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1 PROGRAMA DE PÓS–GRADUAÇÃO EM DIREITO – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS LINHA DE PESQUISA: CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO Andréia Haas O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO COMO MECANISMO HERMENÊUTICO DE CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE E DE REALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Santa Cruz do Sul, maio de 2007

1 PROGRAMA DE PÓS–GRADUAÇÃO EM DIREITO – …dominiopublico.mec.gov.br/download/teste/arqs/cp060611.pdf · Ministro Moreira Alves (relator)..... ANEXO F – Lei n. o 9.868,

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1

PROGRAMA DE PÓS–GRADUAÇÃO EM DIREITO – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS

LINHA DE PESQUISA: CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO

Andréia Haas

O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃ O COMO

MECANISMO HERMENÊUTICO DE CONTROLE DA CONSTITUCIONA LIDADE E

DE REALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Santa Cruz do Sul, maio de 2007

2

Andréia Haas

O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃ O COMO

MECANISMO HERMENÊUTICO DE CONTROLE DA CONSTITUCIONA LIDADE E

DE REALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Direito, Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Pública, Linha de Pesquisa: Constitucionalismo Contemporâneo, da Universidade de Santa Cruz do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientadora: Prof.a Dr.a Mônia Clarissa Hennig Leal

Santa Cruz do Sul, maio de 2007

3

Andréia Haas

O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃ O COMO

MECANISMO HERMENÊUTICO DE CONTROLE DA CONSTITUCIONA LIDADE E

DE REALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Esta Dissertação foi submetida ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Direito, Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Pública, Linha de Pesquisa: Constitucionalismo Contemporâneo, da Universidade de Santa Cruz do Sul, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Dr.a Mônia Clarissa Hennig Leal

Professora Orientadora

Dr. Paulo Márcio Cruz

Dr. Itiberê Castellano Rodrigues

4

Aos Operadores Jurídicos que fazem da interpretação um

instrumento para a constitucionalidade.

5

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, à Deus e, em seguida, ao meus pais, Orlando e Helena,

pela vida, pelo amor imensurável, pelos sacrifícios e, principalmente, pelos

incentivos durante toda a minha existência. Não seria diferente neste trabalho.

Ao meu irmão, Renan, e aos demais familiares pelo carinho que me

proporcionaram e pela torcida de sempre.

Ao meu companheiro e grande amigo Márcio, pela compreensão e estímulo

durante a perpetuação de mais um trabalho de conclusão. Se não fosse o teu

estímulo e a tua insistência, talvez não teria concluído essa pesquisa.

À Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC pelas horas de ausência na

Coordenação do Campus de Venâncio Aires.

À minha orientadora, Prof.a Dr.a Mônia Clarissa Hennig Leal, pessoa admirável

pelo conhecimento adquirido na tenra idade, professora pacenciosa na espera de

algum resultado e sensível aos compromissos da sua orientanda. Obrigada pelo

apoio e, acima de tudo, por ter acreditado que o presente estudo ainda poderia ser

desenvolvido.

À minha querida amiga, Prof.a Ms. Rosana Jardim Candeloro, que, com um

olhar crítico e carinhoso, sempre esteve presente em minha trajetória acadêmica,

fazendo da pesquisa científica um verdadeiro espaço de interlocução e aprendizado

permanentes.

Às colegas do G6: Rô, Dani Richter, Dani Salla, Claudinha e Gláucia, se não

fosse o apoio incondicional de vocês, as divididas de sempre e a torcida, tudo seria

mais difícil. AMIGAS como vocês merecem ser guardadas do lado esquerdo do

peito, pois, por maior que seja à distância, jamais vou esquecê-las.

E, por último, aos amigos para os quais fui ausente.

6

Sem aprofundar a investigação acerca da função dos princípios nos ordenamentos jurídicos não é possível compreender a natureza, a essência e os rumos do constitucionalismo contemporâneo. Paulo Bonavides. A interpretação é a sombra que segue o corpo. Da mesma maneira que nenhum corpo pode livrar-se da sua sombra, o Direito tampouco pode livrar-se da interpretação. Sem interpretação não há direito, não há direito que não exija ser interpretado. ROYO, Javier Perez. Curso de Direito Constitucional. Madrid, 1994. pp.97-98

7

RESUMO

A pesquisa que ora se apresenta visa, a partir dos pressupostos democráticos

que informam a Constituição Brasileira de 1988, a analisar o papel, as possibilidades

e os limites de aplicação do princípio da interpretação conforme à Constituição no

contexto do direito brasileiro e sua aplicação e operacionalização por parte da

jurisdição constitucional pátria, mais especificamente por parte do Supremo Tribunal

Federal. O presente estudo tem como objetivo principal investigar a doutrina e as

decisões jurisprudenciais, notadamente do Supremo Tribunal Federal, no que diz

respeito à aplicação dos instrumentos interpretativos, mais especificamente, do

princípio da interpretação conforme à Constituição, enquanto instrumento de

controle da constitucionalidade e de realização dos direitos fundamentais. O método

de abordagem adotado no desenvolvimento do presente trabalho é o dedutivo,

baseado na utilização de documentação indireta, por meio do enfrentamento teórico

das categorias consideradas fundamentais do trabalho, quais sejam: a origem da

Constituição, a transição da hermenêutica clássica à hermenêutica baseada em

princípios constitucionais e a importância dada ao princípio da interpretação

conforme à Constituição como princípio interpretativo da Lei Maior e garantidor da

constitucionalidade das leis infraconstitucionais, para, ao final, analisar pontualmente

o problema da investigação, a saber: como o Supremo Tribunal Federal Brasileiro,

voltado para a supremacia da Constituição, operacionaliza a questão da

interpretação conforme à Constituição, enquanto mecanismo de controle da

constitucionalidade e de realização dos direitos fundamentais. Neste sentido, a

hipótese desenvolvida é a de que o Supremo Tribunal Federal não tem utilizado, de

forma adequada, esse mecanismo hermenêutico de realização da supremacia da

Constituição, uma vez que, por vezes, acaba por confundi-lo com outros institutos e

até mesmo desconsidera/sonega sua aplicação quando se tem em foco a questão

dos direitos fundamentais. O tema proposto coaduna-se, ainda, com a linha de

pesquisa do Constitucionalismo Contemporâneo, visto que a sua abordagem está

em conexão com a jurisdição constitucional democrática vivenciada pela

Constituição de 1988 e sua atual relação à proteção dos direitos humanos

fundamentais, sem falar que se constitui em ponto de fundamental interesse para a

ciência jurídica contemporânea, visto a sua relevância, insuficiência de abordagem e

8

contradição de conceituação e aplicação no ordenamento jurídico brasileiro.

Palavras-chave: Hermenêutica. Princípio da interpretação conforme à Constituição.

Controle de constitucionalidade. Supremacia da Constituição. Direitos humanos

fundamentais.

9

ABSTRACT

This research aims, based on the democratic principles that guide the 1998

Brazilian Constitution, to analyze the role, the possibilities and the application limits

of the interpretation principle according to the Constitution in the context of Brazilian

Law and its application and operationalization by the Country's constitutional

jurisdiction, especially the Federal Superior Court. The main objective of this study is

to investigate the doctrine and the jurisprudential decisions of the Federal Superior

Court, regarding the application of the interpretative instruments, specifically the

interpretation principle according to the Constitution, as a controlling instrument of

the constitutionality and the accomplishment of the fundamental rights. The

methodology used here was the deductive method, based on the use of indirect

documentation, through the theoretical confronting of the cathegories considered

fundamental to this study: origin of the Constitution, transition from the classic

hermeneutics to the hermeneutics based on constitutional principles and importance

given to the interpretation principle according to the Constitution as an interpretative

principle of the Major Law and a garantee of the constitutionality of the

infraconstitutional laws, to, finally, analyze the research problem: how the Brazilian

Federal Superior Court, guided to the Constitution supremacy, deals with the

interpretation matter according to the Constitution, as a controlling tool of the

constitutionality and the accomplishment of the fundamental rights. Our hypothesys

is that the Federal Superior Court has not been using accordingly this hermeneutics

mechanism of the Constitution superiority because sometimes it is confused with

other instituts and its application is desconsidered when the fundamental rights are

being focused. The subject here proposed relates also to the research area of the

contemporary constitutionalism because its approach is connected with the

democratic constitutional jurisdiction of the 1988 Constitution and its current relation

with the fundamental human rights protection and also because it is a matter of

interest of the contemporary juridic law considering its relevance, insuficiency of

approach and contradiction between concepts and application in the Brazilian Law.

Key-words: Hermeneutics. Interpretation principle according to the Constitution.

Constitutionality control. Constitution supremacy. Fundamental human rights.

10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................... 13

1. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO E DO CONSTITUCIONALISMO:

UMA BREVE PERSPECTIVA DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO.............................................................................

1.1 Estado, Poder e Legitimação no transcurso histórico ................................

1.2 A Constituição como decorrência do Estado: do Estado de Direito Liberal

ao Estado de Direito Democrático.....................................................................

1.3 O Estado Democrático de Direito e o papel da hermenêutica frente à

Jurisdição Constitucional ..................................................................................

2 HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL: DOS MÉTODOS CLÁSSICOS DE

INTERPRETAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO DA

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA ................................

2.1 Hermenêutica versus interpretação constitucional: diferenças e

conceituações do filosófico ao jurídico .............................................................

2.2 Métodos e conceitos clássicos aplicados à interpretação constitucional......

2.3 A nova hermenêutica constitucional baseada em regras e princípios e na

superação dos métodos clássicos de interpretação .........................................

2.3.1 A distinção entre regras e princípios........................................................

2.3.2 Princípios constitucionais materiais..........................................................

2.3.3 Princípios instrumentais de interpretação constitucional .........................

2.3.3.1 Princípio da Supremacia da Constituição..............................................

2.3.3.2 Princípio da Presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do

Poder Público....................................................................................................

2.3.3.3 Princípio da unidade da Constituição....................................................

2.3.3.4 O princípio da razoabilidade e da proporcionalidade............................

2.3.3.5 O princípio da efetividade......................................................................

2.3.3.6 Princípio da Interpretação conforme à Constituição..............................

16

16

29

41

55

55

66

77

77

86

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96

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105

11

2.4 A interpretação contemporânea baseada na hermenêutica de princípios e

na sociedade aberta dos intérpretes da Constituição..........................................

3 A INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO COMO PRINCÍPIO

GARANTIDOR DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO E DOS DIREITOS

HUMANOS FUNDAMENTAIS.............................................................................

3.1 A interpretação conforme à Constituição: origem, conceitos, características

e fundamentos......................................................................................................

3.2 Interpretação conforme à Constituição versus declaração de

nulidade/inconstitucionalidade parcial sem redução de texto e o

posicionamento do Supremo Tribunal Federal frente ao controle de

constitucionalidade...............................................................................................

3.2.1 O princípio da interpretação conforme à Constituição como mecanismo

de Controle de Constitucionalidade: difuso X concentrado ................................

3.3 Limites e possibilidades da Interpretação conforme à Constituição frente

aos direitos humanos fundamentais – uma visão a ser alçada junto às

decisões do Supremo Tribunal Federal..............................................................

3.3.1 Como garantir os direitos humanos fundamentais por meio da

interpretação conforme à Constituição?..............................................................

107

117

117

145

157

166

169

CONCLUSÃO....................................................................................................

REFERÊNCIAS.................................................................................................

ANEXOS ...........................................................................................................

ANEXO A – Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção 20-4 DF,

julgado em 19/05/1994. Ministro Celso de Mello (relator)...................................

ANEXO B – Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de

Inconstitucionalidade 2596 PR, julgada em 19/03/2003. Ministro Sepúlveda

Pertence (relator).................................................................................................

ANEXO C – Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade

3046-9 SP, julgado em 15/04/2004. Ministro Sepúlveda Pertence (relator)........

ANEXO D – Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Agravo de

182

188

202

203

204

205

12

Instrumento 606805 SP, julgado em 28/11/2006. Ministro Eros Grau (relator)...

ANEXO E – Supremo Tribunal Federal. Representação 1417 DF, julgado em

09/12/1987. Ministro Moreira Alves (relator)........................................................

ANEXO F – Lei n.o 9.868, de 10 de novembro de 1999, que dispõe sobre o

processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação

declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal...........

ANEXO G – Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de

Inconstitucionalidade 1620 DF, julgado em 19/06/1997. Ministro Sepúlveda

Pertence (relator).................................................................................................

ANEXO H – Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade

1586 PA, julgado em 27/02/2003. Ministro Sydney Sanches (relator).................

ANEXO I – Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de

Inconstitucionalidade 491-3 AM, julgado em 25/10/1991. Ministro Moreira

Alves (relator).......................................................................................................

ANEXO J – Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade

2816 SC, julgada em 09/03/2005. Ministro Eros Grau (relator)...........................

ANEXO L – Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso

Extraordinário 399 248 - DF, julgada em 25/05/2004. Ministro Carlos Britto

(relator)................................................................................................................

ANEXO M – Supremo Tribunal Federal. Reclamação 2143 SP, julgada em

12/03/2003. Ministro Celso de Mello (relator)......................................................

ANEXO N – Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade

3324 DF, julgada em 16/12/2004. Ministro Marco Aurélio Mello (relator)............

ANEXO O –Lei 9.536, de 11 de dezembro de 1997 - Regulamenta o parágrafo

único do art. 49 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (transferência de

alunos de curso superior) ....................................................................................

ANEXO P – Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Estabelece as diretrizes e

bases da educação nacional. ..............................................................................

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13

INTRODUÇÃO

No Estado Democrático de Direito, a Constituição acaba por figurar como a lei

mais importante do ordenamento jurídico, por ser resultante da vontade da nação,

trazendo as aspirações e os valores mais significativos da vida em comum.

Conseqüentemente, essa mesma Constituição, por meio de regras e de princípios,

acaba por ser considerada em uma perspectiva viva, como uma construção dos

indivíduos nela inseridos, aspecto que se realiza, notadamente, pela via

interpretativa.

É inegável, porém, a necessidade de se buscarem, dentro deste contexto, em

sede de controle de constitucionalidade, alternativas mais eficazes de interpretação

constitucional e também mecanismos que permitam a adequação e submissão das

normas infraconstitucionais ao texto da Lei Fundamental, notadamente em face do

efeito de irradiação que identifica a Constituição e sua vinculação aos direitos

fundamentais na atualidade.

Conseqüentemente, entende-se que a finalidade precípua da hermenêutica

jurídica, um dos pilares sobre os quais se assenta o Estado Democrático de Direito,

consiste em fornecer meios adequados de interpretação e de busca de sentidos

para as leis e para o direito, harmonizando-os com os preceitos e conteúdos

constitucionais estabelecidos. É, por sua vez, por meio de mecanismos indicados

por uma nova hermenêutica constitucional, baseada notadamente em princípios,

principalmente no princípio da interpretação conforme à Constituição, objeto deste

estudo, que o operador do direito buscará recursos interpretativos adequados à

máxima realização dos conteúdos constitucionais, notadamente dos direitos

fundamentais.

É nesse sentido que se torna importante uma atuação construtiva da

hermenêutica, possibilitando-se que a Constituição seja interpretada ao longo do

tempo de forma a compatibilizar seu texto ao momento histórico e cultural em que

está inserido.

14

Assim sendo, a questão central que se coloca para o presente trabalho está em

observar como a Teoria Constitucional Contemporânea e, em especial, o Supremo

Tribunal Federal Brasileiro, voltado para a supremacia da Constituição,

operacionaliza a questão da interpretação conforme à Constituição enquanto

mecanismo de controle da constitucionalidade e de realização dos direitos

fundamentais e quais os limites e possibilidades que este recurso hermenêutico

possibilita em meio à ordem democrática na jurisdição brasileira.

Dessa forma, o tema proposto mostra-se pertinente ao contexto atual do

constitucionalismo, visto que a sua abordagem está em conexão com a moderna

jurisdição constitucional democrática vivenciada pela Constituição de 1988 e

baseada não apenas em regras, mas, também, e, principalmente, em princípios, que

buscam uma interpretação integradora, sem falar que é um ponto de fundamental

interesse para a ciência jurídica contemporânea, visto a sua relevância e, ainda,

insuficiente abordagem e contradição de conceituação e de aplicação no

ordenamento jurídico brasileiro, conforme demonstraremos ao longo do trabalho,

especialmente no que diz respeito às decisões do Supremo Tribunal Federal.

A presente pesquisa utiliza, para tanto, o método de abordagem dedutivo, ao

adotar como estratégia de desenvolvimento, primeiramente, um enfrentamento

teórico das categorias fundamentais da pesquisa, para, ao final, analisar

pontualmente o problema proposto, utilizando-se, ainda, o método de procedimento

histórico e analítico, que a visa localizar no tempo e de forma crítica o tema objeto

de análise. Como técnica de pesquisa, trabalha-se com a documentação indireta,

através da pesquisa bibliográfica, com consulta a fontes primárias e secundárias,

tanto em termos doutrinários como jurisprudenciais. O referencial teórico que norteia

o estudo é constituído, basicamente, por autores contemplados na linha de pesquisa

do Constitucionalismo Contemporâneo.

Para dar conta do pretendido, no primeiro capítulo do presente trabalho faz-se

um esboço do conceito de Constituição na perspectiva da evolução do Estado,

demonstrando como ela passou de mero instrumento organizatório e assegurador

das liberdades individuais no período liberal a projeto civilizatório no atual Estado

Democrático de Direito.

15

Já no segundo capítulo da presente dissertação, discorre-se, notadamente,

sobre a hermenêutica constitucional, abordando-se desde os métodos clássicos

aplicados à interpretação constitucional até as questões que envolvem e permeiam

uma nova hermenêutica constitucional, marcada não apenas por regras, mas

também por um conjunto de princípios que acabam por superar os métodos

clássicos de interpretação.

No terceiro e último capítulo, adentra-se, especificamente, na perspectiva do

princípio da interpretação conforme à Constituição como princípio hermenêutico e

garantidor da supremacia da Constituição, traçando-se, primeiramente, sua origem,

conceitos, características e fundamentos, para, posteriormente, proceder-se a uma

análise de sua operacionalização enquanto instrumento de controle da

constitucionalidade e de realização dos direitos fundamentais, a partir de decisões

prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal, buscando verificar-se se lhes têm sido

conferida, efetivamente, a plena eficácia que lhes é atribuída pela teoria

constitucional contemporânea, estreitamente conectada com os fundamentos e

preceitos do Estado Democrático de Direito.

Por fim, é apresentada a conclusão que encerra o presente estudo,

promovendo-se um breve apanhado dos assuntos tratados ao longo do trabalho,

com a exposição, ao fim, das respostas encontradas para os questionamentos que

instigaram a pesquisa, a fim de se corroborar ou não a hipótese levantada, que

considera que o Supremo Tribunal Federal não tem operacionalizado de forma

adequada a aplicação do princípio da interpretação conforme à Constituição,

principalmente, na proteção dos direitos humanos fundamentais, sustentando um

posicionamento frágil e, por vezes, até confuso e contraditório em suas decisões.

16

1. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO E DO CONSTITUCION ALISMO: UMA

BREVE PERSPECTIVA DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO DEMOC RÁTICO DE

DIREITO

1.1 Estado, Poder 1 e Legitimação no transcurso histórico

Várias teorias tentaram ou tentam explicar a origem do Estado. Assim, além da

teoria contratualista, poder-se-ia mencionar outras vertentes de explicação da

origem do Estado e do poder político, mas no presente trabalho far-se-á um exame

mais restrito da teoria contratualista, cujo pensamento de seus autores não é

unívoco, sendo este o foco do que analisaremos adiante, no número de três, por

considerarmos as correntes mais importantes no que diz respeito ao tema proposto.

Leal2, introduzindo o assunto refere que:

Com a queda do modelo feudal, a forma concentrada de organização do poder político, justificado na vontade divina, sofre um profundo desgaste, abrindo-se espaço para a teoria do contrato social que, partindo do pressuposto de que o indivíduo está no centro da teoria política, coloca o Estado como sendo criado por um pacto firmado entre homens livres e iguais, que a ele delegam a função de assegurar as suas liberdades e os seus direitos.

Assim sendo, para superar os inconvenientes do estado de natureza3, os

homens acabam por se reunir e estabelecer entre si um pacto que funciona como

instrumento de passagem do estado de natureza para o estágio político (social), que

serve, ainda, como fundamento de Iegitimação do Estado da Sociedade.

1 Poder: quando escrito em letra maiúscula refere-se ao poder institucionalizado. 2 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 03. 3 Segundo STRECK e MORAIS, o Estado de natureza se apresenta como contraface do estado civil, ou seja, se não estamos no interior da sociedade política, caímos no estado de natureza. Seria o estágio pré-político e social do homem, embora este, mesmo em estado de natureza não seja pensado como “selvagem”, sendo o mesmo que vive em sociedade. STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 32.

17

Esse pacto é chamado de contrato social, sendo que para Hobbes4 esse

contrato é firmado entre os indivíduos que, com o intuito de preservação de suas

vidas, transferem a outrem todos os seus poderes, com exceção, é claro, do próprio

direito à vida5, eis ser intransferível e irrevogável pela sua própria natureza. Não há

aqui, ainda, para este autor, de se falar em direitos, pois estes só aparecem com o

Estado - em troca de segurança. Ou seja, para pôr fim à guerra de todos contra

todos, própria do estado de natureza, Hobbes entendia que os homens deveriam

despojar-se do que possuíam de direitos e possibilidades, em troca de receberem a

segurança do Leviatã6.

Por outro lado, para Locke7, pai das diretrizes fundamentais do Estado Liberal,

a passagem do Estado de natureza para o Estado Civil, por meio do contrato social,

se fará para permitir que os direitos pré-sociais possam ser garantidos pelo

soberano. Assim, os direitos naturais, presentes no Estado de Natureza, vão traçar

os limites do poder soberano no Estado Civil. Observa-se, aqui, que o indivíduo

abandona um único direito, qual seja, o de fazer justiça pelas próprias mãos,

concordando em juntar-se e unir-se em sociedade, para viver pacificamente uns com

os outros.

Observa-se, ainda, que Locke8 tem uma concepção de contrato social diferente

da de Hobbes, considerando-o um pacto de consentimento em que se mantêm

todos os direitos naturais, devendo o indivíduo dar seu consentimento para a

entrada no estado civil e para a formação do governo em momento posterior.

Em resumo, no contrato social de Hobbes não há parâmetros naturais para a

ação estatal, uma vez que, pelo contrato, o homem se despoja de tudo, exceto da

4 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Coleção Os pensadores. 5 Segundo Martins, “o primeiro e mais importante de todos os direitos fundamentais do ser humano é o direito à vida. É o primeiro dos direitos naturais que o direito positivo pode simplesmente reconhecer, mas que não tem a condição de criar”. MARTINS, Ives Gandra da Silva. O direito constitucional comparado e a inviolabilidade da vida humana. In: PENTEADO, J.C.; MARQUES, R.H. (Org.). A vida dos direitos humanos: bioética médica e jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. p. 128. 6 Para Hobbes, a figura mitológica ou bíblica do mostro Leviatã representa a figura do Estado, um ser superior frente ao indivíduo. 7 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o governo. Tradução de Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 26-32. 8 LOCKE, ibidem.

18

vida, conforme já referido, transferindo o asseguramento dos interesses à sociedade

política, especificamente ao soberano ou à figura do Leviatã, sendo que os direitos

existentes acabam por tornarem-se autoria do Estado.

Por conseguinte, na visão de Rousseau9, terceiro autor em comento, o homem

nasce livre e encontra-se intrinsecamente aprisionado, sendo que somente a

vontade geral pode dirigir as forças do Estado, segundo a finalidade de sua

instituição, que é o bem comum. Esse bem comum caminha sempre em direção dos

interesses gerais, verdadeiro motor do corpo social.

A vontade geral10 de que fala Rousseau não advém da vontade de um terceiro,

por meio de um pacto, mas se origina de uma união entre iguais, onde cada

indivíduo renuncia os seus próprios interesses em favor da coletividade e “[...] cada

indivíduo contratando consigo mesmo, acha-se de dois modos empenhado, isto é,

como membro do soberano com os particulares, e como membro do Estado com o

soberano [...]”11.

Dessa forma, a soberania sai da mão do Monarca e se consubstancia no povo

que dita a vontade geral, cuja expressão acaba sendo a lei. Esse contrato social

acaba dando origem à democracia12, na medida em que o poder já não pertence ao

príncipe ou a uma oligarquia, e sim à sociedade civil.

Rousseau13, quando da afirmação da origem popular do poder, ao considerar

que o soberano, constituído pelo pacto social, é o povo incorporado, ditando a

vontade geral por meio da lei, considera que: ”a natureza dá a cada homem poder

absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder

9 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003. Coleção a Obra-Prima de cada autor. 10 A “vontade geral” para Rousseau está na concepção de sempre se querer o bem e é por isso que preceitua dessa forma: “Há comumente grande diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta só fita o interesse comum; aquela só vê o interesse, e não é mais do que uma soma de vontades particulares; porém quando tira dessas vontades as mais e as menos, que mutuamente se destroem, resta por soma das diferenças a vontade geral”. Ibidem, p. 41. 11 Ibidem. p. 33. 12 A democracia disposta por ROUSSEAU, Jean-Jacques. Tradução de Pietro Nassetti. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 69. Coleção a Obra-Prima de cada autor., diz respeito “a confiança do governo pelo soberano à todo povo, ou à maior parte dele, de forma que haja mais cidadãos magistrados que cidadãos simples particulares”. 13 Ibidem, p. 43.

19

absoluto sobre todos os seus; e é esse mesmo poder que, encaminhado pela

vontade geral, tem o nome de soberania".

Como se vê, a doutrina do contrato social tornou-se um importante componente

teórico para os revolucionários, sendo que as reivindicações de uma Constituição

embasava-se exatamente na tese de que o contrato social encontra sua explicitação

no texto Constitucional.

Dando continuidade, cabe lembrar que tanto o Poder como o Estado, este

último derivado dos grupamentos humanos, sempre foi objeto de estudos dos

grandes filósofos14, na medida em que o interesse pela sua organização, sua origem

e pelo funcionamento de seus órgãos, desperta indagações e debates infindáveis

em torno da sua função, poderes e finalidade.

Aristóteles15 escreveu um tratado sobre o Estado – o Estado da Antigüidade –,

o qual denominou de A política. Partiu ele do estudo da organização política de

Atenas e Esparta, seus órgãos de governo, redundando, ao final, na classificação de

todas as formas de governo existentes à época. Por este estudo, Aristóteles é

considerado por muitos como o fundador da Ciência do Estado, sendo que seus

estudos, as suas idéias e a classificação que fez das formas de governo, ainda

inspiram e guiam os que se propõem e se aventuram a analisar este fenômeno e

campo inesgotável de pesquisa: o Estado.

Platão16, por sua vez, também se propôs a estudar e escrever sobre o Estado,

elaborando o tratado conhecido como A república, contudo, descreveu o Estado

ideal, como deveria ser, sob a concepção do homem e do mundo. O princípio do seu

tratado era a idéia de Estado.

Já na Idade Média, denotam-se grandiosas tentativas de sistematização da

ciência política, fato que assinalou significativa atividade do pensamento filosófico da

14 Cita-se, aqui, Aristóteles, Platão, São Thomas de Aquino, entre outros, que serão nominados no decorrer do estudo. 15 ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 16 PLATÃO. A república. São Paulo: Martin Claret, 2004.

20

época, destacando-se as obras dos pensadores da Igreja, notadamente as obras de

Santo Tomás de Aquino17, que ainda nos dias de hoje servem de fundamento à

solução de muitos dos problemas que se enfeixam aos juristas hodiernos.

O Príncipe, de Maquiavel18, no século XVI, lança os fundamentos da política

como arte de governar os Estados, enfatizando os modos de atingir, conservar e

exercer o Poder, derivando daí diversas doutrinas oriundas dos escritores que se

dedicam ao estudo do Estado.

Com o decorrer da história, envolvendo o avanço do pensamento filosófico e da

própria sociedade, o Estado sofre profundas modificações nas suas estruturas e no

seu funcionamento, muitas delas reclamadas e intentadas pela sociedade, que tinha

por objetivo a organização dos Poderes do Estado.

Sendo assim, há de se relembrar que durante a Idade Média a jurisdição estava

em mãos privadas, concentrando-se aí o Poder, não havendo dissociação entre o

indivíduo e a autoridade, o que favorecia o exercício de um Poder absoluto e

desagregado do interesse do indivíduo e do coletivo. Não havia garantias à

coletividade ou aos indivíduos.

Dessa forma, o Poder, que tinha origem na posse da terra e que aos poucos se

centra nas mãos do monarca – na autoridade do rei – é que vai se concretizar,

posteriormente, como uma das principais características do Estado Moderno, na

versão absolutista, passando a denominar-se de soberania.

Observa-se, no decorrer do presente estudo, que houve tentativa, na Idade

Média, de criar-se uma idéia de Estado, de nação e de pátria, conforme preceituou

Azambuja19, mas o Estado surge, enquanto instituição jurídica, apenas na

Modernidade.

17 Uma de suas obras é: AQUINO, Santo Tomás de. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Petrópolis: Vozes, 1997. 18 MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martin Claret, 2003. 19 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 35. ed. São Paulo: Globo, 1996. p. 51.

21

Conforme Streck e Morais20,

[...] não existiu Estado Centralizado no decorrer do período medieval, exatamente pela fragmentação dos poderes em reinos, feudos etc. A forma do Estado centralizado – o Estado como poder institucionalizado – é pós-medieval, vindo a surgir como decorrência/exigência das relações que se formaram a partir do novo modo de produção – o capitalismo – então vigente.

Dessa forma, a existência do Poder e a forma como era exercido levaram o

homem a procurar a causa da eficiência deste fenômeno e dos fatos que o

rodeavam, indagando-se sobre a origem das instituições políticas e o fundamento do

Poder e da autoridade. Assim, a irresignação que vertia no seio popular, em face do

exercício do Poder absoluto, levou à necessidade de sua limitação, bem como do

seu deslocamento; já não mais se concebendo a personificação do Poder em um

determinado indivíduo, sendo necessário despersonalizá-lo e instituí-lo mediante

uma força superior à dos indivíduos, com o consentimento da grande maioria da

coletividade.

Conforme teoriza Ferrajoli21:

É a Hobbes, em particular, que remonta a primeira formulação das idéias do Estado-pessoa e da personalidade do Estado, que servirão para oferecer um firme ancoradouro ao atributo da soberania. Querendo dar uma definição do Estado, escreve Hobbes no De Cive, "devemos dizer que este é uma única pessoa, cuja vontade, em virtude dos pactos contraídos reciprocamente por muitos indivíduos, deve ser considerada como vontade de todos aqueles indivíduos; e, portanto, pode servir-se das forças e dos haveres individuais para a paz e para a defesa comum". Trata-se de uma idéia basilar para a futura história do direito público. Nasce com ela a metáfora antropomórfica do Estado "pessoa" ou "homem artificial", ainda hoje dominante na doutrina juspublicista, à qual a soberania é associada como essência ou "alma artificial" e, concomitantemente, como poder absoluto. [...] Onde a autoridade, e não a verdade, faz a lei.

Portanto, em contraponto ao Estado Medieval, Leal22 refere que: “o Estado

Moderno foi constituído exatamente para instituir um espaço controlável e seguro de

produção da ordem, com recursos suficientes para estabelecer e impor regras e

normas que ditavam o rumo dos negócios num certo território”.

20 STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 23. 21 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. Tradução de Carlo Coccioli e Márcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 19-20. 22 LEAL, Rogério Gesta. Gestão Pública Compartida no Brasil: construtos epistemológicos. In: Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas. 2005. p. 32.

22

Por conseqüência, foi em face das deficiências da sociedade política medieval

que surgiram as características fundamentais do Estado Moderno: o território e o

povo como elementos materiais; o governo, o poder, a autoridade ou o soberano,

como elementos formais. Vale-se da lição de Correa23 para afirmar que “para alguns

autores, existe um terceiro elemento: a finalidade – o Estado deve ter uma finalidade

peculiar, que justifique sua existência”.

É com Streck e Morais24, ao tratar do deslocamento do Poder e sua

institucionalização em um ente superior, que se tem a noção de que:

Nessa linha é importante registrar que, naquilo que se passou a denominar de Estado Moderno, o Poder se torna instituição [...]. É a idéia de uma dissociação da autoridade e do indivíduo que a exerce. O Poder despersonalizado precisa de um titular: o Estado. Assim, o Estado procede da institucionalização do Poder, sendo que suas condições de existência são o território, mais potência e autoridade. Esses elementos dão origem à idéia de Estado. Ou seja, o Estado Moderno deixa de ser patrimonial. Ao contrário da forma estatal medieval, em que os monarcas, marqueses, condes e barões, eram donos do território e de tudo o que neles se encontrava (homens e bens).

Segundo Leal25, “as relações entre poder político, sociedade e governo, ao

longo da história do Ocidente, encontram-se presentes em todas as esferas da vida,

geralmente sob a forma de uma organização política – institucionalizada ou não” e

surge como “[...] uma extensão da natureza humana”, “[...] concebida como

manifestação espontânea do indivíduo racional e intrinsecamente social”.

E, ainda, seguindo o pensamento do autor referido no parágrafo anterior, há de

se citar que:

[...] a concepção de poder e de governo atrela-se à figura do indivíduo/cidadão e às condições de possibilidades do seu desenvolvimento econômico, pois o papel do cidadão é o mais elevado a que um indivíduo pode aspirar [...], é a única forma legítima na qual a liberdade pode ser sustentada e efetivada. 26

23 CORREA, Darciso. Implicações jurídico-políticas da dicotomía público e privado na sociedade capitalista. Tese de Doutorado. Florianópolis: UFSC, 1995. p. 54. 24 STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 27. 25 LEAL, Rogério Gesta. Gestão Pública Compartida no Brasil: construtos epistemológicos. In: Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas. 2005. pp. 01-02. 26 Ibidem, p. 05.

23

No tocante à migração do poder soberano para a parcela do povo que habita

determinado território, cabe recordar que no Estado Medieval o Poder estava nas

mãos do monarca e que no Estado Moderno ele passa a ser consubstanciado na

mão do povo, tendo como limitação, apesar de seu caráter absoluto, o conteúdo do

contrato originário do Estado, conforme bem preceituou, anteriormente, Rousseau27.

Ainda no que diz respeito à soberania, Morais28 ensina que:

A soberania caracteriza-se, historicamente, como um Poder que é juridicamente incontrastável, pelo qual se tem a capacidade de definir e decidir acerca do conteúdo e da aplicação das normas, impondo-as coercitivamente dentro de um determinado espaço geográfico, bem como fazer frente a eventuais injunções externas. É tida como una, indivisível, inalienável e imprescritível. [...] Caracterizada por uma estrutura de poder centralizado e que exerce o monopólio da força e da política – legislativa, executiva e jurisdicional – sobre um determinado território e a população que o habita.

Mas a soberania, a representação do Poder, nem sempre esteve com o Estado,

já que no medievo este Poder estava nas mãos privadas do senhor feudal. Segundo

Streck e Morais29

o rompimento paradigmático da velha ordem medieval para uma nova ordem se dá principalmente através da passagem das relações de poder (autoridade, administração da justiça, etc.) até então nas mãos privadas do senhor feudal, para a esfera pública (o Estado centralizado). Ou seja, na medida em que ocorria a alteração do modo de produção, a sociedade civil agregava novas exigências ao que até então era exercido pelo poder privado (comunicações, justiça, exército, cobrança de impostos, etc).

Entende-se que a distinção entre a esfera privada e a pública, a dissociação

entre o poderio político e o econômico, e a separação entre as funções

administrativas, políticas e a sociedade civil, são as principais especificidades que

marcaram a passagem da forma Estatal Medieval para o Estado Moderno, mas a

referida passagem do velho ao novo modelo não se deu sem traumas. Houve

rupturas que, no momento, se mostravam irreconciliáveis, em face dos interesses

políticos e econômicos em jogo, mas os obstáculos não se mostravam capazes de

27 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003. Coleção a Obra-Prima de cada autor. 28 MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2002. pp. 24-25 29 STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 27-28.

24

desestimular a idéia de que era necessário que um ente superior, com

características, estruturas e administração próprias e autofinanciáveis, fosse o

detentor legal dos poderes outorgados pelo povo. Contudo, esta entidade deveria

ser despojada e desinteressada pela proteção tão-somente dos interesses

individuais, deveria ser capaz de centralizar poderes suficientes à solução e controle

dos problemas sociais, atendendo também as suas demandas.

A idéia de Estado conduz a sociedade à não-percepção de que o Estado é a

confissão de que ela mesma se há embrenhado numa contradição insolúvel,

resultando em antagonismos irreconciliáveis, uma vez que não se dispunha de

mecanismos de conciliação e controle. Por conseguinte, “o Estado não existe em

prol dos cidadãos: poder-se-ia dizer que ele é a finalidade e que aqueles são seus

instrumentos”30.

Contudo, o que parecia intransponível e paradoxal, não se prestava a frear

definitivamente os anseios pelo estabelecimento de uma nova ordem, eis que era

preciso que os antagonismos, tanto individuais como coletivos, as classes com

interesses econômicos opostos, com ideologias políticas contrapostas, não se

devorassem mutuamente, assim como era imperioso evitar que a sociedade se

lançasse numa luta estéril e inconseqüente. Streck e Morais31, consubstanciando-se

no pensamento de Engels, referem que “para isso se faz mister um Poder, colocado

aparentemente acima da sociedade, com a missão de amortecer o conflito e mantê-

lo dentro dos limites da ordem”; e, na seqüência, concluem que “este Poder, que

brotou da sociedade, mas que se colocou por sobre ela e da qual cada vez mais se

divorcia, é o Estado”.

Em razão da existência do Estado, o indivíduo passa a organizar-se em

comunidade e a exigir mudanças no ordenamento jurídico-político, sendo que nesse

momento, o indivíduo entende que o Direito não pode resultar somente dos

costumes, mas de normas jurídicas editadas por determinado e reconhecido ato

legislativo, passíveis de serem cumpridas e exigidas a qualquer um, o que redundou

30 Conforme FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. Tradução de Carlo Coccioli e Márcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 100. 31 STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 31.

25

na limitação e no controle do Poder estatal. Passava-se, a partir desse momento,

por conseqüência, a fixar os limites do Poder exercido pelo Estado.

Dessa feita, observa-se a necessidade de um Poder superior, mas não se

podia estabelecê-lo sem controle, desvirtuado de sua finalidade, fato que

preocupava a sociedade que desejava a institucionalização do Estado. Assim, ao

tempo em que era necessário outorgar a alguém o Poder, era imperioso controlá-lo

e legitimá-lo.

Mas como legitimar este Poder? Streck e Morais32 entendem que a legitimação

reside e deriva do povo, sendo relevante recordar que Rosseau33 identificou a

legitimação na vontade geral, dizendo: “Creio poder estabelecer como princípio

indiscutível que somente a vontade geral pode dirigir as forças do Estado segundo a

finalidade de sua instituição, que é o bem comum”. Todavia, cumpre aclarar que a

vontade geral não advém da submissão a um terceiro, por meio de um pacto: ela se

origina de uma união entre iguais. Cada um renuncia a seus próprios interesses em

favor da coletividade. É assim que o Estado, em agindo a par do interesse coletivo,

legitima as suas ações, tanto interna como externamente, conduzindo-nos à

conclusão de que na supremacia dos Poderes da coletividade nasce a democracia.

E esta vontade geral relacionava-se diretamente à aceitação pelo povo do

sistema legal vigente, já que:

[...] o povo não é apenas – de forma mediata – a fonte ativa da instituição de normas por meio de eleições, bem como – de forma imediata – por meio de referendos legislativos; ele é de qualquer modo o destinatário das prescrições, em conexão com deveres, direitos e funções de proteção. E ele justifica este ordenamento jurídico num sentido mais amplo como ordenamento democrático, à medida que o aceita globalmente, não se revoltando contra o mesmo34.

Note-se que o constitucionalismo moderno opõe-se à tradição medieval, que se

fundamentava somente no direito consuetudinário e, ainda, no poder divino. No

32STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 39. 33 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003.p. 46. Coleção a Obra-Prima de cada autor. 34 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo. A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Neumann. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 61

26

medievo, acreditava-se que o direito era anterior à lei, imanente à condição do

homem, bastando à instituição de uma ordem, mas os regimes absolutistas

provaram o contrário.

Fazendo, novamente, uma digressão histórica, observa-se, em razão da própria

existência do Estado, cujo Poder, em princípio, não era controlado nem

compartilhado, sendo exercido contrariamente aos interesses do homem, com o uso

da violência estatal, que o indivíduo passa a organizar-se em comunidade e a exigir

mudanças no ordenamento jurídico-político do Estado.

As idéias de uma nova ordem para o Estado avançavam. Não se podia mais

conviver com o status do medievo, com os poderes feudais e monárquicos

despóticos. Os movimentos eram para a instituição de uma lei fundamental que

regrasse os Poderes do Estado, estabelecendo, ainda, a divisão destes Poderes35.

Após a promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de

1789, há a definição da organização e a separação dos Poderes, estabelecendo

regras à atividade estatal, passando o Estado a deter a exclusiva competência para

a elaboração e promulgação de leis reclamadas pela comunidade. Com isto, o

Legislativo (o Parlamento) passa a, cada vez em maior volume, editar leis

elaboradas e aprovadas consoante um processo definido e legitimado pela

sociedade, já que o Legislativo era o representante desta, obrigando a observância a

todos, inclusive aos demais Poderes, dispondo ao Judiciário o aparelho repressivo

estatal, com o fito de, em havendo resistência, determinar, sob força, o seu

cumprimento.

Dessa forma, observa-se que no início do século XVIII a Constituição escrita

passa a desempenhar uma função de garantia, ou seja, inserem-se no texto

constitucional normas jurídicas de garantia dos direitos do homem contra o arbítrio e

a opressão do Estado. Estas normas constituíram-se na principal característica do

constitucionalismo moderno e do Estado Democrático de Direito. 35 Com Montesquieu, no século XVI, que toma força a teoria da tripartição dos Poderes do Estado: o executivo, o legislativo e o judiciário. A essa época já se falava da exigência da autonomia para a Justiça, com juízes atuando independentes de quem governa ou faz as leis, bem como de um parlamento com autonomia suficiente para não se submeter à vontade do rei. Isto garantia a continuidade e a segurança necessárias à evolução social e do Estado, na medida em que a divisão dos Poderes representava um óbice à interferência de uma esfera em outra.

27

Por conseguinte, ao passo que o ordenamento legal deveria derivar de uma

vontade geral, também se fazia necessária a implantação de normas jurídicas

escritas que fossem superiores a todas as outras, efetivando o Poder e

reconhecendo que ele pertence a um órgão superior: o Estado. Desta feita, todo o

ordenamento jurídico deveria respeitar a uma norma superior: a Constituição.

Por conseqüência, o Estado Moderno não podia mais sobreviver sem a

configuração e a estruturação do seu quadro de normas jurídicas, sendo estas

necessárias ao conforto das decisões dos governantes, como fonte de legitimação

do Poder, e devidamente submetidas a uma lei maior. Neste sentido, Leal36 ensina

que:

[...] a teoria do Estado Moderno está toda centrada na figura da Lei como principal fonte de padronização das relações de convivência, lugar onde o princípio de legitimação das sociedades políticas vindouras se assenta. A partir desta premissa, a figura da Constituição tem uma função de justificação do novo poder que se instaura, delimitando a estrutura, organização e competências estatais que são responsáveis pelo asseguramento das regras do desenvolvimento social e econômico da sociedade, bem como, é claro, substitutas das instâncias de governo até então existentes.

É assim, com o advento das Constituições escritas, que a ciência do Estado

toma novo impulso. O estudo da organização de cada Estado, facilitado pela

codificação de suas normas fundamentais, vai acentuando a evidência de que em

todos eles há notas e elementos comuns e permanentes, bem como nas instituições

que neles existem, de modo a ser possível conceituá-los e classificá-los.

Não obstante positivar as normas relativas aos Poderes do Estado, com o

consentimento do povo notava-se que as suas normas jurídicas e as suas decisões

não alcançavam e obrigavam a todos, já que havia resistências da elite dominante a

submeter-se às próprias normas que editavam em nome do Estado, o que gerava

uma crise de legitimidade no exercício do Poder, que necessitava ser efetivo,

alcançando a todos, inclusive aos governantes, o que, em princípio, não se

concretizava.

36 LEAL, Rogério Gesta. Significados e sentidos do Estado Democrático de Direito enquanto modalidade ideal/constitucional do estado brasileiro. Redes, EDUNISC, jul. 1998, v. 3. n. 1. p. 149

28

Dessa forma, a igualdade perante a lei deveria ser a característica justificadora

da ação estatal. Deveria ser instalado o império da lei, significando que o próprio

legislador que a instituía deveria submeter-se a ela, evitando-se, desta forma, a

instalação de um instrumento de dominação arbitrária, acobertada por uma

legalidade. Surgia-se daí a figura do Estado de Direito.

Não se pode deixar de abordar a questão da efetividade do Poder que editou a

Constituição da efetividade dela própria. Assim é que aprendemos com Ferreira

Ferreira Filho37 que:

Há que se distinguir a efetividade do Poder que editou a Constituição e a efetividade da própria Constituição. Sim, porque esta efetividade há de registrar-se tanto quanto aos governados como quanto aos governantes, ou seja, quanto aos próprios detentores do poder efetivo. Se estes não se sujeitam ao que dispõe a Constituição que editaram, esta não é uma “verdadeira” constituição. Tem aparência de Constituição, apenas e tão-somente. A Constituição torna-se ato jurídico, ou melhor, assume significado jurídico – como diria Kelsen – se for efetiva para o próprio poder que a estabeleceu e para a comunidade para a qual foi estabelecida, quando obtém esta efetividade.

Entende-se, conforme o estudo depreendido daqui, que é a legitimidade, em

afinidade com a legalidade, que vai oferecer as condições ideais para o exercício do

Poder, das normas que o regem e das que edita, dando estabilidade às instituições

e às relações sociais.

Para não conhecer de sua ineficiência, o Estado prefere, em algumas

oportunidades, “negar a existência de inúmeras tensões sociais que se avolumam

sem respostas satisfativas, ou ainda, lançá-las à clandestinidade ou ilicitude, [...]

deixando, assim, de compreender que administrar os conflitos da sociedade significa

conservar a sociedade”. Então, “na medida em que o Estado não é capaz de

resolver os conflitos, ele perde sua legitimidade”38.

E, desta forma, se encerra a percepção do surgimento do Estado, notadamente

pela existência de um território, de uma organização política e de mecanismos de

dominação legal e, também, pela organização da administração burocrática,

submetendo todos ao mesmo sistema jurídico-legal-administrativo.

37 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 52. 38 É o entendimento de LEAL, Rogério Gesta. Gestão Pública Compartida no Brasil: construtos epistemológicos. In: Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas. 2005. p. 39.

29

Assim, a evolução da formação e caracterização do Estado acaba por buscar

uma legalização ou constitucionalização das relações entre indivíduos e Estado.

Dessa forma, sente-se a necessidade de discorrer sobre as formas que o Estado de

Direito vai tomando no decorrer da história, mais precisamente, no que diz respeito

ao Estado Moderno e à formação da Constituição na perspectiva dessa evolução,

indo do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito, para a partir daí termos

condições de buscar as concepções de um Estado que valoriza a hermenêutica

constitucional, a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição e os princípios,

como garantidores do controle de constitucionalidade e dos direitos humanos

fundamentais.

1.2 A Constituição como decorrência do Estado: do E stado de Direito Liberal

ao Estado de Direito Democrático

A Constituição caracteriza-se por ser, hierarquicamente, a carta político-jurídica

mais importante relativa à organização do poder, sendo que suas características

variam no decorrer da história, e apesar de ter suas verdadeiras concepções

advindas da Idade Moderna, aparece, timidamente, conforme Matteucci39, já na

Idade Antiga.

Observa-se, no Estado de Direito Liberal, a predominância clara do

autoritarismo e da idéia de limites, sendo que é nesse momento histórico que a

Constituição passa a ser vista como uma carta eminentemente jurídica, onde o

Poder Legislativo tem lugar de destaque e maior importância em relação aos demais

poderes constituídos.

Por conseguinte, sob a ótica liberal, podemos referir que

o instrumento que melhor pode ordenar os regramentos sobre as competências e atribuições, [...] é a lei; entretanto, para que se vincule o Estado a respeito da mesma, ela deve ter um status diferenciado, capaz de efetivamente obrigar a todos os entes políticos: o de lei constitucional.40

39 MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad. Historia del constitucionalismo moderno. Traducción de Francisco Javier Ansuátegui Roig y Manuel Martínez Neira. Madrid: Trotta, 1998. p. 23 40 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no

30

O Estado Liberal de Direito apresenta-se como uma garantia dos indivíduos-

cidadãos frente à eventual atuação do Estado, impeditiva ou constrangedora de sua

ação cotidiana. Ou seja, a este cabe o estabelecimento de instrumentos jurídicos

que assegurem o livre desenvolvimento das pretensões individuais, ao lado das

restrições impostas à sua atuação positiva. Por isso, Bobbio41 diz que “[...] o

liberalismo é uma doutrina do Estado limitado tanto com respeito aos seus poderes

quanto às suas funções”.

Cria-se, assim, conforme Leal42, “a idéia de que o Estado está a serviço do

homem, e não o contrário, o que permite que se imponham limites às suas

atividades e ao seu poder”.

Para Ferrajoli43:

[...] com o nascimento do Estado liberal. Com a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, e depois com as sucessivas cartas constitucionais, muda a forma do Estado e, com ela muda, até se esvaziar, o próprio princípio da soberania interna. De fato, divisão dos poderes, princípio de legalidade e direitos fundamentais correspondem a outras tantas limitações e, em última análise, a negações da soberania interna. Graças a esses princípios, a relação entre Estado e cidadãos já não é uma relação entre soberano e súditos, mas sim entre dois sujeitos, ambos de soberania limitada.

A partir desse momento, o princípio da legalidade nos novos sistemas

parlamentares modifica a estrutura do sujeito soberano, vinculando-o não apenas à

observância da lei, mas também ao princípio da maioria e aos direitos fundamentais,

transformando os poderes públicos de poderes absolutos em poderes funcionais.

Com a instauração do Estado Liberal, movido e gerido pelos interesses da

burguesia e partindo do pressuposto de que o homem é anterior ao Estado44, ao

primeiro é dado o direito de pensar que tudo aquilo que não seja proibido pela lei é

permitido para si. Nesse momento histórico, a Constituição passa a ser reconhecida

Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 123-124. 41 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 17. 42 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 03. 43 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. Tradução de Carlo Coccioli e Márcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 28. 44 Concepção de LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. pp. 03-04.

31

pela sua superioridade hierárquica em relação às demais normas, sendo

considerada um instrumento de manutenção da ordem, o que passa a ser o grande

mote do Estado Liberal, passando o poder das mãos do monarca para a

representatividade da lei que não admite lacunas.

Pelayo45 define o Estado Liberal de Direito como sendo:

Um Estado cuya funcción capital es estabelecer y mantener el Derecho cuyos límites de acción están rigurosamente definidos por este, pero, bien entendido que Derecho no se identifica com qualquier ley o conjunto de leyes con indiferencia hacia su contenido (...) EI Estado de Derecho significa, así una limitación deI poder deI Estado por el Derecho, pero no Ia posibilidad de legitimar cualquier critério alándole forma de ley...

Observa-se, dessa maneira, que o Estado liberal está fundado na liberdade, na

igualdade formal de todos perante a lei e na independência, mais ou menos como

determinavam os ideais da Revolução Francesa. “Assim, o caráter puramente formal

da igualdade no Estado de Direito liberal não exprime senão a superação burguesa

das desigualdades jurídicas próprias de um antigo regime”46.

O Estado de Direito Liberal não era apenas um Estado legal, mas um Estado

de limites à serviço da burguesia, estando fundado na liberdade, igualdade e

independência de todos os membros da sociedade, ficando sujeitos à mesma lei.

Portanto, não basta que um Estado possua uma certa legalidade, pois indispensável

será que seu conteúdo reflita um determinado ideário. Ou seja, para o Estado ser de

Direito, não é suficiente que seja um Estado Legal, mas um Estado que tenha limites

dispostos na legalidade.

O Estado liberal não era tão formal como por vezes se afirma. Ele não era só um Estado de direito, mas também um ‘Estado de limites’ a serviço dos factores dominantes da sociedade burguesa. Um exemplo claro é o da função racional das leis gerais e abstractas: sendo um instrumento de garantia do livre e igual desenvolvimento dos indivíduos, encobriam a possibilidade de ‘desiguais poderes sociais’ e a ‘natureza de classe’ do Estado. 47

45 PELAYO, Manuel García. Las transformaciones del Estado contemporáneo. Madrid: Alianza, 1996. p. 52. 46 PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1994. p. 160-161. 47 CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador – contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Almedina, 1994. p. 42.

32

Observa-se que, em sua origem, o Estado de Direito era um conceito

tipicamente liberal; daí falar-se em Estado Liberal de Direito, cujas características

básicas era: a) submissão ao império da lei; b) a divisão dos poderes e c) a garantia

dos direitos individuais.

Entende-se, dessa maneira, que a concepção liberal do Estado de Direito serve

de apoio aos direitos do homem, convertendo os súditos em cidadãos livres,

percebendo-se a partir de então uma igualdade natural dos homens perante a lei,

surgindo daí, consequentemente, a reivindicação pelo reconhecimento dessa

igualdade pelo Direito. Em outras palavras, o que se reivindica durante o Estado

Liberal de Direito é a abolição dos privilégios pelos quais a nobreza e o clero

juridicamente se distinguiam do Terceiro Estado.

Conforme Streck e Morais48,

Como liberal, o Estado de Direito sustenta juridicamente o conteúdo próprio do liberalismo, referendando a limitação da ação estatal e tendo a lei como ordem geral e abstrata. Por outro lado, a efetividade da normatividade é garantida, genericamente, através da imposição de uma sanção diante da desconformidade do ato praticado com a hipótese normativa.

Resumindo, pode-se afirmar que o Liberalismo lutou fundamentalmente pelas

liberdades, sejam elas: de religião, de palavra, imprensa, de reunião, de associação,

de participação na política, etc., sendo que tinha como objetivo a reivindicação pela

não interferência do Estado, o que, posteriormente, teve que ser renunciado em

decorrência do Estado Social de Direito, que o sucedeu.

Dessa forma, segundo Pinto49:

As liberdades individuais, fundamento do progresso, inatas, eram, pois, liberdades pré-políticas: o Estado formava-se exactamente para as proteger e não podia interferir na sociedade para as limitar, mas apenas para as generalizar, impedindo os eventuais abusos cometidos no seu

48STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 94. 49 PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1994. p. 154.

33

exercício. Um Estado, portanto, absolutamente neutral perante os interesses econômico-sociais que se digladiavam na sociedade.

Assim, o que podemos depreender desse momento histórico do Estado de

Direito Liberal é que a Burguesia não era economicamente oprimida pela

aristocracia dominante, bem pelo contrário: possuía muitos recursos financeiros,

sendo que o que realmente incomodava a classe burguesa era o desprestígio e as

diferenças impostas pelos estatutos jurídicos, trazendo, com isso, a diferença entre

as duas classes em comento.

De acordo com Leal50:

A Constituição é, neste contexto, justamente o mecanismo capaz de conferir esta garantia, constituindo-se ela, assim, mais em um instrumento de manutenção da ordem estabelecida - numa tentativa da burguesia de se defender do Estado e manter as conquistas obtidas com a Revolução - do que de transformação social.

Conclusivamente, Morais51 refere que o Estado Liberal de Direito se concebeu

pelas seguintes características:

A. Separação entre Estado e Sociedade Civil mediada pelo Direito, este visto como ideal de justiça. B. A garantia das liberdades individuais; os direitos do homem aparecendo como mediadores das relações entre os indivíduos e o Estado. C. A democracia surge vinculada ao ideário da soberania da nação produzido pela Revolução Francesa, implicando a aceitação da origem consensual do Estado, o que aponta para a idéia de representação, posteriormente matizada por mecanismos de democracia semidireta - referendum e plebiscito, etc. - bem como, para a imposição de um controle hierárquico da produção legislativa através do controle de constitucionalidade. D. O Estado tem um papel reduzido, apresentando-se como Estado Mínimo, assegurando, assim, a liberdade de atuação dos indivíduos.

A partir do século XIX percebe-se uma mudança na forma de agir do Estado

Liberal, onde o papel negativo do mesmo (mantença da paz e segurança) passa a

ser positivada lentamente por meio das prestações públicas, a serem asseguradas

aos cidadãos.

50 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 07. 51 MORAIS, José Luís Bolzan de. Do Direito social aos interesses transindividuais: O Estado e o Direito na ordem contemporânea.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. pp.70-71

34

Foram profundas contradições e desigualdades verificadas no centro da

Sociedade capitalista da época que originaram uma poderosa reação às concepções

liberais até então vigentes, oportunizando uma revisão profunda na tese do Estado

Mínimo, devendo o Poder Público avocar para si uma tutela política mais eficaz, de

forma mais coletiva e indeterminada em relação à satisfação econômica.

Assim, no início do século XX, o caráter puramente formal da igualdade no

Estado de Direito Liberal fez com que vários movimentos sociais alavancados por

lutas operárias buscassem uma nova alternativa para o Estado e para as

desigualdades vivenciadas, sendo que o Estado de Direito Social passa a ser uma

tentativa de adaptação da sociedade pós-industrial, apoiando-se num processo de

transformação por meio de dois aspectos básicos: a) melhoria nas condições sociais

e b) garantia regulatória para o próprio Estado.

Conseqüentemente, há a ampliação da atuação positiva do Estado, visto que

percebe-se que não é mais possível acreditar-se que a ordem econômica da época,

baseada na liberdade, tivesse condições de produzir justiça, aparecendo, assim,

como uma solução intermediária entre o capitalismo e o socialismo52.

Há de se referir que, com o crescimento da intervenção, desaparece o modelo

de Estado mínimo, sendo que Estado e sociedade se aproximam para assistirem ao

indivíduo, eis que conforme Pelayo53: “En resúmen, Estado y sociedad ya no son

sistemas autónomos, (...) sino dos sistemas fuertemente interrelacionados entre sí a

través de relaciones complejas”.

Dessa forma, com a evolução do Estado liberal e a percepção de que, apenas

teoricamente, o direito era igual para os indivíduos, as relações sociais passam a

sofrer transformações, dando origem ao Estado Social de Direito, Estado de Bem-

estar ou Welfare State, que tem por característica o próprio ideário liberal agregado

pela questão social e como ponto comum a própria adaptação social, “no sentido de

52 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 13. 53 PELAYO, Manuel García. Las transformaciones del Estado contemporáneo . Madrid: Alianza, 1996, p.25.

35

buscar a realização da igualdade material e a fim de impedir a destruição da

igualdade jurídica”54. Aqui a Constituição aparece como um instrumento

caracteristicamente político, sendo considerado um elemento de integração social.

Para Silva55,

A democracia, como realização de valores (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana, é conceito mais abrangente do que o de Estado de Direito, que surgiu corno expressão jurídica da democracia liberal. A superação do liberalismo colocou em debate a questão da sintonia entre o Estado de Direito e a sociedade democrática. A evolução desvendou sua insuficiência e produziu o conceito de Estado Social de Direito, nem sempre de conteúdo democrático.

A partir do Estado Social, a Constituição deixa de ter um caráter apenas de

organizar o Estado e limitá-lo, transformando-se numa constante busca de direitos

sociais com a tomada do caráter político, passando os direitos a serem positivados,

ou seja, ocorre a constitucionalização de direitos sociais e econômicos.

Este novo Estado de Direito, segundo Leal56, ”não representa uma ruptura, mas

sim uma mera adaptação do modelo liberal às necessidades sociais, mostrando-se

como uma solução entre o socialismo e o capitalismo, tendo como finalidade a

adaptação social e a aproximação do Estado com a sociedade”.

No Estado Social de Direito a Constituição assume conteúdo político,

englobando os princípios de legitimação do poder e aproximando-se cada vez mais

da vida do povo. Segundo Bercovici57, “o campo constitucional é ampliado para

abranger toda a sociedade, não só o Estado”.

Observa-se, aos poucos, que as políticas do Estado de Bem-estar acabam por

desencadear um aumento no crescimento econômico, numa redistribuição de

salários, garantindo o poder aquisitivo dos trabalhadores, e, principalmente na 54 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 16. 55 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12 ed. rev. São Paulo: Malheiros. 1996. p. 113. 56 Idéia extraída da obra de LEAL, op.cit., p. 13. 57 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, C. P. et. al. Teoria da Constituição: estudo sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 103.

36

aparição dos direitos sociais, bem como da intervenção da autoridade política na

economia. Para tanto, esse Estado de Direito opunha-se à anarquia econômica e à

ditadura para resguardar os valores da civilização e do cidadão.

Por outro lado, esse mesmo Estado trouxe, conforme Capella58, alguns

problemas como: ”custos salariais em aumento e dificuldades no exercício do

domínio social”. Gerando, por sua vez, uma “crescente dificuldade das políticas

redistributivas para fazer frente ao ascenso das demandas sociais e, desenhando

uma perspectiva conseqüente de aumento da tensão, propunha o reforço dos

poderes autoritários dos Estados”.

Segundo Leal59,

Este ciclo histórico, progressivamente, vai impondo ao Estado outras missões e fins até então descartados pelo Estado Liberal de Direito, exigindo do Poder Público o atendimento às demandas comunitárias cada vez mais crescentes. Os problemas sociais que surgem aqui, bem como a falta de capacidade de resolução por parte dos particulares, impulsionam a reflexão sobre o alargamento dos deveres estatais para muito além de suas atribuições de garantir, simplesmente, uma ordem jurídica estável e proporcionadora de relações sociais da mesma natureza.

O desafio do Estado Social de Direito passa a ser, de alguma forma, a garantia

da justiça social efetiva aos seus cidadãos, no sentido do desenvolvimento da

pessoa humana, ao mesmo tempo em que se deve respeitar o ordenamento jurídico.

Significa dizer que este Estado se encontra marcado por preocupações éticas

voltadas aos direitos e prerrogativas humanas fundamentais.

Verdú60 entende que “é um intento louvável converter em direito positivo,

velhas aspirações sociais, elevadas à categoria de princípios constitucionais

protegidos pelas garantias do Estado Social de Direito”. Mas nota-se que aos

poucos o Estado de Bem-estar social acaba se transformando em Estado de

assistência, perde-se pouco a pouco a escala móvel dos salários e a segurança do

emprego.

58 CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos servos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 94. 59 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 68. 60 VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político. Madrid: Tecnos, 1982. v 1. p. 371.

37

Neste diapasão pode-se citar Pelayo61:

El Estado social significa historicamente el intento de adaptación del Estado tradicional (...Estado liberal burgués) a las condiciones sociales de la civilización industrial y postindustrial com sus nuervos y complejos problemas. No hemos de ver lãs medidas de tal adaptación como algo totalmente nuevo, sino más bien como um cambio calitativo de tendências.

Cria-se, a partir desse momento, como rapidamente comentado, uma relação

de interdependência entre Estado e sociedade, sendo que o primeiro não pode mais

ser tido como mero espectador, devendo intervir diretamente nas questões sociais,

sendo devedor de uma prestação positiva.

Conforme preceitua Streck e Morais62,

Transmutado em social, o Estado de Direito acrescenta à juridicidade liberal um conteúdo social, conectando aquela restrição à atividade estatal a prestações implementadas pelo Estado. A lei passa a ser, privilegiadamente, um instrumento de ação concreta do Estado, tendo como método assecuratório de sua efetividade a promoção de determinadas ações pretendidas pela ordem jurídica. Em ambas as situações, todavia, o fim ultimado é a adaptação à ordem estabelecida.

Pode-se dizer, por derradeiro, que a transformação no viés intervencionista e

promocional do Estado Moderno Liberal o faz assumir responsabilidades

organizativas e diretivas do conjunto da economia do País, em vez de simplesmente

exercer poderes gerais de legislação e polícia, próprias do perfil do Estado Mínimo,

como era até então conhecido. Acaba constituindo-se numa experiência concreta da

total disciplina pública da economia, assumido como modelo de futuros objetivos

autoritários da política econômica e ao mesmo tempo cria hábitos e métodos

dirigistas.

61 PELAYO, Manuel García. Las transformaciones del Estado contemporáneo . Madrid: Alianza, 1996. p. 18 62STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p.94.

38

Para Pelayo63:

[...] apesar de se poder distinguir duas modalidades de Estado de Direito - a liberal e a social -, não se trata de conceitos contraditórios, mas sim de duas dimensões, de dois momentos do Estado de Direito, constituindo este último não uma ruptura em relação ao primeiro, senão uma tentativa de adaptação do Estado de Direito clássico a um novo conteúdo e a novas condições ambientais. [Tradução livre]

Na seqüência, é possível afirmar que os textos constitucionais incorporam

propósitos emancipatórios, com reais igualdades e sendo um instrumento tanto para

governantes quanto para governados, revelando-se um tipo de Estado que prima

pelo bem-estar geral e garante o desenvolvimento da pessoa. Aqui as leis são

promulgadas não em vista de alguma vantagem particular, mas sim em prol do bem

comum dos cidadãos.

Ainda de acordo com Pelayo64:

[...] Estado social de Derecho significa un Estado sujeto a Ia ley legitimamente establecida con arreglo ai texto y a Ia praxis constitucionales con indiferencia de su carácter formal o material, abstracto o concreto, constitutivo o activo, y Ia cual, en todo caso, no puede colidir con los preceptos sociales establecidos por Ia Constitución o reconocidos por Ia praxis constitucional como normativización de unos valores por y para los cuales se constituye el Estado social y que, por tanto, fundamentan su legalidad.

No Estado Social de Direito, a Constituição passa a ser entendida não mais

como um mero instrumento de garantia contra o poder do Estado, mas como

máxima dos valores eleitos pela comunidade. Ela passa a ser vista como um

instrumento de ação, aparecendo numa perspectiva viva, como obra de todos os

seus intérpretes e, ainda, um produto cultural65, que interage com seu meio, sendo

produto desse meio em que está inserida.

63 PELAYO, Manuel García. Las transformaciones del Estado contemporáneo . Madrid: Alianza, 1996. p. 54. 64 Ibidem, p. 64. 65 Conforme conceituação de HÄBERLE, Peter. Teoría de la constitución como ciencia de la cultura. Madrid: Editorial Tecnos, 2000.

39

Resumindo o que foi dito até agora, Morais66 afirma que:

O Estado Liberal de Direito apresenta-se caracterizado pelo conteúdo liberal de sua legalidade, onde há o privilegiamento das liberdades negativas, através de uma regulação restritiva da atividade estatal. A lei, como instrumento da legalidade, caracteriza-se como uma ordem geral e abstrata, regulando a ação social através do não-impedimento de seu livre desenvolvimento; seu instrumento básico é a coerção através da sanção das condutas contrárias. O ator característico é o indivíduo. O desenrolar das relações sociais produziu uma transformação neste modelo, dando origem ao Estado Social de Direito que, da mesma forma que o anterior, tem por conteúdo jurídico o próprio ideário liberal agregado pela convencionalmente nominada questão social, a qual traz à baila os problemas próprios ao desenvolvimento das relações de produção e aos novos conflitos emergentes de uma sociedade renovada radicalmente, com atores sociais diversos e conflitos próprios a um modelo industrial-desenvolvimentista. Temos aqui a construção de uma ordem jurídica na qual está presente a limitação do Estado ladeada por um conjunto de garantias e prestações positivas que referem a busca de um equilíbrio não atingido pela sociedade liberal. A lei assume uma segunda função, qual seja a de instrumento de ação concreta do Estado, aparecendo como mecanismo de facilitação de benefícios. Sua efetivação estará ligada privilegiadamente à promoção das condutas desejadas. O personagem principal é o grupo que se corporifica diferentemente em cada movimento social.

Justifica-se, aqui, que a Constituição é o complexo de normas fundamentais de

um dado ordenamento jurídico ou de uma dada ordem jurídica fundamental da

comunidade onde está inserida, sendo ela o norte para o estabelecimento dos

pressupostos de criação, de vigência e de execução das normas do resto do

ordenamento, determinando amplamente seu conteúdo e colocando-se como base e

fundamento de validade de todo um sistema.

Aos poucos, observa-se que a teoria constitucional evolui para um âmbito mais

aberto, sendo que os princípios constitucionais passam a ter valor igual ou superior

às regras, o que segundo Díaz67 acaba por se transformar “numa viragem lingüística

que dá origem ao conceito de Estado Democrático de Direito, em substituição ao

Estado social”. Razão pela qual o Direito passa a ser entendido como sendo a

expressão dos valores jurídicos-políticos vigentes em uma determinada época.

66 MORAIS, José Luís Bolzan de. Do Direito social aos interesses transindividuais: O Estado e o Direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.p. 79. 67 DÍAZ, Elias. El Estado Democrático de Derecho en la Constitución española de 1978. Madrid: Sistemas, 1981. p. 46.

40

De acordo com Morais68:

A novidade do Estado Democrático de Direito não está em uma revolução das estruturas sociais, mas deve-se perceber que esta nova conjugação incorpora características novas ao modelo tradicional. Ao lado do núcleo liberal agregado à questão social, tem-se com este novo modelo a incorporação efetiva da questão da igualdade como um conteúdo próprio a ser buscado através do asseguramento jurídico de condições mínimas de vida ao cidadão e à comunidade.

A concepção de Estado Democrático de Direito é o marco do

constitucionalismo, encontrando-se aí a regulação social com o resgate da

promessa da modernidade69, onde temos valores supremos representados por

princípios que garantem o respeito aos direitos humanos fundamentais e almejam a

justiça social.

Neste momento, entende-se que a sociedade passa a participar ativamente da

vontade geral do Estado Democrático de Direito, que percorre por uma constante

mutação e ampliação dos conteúdos do Estado, refletindo-se na concepção de uma

Constituição70 que passa a ser a expressão máxima dos valores de determinada

comunidade, tendo uma perspectiva viva de acordo com cada intérprete e por

conseqüência na aplicação dos métodos hermenêuticos.

68 MORAIS, José Luís Bolzan de. Do Direito social aos interesses transindividuais: O Estado e o Direito na ordem contemporânea.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. pp.80-81. 69 Conclusão de STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 218. 70 De acordo com STRECK, Ibidem, pp. 214-215, "Constituição significa constituir alguma coisa; é fazer um pacto, um contrato, no qual toda a sociedade é co-produtora. (...) A Constituição é, assim, a materialização da ordem jurídica do contrato social, apontando para a realização da ordem política e social de uma comunidade, colocando à disposição os mecanismos para a concretização do conjunto de objetivos traçados no seu texto normativo deontológico".'

41

1.3 O Estado Democrático de Direito e o papel da he rmenêutica frente à

Jurisdição Constitucional

Quando assume a dimensão democrática71, o Estado de Direito tem como

objetivo a disseminação da igualdade, não lhe bastando a limitação ou a promoção

da atuação estatal, mas tendo como pretensão a mudança do status quo, com a

participação da sociedade.

Na seqüência, cita-se Morais72 ao entender que:

A lei aparece como instrumento de transformação da sociedade, não estando mais atrelada inelutavelmente à sanção ou à promoção. O fim a que pretende é a constante reestruturação das próprias relações sociais. É com a noção de Estado de Direito, contudo, que liberalismo e democracia se interpenetram, permitindo a aparente redução das antíteses econômicas e sociais à unidade formal do sistema legal, principalmente através de uma Constituição, onde deve prevalecer o interesse da maioria. Assim, a Constituição é colocada no ápice de uma pirâmide escalonada, fundamentando a legislação que, enquanto tal, é aceita como poder legítimo.

Conseqüentemente, se o Estado Liberal de Direito e o Estado Social de Direito

não conseguiram, ao menos ao longo de toda sua história, dar conta das

progressivas e constantes demandas sociais, em especial no âmbito do ideal de

liberdade e igualdade, tem-se que avaliar novas alternativas para atender as

demandas que surgem.

Assim, de acordo com Gomes73:

A déia de democracia, para se concretizar, exige dentre seus principais requisitos os seguintes: liberdade de pensamento e de expressão; consciência das dimensões individual e social, inerentes a todo ser

71 A dimensão democrática tem por objetivo o fortalecimento da cidadania e a garantia dos direitos humanos - políticos, sociais e civis -, a transparência do setor público com controle da sociedade, descentralização, planejamento participativo e gestão pública orientada para o cidadão, garantia de segurança pública e de defesa da soberania nacional, sendo que o combate às desigualdades econômicas e sociais é entendido como condição necessária para que seja garantido a todos os cidadãos uma igualdade real e não meramente formal. 72 MORAIS, José Luís Bolzan de. Do Direito social aos interesses transindividuais: O Estado e o Direito na ordem contemporânea.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. pp. 83-84. 73 GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica Jurídica e constituição no estado de direito democrático. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 17.

42

humano; práticas garantidas do livre debate, em torno das questões de interesse individual e social; maior participação [...]; efetiva vontade de quem exerce o poder, em qualquer de suas esferas, de empregá-lo tão-somente em beneficio da coletividade, segundo os fins por esta previamente estabelecidos; não perpetuação dos mesmos governantes, no poder; equilíbrio entre o poder político, jurídico e econômico e o indivíduo, de sorte a não ser este um objeto nas mãos daquele; mas, sim, sujeito de direitos individuais, sociais e políticos a serem salvaguardados pela ordem jurídica; respeito à pluralidade de concepções ideológicas, religiosas, políticas e filosóficas; exercício da tolerância, tendo em vista a coexistência de múltiplas cosmovisões; não diluição do indivíduo no grupo do qual participa; constante busca da supressão das desigualdades materiais, pobreza, no intento de ajudar os menos favorecidos a se tornarem capazes de auto promoção e a se reconhecerem como sujeitos dotados de dignidade.

Assim sendo, segundo Verdú74, “En el Estado Democrático de Derecho

sobreviven elementos del Estado social de derecho: regulación y garantias de

derecho econômicosociales, justicia constitucional; reconocimiento de los partidos

políticos y sindicatos libres".

Apesar da realidade exposta acima, observa-se que o Estado Democrático de

Direito tem como meta a transformação da realidade, não se restringindo, como o

Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de

existência. Assim sendo, pode-se nominar como características do Estado

Democrático de Direito:

A. Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito à uma Constituição como instrumento básico de garantia jurídica; B. Organização Democrática da Sociedade onde estão presentes os mecanismos tradicionais à democracia política, somados às possibilidades novas de participação social através de atores sociais emergentes, tais como: sindicatos, associações, etc.; C. Sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, seja como Estado de distância, porque os direitos fundamentais asseguram ao homem uma autonomia perante os poderes públicos, seja como um Estado antropologicamente amigo, pois respeita a dignidade da pessoa humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade; D. Justiça Social como mecanismos corretivos das desigualdades; E. Igualdade não apenas como possibilidade formal mas, também, como articulação de uma sociedade justa; F. Divisão de Poderes ou de Funções; G. Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através de um meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência; H. Segurança e Certeza Jurídicas.75

74 VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político. Madrid: Tecnos, 1982. v. 1. p. 144. 75 Classificação dada por MORAIS, José Luís Bolzan de. Do Direito social aos interesses transindividuais: O Estado e o Direito na ordem contemporânea.Porto Alegre: Livraria do Advogado,

43

Como já referido, no Estado Democrático de Direito a Constituição acaba por

figurar como a lei mais importante do ordenamento jurídico, por ser resultante da

vontade da nação, trazendo as aspirações e os valores mais significativos para o

coletivo; conseqüentemente, essa mesma Constituição, por meio de regras e de

princípios, pode ser considerada uma construção dos indivíduos nela inseridos, que

possuem a capacidade racional de estabelecer os fundamentos básicos da ordem

social.

De acordo com Gomes76, “vê-se, pois, que a realização da democracia é

proporcional ao grau de efetivação dos valores encampados pelos princípios

constitucionais e ao nível de seriedade com o qual a Constituição venha a ser

tratada”.

Conforme Magalhães Filho77,

O novo Estado de Direito ou Estado Democrático de Direito ou, ainda, Estado Constitucionalista, distingue-se pelo culto à Constituição, com ênfase no princípio da constitucionalidade e no reconhecimento da normatividade dos princípios que consagram direitos fundamentais, sendo tais preceitos supremos, vistos não como meros conselhos ao legislador ou simples declarações políticas de direitos, mas, antes, como normas vinculantes.

Observa-se, aos poucos, que a Constituição passa a ser a base para toda as

demais normas jurídicas infraconstitucionais, sendo que qualquer disposição em

contrário das últimas em relação à primeira, reputa-se uma inconstitucionalidade que

se reconhece pelos mecanismos de controle de constitucionalidade existentes no

ordenamento jurídico.

Compreende-se, portanto, conforme Silva78, que

a igualdade do Estado de Direito, na concepção clássica, se funda num elemento puramente formal e abstrato, qual seja a generalidade das leis.

1996. p.75. 76 GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica Jurídica e constituição no estado de direito democrático. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 26. 77 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 64. 78 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12 ed. rev. São Paulo: Malheiros. 1996. p. 119.

44

Não tem base material que se realize na vida concreta. A tentativa de corrigir isso foi a construção do Estado Social de Direito, que, no entanto, não foi capaz de assegurar a justiça social nem a autêntica participação democrática do povo no processo político, de onde a concepção mais recente do Estado Democrático de Direito, como Estado de legitimidade justa (ou Estado de Justiça material), fundante em uma sociedade democrática, qual seja a que se instaure um processo de efetiva incorporação de todo o povo nos mecanismos do controle das decisões, e de sua real participação nos rendimentos da produção.

Dessa maneira, a configuração do Estado Democrático de Direito não significa

apenas unir formalmente os conceitos dessa forma de Estado. Consiste, na verdade,

na criação de um conceito novo. E daí a importância do art. 1º da Constituição

Brasileira de 1988, quando afirma que “A República Federativa do Brasil [...],

constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]”79, que se caracteriza por uma

legalidade qualificada por valores e princípios, que se afiguram como a base de todo

o ordenamento, não como mera promessa de organizar o Estado.

No entendimento democrático de que a Constituição não é somente um texto

legal, mas, antes, essencialmente cultural e político, é que as suas normas são

construídas, consideradas as interações e anseios sociais, logrando melhores

fórmulas de compreensão na relação entre os textos jurídicos e seus respectivos

contextos. Aqui, faz-se pertinente recordar o magistério de Häberle80 quando refere

que:

La Constitución constituye el poder y lo limita. No es sólo un texto jurídico, sino también un contexto cultural. Comentarios, textos, instituciones y procedimientos simplemente jurídicos no llegan a abarcarla. La Constitución no es sólo un orden jurídico para juristas, que éstos debieran interpretar de acuerdo con las viejas y nuevas reglas de su oficio. Actúa esencialmente también como guía para no juristas: para ciudadanos y grupos. No es la Constitución sólo un texto jurídico o un entramado de reglas normativas sino también expresión cultural dinámica, medio de la autorrepresentación cultural de un pueblo, espejo de su legado cultural y fundamento de sus esperanzas.

Assim é que, na elaboração das Constituições modernas, inseriram-se

determinados regramentos jurídicos sedimentados nos princípios, que tinham e têm

fundamento na cultura da comunidade, sendo que os princípios, em confronto com

as regras, a estas se sobrepõem, na medida em que aqueles fixam orientações e

79 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2004. p. 13. 80 HÄBERLE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado. Madrid: Editorial Trotta S.A., 1998. p. 46.

45

rumos, que se prestam para adaptar as leis às peculiaridades e à conjuntura.

Entende-se, por sua vez, necessário inserir-se no texto constitucional a cultura do

povo, sob pena de criar-se um instrumento ilegítimo, não reconhecido pelo mesmo.

Dessa forma, a democracia integra o universo cultural, conforme muito bem

expõe Häberle81, quando assim define a cultura:

Según una hoy ya clásica definición de E. Tylor, se entiende por cultura o civilización un conjunto complejo de conocimientos, creencias, artes, moral, leyes, costumbres usos sociales que el ser humano adquiere como miembro de una sociedad determinada.

Por certo que não se poderia trasladar para os textos constitucionais todas as

peculiaridades culturais de um determinado povo, devendo a cultura ser tomada

como o proceder médio de uma determinada comunidade. Deve-se considerar o

núcleo cultural central do povo, tomados sob o ponto de vista histórico. Por isso é

que Häberle82 diz que:

[...] lo esencial del núcleo cultural central consista en ciertas ideas tradicionales, seleccionadas y transmitidas históricamente, así como sus respectivos valores concomitantes; de este modo los sistemas culturales podrían ser comprendidos, por una parte, como producto de ciertas acciones y, por otra, como elementos condicionantes a su vez de posteriores acciones.

Logo, todo o texto constitucional elaborado sem ter considerado a cultura de

determinado povo, tende a tornar-se instrumento de dominação legal e ilegítimo, que

com o passar do tempo cai em descrédito, necessitando de reformas e emendas

constantes, a fim de se manter a possibilidade de ação dos Poderes do Estado,

legitimando-os. Contudo, esta prática de constantes emendas pode levar à

instabilização do ordenamento jurídico e das relações sociais.

81 HÄBERLE, Peter. Teoría de la constitución como ciencia de la cultura. Madrid: Editorial Tecnos, 2000, p. 24. 82 Ibidem, p. 25.

46

De acordo com o que preceitua Silva83,

A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária, em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos; participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de idéias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.

Dessa forma, são as inserções da vida de um povo no texto constitucional que

formam o Estado Democrático de Direito, que deve ter por princípios: a dignidade

humana – que se deriva da cultura de um povo e dos direitos humanos universais; a

soberania popular – entendida como a força de colaboração que se renova de forma

aberta e responsável; a Constituição como um pacto – onde são fixados os objetivos

educacionais e orientações possíveis e necessárias; da divisão de poderes e, do

Estado de Direito e Estado social de Direito, que pressupõe uma democracia

constitucional baseada no pluralismo84.

No Estado Democrático de Direito, a Constituição não pode se limitar a ser

somente um conjunto de regras jurídicas, mas sim a expressão de um certo grau de

desenvolvimento cultural, um meio de autorrepresentação de todo um povo, espelho

de seu legado cultural e fundamento de suas esperanças e desejos.85

Não se pode, portanto, entender a Constituição fora da realidade política, com

categorias exclusivamente jurídicas. “A Constituição não é exclusivamente

normativa, mas também política; as questões constitucionais são também questões

políticas”.86

83 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12 ed. rev. São Paulo: Malheiros. 1996. p. 120. 84 Conceitos aplicados por HÄBERLE, Peter. Teoría de la constitución como ciencia de la cultura. Madrid: Editorial Tecnos, 2000, p. 33. (livre tradução). 85HÄBERLE, Peter. Teoría de la constitución como ciencia de la cultura. Madrid: Editorial Tecnos, 2000, p. 34. (livre tradução) 86 Trata-se de um resumo das idéias de LASSALLE, Ferdinad. determinadas no livro: A essência da constituição. Prefácio de Aurélio Wander Bastos. 2 ed. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1988.

47

Ao se ter a Constituição como instrumento formado e informado pelo político,

deve-se considerá-la sempre em evolução e desenvolvimento, possibilitando um

eterno aprendizado baseado na troca de experiências. Todavia, cumpre recordar

que, nem sempre as Constituições possibilitaram esta mistura entre o social e o

Poder legal, já que os governantes distanciavam este daquele, impondo a

legalização divorciada da legitimação, como já se disse.

Conforme preceitua Silva87,

[...] a Constituição de 1988 não promete a transição para o socialismo com o Estado Democrático de Direito, apenas abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana.

Não obstante se tenha por imprescindível a política no contexto constitucional,

convém recordar que este aspecto também representa inúmeras dificuldades à

implementação dos objetivos estatais, haja vista o sempre presente confronto de

interesses e de idéias. É por isso, que segundo Streck e Morais88, se faz importante

o estudo da ciência política que:

[...] enquanto ciência do homem e do comportamento humano, tem em comum com as outras ciências humanísticas, dificuldades específicas que derivam de algumas características da maneira de agir do homem, das quais três são particularmente relevantes:

A – O homem é um animal teleológico, que cumpre ações e se serve de coisas para obter seus objetivos, nem sempre declarados, e muitas vezes, inconscientes, não podendo a Ciência Política prescindir, desse modo, da presença da psicologia e da psicanálise; B – O homem é um animal simbólico, que se comunica com seus semelhantes através de símbolos – das quais a mais importante é a linguagem ; [grifei] C – O homem é um animal ideológico, que utiliza valores vigentes no sistema cultural no qual está inserido, a fim de racionalizar seu comportamento, alegando motivações diferentes das reais, com o fim de justificar-se ou de obter o consenso dos demais.

87 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12 ed. ver. São Paulo: Malheiros. 1996. p. 121. 88 STRECK, L. L., MORAIS, J. L. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 17-18.

48

Por isso, deve-se considerar que os textos Constitucionais são instrumentos

jurídico-políticos da democracia, derivados da complexa relação do homem com

todas as ciências, abarcando ações explícitas e implícitas, mas sempre

compreendidas na ação política.

Percebe-se, conseqüentemente, que o Poder é considerado, cada vez, mais

legítimo, apenas quando exercido por governantes devidamente escolhidos e

reconhecidos pela comunidade, mediante regras previamente elaboradas e também

(re)conhecidas. Assim é que, apoiado em Touraine89, pode-se afirmar que:

O pensamento acaba circulando, sem repouso, entre duas afirmações inseparáveis: a democracia apóia-se no reconhecimento da liberdade individual e coletiva pelas instituições sociais, e a liberdade individual e coletiva não pode existir sem a livre escolha dos governantes pelos governados e sem a capacidade que o maior número possível de pessoas tem para participar da criação e transformação das instituições sociais.

Destacando-se o ensinamento de Müller90, entende-se que:

O povo ativo elege os seus representantes; do trabalho dos mesmos resultam (entre outras coisas) os textos das normas; estes são, por sua vez, implementados nas diferentes funções do aparelho de Estado; os destinatários, os atingidos por tais atos são potencialmente todos, a saber, o “povo” enquanto população. Tudo isso forma uma espécie de ciclo [Kreislauf] de atos de legitimação, que em nenhum lugar pode ser interrompido (de modo não-democrático). Esse é o lado democrático do que foi denominado de estrutura de legitimação.

É por isso que se pode afirmar que não basta simplesmente a existência de um

Estado de Direito para se afirmar que a democracia existe, já que Estado tanto pode

combatê-la como favorecê-la, sendo inevitável afirmar que a soberania popular

submete a vida política às relações entre os atores sociais, com todas as

vicissitudes do aparente conflito91 promovido pelo debate, advindo da organização

social que tenta participar da formação e da formatação da vida pública, desejando

que prevaleça, sempre, a vontade geral.

89 TOURAINE. Alain. O que é a democracia? Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 35. 90 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo. A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Neumann. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 60 91 MORAIS, citando José Maria Gómez, entende que é permitido o desenvolvimento do conflito social apenas na medida em que ocorra sob as formas políticas de representação que asseguram a não permanência e não universalidade do conflito. MORAIS, José Luiz Bolzan de. A subjetividade do tempo. Uma perspectiva transdisciplinar do Direito e da Democracia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 90.

49

Por isso é que se pode afirmar que é o consenso obtido pela decisão popular,

após o necessário debate, que se constitui no caminho mais fértil à condução do

estabelecimento e completude da democracia e da própria Constituição, eis que

segundo Lassalle92, “os problemas constitucionais não são problemas de direito,

mas de poder que naquele país vigem, e as Constituições escritas não têm valor

nem são duráveis, a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que

imperam na realidade social”.

Entende-se, dessa forma, que a Carta Constitucional deve estar em

permanente conformidade com a realidade em que está inserida, ou seja, deve estar

em sintonia com a Constituição real, eis que se assim não for, corre-se o risco de

termos uma Constituição exemplo em normatização de garantias e direitos, mas

que, por outro lado, tenha sua finalidade perdida no decorrer do tempo.

Assim, a questão da democracia deve ser considerada complexa e pressupõe

eterno conflito entre os grupos dominantes e dominados, mas não significa a

existência de um jogo sem regras. Ao contrário, a democracia deve estar sempre

apegada a princípios éticos de liberdade e de justiça, sempre falando em nome da

maioria. E é no sentido da existência do Estado, voltado à disseminação das suas

forças em prol dos menos favorecidos, evitando o seu entravamento no poder

exercido pelas oligarquias, que se pode dizer, baseado na filosofia de Touraine93,

que:

[...] a democracia nunca será reduzida a procedimentos, nem tampouco a instituições; mas é a força social e política que se esforça por transformar o Estado de Direito em um sentido que corresponda aos interesses dos dominados, enquanto o formalismo jurídico e político a utiliza em um sentido oposto, oligárquico, impedindo a via do poder político às demandas sociais que coloquem em perigo o poder dos grupos dirigentes. O que, ainda hoje, opõe um pensamento autoritário a um pensamento democrático é que o primeiro insiste sobre a formalidade das regras jurídicas, enquanto o outro procura descobrir, atrás da formalidade do direito e da linguagem do poder, escolhas e conflitos sociais.

92 LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição. Prefácio de Aurélio Wander Bastos. 2 ed. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1988. p. 49. 93 TOURAINE. Alain. O que é a democracia? Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 37.

50

Não se pode olvidar que é no reconhecimento de que são os indivíduos e a

coletividade, com suas experiências e sentido de vida, é que se tem a verdadeira e

constante construção da democracia, que não pode se afastar da idéia de que se

funda sobre o princípio da liberdade de cada um, sem detrimento do interesse

coletivo. Desta feita, encontramos, novamente, em Touraine94 a idéia de que:

[...] a democracia é o regime que reconhece os indivíduos e as coletividades como sujeitos, isto é, os protege e encoraja em sua vontade de “viver sua vida” e dar unidade e sentido à sua experiência vivida. Nesse caso, o que limita o poder não é somente um conjunto de procedimentos, mas a vontade positiva de aumentar a liberdade de cada um. A democracia é a subordinação da organização social e, em particular, do poder político, a um objetivo que não é social, mas moral: a libertação de cada um. Tal tarefa seria contraditória se pudesse ser inteiramente realizada já que dissolveria a sociedade; no entanto, é colocada em ação nas sociedades democráticas, em oposição às forças de dominação e controle social, para aumentar a parte de iniciativa de cada um e sua busca da felicidade, levando cada ator social a reconhecer o direito dos outros a formarem projetos e conservarem a memória.

Contudo, não obstante se reconheça na democracia o campo mais propício à

migração, deslocamento e construção de idéias, de diversidade de opiniões, de

alternância de poderes, de ajustes de tendências e conceitos sociais, de abertura do

debate político, do controle do Estado por parte da sociedade, é preciso que se

entenda que a democracia deve ter princípios claros e definidos, impedindo que se

estabeleça o poder do mais influente, do mais forte sobre o mais fraco, sendo

necessário, também, se construir a democracia material, delimitando o papel da

Constituição, que objetiva o bem de todos, sob o império do ordenamento jurídico-

político, legal e legitimado pelo povo.

Para Warat95,

A democracia precisa ser sentida como uma invenção constante do novo. Ela se reconhece no inesperado que reside aos desequilíbrios demasiadamente sólidos de uma ordem de proibições, ou ainda, como uma condição de significações que comanda nossos processos de autonomia, abrindo-os à imprevisibilidade de suas significações.

94TOURAINE. Alain. O que é a democracia? Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 254. 95 WARAT, Luis Alberto. A Ciência Jurídica e seus Dois Maridos. Santa Cruz do Sul: FISC. 1985. p. 106.

51

Assim, uma vez expostos vários argumentos, buscando demonstrar a relação

entre a democracia, a Constituição e os princípios constitucionais, resta considerar o

significado e a importância que tem a hermenêutica jurídica perante o assunto em

comento, bem como indagar sobre o seu papel no contexto do Estado de Direito

Democrático delineado pela Constituição, para, em seguida, focalizar a possível

contribuição dos intérpretes na construção da democracia.

Nesse sentido, Bonavides96 traz à tona que

a preparação teórica de uma democracia participativa, passa de necessidade, pela criação das premissas metodológicas de uma nova hermenêutica constitucional, fundada em valores e princípios e ao mesmo passo, numa reelaboração doutrinária e científica da norma jurídica.

Dessa forma, a função hermenêutica, objeto do presente trabalho, deixa de ser

apenas uma averiguação do texto escudada na lição clássica de Savigny97, objeto

do próximo capítulo, para tornar-se o motivo fecundo de uma razão crítica, criativa,

participativa e construtiva, onde o intérprete interpreta a lei e aplica o direito.

Por conseguinte, há de se referir que,

sendo o direito um produto da cultura, sua interpretação há de estar em consonância com os valores reconhecidos e aceitos, democraticamente, no aludido meio social, pois é, em consonância com estes que devem os princípios e normas jurídicas ser interpretados e aplicados98.

Entende-se, portanto, que a finalidade precípua da hermenêutica jurídica,

vigente no Estado Democrático de Direito, consiste em fornecer os meios

adequados de interpretação, busca de sentidos e interação das leis e do direito. Em

decorrência disso, quando ausente o texto legal para solução de uma situação

fática, é, também, por meio da hermenêutica jurídica que o operador do direito

buscará amparo, a qual lhe propiciará recursos adequados à integração e

preenchimento das lacunas da lei99 que porventura existam.

96BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência por uma Nova Hermenêutica por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 206. 97 SAVIGNY, Friedrich Carl von. Metodología Jurídica. Tradução de J. J. Santa-Pinter. Buenos Aires: Delpalma, 1994. 98 GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica Jurídica e constituição no estado de direito democrático. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 36. 99 Entende-se que as lacunas referidas são da lei e não do ordenamento, eis que dentro do ordenamento jurídico é possível buscarmos instrumentos que auxiliem na resolução dessas lacunas, papel próprio dos princípios.

52

A hermenêutica jurídica em geral e não só a constitucional, por sua vez, tem a

ver com a democracia e esta, com a evolução cultural dos povos.

Conseqüentemente, segundo Gomes100,

aplicar o Direito, em um Estado de Direito Democrático, significa aplicar antes de tudo a Constituição. Diante desta, todos os poderes constituídos e demais leis devem se curvar. E para aplicá-la deverá o juiz interpretá-la, segundo os ensinamentos e princípios da hermenêutica constitucional, entendida como especialidade da hermenêutica jurídica.

Dessa maneira, a Constituição, nas palavras de Leal101, “afigura-se como o

instrumento político-jurídico mais importante da organização social, sendo sua

superioridade hierárquica amplamente reconhecida”, surgindo como um instrumento

de garantia dos direitos humanos fundamentais contra o poder arbitrário do Estado,

mostrando a sua superioridade em relação às demais normas e estando

intimamente relacionada com os ideais de segurança jurídica no tempo em que está

em vigor, eis que passível de interpretação a qualquer momento.

Já se sabe que a Democracia é um processo e, por isso, tem caráter dinâmico,

estando em constante evolução, sendo que a mutação constitucional, conforme

Ferraz102, pode ser operada a partir dos seguintes aspectos:

a) quando há um alargamento do sentido do texto constitucional, aumentando-se-lhe, assim, a abrangência para que passe a alcançar novas realidades; b) quando se imprime sentido determinado e concreto ao texto constitucional; c) quando se modifica interpretação anterior e se lhe imprime novo sentido, atendendo à evolução da realidade constitucional; d) quando há adaptação do texto constitucional à nova realidade social, não prevista no momento da elaboração da Constituição; e) quando há adaptação do texto constitucional para atender exigências do momento da aplicação constitucional; f) quando se preenche, por via interpretativa, lacunas do texto constitucional.

100 GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica Jurídica e constituição no estado de direito democrático. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 36. 101 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 01 102 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de Mudança da Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986. p. 58-59.

53

Para Habermas103,

[...] os indivíduos só se constituem enquanto tal porque ao crescerem como membros de uma particular comunidade de linguagem se introduzem em um mundo de vida intersubjetivamente compartilhado. Nos processos comunicativos se formam co-originariamente a identidade do indivíduo e a do coletivo. A formação discursiva da vontade permite precisamente que, na interação comunicativa, e pela força do melhor argumento, os sujeitos possam modificar tanto as convicções normativas das suas formas de vida específicas, quanto as suas concepções individuais sobre a vida digna.

Assim sendo, Habermas não ignora o fato de que quando os indivíduos

questionam suas normas, o fazem a partir de convicções que integram o seu

contexto cultural e a sua forma de interpretar ou de aplicar os métodos

hermenêuticos de interpretação.

A partir da concepção do alemão Häberle104, passamos a observar que a

hermenêutica, num âmbito universal, é a arte de interpretar o sentido das palavras,

das leis, dos textos e de outras formas de interação humana, onde, segundo

Bonavides105, ocorre a “passagem de um constitucionalismo formal, de textos, a um

constitucionalismo material, de realidade, ou o transcurso de um constitucionalismo

sem hermenêutica”. Esse constitucionalismo vincula-se, por sua vez, ao próprio

Estado Democrático de Direito, eis que tem por base os vários intérpretes do texto

constitucional.

Conclusivamente, é possível afirmar que, por meio da hermenêutica

constitucional, são plenamente possíveis efetivas mudanças da Constituição.

Contudo, há limites para tais mudanças, eis que jamais podem ferir princípios

fundamentais; ao contrário, somente são admissíveis para conferir-lhes efetividade,

no momento histórico, em que se aplicam as normas constitucionais.

103 HABERMAS, Jürgen. En que Consiste la Racionalidad de una Forma de Vida? In Escritos sobre Moralidad e Eticidad. Tradução de Manuela Jiménez Redondo. Barcelona: Paidós, 1991. p. 73. 104 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1997. 105 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência por uma Nova Hermenêutica por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 220.

54

Em síntese, com a hermenêutica constitucional, busca-se a melhor

interpretação e concretização do ordenamento jurídico vigente. Este foi positivado,

mediante a adoção de princípios, valores e objetivos que norteiam o Estado de

Direito Democrático; escolha esta que, apesar de eventuais distorções

procedimentais no caso brasileiro resultou da vontade popular, por meio do poder

constituinte, ao elaborar a Constituição. Em assim sendo, pode-se afirmar com

razoável convicção que uma hermenêutica constitucional preocupada com a

efetividade da Constituição é, sem sombra de dúvida, construtora da Democracia.

Por fim, sem qualquer intenção de encerrar o debate ou o estudo do tema

proposto, cumpre dizer que é o espaço construído pelas relações racionais de

poder, estendidas a todos os indivíduos e demarcado por regras e procedimentos de

controle reconhecidos e legítimos, aptos a assegurar efetivamente o atendimento às

demandas públicas, eleitas pela própria sociedade, é que vamos ter consolidado o

Estado Democrático de Direito, e, conseqüentemente, é dentro dessa perspectiva

democrática de direito que vamos encontrar a Constituição, os vários métodos

hermenêuticos de interpretação, bem como os intérpretes da Constituição,

chegando-se, posteriormente, ao mote desse trabalho, que é o princípio da

interpretação conforme à Constituição.

55

2 HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL: DOS MÉTODOS CLÁSSICO S DE

INTERPRETAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO DA JU RISDIÇÃO

CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA

2.1 Hermenêutica versus interpretação constitucional: diferenças e

conceituações do filosófico ao jurídico

A interpretação não é um fenômeno de caráter absoluto ou atemporal, eis que

é produto dos valores de cada época histórica, econômica e social, dentro de uma

conjuntura que abrange o conhecimento e os fatos, as circunstâncias que envolvem

o intérprete e, evidentemente, o imaginário de cada um que está por interpretar,

podendo ser considerado, ainda, um fenômeno plural que espelha o nível de

conhecimento e a realidade de cada tempo, refletindo-se nas crenças e valores do

intérprete, sejam os do contexto social em que esteja inserido, sejam os de sua

própria individualidade.

A interpretação será, dentro de uma condicionante temporal, o conjunto de

operações que, seguindo os princípios gerais da hermenêutica e visando a integrar o

conteúdo buscado no Direito, apura o sentido e os fins das normas.

Bobbio106 caracteriza o homem como

[...] um animal simbólico, que se comunica com seus semelhantes através de símbolos - dos quais o mais importante é a linguagem. O conhecimento da ação humana exige a decifração e a interpretação destes símbolos, cuja significação é quase sempre incerta, às vezes desconhecida, e apenas passível de ser reconstruída por conjeturas.

Em ato contínuo, há que se dizer que a interpretação Constitucional é uma

espécie de interpretação jurídica, que se apresenta enriquecida por princípios e

regras próprias que variam, conforme já referido, no tempo e no espaço, e são

suscetíveis de gerar conflitos diversos, visto que “[...] qualquer preceito isolado deve

106 BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. 11 ed. Brasília: EDUNB, 1998. p. 168.

56

ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema, para que se

preserve a coerência do todo”107.

Para o mestre Canotilho108,

Interpretar as normas constitucionais significa (como toda interpretação de normas jurídicas) compreender, investigar e mediatizar o conteúdo semântico dos enunciados lingüísticos que formam o texto constitucional. A interpretação jurídico-constitucional reconduz-se, pois, à atribuição de um significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos na constituição.

Mas nada foi tão simples como parece; segundo Silva109,

Durante o período totalitário, a hermenêutica jurídica, bem como toda a perspectiva comunicativa do Direito esteve adormecida, pois qualquer idéia de interpretação, ou busca de diálogo acerca do significado dos comandos normativos, não podiam ir além da orientação exegética que dispunha a concepção positivista-legalista do Direito.

A partir desse momento os preceitos mudam e passa-se a observar a

hermenêutica num âmbito mais universal, que acaba caracterizada pelo espelho da

realidade, e por vezes as bases para a construção de uma sociedade constitucional

livre, democrática e solidária, eis que quando ocorre a interpretação da lei

infraconstitucional em conformidade com a Constituição, observa-se uma maior

segurança jurídica110 aos casos diferentes tratados pelo mesmo dispositivo, sem

falar que, não existindo a interpretação, muitos dispositivos de lei estariam fadados a

morrer na letra fria do texto.

107 BASTOS, Aurélio Wander. Introdução à teoria do direito. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1992. p. 234. 108 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1170. 109 SILVA, Christine Oliveira Peter da. Interpretação Constitucional no Século XXI: o caminhar metodológico para o concretismo constitucional sob a influência da doutrina de Peter Häberle. Revista de Direito Público. Porto Alegre/Brasília: Síntese/Instituto Brasiliense de Direito Público. V. 2, n. 8. 2005. p. 72. 110 Entendemos que a interpretação constitucional, dentro da nova hermenêutica, expressa uma maior segurança jurídica, eis que, a partir dela, teremos como manter a lei por vezes julgada inconstitucional como se constitucional fosse, não tendo, assim, uma constante alteração legislativa, mantendo-se, por conseqüência, direitos já contemplados pela lei infraconstitucional e analisados à luz da Constituição. Essa é a opinião que apresentamos, embora alguns autores não tão contemporâneos entendam que a interpretação possa gerar uma insegurança jurídica, no momento que o mesmo dispositivo de lei é interpretado de formas diferentes, por pessoas diferentes e para casos diversos.

57

De acordo com Canotilho111,

Devemos observar que um sistema jurídico carece de ambas as espécies normativas: regras e princípios, assim, enquanto que um modelo [...] constituído exclusivamente por regras exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa, conseguindo-se apenas um sistema de segurança, sem espaço livre, que permitisse a introdução dos conflitos, das concordâncias, do balanceamento de valores e interesses, de uma sociedade pluralista e aberta, o modelo baseado, exclusivamente, em princípios, [...] com a indeterminação, a inexistência de regras precisas, [...] só poderiam conduzir a um sistema falho de segurança jurídica.

É essencial referirmos, ainda, que toda norma jurídica, seja ela constitucional

ou infraconstitucional, deve ser interpretada, eis que a interpretação é a arte de

atribuir sentido às expressões do texto, levando-se em consideração os fatores que

foram utilizados quando da sua criação, bem como os fatores que envolvem o

momento em que ela está sendo interpretada.

Dessa forma,

Interpretação constitucional é concretização. Exatamente aquilo que, como conteúdo da Constituição, ainda não é unívoco deve ser determinado sob a inclusão da ‘realidade’ a ser ordenada. Neste aspecto, interpretação jurídica tem caráter criador: o conteúdo da norma interpretada conclui-se primeiro na interpretação; naturalmente, ela tem também somente nesse aspecto caráter criador: a atividade interpretativa permanece vinculada à norma.112

Embora seja uma lei que deva ser interpretada como as outras, a Constituição

merece um destaque, visto a sua singularidade e importância, caracterizada pela: a)

superioridade hierárquica definida mediante os diversos mecanismos de controle de

constitucionalidade; b) linguagem; c) conteúdos específicos e d) caráter político.113

Assim, a Constituição, diferentemente de outras leis, tem em seu bojo as

referências de normas constitucionais: a) de conduta ou definidoras de direitos

(prevê um fato e a ele determina uma conseqüência jurídica, identificando direitos 111 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4.ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1126. 112 Conforme HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. 20 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 61. 113 Especificidades da Lei Constitucional apresentadas por BARROSO, L. R.; BARCELLOS, A. P. de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 298-299.

58

individuais, políticos, sociais e coletivos de base constitucional); b) de organização,

que além de estruturarem organicamente o Estado, disciplinam a própria criação e

aplicação das normas de conduta; e c) programáticas114, indicadoras de valores a

serem preservados e fins sociais a serem alcançados.115

Segundo Grondin116, um dos influenciadores da hermenêutica filosófica,

por hermenêutica entende-se, desde o primeiro surgimento da palavra no século XVII, a ciência e, respectivamente, a arte da interpretação. Até o fim do século passado, ela assumia normalmente a forma de uma doutrina que prometia apresentar as regras de uma interpretação competente. Sua intenção era de natureza predominantemente normativa e mesmo técnica. Ela se restringia à tarefa de fornecer às ciências declaradamente interpretativas algumas indicações metodológicas, a fim de prevenir, do melhor modo possível, a arbitrariedade no campo da interpretação.

Conforme Demo117, “freqüentemente colocam-se no horizonte das

metodologias alternativas também a hermenêutica”, sendo que a “hermenêutica é

algo tradicional em metodologia, porquanto se refere à arte de interpretar textos e,

sobretudo à comunicação humana”. Há de se frisar, ainda, que “a hermenêutica se

especializa em perscrutar o sentido oculto dos textos”. [...] “Assim, um discurso não

se entende apenas na sua forma, no seu formato, na sua gramática, mas no

conteúdo que quer dizer”.

114 Conforme Barroso, “As normas constitucionais programáticas veiculam princípios, desde logo observáveis, ou traçam fins sociais a serem alcançados pela atuação futura dos poderes públicos. Por sua natureza, não geram para os jurisdicionados a possibilidade de exigirem comportamentos comissivos, mas investem-nos na faculdade de demandar dos órgãos estatais que se abstenham de quaisquer atos que contravenham as diretrizes traçadas. Vale dizer: não geram direitos subjetivos na sua versão positiva, mas geram-nos em sua feição negativa. São dessa categoria as regras que preconizam a função social da propriedade (art. 170, Ill), a redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, VII), o apoio à cultura (art. 215), o fomento às práticas desportivas (art. 217), o incentivo à pesquisa (art. 218)”. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. pp. 255-256. Entende-se, dessa forma, que considerada a obrigatoriedade imposta pela Lei Constitucional, o preenchimento de regras constitucionais (aqui caracterizadas as normas programáticas) pela legislação ordinária, leva-nos à conclusão de que a Constituição dispõe de plasticidade. Plasticidade essa que permitirá a permanente projeção da Constituição na realidade social e econômica, afastando o risco da imobilidade que a rigidez constitucional acarreta, preservando-se, assim, a lei infraconstitucional. 115 Tal classificação tem por base a obra de BARROSO, L.. R.; BARCELLOS, A. P. de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 299. 116 GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução de Benno Dischinger. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 1999. p. 23 117 DEMO, Pedro. Hermenêutica, fenomenologia e outros saberes. In: Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1981. p. 247.

59

Barreto118 refere que “o vocábulo hermenêutica vem do latim ‘hermeneuticus’,

oriundo por sua vez, do grego ‘hermeneuein’”. Assim, segundo Gomes119,

a explicação etimológica está relacionada com o deus mediador Hermes, portador da vara mágica que possibilitava aos humanos compreender os desígnios divinos, sendo que era um canal de comunicação entre os demais deuses e os homens, transmitindo as estes as mensagens e vontades daqueles.

Seguindo, Demo120 bem refere que

[...] nenhum conteúdo está todo no texto, pois se tal coincidência existisse, nada precisaria de explicação. Ademais, não lemos; interpretamos; o que significa: ao ler, fazemos dizer, como o tradutor sempre é pelo menos um pouco ‘traidor’. Nada se compreende sem interpretar, porque é a mesma coisa. Só compreendemos a partir do compreendido, só se elabora um conceito a partir de um pré-conceito. Quem dialoga, não apenas ouve, mas interpreta, insinua, influencia, por vezes impõe e deturpa.

Por vezes, na comunicação humana e, principalmente, nas construções

legislativas, encontramos contradições e confronto, surgindo páginas cheias de

letras, mas vazias de conteúdo. Por tais motivos é que as técnicas hermenêuticas e

a interpretação dos textos existem, para salvaguardar o direito que está por trás da

letra fria do texto legislativo.

Entende-se, dessa forma, que a hermenêutica, em meio às contradições que

encontra, deve observar o que o autor do texto original queria dizer, aplicando-se um

conhecimento formal e completando-o e conjugando-o com a sensibilidade acurada

do intérprete em determinada época, eis que, segundo Barroso121, “tanto no

momento de elaboração quanto no de interpretação da norma hão de se projetar a

visão subjetiva, as crenças e os valores do intérprete”. Assim, a interpretação será o

118 BARRETO, Vicente de Paulo. Da interpretação à hermenêutica constitucional. In: CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. 1988-1998: Uma década de Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 369. 119 GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica Jurídica e constituição no estado de direito democrático. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 27-28. 120 DEMO, Pedro. Hermenêutica, fenomenologia e outros saberes. In: Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1981. p. 248 121 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 288.

60

produto de uma interação entre texto, intérprete e a época em que ocorre essa

interpretação, visto que seu produto final conterá, conforme nominado

anteriormente, elementos tanto objetivos como subjetivos”.

Para Schleiermacher122, autor da hermenêutica clássica, a qual pretendemos

superar na presente pesquisa, a concepção preliminar de hermenêutica, está na

arte da compreensão correta do discurso de um outro, traz já uma delimitação e uma generalização, na medida em que circunscreve o objeto ao domínio da linguagem falada ou escrita e, por outro lado, deixa de lado todas as divisões tradicionais dos discursos.

A compreensão foi concebida, conforme o autor citado no parágrafo anterior,

“como uma reconstrução histórica e divinatória dos fatores objetivos e subjetivos de

um discurso falado ou escrito”.123 Essa “reconstrução” nos remete, propriamente

dito, às teorias clássicas que vamos buscar superar durante o desenvolvimento da

presente dissertação.

Levando em consideração o todo exposto até aqui, é essencial que se faça

uma diferenciação entre hermenêutica e interpretação nas suas várias dimensões e

métodos, bem como deve-se caracterizar a figura do intérprete e, para isso, façamos

uso das palavras iniciais de Demo,124 quando refere que:

a hermenêutica é a metodologia da interpretação, ou seja, dirige-se a compreender formas e conteúdos da comunicação humana, em toda a sua complexidade e simplicidade. O intérprete é sempre alguém dotado de bagagem prévia, porque ninguém consegue compreender a comunicação sem deter algum contexto relativo a ela [...].

A interpretação é antes de qualquer coisa uma atividade criadora. Em toda a

interpretação existe, portanto, uma criação de direito. Trata-se de um processo no

qual entra a vontade humana, onde o intérprete procura determinar o conteúdo das

palavras, passando a imputar um significado à norma. Assim, a atividade

interpretativa busca, sobretudo, construir o conteúdo normativo, explicitando a

norma em concreto em face de determinado caso ou fato real.

122 SCHLEIERMACHER, Friedrich Daniel Ernst. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Tradução de Celso Reni Braida. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 15. 123 Ibidem, p. 16. 124 DEMO, Pedro. Hermenêutica, fenomenologia e outros saberes. In: Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1981. p. 249.

61

Conseqüentemente, interpretar, para Leal125, “[...] significa colocar o texto legal

no tempo, isto é, colocá-lo na realidade concreta, a fim de que logre sua eficácia.

Não existe, por conseguinte, interpretação desvinculada do tempo, do que resulta,

por sua vez, um novo conceito de normatividade”.

Nader126 estabelece a seguinte distinção: “enquanto que a hermenêutica é

teórica e visa a estabelecer princípios, critérios, métodos, orientação em geral, a

interpretação é de cunho prático, aplicando os ensinamentos da hermenêutica”.

Dessa maneira, hermenêutica e interpretação se completam, pois enquanto a

hermenêutica é a ciência, caracterizada por suas técnicas de fazer explicar

determinado termo legal, a interpretação é o ato estudado por ela. Dessa forma, a

interpretação faz as vezes de responsável pela aplicação dessas técnicas, ou seja, é

responsável pelos resultados explicativos e pela compreensão advinda do processo

hermenêutico.

Há de se referir, aqui, que Gadamer127 vê a compreensão como o resultado de

um diálogo entre o intérprete e o texto. O autor acredita que o texto responde às

perguntas feitas pelo intérprete, ao mesmo tempo em que nele suscita as perguntas,

em um verdadeiro círculo hermenêutico.

Conforme preceitua Zeifert128,

As contribuições de Gadamer são de fundamental importância para que o Direito, por intermédio de seus operadores, se conscientize que a interpretação jurídica não é mais uma tarefa simples/objetiva. O jurista não é apenas um ser jogado no mundo, ele está imbuído de pré-conceitos que auxiliam na compreensão do texto jurídico a interpretar, possibilitando uma melhor solução de conflitos.

125 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Pré-crompreensão e Pós-compreensão: uma análise de sua função na interpretação da constituição aberta. In: LEAL, R. G.; REIS, J.R. Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005. p. 1369. T4. 126NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 281. 127 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Meurer. 2.ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1998. p. 33. 128 ZEIFERT, Anna Paula Bagetti. Da hermenêutica à nova hermenêutica: o papel do operador jurídico. In: SPAREMBERGER, Raquel F. Lopes (Org.). Hermenêutica e Argumentação: em busca da realização do direito. Ijuí e Caxias do Sul: Editora Unijuí e EDUCS. 2003. p. 193.

62

A tarefa da nova hermenêutica é colocar o passado em contato com o presente, ou seja, o jurista ao desenvolver o seu trabalho prático-normativo entende que o passado tem continuidade no presente. Essa atitude aberta possibilita que o sujeito/intérprete não fique refém do que Warat denominou de sentido comum teórico, estabelecendo um teto hermenêutico que o impede de visualizar uma maneira mais criativa de interpretar.

Segundo Heidegger129, “todo o processo de compreensão do ser é limitado por

uma história, pela história do ser que limita a compreensão”. Assim, há de se

observar que a hermenêutica tem como fim esclarecer o pano de fundo da verdade

que está no acontecer da história e no acontecer da linguagem.

De acordo com Streck130,

Como saber ‘operacional’, domina no âmbito do campo jurídico o modelo assentado na idéia de que o processo interpretativo possibilita que o sujeito (a partir da certeza-de-si-do-pensamento pensante, enfim, da subjetividade instauradora do mundo) alcance a ‘interpretação correta’, o ‘exato sentido da norma’, ‘o exclusivo conteúdo/sentido da lei’, ‘o verdadeiro significado do vocábulo’, ‘o real sentido da regra jurídica’, etc. Pode-se dizer que o pensamento dogmático do Direito acredita na possibilidade de que o intérprete extrai o sentido da norma, como se este estivesse contido na própria norma, enfim, como se fosse possível extrair o sentido-em-si-mesmo. Trabalha, pois, com os textos no plano meramente epistemológico, olvidando o processo ontológico da compreensão.

Na seqüência, conforme Demo131, pode-se referir que

o que o homem toca deixa de ser apenas ‘dado’ para emergir como referência histórica prenhe de sentido. Compreender tais sentidos, depreender tais significados, apreender preferências culturais é tarefa da hermenêutica, que precisa saber equilibrar capacidade formal com percepção política.

Segundo Stein132, “o ser humano é racional porque é capaz de fazer uso

correto dos enunciados assertóricos predicativos. O ser humano é racional porque é

capaz de dizer frases que podem ter a propriedade de verdade e falsidade”.

Assim, é possível que refiramos que o ser humano se reconhece por meio dos

conceitos e da linguagem, visto ser considerado racional em virtude de que seu

129 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 9.ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 47. 130 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 48 131 DEMO, Pedro. Hermenêutica, fenomenologia e outros saberes. In: Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1981. p. 249. 132 STEIN, Ernildo. Aproximações de Hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 16.

63

acesso ao mundo se dá via sentido, via significado, via conceitos, via palavras,

resumidamente, via linguagem.

Dessa forma, onde há um processo interpretativo poderá haver divergência de

interpretações e essas divergências podem surgir devido ao momento histórico em

que o indivíduo que interpreta está inserido, ou mesmo devido ao ambiente em que

se insere gradualmente, moldando as suas convicções.

De acordo com Stein133,

A hermenêutica é esta incômoda verdade que se assenta entre duas cadeiras, quer dizer, não é nem uma verdade empírica, nem uma verdade absoluta – é uma verdade que se estabelece dentro das condições humanas do discurso e da linguagem. É por isso que a hermenêutica é, de alguma maneira, a consagração da finitude .

A hermenêutica é capaz de ser mais do que ela mesma pode ver, visto que a

tradição hermenêutica se expressa pelo ler entre linhas, pelo descobrir atrás do

texto, o texto não escrito, na medida em que mais que a verdade do texto, no texto

está o sentido que envolve, abrange e carrega a verdade do texto, por meio de

processos históricos. É, assim, a hermenêutica uma nova consciência do lugar do

homem na cultura e na história.

Dessa forma, a tarefa da hermenêutica filosófica é compreender e interpretar,

culminando na prova de que existe uma verdade: a verdade da arte, da história e da

linguagem, assim, há de se referir que a “filosofia analítica sem a hermenêutica é

vazia e a hermenêutica sem a filosofia analítica é cega”134.

Observa-se, assim, que todo processo interpretativo pode ter uma objeção e na

hermenêutica filosófica não é diferente, pois questiona-se a validade da

interpretação de cada texto interpretado, visto que é sabido que ao lermos um texto,

estamos reconstruindo esse texto e essa reconstrução é uma interpretação.

133 STEIN, Ernildo. Aproximações de Hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 45 134 Conceito extraído da obra de STEIN. Ibidem, p. 79

64

A situação hermenêutica é uma situação que cada um de nós já leva

acriticamente consigo e cada área de investigação com que trabalhamos exige o

desenvolvimento deste lugar privilegiado de interpretação, pois, segundo Stein”135,

devemos romper com a solidariedade entre as linhas do texto, fazendo leituras do

não-escrito do texto, talvez até perseguindo o não-pensado e sobretudo nos

concentrando não na universalidade, na sistematicidade do texto, mas celebrando a

sua singularidade”.

Para Heidegger136, a Hermenêutica é

o estudo do compreender. Compreender significa compreender a significação do mundo. O mundo consiste numa rede de relações, é a possibilidade de relações. Pode-se organizar o mundo matematicamente; pode-se conceber o mundo teologicamente; pode-se interpretar o mundo como linguagem, que é convertido na linguagem que nós utilizamos. A Hermenêutica é sempre uma compreensão de sentido: buscar o ser que me fala e o mundo a partir do qual ele me fala; descobrir atrás da linguagem o sentido radical, ou seja o discurso.

Fazendo uma análise mais aprofundada e comparativa sobre o conceito de

interpretação, Streck137 traz para nosso conhecimento que

autores como Nader, entendem que interpretar a lei é fixar o sentido de uma norma e descobrir a sua finalidade, pondo a descoberto os valores consagrados pelo legislador. Para tanto, todo o subjetivismo deve ser evitado durante a interpretação. Já Carlos Maximiliano, autor de clássica obra sobre hermenêutica, entendia que interpretar é a busca do esclarecimento, do significado verdadeiro de uma expressão; é extrair de uma frase, de uma sentença, tudo o que na mesma se contém. A tradição hermenêutica inaugurada por Maximiliano no Brasil tem uma similitude com a hermenêutica normativa de Emilio Betti, isto é, uma hermenêutica que dá regras para a interpretação, as quais dizem tanto ao objeto como ao sujeito da interpretação.

De acordo com o preceituado pelos autores até aqui, não faz sentido, portanto,

falar-se em hermenêutica jurídica desvinculada da interpretação, eis que a primeira

fornece meios adequados à boa realização da segunda, a qual também não se

exaure em si mesma, pois ganha razão de ser quando encontra espaço para a

135 STEIN, Ernildo. Aproximações de Hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p.108. 136 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 9.ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 58 137 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 48-49

65

efetiva aplicação das normas jurídicas em situações concretas das relações

intersubjetivas, tendo-se em conta a dimensão prática do direito. Este deve estar

sempre voltado ao disciplinamento da convivência das pessoas, em um contexto

social, a fim de que seja mais justa e razoável possível.

Portanto, segundo Barroso138 , a hermenêutica jurídica

é um domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação, o estudo e a sistematização dos princípios e regras de interpretação do direito. A interpretação é atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-Ia incidir em um caso concreto. A aplicação de uma norma jurídica é o momento final do processo interpretativo, sua concretização, pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato. Esses três conceitos são marcos do itinerário intelectivo que leva à realização do direito. Cuidam eles de apurar o conteúdo da norma, fazer a subsunção dos fatos e produzir a regra final, concreta, que regerá a espécie.

Dessa forma, enquanto que a hermenêutica jurídica teoriza e reflete, à

interpretação coloca-se a missão essencial de compreender sentidos, ou seja, o

conteúdo típico humano que se imprime a qualquer contexto histórico, no qual não

existem apenas fatos, dados, acontecimentos externos, mas também significação e

valores, para que se chegue ao resultado consagrado pelo legislador e adequando o

direito à realidade social posta.

Assim, a finalidade da hermenêutica, principalmente da hermenêutica jurídica,

a qual após a discussão filosófica, nosso trabalho desemboca, “consiste em fornecer

os meios adequados à interpretação – busca do sentido – e integração –

preenchimento de lacunas – das leis e do direito”139. Diante disso,

conseqüentemente, a hermenêutica não se confunde com a interpretação, no

entanto, se se perde esta de vista perde-se, também, seu sentido. Dessa forma,

distinguir uma da outra, como o fizeram os autores citados anteriormente, não

implica em separá-las simplesmente.

138 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 113. 139 Conceito de GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica Jurídica e constituição no estado de direito democrático. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 30

66

Criticamente, é preciso referir que a interpretação constitucional tradicional não

permite ao intérprete fazer qualquer alargamento ou restrição no sentido da norma

de modo a deixá-la compatível com a Carta Maior, como temos na nova

hermenêutica constitucional baseada em princípios de interpretação constitucional.

Dessa maneira, interpretar conforme à Constituição não significa alterar ou reduzir o

conteúdo da lei, até mesmo porque, se assim fosse, tratar-se-ia de uma intervenção

extremamente drástica na esfera de competência do legislador, mais drástica do que

a própria declaração de nulidade dessa mesma lei.

Por conseguinte, conceituações e diferenciações dos termos interpretação e

hermenêutica não se esgotam por aqui, eis que para se chegar efetivamente ao

resultado interpretativo esperado faz-se necessário superar os métodos e conceitos

clássicos da interpretação constitucional, para, posteriormente, dentro de uma nova

hermenêutica, termos instrumentos hermenêuticos baseados nos princípios de

interpretação constitucional, como forma de aproximação à efetividade da

Constituição e da proteção dos direitos humanos fundamentais, conforme far-se-á

no próximo subtítulo e nos demais que ainda virão.

2.2 Métodos e conceitos clássicos aplicados à inter pretação constitucional

Passados os conceitos teóricos sobre hermenêutica e interpretação, faz-se

necessário discorrer sobre os métodos e conceitos clássicos que fizeram parte da

interpretação constitucional e que darão fundamento, posteriormente, às modernas

formas de interpretação, baseadas numa gama de princípios que primam pela

realização da Constituição.

De acordo com Barroso140, a classificação da interpretação constitucional

clássica pode ser de três formas: a) em relação a sua origem (legislativa,

administrativa, judiciária, doutrinária e autêntica); b) quanto aos resultados ou à

extensão (declaratória, extensiva ou restritiva) e, c) quanto ao método ou elementos

de interpretação (gramatical, histórica, sistemática e teleológica).

140 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 116.

67

Por não se tratar do tema principal da pesquisa que ora se apresenta, faremos

uma simples conceituação da classificação clássica apresentada acima, conforme

segue no decorrer dos próximos parágrafos.

Assim, a interpretação constitucional legislativa é aquela interpretação popular

representativa, desempenhada pelas Casas do Congresso Nacional, Assembléias

Legislativas e Câmaras de Vereadores, com a finalidade de realizar os fins

constitucionais.

A interpretação constitucional administrativa é levada a efeito pelo poder

executivo, podendo esse Poder questionar e deixar de aplicar os atos do legislativo

que julgar inconstitucionais.

A interpretação constitucional judicial é aquela interpretação final e vinculante

para todos os outros poderes, sendo que por vezes essa interpretação pode se

sobrepor à interpretação do Poder Legislativo, principalmente quando o Judiciário

declara a inconstitucionalidade de uma determinada lei.

A interpretação doutrinária, como o próprio nome identifica, é aquela que não

se dirige diretamente à aplicação das normas, mas fornece subsídios intelectuais

para os órgão encarregados em realizar a interpretação.

A última das formas de interpretação, quanto à origem, diz respeito à

interpretação autêntica: nesse caso há a edição de uma norma interpretativa

partindo de outra norma preexistente.

No que diz respeito ao resultado ou extensão da interpretação, temos a

interpretação constitucional considerada de três formas: a) declarativa é aquela onde

observamos uma congruência entre o texto da norma e o sentido que lhe é atribuído

de forma lógica ou por meio da razão; b) interpretação restritiva é aquela que deixa

margem para incongruências entre o texto da norma e a sua interpretação lógica,

onde o legislador acaba por dizer mais do que realmente queria dizer, cabendo uma

interpretação restrita; c) na interpretação extensiva, ao realizar-se a interpretação

68

observa-se, que o que está expresso no texto da lei pode ter uma conotação maior

podendo-se, por meio dos recursos hermenêuticos, fazer-se um alargamento do

sentido da lei. É onde o Tribunal acaba por ampliar a abrangência da norma

infraconstitucional para que a mesma não seja julgada inconstitucional.

Assim, em decorrência da classificação feita anteriormente, pode-se discorrer

de forma pertinente em relação às sentenças interpretativas e manipulativas,

classificadas em: aditivas, redutivas e substitutivas141. Tais sentenças aparecem

como uma atuação quase legislativa dos Tribunais, que acabam criando uma nova

norma, diversa daquela posta pelo legislador, ocorrendo, dessa forma, a

manipulação do próprio texto.

Para Abellán142,

Las sentencias interpretativas son el resultado de actuar según el principiode conservación de las leyes [...] y directamente relacionado con el principio de la interpretación de las leyes conforme a la constitución. En virtud de dicho principio, cuya obrigatoriedad se vincula a la primacía constitucional, un precepto legal solo debe ser declarado inconstitucional cuando no admita una interpretación conforme a la constitución, de manera que ha de conservarse en la medida en que sea susceptible de una interpretación constitucionalmente adecuada. De acuerdo com esto puedem definirse las sentencias interpretativas como aquellas que no anulan el texto de la ley em la medida en que admita alguma interpretación conforme a la constitución.

Assim, o que se observa por meio do que foi dito até aqui é que se corre o risco

de a interpretação conforme à Constituição resultar na imposição da melhor forma

de interpretação pelo Tribunal, em detrimento de outras interpretações igualmente

constitucionais. Por isso é que o princípio da interpretação conforme à Constituição

constitui-se em um recurso meramente interpretativo, onde não há alteração do texto

normativo, tendo como característica ser um instrumento delicado de manejo da lei

infraconstitucional de forma a deixá-la conforme ao preceituado no texto

constitucional.

141 Conforme classificação de Leal, que será especificada em seguida. 142 ABELLÁN, Marina Gascón. Los límites de la justicia constitucional: el tribunal constitucional entre jurisdicción y legislación. In: LAPORTA, Francisco (Org.) Constitución: problemas filosóficos. Madrid: 2003. p. 174-175.

69

Já no que diz respeito às sentenças manipulativas, de acordo com Abellán143,

podem ser aplicadas,

Cuando ninguna de las interpretaciones plausibles del precepto legal impugnado permite mantener su constitucionalidad (como sucede en las sentencias interpretativas) y no obstante no que considera adecuado o conveniente anular esse precepto, el Juez constitucional puede salvar su constitucionalidad de dos modos: a) manipulando el texto de la ley para provocar una interpretación constitucional del mismo (por ejemplo, anulando un inciso o uma o varias palavras del texto a fin de cambiar su sentido); b) manipulando directamente su interpretación, a fin de que resulte compatible con la constitución Aunque en ambos casos se producen manipulaciones de la ley (sea de su texto, sea de su interpretación).

Nesse tipo de sentença ocorre a manipulação do próprio texto e a sobreposição

dos poderes, sendo que para Leal144, podem ser classificadas em:

Sentenças Aditivas: consistem em uma interpretação extensiva do âmbito de aplicação da norma, a fim de deixá-la conforme à Constituição. Normalmente têm seu assento no princípio da igualdade (Tribunal prefere ampliar a abrangência da norma do que declará-la inconstitucional). Aqui o tribunal acaba por manipular o texto normativo para consertar a desigualdade. Ex: Legalidade do aborto de bebês com anencefalia. Teríamos aqui uma inclusão de texto consubstanciado com mais essa previsão. Sentenças redutivas: consistem numa redução do âmbito de aplicação do preceito legal impugnado, a fim de torná-lo compatível com a Constituição, sendo que muitas vezes é confundida com a “nulidade parcial sem redução de texto”, pelo Supremo Tribunal Federal. Sentenças substitutivas: Incidem no âmbito da aplicação da norma. Seria a substituição de uma interpretação plausível, mas inconstitucional, por outra que claramente não se deriva do texto, mas resulta acorde com a Constituição. Vão contra o texto normativo que está estabelecido, por isso precisam ser substituídas.

Da mesma forma que Leal, Abellán145 classifica as sentenças manipulativas da

seguinte forma:

Sentencias sustitutivas: consisten en substituir una interpretación plausible, pero inconstitucional, del precepto legal impugando por otra que claramente não se deriva del mismo pero resulta acorde com la constituicón.

143 ABELLÁN, Marina Gascón. Los límites de la justicia constitucional: el tribunal constitucional entre jurisdicción y legislación. In: LAPORTA, Francisco (Org.) Constitución: problemas filosóficos. Madrid, 2003. p. 176. 144 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Princípios e possibilidades interpretativas. Aula ministrada ao Curso de Pós-Graduação – Mestrado em Direito - da UNISC, em 17 de março de 2006. 145 ABELLÁN, op. cit. p. 178.

70

Sentencias reductoras: consiste en hacer una interpretación restrictiva del ámbito de aplicación del precepto legal impugnado a fin de conformalo a la constituición [...]. Sentencias aditivas: consiste en hacer una interpretación extensiva del ámbito de aplicación del precepto legal impugnado a fin de conformalo a la constituición [...].

Entende-se, quando da aplicação dessas sentenças manipulativas, que o juiz

atua como autêntico legislador positivo, eis que cria uma norma nova e um novo

direito, mesmo que não estabelecido pelo legislador. Traz-se aqui duas críticas,

quais sejam: a) com a utilização dessas sentenças, o juiz passa a incorporar

atividades que são próprias do legislador, ou seja, há aí uma possível violação do

princípio da separação dos poderes, b) bem como podemos ter resultante disso uma

situação de insegurança jurídica, com conseqüências não previstas ou não queridas

por essa interpretação constitucional, eis que o mesmo dispositivo de lei é

interpretado de formas diferentes, por pessoas diferentes e para casos diversos.

Continuando, Streck146 acaba por referir, com propriedade, que na

interpretação tradicional não podemos nos utilizar sempre do leito de Procusto147,

pois não se pode, simplesmente, moldar as normas de forma a alargá-las ou

restringi-la para poder compatibilizá-las com a Norma Maior, qual seja, a

Constituição, mas podemos interpretá-las de forma a deixá-las conformes à Carta

Magna.

Preceitua Bonavides148 que as regras tradicionais estão associadas aos

chamados métodos tradicionais da hermenêutica, a saber:

a interpretação gramatical, a lógica e analógica. A interpretação gramatical prioriza o sentido literal das palavras utilizadas na elaboração da norma. A interpretação lógica é aquela que investiga as condições e os fundamentos

146 STRECK, Lênio Luiz. Controle Externo, Súmulas vinculantes e a reforma do Judiciário como condição de Democracia. Winfried Jung (Resp.). In: A construção democrática brasileira e o poder judiciário. São Paulo: Konrad Adenauer Stiftung, n. 20, 1999. p. 97. 147 Faz-se, aqui, uma comparação entre a interpretação das normas e o leito de Procusto. Procusto era um gigante da mitologia grega que vivia perto de uma estrada e convidava viajantes solitários para passarem a noite em sua pousada. Mas havia uma armadilha nesta hospitalidade, acreditava-se que ele tinha dois leitos de ferro, um menor que o outro, que era destinado ao hóspede de acordo com a sua altura, eis que depois que a vítima adormecia, Procusto a dominava e tratava de adequar o corpo às medidas exatas do leito: se ele era alto e os pés sobressaíam da borda, ele os amputava com um machado; se era baixo e tinha espaço de folga, ele esticava os membros com cordas e roldanas. 148 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 127.

71

da lei, procurando reconstruir a intenção do legislador. A interpretação analógica, pressupondo a unidade do sistema jurídico, supre as lacunas da norma recorrendo a matérias análogas.

Em relação aos métodos clássicos de interpretação, há que se reportar,

principalmente, ao fundador da Escola Histórica do Direito, ou seja, ao jurista

Savigny149, que trouxe para o catálogo de interpretação das normas ditas completas

os métodos clássicos da interpretação jurídica, quais sejam: a gramatical (a partir do

texto da norma), histórica (do processo de criação), sistemática (de sua conexão) e

teleológica (de sua finalidade).

Aunque Ia interpretación constitucional es una, no obstante existen diversos métodos para esclarecer el significado de Ias normas constitucionales. No hay uma Interpretación histórica de Ias normas constitucionales, otra gramatical y otra lógico-sistemática, y teologica, sino una sola interpretación constitucional que analiza los precedentes históricos, examina los debate parlamentarios, fija el significado exacto de lãs palabras y realiza las operaciones necessárias para establecer el sentido de la norma constitucional como parte componente de um ordenamiento que apunta a una finalidad concreta150.

Não existe, segundo Barroso, nenhuma hierarquia predeterminada entre os

variados métodos interpretativos, nem um critério rígido de desempate: a tradição

romano-germânica, todavia, desenvolveu algumas diretrizes que podem ser úteis.

Duas delas são destacadas pelo autor151 a seguir:

Em primeiro lugar, a atuação do intérprete deve conter-se sempre dentro dos limites e possibilidades do texto legal. A interpretação gramatical não pode ser inteiramente desprezada. Assim, por exemplo, entre interpretações possíveis, deve-se optar pela que conduza à compatibilização de uma norma com a Constituição. É a chamada interpretação conforme à Constituição. Todavia, não é possível distorcer ou ignorar o sentido das palavras, para chegar a um resultado que delas esteja inteiramente dissociado. Em segundo lugar, os métodos objetivos, como o sistemático e o teleológico, têm preferência sobre o método tido como subjetivo, que é o histórico. A análise histórica desempenha um papel secundário, suplementar na revelação do sentido da norma.

Em ato contínuo, podemos referir que as clássicas formas de interpretação,

objeto do presente capítulo, compreendem, como já dito, quatro formas, acerca das

quais passamos a discorrer mais minuciosamente neste momento.

149 SAVIGNY, Friedrich Karl von. Metodología Jurídica. Tradução de J. J. Santa-Pinter. Buenos Aires: Delpalma, 1994 150 VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político. Madrid: Tecnos, 1982. vol. I. p. 553. 151 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 126.

72

Assim, a Interpretação Gramatical é conhecida, também, como textual, literal,

filológica, verbal ou semântica, consistindo na compreensão do sentido possível das

palavras, referindo-se ao momento inicial do processo interpretativo, levando-se em

consideração que toda a interpretação jurídica deve partir do texto da norma, do

conteúdo semântico das palavras. Esse tipo de interpretação não basta para

demonstrar o sentido que se contém na norma, mas é necessária para auxiliar na

revelação do direito por meio das outras técnicas de interpretação que seguem.

Para Schleiermacher152, a interpretação gramatical “é a arte de encontrar o

sentido determinado, pela linguagem e com auxílio da linguagem, de um

determinado discurso”, sendo que se deve dividir a tarefa da interpretação

gramatical em duas partes: “1) determinar o significado a partir do emprego dado; e

2) encontrar o emprego posto como desconhecido a partir do significado”, com a

finalidade de “[...] encontrar para cada caso dado o verdadeiro uso que o autor tinha

em mente, evitando tanto os falsos como também o muito e o pouco”.

Entende-se a concepção de Schleiermacher, na medida em que o

enquadramos entre os autores da hermenêutica clássica, sendo que, em

contraponto, a nova hermenêutica, a hermenêutica baseada em princípios, não

busca apenas uma interpretação ou um sentido, mas sim uma interpretação da lei

infraconstitucional, entre as várias que existam, que esteja em conformidade com a

Constituição, até mesmo porque, para a nova hermenêutica, não há sentido

“verdadeiro” a ser descoberto, como é na teoria clássica.

Com a democratização do processo constituinte e com a abertura das

Constituições, como é o caso da Constituição Brasileira de 1988, observa-se uma

linguagem principiológica, com emprego de termos polissêmicos e conceitos

indeterminados e que dependem da interpretação para terem aplicação aos casos

diversos, dando-se maior importância à realização dos conteúdos.

152 SCHLEIERMACHER, Friedrich Daniel Ernst. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Tradução de Celso Reni Braida. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 70 – 79.

73

Assim sendo, observa-se que na interpretação jurídica é impossível obtermos

uma objetividade plena, visto que da mesma forma que a linguagem confere

abertura ao intérprete, as palavras possuem sentidos mínimos que devem ser

respeitados, sob pena de perverter o seu papel de transmissora de idéias.

Conclusivamente, pode-se dizer que é a interpretação gramatical que delimita o

espaço dentro do qual o intérprete vai operar, sendo que o intérprete deve partir da

premissa de que todas as palavras do texto Constitucional têm função e sentidos

próprios, não existindo nenhuma palavra sem valor ou supérflua.

De acordo com Ferrara153, “O intérprete deve buscar [...] não aquilo que o

legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens legis e

não a mens legislatoris”. Completando o exposto por Ferrara é possível referirmos

que a preponderância entre a lei ou a vontade do legislador vai depender, sempre,

do intérprete daquele momento.

Para o filósofo alemão Schleiermacher154, não obstante o espírito idealista de

seu tempo, “pensava na unificação do realismo com o idealismo, o que para ele

significava pensar juntos o universal e o particular, o ideal e o histórico”.

Entende-se, dessa forma, que a interpretação histórica encontra apoio no

método histórico-crítico de Schleiermacher e consiste na busca do sentido da lei por

meio de precedentes legislativos, sendo que tal método é caracterizado por um

esforço retrospectivo que busca a vontade histórica do legislador, podendo incluir

não só a revelação de suas intenções quando da edição da norma como também a

especulação sobre qual seria a sua vontade se ele estivesse ciente dos fatos e

idéias contemporâneos.

Continuando, pode-se dizer que os argumentos de Schleiermacher155 são

baseados “na inseparabilidade de pensamento e linguagem e a inexistência ou

impossibilidade de uma linguagem universal. A própria linguagem seria a fonte da

153 FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis. Coimbra: Armênio Amado, 1987. p. 135. 154 SCHLEIERMACHER, Friedrich Daniel Ernst. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Tradução de Celso Reni Braida. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 11. 155Ibidem, p. 12

74

relatividade. Trata-se de uma relação de complementariedade”, sendo que “sem

linguagem não se daria nenhum saber, e sem saber nenhuma linguagem”.

Já na moderna interpretação, o elemento histórico tem sido o menos

prestigiado, tendo maior destaque na interpretação das demais leis do que em

relação às Constituições. Por conseguinte, deve-se referir que o que se interpreta na

norma não é apenas o seu conteúdo aparente, mas todo o substrato de valores

históricos, políticos e ideológicos que estão na origem da Constituição. Não se trata

apenas da vontade individual ou somada dos constituintes, mas sim, da vontade

social de que foram portadores, entendida como síntese de valores, sentimentos e

aspirações comuns, traduzidos, notadamente num contexto democrático, pelo plano

normativo e pelos princípios constitucionais.

Observa-se, por conseguinte, que, na moderna forma de interpretar, a

Constituição deve estar em constante atualização, eis que a realidade assim a

demanda, sob pena da Lei Maior, com o a passar do tempo, tornar-se obsoleta, e

porque não dizer, sem aplicabilidade frente aos fatos reais.

Conforme Bastos156,

A interpretação histórica, exceto na sua dimensão documentalista, e mesmo assim excepcionalmente, é muito pouco utilizada nos nossos tribunais, especialmente porque os seus efeitos críticos podem desestabilizar a harmonia dos institutos jurídicos vigentes.

Por outro lado, a interpretação sistemática é o fruto da unidade do

ordenamento jurídico e tem como particularidade o entendimento das partes para

chegar-se à compreensão do todo. Aqui o intérprete acaba por situar o dispositivo a

ser interpretado dentro de um contexto normativo particular e geral, fazendo as

conexões entre esses dois momentos e evitando o choque com a Carta Magna.

156 BASTOS, Aurélio Wander. Introdução à teoria do direito. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1992. p. 237.

75

De acordo com Magalhães Filho157,

A interpretação sistemática inspirava-se na concepção de circularidade hermenêutica, cujo amadurecimento ocorreu, posteriormente, no pensamento de Dilthey, o qual via as produções de espírito na unidade da vida e conhecia a unidade da vida nas produções de espírito, compreendendo o todo pela parte e a parte pelo todo.

Segundo Usera158, “os resultados parciais obtidos pelo uso de cada um dos

métodos de interpretação devem ser postos em relação uns com os outros através

de elementos sistemáticos”.

Por último, temos o método teleológico que é caracterizado por entender que a

norma deve ser interpretada e aplicada atendendo, fundamentalmente, ao seu

espírito e à sua finalidade, sendo que essa última pode evoluir sem modificação de

seu texto.

Seguindo Ferraz159, é possível afirmarmos que esse método de interpretação

Pode ensejar transformação do sentido e conteúdo que parece emergem da fórmula do texto, e também pode acarretar a inevitável conseqüência de, convencendo que tal fórmula traiu, realmente, a finalidade da lei, impor uma modificação do texto, que se terá de admitir com o máximo de circunspeção e de moderação, para dar estrita satisfação à imperiosa necessidade de atender ao fim social próprio da lei.

Servem, ainda, como auxiliares da interpretação constitucional e do

preenchimento de um possível vazio normativo da lei: a) a analogia constitucional,

que corresponde a buscar no sistema constitucional um direito que já existe, b) os

costumes constitucionais, que possuem função de integração, destacado pelo uso e

repetição usual de um determinado comportamento, c) dos princípios constitucionais

e d) o conjunto de direitos dispostos na legislação.

157 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 44. 158 USERA, Raúl Canosa. Interpretación constitucional y fórmula política. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1998. p. 97. 159 FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986. p. 43.

76

Resumindo os métodos clássicos de interpretação, Gomes160 leciona que,

Ao interpretar a Constituição, partirá o intérprete de sua letra - interpretação gramatical ou filológica – como prefere alguns autores -; porém não se aterá apenas a esta, irá buscar o sentido que somente se revela a partir da compreensão do todo, a Constituição, no contexto histórico em que se situa o próprio intérprete. E tal compreensão não se alcança sem o auxílio do conjunto de métodos desenvolvidos pela hermenêutica jurídica, os quais são apoiados pelos princípios da hermenêutica constitucional.

Além disso, é possível observarmos que a interpretação constitucional está em

constante evolução, sendo que as normas valem em razão da realidade de que

participam, adquirindo novos significados e sentidos, mesmo quando mantidas

inalteradas as suas estruturas formais.

Observa-se, nesse sentido, que o erro não é dos métodos em si, mas das

mudanças que ocorreram ao longo dos tempos no que se entende por interpretação,

eis que os métodos clássicos se voltavam à busca da reconstrução de um texto,

enquanto que a nova hermenêutica constrói uma norma a partir de um texto que já

existe.

E é por ser a Constituição, principalmente quando se fala na Constituição

brasileira de 1988, uma lei de calibre maior, aberta e eivada de regras e de

princípios, definidora da organização do país e base para todas as demais leis

infraconstitucionais, que os métodos clássicos de interpretação acabam sendo

considerados insuficientes para manter a sua validade e seu controle no decorrer

dos tempos. Assim sendo, a nova hermenêutica, acaba por trazer à tona novos

princípios constitucionais de interpretação, destinados a permitir/garantir uma

máxima realização dos conteúdos constitucionais, sendo que o resultado dessa

contemporaneidade será objeto do próximo subtítulo e, também, do próximo capítulo

do presente trabalho.

160 GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica Jurídica e constituição no estado de direito democrático. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 45.

77

2.3 A nova hermenêutica constitucional 161 baseada em regras e princípios e na

superação dos métodos clássicos de interpretação

2.3.1 A distinção entre regras e princípios

Denunciando a insuficiência dos métodos clássicos, sistematizados por

Savigny162 para a interpretação constitucional, a Teoria da Constituição passou a

propugnar um método próprio de interpretação do texto constitucional, com amplo

destaque aos princípios constitucionais. Os grandes debates sobre o assunto em

comento centraram-se na diferenciação entre princípios e regras, sendo que, na

doutrina constitucional contemporânea, ambos, regras e princípios, são tidos como

normas jurídicas, ou melhor, toda norma jurídica é uma regra ou um princípio. A sua

distinção, qualitativa e quantitativa, ocorre na aplicação do texto normativo, quando

pode ocorrer o conflito entre regras ou o conflito entre princípios.

Segundo Cittadino163,

A jurisprudência de valores alemã - que vai influenciar o constitucionalismo português e espanhol e, por esta via, o brasileiro - equipara princípios e normas constitucionais a valores e, nesse sentido, defende a idéia de que a Constituição, enquanto projeto, traduz uma identidade e história comuns, e também um compromisso com certos ideais compartilhados. Ao mesmo tempo, muitos dos autores que integram tal corrente acreditam que a concretização da Constituição, enquanto consenso social sobre os valores básicos compartilhados, depende não apenas de um Judiciário cuja função primordial é estabelecer uma aproximação entre o direito e a realidade histórica, mas fundamentalmente de formas democráticas de participação comunitária nos assuntos públicos. Em outras palavras, o processo de concretização da Constituição envolve necessariamente um alargamento do círculo de intérpretes da Constituição, na medida em que devem tomar parte do processo hermenêutico todas as forças políticas da comunidade.

161 Na nova hermenêutica constitucional prefere-se falar em princípios de interpretação constitucional em vez de métodos de interpretação constitucional. Dentre os adeptos da nova hermenêutica podemos citar: Eros Grau, Lenio Luiz Streck, Luís Roberto Barroso, Paulo Bonavides, Konrad Hesse, Peter Häberle, entre outros. 162 SAVIGNY, Friedrich Carl von. Metodología Jurídica. Buenos Aires: Delpalma, 1994. 163 CITTADINO, Gisele. Judicialização da Política, Constitucionalismo Democrático e Separação de Poderes. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A Democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. pp. 23-24.

78

Entende-se, por conseqüência, que sempre que ocorrer o conflito entre regras,

uma será necessariamente inválida, caindo, por sua vez, fora do ordenamento

jurídico. Dessa forma, a regra é aplicada ou não, sem gradações, tendo eficácia

restrita às situações específicas às quais se dirige. Já os princípios indicam uma

direção, mesmo que haja outras direções, visto terem um maior teor de abstração e

uma finalidade mais destacada dentro do sistema.

Salienta-se, por conseguinte, que as regras são criadas e os princípios são

desenvolvidos, eis que as primeiras possuem pouca maleabilidade, sendo criadas

para incidir em determinada realidade, enquanto que os segundos possuem em

estrutura maleável e aberta, que os capacita para incidir em vários casos concretos.

Assim, para Canotilho164, a diferença entre normas e princípios está em cinco

critérios:

a) Grau de abstracção: os princípios são normas com um grau de abstracção relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida. b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador do juiz), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação directa. c) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito). d) Proximidade da idéia de direito: os princípios são standards juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na idéia de direito (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional. f) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.

Por conseguinte, o sistema jurídico acaba sendo considerado uma síntese

entre regras que regulam situações concretas e princípios que reproduzem os

valores mais fundamentais da sociedade, mas há de se observar que, enquanto a

regra precisa apenas de interpretação e de aplicação, o princípio carece de

concretização e operação sobre a regra. 164 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1124-1125.

79

Assim sendo, observa-se que as regras possuem uma estrutura pouco

maleável, sendo estabelecidas para incidir em determinados momentos e

realidades, sendo que, ao contrário, os princípios possuem uma estrutura maleável e

aberta, que os capacita para incidir em diversos casos concretos e das mais

diferentes formas, eis que no âmbito da incidência o princípio tem maior abrangência

do que a regra.

Conforme Häberle165,

Si Ias observarmos desde una perspectiva estrictamente cultural-contextual, en lo que a principios constitucionales se refiere, constatamos que ostentan de por sí no sólo una capacidad exegético-constitucional propia, sino que requieren asimismo ser interpretados de nuevo también cada vez.

Segundo preceitua Alexy166, a diferença fundamental entre regras e princípios

está no aspecto qualitativo e, também, no fato de que os princípios nunca serão

razões definitivas, eis que

siempre que un principio es, en última instancia, una razón básica para un juicio concreto de deber ser, este principio es una razón para uma regla que representa uma razón definitiva para este juicio concreto de deber ser. Los principios mismos no son nunca razones definitivas.

Observa-se, por conseguinte, que dentro do ordenamento jurídico podemos ter

regras colidindo, assim como podemos não ter regras para determinado caso, e que

apesar disso, o sistema jurídico dispõe de princípios capazes buscar e permitir a

aplicação do direito, eis que, segundo Leal, “os princípios podem ser tomados [...],

como sendo uma condição de possibilidade de existência das próprias regras, razão

pela qual não se pode falar nem em um sistema puro de princípios, nem em um

sistema puro de regras”167.

165 HÄBERLE, Peter. Teoría de la constitución como ciencia de la cultura. Madrid: Editorial Tecnos, 2000. p. 43. 166 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Traducción de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p. 103. 167 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 89.

80

Neste sentido podemos observar o Decreto-Lei n.º 4.657, de 04 de setembro

de 1942, Lei de Introdução ao Código Civil, que prevê a utilização dos princípios

gerais do Direito como forma de suprir eventuais lacunas, assim determinando no

seu art. 4.º: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a

analogia, os costumes e os princípios gerais de direito"168.

Dessa forma, segundo Rocha169, “dotados de originalidade e superioridade

material sobre todos os conteúdos que formam o ordenamento constitucional, os

valores firmados pela sociedade são transformados pelo Direito em princípios”.

Assim sendo, entende a autora, que “[...] os princípios constitucionais não são os

princípios gerais do Direito, mas princípios fundamentais do Estado de Direito”.

Ainda de acordo com Magalhães Filho170, tem-se por meio dos princípios

constitucionais que,

o juiz, membro da sociedade, terá uma pré-compreensão dos valores semelhante àquela que terá a sociedade. Percebemos, então, que a Constituição é o ponto de encontro entre o Direito e a Sociedade, entre o juiz e o cidadão, sendo mediante o Estatuto Supremo que o sistema jurídico se abre para o social.

Dessa maneira, sempre que se tem um caso concreto, observa-se, dentro de

uma ótica de ponderação, a prevalência de um princípio. Os princípios, assim, são

dotados da dimensão de peso, que falta às regras. Dessa forma, no conflito entre

princípios ocorre essa ponderação, que não há no conflito entre regras.

Segundo Alexy171,

[...] Cuándo princípios colisionan, uno cede delante el outro. Pero, esto no significa declarar nulo el principio apartado ni que em neste deba introducirse uma cláusula de excepción. Lo que se pasa, más exactamiente, és que, so ciertas circunstancias, uno de los princípios

168 BRASIL. Lei de Introdução ao Código Civil. In: CAHALI, Yussef Said. (Org.). Código Civil, Código de Processo Civil, Código comercial, Legislação civil, processual civil e empresarial e Constituição Federal. 9. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. 169 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. pp. 25. 170 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 45 171 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Traducción de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 89.

81

precede el outro. So otras circuntancias, la cuestión de la precedência puede solucionarse de la manera opuesta. És estol o que quiere decir cuándo se asevera que, em los casos concretos, los princípios tienem peso distinto y prevaleça el principio com peso mayor. Los conflictos de las relas se resolven em la dimensión de la validad; la colisión de los princípios – como solamente pueden entrar em colisión princípios válidos – tiene lugar para más adelante de la dimensión de la validad, em la dimensión del peso.

É interessante referir que, enquanto norma reguladora, a Constituição é

composta de princípios e de regras, sendo ambos espécies do gênero norma

jurídica e, portanto, dotados de normatividade. A distinção correta não está entre

princípios e normas, mas entre regras e princípios, sendo que a aplicação de uma

regra se opera na lógica do “tudo ou nada”172: ou ela regula a matéria em sua

inteireza ou não pode ser aplicada. Na hipótese do conflito entre duas regras, só

uma será válida e irá prevalecer, já no que diz respeito aos princípios, por sua vez,

eles contêm maior grau de abstração e se aplicam a um conjunto amplo de

situações, graduando-se em vista das circunstâncias reais. Resumindo: “os

princípios co-existem; as regras excluem-se”173.

Dessa maneira, a colisão de princípios pode determinar a prevalência de uns e

o afastamento de outros, sem prejuízo de sua validade. Já no caso das regras, a

incidência de uma regra implica na exclusão de outras, sendo que havendo um

resultado contrário entre as regras, uma delas é abandonada, ao passo que os

princípios sobrevivem de forma intacta.

Para substanciar a pesquisa, traz-se a diferenciação que Espíndola174 faz em

relação aos princípios e regras:

Os princípios constitucionais são normas jurídicas; normas que integram a Constituição, com a mesma dignidade de direito que as regras constitucionais ou quaisquer outras normas constitucionais. É quase pacífica, entre os autores, a distinção entre regras e princípios como espécies do gênero norma jurídica. [...] As regras constitucionais são especificações dos princípios constitucionais. Ou seja: ao lado de outros princípios (menores) de maior densidade semântica, elas especificam a esfera normativo-aplicativa dos princípios

172 Conforme leciona DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Tradução de Jeferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 173 De acordo com CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1137. 174 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 245-249.

82

(maiores) de menor densidade. Assim, entende-se a estrutura constitucional como um escalonamento normativo-material entre princípios e regras que podem mutuamente se especificar e explicar-se, de cima para baixo ou de baixo para cima, na seguinte disposição: princípios maiores - princípios menores - regras constitucionais."

Segundo Gomes175, “a distinção entre regras e princípios consiste, portanto,

em uma distinção entre duas normas. E acrescenta que, dentre os numerosos

critérios propostos para a distinção entre regras e princípios, o mais utilizado é o da

generalidade”176. Enquanto os princípios possuem uma generalidade alta, as regras

possuem uma generalidade mais baixa.

Da mesma forma, Grau177 convenciona que:

Regra e princípio têm em comum o caráter de generalidade, mas a generalidade da primeira é diversa da do segundo, residindo a generalidade daquela no fato de que é estabelecida para um número indeterminado de atos ou fatos, ao passo que este é geral porque comporta uma série indefinida de aplicações. Além disso, a regra é especial na medida em que não regula senão tais atos ou fatos, isto é, ela é editada para ser aplicada a uma situação jurídica determinada, o que já não ocorre com os princípios, que são capazes de abranger uma série de situações jurídicas.

Apesar de regras e princípios integrarem o conceito de norma jurídica e serem,

sem hierarquia, o referencial do intérprete, na diferenciação entre ambos chegamos

à conclusão de que as regras desempenham o papel referente à segurança jurídica,

enquanto que os princípios, por meio de sua flexibilidade, ponderação e por terem

maior carga valorativa, além de trazerem a segurança jurídica178, acabam por

175 GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica jurídica e Constituição no estado de direito democrático. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 21-22. 176 Diferentemente do que entende Gomes, em relação a distinção entre regras e princípios baseado na generalidade, Alexy entende que a diferença entre ambos estaria na qualidade. ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Traducción de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. 177 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 112. 178 Conforme Nota de Rodapé n.o 111. De acordo com Canotilho, [...] o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Os princípios - segurança jurídica e protecção da confiança andam estreitamente associados a ponto de alguns autores considerarem o princípio da protecção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica - garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito - enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos.

83

realizar a justiça, que por vezes não tem total amparo na lei desprovida de

referenciais interpretativos.

Dessa forma, é perceptível que um sistema jurídico não pode ser constituído

unicamente por regras ou princípios, eis que se constituído apenas de regras

teríamos um sistema jurídico “seguro”, mas ao mesmo tempo extremamente

legalista, em que não seria possível a introdução de conflitos, situação normal numa

sociedade pluralista e aberta. Da mesma forma, um sistema constituído apenas por

princípios também seria falho, visto que a existência de conflito entre eles seria

incapaz de reduzir a complexidade do sistema.179

Dessa forma, o sistema jurídico necessita tanto do legalismo da regra quanto

da abertura que os princípios permitem, formando-se, assim, um sistema completo.

Mello180 assim descreve a importância dos princípios na interpretação

constitucional:

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico [...]. Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma181. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais.

Pode-se completar a conceituação de Mello dizendo que os princípios são,

ainda, considerados como marcos do desenvolvimento do ordenamento, apontando

objetivos e proibindo retrocessos, funcionando como forma de interpretação e de

concretização da Constituição. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 256. 179 Há de se referir aqui, que quem muito bem discorre sobre esse assunto é o jurista português, CANOTILHO, Ibidem, pp. 1123 et. seq. 180 MELLO, Celso Bandeira de. Elementos do direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 230. 181 A palavra norma, aplicada dentro desse contexto, corresponde ao conceito de regra, conforme fizemos a diferenciação anteriormente, visto que norma abarca tanto o conceito de regras como de princípios.

84

Assim sendo, para Leal182,

Os princípios constitucionais apresentam-se, pois, com um caráter paradoxal, pois ao mesmo tempo que permitem a abertura do sistema, afiguram-se como o elemento imutável da ordem jurídico-constitucional, ao estabelecer os limites dessa mesma abertura, consistindo num fundamento de segurança jurídica. Eles são, assim, concomitantemente, o elemento de abertura e de fechamento da estrutura jurídica.

De acordo com Rothenburg183, os princípios são dotados de vagueza, no

sentido de uma enunciação larga e aberta, capaz de hospedar as grandes linhas na

direção das quais deve orientar-se todo o ordenamento jurídico.

Na mesma linha, o autor segue dizendo que:

Da generalidade e da vagueza decorre a plasticidade que os princípios jurídicos apresentam, permitindo-lhes amoldarem-se às diferentes situações e assim acompanharem o passo da evolução social. [...] a vagueza não é um defeito que os princípios apresentam, senão que um jeito de ser. Eles são naturalmente vocacionados para serem retomados e desenvolvidos por normas mais determinadas e específicas. 184

Assim sendo, Rocha185 aponta a abertura como vantagem dos princípios, ao

dispor que:

A indeterminação dos conceitos havidos nas normas que expressam princípios, permite que estes sejam interpretados segundo o momento histórico e segundo a disposição ideológica do povo pelo qual é aceito e assumido juridicamente. Assim, a não determinação dos conceitos pelos quais se apresentam os princípios constitucionais permitem a construção e a atualização do Direito, pela determinação permanente e engajada dos conteúdos nele inseridos quando da aplicação da(s) noma(s) na(s) qual(is) eles se apresentam.

Assim, toda norma jurídica, para ser aplicada ao caso concreto, precisa ser

interpretada, cabendo à Hermenêutica jurídica o oferecimento dos instrumentos

182LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 40. 183 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. p. 18. 184 Ibidem, pp. 21 - 27. 185 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 36.

85

adequados para a interpretação do Direito. Dessa forma, a Hermenêutica

Constitucional contemporânea passa a ser fator fundamental na construção da

Democracia, ao orientar axiologicamente, por meio dos seus princípios, como se

interpreta a norma vigente.

Continuando, há de se citar Streck186, que assim leciona:

[...] a norma é sempre o resultado da interpretação do texto [...]. Do mesmo modo que Heidegger vai dizer que o ser é sempre o ser de um ente, a norma é sempre a norma de um texto e o texto só é sua norma. A construção hermenêutica dessa norma – que surge da interpretação do texto vai depender de princípios, os quais agregados aos textos, constituirão a norma (sentido) da Constituição.

Na seqüência, cita-se Barroso187, que classifica os princípios da mesma

maneira que são classificadas as regras, conforme segue:

É possível enquadrar os princípios constitucionais, quanto ao seu conteúdo, na tipologia que adotamos para as normas constitucionais em geral. Com efeito, existem princípios constitucionais de organização, como os que definem a forma de Estado, a forma, o regime e o sistema de governo. Existem, também, princípios constitucionais cuja finalidade precípua é estabelecer direitos, isto é, resguardar situações jurídicas individuais, como os que asseguram o acesso à Justiça, o devido processo legal, a irretroatividade das leis etc. Por igual, existem princípios de caráter programático, que estabelecem certos valores a serem observados - livre iniciativa, função social da propriedade - ou fins a serem perseguidos, como a justiça social.

Assim, a busca por uma nova interpretação constitucional se dá a partir de uma

constatação simples, em que não pode ser considerada verdadeira a crença de que

as normas jurídicas em geral e a própria Constituição tragam em si um sentido único

para todas as situações em que devem incidir, onde o intérprete teria função de

apenas revelar o conteúdo preexistente na norma, sem realizar a sua criatividade e

concretização.

Na verdade, com a idéia contemporânea de interpretação observa-se uma

proposição baseada em cláusulas constitucionais de conteúdo aberto, principiológico

186 STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 136. 187 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 154.

86

e preocupado com a realidade existente em determinado momento histórico, onde

“os métodos e princípios a serem considerados na interpretação da Constituição são

exclusivamente constitucionais”188.

Assim, pouco a pouco, observa-se que a perspectiva pós-positivista e

principiológica do Direito acabam por influenciar a Hermenêutica constitucional;

dessa forma, ao lado dos princípios ditos materiais, desenvolve-se um catálogo de

princípios chamados instrumentais e específicos da interpretação constitucional, os

quais serão objeto dos próximos subtítulos.

Interessando ao presente trabalho os princípios ditos instrumentais, faremos,

conforme segue, uma breve conceituação e classificação dos princípios materiais,

para em seguida discorrermos sobre os primeiros, eis que são o cerne da presente

pesquisa, quando do desenvolvimento, no terceiro e último capítulo, de um de seus

princípios, qual seja, o princípio da interpretação conforme à Constituição.

2.3.2 Princípios constitucionais materiais

O Brasil, como a própria Lei Constitucional dispõe, se caracteriza por ser um

Estado Democrático de Direito, baseado em princípios materiais, dentro de uma

perspectiva axiológica e valorativa.

Assim sendo, os princípios materiais se caracterizam por interagir entre si e por

pautar a atuação dos órgãos de poder, inclusive a do Judiciário, na determinação do

sentido das normas. Nem todos os princípios, contudo, segundo Barroso e

Barcellos189, possuem o mesmo raio de ação. Eles variam na amplitude de seus

efeitos e mesmo no seu grau de influência. Por essa razão, podem ser agrupados

em três categorias diversas, que identificam os princípios como fundamentais, gerais

e setoriais.

188 SILVA, Virgílio Afonso. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: _____ (Org.). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 116. 189 BARROSO, L.B.; BARCELLOS, A. P. de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 304.

87

Segundo essa classificação, os princípios fundamentais expressam as

principais decisões políticas no âmbito do Estado, bem como a forma desse mesmo

Estado. Também se incluem nessa categoria os objetivos indicados pela

Constituição como fundamentais à República e os princípios que a regem em suas

relações internacionais. Por fim, merece destaque em todas as relações públicas e

privadas o princípio da dignidade da pessoa humana, que se tornou o centro da

concepção de Estado democrático de direito e de uma ordem idealmente pautada

pelos direitos fundamentais.

Como exemplo desses princípios podemos nominar o Estado Democrático de

Direito (art. 1º, caput da Constituição Federal de 1988), bem como a separação do

poderes (art. 2º), a livre iniciativa (expressa no art. 1º, IV da Constituição).

Conforme Canotilho190,

Consideram-se princípios jurídicos fundamentais os princípios historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. Pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um importante fundamento para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo.

Os princípios jurídicos gerais têm também uma função positiva, são

informadores materialmente dos atos dos poderes públicos. Embora não integrem o

núcleo das decisões políticas que conformam o Estado, os princípios gerais são

importantes especificações dos princípios fundamentais. Têm eles menor grau de

abstração, sendo mais facilmente determinável o núcleo em que operam. Por serem

desdobramentos dos princípios fundamentais, irradiam-se eles por toda a ordem

jurídica. A maior parte dos princípios gerais concentra-se no art. 5.º da Constituição

Federal, dedicado aos direitos e deveres individuais.

Já os princípios setoriais são aqueles que presidem um específico conjunto de

normas afetas a determinado tema, capítulo ou título da Constituição. Eles se

irradiam limitadamente, mas no seu âmbito de atuação são supremos. Por vezes,

são mero detalhamento dos princípios gerais, como os princípios da legalidade 190 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1128.

88

tributária ou da reserva legal em matéria penal. Outras vezes são autônomos, como

o princípio da anterioridade em matéria tributária ou o do concurso público para

provimento de cargos na administração pública.

Além dos princípios materiais, temos, ainda, uma outra espécie de princípios,

chamados de instrumentais. Tais princípios são aqueles que permitem a consecução

dos valores estabelecidos pelos princípios nominados anteriormente, possibilitando a

sua aplicação na realidade concreta e buscando a operacionalização principiológica

da própria Constituição, como é o caso do princípio da supremacia da Constituição,

da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, 0da

razoabilidade e da proporcionalidade, da efetividade, da unidade da Constituição e da

interpretação conforme à Constituição, que passaremos a analisar agora e que será

objeto do último capítulo da presente pesquisa.

2.3.3 Princípios instrumentais de interpretação con stitucional

As normas constitucionais podem ser consideradas normas jurídicas que se

servem de conceitos e elementos clássicos da interpretação em geral, mas devido a

sua superioridade jurídica, natureza de linguagem, conteúdo específico e caráter

político, sistematizaram-se em categorias doutrinárias próprias, por meio de

princípios específicos, também chamados de princípios instrumentais.

Segundo Barroso e Barcellos191,

Os princípios instrumentais de interpretação constitucional constituem premissas conceituais, metodológicas ou finalística que devem anteceder, no processo intelectual do intérprete, a solução concreta da questão posta. Nenhum deles encontra-se expresso no texto da Constituição, mas são reconhecidos pacificamente pela doutrina e pela jurisprudência. Embora toda classificação tenha um componente subjetivo [...].

191 BARROSO, L.B.; BARCELLOS, A. P. de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 299.

89

Tem-se, conforme Gomes192, que “a Constituição se corporifica formalmente em

um conjunto de enunciados normativos – princípios e regras constitucionais – exige-

se por meio da interpretação a utilização de métodos ou processos elaborados pela

hermenêutica jurídica”.

Dessa forma, dada a preponderância das normas constitucionais, a

hermenêutica constitucional elabora uma série de princípios que devem servir de

orientação para o intérprete, tanto para interpretar as normas constitucionais como

as infraconstitucionais. Assim, por mais diverso que seja o método utilizado para a

interpretação, neste processo devem-se levar em consideração sempre os princípios

da hermenêutica Constitucional, onde não há um consenso, mas também não há

muitas discrepâncias em relação à enumeração desses princípios.

A sistematização que se segue dos princípios instrumentais de interpretação

constitucional tem como base o elenco e escritos de Barroso193 , devendo ser

analisado de forma resumida, eis que o foco desse trabalho, centra-se em um deles,

qual seja, o princípio da interpretação conforme à Constituição, objeto do terceiro e

último capítulo.

2.3.3.1 Princípio da Supremacia da Constituição

Toda a interpretação que se preze deve ter assento na superioridade jurídica

da Constituição, dessa forma, nenhum ato pode sobreviver validamente se for

incompatível com a Lei Fundamental. Assim, no momento em que uma nova

Constituição entra em vigor, todas as normas anteriores e que com ela contrastam

ficam revogadas, enquanto que as normas editadas posteriormente à sua vigência, e

que da mesma forma contrariarem seus termos, devem ser declaradas nulas.

192 GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica Jurídica e constituição no estado de direito democrático. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 44. 193 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 370- 386, passim.

90

Entende-se compatível com os preceitos desse princípio, o princípio da

recepção que pode ser, a nosso ver, um princípio de continuação, onde as leis

editadas em desconformidade com o Texto Constitucional vigente não poderão ser

recepcionadas. Outrossim, leis editadas de conformidade com as normas

constitucionais vigentes são recepcionadas pela ordem constitucional superveniente,

salvo nos pontos contrariados pela nova ordem.

Em situações como a revelada, é de inteira aplicação o princípio constitucional

implícito da recepção ou da subsistência das normas da legislação

infraconstitucional, fenômeno jurídico que Miranda194 “[...] caracteriza como novação

do direito ordinário anterior, tudo a depender de um único requisito: que as normas

da legislação infraconstitucional anterior não sejam desconformes com a

Constituição posterior”.

Além do princípio da recepção, observamos que o princípio da compatibilidade

vertical também encontra-se interligado com o princípio da supremacia da

Constituição, eis que corresponde a uma projeção dentro do próprio regramento

infraconstitucional, uma vez que estas normas também se organizam de forma

hierarquizada.

Dessa forma, o controle de constitucionalidade, que discorreremos mais

adiante, visa, em última análise, fazer prevalecer a supremacia da Constituição,

assegurando a observância dessa compatibilidade vertical.

A supremacia constitucional traduz-se, conforme Barroso195, em

superlegalidade material e formal:

A superlegalidade formal identifica a Constituição como a fonte primária da produção normativa, ditando competências e procedimentos para elaboração dos atos normativos inferiores. E a superlegalidade material subordina o conteúdo de toda a atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e regras da Constituição. A inobservância dessas prescrições formais e materiais deflagram um mecanismo de proteção da Constituição, conhecido na sua matriz norte-americana como judicial review, e batizado entre nós de "controle de constitucionalidade".

194 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3 ed. Lisboa: Coimbra Editora, 1991. pp. 275/279. t II. 195BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 164.

91

Sabe-se que a interpretação das leis é o campo próprio dos tribunais. Aos

juízes cabe determinar o sentido da Constituição e das leis emanadas do órgão

legislativo. Esta conclusão não importa, em nenhuma hipótese, em superioridade ou

superposição do Judiciário sobre o Legislativo, significa, tão-somente, que a

soberania popular é superior a ambos e que onde a vontade do Legislativo,

declarada nas leis, estiver em oposição à vontade do povo, declarada na

Constituição, os juízes devem curvar-se sempre à última.

Segundo Barroso196,

A supremacia da Constituição é assegurada pelos diferentes mecanismos de controle de constitucionalidade. O princípio não tem um conteúdo próprio: ele apenas impõe a prevalência da norma constitucional, qualquer que seja ela. É por força da supremacia da Constituição que o intérprete pode deixar de aplicar uma norma inconstitucional a um caso concreto que lhe caiba apreciar - controle incidental de constitucionalidade - ou o Supremo Tribunal Federal pode paralisar a eficácia, com caráter erga omnes, de uma norma incompatível com o sistema constitucional (controle principal ou por ação direta).

Conseqüentemente, a supremacia da Constituição e a missão atribuída ao

Judiciário têm um papel de destaque no sistema geral concebido pelo

constitucionalismo moderno como forma de conter o poder, eis que é a Constituição

a carta maior que rege os direitos e garantias fundamentais, bem como organiza o

Estado.

Dessa forma, para Abellán197,

La supremacía jurídica de la constituición, que es el rasgo más significativo del Estado constitucional de derecho, no es algo que deba presuponerse por su simple reconocimiento en el texto constitucional, sino que solo existe en aquellos sistemas donde venga efectivamente realizada, lo que suele suceder cuando se reconece la rigidez de la constituición, o sea cuando se establece un sistema de revisón constitucional especialmente reforzado o en todo caso más complejo que la tramitación legislativa ordinária, cuando se estabelece un sistema de control de constitucionalidad de la ley y otros actos del poder. Puede decirse por ello que supremacía de la constitución y justicia constitucional son conceptos inextricablemente unidos.

196 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. 371. 197 ABELLÁN, Marina Gascón. Los límites de la justicia constitucional: el tribunal constitucional entre jurisdicción y legislación. In: LAPORTA, Francisco (Org.) Constitución: problemas filosóficos. Madrid, 2003. p. 165.

92

Traz-se à baila um bom exemplo ao princípio da supremacia da Constituição

quando cita-se o art. 37, VII da Constituição Federal, que prevê o direito de greve

aos servidores públicos civis e que, conforme a própria Constituição dispõe, deveria

ser exercido nos termos de lei complementar - hoje lei específica (emenda

constitucional n.o 19/98). Neste caso, passados quatros anos da vigência da

Constituição, a norma infraconstitucional ainda não havia sido editada, eis que se

tratava de uma norma constitucional de eficácia contida, em que o direito

consagrado é pleno, mas uma lei ordinária pode restringir ou limitar a sua plenitude.

Assim, admitir que o direito de greve não poderia ser exercido em função da inércia

do legislador violaria o princípio em discussão. Por conseguinte, o Tribunal decidiu

da seguinte forma:

A Constituição da República garante o direito de greve aos funcionários públicos, 'nos limites definidos em lei complementar' (art. 37, VII). Essa legislação não poderá recusar a paralisação da atividade, essência da greve, universalmente reconhecida. Além disso, são passados quatro anos de vigência da Carta Política. O legislador mantém-se inerte. Esses dois dados conferem legalidade ao exercício do direito, observando-se, analogicamente, princípios e leis existentes. Caso contrário, chegar-se-ia a um absurdo: a eficácia da Constituição depende de norma hierarquicamente inferior.198

Exemplifica-se tal princípio por meio do Mandado de injunção n.o 20, de 19 de

maio de 1994, sendo que tal decisão trata do mesmo assunto abordado na decisão

anterior, mas refere, de forma mais precisa, a importância que tem a hermenêutica

quando da leitura de um direito, buscando-se sempre a supremacia da Constituição.

Dessa forma, para a manutenção da supremacia da Constituição, o Ministro

Sydney Sanches assim concluiu:

Ali se pode ler que o direito de greve no serviço público será exercido nos termos e limites definidos por lei complementar, e que, portanto, enquanto não se edita essa lei complementar, não há direito de greve no serviço público. Mas pode ler-se também, dentro do estrito domínio da razoabilidade, que o direito de greve dos funcionários será exercido nos termos e limites definidos em lei complementar, e que, portanto, enquanto que a lei complementar não define esses termos nem fixa esses limites, a greve no serviço público é praticável tal como ela o é pelo comum dos trabalhadores. 199

198 RT, 700:185, 1993, RMS 2.865-3 – SC, Rel. Ministro Vicente Cernicchiaro. 199 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção 20-4 DF, julgado em 19/05/1994. Ministro Celso de Mello (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 18 de março de

93

Enfim, a supremacia constitucional pressupõe um grau maior de dificuldade

formal na elaboração da norma superior e uma reserva material, pelo que se pode

exigir das normas hierarquicamente inferiores conformidade àquela. Logicamente,

não se poderia falar em uma espécie normativa buscar seu fundamento em outra do

mesmo grau.

Dessa forma, com a aplicação do princípio da supremacia da Constituição,

pode-se visualizar quão importante é a atuação dos princípios, eis que acabam

sendo um norte para a garantia e o controle de constitucionalidade das leis

infraconstitucionais.

2.3.3.2 Princípio da Presunção de constitucionalida de das leis e dos atos do

Poder Público

Embora se deva reservar ao Poder Judiciário a prerrogativa de decidir, em

última instância, qual a mais adequada interpretação a ser dada à Constituição

diante de situações concretas que lhe forem relatadas, isso não retira das demais

esferas do poder estatal, nem das organizações lícitas e dos cidadãos em geral, o

direito e o dever de interpretarem a Constituição200, de debaterem democraticamente

qual a melhor interpretação a ser dada a esta diante da realidade que se apresenta,

e de poderem, inclusive, discutir quanto ao acerto ou desacerto das interpretações

adotadas pelos órgãos dos poderes oficiais.

Um exemplo ilustrativo ao princípio da presunção da constitucionalidade pode

ser dado pela ementa do Recurso extraordinário n.º 376846/SC, que segue:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIOS: REAJUSTE: 1997, 1999, 2000 e 2001. Lei 9.711/98, arts. 12 e 13; Lei 9.971/2000, §§ 2º e 3º do art. 4º; Med. Prov. 2.187-13, de 24.8.01, art. 1º; Decreto 3.826, de 31.5.01, art. 1º. C.F., art. 201, § 4º. I.- Índices adotados

2007. (anexo A) 200 No sentido de uma interpretação popular ou de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição preceituado por HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1997.

94

para reajustamento dos benefícios: Lei 9.711/98, artigos 12 e 13; Lei 9.971/2000, §§ 2º e 3º do art. 4º; Med. Prov. 2.187-13, de 24.8.01, art. 1º; Decreto 3.826/01, art. 1º: inocorrência de inconstitucionalidade. II.- A presunção de constitucionalidade da legislação infraconstitucional realizadora do reajuste previsto no art. 201, § 4º, C.F., somente pode ser elidida mediante demonstração da impropriedade do percentual adotado para o reajuste. Os percentuais adotados excederam os índices do INPC ou destes ficaram abaixo, num dos exercícios, em percentual desprezível e explicável, certo que o INPC é o índice mais adequado para o reajuste dos benefícios, já que o IGP-DI melhor serve para preços no atacado, porque retrata, basicamente, a variação de preços do setor empresarial brasileiro. III.- R.E. conhecido e provido.201

Dessa forma, é importante referirmos, ainda, que a interpretação Constitucional

deve ser exercida pelos três poderes constituídos no âmbito do Estado, devendo

todos os poderes públicos pautar a sua conduta na conformidade da Constituição e

agir na realização do bem comum. Assim, mesmo que o Poder Judiciário tenha o

papel de intérprete qualificado das leis, cabe aos demais poderes se situarem em pé

de igualdade, sendo que dos atos de cada um deles deve nascer uma presunção de

validade, eis que, segundo Barroso, “legislar é editar o direito positivo; administrar é

aplicar a lei de ofício; e julgar é aplicar a lei contenciosamente”. 202

Em sua dimensão prática, o princípio da presunção da constitucionalidade das

leis se traduz em duas regras de observância necessária pelo intérprete e aplicador

do direito:

a) não sendo evidente a inconstitucionalidade, havendo dúvida ou a possibilidade de razoavelmente se considerar a norma como válida, deve o órgão abster da declaração de inconstitucionalidade; e b) havendo alguma interpretação possível que permita afirmar-se a compatibilidade da norma com a Constituição, em meio a outras que carreavam para ela um juízo de invalidade, deve o intérprete optar pela interpretação legitimadora, mantendo o preceito em vigor.203

É nesta segunda concepção, onde opta-se por uma interpretação possível que

permita afirmar-se a compatibilidade da lei infraconstitucional com à Constituição

que se enquadra o princípio da interpretação conforme à Constituição, objeto

principal dessa pesquisa.

201 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário. 376846 SC, julgado em 24/09/2003. Ministro Carlos Velloso (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 18 de março de 2007. 202 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 175. 203 Ibidem, p. 178.

95

Assim sendo, fazendo-se um estudo mais apurado em relação ao tema

proposto, observa-se que, nas diversas jurisdições que influenciaram a Constituição

brasileira, tem-se que, na Alemanha, o princípio da presunção de constitucionalidade

se diluiu no da interpretação conforme à Constituição, conforme observa-se no item

“b” da citação anterior. Já na França, conforme leciona Barroso204,

“[...] não há sentido em invocá-lo, tendo em vista que o Conselho Constitucional, quando lhe cabe manifestar-se, atua previamente à vigência da lei, inexistindo controle de constitucionalidade posteriormente. Na Espanha, embora a ênfase recaia sobre a interpretação conforme à Constituição, há referência expressa ao princípio da presunção da constitucionalidade, que é irmanado ao princípio da conservação da norma”

E continua, Barroso205 dizendo que:

No Brasil, e de longa data, o princípio tem sido afirmado, assim pela doutrina como pela jurisprudência, que já assentou que a dúvida milita em favor da lei, que a violação da Constituição há de ser manifesta e que a inconstitucionalidade nunca se presume. [...] A propósito, a doutrina e a jurisprudência brasileiras têm explorado alguns aspectos conexos ao princípio da presunção de validade dos atos emanados do Poder Público. Uma questão recorrente é a que diz respeito à possibilidade de o Poder Executivo - a rigor, de qualquer Poder - deixar de aplicar lei que seus órgãos de decisão reputem inconstitucional.

Como exemplo desse princípio podemos citar, ainda, a atuação dos Chefes do

Poder Executivo e do Poder Legislativo que podem determinar aos seus órgãos

subordinados que deixem de aplicar administrativamente determinada lei que

considerem inconstitucional, cabendo a esses poderes, e não apenas ao Judiciário,

considerar a inconstitucionalidade de determinada lei e não permitir a sua aplicação

nestes casos.

2.3.3.3 Princípio da unidade da Constituição

Trata-se de um princípio que usualmente se opera por meio da utilização de

outros princípios e regras de interpretação, eis que cabe a ele reconhecer as

204 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. pp. 182-183. 205 Ibidem, p. 183.

96

contradições e tensões, reais ou imaginárias, que existam entre as normas

constitucionais, delimitando a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabe-

lhe, portanto, o papel de harmonização ou otimização das normas, na medida em

que se tem que ter um equilíbrio, sem negar a eficácia delas.

Hesse206 considera a Constituição como uma ordem fundamental jurídica da

coletividade, caracterizada por determinar

[...] princípios diretivos, segundo os quais deve formar-se uma unidade política e tarefas estatais a serem exercidas. Ela ordena a organização e o procedimento da formação da unidade política e da atividade estatal. Ela cria bases e normatiza traços fundamentais da ordem total jurídica. Em tudo ela é o plano estrutural fundamental, orientado por determinados princípios de sentido, para a configuração jurídica de uma coletividade.

Sendo que a Constituição, “[...] somente pode ser compreendida e exatamente

interpretada se ela for entendida nesse sentido como unidade e que Direito

Constitucional está dirigido muito mais para ordenação de conjunto do que para

demarcação e exclusão”207.

O princípio da unidade da Constituição remarca a ausência de hierarquia entre

normas integrantes de um mesmo documento constitucional e impõe ao intérprete o

dever de atuar ponderando bens e valores em jogo, de modo a harmonizar preceitos

aparentemente conflitantes e a evitar conflitos e contradições entre as normas

constitucionais.

Assim, segundo Barroso208,

É precisamente por existir pluralidade de concepções que se torna imprescindível a unidade da interpretação. Afinal a Constituição não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado em determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes.

206 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. 20 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 37. 207 Conforme HESSE, Ibidem, p. 39. 208 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 196.

97

Para Hesse209,

a conexão e interdependência dos elementos individuais da Constituição fundamentam a necessidade de olhar, nunca somente a norma individual, senão sempre também a conexão total na qual ela deve ser colocada; todas as normas constitucionais devem ser interpretadas de tal modo que contradições com outras normas constitucionais sejam evitadas.

Conecto a esse princípio podemos citar, ainda, o princípio da concordância

prática ou da harmonização, onde, segundo Canotilho210, o campo de eleição desse

princípio tem sido os direitos fundamentais, ou melhor dizendo,

[...] colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos. Subjacente a este princípio está a idéia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens

Pode-se dizer que, por meio do princípio da unidade da Constituição, cabe ao

intérprete o dever de harmonizar os conflitos e contradições entre normas

constitucionais, eis que a Constituição é a unidade de um conjunto social,

objetivando um equilíbrio, sem negar eficácia a nenhuma das normas em

contradição.

Associado a esse princípio podemos citar o princípio do efeito integrador, que

tem como finalidade a resolução dos problemas jurídico-constitucionais que nas

palavras de Canotilho211, “[...] deve dar-se primazia aos critérios ou pontos de vista

que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política.”

209 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. 20 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 65. 210 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1188. 211 Ibidem, p. 1187

98

Ainda, no que diz respeito ao princípio do efeito integrador, Hesse212 afirma

que:

se para a Constituição é importante a produção e conservação da unidade política, então isso significa a necessidade de, na resolução de problemas jurídico-constitucionais, dar a preferência àqueles ponto de vista que produzem efeito criador e conservador da unidade. Naturalmente, esse resultado dado não pode então ser decisivo, se ele só pudesse ser alcançado em vias não precisamente constitucionais, porque com isso, o limite da interpretação constitucional seria excedido.

De acordo com Canotilho213,

O princípio da unidade da constituição ganha relevo autônomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas. Como ponto de orientação, guia de discussão e factor hermenêutico de decisão, o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar (ex.: princípio do Estado de Direito e princípio democrático, princípio unitário e princípio da autonomia regional e local). Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios.

Em sintonia com essas idéias, tem-se, como exemplo, a decisão do Tribunal de

Justiça do Rio de Janeiro, que alude expressamente ao princípio da unidade da Lei

Fundamental na solução de colisões entre princípios constitucionais:

RESPONSABILIDADE CIVIL DE EMPRESA JORNALÍSTICA. Divulgação de Versão Deturpada e Ofensiva. Dano Moral. Configuração. I. LIBERDADE DE INFORMAÇÃO VERSUS INVIOLABILIDADE À VIDA PRIVADA. Princípio da Unidade Constitucional. Na temática atinente aos direitos e garantias fundamentais, dois princípios constitucionais se confrontam e devem ser conciliados. De um lado a livre expressão da atividade intelectual, artística , científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; de outro lado, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Sempre que princípios constitucionais aparentam colidir, deve o intérprete procurar as recíprocas implicações existentes entre eles até chegar a uma inteligência harmoniosa, porquanto, em face do princípio da unidade constitucional, a Constituição não pode estar em conflito consigo mesma, não obstante a diversidade de normas e princípios que contém. Assim, se

212 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. 20 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 68. 213 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. pp. 1186-1187.

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ao direito à livre expressão da atividade intelectual e de comunicação contrapõe-se o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem segue-se como conseqüência lógica que este último condiciona o exercício do primeiro, atuando como limite estabelecido pela própria Lei Maior para impedir excessos e abusos. II. DANO MORAL. Configuração, Uma coisa é o fato e outra a sua versão. O primeiro consiste na narrativa pura e simples dos acontecimentos em que se viu envolvida determinada pessoa, ao passo que a segunda descamba para o terreno da interpretação subjetiva, vestindo o fato com adjetivos e coloridos pessoais. Não se nega ao jornalista, no regular exercício da sua profissão, o direito de divulgar fatos e até de emitir juízo de valor sobre os mesmos. A lei, todavia, não tolera que, a pretexto de exercer esse direito, dívulgue-se versão deturpada ou ofensiva dos fatos, a ponto de deixar dúvida sobre a dignidade e o bom nome de outrem, os mais preciosos bens de um cidadão. Destarte, relacionar o deferimento de uma liminar à vinculação político-partidária do juiz, como procedimento próprio de militante de partido político, caracteriza ofensa grave contra o julgador, a ensejar indenização por danos morais. III. DANO MORAL. Arbitramento Judicial. Limites da Lei de Imprensa Não prevalência. O arbitramento judicial é o mais eficiente meio para se fixar o valor da indenização pelo dano moral, e nessa penosa tarefa não está o Juiz subordinado aos limites estabelecidos na Lei de Imprensa, nem a qualquer tabela préfixada em outra lei especial, mormente após a Constituição de 1988. Seria um contra-senso pretender que a norma superior nascesse limitada por lei especial inferior ou, pior ainda, que a regra constitucional autorizasse tratamento discriminatório Assim, a indenização por dano moral é igual para todos, inaplicável o privilégio de limitar o valor da indenização para a empresa que explora o meio de informação ou divulgação. Se a reparação não pode transformar-se em fonte de lucro, a indenização pelo dano moral tem também um caráter punitivo ao infrator, a fim de desestimulá-lo à reicidência. E a sanção, quando de somenos, incorpora aquilo que se denomina de risco da atividade, gerando a tão decantada impunidade. Provimento parcial do recurso214.

Dessa forma, Usera215 aponta o princípio da unidade da Constituição como o

mais importante dos princípios instrumentais, sendo que a jurisprudência também

tem feito uso desse princípio para solucionar eventuais tensões entre normas

constitucionais.

214 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação cível. 2001.001.29708, julgada em 20/03/2002. Desembargador Sergio Cavalieri Filho. Disponível em: <http://www.tj.rj.gov.br>. Acesso em: 18 de março de 2007. 215 USERA, Raúl Canosa. Interpretación constitucional y fórmula política. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1998. p. 175.

100

2.3.3.4 O princípio da razoabilidade e da proporcio nalidade

O princípio da razoabilidade pode ser considerado um mecanismo de controle da

discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário invalidar atos

legislativos ou atos administrativos quando não haja relação de adequação entre o

fim visado e o meio empregado; a medida não seja exigível ou necessária, havendo

meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito

individual; não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde

com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha.

Dessa forma, o referido princípio permite ao Judiciário adentrar o mérito de

certos atos legislativos e administrativos para aferir-lhes a justiça, a adequação dos

meios aos fins. Tem conotação idêntica à idéia do princípio da proporcionalidade

que tem origem na doutrina e jurisprudência alemãs, e que também se traduz na

adequação meio-fim, na avaliação da necessidade da prática do ato e na aferição de

seu custo-benefício.

Para Barroso216, “a razoabilidade deve ser aferida, em primeiro lugar, dentro da

lei. É a chamada razoabilidade interna, que diz com a existência de uma relação

racional e proporcional entre seus motivos, meios e fins”.

Pode-se nominar como exemplo de aplicabilidade desse princípio um surto

inflacionário (motivo), em que o Poder Público congela o preço dos medicamentos

vitais para certos doentes crônicos (meio), assegurando, assim, que pessoas de

baixa renda tenham acesso a eles (fim), há uma relação racional e razoável entre os

elementos em questão, e a norma, em princípio, afigura-se válida.

Em conseqüência, conforme Barroso217, havendo a razoabilidade interna da

norma, é preciso verificar sua razoabilidade externa, isto é: “sua adequação aos

meios e fins admitidos e preconizados pelo Texto Constitucional. Se a lei contravier

216 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 226. 217 Ibidem, p. 227.

101

valores expressos ou implícitos no Texto Constitucional, não será legítima nem

razoável à luz da Constituição, ainda que o seja internamente”.

Suponha-se, por exemplo, que, diante da impossibilidade de conter a

degradação acelerada da qualidade da vida urbana (motivo), a autoridade municipal

impedisse o ingresso nos limites da cidade de qualquer não-residente que não fosse

capaz de provar estar apenas em trânsito (meio), com o que reduziria

significativamente a demanda por habitações e equipamentos urbanos (fim). Norma

desse teor poderia até ser internamente razoável, mas não passaria no teste de

razoabilidade diante da Constituição, por contrariar princípios como o federativo, o

da igualdade entre brasileiros, etc.

Da mesma forma há de se classificar o princípio da proporcionalidade por meio

dos seguintes requisitos:

(a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento dos fins visados; e (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos218.

Assim, havendo concorrência ou conflito entre princípios, a proporcionalidade

não seria o terceiro princípio a ser ponderado, mas justamente a própria

ponderação, a resolver a concorrência ou o conflito219.

Poder-se-ia dizer, desse modo, segundo Bonavides220, que se vislumbra na

proporcionalidade

“[...] não somente um critério de contenção do arbítrio do poder e salvaguarda da liberdade, mas, por igual, em nível hermenêutico, um excelente mecanismo de controle, apto a solver, por via conciliatória,

218 Conforme BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 229. 219 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. pp. 42-43. 220 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 587.

102

problemas derivados de uma eventual colisão de princípios; isto sobretudo tocante à interpretação de direitos fundamentais. Seguindo, assim, a trilha dos constitucionalistas da Nova Hermenêutica, urge assinalar que nenhum desses princípios, deixando de ser aplicado na hipótese conflitual, é sacrificado ou expulso do ordenamento jurídico, qual sói acontecer com a norma inconstitucional. Em outras palavras, o princípio cuja aplicabilidade ao caso concreto se viu recusada por ensejo da ponderação estimativa de valores, bens e interesses, levada a cabo pelo intérprete, continua a circular válido na corrente normativa do sistema, conservando, intacta, a possibilidade de aplicação futura”.

Conforme Rocha221,

É, pois, a razoabilidade, diferente da proporcionalidade, que impede excessos na aplicação dos princípios constitucionais, pois aquela permite que se conheça o espírito destes princípios e acerte-se a sua interpretação e, conseguintemente, a sua aplicação, vale dizer, permite que se conheça o princípio considerado em si mesmo, enquanto a proporcionalidade possibilita que se conheça em sua relação com os demais princípios e regras que compõem o sistema constitucional.

Após estudar profundamente a questão, Helenilson Cunha Pontes222 detectou

quatro diferenças fundamentais entre o princípio da razoabilidade e o da

proporcionalidade, nos seguintes termos:

Primeiro. A exigência de motivação racional da decisão que aplica o princípio da proporcionalidade é sensivelmente maior, e diferente, da que aplica o princípio da razoabilidade. Enquanto na concretização deste se chega à decisão jurídica mediante o afastamento do irracional, do inaceitável, do irrazoável, naquele, por outro lado, exige-se uma necessária fundamentação procedimentalizada, isto é, a decisão jurídica é resultado de três juízos de dimensões e conteúdos diferentes: adequação, necessidade e conformidade. [...] Segundo. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade distinguem-se pelo conteúdo. O princípio da proporcionalidade consubstancia notadamente, mas não exclusivamente, um juízo acerca da relação meio-fim, entre a medida tomada e o fim com ela buscado. [...] Terceiro. A razoabilidade e a proporcionalidade distinguemse ainda quanto à natureza. A razoabilidade constitui exigência geral da razão humana, aplicável, portanto, a todos os setores do 'agir social', nas relações morais, éticas, econômicas e também jurídicas. [...] Portanto, enquanto a razoabilidade exige que as medidas estatais sejam racionalmente aceitáveis e não arbitrárias, o princípio da proporcionalidade determina que as mesmas, além de preencherem tal requisito, constituam instrumentos de maximização dos comandos constitucionais, mediante a menor limitação possível aos bens juridicamente protegidos. Quarto. Em conseqüência do retro-exposto, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade distinguem-se ainda quanto às respectivas funções eficaciais por eles desempenhadas. A razoabilidade é norma jurídica com exclusiva função de bloqueio, isto é, objetiva impedir a consumação de

221 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 54. 222 PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000. p. 88-90.

103

decisões socialmente inaceitáveis, arbitrárias ou iníquas. O princípio da proporcionalidade, além da função de bloqueio, desempenhada por este como norma que veicula a vedação ao arbítrio (Übermassverbot), caracteriza-se também pela função de resguardo, isto é, de norma que exige e assegura a concretização dos interesses constitucionalmente consagrados, na melhor medida possível. (grifos originais)

Dessa forma, apesar de suas diferenças, os princípios da razoabilidade e da

proporcionalidade se completam, tanto no que diz respeito à conceituação como no

que se refere a sua aplicabilidade, eis que o que não é proporcional, de igual

maneira pode não ser razoável e vice-e-versa.

2.3.3.5 O princípio da efetividade

Esse princípio traduz uma notável preocupação do constitucionalismo, sendo

considerado essencial à interpretação constitucional, eis que tem por significado a

realização do Direito e o desempenho da sua função social, representando, segundo

Barroso223, “a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a

aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da

realidade social”.

Por conseqüência, está ligado ao fenômeno da juridicização da Constituição e

ao reconhecimento de sua força normativa. As normas constitucionais são dotadas

de imperatividade e sua inobservância deve deflagrar os mecanismos próprios de

cumprimento forçado. Assim, a efetividade acaba por ser a realização concreta dos

comandos abstratos contidos na norma.

Para Canotilho224 esse princípio

[...] pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos

223 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 248. 224 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4 ed. Coimbra: Almedina, 1998. p.1187.

104

fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).

Assim, um ponto relativamente importante que deve ser enfatizado em relação

ao princípio da efetividade é a necessidade de o Poder Judiciário se libertar de

noções corriqueiras e assumir, dentro do que seja legítimo e razoável, um papel

mais ativo em relação à concretização das normas constitucionais. Para tanto,

precisa superar a questão da interpretação retrospectiva, pela qual se procura

interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique

tão parecido quanto possível com o antigo.

Dessa forma, cabe nominarmos a ementa da Ação Direta de

Inconstitucionalidade - ADI n.º 2596 - PR, conforme segue:

EMENTA: I. Constituição: princípio da efetividade máxima e transição. 1. Na solução dos problemas de transição de um para outro modelo constitucional, deve prevalecer, sempre que possível, a interpretação que viabilize a implementação mais rápida do novo ordenamento. II. Tribunal de Contas dos Estados: implementação do modelo de composição heterogênea da Constituição de 1988. A Constituição de 1988 rompeu com a fórmula tradicional de exclusividade da livre indicação dos seus membros pelo Poder Executivo para, de um lado , impor a predominância do Legislativo e, de outro, vincular a clientela de duas das três vagas reservadas ao Chefe do Governo aos quadros técnicos dos Auditores e do Ministério Público especial. Para implementar, tão rapidamente quanto possível, o novo modelo constitucional nas primeiras vagas ocorridas a partir de sua vigência, a serem providas pelo chefe do Poder Executivo, a preferência deve caber às categorias dos auditores e membros do Ministério Público especial: precedentes do STF225.

Na continuação de tal assunto, Magalhães Filho226, traz, ainda, para a

discussão os seguintes princípios da interpretação da Constituição: a) Princípio do

efeito integrador, onde a Constituição é uma integração dinâmico-espiritual dos

diversos valores aspirados pelos diferentes segmentos da sociedade, por meio da

democracia; b) Princípio da força normativa da Constituição, onde a interpretação da

Constituição deve atualizá-la com a vivência dos valores por parte da comunidade,

de modo que os preceitos constitucionais obriguem as consciências e tenham a sua

normatividade reconhecida; c) Princípio da harmonização prática ou da

225 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade. 2596 PR, julgada em 19/03/2003. Ministro Sepúlveda Pertence (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 18 de março de 2007. (anexo D) 226 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 78-80, passim.,

105

concordância prática, é aplicado quando houver colisão entre direitos fundamentais

num caso concreto, far-se-á o uso desse princípio para fazer uma harmonização

entre eles por meio de uma ponderação axiológica, mediante a qual se fará uma

hierarquização dos valores a situação fática para encontrar-se a solução ótima.

Para finalizar o elenco aqui referido, enumera-se, ainda, na discussão, o

princípio da interpretação conforme à Constituição, princípio esse que será objeto do

terceiro e último capítulo do presente estudo.

2.3.3.6 Princípio da Interpretação conforme à Const ituição

Na interpretação conforme à Constituição, tema que trataremos com maior

afinco e de forma mais crítica no próximo capítulo, cabe ao órgão jurisdicional

declarar qual das possíveis interpretações de uma norma legal se revela compatível

com a Lei Fundamental. Isso ocorrerá, naturalmente, sempre que determinado

preceito comportar diversas interpretações, sendo que o texto legal permanece

íntegro, mas a sua aplicação fica restrita ao sentido declarado constitucional pelo

Tribunal.

Dessa forma, para evitar a declaração de nulidade de uma determinada lei, o

Tribunal se vale de suas prerrogativas interpretativas para estabelecer, dentre os

conteúdos possíveis , aquele que melhor se coaduna com a Constituição.

Conforme preceitua Magalhães Filho227,

A interpretação conforme à Constituição está limitada pela literalidade do texto normativo, ou seja, não se pode, sob pretexto de economia normativa, dar a uma norma um sentido que contrarie suas potencialidades lingüísticas, a fim de que ela possa ser conciliada com a Constituição e ter a sua validade preservada. Também não será válida a regra infraconstitucional que, apesar de não agredir diretamente um preceito da Constituição, tire a sua funcionalidade, pois aí terá ocorrido violação ao princípio da proporcionalidade e ao da razoabilidade.

227 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 82.

106

Conseqüentemente, a interpretação conforme à Constituição só é legítima

quando existe um espaço de decisão em que são admissíveis várias possibilidades

interpretativas. Disso resulta que as leis editadas na vigência da Constituição, assim

como as que procedam de momento anterior, devem curvar-se aos comandos da Lei

Fundamental e ser interpretadas em conformidade com ela, sendo que não é

possível ao intérprete torcer o sentido das palavras, nem adulterar a clara intenção

do legislador, visto que para salvar a lei não se deve fazer uma interpretação “[...]

contra legem, ainda que fundada na Constituição”228, pois se isso acontecer, o

intérprete estará fazendo as vezes de legislador positivo, o que implicaria na criação

de uma norma jurídica nova, função do legislador positivo.

Para Bonavides229,

Interpretar a Constituição e interpretar conforme à Constituição são, todavia, operações distintas, que o aplicador nem sempre percebe ou toma em consideração. Sendo ambas indispensáveis ao exame de constitucionalidade das leis, a segunda tem uma latitude que pode fazê-Ia inadmissível se houver abuso em sua aplicação, suspeita de criar direito novo, transgressão de limites, ou erro de concretização da norma, além das linhas materiais de razoabilidade que o método concede ao intérprete. Seu maior raio de elasticidade o faz singular e infenso à metodologia formalista; por isso mesmo mais apto à conservação da Constituição [...].

Conseqüentemente, observa-se que essa forma de interpretação tem como

objetivo precípuo utilizar, entre as várias interpretações possíveis, aquela que se

caracteriza como alternativa legítima/adequada de salvamento da norma

infraconstitucional. Assim, possui tanto função positiva, qual seja, a preservação da

norma, bem como função negativa, que segundo Leal230, estaria identificada pela

imposição de “limites para a interpretação”, característica forte dos princípios.

228 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Interpretação conforme à Constituição X nulidade parcial sem redução de texto: semelhanças, diferenças e reflexão sobre sua operacionalização pelo Supremo Tribunal Federal. In: LEAL, R. G.; REIS, J.R. Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.p. 1566. t.6. 229 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência por uma Nova Hermenêutica por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 256. 230 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 91.

107

Encerrando-se a conceituação e exemplificação dos princípios instrumentais de

interpretação constitucional, observa-se que a grande virada na interpretação

constitucional se dá a partir da difusão de uma constatação singela, onde não é

verdadeira a crença de que as normas jurídicas em geral - e as normas

constitucionais em particular - tragam sempre em si um sentido único, objetivo,

válido para todas as situações sobre as quais incidem, nem que caberia ao

intérprete uma atividade de mera revelação do conteúdo existente na norma, sem

desempenhar qualquer papel criativo na sua concretização.

Assim sendo, não se abandonam por completo os métodos clássicos de

interpretação, mas observa-se a partir do sentido plural do texto que tais métodos

não são mais suficientes, devendo a nova interpretação assentar-se nas cláusulas

constitucionais abertas, eivadas de princípios e extremamente dependentes da

realidade que os cerca, podendo, assim, dar uma adequada solução ao problema a

ser resolvido.

2.4 A interpretação contemporânea baseada na hermen êutica de princípios e

na sociedade aberta dos intérpretes da Constituição

Por tudo que se descreveu até aqui, não há de se falar em abandono dos

conceitos tradicionais, devendo-se, por sua vez, agregar ao clássico e se sobrepor a

ele, as idéias que anunciam novos tempos e que dão resolução a novas demandas,

frutos da contemporaneidade, de escolhas que envolvam o intérprete, bem como da

integração de princípios, normas abertas e conceitos indeterminados.

Segundo Barroso231,

A interpretação, não apenas no direito como em outros domínios, jamais será uma atividade inteiramente discricionária ou puramente mecânica. Ela será sempre o produto de uma interação entre o intérprete e o texto, e seu produto final conterá elementos objetivos e subjetivos. [...] A objetividade traçará os parâmetros de atuação do intérprete e permitirá aferir o acerto

231 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. XVI.

108

de sua decisão à luz das possibilidades exegéticas do texto, das regras de interpretação [...] e do conteúdo dos princípios e conceitos de que não se pode afastar. A subjetividade traduzir-se-á na sensibilidade do intérprete, que humanizará a norma para afeiçoá-Ia à realidade, e permitirá que ele busque a solução justa, dentre as alternativas que o ordenamento lhe abriu. A objetividade máxima que se pode perseguir na interpretação jurídica e constitucional é a de estabelecer os balizamentos dentro dos quais o aplicador da lei exercitará sua criatividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto.

Neste sentido, para a compreensão da Constituição, é necessária a inclusão,

no texto escrito, das forças sociais, eis que segundo Bercovici232,

A Constituição deve levar em conta todas as motivações sociais da dinâmica política, integrando-as progressivamente. Para Smend, o dinamismo político-social não poderia ser abarcado, na sua totalidade, pelos dispositivos constitucionais, mas pela elasticidade e capacidade transformadora e supletiva de sua interpretação. E, nesta interpretação, os princípios constitucionais são fundamentais, pois definem o Estado como ente concreto, fixando suas características territoriais e políticas.

Especialmente em tema de jurisdição constitucional, como assinala

Cittadino233, a atividade interpretativa “traduz uma ação política, ou, ao menos, uma

ação de inexorável repercussão política”. Se a Constituição não é um ordenamento

jurídico valorativamente neutro, não é neutra a tarefa de interpretá-la e, na síntese

de Baracho234, “[...] na interpretação constitucional, convém ser examinado o

conteúdo teleológico da Constituição, como instrumento de governo, de restrição

aos poderes e amparo da liberdade individual”.

Para Canotilho235,

Convém adiantar o ponto de partida fundamental para a compreensão dos desenvolvimentos seguintes: o sistema jurídico do Estado de direito democrático português é um sistema normativo aberto de regras e princípios. Este ponto de partida carece de descodificação: (1) é um sistema jurídico porque é um sistema dinâmico de normas; (2) é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica (Caliess), traduzida na disponibilidade e capacidade de aprendizagem das normas constitucionais

232 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, C. P. et. al. Teoria da Constituição: estudo sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 98. 233 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 2 ed. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2000. p. 62. 234 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. São Paulo, Forense, 1984. p. 359. 235 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1126-1127.

109

para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da «verdade» e da justiça; (3) é um sistema normativo, porque a estruturação das expectativas referentes a valores, programas, funções e pessoas, é feita através de normas 1; (4) é um sistema de regras e de princípios, pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a sua forma de regras.

A partir da nova hermenêutica constitucional, a Constituição passa a ser

encarada como um sistema aberto de princípios e de regras, permeável a valores

jurídicos em que as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais

desempenham um papel central. E é a partir dessa premissa que a Constituição

Federal Brasileira se baseia e se constitui.

Conforme Cittadino236:

Os autores que integram a Nova Hermenêutica partem do pressuposto que (sic) a diferenciação social e o pluralismo político são as principais características da sociedade contemporânea. Neste contexto de conflitividade política e social, mas que também inclui formas democráticas de participação nos assuntos públicos, não seria razoável tomar o ordenamento constitucional como um sistema normativo completo e fechado, caracterizado pela ordem e pela unidade. Frente ao processo de diferenciação e ao pluralismo, a Constituição, segundo estes autores, se caracteriza por sua 'estrutura aberta', incompatível com qualquer interpretação metodologicamente formalista. Quando a Nova Hermenêutica recusa as regras clássicas de interpretação constitucional incompatível com a idéia de abertura constitucional - isto significa o fim do primado da norma e a conseqüente primazia da constituição material sobre a constituição formal.

Aos poucos os processos de interpretação e de aplicação do direito devem

considerar não só a validade das normas, mas a sua adequação a um caso

específico e isso se deve ao fato de que todo e qualquer conteúdo/direito expresso

na Constituição deve ser atualizado por meio da interpretação, pois enquanto

produto cultural, a Constituição precisa ser tida como um sistema aberto, capaz de

interagir com o meio no qual está inserida, visto que:

Até pouco tempo imperava a idéia de que o processo de interpretação constitucional estava reduzido aos órgãos estatais ou aos participantes diretos do processo. Tinha-se, pois, uma fixação da interpretação constitucional nos 'órgãos oficiais', naqueles órgãos que desempenham o complexo jogo jurídico-institucional das funções estatais. Isso não significa que se não reconheça a importância da atividade desenvolvida por esses

236 CITTADlNO, Gisele. Pluralismo, Direito e justiça distributiva :elementos da filosofia constitucional contemporânea. 2 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2000. p. 30.

110

entes. A interpretação constitucional, todavia, uma atividade que, potencialmente, diz respeito a todos237.

Sendo o direito um produto da cultura, sua interpretação há de estar em

consonância com os valores reconhecidos e aceitos, democraticamente, no aludido

meio social, pois em conexão com estes que devem os princípios e regras jurídicas

ser interpretados e aplicados.

Aqui há de se salientar a idéia basilar da teoria cultural e pluralista do professor

Häberle238 de que

a interpretação do texto constitucional não é tarefa exclusiva dos magistrados que compõem a jurisdição constitucional, devendo a interpretação ser um processo aberto, conhecedor de múltiplas possibilidades e alternativas diversas, de forma que a ampliação do círculo dos intérpretes é apenas a conseqüência da necessidade, por todos defendida, de integração da realidade no processo de interpretação.

Isto se deve à necessária conexão que deve haver entre norma e realidade,

como forma de se assegurar a força normativa da Constituição, a fim de que a

Constituição escrita não sucumba, cotidianamente, diante da Constituição real, pois

"entre a norma fundamentalmente estática e racional e a realidade fluida e irracional,

existe uma tensão necessária e imanente que não se deixa eliminar"239.

Na visão de Cappelleti240, “identifica-se o Juiz como aplicador não apenas de

decisões já postas e existentes, frutos de uma interpretação anterior, mas como

autor de uma nova interpretação da lei, como criador do direito”. Dessa forma,

observa-se, cada interpretação como uma contribuição criativa nova, sendo que o

juiz figura-se como real aplicador do direito, bem como estimulador da supremacia

da Constituição.

237 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1997. p. 24 238Ibidem, p. 30. 239 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 10. 240 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993/Reimpressão em 1999. p. 23.

111

Entende-se, conseqüentemente, que o juiz, involuntariamente, faz às vezes de

legislador, eis que na sua função de protetor dos direitos e garantias fundamentais e

da própria supremacia da Constituição, deve buscar a satisfação da segurança

jurídica, fazendo, assim, uma interpretação da lei infraconstitucional como se

constitucional fosse, criando mecanismo, por meio dessa nova interpretação, para

manter-se a constitucionalidade das leis e não a sua simples expurgação do mundo

jurídico.

Como assinala Peter Häberle241,

no processo de interpretação constitucional estão potencialmente envolvidos todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível se estabelecer um elenco fechado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição. Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo, diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição.

Encontra-se implícito, em outras palavras, o reconhecimento de que na

interpretação judiciária do direito legislativo está ínsito certo grau de criatividade,

visto que o uso da mais simples e precisa linguagem legislativa, sempre deixa, de

qualquer modo, espaços sem respostas, que devem ser preenchidas pelo juiz e

sempre permitem ambigüidades, incertezas e inconformidades com determinada

época ou momento histórico, que, em última análise, devem ser resolvidas pela via

judiciária.242

Dentro deste contexto, de acordo com Bercovici243, mantendo-se uma visão

otimista, o Poder Judiciário acaba por ser a grande esperança na concretização da

Constituição de 1988, principalmente se tivermos por parâmetro a dicotomia da

Constituição versus a realidade.

241 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1997. p. 13-15. 242 Para o autor alemão Peter Häberle, não é apenas pela via judiciária que se resolve tais questões, mas por meio de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, que acabam por dar mais vida a idéia constitucional. 243 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, C. P. et. al. Teoria da Constituição: estudo sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 77.

112

Conforme Cittadino244,

Parece não restar dúvida de que esta concepção de "comunidade de intérpretes da Constituição" está inequivocamente associada a um processo de democratização da hermenêutica constitucional e, nesta perspectiva, exige uma cidadania ativa que, por esta via, concretiza ou realiza a Constituição. Ao procurar garantir a participação político-jurídica dos grupos e forças plurais que integram as democracias contemporâneas, a jurisprudência de valores afirma o seu compromisso com o ideal da igualdade e com a dimensão republicana que a concepção de "interpretação aberta" traduz.

Conseqüentemente, ao intérprete é designada a função de dar vida nova a um

texto que por si só representa letras escritas de um texto morto, simbologismo de

outra pessoa que o escreveu em determinada época e lugar, favorecendo-se, assim,

o que Cittadino245 chama de processo de “judicialização da política”, em que

observa-se uma responsabilidade democrática dos juízes, na defesa da Constituição

e da concretização das normas asseguradoras de direitos.

Assim, nas palavras de Cappelletti246,

Em realidade, interpretação significa penetrar os pensamentos, inspirações e linguagem de outras pessoas com vistas a compreendê-Ios e - no caso do juiz, não menos que no do musicista, por exemplo - reproduzi-los. "aplicá-los" e "realizá-los" em novo e diverso contexto, de tempo e lugar. É óbvio que toda reprodução e execução varia profundamente, entre outras influências, segundo a capacidade do intelecto e estado de alma do intérprete.

O intérprete deverá ter, sempre, como ponto de partida, os princípios

constitucionais, que, segundo Barroso247, “são o conjunto de normas que espelham

a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins”.

Por meio da interpretação, portanto, é que se dá vida à Constituição, mas essa

atualização, apesar de ter a função de trazer as novas realidades sociais para

dentro do texto constitucional, por meio da interpretação, não é livre para se dar em 244 CITTADINO, Gisele. Judicialização da Política, Constitucionalismo Democrático e Separação de Poderes. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A Democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 24. 245Ibidem, p. 27. 246 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993/Reimpressão em 1999. p. 21. 247 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3. ed. ampl. atual. São Paulo: Saraiva. 1999. p. 151.

113

qualquer direção, pois precisa estar, necessariamente, conectada com os princípios

eleitos e contidos na Constituição. Isto quer dizer que o que se permite variar é o

conteúdo destes direitos por meio da interpretação, sendo que os fins permanecem

os mesmos, ou seja, eles não podem ser, simplesmente, excluídos da ordem

jurídica.

Segundo Hesse248:

A interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. (...) Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação. (...) Uma mudança das relações fáticas pode - ou deve - provocar mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo tempo, o sentido da proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação normativa. A finalidade (telos) de uma proposição constitucional e sua nítida vontade normativa não devem ser sacrificadas em virtude de uma mudança de situação.

De acordo com o preceituado anteriormente, percebe-se a necessidade de

uma íntima relação que se fixa entre norma jurídica (aqui entendida mais

especificamente como Constituição) e realidade social, ao caráter político da

Constituição, em oposição ao constitucionalismo clássico, que sempre a reduziu a

mero instrumento jurídico que se continha todo no texto, tendo por finalidade

precípua limitar ou refrear o exercício do poder por meio da separação dos poderes

e da garantia dos direitos individuais.

Ainda, conforme Hesse249:

[...] a condição de eficácia da Constituição jurídica, isto é, a coincidência de realidade e norma, constitui apenas um limite hipotético extremo. E que, entre a norma fundamentalmente estática e racional e a realidade fluida e irracional, existe uma tensão necessária e iminente que não se deixa eliminar. Para essa concepção do Direito Constitucional, está configurada permanentemente uma situação de conflito: a Constituição jurídica, no que tem de fundamental, isto é, nas disposições não propriamente de índole técnica, sucumbe cotidianamente em.face da Constituição real. A idéia de um efeito determinante exclusivo da Constituição real não significa outra

248 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. pp. 22-23. 249 Ibidem, pp. 10-11.

114

coisa senão a própria negação da Constituição jurídica. Poder-se-ia dizer, parafraseando as conhecidas palavras de Rudolf Sohm, que o Direito Constitucional está em contradição com a própria essência da Constituição.

A Constituição, ainda na concepção do autor250, não se afigura apenas como

expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o

simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças

sociais e políticas. Ela também procura imprimir ordem e conformação à realidade

política e social, constituindo um produto reflexo da ambiência social, composta por

uma realidade viva e dinâmica, fazendo parte da sociedade e também sendo por ela

condicionada, de modo que "o sistema constitucional surge pois como expressão

elástica e flexível, que nos permite perceber o sentido tomado pela Constituição em

face da ambiência social, que ela reflete, e a cujos influxos está sujeita ”251.

Porém, a Constituição só adquire força normativa na medida em que tem como

pretensão realizar a sua eficácia, eis que somente a Constituição que se vincula a

uma dada situação histórica concreta e suas condicionantes pode desenvolver-se

plenamente.

Por outro lado, a força normativa da Constituição está condicionada por cada vontade atual dos participantes da vida constitucional, de realizar os conteúdos da Constituição. Como a Constituição, como toda ordem jurídica, carece de atualização pela atividade humana, sua força normativa depende da disposição de considerar seus conteúdos como obrigatórios e da determinação de realizar esses conteúdos, também contra resistências; isso tanto mais que a atualização da Constituição não pode, em igual proporção como a atualização de outro direito, pelos poderes estatais – que, primeiro, justamente, nessa atualização são constituídos -, ser apoiada e garantida.252

Assim, autores que integram a nova Hermenêutica, como Konrad Hesse e

Peter Häberle, partem do pressuposto de que a diferenciação social e o pluralismo

político são as principais características da sociedade contemporânea.

250HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 24. 251 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 77. 252 Conforme preceitua HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. 20 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 49.

115

Nas palavras de Hesse253, "a interpretação adequada é aquela que consegue

concretizar, de forma excelente, o sentido da proposição normativa dentro das

condições reais dominantes numa determinada situação". São precisamente estas

condições reais da sociedade contemporânea que levam Peter Häberle a formular o

conceito comunitário de "constituição aberta"254, que acaba por defender o

alargamento do círculo de intérpretes da constituição, pela via de um processo

aberto e público.

Assim, a Carta Constitucional não deve ignorar a sua realidade histórica, o

estado espiritual de seu tempo, visto que depende não apenas de seu conteúdo,

mas de sua prática, pois se assim não for, estaremos frente a frente com uma

Constituição que deixará de existir em função da sua dissociação com a

Constituição real.

É de suma importância que a Carta Constitucional esteja afinada com as

realidades culturais, políticas, econômicas e sociais que a cercam, sob pena de o

texto Constitucional sucumbir em sua força vital/essência, visto que a Constituição

faz parte das relações naturais de vida, devendo estar preparada, sempre, para as

eventuais mudanças das condicionantes citadas anteriormente, sendo capaz,

inclusive, de construir essas condicionantes.

Dessa forma, segundo o mesmo autor255:

Uma constituição será então legítima, ou seja, algo mais que uma relação fática e instável de dominação, valendo como ordenação conforme ao direito quando 'constitui' o Estado em conformidade com os valores dominantes da consciência social, com os sentimentos e as idéias geralmente difundidas numa comunidade. [...] É esta comunidade de sentimentos - a sintonia com aquilo que os governados consideram justo na esfera política - que possibilita a aceitação e a adesão indispensáveis à continuidade de uma ordem constitucional.

253 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 22. 254 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1997. 255 Ibidem, pp. 20-21.

116

Após o todo exposto, é possível concluir que a moderna hermenêutica jurídica

supera pouco a pouco a idéia de que as leis possam ter, sempre e sempre, sentido

unívoco, produzindo uma única solução adequada para cada caso. Assim, a

objetividade do Direito reside no conjunto de possibilidades interpretativas que o

relato da norma oferece, bem como do caráter construtivo da interpretação, podendo

decorrer, conforme Barroso256:

(i) da discricionariedade atribuída pela norma ao intérprete, (ii) da pluralidade de significados das palavras ou (iii) da existência de normas contrapostas, exigindo a ponderação de interesses à vista do caso concreto. Daí a constatação inafastável de que a aplicação do Direito não é apenas um ato de conhecimento - revelação do sentido de uma norma preexistente -, mas também um ato de vontade – escolha de uma possibilidade dentre as diversas que se apresentam.

Assim, o capítulo que ora se conclui traz-nos alguns momentos de reflexão e de

síntese, onde é possível referir que ao interpretar a Constituição por meio dos

métodos clássicos ou, de forma mais contemporânea, pelos princípios, busca-se o

sentido da norma, que somente se apresenta a partir da compreensão, sendo que

tal compreensão não se alcança sem o conjunto de recursos interpretativos

desenvolvidos pela hermenêutica jurídica, hoje apoiados fortemente nos princípios.

Por derradeiro e em tempo, deve-se referir que, no transcurso deste capítulo,

discorremos, brevemente, sobre o princípio instrumental da interpretação conforme à

Constituição, que também opera como técnica hermenêutica e método de controle

de constitucionalidade, sendo que tal assunto será o ponto central do terceiro e

último capítulo do trabalho, em que pretende-se fazer uma análise crítica sobre as

decisões do Supremo Tribunal Federal Brasileiro, esmiuçando melhor a importância

dessa técnica interpretativa como mecanismo de controle de constitucionalidade

pelo tribunal pátrio, bem como trazer à tona toda a sua influência dentro da

jurisdição constitucional brasileira, inclusive como uma forma de salvaguarda da

Constituição e das normas infraconstitucionais, demonstrando a incongruência e a

confusão que existe junto às decisões do Supremo Tribunal Federal, principalmente

no que diz respeito à declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de

texto.

256 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p.309-310.

117

3 A INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO COMO PRIN CÍPIO

GARANTIDOR DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO E DOS DIRE ITOS

HUMANOS FUNDAMENTAIS

3.1 A interpretação conforme à Constituição: origem , conceitos, características

e fundamentos

Por tudo dito até aqui, é possível referenciarmos que, em um Estado

Democrático de Direito, a hermenêutica jurídica é constituída por valores e princípios

constitucionais. Assim, a partir dessa nova concepção de Estado e de Direito, temos

condições de observar o papel significativo que tem a Constituição, e isso nos leva a

entender melhor a jurisdição constitucional e a visualizarmos as possibilidades de

realização dos direitos humanos fundamentais e garantias sociais, sustentáculos do

Estado Democrático de Direito.

Segundo Streck257,

A noção de Estado Democrático de Direito está, pois, indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais-sociais. É desse liame indissolúvel que exsurge aquilo que se pode denominar de plus normativo do Estado Democrático de Direito. Mais do que uma classificação ou forma de Estado ou de uma variante de sua evolução histórica, o Estado Democrático de Direito faz uma síntese das fases anteriores, agregando a construção das condições de possibilidades para suprir as lacunas das etapas anteriores, representadas pela necessidade do resgate das promessas da modernidade, tais como igualdade, justiça social e a garantia dos direitos humanos fundamentais. [...] no Estado Democrático de Direito a lei (Constituição) passa a ser uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado na busca do desiderato apontado pelo texto constitucional, entendido no seu todo dirigente-compromissário-valorativo-principiológico.

Dessa maneira, ficou registrado, no capítulo anterior, quando do estudo do

princípio da presunção de constitucionalidade das normas jurídicas e dos atos do

257 Conforme entendimento de STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e concretização dos Direitos Fundamentais-sociais no Brasil. In: ANDRADE, André Gustavo Corrêa de (Org.). Constitucionalização do Direito: a Constituição como locus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 06-07.

118

Poder Público em geral, que uma norma não deve ser declarada inconstitucional: a)

quando a invalidade não seja manifesta e inequívoca, militando a dúvida em favor de

sua preservação; e b) quando entre interpretações plausíveis e alternativas, exista

alguma que permita compatibilizá-la com a Constituição.

A segunda hipótese considerada no parágrafo anterior abriga a chamada

interpretação conforme à Constituição. Assim, de acordo com pesquisas e leituras

realizadas durante o presente estudo, há de se concluir que a primeira possibilidade,

que encarna a presunção de constitucionalidade propriamente dita, tem sua matriz e

seu desenvolvimento ligados ao direito norte-americano, já o princípio da

interpretação conforme à Constituição apesar de se originar em 1936, também nos

Estados Unidos, por sua vez, tem sua trajetória brasileira e desenvolvimento ligados

à jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, onde sua importância é

crescente.258

De acordo com Andrade259, dentro de perspectivas diferentes, a interpretação

conforme à Constituição pode ser vista como princípio hermenêutico, como princípio

de controle da constitucionalidade, como princípio de conservação de normas e

como técnica de decisão”.

Segundo leciona Canotilho260,

A interpretação conforme à Constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão (= espaço de interpretação) em que são admissíveis várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a Constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela.

Assim, o princípio da interpretação conforme à Constituição brasileira é uma

construção interpretativa originária da doutrina e da jurisprudência do Tribunal

Constitucional Federal Alemão, por onde buscou-se a realização de novos

258 Conforme nos informa BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 188. 259 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dimensões da interpretação conforme à Constituição. In: ________ (Org.). Constitucionalização do Direito: a Constituição como locus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 102. 260 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1190.

119

instrumentos de operacionalização da ordem jurídica, notadamente por parte dos

Tribunais Constitucionais. Conseqüentemente, para dar conta de tal função, por sua

vez, a jurisdição constitucional acaba se valendo, dentre outras estratégias, de

construções hermenêuticas - tais como classificamos as sentenças interpretativas e

manipulativas - dentre as quais já mencionamos no capítulo anterior, a interpretação

conforme à Constituição.

Para Hesse261,

Segundo esse princípio, uma lei não deve ser declarada nula quando ela pode ser interpretada em consonância com a Constituição. Essa “consonância” existe não só então, quando a lei, sem a consideração de pontos de vista jurídico-constitucionais, admite uma interpretação que é compatível com a Constituição; ela pode também ser produzida por um conteúdo da Constituição. No quadro da interpretação conforme à Constituição, normas constitucionais são, portanto, não só “normas de exame”, mas também “normas materiais” para a determinação do conteúdo das leis ordinárias. Ao contrário, a interpretação conforme à Constituição não é, contra “texto e sentido” ou contra “objetivo legislativo”, possível. A Vontade subjetiva do legislador não deve, nisto, ser decisiva; o importante é, antes, manter o máximo daquilo que ele quis. Em nenhum caso, uma lei deve ser declarada nula se a inconstitucionalidade não é evidente, senão existem somente objeções, por mais sérias que sejam.

De acordo com o que preceitua a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.o 3046

SP, de 15 de abril de 2004, expediente reiteradamente utilizado pelo Supremo

Tribunal Federal, “[...] a Interpretação conforme à Constituição: é técnica de controle

de constitucionalidade, que encontra o limite de sua utilização no raio das

possibilidades hermenêuticas de extrair do texto uma significação normativa

harmônica com a Constituição”262.

Canotilho263 assinala, ainda, que "o princípio da interpretação conforme à

Constituição é um instrumento hermenêutico de conhecimento das normas

constitucionais que impõe o recurso a estas para determinar e apreciar o conteúdo

intrínseco da lei".

261 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. 20 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. pp. 71-72. 262 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3046-9 SP, julgado em 15/04/2004. Ministro Sepúlveda Pertence (relator). Disponível em: <In: http://www.stf.gov.br>. Acesso em 08 de março de 2007. (anexo E) 263 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1225.

120

Já a finalidade dessa interpretação conforme à Constituição é bem definida por

Bonavides264 quando diz que: "em rigor não se trata de um princípio de interpretação

da Constituição, mas de um princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com

a Constituição”.

Miranda265 completa dizendo que a interpretação conforme à Constituição:

Não é já uma regra de interpretação, mas um método de fiscalização de constitucionalidade; e justifica-se em nome de um princípio de economia do ordenamento jurídico ou de máximo aproveitamento dos actos jurídicos - e não de uma presunção de constitucionalidade da norma.

Já para Canotilho266,

O princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição é fundamentalmente um princípio de controlo (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a formulação básica: no caso de normas polissémicas ou plurissignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição.

Observa-se, a partir do exposto por Canotilho, que esta formulação comporta

algumas dimensões já expostas, mas que vale a pena referir novamente e que diz

respeito: ao princípio da prevalência da Constituição, ao princípio da conservação da

norma e ao princípio da exclusão da interpretação conforme à Constituição “contra

legem”.

Continuando, Barroso267 preleciona sobre o tema da seguinte maneira:

A interpretação conforme à Constituição compreende sutilezas que se escondem por trás da designação truística do princípio. Cuida-se, por certo, da escolha de uma linha de interpretação de uma norma legal, em meio a

264 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 432. 265 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. p.267. t. II 266 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1189. 267 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. pp. 174-175.

121

outras que o texto comportaria. O conceito sugere mais: a necessidade de buscar uma interpretação que não seja a que decorre da leitura mais óbvia do dispositivo. É, ainda, da sua natureza, excluir a interpretação ou as interpretações que contravenham a Constituição.

Refere-se, ainda, o magistério de Bonavides268 quando diz que:

Em rigor não se trata de um princípio de interpretação da Constituição, mas de um princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com a Constituição. [...] significa na essência que nenhuma lei será declarada inconstitucional quando comportar uma interpretação "em harmonia com a Constituição" e, ao ser assim interpretada, conservar seu sentido ou significado. Uma norma pode admitir várias interpretações. Destas, algumas conduzem ao reconhecimento de inconstitucionalidade, outras, porém, consentem torná-la por compatível com a Constituição. O intérprete, adotando o método ora proposto, há de inclinar-se por esta última saída ou via de solução. A norma, interpretada "conforme à Constituição", será portanto considerada constitucional. Evita-se, por esse caminho a anulação da lei em razão de normas dúbias nela contidas, desde naturalmente que haja a possibilidade de compatibilizá-Ia com a Constituição.

Assim sendo, esse construto hermenêutico contemporâneo tem como

particularidade ser um instrumento que a Corte Suprema vai buscar para apurar

essa conformidade, tratando-se, de acordo com Leal269,

[...] de um princípio interpretativo diretamente decorrente da própria supremacia constitucional que identifica os Estados Democráticos, servindo, nessa perspectiva, como vetor hermenêutico e como parâmetro para a interpretação de todas as demais normas do ordenamento jurídico.

Da mesma forma que Leal, Andrade270 conceitua o princípio em discussão da

seguinte forma:

A interpretação conforme à Constituição constitui princípio hermenêutico que encontra sua raiz no princípio da supremacia da Constituição. A ordem jurídica como um todo retira sua validade do texto constitucional, produto do poder constituinte. Daí a sua preeminência, da qual decorre a exigência incontornável de conformação do texto legal ao texto constitucional. Como conseqüência, um dispositivo de lei ordinária será considerado inválido se estiver em contradição com a Constituição.

268 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 482. 269 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Interpretação conforme à Constituição X nulidade parcial sem redução de texto: semelhanças, diferenças e reflexão sobre sua operacionalização pelo Supremo Tribunal Federal. In: LEAL, R. G.; REIS, J.R. Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.p. 1565. t. 6. 270 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dimensões da interpretação conforme à Constituição. In: _________ (Org.). Constitucionalização do Direito: a Constituição como locus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003.p. 102.

122

Todavia, é possível - e freqüente - que um texto legal comporte mais de uma interpretação razoável. O ato de interpretar já traz, em si, naturalmente, a possibilidade de obtenção de mais de um sentido, seja qual for a técnica de redação do texto, estejam ou não presentes termos jurídicos indeterminados. Diante de textos objetivos e (aparentemente) claros, muitas vezes, mais de uma interpretação se afigura igualmente razoável ou admissível.

Dessa forma, o intérprete, depois de esgotar todas as interpretações

convencionais possíveis e não encontrando uma interpretação constitucional

compatível, pode, em não contendo a norma interpretada nenhuma

inconstitucionalidade declarada ao texto da Constituição Federal, verificar se é

possível, pelo influxo da norma constitucional, levar-se a efeito algum alargamento

ou restrição da norma que a compatibilize com a Carta Maior. Todavia, tal

alargamento ou restrição da lei não deve ser revestido de uma afronta à literalidade

da norma ou à vontade do legislador.

Conseqüentemente, pode-se dizer que, graças a sua flexibilidade, o princípio

da interpretação conforme à Constituição permite uma renúncia às interpretações

convencionais em nome da idéia de justiça material e verdadeira, bem como da

segurança jurídica, elementos tão necessários para a consecução de um Estado

Democrático de Direito271.

Assim, abre-se o espaço para a construção da idéia de uma interpretação

conforme à Constituição, resultando na vinculação de todo o ordenamento à

premissa de que nenhuma norma pode ser interpretada em desacordo com o texto

constitucional, ao mesmo tempo em que, por conseqüência, conservam-se, por meio

dessa interpretação, as leis, a segurança jurídica e a supremacia da Constituição,

visto que procura-se, sempre, evitar de todas as maneiras a decretação de nulidade

da norma, eis que a interrupção brusca de sua vigência, sem tempo suficiente para

colocar outra em seu lugar, gera um certo vazio normativo.

271 Segundo Bastos, “foi sempre o temor ou a prudência de declarar uma lei inconstitucional que deram origem às modernas formas de interpretação constitucional, que visam, sobretudo, manter a norma no ordenamento jurídico tendo como fundamento o princípio da economia, da segurança jurídica e da presunção de constitucionalidade das leis e como escopo a busca de uma interpretação que compatibilize a norma tida como "inconstitucional" com a Lei Maior. Parte-se da idéia de que na maioria dos casos essa inconstitucionalidade da norma, vai dar lugar a um vazio legislativo, que produzirá sérios danos ao ordenamento jurídico”. BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. p. 268.

123

Por conseguinte, Streck272 entende que “[...] a interpretação conforme à

Constituição apresenta-se como uma forma de aproveitar o conteúdo de justiça

que deve existir nas normas do Estado Democrático de Direito, devendo, ainda, ser

entendida como um meio de ser resguardada a vontade geral contida no contrato

social”.

Assim, o recurso interpretativo do princípio da interpretação conforme à

Constituição, baseado no princípio da irradiação, traz, de acordo com Leal273, duas

funções primordiais na interpretação de uma lei infraconstitucional em relação à

Constituição, quais sejam: interpretar a lei de acordo com a Constituição e ainda

efetuar o controle de Constitucionalidade de via indireta/inversa, preservando a

supremacia constitucional e salvando o texto da norma vigente, aqui considerados o

texto e a interpretação, tendo como papel principal “[...] o princípio da prevalência

normativo-vertical das normas constitucionais sobre as infraconstitucionais ou de

integração hierárquico-normativo”274.

Perpendicularmente, dentro dos preceitos que assume o princípio da

interpretação conforme à Constituição, temos que dar destaque, para além do

princípio de irradiação, para o princípio da conservação das normas, pelo qual não

deve ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que a possa ser atribuído

algum significado que se harmonize com a Constituição, mantendo-se a norma

infraconstitucional.

Conforme Hesse275 preceitua,

Interpretação conforme à Constituição coloca não somente a questão sobre o conteúdo da lei a ser examinada, mas também a questão sobre o

272 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 243. 273 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Princípios e possibilidades interpretativas. Aula ministrada ao Curso de Pós-Graduação – Mestrado em Direito - da UNISC, em 17 de março de 2006. Conforme a autora citada, a eficácia do princípio da irradiação não implica, contudo, em uma anulação dos diferentes ramos do direito infraconstitucional; trata-se de uma interação (constitucionalização do direito público e privado) – efeito vertical, onde ocorre uma preservação da criação normativa. 274 Conforme entendimento de CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1226. 275 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. 20 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 75.

124

conteúdo da Constituição, à qual a lei deve ser aferida. Ela requer, por conseguinte, tanto a interpretação da lei como interpretação da Constituição. Já que a conexão jurídico-material, como a jurídico-funcional, indica na direção de uma manutenção da lei, interpretação conforme à Constituição irá interpretar a norma constitucional a ser interpretada, no possível, naquele sentido no qual o legislador a concretizou. Interpretação conforme à Constituição de leis é, por conseguinte, em sua repercussão sobre a interpretação constitucional, interpretação conforme a lei da Constituição. Ela mostra-se, nisto, um outro – por se assim dizer, indireto – princípio de interpretação constitucional pelos tribunais. Simultaneamente, esse efeito confirma a correlação estreita entre a Constituição e lei e, com isso, a idéia da unidade da ordem jurídica.

Observa-se, dessa forma, que por meio da aplicação desse recurso

hemenêutico, pretende-se a consecução da preservação legislativa e da própria

constituição, fazendo-se um recorte da interpretação mais indicada e que esteja

mais associada à garantia da Constituição, evitando-se o atentado ao texto

Constitucional.

Entende-se que o princípio de conservação da norma não se fundamenta

apenas na segurança jurídica, mas, também, no reconhecimento da supremacia do

legislador quando se fala em concretização e realização da Constituição, sem falar

que se caracteriza, ainda, como método de controle de constitucionalidade das leis

infraconstitucionais, uma vez que tem como pressuposto a sua mantença no

ordenamento jurídico e a exclusão da possibilidade do vazio normativo.

Conforme Barroso276, pode-se decompor o princípio da interpretação conforme

à Constituição da seguinte forma:

1) Trata-se da escolha de uma interpretação da norma legal que a mantenha em harmonia com a Constituição, em meio a outra ou outras possibilidades interpretativas que o preceito admita. 2) Tal interpretação busca encontrar um sentido possível para a norma, que não é o que mais evidentemente resulta da leitura de seu texto. 3) Além da eleição de uma linha de interpretação, procede-se à exclusão expressa de outra ou outras interpretações possíveis, que conduziriam a resultado contrastante com a Constituição. 4) Por via de conseqüência, a interpretação conforme à Constituição não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura da norma legal.

276 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 189.

125

Há de se completar e reafirmar, conforme fez Barroso anteriormente, que o

princípio da interpretação conforme à Constituição é realmente um importante

mecanismo de controle de constitucionalidade, visto que, para evitar a declaração de

nulidade de determinada lei, o Tribunal se vale dessa prerrogativa interpretativa para

revelar uma possível compatibilidade com a Constituição, permitindo que a lei

infraconstitucional permaneça no mundo jurídico.

Neste contexto, em que se busca sempre a supremacia da Constituição e do

Estado Democrático de Direito, a hermenêutica e, especialmente, a interpretação

conforme à Constituição acabam se constituindo num princípio que se

caracterizando, na verdade, como um real mecanismo de controle jurisdicional de

constitucionalidade, visto que, a sua principal função é assegurar a

constitucionalidade das normas no exercício de interpretação das leis, determinando

que, quando o aplicador de determinado texto legal se encontrar frente a normas de

caráter plurissignificativo, deve priorizar a interpretação que possua um sentido em

conformidade com a Lei Maior.

Assim sendo, de acordo com Miranda277,

a interpretação conforme à Constituição vem a ser mais do que a aplicação de uma regra de interpretação. É um procedimento ou regra própria da fiscalização da constitucionalidade, que se justifica em nome de um princípio de economia do ordenamento ou de máximo aproveitamento dos actos jurídicos - e não de uma presunção de constitucionalidade da norma.

Conseqüentemente, sempre que determinada lei infraconstitucional for

interpretada pelo Judiciário, condiciona-se a validade da mesma a uma determinada

interpretação ou se houver a declaração de que certas aplicações não são

compatíveis com a Constituição, está-se, indiretamente, declarando a

inconstitucionalidade de outras possibilidades de interpretação ou de outras

possíveis aplicações, eis que há uma exclusão das interpretações incompatíveis

com a Constituição.

277 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3 ed. Lisboa: Coimbra Editora, 1991. pp. 236. t. II.

126

Para a aplicação desse método, segundo Bonavides278,

Parte-se [...] da presunção de que toda lei é constitucional, adotando-se ao mesmo passo o princípio de que em caso de dúvida a lei será interpretada conforme à Constituição. Como se vê, esse meio de interpretação contém um princípio conservador da norma, uma determinação de fazê-Ia sempre subsistente, de não eliminá-la com facilidade do seio da ordem jurídica explorando ao máximo e na mais ampla latitude todas as possibilidades de sua manutenção.

Entende-se, dessa maneira, que, quando uma norma infraconstitucional

apresentar dúvidas em relação ao seu significado, deve-se, sempre, dar preferência

à interpretação que lhe coloque em conformidade com os preceitos constitucionais.

Isto nada mais é do que a aplicação e realização do princípio da supremacia da

Constituição, aliado à premissa de que, sempre que possível, uma norma deve ser

compreendida de forma a ser dotada de eficácia, só devendo declarar-se sua

inconstitucionalidade como última alternativa, onde verdadeiramente não há espaço

para uma interpretação conforme à Constituição.

Segundo Mendes279,

Na Alemanha a interpretação conforme à Constituição determina a procedência parcial da ação direta de inconstitucionalidade, declarando inconstitucionais aqueles sentidos que são incompatíveis com o Texto Constitucional. No Brasil, a técnica difere na medida em que, adotada a interpretação conforme à Constituição, a decisão da ação é de improcedência, já que a norma permanece no ordenamento jurídico, com o sentido que a coloca em consonância com a Constituição

Dessa forma, com o emprego dos métodos de hermenêutica jurídica

constitucional, é possível termos uma mudança no sentido das normas, sem

necessidade de substituí-las, sendo que, a título de conhecimento, eis que tal

discussão não é objeto do presente trabalho, há de se referir que, dentre as

modernas formas de interpretação existentes, destacam-se, segundo Bastos280,

278 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência por uma Nova Hermenêutica por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 258-259. 279 MENDES, Gilmar Ferreira. Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2000. p. 48-49. 280 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. p. 269-270.

127

além da interpretação conforme à Constituição,

[...] a declaração de constitucionalidade de norma em trânsito para a inconstitucionalidade e a mutação constitucional”; “a declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador”; “a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto” e “a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade”.

Resumidamente, pode-se afirmar que, na declaração de constitucionalidade de

norma em trânsito para a inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal não vê

ainda na norma uma inconstitucionalidade evidente, porque ela mantém parte de

sua significância ainda em contato harmônico com a Constituição Federal.

Neste caso, segundo Clève281,

a Corte Constitucional, declara constitucional a norma impugnada mas, ao mesmo tempo, alerta que ela encontra-se em trânsito para a inconstitucionalidade. Ou seja, a alteração das circunstâncias fáticas ou mesmo da compreensão do significado da Lei Fundamental pode implicar, para a norma, o inserir-se num processo de inconstitucionalização.

Conclui-se que a utilização desse recurso faz com que o Supremo Tribunal

sinalize com a expressão em "trânsito para a inconstitucionalidade", informando que

a lei infraconstitucional está a um passo da inconstitucionalidade, bastando, para

tanto, apenas alguma alteração fática.

Para Bastos282,

No Direito Brasileiro, esta técnica decisória, que no Direito Alemão estaria inserida dentre as várias espécies do que lá se denomina de apelo ao legislador, pode ser aceita, desde que a norma ainda não seja plenamente inconstitucional, quer dizer, inconstitucional em todas as hipóteses interpretativas que comporta.

Já na declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador busca-se a

não-declaração da inconstitucionalidade da lei. Aqui, o Tribunal reconhece que uma

lei ainda é Constitucional, embora na sua essência esteja eivada de 281 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2 ed. rev. ampl., 2 tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 187. 282 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. p. 289.

128

inconstitucionalidade, sendo que não declara essa inconstitucionalidade sem antes

fazer um apelo ao legislador, indicando, em face das situações concretas, o que

estava viciado e que deve ser corrigido para ficar conforme à Constituição. Assim,

cabe ao Tribunal fazer um ‘apelo’ ao legislador para que, em atividade subseqüente,

torne a regra inconstitucional harmônica com a Carta Maior, incumbindo-o da difícil

tarefa de regular determinada matéria, de acordo com o que preceitua a própria

Constituição Federal. Assim, ao invés de declarar desde logo a nulidade da lei, o

Tribunal apela para o legislador para que corrija o seu conteúdo ou busque um

sentido capaz de suprir a deficiência.

No voto do Ministro Eros Grau, na decisão de Agravo Regimental em Agravo de

Instrumento n.o 606805 SP, de 28 de novembro de 2006, traz-se o seguinte

posicionamento:

Razões de segurança jurídica podem revelar-se, no entanto, aptas a justificar a não-aplicação do princípio da nulidade da lei inconstitucional. [...] sem abandonar a doutrina tradicional da nulidade da lei inconstitucional, é possível e, muitas vezes, inevitável, com base no princípio da segurança jurídica, afastar a incidência do princípio da nulidade em determinadas situações. Não se nega o caráter de princípio constitucional ao princípio da nulidade da lei inconstitucional. Entende-se, porém, que tal princípio não poderá ser aplicado nos casos em que se revelar absolutamente inidôneo para a finalidade perseguida (casos de omissão ou de exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade), bem como nas hipóteses em que a sua aplicação pudesse trazer danos para o próprio sistema jurídico constitucional (grave ameaça à segurança jurídica). É inegável que a opção desenvolvida pelo Supremo Tribunal inspira-se diretamente no uso que a Corte Constitucional alemã faz do “apelo ao legislador”, especialmente nas situações imperfeitas ou no “processo de inconstitucionalização”. Nessas hipóteses, avalia-se, igualmente, que, tendo em vista razões de segurança jurídica, a supr essão da norma poderá ser mais danosa para o sistema do que a sua aplicação temporária. Não há negar, ademais, que aceita a idéia da situação “ainda constitucional”, deverá o Tribunal, se tiver que declarar a inconstitucionalidade da norma, em outro momento, fazê-lo com eficácia restritiva ou limitada. Em outros termos, o “apelo ao legislador” e a declaração de inconstitucionalidade com efeitos limitados ou restritos estão intimamente ligados.(Grifei)283

283 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Agravo de Instrumento n. 606805 SP, julgado em 28/11/2006. Ministro Eros Grau (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 25 de março de 2007. (anexo F)

129

Segundo Leal284,

[..] nesse recurso interpretativo o Tribunal reconhece que uma lei ”ainda é Constitucional”, mas vai tornar-se inconstitucional em razão de determinados elementos espaciais ou temporais. Ao invés de declarar desde logo a nulidade da lei, o Tribunal apela para o legislador para que “corrija” o seu conteúdo ou aja no sentido de suprir a deficiência. É um aviso ao legislador.

No que diz respeito à declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de

nulidade, segundo Bastos, acaba por ocorrer

em casos onde é patente a inconstitucionalidade da lei, todavia não se declara a sua nulidade com o intuito de evitar que o direito antigo substitua aquele declarado inconstitucional, ou até mesmo para evitar o surgimento de um vácuo jurídico. Isso significa que a lei declarada inconstitucional, mas que não teve a sua nulidade pronunciada, subsiste dentro do ordenamento jurídico, mas não é passível de aplicação. Vale dizer que todo e qualquer ato praticado com base na lei inconstitucional, também é eivado de inconstitucionalidade. Nessa forma de interpretação constitucional a pronúncia de nulidade não ocorre, porque ela acabaria por suprimir algo mais do que a ofensa constitucional que se pretendia eliminar com a declaração de inconstitucionalidade, ou até mesmo poderia fazer surgir uma situação mais afastada ainda da vontade constitucional. A declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade tem como conseqüências: a) o dever de legislar, que se constitui na obrigação de eliminar prontamente a situação inconstitucional através da edição de uma nova norma b) a suspensão da aplicação da lei inconstitucional; c) a manutenção da lei inconstitucional dentro do ordenamento jurídico, pois a pronúncia de sua nulidade poderia causar um dano ainda mais grave, qual seja, o do vazio normativo.

O problema que se percebe tanto nesse quanto nas demais formas de

interpretação apresentadas anteriormente diz respeito àqueles casos em que, ao se

fazer uma declaração de inconstitucionalidade pela qual se declara a nulidade da

norma, criar-se-ia um vazio legislativo incompatível com as necessidades do Estado.

Então, nesse caso, declara-se a inconstitucionalidade da norma, sem se pronunciar

a sua nulidade de imediato, para que o Congresso Nacional tenha tempo para

legislar a respeito, revogando assim a lei declarada inconstitucional e,

conseqüentemente, preenchendo aquele vazio que surgiria com a pronúncia de

nulidade da norma.

284 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Princípios e possibilidades interpretativas. Aula ministrada ao Curso de Pós-Graduação – Mestrado em Direito - da UNISC, em 17 de março de 2006.

130

Um exemplo claro que traz Bastos285 está no exame do art. 7° da Constituição

de 1988, que versa sobre os direitos sociais, verificando-se que o inc. IV trata do

salário mínimo e das diferentes necessidades que devem ser por ele atendidas. Na

realidade, o problema do salário mínimo está intimamente vinculado aos problemas

econômicos do Estado, mas o fato que o autor traz está em saber-se que:

[...] o salário mínimo jamais foi suficiente para a manutenção da própria pessoa, quanto mais para o lazer e para outras necessidades que estão elencadas no aludido dispositivo constitucional. Se alguém com legitimidade ativa para propor a ação direta de inconstitucionalidade, a propusesse no sentido de ser declarada inconstitucional uma norma que elevara em uma pequena quantia (12 reais), quando o salário mínimo que era de 100 reais, se criaria um dilema difícil de ser resolvido. O Supremo Tribunal Federal defrontar-se-ia com o seguinte problema: Não poderia suspender em medida liminar o salário mínimo de 112 reais, quando o salário mínimo anterior era de 100 reais, porque obviamente o resultado seria contrário ao interesse daqueles que pediram essa liminar. Para solucionar essa situação a Corte Suprema poderia declarar a inconstitucionalidade da norma sem pronunciar a sua nulidade, aguardando assim que o Congresso Nacional legislasse a respeito e evitando o surgimento do vazio normativo que é tão prejudicial ao sistema jurídico.

Cumpre assinalar que se tal exemplo ocorresse na Alemanha, a Corte

Suprema, além de declarar inconstitucional aquele dispositivo, sem pronunciar a sua

nulidade, estabeleceria um prazo para sua regulamentação286.

Já no que diz respeito à declaração de inconstitucionalidade parcial sem

redução de texto, em relação à qual faremos maior menção em seguida, observa-se

que há a declaração de inconstitucionalidade, porém, sem que se reduza o texto ou,

melhor dizendo, sem se alterar a expressão literal da lei.

Segundo Bastos287,

ela é empregada quando a norma é redigida em linguagem ampla e que abrange várias hipóteses, sendo uma delas inconstitucional. Assim a lei continua tendo vigência - não se altera a sua expressão literal -, mas o Supremo Tribunal Federal deixa consignado o trecho da norma que é inconstitucional. É dizer, apenas uma das variantes da lei é inconstitucional.

285 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. p. 296-297. 286 Conforme nos mostra BASTOS, Ibidem, p. 297. 287 Ibidem, p. 281.

131

Dessa maneira, é possível referirmos que a declaração de inconstitucionalidade

parcial sem redução de texto e a interpretação conforme à Constituição possuem

uma certa semelhança, sendo que Mendes288 as distingue com propriedade,

conforme citaremos mais profundamente no segmento da presente pesquisa.

Há de se referir, ainda, que, por vezes, o Supremo Tribunal Federal equipara,

em alguns de seus julgados, a interpretação conforme à Constituição à declaração

de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto. Adverte, porém, Bastos289

que:

A declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, ganhou autonomia como técnica de decisão, na esfera da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Progressivamente a Corte Constitucional está a se distanciar da posição preliminarmente fixada que igualava simplesmente a interpretação conforme à Constituição à declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto.306 Tal posição foi reforçada com o advento da Lei n. 9.868/99, que no parágrafo único do seu art. 28, faz menção expressa a estas duas técnicas de decisão, reforçando assim a independência, a autonomia dessas duas técnicas de decisão.

É, por conseqüência, no interior desse quadro normativo aberto que se

desenrola a interpretação conforme à Constituição e que se perfazem as divisas de

um modelo apto a determinar o sentido e a compatibilidade da norma inferior com a

norma superior, transcendendo-se as regiões hermenêuticas da metodologia

tradicional para se chegar a um terreno mais vizinho da concretude normativa e da

realização do direito.

Em acórdão unânime de que foi relator o Ministro Moreira Alves, o Supremo

Tribunal Federal se pronunciou sobre a interpretação conforme à Constituição,

considerando esse princípio não apenas como critério hermenêutico, mas como

mecanismo de controle de constitucionalidade, embora faça algumas confusões em

relação à inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, conforme segue:

[...] aplicando a interpretação conforme à Constituição, declara constitucional uma lei com a interpretação que a compatibiliza com a Carta Magna, pois, nessa hipótese, há uma modalidade de inconstitucionalidade

288 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996. 289 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. p. 286-288.

132

parcial sem redução de texto [...] o que implica dizer que o tribunal Constitucional elimina e atua, portanto, como legislador negativo – as interpretações por ela admitidas, mas inconciliáveis com a Constituição.290

Faz-se, neste sentido, uma crítica ferrenha ao Supremo Tribunal Federal, ao

averiguar-se que, na utilização desses recursos hermenêuticos, há a sua

identificação, sendo ambos os institutos operacionalizados de forma confusa. Além

disso, raramente as suas decisões são pautadas ou servem para resolver questões

que se relacionam com os direitos fundamentais, sendo que, na maioria das vezes,

elas envolvem apenas questões ordinárias.

Rocha291 ressalta que,

São os princípios que permitem a evolução do sistema constitucional pela criação ou recriação do sentido e da ampliação de suas normas, sem necessidade de modificação de sua letra, legitimando-se pela sua coerência com o contexto político, social e econômico que a sociedade vivencia em determinado momento.

Dessa forma, o princípio da interpretação conforme à Constituição deve ser

enxergado, por vezes, como um pressuposto de interpretação no contexto em que

se aplica, como aquele que mais realiza a Constituição ou que mais dela se avizinha

quando temos que interpretar uma lei infraconstitucional à luz da primeira.

A doutrina e jurisprudências alemãs, com vistas à defesa da supremacia constitucional, por um lado, e da presunção de legitimidade constitucional da lei por outro, desenvolveram a doutrina da interpretação conforme à Constituição, tanto como técnica de salvaguarda da constitucionalidade das leis, como método de interpretação constitucional, vedando, nesse caso, que o entendimento e alcance das normas constitucionais fossem definidos a partir de leis. [...] Assim, não há como salvar o dispositivo de norma se a interpretação ajustada violar “a letra e o sentido” da lei ou o “fim perseguido pelo legislador”292.

Por conseguinte, a interpretação conforme à Constituição pode ser considerada

como sendo mais do que uma técnica de salvamento da lei ou do ato normativo, eis

que consiste, também, em um mecanismo de controle de constitucionalidade. Ela 290 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Representação 1417 DF, julgado em 09/12/1987. Ministro Moreira Alves (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 03 de fevereiro de 2007. (anexo G) 291 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. pp. 22-23. 292 SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 829-830.

133

não é, contudo, necessariamente, unívoca, pois, por vezes, são possíveis várias

interpretações conformes à Constituição, que podem até mesmo contradizer-se

entre si, - mas, ao final, vai optar-se por aquela interpretação que mais se coaduna

com a Constituição.293

O princípio da interpretação conforme à Constituição objetiva, pois,

sobremaneiramente, a preservação da supremacia da Constituição, excluindo,

assim, as demais interpretações contrárias que possam existir. Dessa forma, não

resta dúvida de que a norma, para ser constitucional, há de ter pelo menos um dos

seus sentidos em consonância com a Lei Maior, sendo que, na pluralidade de

sentidos, utiliza-se aquele que for mais compatível com a Constituição.

Por decorrência do exposto até aqui, a interpretação conforme à constituição

comporta, segundo o autor português Canotillho294,

várias dimensões, as quais se traduziriam em princípios decorrentes desse tipo de interpretação, tais como: o princípio da prevalência da Constituição, o princípio da conservação das normas e o princípio da exclusão da interpretação conforme à Constituição, mas contra legem.

Barroso295 também visualiza a interpretação conforme à Constituição como um

princípio de interpretação e como uma técnica de controle de constitucionalidade,

emitindo o seguinte parecer:

Como princípio de interpretação, decorre ele da confluência de dois princípios anteriores: o da supremacia da Constituição e o da presunção de constitucionalidade. Com base na interpretação conforme à Constituição, o aplicador da norma infraconstitucional dentre mais de uma interpretação possível, deverá buscar aquela que 'compatibilize com a Constituição, ainda que não seja a que mais obviamente decorra do seu texto. Como técnica de controle de constitucionalidade, a interpretação conforme à Constituição consiste na expressa exclusão de uma determinada interpretação da norma, uma ação "corretiva" que importa em declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. Em qualquer de suas

293 Ao afirmarmos que podem surgir mais de uma interpretação conforme à Constituição para o mesmo caso, entendemos, também, que não há aí uma “ditadura da melhor interpretação”, eis que sempre será aplicada a interpretação que melhor se amolda ao caso concreto, levando-se em consideração as circunstâncias e o contexto em que inserido. 294 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 576. 295 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 371-372.

134

aplicações, o princípio tem por limite as possibilidades semânticas do texto, para que o intérprete não se converta indevidamente em um legislador positivo.

Em princípio, não cabe ao Poder Judiciário anular uma lei quando puder, de

alguma maneira, preservá-la em nosso ordenamento jurídico num dos sentidos que

ela comporte e que esteja em consonância com a Lei Maior. Sempre que possível, a

norma deve ser interpretada de maneira a ser dotada de eficácia, só devendo ser

declarada a sua inconstitucionalidade e conseqüente banimento do ordenamento

jurídico como última alternativa e quando a inconstitucionalidade do dispositivo em

questão for considerada flagrante e incontestável.

Dessa forma, subentende-se que o objetivo primeiro da interpretação deve ser

a criação de condições para que a norma interpretada tenha eficácia sempre no

sentido da realização dos princípios e valores constitucionais, bem como da

ideologia constitucionalmente adotada.

Verifica-se, acerca da aplicação das modernas formas de interpretação

constitucional e, precipuamente, do princípio da interpretação conforme à

Constituição, a comprovação de que a interpretação da norma constitucional é

indispensável para a boa compreensão das demais normas que compõem o nosso

ordenamento jurídico, tendo-se em vista que a Constituição Federal deve informar

todo o conjunto do ordenamento jurídico296, verificando-se que a utilização dessas

formas de interpretação constitucional têm como objetivo evitar a criação de lacunas

no ordenamento decorrentes da declaração de inconstitucionalidade da lei,

mantendo-se, dessa forma, os direitos humanos fundamentais e os interesses

sociais protegidos.

Para Leal297,

a interpretação constitucional configura, portanto, um importante elemento de operacionalização da noção de Constituição aberta em seu sentido valorativo e principiológico, na medida em que tanto a pré-compreensão

296 Isso em razão do princípio da irradiação, mencionado anteriormente, na nota de rodapé n.º 274. 297 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Pré-crompreensão e Pós-compreensão: uma análise de sua função na interpretação da constituição aberta. . In: LEAL, R. G.; REIS, J.R. Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005.p. 1371. t. 5.

135

como a pós-compreensão conformam e revelam que as possibilidades de realização constitucional não existem desvinculadas do contexto, do tempo e do espaço no qual se inserem, caso em que não só o passado e a história efeitual devem ser consideradas, mas também o futuro.

Formada, portanto, na própria Jurisprudência, a interpretação conforme à

Constituição é encontrada em praticamente todos os Estados que reconhecem a

supremacia da Constituição298, sendo que, ao intérprete, revela-se uma

preocupação constante na manutenção dos textos normativos em face da presumida

insegurança jurídica que uma invalidação poderia causar às relações que se

formaram sob a égide daquela lei, além dos naturais transtornos causados pelo

inevitável vazio jurídico, que ocorre quando da invalidação e supressão do

ordenamento de determinada lei até a reposição de outra em seu lugar.

Dessa maneira, na interpretação conforme à Constituição há de se decidir,

entre duas ou mais interpretações possíveis, por aquela que está em conformidade

com a Constituição, visto que, segundo Enterría299, "(...) antes de que una Ley sea

declarada inconstitucional, el juez que efectúa el examen tiene el deber de buscar en

vía interpretativa una concordancia de dicha Ley con Ia Constitución".

Por conseqüência, há, na interpretação conforme à Constituição, a exclusão de

todas as outras interpretações possíveis e, conforme Almeida Júnior300, por meio

desse critério “[...] ocorre um desvio em face do objeto do controle de

constitucionalidade: em última análise não se está declarando a constitucionalidade

ou não da lei, mas das suas outras possíveis interpretações”.

Dessa forma, segundo Almeida Júnior301,

A Jurisprudência torna-se campo fértil para melhor compreender a aplicação do critério da interpretação conforme: enquanto a atividade doutrinária revela os problemas da interpretação e as suas possíveis soluções, a atividade jurisprudencial, por seu turno, põe à prova os resultados, diante dos confrontos concretos por ela enfrentados.

298 Conforme preceitua ENTERRÍA, Eduardo García de. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 1994. p. 95. 299 Ibidem, p. 95-96. 300 ALMEIDA JÚNIOR, Fernando Osório de. Interpretação conforme à Constituição e direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002. p. 18. 301 Ibidem, p. 14.

136

É sabido, também, que, ao se permitir ao magistrado, no exercício da

prestação jurisdicional, realizar um juízo de constitucionalidade da lei, principalmente

no caso de duas ou mais interpretações possíveis, há de se preferir, sempre, aquela

que se revele mais compatível com a Constituição, abrindo-se as portas por “[...]

onde o direito, a justiça e a eqüidade chegarão ao cidadão e lhe garantirão a

segurança constitucional dos seus direitos fundamentais”302.

Em outras palavras, conforme Bastos303,

[...] a aplicação da interpretação conforme resulta do reconhecimento pelo tribunal de que a aplicação da lei na forma pela qual foi posta pode implicar em vício de inconstitucionalidade. Como já se disse, a interpretação conforme não é aquela que se destaca de forma mais evidente e imediata.

Para Almeida Júnior304,

O critério da interpretação conforme à Constituição não representa apenas mais uma “alternativa de interpretação”, que se oporia aos métodos clássicos de interpretação, já exaustivamente mencionados pela doutrina, [...], sendo que [...] pretende apenas eleger, dentre todos os métodos possíveis de interpretação, aquela que revela a harmonia entre a lei e a Constituição; ao proceder assim, cria-se uma forma objetiva de escolha entre as variadas interpretações possíveis, cuja qualificação entre "constitucional" e "inconstitucional" irá definir o próprio conteúdo da lei, excluindo-se todas as demais interpretações e, com isso, todos seus efeitos jurídicos.

Dessa forma, por conseguinte, nenhuma lei pode ser declarada inconstitucional

enquanto comportar uma interpretação em harmonia com a Constituição, podendo

conservar o seu sentido ou significado, evitando-se a anulação da lei e a sua

retirada do mundo jurídico.

Para Bonavides305, o princípio da interpretação conforme à Constituição,

Decorre em primeiro lugar da natureza rígida das Constituições, da hierarquia das normas constitucionais - de onde promana o

302 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência por uma Nova Hermenêutica por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p. 227. 303 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 65 304 ALMEIDA JÚNIOR, Fernando Osório de. Interpretação conforme à Constituição e direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002. p. 87. 305 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 474.

137

reconhecimento da superioridade da norma constitucional - e enfim do caráter de unidade que a ordem jurídica necessariamente ostenta.

Ainda, conforme Bonavides306, por meio desse método “[...] busca-se preservar a

autoridade do comando normativo, fazendo o método ser expressão do ‘favor legis’

ou do ‘favor actus’, ou seja, um instrumento de segurança jurídica contra as

declarações precipitadas de invalidade da norma”.

Por conseqüência, no desenvolvimento desse método hermenêutico, é possível

observarmos que existem aspectos tanto negativos como positivos. No que diz

respeito ao primeiro, há de se referir que, ao se usarem artifícios que possam fazer

prevalecer no ordenamento constitucional normas inconstitucionais, acaba-se por se

ter o risco de se transformar a interpretação da lei conforme à Constituição numa

interpretação da Constituição conforme a lei307, especialmente se se levar em

consideração o fenômeno da baixa importância que se dá à constitucionalidade e ao

texto constitucional, sendo, por vezes, considerado genérico demais para ser

aplicado diretamente308.

Dessa maneira, segundo Abellán309,

[...] la función del Tribunal no consiste en revisar el mayor o menor acierto de la aplicación del derecho efectuada por los jueces, sino solo su adecuación al texto constitucional: si se quiere, no consiste en fijar la mejor interpretación de la ley, sino solo en rechazar aquellas que resultem incompatibles con la constitución, de manera que la interpretación judicial de la ley debe ser preservada cuando no sea incompatible con la constitución, y en caso de que sean varias las interpretaciones de la ley constitucionalmente conformes, no debe imponer la que estime mejor.

Já o lado positivo do método é caracterizado pela própria pretensão de

realização da Constituição, observando-se uma certa fidelidade no que diz respeito à

306 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 475. 307 Isso de acordo com que preceitua BONAVIDES, Ibidem, pp. 475-476. 308 Ver, para tanto, a obra de STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, que, com propriedade, discorre sobre a inefetividade da Constituição, a crise da justiça, a morosidade, e o problema do acesso à justiça e a não-implementação dos direitos sociais, e acima de tudo, pela falta de função social do direito (entre o texto constitucional e a realidade social). Dessa forma, conforme o autor citado “a Constituição é o resultado de sua interpretação” (p. 296), dizendo, ainda, que tal interpretação decorre de seu intérprete e da importância que ele dá à lei Constitucional. 309 ABELLÁN, Marina Gascón. Los límites de la justicia constitucional: el tribunal constitucional entre jurisdicción y legislación. In: LAPORTA, Francisco (Org.) Constitución: problemas filosóficos. Madrid, 2003. p. 170.

138

preservação do princípio da separação de poderes. Assim, faz-se com que juízes e

tribunais percebam que sua missão não é desautorizar o legislativo ou nele influir

por via de sentenças e acórdãos, mas tão-somente contribuir para a realização da

Constituição e de seus conteúdos fundamentais.

Dessa forma, sempre que um texto normativo tiver um sentido conforme à

Constituição, não deve o juiz lhe dar interpretação em sentido oposto, alterando

conteúdo normativo, pois isso é tarefa do legislador, e não do julgador. De sorte que,

se isso ocorrer, está se excluindo uma das maiores vantagens da interpretação

conforme à Constituição, qual seja, a de preservar a sobrevivência da lei, não lhe

declarando a nulidade/inconstitucionalidade.

Entende-se, por tudo até aqui referido, que não deve o juiz, por meio da

aplicação desse método, fazer as vezes de legislador, nem deve dar interpretação

que modifique, na totalidade, o que o texto normativo quis dizer, isto é, uma

interpretação contra legem. Em suma, segundo leciona Bonavides310,

[...] o método é relevante para o controle da constitucionalidade das leis e seu emprego dentro de razoáveis limites representa, em face dos demais instrumentos interpretativos, uma das mais seguras alternativas de que pode dispor o aparelho judicial para evitar a declaração de nulidade das leis. Por via de semelhante princípio, adotado sem excesso, o ato interpretativo não desprestigia a função legislativa nem tampouco enfraquece a magistratura nos poderes de conhecer e interpretar a lei pelo ângulo de sua constitucionalidade.

E, como refere Häberle311, “não existe norma jurídica, senão norma jurídica

interpretada”, sendo que em certo sentido o processo de interpretação constitucional

é infinito, estando seu resultado submetido à reserva da consciência, que deve

mostrar-se “adequada e apta a fornecer justificativas diversas e variadas, ou, ainda,

submeter-se a mudanças mediante alternativas racionais”, de forma que o processo

de interpretação constitucional seja ampliado “para além do processo constitucional

concreto”, podendo-se falar em “pré-história” e “pós-história” das normas

310 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 480. 311HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1997. p. 09

139

constitucionais.312

A interpretação conforme à Constituição realizada de forma legítima pressupõe,

pois, a reunião de determinados elementos, sendo imprescindível a existência de um

espaço de decisão, ou seja, é necessário que uma determinada questão aceite

como admissíveis várias propostas interpretativas. Por outro lado, embora os órgãos

judiciários rejeitem ou não apliquem as normas inconstitucionais, proíbe-se a

correção de norma jurídica em contradição com a Constituição, já que se trataria, em

última análise, de uma nova conformação da matéria elaborada pelo intérprete.

Não se trata, aqui, de dizer que só a vontade do legislador é determinante;

entretanto, o intérprete, no exercício de suas funções, deve procurar aproximar-se

ao máximo do que o legislador quis dizer, sendo inadmissível, portanto,

interpretação conforme à Constituição que tenha como resultado uma ordem contra

o texto e o sentido legal, ou contra essa finalidade legislativa, visto que, assim, a

norma seria simplesmente inconstitucional.

Há de se dizer que a conduta e a vontade do legislador democrático gozam de

uma certa presunção de constitucionalidade das normas, correspondendo a uma

conformação jurídica das relações sociais.

De acordo com o Ministro Moreira Alves, na Representação n.º 1.417,

a interpretação da norma sujeita a controle deve partir de uma hipótese de trabalho, a chamada presunção de constitucionalidade, da qual se extrai que, entre dois entendimentos possíveis do preceito impugnado, deve prevalecer o que seja conforme à Constituição. 313

312 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1997. p. 42. Mais adiante, em nota de rodapé, o autor prossegue reportando-se também aos conceitos de “pré-compreensão” e “pós-compreensão” da norma. E ainda que as Leis Constitucionais são dotadas não apenas de pré-história, mas também de pós-história. 313 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Representação 1417 DF, julgado em 09/12/1987. Ministro Moreira Alves (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 03 de fevereiro de 2007. (anexo G)

140

Por outro lado, de acordo com as lições de Bittencourt314, há de se afirmar que,

"se uma lei pode ser interpretada em dois sentidos, um que a torne incompatível

com a Lei Suprema, outro que permite a sua eficácia, a última interpretação é a que

deve prevalecer".

Mas, segundo o mesmo autor, não há que se falar em uma presunção de

constitucionalidade, a obrigar a aplicação da norma. Aduz que a lei,

desde que se apresente formalmente perfeita, há de ser considerada boa, firme e válida, como qualquer outro ato do poder público, ou qualquer ato jurídico, na órbita privada, até que a sua ineficácia ou nulidade seja reconhecida ou declarada pelos tribunais. A lei, enquanto não declarada inoperante, não se presume válida: ela é válida, eficaz e obrigatória”.315

Ainda de acordo com o Ministro Moreira Alves, na ementa da Representação

n.º 1.417, é fundamental que se tenha em conta que a interpretação conforme à

Constituição não pode ultrapassar os limites do exercício hermenêutico e do controle

de constitucionalidade, visto que, se isso ocorrer, estaremos frente a frente com uma

declaração de inconstitucionalidade.

EMENTA. O STF - em sua função de Corte Constitucional - atua como legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída pelo Poder Legislativo. Por isso, se a única interpretação possível para compat ibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme à Constituição , que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo.316

Neste diapasão, Bonavides317 demostra, com apoio nas lições de Klaus Stern,

que “com a simples declaração da incompatibilidade da lei com a Constituição sem a

pronúncia de sua nulidade o Tribunal Constitucional apenas constata a existência de

uma colisão com a Lei Fundamental”.

314 BITTENCOURT, Lúcio. O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis. Rio de Janeiro: Forense. 1986, p. 95. 315 Ibidem. p. 96. 316 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Representação 1417 DF, julgado em 09/12/1987. Ministro Moreira Alves (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 03 de fevereiro de 2007. (anexo G) 317 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 262.

141

Fazendo uma análise sobre o assunto, Clève318 expõe que, na Corte

Constitucional Italiana adota-se a seguinte prática:

Quando a lei admite uma interpretação conforme à Constituição, rejeita-se a questão de inconstitucionalidade; se, no entanto, subseqüentemente se verifica que a Magistratura ordinária persiste em dar-lhe interpretação incompatível com a Lei Fundamental, a Corte quando novamente a questão lhe é proposta, volta atrás da rejeição interpretativa anterior e declara, com eficácia erga omnes, a inconstitucionalidade do próprio texto legislativo.

Pode-se dizer, dessa forma, que não cabe ao Poder Judiciário anular uma lei

quando puder de alguma maneira preservá-la em nosso ordenamento jurídico num

dos sentidos que ela comporte e que esteja em consonância com a Lei Maior. Por

derradeiro, há de se dizer que, sempre que possível, a norma deve ser interpretada

de maneira a ser dotada de eficácia, só devendo ser declarada a sua

inconstitucionalidade e conseqüentemente banimento do ordenamento jurídico como

última alternativa, e quando a inconstitucionalidade do dispositivo em questão for

considerada flagrante e incontestável.

Neste caso, o Tribunal observa a abrangência da disposição contida no texto e

na desconfiança de que a lei pode ser declarada nula, se antecipa e interpreta de

forma restrita, excluindo algumas de suas possibilidades interpretativas, trazendo à

tona a sua dimensão negativa, eis que opera a retirada de um ou mais sentidos do

texto.

Muitas têm sido as fundamentações invocadas para introduzir essa direção

jurisprudencial, que tem o propósito de evitar, por exemplo, a declaração de

nulidade da lei infraconstitucional. Outra razão fundada nesse método hermenêutico

de interpretação busca a segurança jurídica, tornando necessário que preceitos,

embora inconstitucionais, possam existir ou ter eficácia durante um prazo de

transição, levando-se em conta, por sua vez, que a invalidade das prescrições das

Constituições, ou seja, a supressão da norma por declaração de nulidade, produziria

uma situação que aos julgadores se afigura mais inconstitucional do que aquela

provocada pela conservação temporária da validade da lei declarada apenas

incompatível com a Constituição. 318 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2 ed. rev. ampl., 2 tir. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2000, p. 266.

142

Dessa forma, é admissível que o Tribunal censure determinada interpretação

por considerá-Ia inconstitucional. Isto resultaria, porém, na proximidade entre a

declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto e a interpretação

conforme à Constituição. Apesar disso, a semelhança de efeitos dos dois

instrumentos não altera a fundamental diferença existente entre eles, que será

melhor analisado no item seguinte.

Assim, sempre que uma lei for declarada inconstitucional, tendo a sua nulidade

pronunciada, não mais pode ser aplicada. Uma exceção a isso pode ser verificada

quando a retirada da lei inconstitucional do ordenamento pode resultar num vácuo

normativo, sendo que, para tanto, a legislação brasileira específica prevê o que

segue:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado319.

Conforme preceituado no artigo citado anteriormente, pode o Supremo

Tribunal Federal decidir por fazer uma ponderação entre o princípio da nulidade da

lei inconstitucional, de um lado, e dos postulados da segurança jurídica e do

interesse social, de outro, mas se da declaração de nulidade tiver como

conseqüência a criação de uma nova lei que não representa as aspirações do

legislador, deve essa lei ser declarada inconstitucional por inteiro.

Na dúvida, deve o juiz reconhecer a constitucionalidade da lei e em caso de

duas interpretações, deve utilizar aquela que se compatibilize com a Carta

Fundamental, sendo que, segundo Mendes320, na jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal, a interpretação conforme à Constituição conhece limites. Eles

resultam tanto da expressão literal da lei, quanto da chamada vontade do

legislador.

319 BRASIL. Casa Civil. Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999 - Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 18 de março de 2007. (anexo H) 320 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996. pp. 281-282.

143

Dessa forma, só se recomenda a interpretação conforme à Constituição

quando o texto normativo suscita distintas soluções interpretativas, devendo entre

estas eleger-se aquela que faça a norma compatibilizar-se com a Lei maior, visto

que segundo Hesse321, “[...] a dúvida é que instaura o processo interpretativo. Onde

não existem dúvidas, não se interpreta, e muitas vezes, também não é necessária a

interpretação” e é daí que se irradiou o axioma universal de que não se presume a

inconstitucionalidade; presumem-se, sim, a constitucionalidade e a legalidade que

protegem a autoridade do legislador.

Dessa forma e ainda segundo Hesse322,

a tarefa da interpretação é encontrar o resultado constitucionalmente ‘exato’ em um procedimento racional e controlável, fundamentar esse resultado racional e controlavelmente e, deste modo, criar certeza jurídica e previsibilidade – não, por exemplo, somente decidir por causa da decisão.

Assim, não se consente, em caso de dúvida, que leis nascidas, via de regra, de

procedimentos formais, legítimos e corretos, sejam inaplicadas, ignoradas ou

simplesmente invalidadas e até mesmo varridas do ordenamento, sem que se lhes

demonstre a mácula da inconstitucionalidade insanável. Dessa forma, até que se

prove a inconstitucionalidade, a vontade do legislador é presumidamente

constitucional.

De acordo com Bonavides323,

Quem caminha do princípio da presunção de constitucionalidade para o princípio da interpretação conforme à Constituição, sobe um degrau na hermenêutica constitucional; o princípio da presunção reside na esfera abstrata e é o primeiro momento na reflexão do hermeneuta; já o da interpretação se realiza noutro reino - o da concretude. Ambos, porém, são afins e se conjugam em termos de interdependência com respeito à formulação efetiva de um controle de normas constitucionais volvido para conservar a unidade do sistema jurídico e a tripartição constitucional dos poderes, designadamente no contexto da complexa e delicada relação do poder judiciário com o poder legislativo.

321HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. 20 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 53-54. 322 Ibidem, p. 55. 323 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência por uma Nova Hermenêutica por uma repolitização da legitimidade. São Paulo, SP: Malheiros Editores, 2001. p. 254.

144

Assim, o resultado da interpretação deve ser constitucionalmente conforme e

aceitável, de forma a promover o máximo equilíbrio das tensões necessárias e

imanentes entre a Constituição jurídica escrita e a realidade que pretende atingir.

Segundo Bercovici324, “a incorporação, pela doutrina, de categorias como

‘normas constitucionais programáticas’ e a valorização das questões hermenêuticas

no campo constitucional fortalecem, ainda mais, a ‘normatização’ da Teoria da

Constituição”. Por isso, o método de interpretação conforme à Constituição é, hoje,

talvez, o mais idôneo método na hermenêutica das Constituições; pelo menos o que

melhor se amolda a resolver problemas que a metodologia clássica não logrou fazer,

em razão de apoucar ou ignorar a normatividade dos princípios. Sendo assim, pode-

se arriscar em dizer que os métodos tradicionais eram os métodos da legalidade, já

o método da interpretação conforme à Constituição é o método da

constitucionalidade.

Sabe-se que a realidade se modifica com freqüência, passando a Constituição

a ser considerada por vezes como um bem não-durável, a não ser que exprima, por

meio das suas atualizações hermenêuticas, a realidade que a circunda. Assim, há

de se concluir que a interpretação conforme à Constituição apresenta-se como

elemento da força normativa da Constituição, onde impera a função da jurisdição de

garantir as conquistas e não de renunciar a elas, de forma que toda norma deva ser

interpretada da forma mais próxima ao que preceitua a Constituição.

Para finalizar o presente subtítulo, pode-se afirmar que, para a Jurisdição

brasileira, principalmente no que diz respeito à jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal, ainda há muita confusão e incerteza no que diz respeito à

operacionalização da interpretação conforme à Constituição como forma

hermenêutica de controle da constitucionalidade, havendo, por vezes, comparação

desse método de interpretação com a declaração de inconstitucionalidade parcial

sem redução de texto; mesmo que sejam modalidades extremamente diferentes,

324 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, C. P. et. al. Teoria da Constituição: estudo sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 109.

145

ainda há a dupla e, por vezes, simultânea aplicabilidade, conforme veremos no título

que segue e nas decisões do Supremo Tribunal Federal que serão transcritas para o

estudo em questão.

3.2 Interpretação conforme à Constituição versus de claração de

nulidade/inconstitucionalidade parcial sem redução de texto e o

posicionamento do Supremo Tribunal Federal frente a o controle de

constitucionalidade

Da mesma forma que a interpretação conforme à Constituição origina da

jurisprudência, a declaração de nulidade parcial sem redução do texto também tem

seu nascedouro na prática da Corte Constitucional alemã, sendo que, no Brasil,

encontram-se identificadas nas decisões do Supremo Tribunal Federal. Assim,

alguns juristas da Suprema Corte brasileira, por vezes, comparam ou até mesmo

entendem que a interpretação conforme à Constituição é o mesmo que a declaração

de nulidade/inconstitucionalidade parcial sem redução do texto. Isso ocorre, visto

que na medida em que se restringem as possibilidades de interpretação, reconhece-

se a validade da lei com a exclusão da interpretação considerada inconstitucional, o

que acaba gerando a permanência da lei no ordenamento jurídico, evitando-se um

suposto vazio normativo.

Conforme Leal325,

Da mesma forma que ocorre com a interpretação conforme à Constituição, também a nulidade parcial sem redução de texto configura uma criação notadamente jurisprudencial, empregada como recurso hermenêutico que, além de buscar assegurar a constitucionalidade dos dispositivos normativos elaborados e submetidos ao seu controle, tem como principal fundamento a tentativa de se "salvar" o texto normativo, preservando, assim, a produção legislativa.

325 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Interpretação conforme à Constituição X nulidade parcial sem redução de texto: semelhanças, diferenças e reflexão sobre sua operacionalização pelo Supremo Tribunal Federal. In: LEAL, R. G.; REIS, J.R. Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.p. 1568. t. 6.

146

Assim, embora tenham certas semelhanças, tais mecanismos possuem

peculiaridades próprias, conforme Amaral Júnior326 nos expõe a seguir:

na declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto há efetivo juízo de desvalor da norma, surgindo a quaestio juris incidentalmente em um órgão fracionário de Tribunal, o incidente deverá ser processado por seu Plenário ou Órgão Especial. Por sua vez, a interpretação conforme à Constituição, por ser técnica hermenêutica que visa à preservação do texto inquinado, pode e deve ser procedida por todo e qualquer juízo, monocrático ou colegiado, não necessitando, nesse último caso, de provocação do Plenário.

No entanto, a declaração de nulidade parcial sem redução de texto e a

interpretação conforme à Constituição não se confundem, eis que,

[...] a identificação entre a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto e a interpretação conforme à Constituição somente seria possível se se entendesse que a interpretação conforme à Constituição não é apenas uma regra normal de hermenêutica, mas modalidade específica de decisão.327

Com extrema clareza, Mendes328 assim trata a distinção:

Ainda que se não possa negar a semelhança dessas categorias e a proximidade do resultado prático de sua utilização, é certo que, enquanto, na interpretação conforme à Constituição, se tem, dogmaticamente, a declaração de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão judicial, constata-se, na declaração de nulidade sem redução de texto, a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinadas hipóteses de aplicação (Anwendungsfälle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal.

Há de se concluir, por conseguinte, que enquanto a interpretação conforme à

Constituição se apresenta como instrumento hermenêutico de decisão e impõe a

improcedência da ação declaratória de inconstitucionalidade, eis que a norma

permanece no ordenamento jurídico com a interpretação compatível com a

Constituição que é dada pelo Tribunal, a declaração de

nulidade/inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, por vezes, se

caracteriza pela exclusão de determinada possibilidade interpretativa de parte do

texto que seria inconstitucional, sendo que a lei continua a viger sem qualquer 326 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello. Da necessária distinção entre a interpretação conforme à Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto. Disponível em: <http://www.trlex. com.br/resenha/levi/interp.htm>. Acesso em: 10 de julho de 2001. p. 02 327 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 237. 328 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 286.

147

alteração da expressão literal do texto, mas com a supressão de alguma expressão

interpretativas que possam torná-la inconstitucional.

Dessa forma, enquanto que na interpretação conforme à Constituição temos a

adição de sentido à lei, ou seja, encontramos um sentido legítimo e constitucional

para ela (ação positiva), na declaração de nulidade parcial sem redução de texto

temos a retirada de um sentido ao texto legal, para que a norma infraconstitucional

não seja declarada inconstitucional (ação negativa).

Nota-se, por conseguinte, uma certa similaridade entre os dois institutos até

mesmo na legislação pátria, quando, no art. 28, parágrafo único, da Lei 9.868/99,

traz-se tanto a interpretação conforme à Constituição quanto a declaração de

nulidade parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto no mesmo artigo e

sinalizando a mesma aplicação:

Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acórdão. Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme à Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.329

Para Leal330, contudo, por mais que o resultado nos dois casos seja próximo -

preservação da lei e utilização da interpretação como mecanismo para se alcançar a

sua conformidade com a Constituição - os seus pressupostos partem de lógicas

exatamente inversas.

Assim, em ambos os casos há a intenção de correção em relação ao sentido

da norma, sendo que, numa, busca-se, dentre as várias interpretações, uma que se

compatibilize com a Carta Fundamental, enquanto que, na outra, há uma

329 BRASIL. Casa Civil. Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999 - Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 18 de março de 2007. (anexo H) 330 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Interpretação conforme à Constituição X nulidade parcial sem redução de texto: semelhanças, diferenças e reflexão sobre sua operacionalização pelo Supremo Tribunal Federal. In: LEAL, R. G.; REIS, J.R. Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.p. 1570. t. 6.

148

manifestação clara de inconstitucionalidade acobertada pela via interpretativa e por

uma declaração de nulidade parcial sem redução de texto.

Tem-se, dessa forma que, os eventuais efeitos da inconstitucionalidade de uma

lei não precisa, necessariamente, ser tão radical, eis que, por meio dos instrumentos

hermenêuticos, é possível preservar-se a sua eficácia, mesmo que parcial, o que,

por vezes, pode vir a ser considerado uma afronta ao princípio da separação dos

poderes, eis que o Poder Judiciário acaba por fazer as vezes de legislador positivo,

criando, por meio da interpretação, uma nova roupagem para a lei.

Por via de regra, o fundamento para a nulidade parcial sem redução de texto

ou declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto baseia-se na

opinião de que a lei que perdurou por anos não pode ser, simplesmente, arrancada

do mundo jurídico, sem que se faça a ponderação de sua retroação, visto que deve

haver uma tentativa de salvamento da mesma, para que não se crie uma espécie de

insegurança jurídica e instabilidade do Direito e da sua própria função.

Por tudo até aqui exposto, pode-se dizer que a interpretação conforme à

Constituição, portanto, existe sempre que determinada disposição legal oferece

diferentes possibilidades interpretativas, sendo que algumas delas são, inclusive,

incompatíveis com a própria Constituição. Implica, necessariamente, em dizer que

se excluem as possibilidades de interpretação consideradas inconstitucionais.

Seguindo, Suxberger refere que331, pelo princípio da prevalência da

Constituição entende-se

que a única possibilidade de escolha viável seria aquela que não fosse contrária ao texto ou ao programa da norma ou normas constitucionais. O princípio da conservação das normas, por sua vez, considera que uma dada norma, suscetível de ser interpretada conforme à Constituição, não deve ser declarada inconstitucional. Já o princípio da exclusão da interpretação conforme à Constituição, mas contra legem, impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme à Constituição, mesmo que por meio desta consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional (tais como as leis ordinárias) e as normas constitucionais.

331 SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. Interpretação conforme à Constituição. Disponível em: <http://www.geocities.com/Athens/ Parthenon/3313/artigo53.html>. Acesso em: 07 de julho de 2001. p. 2-3.

149

Na Alemanha, berço do princípio da interpretação conforme à Constituição

brasileira, não há identificação desse instrumento de interpretação com a da

declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto332. Já no Brasil

observa-se, principalmente no que diz respeito à jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal, que as técnicas de interpretação sofrem um continuado processo de

confusão, pois mesmo que não se equivalham, o Supremo Tribunal Federal, por

vezes, assim interpreta. Um exemplo disso é o trecho que se transcreve da Medida

Cautelar da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.o 1620 DF, de 16 de junho de

1997, que segue dispõe:

Ementa: Universidade pública; regime de pessoal: peculiaridades a considerar no estatuto jurídico das universidades: art. 54 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação: argüição de inconstitucionalidade fundada no art. 39 CF: suspensão cautelar sem redução de texto com interpretação conforme à Constituição do dispositivo impugnado e deferiu liminar. 333

Na presente decisão, está em discussão o art. 54 da lei 9.394/96, Lei de

Diretrizes e Bases da Educação, em que há a previsão de regime jurídico

diferenciado para os servidores de universidade mantida com recursos públicos e os

demais servidores públicos, incluindo-se, aí, o magistério público. Em decorrência do

artigo 54 dessa lei ordinária, infringi-se o art. 39, caput, da Constituição Federativa

do Brasil, que determina regime jurídico único para todos os servidores da

administração pública direta, bem como o art. 206, inciso V, que garante o regime

jurídico único do magistério público.

Dessa forma, por mais que se trate de uma decisão que deve ir de encontro

com a declaração de inconstitucionalidade, eis a sua incompatibilidade com ambos

os artigos da Constituição Pátria, surgindo dessa legislação ordinária outro regime

jurídico, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a inconstitucionalidade que

residia na lei deveria ser aplicada apenas aos demais servidores públicos da

universidade federal, e não em relação aos docentes, visto que a esses deveria ser

332 Apropria-se de tal posicionamento de acordo com algumas leituras, podendo-se apropriar do entendimento de BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. 333 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1620 DF, julgado em 19/06/1997. Ministro Sepúlveda Pertence (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 20 de fevereiro de 2007. (anexo I)

150

utilizada a interpretação conforme à Constituição, eis que sua existência, encontra-

se disciplinada no art. 206, inciso V, da Constituição Federal, não precisando, assim,

ser declarada a inconstitucionalidade da lei em comento. Dessa forma, o que se tem

aqui é a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto em

relação a parte final do art. 54, da Lei 9.394/96, visto incompatibilidade com o art. 39

da Constituição federal, bem como a utilização do instrumento hermenêutico da

interpretação conforme à Constituição, no que diz respeito ao servidor (docente) em

face do que preceitua o art. 206, V, da Carta Magna.

Neste ponto, o voto do Ministro Sepúlveda Pertence foi no sentido de deferir

parcialmente o pedido de medida cautelar, para, sem redução de texto, conferir na

parte final do art. 54, da Lei 9.394/96, interpretação que somente autorize considerar

as peculiaridades do regime jurídico único do magistério.

O que se evidencia, quando da análise das decisões do Supremo Tribunal

Federal, em sede de controle de constitucionalidade, é que por muitas vezes há uma

equiparação da interpretação conforme à Constituição com a declaração de nulidade

parcial sem redução do texto, e que a diferenciação apontada pela doutrina acaba

por não lograr êxito nas decisões prolatadas, visto ser corrente a mistura e até

confusão de conceitos e decisões que dizem respeito à aplicação dos dois métodos

apresentados.334

Assim, deve-se buscar sempre a melhor interpretação possível de uma norma

infraconstitucional em relação à Constituição, chegando-se à conclusão de que uma

lei não pode ser declarada nula quando puder ser interpretada em consonância com

o texto constitucional, sendo que o Poder Judiciário, na qualidade de último

intérprete da Constituição, já que aqui prevalece o sistema jurisdicional de controle

da constitucionalidade, tem um papel extremamente importante.

334 Conforme MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 273.

151

Um exemplo prático do exposto aparece na decisão do Supremo Tribunal

Federal, quando da Ação Direta de Inconstitucionalidade que segue:

EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL. SERVIDORES PÚBLICOS. COMPUTAÇÃO E ACUMULAÇÃO DE ACRÉSCIMOS PECUNIÁRIOS, PARA FINS DE CONCESSÃO DE ACRÉSCIMOS ULTERIORES (INCISO XIV DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 131 E SEUS PARÁGRAFOS 1º E 2º DA LEI Nº 5.810, DE 24.01.1994, DO ESTADO DO PARÁ. MEDIDA CAUTELAR. 1. Estabelecem as normas impugnadas: "Art. 131 - O adicional por tempo de serviço será devido por triênios de efetivo exercício, até o máximo de 12 (doze). § 1º - Os adicionais serão calculados sobre a remuneração do cargo, nas seguintes proporções: I - aos três anos, 5%; . XII - aos trinta e seis anos, 5% - 60%. § 2º - O servidor fará jus ao adicional a partir do mês em que completar o triênio, independente de solicitação." 2. Como se vê do § 1º desse artigo, "os adicionais serão calculados sobre a remuneração do cargo" e nas proporções e progressões referidas. 3. O art. 116 da Lei dispõe que "o vencimento é a retribuição pecuniária mensal devida ao servidor, correspondente ao padrão fixado em lei. E o art. 118 que "remuneração é o vencimento acrescido das demais vantagens de caráter permanente, atribuídas pelo exercício do cargo público". 4. Sendo assim, não há dúvida de que os adicionais, por triênio de serviço, no Estado do Pará, numa progressão de 5% a 60%, cumulativamente, incidem sobre os adicionais anteriores, o que contraria o disposto no inciso XIV do art. 37 da Constituição Federal, de 5.10.1988, segundo o qual: "os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados, para fins de concessão de acréscimos ulteriores, sob o mesmo título ou idêntico fundamento". 5. Precedentes do S.T.F.: ADI 1.418, RR.EE. nºs 143.817, 168.937, 130.960 e 168.614. 6. Não há necessidade, porém, de se declarar a inconstitucion alidade do § 1º do art. 131, como se pede na inicial. Basta que se lhe dê uma interpretação conforme à Constituição Federal, excl uídas todas as demais. Ou seja, basta que se interprete tal parágr afo, como a significar que "os adicionais por tempo de serviço serão calculados sobre a remuneração do cargo", exceto sobre os adic ionais anteriores por tempo de serviço . 7. Ação Direta julgada procedente, em parte, para se atribuir, ao § 1º do art. 131 da Lei Estadual nº 5.810, de 24.01.1994, interpretação conforme à Constituição, de modo a excluir a incidência dos adicionais, por tempo de serviço, referidos no "caput", sobre adicionais anteriores, sob o mesmo título e idêntico fundamento. 8. Plenário. Decisão unânime. (Grifei)335

Observa-se, na presente decisão, um caso típico de aplicação do princípio da

interpretação conforme à Constituição quando na verdade há a ocorrência de uma

nulidade/inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, eis que a Ação Direta

de Inconstitucionalidade tinha como fim a exclusão do parágrafo primeiro do art. 131

da Lei do Estado do Pará de n.o 5.810/94, por estar em desconformidade com o art.

37, inciso XIV da Constituição Federal, que prevê o impedimento de cômputo e 335 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1586 PA, julgado em 27/02/2003. Ministro Sydney Sanches (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 01 de abril de 2007. (anexo J)

152

acúmulo de acréscimos pecuniários percebidos por servidor público para fins de

concessão de acréscimos ulteriores, sob o mesmo título ou idêntico fundamento.

Neste caso, para que não houvesse a declaração de uma inconstitucionalidade do

referido parágrafo do art. 131, decidiu o Supremo Tribunal Federal por dar

interpretação conforme à Constituição para se evitar a violação do inciso XIV, do art.

37 da Constituição, fazendo uma interpretação de forma que se entenda que os

adicionais por tempo de serviço serão calculados somente sobre a remuneração do

cargo, de modo a excluir a incidência dos adicionais anteriores por tempo de

serviço.

Como há aqui a exclusão de sentido, observa-se um caso típico de declaração

de nulidade parcial sem redução de texto, mas para que não se gerasse uma

insegurança jurídica e uma inconstitucionalidade da lei, o Supremo Tribunal Federal

decidiu por dar uma interpretação conforme à Constituição à lei ordinária,

demonstrando a fragilidade e confusão criada dentro das decisões do Supremo

Tribunal Federal.

Por conseguinte, mesmo que se observe certa semelhança entre a

interpretação conforme à Constituição e a declaração de inconstitucionalidade

parcial sem redução de texto, bem como o resultado prático de sua utilização, é

certo que, enquanto, na interpretação conforme à Constituição, se tem a declaração

de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão

judicial (aplicação hermenêutica), constata-se, na declaração de

inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, a expressa exclusão, por

inconstitucionalidade, de determinadas hipóteses de aplicação do programa

normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal (técnica de

decisão).336

Assim, segundo Mendes337,

“ [...] se se pretende realçar que determinada aplicação do texto normativo é inconstitucional, dispõe o Tribunal da declaração de

336 Conforme lição de MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 286. 337 MENDES, loc. cit.

153

inconstitucionalidade sem redução de texto, que, além de mostrar-se tecnicamente adequada para essas situações, tem a virtude de ser dotada de maior clareza e segurança jurídica expressa na parte dispositiva da decisão.

Na seqüência, pode-se dizer que a decisão proferida na Ação Direta de

Inconstitucionalidade n.o 491-3 parece indicar que o Supremo Tribunal Federal

estava disposto a afastar-se da orientação que equiparava a interpretação conforme

à Constituição à declaração de nulidade parcial sem redução de texto, passando a

deixar explícito, no caso de declaração de nulidade sem redução de texto, que

determinadas hipóteses de aplicação, constantes de programa normativo da lei, são

inconstitucionais e, por isso, nulas, conforme segue:

EMENTA. Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido de liminar. - Ocorrência, no caso, da relevância jurídica e do "periculum in mora", com relação a ambos os dispositivos impugnados. - Sucede, porém, que a inconstitucionalidade argüida quanto ao parágrafo único do artigo 86 da Constituição do Estado do Amazonas visa apenas a extensão, que ele determina, implicitamente, que se faça ao Ministério Público, do inciso V do artigo 64 da mesma Carta Magna. Implicitamente, porque essa extensão decorre dos termos "IV a XIII" que integram a remissão feita pelo primeiro desses dispositivos. - No caso, portanto, como não se pode suspender a eficácia de qualquer expressão do dispositivo impugnado, pois este não alude ao inciso V do artigo 64 senão implicitamente por meio da expressão abrangente ("IV a XIII"), impõe-se a utilização da técnica de concessão da liminar "para a suspensão da eficácia parcial do texto impugnado sem a redução de sua expressão literal", que, se feita, abarcaria normas autônomas, e, portanto, cindíveis, que não são atacadas como inconstitucionais. Pedido de liminar deferido, em parte, para suspender, "ex nunc", a eficácia do artigo 9.º da Lei n. 1946, de 14.3.90, do Estado do Amazonas, bem como para suspender, sem redução da letra de seu texto, a aplicação do parágrafo único do artigo 86 da Constituição do mesmo Estado, no que concerne a remissão ao inciso V do artigo 64 dela também constante.338

Já na decisão que rege a Ação direta de inconstitucionalidade n.o 2816 SC, de

09 de março de 2005, observa-se uma aparente inconstitucionalidade da Lei do

Estado de Santa Catarina de n.o 11.373, que rege o envio de multa e foto do

momento da infração ao condutor de veículo que tenha cometido infração de trânsito

captada por foto-sensor. Neste caso, apesar de a matéria que envolve trânsito e

transporte ser de atribuição federal, o tribunal decidiu por julgar procedente em parte

a ação, conforme à Constituição, por se enquadrar em atividade de cunho

338 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 491-3 AM, julgado em 25/10/1991. Ministro Moreira Alves (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 01 de abril de 2007. (anexo L)

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administrativo e por se aplicar apenas aos locais em que se tenha o equipamento de

foto-sensor.

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 11.373/00 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ENVIO SIMULTÂNEO, AOS INFRATORES, DE MULTA E FOTO DO MOMENTO DA INFRAÇÃO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. 1. Os Estados-membros detêm competência para a edição de leis sobre procedimentos administrativos. 2. É inconstitucional a interpretação que obriga a instalação do sistema foto-sensor em todo o território estadual. 3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado parcialmente procedente. Parte relatório. O legislador estadual, ao determinar o envio simultâneo, ao motorista infrator, da multa e da foto, captada pelos “foto-sensores”,estabelece medidas a serem tomadas pelo DETRAN/SC e pelo DER/SC. Disciplina matéria indicada no inciso XI do artigo 22 da Constituição, trânsito e transporte. A lei estadual, sem qualquer sombra de dúvida, põe-se em insuperável conflito com a competência constitucionalmente atribuída à União. Decisão : O Tribunal, por unanimidade, julgou procedente, em parte, a ação para dar interpretação conforme ao dispositivo impugnado de modo a reduzir o seu alcance às hipóteses em que houver, no local, sistema de foto-sensor.339

O mote da presente discussão centra-se na verificação de que a referida lei do

Estado de Santa Catarina apresenta uma violação do art. 22, inciso XI, da

Constituição Federal de 1988, que delega competência exclusiva à União para

legislar sobre matéria atinente a trânsito e transporte. Aqui, apesar da infringência à

Constituição, a inconstitucionalidade dessa lei foi declarada parcialmente, eis que

entenderam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por utilizar–se do princípio

da interpretação conforme à Constituição, de modo a reduzir ou abrir uma exceção a

competência do Estado em enviar ao infrator, juntamente com a multa a foto captada

por foto-sensor. Dessa forma, não estaria o Estado de todo a legislar sobre

transporte e trânsito nos locais onde há a instalação de foto-sensor (objeto da

inconstitucionalidade em discussão), mas apenas complementando a Constituição,

reduzida a sua aplicabilidade apenas para locais em que tal instrumento já estava

instalado quando da decisão. Dessa forma, novamente o Supremo Tribunal Federal

decidiu por fazer uma interpretação conforme à Constituição, eis que entendeu que

a matéria de trânsito tem peculiaridade de subdividir-se por outros ramos do direito,

339 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2816 SC, julgada em 09/03/2005. Ministro Eros Grau (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 09 de março de 2007. (anexo M)

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como é o tributário, e é neste sentido que entendem que a lei estadual não estaria

em desconformidade com a Constituição, visto que estaria atendendo a um direito

fundamental, como é o direito à informação.

Assim, em determinadas decisões do Supremo Tribunal Federal, o que se

observa é a citação da interpretação conforme à Constituição num sentido de

exclusão da abrangência ou da incidência da norma, fato que acaba por caracterizar

uma nulidade parcial sem redução de texto, mascarada na interpretação conforme,

de acordo com o que observamos na seguinte decisão:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. SERVIDOR PÚBLICO. VENCIMENTOS. REAJUSTE. RESÍDUO DE 3,17%. PARCELAMENTO. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.225-45/2001. INTERPRETAÇÃO "CONFORME", SEM REDUÇÃO DE TEXTO. O Supremo Tribunal Federal declarou, por meio de interpretação "conforme", sem redução de texto, a inconstitucionalidade parcial do art. 11 da Medida Provisória nº 2.225-45/2001. Com isso, excluiu do alcance da MP as hipóteses em que o servidor se recusasse, explícita ou implicitamente, a aceitar o parcelamento previsto no dispositivo. Agravo regimental a que se nega provimento340.

Após a exposição das divergências encontradas nas decisões do Supremo

Tribunal Federal, voltamos nossos olhares ao foco do trabalho, verificando que a

interpretação conforme à Constituição, ao excluir outra ou outras interpretações

possíveis e que levariam a resultado oposto à Constituição, funciona como um

mecanismo de controle de constitucionalidade. Significa dizer que a função

conservadora da norma no sistema de direito positivo possibilita que se realize, sem

redução do texto normativo, o controle de sua constitucionalidade.

Dessa forma, a interpretação conforme à Constituição se apresenta, no

ordenamento jurídico, como um princípio interpretativo protetor das garantias já

conquistadas, dos direitos humanos fundamentais e da supremacia da Constituição,

ao mesmo tempo em que se caracteriza como um importante mecanismo de

controle de constitucionalidade frente às leis infraconstitucionais.

340 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 399 249 - DF, julgada em 25/05/2004. Ministro Carlos Britto (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 16 de março de 2007. (anexo N)

156

Para Bonavides341,

As Constituições rígidas, sendo Constituições em sentido formal, demandam um processo especial de revisão. Esse processo lhes confere estabilidade ou rigidez bem superior àquela que as leis ordinárias desfrutam. Daqui procede pois a supremacia incontrastável da lei constitucional sobre as demais regras de direito vigente num determinado ordenamento. Compõe-se assim uma hierarquia jurídica, que se estende da norma constitucional às normas inferiores (leis, decretos-leis, regulamentos etc.), e a que corresponde por igual uma hierarquia de órgãos.

Referiu-se, durante a consecução desse trabalho, que a interpretação

conforme à Constituição pode caracterizar-se, de acordo com inúmeras concepções,

tanto como um instrumento interpretativo das leis infraconstitucionais, quanto, como

técnica de decisão e como mecanismo hermenêutico de controle da

constitucionalidade, eis que tem função primordial na mantença da lei

infraconstitucional no mundo jurídico, visando a torná-la conforme ao que determina

a Constituição pátria.

Na seqüência final desse subtítulo há de se referir, conforme Peixinho342, que

na interpretação conforme à Constituição reconhece-se a supremacia da

Constituição sobre todo o ordenamento jurídico, não só estabelecendo-se uma

hierarquia de uma lei superior sobre outra de nível inferior, como, também,

exercendo-se uma vigilância da constitucionalidade das leis.

Dessa feita, cabe, mesmo que de forma resumida, fazer referência ao controle

de constitucionalidade dentro da sua classificação clássica entre difuso e

concentrado, observando-se se o princípio em discussão tem aplicabilidade em

ambos os casos.

341 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 267. 342 PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da Constituição e os princípios fundamentais: elementos para uma hermenêutica constitucional renovada. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. pp. 108-109.

157

3.2.1 O princípio da interpretação conforme à Const ituição como mecanismo

de Controle de Constitucionalidade: difuso X concen trado

O tema da interpretação conforme à Constituição se afigura, igualmente, como

já dissemos, como um mecanismo de controle de constitucionalidade das leis

infraconstitucionais343, merecendo, por sua vez, por parte da jurisprudência, da

doutrina e da legislação, grande destaque, tendo em vista que esse princípio decorre

– e está a serviço - da supremacia da Constituição Federal. Há de se registrar,

ainda, que tal matéria encontra-se intimamente ligada aos direitos humanos

fundamentais, uma vez que também a sua realização pode se potencializada por

meio da aplicação do instituto em questão, especialmente se se considerar o fato de

que, no atual contexto democrático344, é o Judiciário o guardião último e supremo da

ordem constitucional na realização de sua efetividade.345

Segundo Barroso346,

O objeto da interpretação constitucional é a determinação dos significados das normas que integram a Constituição formal e material do Estado. Essa interpretação pode assumir duas modalidades: a) a da aplicação direta da norma constitucional, para reger uma situação jurídica – por exemplo: a aposentaria de um funcionário, o recolhimento de uma imunidade tributária, a realização de um plebiscito sobre a fusão de dois estados etc.; b) ou de uma operação de controle de constitucionalidade em que se verifica a compatibilidade de uma norma infraconstitucional com a Constituição. No primeiro caso, a norma constitucional incide como qualquer outra, e, se for instituidora de um direito subjetivo, ensejará a tutela judicial, caso não seja cumprida espontaneamente. No segundo, a norma não vai reger qualquer situação individual, não vai ser aplicada a qualquer caso concreto,

343 Entende-se que dentro das suas várias concepções, conforme já referido nos capítulos anteriores, que a interpretação conforme à Constituição caracteriza-se como instrumento hermenêutico de interpretação das leis infraconstitucionais e proteção da supremacia da Constituição, como princípio de conservação de normas, como técnica de decisão e acima de tudo como princípio de controle da constitucionalidade, eis que tem função primordial na mantença da lei infraconstitucional no mundo jurídico e conforme ao que determina a Constituição. 344 Há aqui o deslocamento do eixo de tensão para o Poder Judiciário, que acaba por ter, em certa medida “ampliadas” suas competências, quando é demandado a concretizar os direitos fundamentais e a realizar os conteúdos constitucionais previstos de forma principiológica e ampla no texto constitucional. Conforme STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002; LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição constitucional aberta. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. 345 ROSA, Eugenio. Interpretação conforme à Constituição e Controle Difuso de Constitucionalidade. In: ANDRADE, André Gustavo Corrêa de (Org.) Constitucionalização do Direito: a Constituição como locus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003.pp. 162-163. 346 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 106.

158

funcionando como mero paradigma em face do qual se vai aferir a validade formal ou material de uma lei inferior.

Dando seqüência à pesquisa, há de se referir, de acordo com Leal347, que

existem, grosso modo, dois modelos jurisdicionais distintos de aferição da

constitucionalidade: um difuso, oriundo dos países da common law, e outro

concentrado, característico dos países de tradição civilística.

De acordo com Abellán,

Es posible distinguir en principio dos grandes sistemas de justicia constitucional: el sistema de control difuso y concreto y el sistema de control concentrado y abstracto. El primero conoce su realización paradigmática en el derecho norteamericano y responde justamente a la primera realización histórica de la justicia constitucional. [...] la constitución aparece superior a las demás normas, se confia al más neutro de los poderes: el poder judicial. Es lo que se conoce como judicial review, que se configura como un control difuso y concreto para la protección de los derechos constitucionales. Difuso porque los derechos pueden ser invocados ante cualquier juez [...] y concreto porque se vincula a la resolución jurídica de un caso particular. El control concentrado y abstracto, plasmado en la Constitución austríaca de 1920 y que tras la Segunda Gran Guerra se adoptaría en Europa. Frente al modelo norteamericano, donde la garantia de la costitución (o de los derechos) se se atribuye a todos los jueces, este outro sistema de control se configura como una jurisdicción concentrada en un único órgano ad hoc (el tribunal o corte constitucional).

Assim, depreende-se que o ato normativo incompatível com a Constituição é,

em regra, nulo. Essa é a doutrina oriunda de casos inaugurais de controle de

constitucionalidade nos Estados Unidos da América, onde o mecanismo se

desenvolveu a partir de um modelo difuso, pelo qual todo juiz pode declarar a

inconstitucionalidade em caráter incidental, de qualquer ato normativo do Poder

Público, valendo a decisão somente para as partes e no processo em que a mesma

foi suscitada.348

347 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. pp. 95-96. 348 Conforme MESQUISTA, Alexandre de Carvalho. Controle difuso de constitucionalidade. In: ANDRADE, André Gustavo Corrêa de (Org.). Constitucionalização do Direito: a Constituição como locus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 97.

159

Segundo Barroso349,

no Brasil, o controle difuso vem desde a primeira Constituição republicana, e subsiste até hoje sem maiores alterações. Do juiz estadual recém-concursado até o Presidente do Supremo Tribunal Federal, todos os órgãos judiciários têm dever de recusar aplicação às leis incompatíveis com a Constituição.

Por conseqüência, é pertinente referirmos que esse controle opõe-se ao

controle concentrado de constitucionalidade, onde a função se concentra apenas em

um único órgão, sendo que, no Brasil, esse órgão é o Supremo Tribunal Federal.

O modelo adotado no Brasil, inobstante a coexistência das formas difusa e

concentrada de controle de constitucionalidade, sofreu forte influência da

experiência norte-americana350. Estabeleceu-se, então, o dogma da nulidade

absoluta da norma inconstitucional, que seria inapta para gerar efeitos válidos,

sendo que aos poucos passa-se a entender que a tese da nulidade, em termos

absolutos, sofre restrições, passando por modificações que a colocam mais de

acordo com as conseqüências advindas do controle concentrado de

constitucionalidade.

De acordo com Cittadino351:

[...] a jurisdição constitucional se traduz no controle de constitucionalidade das leis, que pode se processar através de dois critérios: o difuso, que reconhece o seu exercício a todos os componentes do Poder Judiciário, e o concentrado, deferido a um Tribunal Supremo ou uma Corte Especial. A Constituição Federal, entretanto, a despeito de ter mantido mecanismos do sistema norte-americano, consolidou um sistema misto que combina o critério de controle difuso por via incidental ou de exceção com o critério de controle concentrado por via de ação direta de inconstitucionalidade, incorporando também, a ação de inconstitucionalidade por omissão.

349 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 47. 350 De acordo com o relato de SLAIBI FILHO, Nagib. Breve histórico do controle de constitucionalidade. In: ANDRADE, André Gustavo Corrêa de (Org.). Constitucionalização do Direito: a Constituição como locus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p.49 et. seq. 351 CITTADINO, Gisele. Judicialização da Política, Constitucionalismo Democrático e Separação de Poderes. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A Democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 36.

160

Dessa forma, segundo Mendes352, “a partir da Emenda n.º 16/65 criou-se entre

nós o que temos chamado na doutrina de um modelo misto de constitucionalidade.

Uma mistura do sistema difuso com o sistema concentrado [...]”, “[...] sendo que a

predominância, na época, era pelo modelo difuso, eis que a ação direta era um

elemento exótico nesse sistema”. Já a partir da Constituição de 1988 ocorre uma

grande mudança na concepção do controle de constitucionalidade, prevalecendo o

controle concentrado.

Assim, o controle difuso de constitucionalidade foi introduzido no Brasil,

primeiramente, na Constituição Republicana do Brasil de 1891353, tem como

característica principal a possibilidade de que todos os membros do Poder Judiciário

podem deixar de aplicar a lei considerada inconstitucional, não estando esse papel

apenas a cargo do Supremo Tribunal Federal, como é no controle concentrado.

Conforme Andrade354,

No âmbito do controle difuso de constitucionalidade a interpretação conforme à Constituição se resolve simplesmente com o julgamento da causa com base na interpretação que se mostre mais congruente com a Constituição. Nessa fronteira a constitucionalidade da norma constitui questão incidental, não inserida no objeto da demanda, mas sim nas razões de decidir.

De forma exemplificativa, o controle difuso (concreto) dá-se, conforme

Bonavides355, por via de exceção e de forma incidental356, ou seja,

O controle por via de exceção, aplicado às inconstitucionalidades legislativas, ocorre unicamente dentro das seguintes circunstâncias: quando, no curso de um pleito judiciário, uma das partes levanta, em

352 MENDES, Gilmar Ferreira. Legitimidade e perspectiva do controle concentrado de constitucionalidade no Brasil. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 260-261. 353 Conforme informa MESQUISTA, Alexandre de Carvalho. Controle difuso de constitucionalidade. In: ANDRADE, André Gustavo Corrêa de (Org.). Constitucionalização do Direito: a Constituição como locus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 99. 354 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dimensões da interpretação conforme à Constituição. In: _______. (Org.) Constitucionalização do Direito: a Constituição como locus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 120. 355 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. pp. 272-273. 356 Diz-se por via incidental, pois constitui um incidente ao julgamento principal perante a autoridade judicial ou administrativa competente.

161

defesa de sua causa, a objeção de inconstitucionalidade da lei que se lhe quer aplicar. Sem o caso concreto (a lide) e sem a provocação de uma das partes, não haverá intervenção judicial, cujo julgamento só se estende às partes em juízo. A sentença que liquida a controvérsia constitucional não conduz à anulação da lei, mas tão-somente à sua não-aplicação ao caso particular, objeto da demanda. É controle por via incidental.

Mas Mesquita357 entende que o controle difuso traz um inconveniente, qual

seja:

Uma vez que se concede ao juiz singular apreciar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de um determinado texto legal, pode ocorrer que um determinado magistrado, ao decidir um caso concreto, venha a reconhecer a constitucionalidade de um dispositivo legal, enquanto que outro julgador, ao apreciar um caso semelhante em que se suscite a mesma inconstitucionalidade, tal alegação não venha a ser reconhecida.

Nesse caso observa-se que a lei que ofende a Constituição não desaparece da

ordem jurídica, podendo, ainda, ser aplicada em outro feito, a menos que o poder

competente a revogue. Aqui o julgado não ataca a lei, sendo que nada impede que

noutro processo, em casos análogos, perante o mesmo ou outro juiz, possa a

mesma lei ser aplicada. Esse método de controle de constitucionalidade dá-se,

conforme preceitua Bonavides358, “[...] por meio de recurso extraordinário ou

mandado de segurança”, sendo o mais apto para prover a defesa do cidadão contra

os atos de Poder.

A propósito, o art. 97 da Constituição Federal Brasileira de 1988, assim

assevera:

Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público.359

Dessa forma, observamos que os juízes monocráticos e tribunais estão aptos,

na via difusa e analisando o caso concreto, a declarar a inconstitucionalidade de lei

que fere o preceituado na Constituição, estabelecendo-se, desde aí, um sistema de

357 MESQUISTA, Alexandre de Carvalho. Controle difuso de constitucionalidade. In: ANDRADE, André Gustavo Corrêa de (Org.). Constitucionalização do Direito: a Constituição como locus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 99 358 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. 293. 359 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2004. p. 69.

162

controle que consagra a via de exceção, de modo que todo tribunal, federal ou

estadual, não importa a sua natureza ou grau hierárquico, poderá exercitar esse

controle, sentenciando numa demanda a inconstitucionalidade da lei. Assim, por se

tratar de atribuição inerente ao Judiciário, qualquer juiz ou tribunal, nas situações

concretas que lhe são atribuídas, tem o dever de deixar de aplicar o ato legislativo

conflitante com a Constituição.

Há de se referir, ainda, eis que diz respeito ao seu surgimento, que a base

jurisprudencial desse controle principia na decisão do caso Marbury versus

Madison360, com o célebre raciocínio do juiz Marshall sobre a natureza das

Constituições escritas. Sustentava ele a irrefutável tese da supremacia da lei

constitucional sobre a lei ordinária, ao declarar, na espécie julgada, que todo ato do

Congresso, se contrário à Constituição Federal, deveria ser tido por nulo, inválido e

ineficaz.

Celso Ribeiro Bastos361 destaca os pontos principais da doutrina de Marshall:

Os pontos capitais dessa doutrina são: sendo a lei inconstitucional nula, a ninguém obriga, e muito menos vincula o Poder Judiciário a sua aplicação; por outro lado, diante de um conflito entre a lei ordinária e a Constituição, ao Poder Judiciário incumbe inelutavelmente preferir uma em desfavor de outra. Diante de tal dilema, esposa a teoria que inevitavelmente deve ser dada a Lei Constitucional, que é superior a qualquer outro ato praticado sob sua vigência.

Já no controle da constitucionalidade por via de ação (abstrato) ou concentrado

foi adotado pela primeira vez na Constituição da Áustria , de 1920, e aperfeiçoado

em 1929362. Aqui, uma vez declarada a inconstitucionalidade da lei, essa é removida

da ordem jurídica por incompatibilidade.

360 Conforme Barroso, essa foi a primeira decisão na qual a Suprema Corte afirmou seu poder de exercer o controle de constitucionalidade, negando aplicação a leis que, de acordo com sua interpretação, fossem inconstitucionais. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 05. 361 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998. p.322. 362 Conforme BARROSO, op.cit. p. 47.

163

Conforme Bonavides363:

O sistema de controle por via de ação permite o controle da norma in abstracto por meio de uma ação de inconstitucionalidade prevista formalmente no texto constitucional. Trata-se, como se vê, ao contrário da via de exceção, de um controle direto. Nesse caso, impugna-se perante determinado tribunal uma lei, que poderá perder sua validade constitucional e conseqüentemente ser anulada erga omnes (com relação a todos).

Nesse sentido e para reafirmar o dito anteriormente, apresenta-se uma decisão

do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle de concentrado (abstrato) de

constitucionalidade, que traz na própria ementa, a aplicação para todos do decidido,

conforme segue:

EMENTA: RECLAMAÇÃO - ALEGAÇÃO DE DESRESPEITO A ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL RESULTANTE DE JULGAMENTO PROFERIDO EM SEDE DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO - INOCORRÊNCIA - SEQÜESTRO DE RENDAS PÚBLICAS LEGITIMAMENTE EFETIVADO - MEDIDA CONSTRITIVA EXTRAORDINÁRIA JUSTIFICADA, NO CASO, PELA INVERSÃO DA ORDEM DE PRECEDÊNCIA DE APRESENTAÇÃO E DE PAGAMENTO DE DETERMINADO PRECATÓRIO - IRRELEVÂNCIA DE A PRETERIÇÃO DA ORDEM CRONOLÓGICA, QUE INDEVIDAMENTE BENEFICIOU CREDOR MAIS RECENTE, DECORRER DA CELEBRAÇÃO, POR ESTE, DE ACORDO MAIS FAVORÁVEL AO PODER PÚBLICO - NECESSIDADE DE A ORDEM DE PRECEDÊNCIA SER RIGIDAMENTE RESPEITADA PELO PODER PÚBLICO - SEQÜESTRABILIDADE, NA HIPÓTESE DE INOBSERVÂNCIA DESSA ORDEM CRONOLÓGICA, DOS VALORES INDEVIDAMENTE PAGOS OU, ATÉ MESMO, DAS PRÓPRIAS RENDAS PÚBLICAS - RECURSO IMPROVIDO. EFICÁCIA VINCULANTE E FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO ART. 28 DA LEI Nº 9.868/99. - As decisões consubstanciadoras de declaração de consti tucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive aquelas que importem em interpretação conforme à Constituição e em declaraç ão parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, quando proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de fiscalização n ormativa abstrata, revestem-se de eficácia contra todos ("er ga omnes") e possuem efeito vinculante em relação a todos os mag istrados e Tribunais, bem assim em face da Administração Públi ca federal, estadual, distrital e municipal, impondo-se, em con seqüência, à necessária observância por tais órgãos estatais, qu e deverão adequar-se, por isso mesmo, em seus pronunciamentos , ao que a Suprema Corte, em manifestação subordinante, houver decidido, seja no âmbito da ação direta de inconstitucionalidade, seja no da ação declaratória de constitucionalidade, a propósito da validade ou da invalidade jurídico-constitucional de determinada lei ou ato normativo. Precedente.(Grifei)364

363 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 277. 364 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 2143 SP, julgada em 12/03/2003. Ministro Celso de Mello (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 18 de março de 2007. (anexo O)

164

Regressando um pouco no tempo, lembra Bonavides365, “ [...] que durante a

Constituição brasileira de 1946, a lei 2271, de 22.07.1954, disciplinou essa forma de

controle de constitucionalidade”, sendo que daí resulta a criação de um novo

instrumento processual, qual seja, a Ação Direta de Declaração de

Inconstitucionalidade, que foi substituída, posteriormente, por força do art. 103 da

Constituição Federal de 1988, sendo, anos depois, regulamentada pela Lei 9.868, de

10 de novembro de 1999366.

Assim, levando-se em consideração a supremacia367 da Constituição, as leis

que forem consideradas contrárias à Lei Fundamental não podem permanecer no

ordenamento, eis que contrárias ao texto da lei Maior.

Conclusivamente, há de se frisar que, no Brasil, adota-se um sistema eclético,

em que se utiliza tanto o controle difuso como o concentrado de constitucionalidade,

mas ambos são aplicados de forma diferente, ou seja, enquanto que o controle

difuso se dá pela via incidental ao julgamento principal, onde o juiz deixa de aplicar a

lei por ser inconstitucional e seus efeitos apenas atingem as partes da discussão, o

controle concentrado é feito por meio de ação específica, ou seja, por meio da Ação

Direta de Declaração de Inconstitucionalidade, julgada pelo Supremo Tribunal

Federal tendo eficácia erga omnes, ou seja, ela atinge a todos, devido ao seu

caráter abstrato.

Tem-se, conforme Leal368, “[..] em vista da Constituição vigente, um controle de

constitucionalidade jurisdicional que combina os critérios difuso e concentrado,

sendo que, em ambos os casos, compete, ao Supremo Tribunal Federal, em última

instância, a guarda da Constituição, [...] seja enquanto órgão específico, seja

365 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 297-298. 366BRASIL. Casa Civil. Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999 - Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 18 de março de 2007. (anexo H) 367 Supremacia aqui não é no sentido de superioridade do Poder Judiciário sobre o Poder legislativo, mas sim do povo sobre o texto legal, sendo que ao observa-se que determinada lei ordinária, for oposta a vontade do povo expressa na Constituição, há de se aplicar a Constituição e eliminar-se a lei que vai contra ela. 368 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 105 e 121.

165

enquanto instância recursal”. Além disso, o Supremo Tribunal Federal tem a seu

cargo, por meio da conformação com os princípios superiores advindos da

Constituição, o poder de propiciar uma efetiva garantia dos direitos.

Ainda a autora citada anteriormente, com muita prudência, diz que,

a questão do controle de constitucionalidade das leis está intimamente ligada à concepção da Constituição enquanto norma, constituindo-se, a um só tempo, em decorrência lógica e em condição de possibilidade do acontecer da Constituição enquanto ordem vinculativa369.

Assim, tem-se que o princípio da interpretação conforme à Constituição

enquadra-se em ambos os mecanismos de controle de constitucionalidade, tanto o

concentrado quando o difuso, visto que é função primordial do Judiciário a mantença

da lei infraconstitucional em conformidade com a Constituição, fundindo-se, dessa

forma, o referido princípio com o controle de constitucionalidade.

À guisa de encerramento desse subtítulo, fica o registro de que o Supremo

Tribunal Federal tem uma histórica afirmação formal como defensor dos direitos e

garantias fundamentais, sendo que, apesar de toda a dificuldade que enfrenta no

que diz respeito à operacionalização da ferramenta hermenêutica da interpretação

conforme à Constituição cabe a ele, notadamente, por meio de sua competência

constitucional e recursal, a proteção do ordenamento, tendo como fundamento a

manutenção da lei infraconstitucional e a preservação dos direitos e garantias

fundamentais.

369LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 111.

166

3.3 Limites versus possibilidades da Interpretação conforme à Constituição

frente aos direitos humanos fundamentais 370 – uma visão a ser alçada junto às

decisões do Supremo Tribunal Federal

Conforme referido no título anterior, no Brasil, a própria jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal admite que o princípio da interpretação conforme à

Constituição conhece limites. Esses limites resultam tanto da expressão literal da lei

quanto da vontade do legislador. Assim, a interpretação conforme à Constituição só

é admissível se não configurar violência contra a expressão literal do texto e não

alterar o significado do texto normativo, o que implicaria numa mudança na própria

concepção original do legislador, e, talvez, uma quebra do princípio constitucional da

separação dos poderes.

Resta-nos claro que o princípio da interpretação conforme à Constituição

encontra seus limites na própria literalidade da norma, ou seja, não é permitido ao

intérprete inverter o sentido das palavras nem adulterar a intenção do legislador.

370 A doutrina contemporânea já tem, de forma dominante, consolidado entendimento de que os termos “direitos humanos” e “direitos fundamentais” não devem ser usados como sinônimos e a explicação procedente para manter uma diferenciação, conforme SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos humanos fundamentais. 5. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. pp. 35-36, é a de que o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se aquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). Dessa forma, optou-se pela expressão “direitos humanos fundamentais”, visto que essa conceituação abrange, conforme Branco, “os direitos relacionados com posições básica das pessoas, inscritos em diplomas normativos de cada Estado. São direitos que vigem numa ordem jurídica concreta, [...] sendo garantidos e limitados no tempo e no espaço. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de teoria geral dos direitos fundamentais. In: BRANCO, P.G.G; COELHO, I. M; MENDES, G.F. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 125. A mesma opinião também se vê compartilhada, neste trecho, por Willis Santiago Guerra Filho: “Uma primeira dessas distinções é aquela entre “direitos fundamentais” e “direitos humanos”. De um ponto de vista histórico, ou seja, na dimensão empírica, os direitos fundamentais são, originalmente, direitos humanos. Contudo, estabelecendo um corte epistemológico, para estudar sincronicamente os direitos fundamentais, devemos distingui-los, enquanto manifestações positivas do direito, com aptidão para a produção de efeitos no plano jurídico, dos chamados direitos humanos, enquanto pautas ético-políticas, situadas em uma dimensão suprapositiva, deonticamente diversa daquela em que se situam as normas jurídicas – especialmente aquelas de direito interno. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. In: ______.(Coord.) Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 12.

167

Isso significa dizer que, na busca de se salvar a lei, não é permitido aos Tribunais

fazer uma interpretação contra legem, ou melhor, não é permitido ao Poder

Judiciário exercer a função de legislador positivo, que é competência precípua do

Poder Legislativo.

Trata-se, aqui, de uma interpretação minuciosa que fica entre dois caminhos: a

constitucionalidade ou a inconstitucionalidade. E por estar nessa linha limítrofe é que

o Poder Judiciário deve conferir, sempre que possível, à norma em exame uma

interpretação constitucional, e afastar assim os inconvenientes advindos da

declaração de inconstitucionalidade e sua conseqüente retirada do ordenamento

jurídico.

Segundo Canotilho371, há de se referir que:

O princípio da interpretação conforme à Constituição, comporta várias dimensões: (1) princípio da prevalência da constituição [...]; (2) princípio da conservação da norma [...]; (3) o princípio da exclusão da interpretação conforme à Constituição mas 'contra legem', pelo qual o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme à Constituição, mesmo que através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais. [...] a interpretação das leis em conformidade com a constituição deve afastar-se quando, em lugar do resultado querido pelo legislador, se obtém uma regulação nova e distinta, em contradição com o sentido literal ou sentido objectivo claramente recognoscível da lei (voluntas legis) ou em manifesta dessintonia com os objectivos pretendidos pelo legislado (voluntas legislatoris)372.

Gilmar Mendes373 traz ao nosso conhecimento que, na jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal, os limites à interpretação conforme à Constituição

resultam tanto da expressão literal da lei quanto da vontade (concepção original) do

legislador. Observa, no entanto, que, na prática, o Tribunal não atribui maior

significado à denominada intenção do legislador, ou evita investigá-Ia, se a

interpretação conforme à Constituição se mostra possível dentro dos limites da

expressão literal do texto.

371 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998. pp. 1189-1190. 372 Os termos citados em parentes foram incluídos por mim e não pelo autor citado, sendo que Streck, considera tal discussão ultrapassada, visto que não há parâmetros para se saber se o que mais vale é o que o legislador quis dizer quando da elaboração do texto normativo ou se é possível saber o que quer a lei ou qual é a sua vontade. Conforme STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 94. 373 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 270.

168

Conforme Almeida Júnior374,

O dever de interpretar conforme à Constituição possui, todavia, limites. Esses limites correspondem ao próprio limite da interpretação, que acaba onde começa a criação do direito. Ainda que tênue essa linha imaginária, deve-se ressaltá-la aqui pela razão de que a afirmação do critério da interpretação conforme consubstancia admitir-se mais de uma possibilidade de interpretação para uma mesma norma jurídica, mas que, por isso, demanda reforçar ainda mais a idéia de cautela na atividade interpretativa.

Seguindo, pode-se referir que, quando o intérprete está com a missão de salvar

uma lei da inconstitucionalidade, deve, também, estar atento para não ultrapassar as

limitações que toda a norma jurídica impõe àqueles que buscam a sua revelação.

Assim, não pode o intérprete lançar mão do princípio da interpretação conforme à

Constituição para simplesmente salvar a lei da declaração de inconstitucionalidade,

infringindo o princípio da separação funcional dos poderes, ou seja, exercendo-se

uma função típica do legislador.

Assim sendo,

La función del Juez constitucional no es sustituir al Parlamento, que goza de una innegable liberdad política; no es, por tanto, la de fijar la menor ley desde la perspectiva constitucional, sino tan solo eliminar aquellas que resulten intolerables, y de ahí su caracterización como legislador negativo. Por ello, en su tarea de controlar la constitucionalidad de la ley, el Juez no debe entrar a valorar los móviles políticos que inpulsaron al legislador, y mucho menos sugerir o directamente imponer a este uma opción política determinada. En pocas palabras, el Tribunal constitucional no debe influir en la dirección política del país.375

Assim, a exemplo do Tribunal Constitucional alemão, o Tribunal Federal

brasileiro, nas palavras de Almeida Júnior376, deve definir dois limites que impedem

a utilização da interpretação conforme à Constituição, quais sejam:

a) um limite literal: deve o julgador cingir-se ao sentido literal da lei, não sendo lícito tentar, de forma artificiosa, despojá-Ia de seu conteúdo normativo;

374 ALMEIDA JÚNIOR, Fernando Osório de. Interpretação conforme à Constituição e direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002. p. 27. 375 ABELLÁN, Marina Gascón. Los límites de la justicia constitucional: el tribunal constitucional entre jurisdicción y legislación. In: LAPORTA, Francisco (Org.) Constitución: problemas filosóficos. Madrid, 2003. p. 171. 376 ALMEIDA JÚNIOR, Fernando Osório de. Interpretação conforme à Constituição e direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002. p. 45.

169

b) um limite teleológico: a lei não pode ser modificada de forma a se violar, em pontos essenciais, a sua finalidade.

Observa-se por essa limitação literal, que deve o intérprete buscar o uso da

linguagem ao longo do tempo, indo desde o surgimento da lei até um dado momento

posterior, em que se tenha um ou mais sentidos diferentes ao original, mas

condizentes ao momento em que determinada lei vai ser aplicada, levando-se em

consideração a sua supremacia e, mais importante, ainda, a preservação e

satisfação dos Direitos Humanos Fundamentais.

3.3.1 Como garantir os direitos humanos fundamentai s por meio da

interpretação conforme à Constituição?

Dando seqüência à pesquisa, há de se lembrar que, com a Promulgação da

Constituição cidadã377 de 1988, pela primeira vez na história brasileira definiram-se

os objetivos fundamentais do Estado e, ao fazê-Io, orientaram-se a compreensão e a

interpretação do ordenamento constitucional pelo critério do sistema de direitos

fundamentais. Em outras palavras, observa-se, por meio desse sistema de direitos

constitucionais, um valor essencial que dá unidade de sentido à Constituição

Federal. Espera-se, conseqüentemente, que o sistema de direitos constitucionais,

visto como expressão de uma ordem de valores, oriente a interpretação do

ordenamento constitucional em seu conjunto e por meio dos princípios que estão à

sua disposição.

Cittadino378 refere que a concretização da Constituição depende

por um lado, da participação jurídico-política de seus membros, mas, por outro lado, também depende - e fundamentalmente - da atuação efetiva dos órgãos jurisdicionais encarregados de lhe garantir eficácia. Apenas assim uma constituição se realiza. Em face do carácter aberto, indeterminado e polissêmico das normas

377 Em 5 de outubro de 1988, em discurso proferido no Congresso Nacional, por ocasião da promulgação da Constituição Federal, o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte, assim qualificou a nova Constituição, buscando precisamente ressaltar seu amplo sistema de direitos e garantias individuais e coletivas. 378 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 2 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000. p. 24.

170

constitucionais. torna-se necessário que, a diferentes níveis de realização ou de concretização [...] se aproxime a norma Constitucional da realidade. Em outras palavras, a tarefa de realização ou concretização constitucional, [...] supõe necessariamente um trabalho de explicitação do sentido das normas da constituição, ou seja, uma tarefa interpretativa que, contra o positivismo, se caracterize por sua dimensão criadora.

É, portanto, pelos princípios constitucionais e pela via da participação político-

jurídica, traduzida com o alargamento do círculo de intérpretes da constituição, já

comentado em capítulo anterior, que se processa a interligação entre os direitos

fundamentais e a democracia. Em outras palavras, a abertura constitucional permite

que cidadãos, partidos políticos, associações etc., integrem o círculo de intérpretes

da constituição, democratizando o processo interpretativo - na medida em que ele se

torna aberto e público - e, ao mesmo tempo, concretizador da constituição e dos

direitos humanos fundamentais, prerrogativa do Estado Democrático de Direito.

Assim, conforme preceitua Branco379,

[...] todas as pessoas são titulares de direitos fundamentais e que a qualidade de ser humano constitui condição suficiente para a titularidade de tantos desses direitos. Alguns direitos fundamentais específicos, porém, não se ligam a toda e qualquer pessoa. Na lista brasileira dos direitos fundamentais há direitos de todos os homens – como o direito à vida -, mas há também posições que não interessam a todos os indivíduos, referindo-se apenas a alguns – os trabalhadores, por exemplo.

Continuando, Cittadino380 refere que:

a dignidade humana, [...] integra os princípios constitucionais da Constituição e se estes funcionam como critério de interpretação e integração de todo o ordenamento supremo, resulta daí que a concretização dos direitos fundamentais é certamente uma das valorações políticas fundamentais acolhidas pelo legislador constituinte.

Dessa forma, é possível concluir que os direitos humanos fundamentais além

de formar um núcleo básico do ordenamento constitucional acabam por funcionar

como critério de interpretação que se apresenta com mais intensidade à medida que

se amplia os círculo de intérpretes da Constituição.

379 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de teoria geral dos direitos fundamentais. In: BRANCO, P.G.G; COELHO, I. M; MENDES, G.F. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 119. 380 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 2 ed. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2000. p. 32.

171

Ressalte-se, segundo Cittadino381,

que quando o constitucionalismo "comunitário" se refere à concretização da constituição, através da ampliação do círculo de seus intérpretes, busca, especialmente, garantir a efetividade do sistema de direitos constitucionalmente assegurados. E não poderia ser diferente. Se, como vimos, a dignidade humana, aqui traduzida por autonomia ética de indivíduos históricos, integra os princípios constitucionais da nossa Constituição e se estes funcionam como critério de interpretação e integração de todo o ordenamento supremo, resulta daí que a concretização dos direitos fundamentais é certamente uma das valorações políticas fundamentais acolhidas pelo legislador constituinte.

Streck, prefaciando a obra de Leal382, diz que:

O direito no Estado Democrático de Direito (EDD) passa a se constituir como um plus normativo apto a sustentar a materialidade das Constituições próprias desse novo modelo, assentado em dois pilares antiéticos aos fatores que ocasionaram as grandes guerras: o respeito à democracia e à realização dos direitos fundamentais sociais.

Assim, os direitos humanos podem ser considerados históricos e se formulam

de acordo com o momento social, político e econômico em que estão inseridos, sem

falar que alguns direitos como: liberdade, igualdade e solidariedade podem perfazer

várias dimensões383 de direitos.

Observa-se, segundo Streck e Morais384 que:

os direitos humanos, como conjunto de valores históricos básicos e fundamentais, que dizem respeito à vida digna jurídico-político-psíquico-física e afetiva dos seres e de seu habitat, tanto daqueles do presente quanto daqueles do porvir, surgem sempre como condição fundante da vida, impondo aos agentes político-jurídico-sociais a tarefa de agirem no sentido de permitir que a todos seja consignada a possibilidade de usufruí-Ios em benefício próprio e comum ao mesmo tempo. Assim como os direitos humanos se dirigem a todos, o compromisso com sua

381 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 2 ed. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2000. p. 19. 382 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como Princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. XII. 383 Fala-se aqui em dimensões e não em gerações de direitos, visto que segundo Sarlet, estes últimos estariam imprimindo a idéia de substituição gradativa de uma geração pela outra, e não de um processo cumulativo, de complementaridade, o que, efetivamente, ocorre no reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos humanos fundamentais. 5. ed. rev. atual. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 51. 384 STRECK; MORAIS. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 139.

172

concretização caracteriza tarefa de todos, em um comprometimento comum com a dignidade comum.

Conforme Dworkin385, a leitura moral da Constituição estabelece que os direitos

fundamentais devem ser interpretados como princípios morais, onde todo cidadão

deve ser tratado com igual respeito e consideração. Essa leitura moral faz-se

necessária, eis que os direitos fundamentais são quase sempre estabelecidos em

uma linguagem abstrata, carente de interpretação, seja porque é a única capaz de

solucionar corretamente conflito entre direitos.

Para Cittadino386,

é na idéia do poder comunicativo mobilizado por Habermas que ancora o conceito de ‘comunidade de intérpretes’ proposta por Häberle, especialmente porque os princípios e o sistema de direitos fundamentais abstratamente configurados na Constituição ganham densidade e corporificação apenas através de um processo hermenêutico do qual todos devem participar. Habermas reconhece que as Constituições das democracias contemporâneas exigem uma interpretação construtivista das normas e dos princípios que as integram, tanto quanto uma leitura do sistema de direitos fundamentais não mais como garantia contra intervenções indevidas, mas como fundamento que justifica pretensões e prestações positivas.

De acordo com Bonavides387,

Toda interpretação dos direitos fundamentais vincula-se, de necessidade, a uma teoria dos direitos fundamentais; esta, por sua vez, a uma teoria da Constituição, e ambas - a teoria dos direitos fundamentais e a teoria da Constituição - a uma indeclinável concepção do Estado, da Constituição e da cidadania, consubstanciando uma ideologia, sem a qual aquelas doutrinas, em seu sentido político, jurídico e social mais profundo, ficariam de todo ininteligíveis. De tal concepção brota a contextura teórica que faz a legitimidade da Constituição e dos direitos fundamentais, traduzida numa tábua de valores, os valores da ordem democrática do Estado de Direito onde jaz a eficácia das regras constitucionais e repousa a estabilidade de princípios do ordenamento jurídico, regido por uma teoria material da Constituição.

Assim, entre a interpretação da Constituição e a interpretação dos direitos

fundamentais, há apertados vínculos, servindo os princípios que regem aquela ao

385 DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Tradução de Jeferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 386 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 2 ed. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2000. p. 211-212. 387 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 534.

173

esclarecimento do significado das normas pertinentes a estes últimos. Por

conseguinte, entende-se que, aos direitos fundamentais, deve-se aplicar a chamada

“proibição de retrocesso”, que segundo Branco388 estaria identificada na “realização

do direito pelo legislador, sendo que constituiria, ela própria, uma barreira para que

a proteção atingida venha a ser desfeita sem compensações”.

Bercovici389 faz uma crítica a operacionalização à Constituição Brasileira de

1988, quando refere que:

hoje possuímos uma Teoria da Constituição de nível elevado, atualizada e comparável às melhores do meio europeu. Entretanto, esta Teoria da Constituição, talvez excessivamente preocupada com as questões da interpretação constitucional e do controle de constitucionalidade, não consegue lidar de maneira satisfatória com os problemas políticos, sociais e econômicos inerentes à nova ordem constitucional em um país periférico como o Brasil.

Por derradeiro e para o entendimento da conexão que se faz do texto que ora

se apresenta, é fundamental que refiramos que a interpretação conforme à

Constituição tem função importante na preservação das garantias constitucionais390

e, sobretudo, na proteção dos direitos humanos fundamentais, eis que, segundo

Bonavides391, “não há constitucionalismo sem direitos fundamentais. Tampouco há

direitos fundamentais sem a constitucionalidade da ordem material cujo norte leva

ao princípio da igualdade, pedestal de todos os valores sociais de justiça”.

Dessa forma, serve o princípio da interpretação conforme à Constituição como

real mecanismo de controle da constitucionalidade das leis infraconstitucionais, mas,

mais do que isso, tem por fim a proteção das garantias e dos direitos humanos

388 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de teoria geral dos direitos fundamentais. In: BRANCO, P.G.G; COELHO, I. M; MENDES, G.F. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 127. 389 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, C. P. et. al. Teoria da Constituição: estudo sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003.p. 77. 390 Garantias constitucionais se chamam, primeiramente, as defesas postas pela Constituição aos direitos do indivíduo. Consistem elas no sistema de proteção organizado pelos autores da nossa Lei Fundamental em segurança da pessoa humana, da vida humana, da liberdade humana. Nele se contempla a igualdade legal, a consciência, a palavra, o ensino, a associação, o domicílio, a propriedade. Tudo o que a essa região toca, se inscreve sob o domínio das garantias constitucionais, no sentido mais ordinário desta locução. Conforme BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 591. 391 Ibidem, p. 554.

174

fundamentais já conquistados, preservando a supremacia da Constituição e as

premissas do Estado Democrático de Direito.

O que se denota, neste sentido, das decisões do Supremo Tribunal Federal, é

que, além da confusão em relação à figura da nulidade parcial sem redução e à

interpretação conforme à Constituição, conforme já analisamos em item anterior, o

que é mais preocupante é que, raramente, suas decisões são pautadas ou

direcionadas com fundamento em questões que se relacionam com os direitos

fundamentais, sendo que, na maioria das vezes, sua aplicação envolve questões

meramente ordinárias.392

Assim sendo, coube nesse trabalho, a realização de uma garimpagem junto às

decisões do Supremo Tribunal Federal no sentido de se encontrar algum amparo em

suas decisões que apresentasse uma orientação pautada na realização dos direitos

humanos fundamentais protegidos pela ingerência da interpretação conforme à

Constituição.

A seguir faz-se a exposição e comentário sobre a única decisão encontrada e

que leva em consideração o princípio em discussão e que, apesar de ainda fazer

confusão com a declaração de inconstitucionalidade/nulidade parcial sem redução

de texto, após muita relutância, traz como resultado da decisão a proteção de um

direito humano fundamental de segunda dimensão393, qual seja, o direito à

educação, conforme segue:

392 No levantamento realizado no sítio do Supremo Tribunal Federal, foram encontrados 254 registros sobre a busca da expressão “interpretação conforme”; desse número registraram-se 197 documentos com a expressão “interpretação conforme e Constituição”, sendo que, desses, cerca de 40% dizem respeito realmente ao princípio da interpretação conforme à Constituição; desse percentual, ainda, 50%, equivocadamente, correspondendo ao instrumento da nulidade/inconstitucionalidade parcial sem redução de texto. Observou-se, também, que, quando da busca pela expressão “direitos fundamentais”, encontraram-se apénas 87 registros; desse número, 49 decisões apenas nominavam A Convenção Internacional de Direitos Humanos Fundamentais, sendo que apenas 01 registro trouxe a aplicabilidade do princípio da interpretação conforme à Constituição frente aos direitos fundamentais, qual seja, o direito à educação, objeto do estudo que segue. 393 De acordo com REIS, Jorge Renato dos. A concretização e a efetivação dos direitos fundamentais no direito privado. In: LEAL, R. G.; REIS, J.R.(Org.) Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. p. 996. t. 04. Os direitos fundamentais de segunda dimensão “são os direitos econômicos, sociais e culturais, que outorgam ao indivíduo direitos a prestações sociais estatais, como assistência social, saúde, educação, trabalho, etc.“.

175

EMENTA. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO – POSSIBILIDADE JURÍDICA. É possível, juridicamente, formular-se, em inicial de ação direta de inconstitucionalidade, pedido de interpretação conforme, ante enfoque diverso que se mostre conflitante com a Carta Federal. Envolvimento, no caso, de reconhecimento de inconstitucionalidade. UNIVERSIDADE – TRANSFERÊNCIA OBRIGATÓRIA DE ALUNO – LEI Nº 9.536/97. A constitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 9.536/97, viabilizador da transferência de alunos, pressupõe a observância da natureza jurídica do estabelecimento educacional de origem, a congeneridade das instituições envolvidas – de privada para privada, de pública para pública –, mostrando-se inconstitucional interpretação que resulte na mesclagem – de privada para pública. ACÓRDÃO. Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade, em julgar procedente, em parte, a ação para, sem redução do texto do artigo 1º da Lei nº 9.536, de 1 1 de dezembro de 1997, assentar a inconstitucionalidade no que se lh e empreste o alcance de permitir a mudança, nele disciplinada, d e instituição particular para pública, encerrando a cláusula “ent re instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino” a observân cia da natureza privada ou pública daquela de origem, viabilizada a matrícula na congênere. Em síntese, dar-se-á a matrícula, segundo o artigo 1º da Lei nº 9.536/97, em instituição privada se assim o for a de origem e em pública se o servidor ou o dependente for egresso de instituição pública, tudo nos termos do voto do relator.394 (Grifei)

Depreende-se, do texto transcrito acima, que tal ação direta de

inconstitucionalidade foi dirigida ao art. 1º da Lei 9.536/97395, que foi criada para

regulamentar a prerrogativa do parágrafo único do art. 49, da Lei 9.394/96, Lei de

Diretrizes e Bases da Educação396, que determina que as transferências ex officio

dar-se-ão na forma da lei, conforme segue:

Art. 1º A transferência ex officio a que se refere o parágrafo único do art. 49 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, será efetivada, entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer época do ano e independente da existência de vaga, quando se tratar de servidor público federal civil ou militar estudante, ou seu dependente estudante, se requerida em razão de comprovada remoção ou transferência de ofício, que acarrete mudança de domicílio para o município onde se situa a instituição recebedora ou para a localidade mais próxima desta.

394 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3324 DF, julgada em 16/12/2004. Ministro Marco Aurélio Mello (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 18 de março de 2007. (anexo P) 395 BRASIL. Senado Federal. Lei 9.536, de 11 de dezembro de 1997 - Regulamenta o parágrafo único do art. 49 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (transferência de alunos de curso superior). Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 14 de abril de 2007. (Anexo Q) 396 BRASIL. Senado Federal. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 14 de abril de 2007. (anexo R)

176

Tal artigo foi considerado inconstitucional perante o Supremo Tribunal

Federal, considerando-se ferir os princípios da isonomia e da

proporcionalidade, bem como da igualdade de acesso aos níveis mais

elevados de ensino, incursos nos artigos 5º, caput e inciso I; art. 37, caput;

art. 206, incisos I a VII e art. 208, inciso V, da Constituição brasileira de 1988.

Ter-se-ia, dessa forma, por meio da utilização do art. 1º da Lei 9.536/97, uma

violência ao princípio da igualdade de acesso ao ensino, previsto no artigo 206,

inciso I, da Constituição Federal, bem como no que diz respeito ao critério de

entrada no ensino superior por meio de critério de mérito por seleção, via vestibular,

tal como previsto no inciso V, do artigo 206, da Constituição Federal, prevalecendo

os princípios da impessoalidade e da moralidade, consagrados no artigo 37 do

citado diploma.

Não está em discussão o direito que tem o militar, em sendo transferido para

outra unidade da federação e por interesse dessa, em ter seu direito fundamental à

educação garantido por meio de transferência para outra instituição de mesmas

características da originária. O que se está a discutir diz respeito à garantia de

transferência de instituição privada para instituição pública, eis que configura-se,

aqui, um privilégio para determinado grupo social, prejudicando todo o resto da

população que passa por processo seletivo vestibular para ingressar em uma

universidade com recursos públicos.

Estar-se-ia, dessa forma, obstacularizando o acesso do restante da sociedade

à educação, visto que é sabido que as Universidades Federais recebem recursos

em crédito, tendo vagas limitadas de entradas todos os anos, o que resultaria, como

já ocorreu com a Universidade de Brasília – UNB, que em 2003 e 2004, chegou-se

ao ponto de cogitar a não oferta de vestibular para os cursos de Direito e de

Medicina no vestibular, eis que esses já perfaziriam 50 vagas se a Universidade

tivesse que receber, obrigatoriamente, por conta da lei em discussão e por parecer

da Advocacia-Geral da União, 111 e 79 alunos respectivamente, sendo que desses

últimos, 50 deles originários de instituições particulares.

177

Observa-se por meio da situação fática apontada, que o privilégio da

transferência nesses casos acabava por configurar-se como regra, ficando a

entrada por mérito como exceção, burlando-se, dessa forma, a igualdade

consagrada na Constituição.

Conclui-se, dessa maneira, pela necessidade de o art. 1º da Lei 9.536/97

ser interpretado de forma harmônica com os mandamentos constitucionais,

colocando-se, para a transferência de ofício, o critério da congeneridade, ou

seja, são possíveis tais transferências, desde que de Universidade privada

para privada e de pública para pública.

Em relação a tal situação, a Advocacia-Geral da União emitiu o parecer

AGU/RA-02/2004, assim sintetizado, conforme decisão em análise:

I – O servidor militar transferido ex officio, bem como seus dependentes, têm direito à matrícula em estabelecimento de ensino superior público, mesmo na hipótese de ter ingressado originariamente em faculdade particular, ainda que no novo domicílio exista instituição de ensino privado. II – O servidor militar e seus dependentes estão sujeitos exclusivamente à disciplina da Lei nº 9.536, de 11 de dezembro de 1997, a qual não faz referência ao termo “congênere”. III – O termo “congênere”, previsto no art. 99 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, não deve ser aplicado nas hipóteses em que o servidor militar é transferido, consoante a jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça.397

Baseando-se no parecer do Advogado-Geral da União, contemplou-se a

transferência de Universidade privada para pública, surgindo, dessa maneira,

conflito do texto em exame com a Lei Maior, ocorrendo o favorecimento de

servidores militares (espécie de ação afirmativa) em detrimento do grande todo que

deveria ingressar por meio de vestibular. Dessa forma, entenderam os Ministros que

participaram da referida decisão que ao persistir-se no que dispõe o art. 1.º da Lei

9.536/97, a razão do texto da lei deixaria de existir, eis que sua finalidade era

apenas a de preservar a continuidade dos estudos do servidor transferido.

397 Citado na decisão do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3324. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3324 DF, julgada em 16/12/2004. Ministro Marco Aurélio Mello (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 18 de março de 2007.p. 07. (anexo P)

178

Já o Procurador–Geral da República emitiu parecer dizendo que o art. 1.º da

Lei 9.536/97 padece de inconstitucionalidade, sendo possível dar-se procedência à

ação, dando-se interpretação conforme à Constituição, da seguinte forma:

Ação direta de inconstitucionalidade contra o art. 1º da Lei nº 9.536/97, que dispõe sobre transferências de estudantes entre instituições de ensino superior. Preliminar. Possibilidade jurídica do pedido. Interpretação conforme à Constituição. Mérito. Princípios da igualdade, proporcionalidade e autonomia universitária. A realidade do processo de transferências nas universidades. Cláusula da reserva do possível. Necessidade de se dar à norma impugnada interpretação conforme à Constituição para que as transferências obedeçam à regra da congeneridade dos estabelecimentos de ensino. 398

Dessa forma, evitando-se que tal situação ficasse sem solução, propôs o

relator da referida decisão que tal lei não fosse declarada inconstitucional, mas que

fosse dada a ela uma interpretação conforme à Constituição, eis que o direito à

educação é um direito fundamental de cunho social, cumprindo ao Estado o seu

oferecimento indistintamente a todos e em iguais condições, respeitando-se os

princípios da proporcionalidade e da isonomia, bem como o da autonomia

universitária.

Este é um típico caso em que se faz necessária uma avaliação da

proporcionalidade, no sentido de se investigar se houve ou não um excesso

legislativo.

Assim, por mais que se reconheça a necessidade dessa modalidade de

transferência, ela não pode ocorrer de forma a violar o texto constitucional, os

direitos fundamentais dos demais cidadãos e a autonomia administrativa e financeira

das universidades. Portanto, a interpretação que permite a transferência

independente do sistema de origem pode acabar por promover, de forma indireta, o

repasse de verbas públicas para o atendimento de interesses privados, uma

atividade que, além de imoral, é entendida como ilegal e inconstitucional.

398 Citado na decisão do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3324. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3324 DF, julgada em 16/12/2004. Ministro Marco Aurélio Mello (relator). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 18 de março de 2007.p. 11. (anexo P)

179

Entende-se, ao final dessa análise, que a melhor decisão foi no sentido de se

julgar parcialmente procedente a ação direta, emprestando-se ao dispositivo

impugnado interpretação conforme à Constituição, de modo a autorizar a

transferência obrigatória desde que a instituição de destino seja congênere à de

origem, utilizando-se como base os princípios da isonomia, da proporcionalidade, da

autonomia da universidade e o direito de igualdade de todos frente ao direito à

educação, direito humano fundamental social.

Assim, cabe ao Judiciário, pelo que observamos na decisão em comento, a

tarefa clássica de resguardar, em última instância, os direitos violados ou

ameaçados de violência (art. 5.º, XXXV, da Constituição Federal de 1988399), eis que

a defesa dos direitos fundamentais é da essência da sua função.

Dessa forma, há de se referir que existem normas relativas a direitos

fundamentais, que, evidentemente, não são auto-aplicáveis e que carecem de

interposição do legislador para impor efeitos, necessitando, como é o caso das

normas que dispõem de direitos fundamentais, em que se enquadra o direito à

educação em discussão e de índole social, dependem de complementação, como

disposto no art. 205400 da Constituição Pátria.

Segundo Bonavides401,

Há na Constituição normas que se interpretam e normas que se concretizam. A distinção é relevante desde o aparecimento da Nova Hermenêutica, que introduziu o conceito novo de concretização, peculiar à interpretação de boa parte da Constituição, nomeadamente dos direitos fundamentais e das cláusulas abstratas e genéricas do texto constitucional. Com respeito à hermenêutica, a dimensão objetiva e valorativa dos direitos fundamentais, seguida do reconhecimento de sua natureza principal, foi decisiva para transitar-se da hermenêutica jusprivatista, de subsunção, da metodologia dedutivista para a moderna hermenêutica juspublicística, a chamada Nova Hermenêutica, a hermenêutica constitucional, basicamente indutiva, onde se aplica com freqüência o princípio da proporcionalidade e que gera conceitos novos quais os de "concordância prática", "pré-compreensão" e "concretização".

399 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2004. p. 17. 400 Ibidem, p. 121. 401 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 543-544.

180

O conceito de concretização é surpreendente por sua importância, utilidade e

aplicabilidade na solução de questões constitucionais de direitos fundamentais e

por indicar com nitidez o traço que separa as duas hermenêuticas, sendo que

sempre estamos interpretando, mas para interpretar temos que compreender.

Assim, não basta que a Constituição consagre garantias essenciais para a

consolidação de um sistema democrático, no qual os direitos fundamentais sejam,

efetivamente, respeitados. Faz-se mister que ela logre concretizar sua eficácia. Não

parece haver dúvida de que, a despeito dos elementos culturais e históricos que

acabam por conferir especificidades a diferentes sistemas jurídicos, é certo que a

não aplicabilidade de um mecanismo de controle de constitucionalidade de normas,

como é o princípio da interpretação conforme à Constituição, retira muito da força

normativa ou vinculante da Constituição.

Não se pode negar, ademais, que a falta de um mecanismo de controle de

constitucionalidade pode ser fatal para os direitos e garantias fundamentais, que

ficariam, de fato, à mercê da vontade do legislador, eis que são exatamente a

proteção judicial e o controle de constitucionalidade que outorgam efetividade a

essas garantias e direitos.

Assim, nas palavras de Bonavides402, é possível referir que:

Os direitos fundamentais são a bússola das Constituições. A pior das inconstitucionalidades não deriva, porém, da inconstitucionalidade formal, mas da inconstitucionalidade material, deveras contumaz nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, onde as estruturas constitucionais, habitualmente instáveis e movediças, são vulneráveis aos reflexos que os fatores econômicos, políticos e financeiros sobre elas projetam. O Estado padece com relação ao controle desses fatores um déficit de soberania, tanto interna como externa, perdendo assim, em elevado grau, a sua capacidade regulativa.

Ademais, cabe ao Direito o papel de pacificador social, mas sabe-se que o

sistema jurídico não consegue se atualizar e acompanhar as transformações da

realidade, não consegue atender às novas demandas sociais, caracterizadas pela 402 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 553

181

indeterminação de sujeitos, considerados não mais apenas individualmente, mas

também coletiva e difusamente.

Diante do exposto, há de se referir que, principalmente no campo dos direitos

humanos fundamentais, um dos fundamentos do Estado Democrático do Direito, não

se logrou atingir a eficácia e consecução dos princípios hermenêuticos de

interpretação constitucional, especialmente no que diz respeito ao método

interpretativo, consubstanciado pelo princípio da interpretação conforme à

Constituição, eis que ainda há pouca aplicação e conhecimento por parte do

Supremo Tribunal Brasileiro, mas que por meio de sistemas como este, fundados na

preservação das leis infraconstitucionais e na proteção dos direitos humanos

fundamentais, conquistados durante anos de luta, talvez algum dia isso se

concretize e torne uma prática dentro do nosso Supremo Tribunal.

182

CONCLUSÃO

O presente estudo buscou analisar como a Teoria Constitucional

Contemporânea e, em especial, o Supremo Tribunal Federal brasileiro, têm se

posicionado e operacionalizado a questão do princípio da interpretação conforme à

Constituição enquanto mecanismo de controle da constitucionalidade e de

realização dos direitos fundamentais. Analisou-se, da mesma forma, os limites e

possibilidades que este recurso hermenêutico possibilita em meio à ordem

democrática na jurisdição brasileira.

Assim sendo, em primeiro lugar, fez-se um esboço do conceito de Constituição

na perspectiva da evolução do Estado, demonstrando como ela passou de mero

instrumento organizatório e assegurador das liberdades individuais, no período

liberal, para projeto civilizatório no atual Estado Democrático de Direito.

Observou-se, neste sentido, que a evolução da formação e caracterização do

Estado acabou por trazer uma legalização ou constitucionalização das relações

entre indivíduos e Estado. Sentiu-se, daí, a necessidade de se discorrer sobre as

formas que o Estado de Direito toma no decorrer da história, mais precisamente, no

que diz respeito ao Estado Moderno e à formação da Constituição na perspectiva

dessa evolução, indo do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito, para a

partir daí ter-se condições de observar a passagem do positivismo estrito para a

concepção de um Estado que valoriza a hermenêutica constitucional.

Portanto, identificou-se que a concepção de Estado Democrático de Direito

conforma um marco do constitucionalismo, em que se tem valores supremos

representados por princípios que garantem o respeito aos direitos humanos

fundamentais e que almejam a justiça social, refletindo-se na concepção de uma

Constituição advinda de um desenvolvimento cultural e político, que passa a ser a

expressão máxima dos valores de determinada comunidade, tendo uma perspectiva

viva de acordo com cada intérprete, valorizando, assim, a aplicação dos métodos

hermenêuticos.

183

Ainda na seara da constituição do Estado Democrático de Direito, foram

analisados os aspectos que envolvem o papel da hermenêutica frente à jurisdição

constitucional, visto que é no Estado Democrático de Direito que a função

hermenêutica, objeto do presente trabalho, deixa de ser apenas uma averiguação do

texto, escudada na lição clássica de Savigny, para tornar-se o motivo fecundo de

uma razão crítica, criativa, participativa e construtiva.

Assim, com base na hermenêutica, temos a passagem de um

constitucionalismo formal, de textos puramente, para um constitucionalismo material,

de realidade, sendo que é dentro dessa perspectiva democrática de direito que

vamos encontrar os diferentes aspectos hermenêuticos de valorização da

interpretação.

Dessa forma, pouco a pouco, durante a consecução da pesquisa, observou-se

que a perspectiva pós-positivista do direito acabava por influenciar a hermenêutica

constitucional, de forma a criar uma assim chamada “nova hermenêutica”, baseada

em regras e em princípios, e acima de tudo, na superação dos métodos clássicos de

interpretação, voltando-se para uma dimensão interpretativa notadamente material.

Com o intuito de denunciar a insuficiência dos métodos clássicos e formalistas

de interpretação, a presente dissertação retomou a conceituação de princípios,

dando especial ênfase aos chamados princípios instrumentais, que visam a permitir

uma máxima realização dos conteúdos constitucionais.

Denotou-se, ainda, por meio da pesquisa, que os poucos, os processos de

interpretação e de aplicação do direito devem considerar não só a validade das

normas – note-se, em sua dimensão tanto formal quanto material -, mas também a

sua adequação a um caso específico, sendo que isto se deve ao fato de que todo e

qualquer conteúdo/direito expresso na Constituição deve ser atualizado por meio da

interpretação, pois enquanto produto cultural, a Constituição precisa ser tida como

um sistema aberto, capaz de interagir com o meio no qual está inserida.

184

Conforme demonstrado ao longo do segundo capítulo, dentro dessa concepção

principiológica do direito constitucional, verifica-se o desenvolvimento dos princípios

ditos materiais, para desembocarmos, em seguida, num catálogo de princípios

chamados instrumentais e específicos da interpretação constitucional, dentre os

quais citamos: o princípio da supremacia da Constituição, o princípio da presunção

de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, o princípio da unidade

da Constituição, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o princípio da

efetividade e, por último, o princípio da interpretação conforme à Constituição, objeto

principal da presente pesquisa.

Dessa forma, ainda dentro desse tópico, fez-se uma introdução ao princípio da

interpretação conforme à Constituição, caracterizando-se-o como um instrumento

hermenêutico que tem como tarefa instrumentalizar o controle jurisdicional de

constitucionalidade, eis que sua principal função é assegurar a constitucionalidade

das normas infraconstitucionais, harmonizando-as com o texto Constitucional,

determinando que, quando o aplicador de determinado texto legal se encontrar

frente a normas de caráter plurissignificativo, deve priorizar a interpretação que

possua um sentido em conformidade com a Constituição, não devendo, é claro,

fazer o uso de uma interpretação contra legem.

Assim sendo, conclui-se que a interpretação conforme à Constituição é figura

que, de acordo com o prisma através do qual é vista, assume diferentes dimensões:

princípio hermenêutico, princípio de controle da constitucionalidade, princípio de

conservação de normas e técnica de decisão. Neste sentido, o princípio da

interpretação conforme à Constituição pode ser considerado o mais idôneo

instrumento hermenêutico das Constituições, podendo-se arriscar dizer que os

métodos tradicionais eram os métodos da legalidade, já o princípio da interpretação

conforme à Constituição é o instrumento da constitucionalidade e de garantia da

realização da Constituição

Deduz-se, dessa forma, que o princípio instrumental da interpretação conforme

à Constituição, originário da jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, se

caracteriza, principalmente, como técnica de salvamento da lei ou do ato normativo,

da mesma forma, que se enquadra como um mecanismo de controle de

185

constitucionalidade, eis que se vale dessa forma de interpretação para assegurar a

conformidade do ordenamento jurídico à Constituição, porém evitando a declaração

de nulidade de determinada lei, encontrando o limite de sua utilização nas

possibilidades hermenêuticas de extrair do texto uma significação normativa

harmônica com a Constituição.

De posse do embasamento teórico construído ao longo do trabalho, reservou-

se o último capítulo para que se pudesse adentrar, especificamente, na perspectiva

do princípio da interpretação conforme à Constituição como princípio hermenêutico e

garantidor da supremacia da Constituição, traçando-se, primeiramente, sua origem,

conceitos, características e fundamentos, para, posteriormente, proceder-se a uma

análise de sua operacionalização enquanto instrumento de controle da

constitucionalidade e realização dos direitos humanos fundamentais.

Para a concretização desse fim, fez-se uso de alguns precedentes

jurisprudenciais emanados do Supremo Tribunal Federal, que serviram de arrimo e

de subsídio à discussão. Disto decorreram algumas considerações, a serem a seguir

relacionadas.

Em primeiro lugar, restou demonstrado que, efetivamente, o Supremo Tribunal

Federal Brasileiro tem se utilizado, embora precariamente, do princípio da

interpretação conforme à Constituição em seus julgamentos, mas que na maioria

das vezes, tem tido um posicionamento um tanto quanto confuso e por vezes

discrepante, ao fazer a comparação entre o princípio hermenêutico da interpretação

conforme à Constituição e a técnica de decisão caracterizada pela declaração de

nulidade/inconstitucionalidade parcial sem redução.

Há de se referir, conclusivamente, que a confusão do Tribunal Pátrio é

tamanha, que, em determinadas decisões do Supremo Tribunal Federal, o que se

observa é a citação da interpretação conforme à Constituição, num sentido de

exclusão da abrangência ou incidência da norma, fato que acaba por caracterizar

uma nulidade parcial sem redução de texto, mascarada pela figura da interpretação

conforme.

186

Dessa forma, a interpretação conforme à Constituição pode ser considerada

um mecanismo hermenêutico de realização da supremacia da Constituição e, ainda,

em meio à ordem democrática, pode ser considerada uma importante forma de

garantia dos Direitos Humanos Fundamentais, constituindo-se em momento

privilegiado de controle da constitucionalidade. Porém há de se dizer que tal

instrumento não tem sido adequadamente operacionalizado pela jurisdição

Constitucional brasileira, principalmente pelo Supremo Tribunal Federal.

Observamos, também, que por meio do desenvolvimento do princípio da

interpretação conforme à Constituição é possível averiguarmos que existem

aspectos tanto negativos como positivos nessa aplicação, visto que ao mesmo

tempo em que possam prevalecer, no ordenamento constitucional, normas

inconstitucionais interpretadas como se constitucionais fossem, acaba por se ter o

risco de se transformar a interpretação da lei conforme à Constituição numa

interpretação da Constituição conforme a lei, visto que, o jurista, para preservar a

norma, acaba dando uma interpretação diversa para a Constituição e não uma

interpretação para a lei infraconstitucional em conformidade com a Constituição. Já

no que diz respeito ao lado positivo do método, é de se ressaltar a fidelidade que ele

transparece quanto à preservação do princípio da separação de poderes e quanto à

preservação da norma infraconstitucional no ordenamento jurídico, evitando-se um

vazio normativo e preservando a sobrevivência da lei, não lhe declarando a

nulidade.

De posse dessas premissas, percebeu-se, durante a consecução da presente

pesquisa, que, embora existam decisões do Supremo Tribunal Federal pautadas no

princípio da interpretação conforme à Constituição, observamos que raramente suas

decisões são voltadas ou servem para resolver questões que se relacionam com os

direitos fundamentais, sendo que, na maioria das vezes, elas envolvem questões

meramente ordinárias.

É bem verdade que, conforme se viu nas decisões incursas no trabalho, não

há, aparentemente, uma preocupação de nosso Tribunal Constitucional, na

fundamentação de suas decisões, em defender os propósitos da Constituição,

principalmente, aqueles relacionados com os direitos fundamentais, sendo que isto

187

fica claro ao observarmos o despreparo dos juristas em buscar diferenciar a

interpretação conforme à Constituição de outros institutos, impedindo, dessa forma,

que valores defendidos por essa carta e pelo instituto em discussão sejam perdidos

ou negligenciados.

Conclui-se, da mesma forma, que entre a interpretação da Constituição e a

interpretação dos direitos fundamentais há apertados vínculos, servindo os

princípios que regem aquela ao esclarecimento do significado das normas

pertinentes a esses direitos. Dessa maneira, serve o princípio da interpretação

conforme à Constituição como real mecanismo de controle da constitucionalidade

das leis infraconstitucionais, mas, mais do que isso, tem por fim a proteção das

garantias e dos direitos humanos fundamentais, preservando, por meio da exclusão

do vazio normativo, a supremacia da Constituição e as premissas do Estado

Democrático de Direito.

Por derradeiro, há de se concluir que o princípio interpretativo,

consubstanciado aqui pelo princípio da interpretação conforme à Constituição,

afigura-se como um real mecanismo de controle da constitucionalidade da lei

infraconstitucional, concretizando-se na segurança jurídica de interpretar conforme à

Constituição, mantendo a lei infraconstitucional no ordenamento jurídico e

garantindo, por sua vez, a supremacia da Constituição e a proteção às garantias e

direitos humanos fundamentais.

188

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202

ANEXOS

203

ANEXO A – Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção 20-4 DF, julgado em

19/05/1994. Ministro Celso de Mello (relator).

204

ANEXO B – Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade

2596 PR, julgada em 19/03/2003. Ministro Sepúlveda Pertence (relator).

205

ANEXO C – Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3046-9

SP, julgado em 15/04/2004. Ministro Sepúlveda Pertence (relator).

206

ANEXO D – Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Agravo de

Instrumento 606805 SP, julgado em 28/11/2006. Ministro Eros Grau (relator).

207

ANEXO E – Supremo Tribunal Federal. Representação 1417 DF, julgado em

09/12/1987. Ministro Moreira Alves (relator).

208

ANEXO F – Lei n.o 9.868, de 10 de novembro de 1999, que dispõe sobre o processo

e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de

constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

209

ANEXO G – Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de

Inconstitucionalidade 1620 DF, julgado em 19/06/1997. Ministro Sepúlveda Pertence

(relator).

210

ANEXO H – Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1586

PA, julgado em 27/02/2003. Ministro Sydney Sanches (relator).

211

ANEXO I – Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de

Inconstitucionalidade 491-3 AM, julgado em 25/10/1991. Ministro Moreira Alves

(relator).

212

ANEXO J – Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2816

SC, julgada em 09/03/2005. Ministro Eros Grau (relator).

213

ANEXO L – Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso

Extraordinário 399 248 - DF, julgada em 25/05/2004. Ministro Carlos Britto (relator).

214

ANEXO M – Supremo Tribunal Federal. Reclamação 2143 SP, julgada em

12/03/2003. Ministro Celso de Mello (relator).

215

ANEXO N – Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3324

DF, julgada em 16/12/2004. Ministro Marco Aurélio Mello (relator).

216

ANEXO O –Lei 9.536, de 11 de dezembro de 1997 - Regulamenta o parágrafo único

do art. 49 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (transferência de alunos de

curso superior).

217

ANEXO P – Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Estabelece as diretrizes e

bases da educação nacional.