preocupação do futuro, que é sempre uma ameaça, tornando aquela instável e fugitiva. Desperta para a vida, aventureiro, jovial, disserto, valente e fanfarrão, despreocupado, tendo o trabalho como uma diversão que lhe permite as disparadas, domando distâncias, nas pastagens planas, tendo aos ombros, palpitando aos ventos, a pala inseparável, como uma flâmula festivamente desdobrada.” (CUNHA, Euclydes da, Os Sertões: campanha

de Canudos – Rio De Janeiro, Francisco/Publifolha Alves, 1897 – 2000 – 39ª ed., p. 101).

Segundo Roberto Ventura, ao escrever Os Sertões, Euclides da Cunha acusou o

Exército, a Igreja e o Governo pela destruição de Canudos e realizou uma autocrítica do

patriotismo exaltado de suas reportagens sobre a Guerra, reconhecendo a omissão de sua

cobertura jornalística ao mencionar o massacre dos prisioneiros, (....) “Criticou, ainda, a

aproximação entre Canudos e a Vendéia, que empregara em seus artigos, e descartou a

ideia de uma conspiração política, apoiada por grupos monárquicos e países estrangeiros,

que havia justificado o massacre.” (VENTURA, p.43)

Tomando as duas obras, Os Sertões e Facundo, segundo Mirian Gárate,

“Configura-se um campo representacional análogo que partilhou dois campos de um

conflito com uma representação da violência de formas distintas: nos Sertões, a dicotomia

dá-se entre a República contra os sertanejos; no Facundo, a oposição dá-se entre

Federalistas (representado pela liderança do caudilho Rosas) contra os Unitaristas

(representado pelo grupo oriundo da cidade de Buenos Aires). A indumentária do gaúcho

que compreende a faca, a boladeira, o cutelo, o poncho, o cavalo e a prática da degola dos

inimigos compõem a representação do outro da literatura argentina: o indígena. O outro

indígena que não foi incorporado às ficções da fundação da nação argentina.

Sarmiento justifica a guerra de independência, mas desqualifica os interesses

caudilhos, pois para ele a guerra da revolução argentina foi também a guerra dos caudilhos

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13 contra as cidades, com o intuito de se libertarem de toda sujeição civil e desenvolver seu

caráter e seu ódio contra a civilização. Para Sarmiento, o enigma da Revolução Argentina

consiste no fato de que “o primeiro tiro foi disparado em 1810 e o último ainda não soou.”

No Brasil, a figura do indígena foi enaltecida e o outro excluído foi o negro. Em Os

Sertões, de Euclides da Cunha, a miscigenação branco/índio resulta num tipo humano forte,

ainda que “primitivo” ou rude –seria a “rocha viva da nossa nacionalidade”, enquanto que a

miscigenação com o negro dá um tipo “neurastênico.” Já na obra de Sarmiento, o indígena

é o grande excluído da na nacionalidade. A representação do indígena como bárbaro

constrói-se a partir da visão estigmatizada do uso da faca, da lança. É criada a imagem do

índio e do mestiço como uma figura traiçoeira, que sabe cavalgar bem e domina estratégias

traiçoeiras e enganadoras (ainda que desprovidas de capacidade de cálculo, sem medida).

Segundo Miriam Gárate, Sarmiento associa de várias formas o gaúcho com a

barbárie:

Do mesmo lado ainda, do lado bárbaro, junto à faca, à lança, ao cavalo e ao poncho, a liderança personalista e arbitrária do ‘mais forte’ (‘a autoridade sem limites do caudilho’), a ausência da disciplina e de hierarquias codificadas (a montonera, organização guerreira de coloratura asiática: ‘a hordas beduínas que importunam as fronteiras da Argélia dão uma idéia exata da montonera argentina), as estratérias traiçoeras e enganadoras, ainda que privadas de capacidade de cálculo, a execução direta, sem forma ou medida.” (GÁRATE, 2001, p. 47).

Todavia, do seu próprio lado, o lado de Sarmiento e seus aliados, prevalecem as

formas civilizadas do uso da violência: a espada, o fuzil, a casaca, o uniforme, as insígnias

e as hierarquias preestabelecidas e protocoladas, além da disciplina, da ordem e das ações

calculadas. Defendem, também, a artilharia em detrimento do cavalo e as execuções “em

regra e o respeito aos direitos de guerra”, que Sarmiento legitima. Segundo a autora,

“quando se trata de denegrir o outro e de legitimar os nós, todas as armas são boas. Assim,

se outro mata, só o faz inequivocamente pelo concurso das ‘más razões’ e dos ‘maus

meios’. (...) No entanto, se do seu próprio lado se transgride alguma regra que compromete

a legalidade do ato, a ‘falta’ ou o ‘equívoco’, dado que assim passa a ser denominado, vê-se

atenuado pelo recurso a mil explicações.” (Gárate, 2001, p.48).

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14 A degola de um general rosista sem direito à defesa, segundo exemplo citado por

Gárate, é justificada por Sarmiento com os seguintes argumentos: “O que Lavalle [General

Unitarista] fez foi dar, com a espada, um corte no nó gordio em que veio enredar-se toda a

sociabilidade argentina: aplicando uma sangria, quis evitar o câncer lento, a estagnação;

pondo fogo no pavio, fez com que arrebentasse pelas mãos dos unitários e federais a mina

preparada muito tempo atrás.” (Sarmiento, Facundo, APUD GÁRATE, 2001, p. 50).

Segundo Sarmiento, se Lavalle omitiu uma “formalidade”, pois não houve

julgamento antes da execução, não deixou de respeitar as “formas civilizadas” da morte,

mandando fuzilar ao invés de degolar: “O executar com faca, degolando e não fuzilando, é

um instinto de carniceiro que Rosas soube aproveitar para dar à morte formas gaúchas e ao

assassino prazeres horríveis, sobretudo para mudar as formas legais e admitidas nas

sociedades cultas, por outras que ele chama americanas; e em nome das quais convida a

América para que saiam em sua defesa” (Sarmiento, Facundo, APUD GÁRATE, 2001, p.

50).

Para Maria Lígia Prado (1999), o livro de Sarmiento é um exemplo de como a

escrita da história pode ser utilizada na construção de um projeto de nacionalidade. E para

Miriam Gárate, o livro Facundo de Sarmiento é uma obra que se desenvolve numa zona

movediça, em que uns e outros correm o risco de se confundir, mas na qual um deux ex

Machina, munido de razões, pseudo-razões, pretextos, boa ou má fé, dependendo do caso,

preserva as distinções: as inventa para trás, em direção ao passado, e as projeta para diante,

em direção ao futuro (GÁRATE, 2001, p. 51). Buscando sempre diferenciar os dois lados,

Sarmiento legitima algo que acredita ser uma campanha militar e não uma “charqueada.”

Após a derrota de Canudos, Euclides da Cunha narra a execução dos sertanejos

feitos prisioneiros pelo exército em Canudos. Recuperamos esse fragmento para diferenciar

seus pontos de vista dos de Sarmiento. Segundo Euclides da Cunha:

Preso o jagunço, valido e capaz de agüentar o peso da espingarda, na havia malbaratar-se um segundo em consulta inútil. Degolava-se; estripava-se. Um outro comandante se dava o trabalho de um gesto expressivo. Era uma redundância capaz de surpreender. Dispensava-a ao soldado atreito à tarefa. Esta era, como vimos simples. Enlear ao pescoço da vítima uma tira de couro, num cabresto ou numa ponta de chiqueradro; impeli-la por diante; a

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15 atravessar entre as barracas sem que ninguém se surpreendesse; e sem temer que se escapasse a presa, porque ao mínimo sinal de resistência ou fuga um puxão para trás faria que o laço se antecipasse à faca e o estrangulamento à degola. Avançar até a primeira covanca profunda, o que era um requinte de formalismo: e, ali chegado, esfaqueá-la. Nesse momento, conforme o humor dos carrascos, surgiram ligeiras variantes. Como se sabia, o supremo pavor dos sertanejos era morrer a ferro frio, não pelo temor da morte senão pelas suas conseqüências, porque acreditavam que, por tal forma, não se lhes salvaria a alma.” (DA CUNHA, Os Sertões, p. 475).

Euclides da Cunha, ao presenciar a degola praticada pelo exército republicano, o

esquema interpretativo inicial que fora inspirado em Sarmiento é corroído:

Era uma inversão de papéis. Uma antinomia vegonhosa... (...) Aquilo não era realmente uma campanha, era uma charqueada. Não era ação severa das leis, era a vingança. Dente por dente. Naqueles ares pairava, ainda, a poeira de Moreira Cezar; devia-se queimar. Adiante, o arcabouço decapitado de Tamarndo; devia-se degolar. A repressão tinha dois pólos – o incêndio e a faca (DA CUNHA, Euclides, APUD GÁRATE, 2001, p.59).

Segundo Miriam Gárate, a inversão de papéis suscita uma dupla perturbação –mina

a base da sustentação do seu paradigma explicativo e faz Euclides da Cunha questionar-se –

“sentia suspeitas sobre a orbe civilizada.” O vencido assume uma aura heróica. Mas a

idealização do outro não será absoluta. Não é a positivação do outro, mas a degradação do

seu próprio campo.

Euclides da Cunha ao escrever Os Sertões e acusar o Exército, a Igreja e o Governo

pela destruição de Canudos e realizou uma autocrítica do patriotismo exaltado de suas

reportagens sobre a Guerra, reconhecendo a omissão de sua cobertura jornalística, ao

mencionar o massacre dos prisioneiros, “Criticou, ainda, a aproximação entre Canudos e a

Vendéia, que empregara em seus artigos, e descartou a idéia de uma conspiração política,

apoiada por grupos monárquicos e países estrangeiros, que havia justificado o massacre.”

(VENTURA, p. 43).

Para concluir recuperamos a afirmação de Benedict Anderson, que acredita que em

termos de história mundial, as burguesias foram as primeiras classes a consumar

solidariedades numa base essencialmente imaginada, ou nações como comunidades

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16 imaginadas e que operam sempre pela exclusão do outro. Na América Latina, no contexto

apóa a independência, afirma ele, “brotaram estas realidades imaginadas: Estados nação,

instituições republicanas, cidadania universal, soberania popular, bandeiras e símbolos

nacionais” (ANDERSON, 1989, p. 92), sob as quais se criaram modelos, conceitos e

projetos de formação dos Estados Nacionais latino-americanos. Em nome desses conceitos,

como vimos a partir da obra de Sarmiento e Euclides da Cunha, guerras foram justificadas,

massacres e execuções foram e continuam sendo justificados em nome do progresso e da

civilização.

Segundo Benedict Anderson, o surgimento das nações latino-americanas, pensadas

“comunidades imaginadas”, exigiu e exige ainda hoje, por parte dos grupos dominantes, a

eliminação de seus contrários: os “guetos” como Canudos, as instituições monárquicas,

absolutismo, as vassalagens, nobrezas hereditárias, servidões e outras formas de expressão

da “barbárie” narrada por Sarmiento. O paradigma inventado por Sarmiento, principal

precursor da reflexão sobre a “barbárie-latino-americana”, ainda persiste nos dias atuais. O

imaginário construído sobre a barbárie latino-americana continua legitimar o discurso

corrente na mídia em defesa da eliminação dos contrários como “remédio” para o problema

da violência no Brasil e em outros países do continente.

A discussão de temas como a aplicação da pena de morte, a redução da maioridade

penal e a legitimação nem sempre velada da tortura e da violência exercida pela população,

ao estilo “olho por olho, dente por dente” nos meios de comunicação de massa são provas

da permanência do modelo interpretativo construído por Sarmiento. Euclides da Cunha, ao

romper parcialmente com esse paradigma e denunciar a violência contras os sertanejos de

Canudos, foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a deixar de olhar os pobres e

desvalidos “de cima” e usar o jornalismo, a literatura e, por que não dizer, a escrita da

história, em defesa dos direitos dos menos favorecidos.

Bibliografia

ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo, Ática, 1989. CUNHA, Euclides da. Os Sertões: a campanha da Canudos. 39ª Ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves : Publifolha, 2000.

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17 GÁRATE, Miriam Viviana. Civilização e Barbárie N’os Sertões: Entre Domingos

Faustino Sarmiento e Euclides da Cunha – Campinas, SP : Mercado das Letras; São Paulo : Fapesp, 2001. PRADO, Maria Lígia Coelho. A América Latina do Século XIX. Tramas, Telas e Textos.

São Paulo: ESUSC\EDUSP, 1999. SARMIENTO, Domingos Faustino. Facundo: Civilização e Barbárie. Petrópolis: Vozes, 1996. SHUMWAY, Nicolas. A Invenção da Argentina, história de uma ideia. São Paulo, EDUSP, 2008. VENTURA, Roberto. Os Sertões. São Paulo: Publifolha, 2002. ZILLY, B. A Guerra De Canudos E O Imaginário Da Sociedade Sertaneja Em Os Sertões,

De Euclides Da Cunha: Da Crônica à Ficção. In: Literatura e História na América Latina:

Seminário Internacional, 9 a 13 de setembro de 1991\org. Lígia Chiappini e Flávio Wolf de Aguiar. – São Paulo, ed. Da USP.