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1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM TEOLOGIA CURSO DE BACHARELADO EM TEOLOGIA ANAIS DO SIMPÓSIO DE TEOLOGIA DA UNICAP- 2015 A Teologia na Contemporaneidade Agenda para uma Igreja em saída ISSN 2238-894X 2015

1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

MESTRADO EM TEOLOGIA

CURSO DE BACHARELADO EM TEOLOGIA

ANAIS DO SIMPÓSIO DE TEOLOGIA DA UNICAP- 2015

A Teologia na Contemporaneidade

Agenda para uma Igreja em saída

ISSN 2238-894X

2015

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Equipe de coordenação do evento:

Profa. Dra. Maria Abraão (Coordenadora)

Prof. Dr. Drance Elias da Silva

Prof. Dr. Sergio Sezino Douets Vasconcelos

ISSN 2238-894X

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SIMPÓSIO DE TEOLOGIA DA UNICAP- 2015

A Teologia na Contemporaneidade

Agenda para uma Igreja em saída

Apresentação

Aconteceu nos dias 21 e 22 de maio de 2015, o Simpósio de Teologia da

UNICAP, que teve por tema: “A Teologia na Contemporaneidade: agenda para uma

Igreja em saída”. O referido Simpósio teve como perspectiva fundamental, fazer um

aprofundamento acerca da herança recebida daquilo que foi considerado a “primavera

da Igreja”: o Concílio Vaticano II.

A eleição e o pontificado do Papa Francisco estiveram subjacentes a todo estudo

desenvolvido, pois, o jeito de como vem conduzindo e apresentando a Igreja ao mundo,

sugeriu a todos os que estiveram envolvidos com o Simpósio, parar e pensar sobre o

panorama eclesiológico que vem sendo construído bem como perceber os caminhos

que se vislumbram, e que parecem interpelar a Igreja a entrar decididamente num

movimento de “saída”.

Assim, a Semana de Teologia 2015 pretendeu elucidar e suscitar questões ao

“labor teológico”, exercício sempre inacabado. Para alcançar tal meta, foram oferecidas

sessões de comunicações, conferências, além de apresentação cultural. A seguir,

teremos a oportunidade de conferir, através da leitura, a produção científica

desenvolvida por todos àqueles que se colocaram diante da árdua missão intelectual de

refletir, apresentando as suas comunicações científicas ao longo do evento. Os

auspícios de um tempo, se bem interpretados, apontam para caminhos que firmam o

desejo de Deus de continuar vendo sua criação como boa.

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UNIVERSJDADE CATOLICA DE PERNAMBUCO

CENTRO DE TEOLOGIA E CIENCIAS HUMANAS

BACHARELADO EM TEOLOGIA

SIMPÓSIO DE TEOLOGIA 2015

A TEOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: AGENDA PARA UMA IGREJA EM

SAIDA

COMUNICAÇÕES

Dia 21 - quinta-feira, a partir das 14h - Bloco G - SALA 204

Coord. Prof. Sergio Grigoleto (Por ordem de apresentação)

1. DESCENTRALIZAÇÃO ECLESIAL: DOS NOVOS PARADIGMAS À

ABERTURA CATOLICA

(Romário José da Silva).

2. VIDA CONSAGRADA E NOVAS FRONTEIRAS: DESAFLOS A FRENTE

(Tiago Santos).

3. PRESSUPOSTOS FILOSOFICOS E ITINERÁRIO TEOLÓGICO PARA UMA

COSMOVISÃO ATUAL: CRISE E BUSCA DE SENTIDO PARA UMA IGREJA

EM SAÍDA

(Aerton Alexander de Carvalho Silva).

4. BIOETICA E IGREJA: UM OLHAR CONJUNTO ACERCA DA

FRAGMENTAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA NA CONTEMPORANEIDADE

FRENTE À UITILIZAÇÃO DAS CELULAS-TRONCO –

(Marcos Antonio de Arruda Moura).

5. A IGREJA CATOLICA NO CINEMA

(George José Rodrigues de Melo).

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UNIVERSIDADE CATOLICA DE PERNAMBUCO

CENTRO. DE TEOLOGIA E CIENCIAS HUMANAS

BACHARELADO EM TEOLOGIA

SIMPOSIO DE TEOLOGIA 2015

A TEOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: AGENDA PARA UMA IGREJA EM

SAÍDA

COMUNICACOES

Dia 21 - Quinta-feira a partir das 14h - Bloco G - -SALA G-205

Coord. Prof. Luiz Alencar Libório (Por ordem de apresentação)

1. 0 PAPEL DA RELIGIÃO PARA A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DA VIDA: UM

ESTUDO DE CASO.

(Jussara Rocha Kouryh; Sérgio S. D. Vasconcelos). 2. RELIGIOSIDADE E PSICOLOGIA: INTERFACES PARA UMA

ESPIRITUALIDADE CONTEMPORANEA SAUDAVEL.

(David Márcio Santos Bezerra; Severino Ramos Lima de Souza; Luiz Alencar Libório).

3. PSICOLOGIA DIFERENCIAL: COMPLEXO DE EDIPO, ARRANJOS

FAMILIARES E SUBJETIVIDADES AFROBRASILEIRAS A PARTIR DA IDENTIDADE

SOCIORRELIGIOSA AFRICANA.

(Claudia Lima; Luiz Alencar Libório)

4. COEXISTENCIA E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO: UMA PROPOSTA PARA

CONVIVENCIA PACFICA ENTRE RELIGIOSOS E NAO RELIGIOSOS NUMA

ESCOLA PÚBLICA DA REGIAO METROPOLITANA DO RECIFE

(Carlos Alberto Pinheiro Vieira)

5. A METODOLOGIA E A DIDÁTICA NAS ESCOLAS PÚBLICAS E COLÉGIOS

RELIGIOSOS EM PERNAMBUCO EM 1940.

(Luiz Henrique Rodrigues Paiva).

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS

BACHARELADO EM TEOLOGIA

SIMPÓSIO DE TEOLOGIA 2015

A TEOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: AGENDA PARA UMA IGREJA EM

SAÍDA

COMUNICAÇÕES

Dia 21 - Quinta-feira a partir das 14h - Sala G-206

Coord. Prof. Sergio Sezino Douets Vasconcelos (Por ordem de apresentação)

1. A REVELAÇÃO DE DEUS E A DIFERENCIAÇÃO DE REVELAÇÃO

NATURAL, ESPECIAL E INDIVIDUAL

(Marcelo Leonardo Ximenes).

2. A ATUALIDADE DA PERSPECTIVA TEOLÓGICA DE JOÃO DIAS DE

ARAUJO: UMA POSTURA A FRENTE DO SEU TEMPO

(Márcio Ananias Ferreira Vilela; José Roberto de Souza).

3. UMA TEOLOGIA DO CAMINHO COMO REVELADORA DO ROSTO DO DEUS

DOS POBRES

(Artur Peregrino).

4. A PRODUÇÃO DOS NOVOS ESPAÇOS URBANOS: DESAFIOS PARA A

TEOLOGIA PASTORAL.

(Bartolomeu Felix).

5. TEOLOGIA DA JUREMA: CONCEITO E EPISTEMOLOGIA

(Alexandre Alberto Santos de Oliveira; Sergio Sezino Douets Vasconcelos).

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CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS

BACHARELADO EM TEOLOGIA

SIMPÓSIO DE TEOLOGIA 2015

A TEOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: AGENDA PARA UMA IGREJA EM

SAÍDA

COMUNICAÇÕES

Dia 21 - Quinta-feira a partir das 14h - Sala G-207

Coord. Prof. João Luiz Correia Júnior (Por ordem de apresentação)

1. FAZENDO JUS AO NOME: ASPECTOS CULTURAIS E LINGUÍSTICOS DO

FILHO DO HOMEM EM JESUS CRISTO.

(Edivaldo Ferreira de Arruda).

2. A PRAXIS DE JESUS: PRESSUPOSTOS BÍBLICO-TEOLOGICOS A PARTIR

DO DIÁLOGO DE JESUS COM O JOVEM RICO EM Mt 19,16-22.

(Eltom de Sousa Melo; João Luiz Correia Júnior)

3. "A CENTRALIDADE DO REINO NA EVANGELII GAUDIUM"

(Charles de Araújo; Degislando Nóbrega de Lima).

4. COMO FAZER COM QUE OS TEXTOS BÍBLICOS DIALOGUEM, MESMO

QUE ELES PAREÇAM TÃO DISPARES?

(João de Sousa Brito)

5. DO ROUBO DAS PERAS A BISPO DE HIPONA: O PRETEXTO DA FE NA

CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEXTO AGOSTINIANO

(Pompeia Rosalia Sena Maltese).

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CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS

BACHARELADO EM TEOLOGIA

SIMPÓSIO DE TEOLOGIA 2015

A TEOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: AGENDA PARA UMA IGREJA EM

SAÍDA

COMUNICACOES

Dia 21 - Quinta-feira a partir das 14h - Sala G-208

Coord. Prof. Claudio Vianney Malzoni - (Por ordem de apresentação)

1. A IGREJA E A INTERNET

(Davi Daniel Barbosa)

2. AS IMAGENS SACRAS: REFLEXOS DE UM PATRIMÔNIO NUNCA

ESQUECIDO.

(Iron Mendes de Araújo Junior; Sergio Sezino Douets Vasconcelos).

3. A ESPIRITUALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

(Adriana Barata dos Santos Figueira)

4. O LUGAR DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA TEOLOGIA DE JOSÉ COMBLIN

(Jorge Roberto de Araújo Aguiar).

5. PASTORAL URBANA: ONTEM E HOJE CRITÉRIO HERMNEÊUTICO DO

MOVIMENTO DE MOISÉS RUMO À URBANIZAÇÃO EM CANAÃ

(Jário Carlos Silva Júnior)

6. NEM JUDEU, NEM SAMARITANO

(Maelite Araujo)

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TEXTOS COMPLETOS

(Por ordem alfabética)

PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS E ITINERÁRIOS TEOLÓGICOS PARA UMA

COSMOVISÃO ATUAL: CRISE E BUSCA DE SENTIDO

Ms. Aerton A. de Carvalho Silva1

Introdução:

A busca pelo princípio fundamental de todas as coisas por parte de pensadores como

Tales de Mileto e os que vieram depois possibilitou o surgimento da filosofia. A forma de

enxergar o mundo mudou significativamente. Então se fez o processo do pensamento mítico à

chamada razão filosófica. Passa-se pelo cosmocentrismo grego, pelo teocentrismo medieval até

chegar à conceituação de uma razão autônoma que apreende o mundo, ao que chamamos

antropocentrismo.

A Chamada Pós-Modernidade tem forjado uma nova maneira de interpretar o mundo

numa tentativa de harmonização do velho com um novo, da revisitação. Ao mesmo tempo em que

se rechaça a visão mecanicista e cientificista, vemos uma aura de sacralização e sacralização do

mundo concomitantemente.

A Teologia cristã apresenta itinerários que possibilitam uma aproximação à

concepção de Deus nessa cosmologia atual em relação ao pensamento teológico clássico, diante

de todo esse novo quadro pós-moderno de crise e de busca de sentido que desafia e desinstala fé

cristã e a impele a compreender seu lugar e sentido na história atual.

A Igreja Católica, no seu magistério tem buscado responder às questões acima

colocadas num diálogo profícuo entre ciência e fé e, mais recentemente, segundo as palavras do

1 Doutorando e Mestre em Ciências da Religião, licenciado em Filosofia pela Unicap. Cursou Teologia no

IFTO. Professor do Colégio e da Faculdade Damas, onde é membro do CONEP.

[email protected]

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Papa Francisco, saindo de seu castelo teológico para tocar o mundo nas suas mais variadas

dimensões.

Esse trabalho tem como objetivo debruçar-se sobre as questões acima lançando um

olhar atual sobre a interpretação do mundo e suas implicações na ação pastoral da Igreja e na vida

concreta dos cristãos.

I. Cosmovisão filosófica clássica

A filosofia grega deu um grande contributo para a civilização humana quando

ofereceu pistas de conhecimento que alavancaram o entendimento e a sua localização perante o

cosmos.

Primeiro os pensadores, como Tales de Mileto (640 aC. – 545 aC.), Pitágoras (570

aC. – 497 aC.) e os demais pré-socráticos, buscavam o princípio fundamental de todas as coisas;

estes encontravam nos elementos naturais ou nos mitos a resposta para suas dúvidas existenciais.

Vivencia-se, nesse período grego, o cosmocentrismo. Sócrates (470 aC. – 399 aC.) dá um salto

qualitativo quando desloca a reflexão que girava em torno da natureza e coloca no centro da

questão o próprio homem. Para Sócrates, o homem precisa conhecer a si mesmo para depois

conhecer as coisas (REALE, 1993, p.28, 257-259).

Dois outros pensadores são de fundamental importância nesse processo: Platão (428

a.C. – 348 a.C.) e Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.). O primeiro com o conceito do mundo das

ideias, imaterial, eterno e imutável, totalmente separado do mundo sensível, a que temos acesso

por meio da razão. As ideias, para Platão, são realidades existentes em si mesmas, independentes

do pensamento e das coisas materiais que são meras aparências que sempre se transformam e não

permitem que o homem chegue a lugar algum. O segundo, afirmava a possibilidade de conhecer

o mundo por meio da experiência sensorial com o auxílio da razão o que possibilitaria o conhecer

a verdade das coisas. Conceitos como substância (características fundamentais) e acidente (ex. no

homem: cor, altura), potência e ato, possibilitam a Aristóteles refletir sobre a condição de

movimento das coisas e de passagem de uma condição à outra, pois o ato seria a realização de

uma potência (CHALITA, 2004, p. 52-71).

Os pensamentos platônico e aristotélico se tornaram importantes para o Ocidente

quando a Igreja baseou sua teologia e concepção de mundo a partir dessas ideias. Os

representantes imediatos, responsáveis por tal releitura, foram Santo Agostinho (354 – 430) e São

Tomás de Aquino (1225 – 1274), que reproduziram teologicamente essa cosmovisão. Como

sabemos, as ideias desses dois expoentes e suas maneiras de interpretar o mundo predominam e

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perduram durante toda a Idade Média, e de certa maneira, ainda têm forte influência na construção

do pensamento e da cultura ocidental até nossos dias. (ARANHA, 2003, p.171). É patente nessa

época a visão teocêntrica que perpassa toda a esfera da vida ocidental.

II. Entre a cosmovisão da idade média e da idade moderna

Após o período medieval, a filosofia recuperou o conceito de razão, numa exaltação

à supremacia da apreensão do mundo. É próprio de muitos pensadores modernos expressarem

uma atitude antirreligiosa, pois, segundo eles, um pensamento transcendental seria incompatível

com a ciência. Há uma destruição do princípio de autoridade formado pela Bíblia, pela Igreja e

por filósofos que erigiam dogmas. Trata-se de uma filosofia “profana” e crítica, baseando-se em

paradigmas da racionalidade, da natureza e da experiência (CHAUÍ, 2003, p.60-86).

Descartes, que é considerado o pai dessa filosofia moderna, na busca pela verdade,

converte a dúvida em método. Com o seu “cogito, ergo sum”, fundamenta sua filosofia

apresentando o “eu” como puro pensamento que questiona e coloca em xeque a realidade do

corpo. Há uma auto-evidência do sujeito pensante e acentua-se o caráter absoluto e universal da

razão.

Em sua tentativa de construir uma ciência natural completa, Descartes

estendeu sua concepção mecanicista da matéria aos organismos vivos.

Plantas e animais passaram a ser considerados simples máquinas; os

seres humanos eram habitados por uma alma racional que estava ligada

ao corpo através da glândula pineal, no centro do cérebro (CAPRA,

1982, p. 56).

Coloca-se em xeque, neste caso, a atitude filosófica que afirma e duvida da

capacidade da razão humana para conhecer a realidade exterior e o homem. Ao mesmo tempo,

tudo o que está fora da razão humana passa a fazer parte de uma subcategoria, a categoria das

coisas. Como senhor de suas atitudes e opções, o sujeito torna-se livre para escolher ou rejeitar o

absoluto. Essa visão gera um descentramento do entendimento de mundo, esfacelando toda

tentativa de unificar a cosmovisão que até então vigorava sob os cânones da igreja.

Percebemos, então, na modernidade, o surgimento da razão autônoma, o

antropocentrismo. Na verdade, há uma secularização das esferas de valor, onde o indivíduo passa

a ser o centro e a dominar dimensões até então pré-determinadas pelas instituições, como é o caso

da religião e da religiosidade. O sujeito passa a ser autor e ator de seu caminho, pois “o

conhecimento sobre a natureza e sobre o próprio ser humano, a compreensão do mundo ‘escapou’,

aos poucos, do controle do religioso” (BARRERO, 2003, p. 441), dando espaço cada vez mais ao

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sujeito secularizado nos diversos âmbitos da vida pós-moderna, especialmente em relação ao

sagrado.

Enquanto o pensamento medieval é predominantemente teocêntrico

(centrado na figura de Deus), o indivíduo moderno coloca a si próprio no

centro dos interesses e decisões. Ao prevalecimento da explicação

religiosa do mundo, é contraposta a laicização do saber, da moral, da

política, que é estimulada pela capacidade de livre exame. Da mesma

forma que em ciência se aprende a ver com os próprios olhos, até na

religião os adeptos da reforma defendem o acesso direto ao texto bíblico,

dando a cada um direito de interpretá-lo (ARANHA, 2003, p. 178).

A Idade Média, herdeira da teologia cristã, com sua cosmovisão de que Deus é

princípio e fim da história e que o centro de todo fazer e ser humano, estão intrinsecamente

envolvidos pelas possibilidades de bem e de mal, interpretou o mundo e as coisas a partir do

dualismo. Falar de um Deus que governa e rege todas as coisas gerava um conforto espiritual e

criava um clima no qual se recebia da igreja a racionalização de todas as esferas da existência

humana.

Segundo Peter Berger e Thomas Luckmann, como é próprio de toda sociedade, em

toda história, a estrutura de valores que sempre foi repassada de pai para filho possibilitou uma

religião única e que envolvesse tudo e todos. Com essa visão, a Idade Média europeia tentou

“trazer todas as pessoas para dentro de um espaço de poder e mantê-las dentro de um único,

comum e supra-ordenado sistema de sentido” (BERGER, LUCKAMNN, 2004, p. 41).

A Modernidade busca romper com essa ideia de uma divindade que governa absoluta

e poderosamente as coisas. Os modernos, representados por Descartes, criaram um subjetivismo

idealista e racional; rejeitaram certezas religiosas e prontas, trilhando o caminho da dúvida, na

ânsia de compreender o mundo; desejaram conhecer clara e distintamente por meio de um

método; em sua concepção, acreditaram que os sentidos podem enganar todo conhecimento

intelectivo ou sensível. Descartes propôs, por conseguinte, a existência de três substâncias: a

substância pensante (a alma), definida pelo atributo do pensamento; a substância extensa (a

matéria dos corpos), definida pelo atributo da extensão; a substância infinita (Deus), definida pelo

atributo da finitude (CHAUÍ, 2003, p. 196).

Alguns pensadores buscaram contrapor o racionalismo apresentando o empirismo,

cuja etimologia vem do grego “emperia”, e significa experiência, enfatizando o papel da

experiência sensível no processo do conhecimento. Trilharam o caminho da ciência instrumental

que domina a natureza, o caminho psicológico da sensação e da reflexão, levando à conclusão de

que o trabalho da razão é subordinado à experiência (ARANHA, 2003, p. 130-136).

Kant buscou duvidar e criticar o próprio pensamento humano ousando um “despertar

do sono dogmático” (Idem, p.135). Posteriormente, o discurso da racionalidade, baseado nas

ciências da natureza e mais à frente no idealismo alemão, desejou uma universalidade a partir de

seu pensamento. Perpassando o racionalismo e o empirismo, o materialismo e o niilismo, bem

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como outras teorias que buscaram interpretar o mundo pelo conhecimento, há ainda uma busca

por pressupostos teóricos e metodológicos para as questões existenciais.

Se antes, na Idade Média, ou bem anteriormente, na Idade Antiga, o saber tinha a

característica contemplativa, na Modernidade, o saber é ativo, e, por conseguinte o indivíduo é

capaz, subjetivamente, de dizer e optar pela fé que lhe convém, ou mesmo de rejeitar a fé e a

divindade. Há uma concepção mais individualista do sujeito, que se entende soberano e senhor

da subjetividade na qual se encontra isolado.

III. Cosmovisão pós-moderna e a crise de sentido

A ideia da existência de uma Pós-Modernidade que tem sido bastante difundida nas

mais diversas áreas da ciência e da cultura em geral, com toda a sua característica de abertura,

diálogo e quebra de paradigmas, forjou uma nova maneira de interpretar o mundo. Não é nosso

objeto de pesquisa, no presente trabalho, a questão da existência efetiva e determinada da Pós-

Modernidade. Levamos em consideração a perspectiva apresentada por J.F. Lyotard, quando

lança mão de uma reflexão partindo do pressuposto de que o período em que vivemos é fruto de

uma evolução da era pré-moderna, com suas narrações míticas e religiosas, passando pela

Modernidade, marcada pela racionalidade das ciências da natureza, e desembocando no período

atual, Pós-Moderno, que “se caracteriza exatamente pela incredulidade perante o metadiscurso

filosófico-metafísico, com suas pretensões atemporais e universalizantes” (LYOTARD, 1986, p.

08). Seguindo esse pensamento, Manfredo Oliveira completa: a Pós-Modernidade, cuja

“característica básica consiste precisamente numa ruptura radical com a forma de pensar, com

toda pretensão de articulação do sentido do todo, com ideias de sistema fechado [...], um processo

de libertação do uno, do imutável e do eterno para a diferença, para a pluralidade, para a mudança,

para o contingente e para a história” (OLIVEIRA, 2003, p. 21-25).

A Pós-Modernidade gera uma nova crise de paradigmas. Para alguns, as teorias

Modernas vão lentamente sendo refutadas ou simplesmente relegadas numa atmosfera de perene

mudança. Diante desse quadro, entre tantas maneiras de explicar o mundo, as instituições de

ensino confessionais, especialmente, católicas se vêem diante de uma nova alternativa de

interpretação da existência, do cosmos, do sagrado e do próprio homem a partir da ideia do

holismo, da totalidade. Nessa concepção, o indivíduo, livre de toda e qualquer influência

econômica, social, política, histórica, religiosa etc., entende-se com pleno potencial para emergir

do seu estado de mera latência atualizando sua potencialidade. Libertando-se das condições

humanas aprisionadoras e cultivando-se interiormente, o indivíduo ruma em direção ao auto

aprimoramento.

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Na visão do físico e pensador austríaco Fritjof Capra, a modernidade viveu um

paradigma “mecânico-cartesiano” ou “cartesiano-newtoniano”; a cultura ocidental esteve ligada

à revolução industrial e à revolução científica, tendo as ciências naturais como centro do

pensamento e uma certeza de que o progresso material seria inevitável (CAPRA, 1982, p.49-69).

É o próprio Capra quem diz:

Na Física moderna, a imagem do Universo como uma máquina foi

transcendida por uma visão dele como um todo dinâmico e indivisível,

cujas partes estão essencialmente inter-relacionadas e só podem ser

entendidas como modelos de um processo cósmico. No nível

subatômico, as inter-relações e interações entre as partes e o todo são

mais fundamentais do que as próprias partes. Há movimento, mas não

existem, em última análise, objetos moventes; há atividade, mas não

existem atores; não há dançarinos, somente a dança” (Idem, p. 86).

Tudo no universo estaria ligado por redes de sistemas que passam pelo biológico,

pelo ecológico ou pelo econômico (BINDO, 2003).

Apoiada nessa e noutras afirmativas de Capra e tantos outros pensadores, cientistas,

religiosos e filósofos, uma nova onda encontra um vasto celeiro para fundamentar-se e defender

a possibilidade de uma unidade que, em sua percepção, se contrapõe à idéia de fragmentar o

mundo, desligando o sensível do supra-sensível, a matéria do espírito, o sagrado do profano, o

científico do religioso, como defendeu a modernidade de Newton e de Descartes. A possibilidade

é de interligação, interdependência e correlação entre mente e espírito (TAVARES, 1994, p. 56-

57).

É, também, uma contraposição às meta-narrativas religiosas que pretendem confinar

na instituição a manifestação do sagrado e, ao mesmo tempo, um certo aprisionamento aos antigos

sistemas e às antigas visões de mundo, às antigas tradições religiosas. Percebe-se, sim, essa

tentativa de harmonização do velho com um novo, da revisitação. Ao mesmo tempo em que se

rechaça a visão mecanicista e cientificista, vemos um arcabouço sendo forjado sob a égide da

psicologia, da física, da filosofia, da teologia e de tantos ramos da ciência. A visão de mundo

funda-se na verdade da junção de toda essa gama científica unida às tradições, por exemplo, como

afirma Stefano Martelli, há “um acento cada vez menor sobre as igrejas e as instituições religiosas,

e mais sobre a contribuição dada pela Religião, como sistema simbólico, para a estabilização das

concepções gerais que regulam as sociedades modernas” (MARTELLI, 1995, p. 461).

Apoiados nesses pressupostos filosóficos, cabe-nos propor itinerários que

possibilitem uma aproximação à concepção de Deus nessa cosmologia atual em relação ao

pensamento teológico clássico, diante de todo esse novo quadro pós-moderno.

IV. Itinerário teológico para uma cosmovisão atual

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As reflexões filosóficas e teológicas do século XX buscaram superar a ideia de

mundo alienante. Para isso a reflexão de Teilhard de Chardin busca harmonizar as ciências da

natureza sobre a evolução dos cosmos com as respostas teológico históricas. A partir da

concepção de evolução cósmica para um centro de convergência: Cristo. Para Chardin a

história da evolução cósmica é ao mesmo tempo história da cristificação desse cosmo.

O problema que mais vem à tona a partir dessa concepção é a tendência dualista

platônica tão marcada na vida da Igreja que faz sempre uma divisão entre a história do mundo

material do espiritual que leva alguns homens a projetar sua suas esperanças na vida espiritual,

enquanto outros nas esperanças utópicas do mundo imanente. Para superar essa dicotomia

entre fé e história natural, Chardin propõe a redescoberta de uma visão de mundo em processo

evolutivo que caminha para a sua plenificação em Deus.

Deus cria o mundo como processo evolutivo, como imã, atrai todas as

forças do universo e, no fim dos tempos recolhe este mundo e o introduz

na glória. Há unidade sem falhas no devir do mundo; a criação é

evolução, a evolução é nascimento do homem; o homem, no seu íntimo,

está aberto em direção ao divino; Deus aparece com Jesus Cristo na

história, Cristo dirige a humanidade, e com ela o universo, até a vida

eterna (BLANK, 1993. p. 48).

Criacionismo e Evolucionismo já não mais podem duelar, senão complementar

já que um pergunta o porquê?, o sentido último das coisas, enquanto o segundo busca

responder o como tudo passou a existir?. Esse tema já foi abordado pela teologia, amplamente

nos últimos anos desde as intervenções de Chardin, passando por João Paulo II, até

permanecer na teologia atual.

João Paulo II, diante da assembleia plenária da Pontifícia Academia de

Ciências. ´Lembrou que a Encíclica Humani Generis considera o

Evolucionismo como uma ´hipótese séria, digna de uma investigação e

de uma reflexão aprofundadas como a hipótese oposta. Hoje, novos

conhecimentos levam a reconhecer na teoria da evolução mais que uma

hipótese (TEPE, 2003 p. 54).

Nessa perspectiva o indivíduo que crê faz ao mesmo tempo uma experiência

intima e comunitária que o lança num mesmo grau de intensidade no seu crer em Deus e crer

no humano. O que significa dizer que a partir do mistério da encarnação há que a teologia

perceber que “ o que nos mete medo é afirmar com toda seriedade que em Jesus de Nazaré,

Deus se humanizou. E isso nos incute medo porque tal afirmação equivale à aceitação de que

em Jesus, Deus se fundiu e confundiu como humano” (CASTILLO, 2013, p. 109). Portanto,

se Deus fez parte desse húmus do planeta terra, se tocou as galáxias, e fez-nos enxergar a

poeira do cosmos impulsiona esse mesmo homem a construir o Reino no chão onde está

fincado.

E o Papa Francisco no discurso do dia 27 de outubro de 2014 na mesma Pontifícia

Academia de Ciência reafirmou:

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Ele criou os seres e deixou que se desenvolvessem segundo as leis

internas que Ele mesmo inscreveu em cada um, para que progredissem e

chegassem à própria plenitude. E deu a autonomia aos seres do universo,

assegurando ao mesmo tempo a sua presença contínua, ... Deus não é um

demiurgo nem um mago, mas o Criador que dá a existência a todos os

seres. O início do mundo não é obra do caos, que deve a sua origem a

outrem, mas deriva diretamente de um Princípio supremo que cria por

amor. A evolução na natureza não se opõe à noção de Criação, porque a

evolução pressupõe a criação dos seres que evoluem (PAPA

FRANCISCO, 2014)

Essa natureza humana, aberta ao infinito, nesse homem está o desejo do mundo

que Deus atrai para si. Num impulso dinâmico o mundo é atraído amorosamente por Deus e

para Deus. O termo Cosmovisão vem da junção de cosmo + visão, a visão que se tem do

mundo ou a mundividência. Assim concepção de fé, de vida, de morte, do próprio papel no

mundo vão delineando a cosmovisão dos indivíduos que compõem a Igreja. Dependendo da

forma como encara a morte, o limite e a finitude os homens e mulheres vão enxergar o mundo.

Por isso, Blank (1993), propõe percebermos a ação histórica de Deus, naquele termo

teológico clássico de “ler os sinais dos tempos” como a ação e presença de Deus que sacraliza

esse mundo e o lança na virtude teologal da esperança que no hoje da história, no mundo social

já denota a sua presença amorosa e santificante.

Hoje vemos numa nova primavera eclesial o olhar do Papa Francisco na Exortação

Apostólica Evangelii Gaudium questionar uma fé autocentrada, uma fuga do mundo aos moldes

medievais, uma cosmovisão baseada no teocentrismo ou no mecanicismo e propor uma Igreja em

saída para o mundo, lugar da concretização da ação sacralizadora e santificadora. Um cosmos

sagrado sendo levado à sua plenitude na ação de homens e mulheres com um olhar novo, um olhar

e uma ação em Deus, pois Deus não se aposentou ao criar um mundo, nele permanece como força

perene criadora que deseja carecer da ação humana para levar a termo o seu plano de amor. Afinal,

segundo as palavras do papa no número 215 do referido documento: “Deus uniu-nos tão

estreitamente ao mundo que nos rodeia” (EVANGELII, 215). E se assim o fez, esse mundo, em

todas as suas dimensões, não poderia ser mal, mas lugar privilegiado da plenificação da obra

iniciada por Ele mesmo.

Uma Igreja que enxerga no mundo a presença de Deus compreende que “pequenos

mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis, todos nós, cristãos, somos chamados

a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos.” (EVANGELII, 216) E arremata:

“Na nossa relação com o mundo, somos convidados a dar razão da nossa esperança, mas não

como inimigos que apontam o dedo e condenam” (EVANGELII, 271). Visto não sermos os juízes

do mundo, mas irmãos universais.

Considerações finais

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17

As questões existenciais humanas: de onde viemos? Para onde vamos? Como situar-nos

nessa imensidão cósmica? Quem somos?... tem reverberado desde que nos tornamos sapiens

sapiens. Diante dessas questões a Filosofia grega foi um significativo divisor que lançou a

humanidade a olhar os cosmos como lugar privilegiado para responder à sua angustiante e, ao

mesmo tempo fascinante procura, de como situar-se nesse planeta. Como mergulhar no mistério

de si mesmo e do cosmos.

A água, o fogo, o ápeiron, foram apresentados como princípio fundamental de todas as

coisas. Uma transposição qualitativa do mito à razão em suas diversas fases. Desde os pré-

socráticos, passando pelo próprio Sócrates, Platão e Aristóteles. Cada filósofo interpretou e

apresentou uma visão de mundo como alicerce pra situar-se no chão da história.

Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino teologizaram a filosofia e consequentemente

suas cosmovisões foram sacralizando esse mundo e abrindo trilhas para que a teologia medieval,

teocêntrica, pudesse ditar o ritmo da reflexão do ser no mundo.

Na encruzilhada da crise da modernidade vimos o arcabouço teológico de um planeta

regido pelo criador e governado pela Igreja desmoronar aos poucos. Na pós-modernidade emerge

a falta de sentido e uma crise sem precedente na história humana. Tecnologia, cibernética, espaço

virtual, aldeia global, desafios ecológicos, êxodos, genocídios, corrupção, e tantos outros fatores

suscitam uma grande interrogação a respeito do futuro.

A Teologia tem buscado responder às questões existenciais humanas a partir de uma

cosmovisão que destrona Deus das nuvens e o reconhece a partir dos “sinais dos tempos”

santificando e levando à consumação toda a história. Um cosmos gerado pelo amor e configurado

à imagem d´Ele mesmo. Santificado, o ecossistema, o planeta, as galáxias, o homem são vistos

como parte de um grande plano de amor onde a evolução e a criação se apresentam como formas

de interpretar o mesmo fenômeno e como tentativa de responder às questões últimas do homem.

É nessa dimensão que uma Igreja em saída vai se inserindo, compreendendo o seu papel

de ser fermento no mundo e sinal profético nos tempos hodiernos. Atualizando o mistério salvífico

numa perene alegria e esperança que o Evangelho confere aos que creem.

Referências

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20

A PRODUÇÃO DOS NOVOS ESPAÇOS URBANOS:

DESAFIOS PARA A TEOLOGIA PASTORAL

José Bartolomeu Felix de Lima2.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho parte da compreensão do fenômeno urbano e das novas

espacialidades produzidas pelo mesmo fenômeno, analisadas sobre a óptica da sociologia, do

pensamento geográfico e teológico. Tais compreensões relaciono com a teologia pastoral,

analisando o fenômeno urbano e buscando alternativas para um desenvolvimento da pastoral

urbana através de uma práxis coerente com essas novas realidades.

O urbano é um fenômeno que está sempre em movimento, em constante reinvenção. É

um processo dinâmico que produz novas espacialidades. Por isso, no presente trabalho,

contextualizo, no primeiro momento, o urbanismo no Brasil e neste processo o surgimento da

pastoral urbana atrelada aos movimentos sociais. Com a contribuição das ciências geográficas e

sociais, no segundo momento iremos especificar a produção das novas espacialidades como

produto do fenômeno urbano e nestas, a novidade do território como um espaço das novas formas

de relações entre os sujeitos espaciais. No terceiro momento, identificamos os desafios que

surgiram a partir da dinâmica dos novos espaços e como a Teologia Pastoral poderá interagir com

esta realidade através do fortalecimento de uma pastoral de conjunto.

O URBANISMO NO BRASIL E OS ENSAIOS DE UMA PASTORAL URBANA.

O fator histórico nos possibilitará conhecer melhor os meandros das iniciativas que

despertaram a atenção da Igreja para a realidade urbana. Focalizaremos historicamente o Brasil.

Isso não significa dizer que a ação pastoral no setor urbano deu-se a partir do contexto Latino-

americano.

Historicamente no Brasil, de acordo com Oliveira (1980, p 8), o urbanismo é fundado

numa contradição singular, ou seja, a economia brasileira deu-se nos moldes do capitalismo

2 Mestrando do programa de pós-graduação em teologia da Universidade Católica de Pernambuco.

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mercantilista do século XVI, atuando na produção de alimentos e matérias primas através do

trabalho escravo. A sede desse produção era o campo, mas a sede que controlava todo esse sistema

era urbana, atendendo aos comandos da metrópole cuja produção visava à exploração.

Com isso, percebe-se o caráter político-administrativo das cidades no Brasil, desde o

período colonial. Então dizemos erroneamente que houve um predomínio do campo sobre a

cidade. Mas o caráter da urbanização no Brasil não refletia o domínio do campo sobre a cidade,

mas a estrutura de produção, em sua maioria, monocultura e escravista. Portanto, as cidades por

não ser o mercado produtivo, tornaram-se os centros de controle e da burocracia representando o

Estado Português.

No século XIX e meados do século XX, a divisão social do trabalho com o campo e a

cidade se acentua fortemente através da oligarquia cafeeira que limita o desenvolvimento da

economia mercantil, pois há um movimento de nacionalização do capital pela maior retenção de

uma parte do excedente, internamente, dando lugar à formação de uma quase burguesia agrária.

A burguesia industrial emergente não detinha o controle do Estado e não conseguiu imprimir sua

marca à cidade. De acordo com o sociólogo Oliveira (1980, p 9), surgiram nessa época as

deficiências de que padecem todas as cidades brasileiras, sem exceção, em matéria de serviço

público já são secular.

Mesmo com o bloqueio da política do café, a economia estava em desenvolvimento, até

porque o sistema da economia cafeeira não se sustentou devido sua inviabilidade de acumulação,

tendo que cumprir suas despesas para sua manutenção e a inviabilidade da manutenção do

esquema de relações internacionais que lhe dava garantia de reposição. Com a queda do sistema

cafeeiro, avança a divisão social do trabalho em direção à industrialização e, consequentemente,

ao urbanismo.

Tendo o período de trinta como referência, o que vai emergir é, de fato,

o modo de produção de mercadorias e ela será simultaneamente

industrial e urbano, mais intensamente urbano que industrial, mais

politicamente urbano que industrial. A acumulação industrial dispara e

a acumulação urbana fica sempre retrasada; a contradição se resolve

mediante a utilização do extenso exército industrial de reserva como

fornecedor de serviços; emergem com novo e redobrado vigor, as

classes sociais urbanas proletárias, a burguesia industrial dirige o

aparato do Estado. [...] esse conjunto de fatores, que se fusionam no

histórico e no estrutural explode as cidades: o crescimento urbano se dá

décadas seguintes a taxas médias acima de 5% para todo o país, e

aparecem da noite para o dia as grandes cidades brasileiras, com sua

tendência incoercível ao gigantismo (OLIVEIRA: 1980. p.10).

Page 22: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

22

A partir do exposto, podemos esclarecer o que é o urbanismo em dois momentos da

história. O primeiro momento é o do Estado Português, constituído pela burguesia industrial e a

classe operária. É um Estado burguês industrial que atende aos objetivos da burguesia que se

afirma econômica e politicamente contra as oligarquias rurais; daí instaura-se o populismo, um

período da história em que o sistema não poderia ser repressivo nem opressor. Nesse sistema

populista, o urbano é o movimento campo-cidade e a desarticulação das economias regionais,

sendo uma poderosa acumulação de capital estruturado pelo confisco de uma maior valia em

expansão, na manutenção do “status quo”no campo e no confisco de parte das riquezas das antigas

classes latifundiárias oligárquicas passadas à burguesia industrial, como diz Oliveira (1980, 11),

o urbano nesse período é a afirmação da sede urbana da produção e do controle político-social, é

a negação do campo.

O segundo momento inicia-se com a chamada “Restauração Kubitschek”, na qual o

urbano se configura com o assentamento definitivo da produção e do controle político-social na

cidade, por certo, mas a cidade agora é todo o país. O urbano passa a ser a unificação do mercado

de trabalho propriamente urbano e rural.

Feito este percurso histórico, no qual demonstramos o fenômeno urbano no Brasil,

apresentamos a partir deste contexto atuação dos movimentos sociais urbanos que consideramos

os primeiros ensaios nos quais a pastoral urbana foi se desenvolvendo no Brasil.

Os movimentos sociais urbanos surgiram no desenvolvimento do

processo de urbano-industrial e nascem dentro de setores da sociedade

civil, apresentando composição social heterogênea, com demandas

reivindicativas e defensivas que agiram fundamentalmente em torno da

esfera do consumismo (WANDERLEY: 1980. p 16).

Ao processo urbano-industrial dão-se também as consequências devido aos conflitos de

classes: de um lado, o Estado e a burguesia internacional associada; de outro, as classes populares,

um agente social único e singular, dissolvendo as antigas diferenciações entre cidade e campo.

No meio, as chamadas classes médias, cujo peso político específico tende a cair com a

dissolução/unificação apontada, tendencial, mas ainda viva. Esses movimentos têm origem quase

sempre de problemas locais e em função de interesses imediatos, formando pequenos grupos

solidários.

Surgem os movimentos sociais reivindicatórios e com eles nascem os primeiros embriões

da ação pastoral urbana. O diferencial entre esses movimentos e a pastoral urbana é que quando

os movimentos alcançam seu objetivo, tendem a se extinguir. Já a ação pastoral não tem um fim

imediato, não se limita a um movimento social, nem prende-se a estruturas políticas e econômicas.

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23

Esta tarefa pastoral é feita sem se antepor a nenhum grupo ou movimento, pois como já

mencionava Comblim, a pastoral da cidade não exclui, e sim, inclui todos os serviços a nível

local, familiar, privado. Mas ela integra cada serviço numa perspectiva de conjunto em função

dos problemas globais.

AS NOVAS ESPACIALIDADES PRODUZIDAS PELO FENÔMENO URBANO.

Todos nós já refletimos sobre o espaço e o tempo. Comumente não damos importância a

estas categorias por consideramos inerentes a nós e nos contentarmos as definições do senso

comum.

A compreensão do espaço e tempo é variada. O espaço ou espacialidade pode ser

compreendida de maneira distintas por diversas culturas e diferentes sociedades. David Harvey

considera importante contestar a ideia de um sentido único e objetivo de tempo e espaço, com

base na qual possamos medir a diversidade das concepções e percepções humanas. O mesmo não

define uma dissolução total da distinção objetivo-subjetivo, mas insiste em que reconheçamos a

multiplicidade das qualidades objetivas que o espaço e o tempo podem exprimir e o papel das

práticas humanas em sua construção. No cenário da sociedade moderna, muitos sentidos distintos

de tempo e espaço se entrecruzam.

O espaço também é tratado como um fato da natureza, “naturalizados”

através da atribuição de sentidos cotidianos comuns. Sob certos aspectos

mais complexo do que o tempo – tem direção, área, forma, padrão e

volume como principais atributos, bem como distância, o espaço é tratado

tipicamente como um atributo objetivo das coisas que pode ser medido e,

portanto, apreendido. Reconhecemos, é verdade, que a nossa experiência

subjetiva pode nos levar a domínios de percepção, de imaginação, de

ficção e de fantasia que produzem espaços e mapas mentais como

miragens da coisa supostamente “real”. Também descobrimos que

sociedades ou grupos distintos possuem concepções de espaço diferentes.

Os índios das planícies do que são hoje os Estados Unidos de modo algum

seguiam o mesmo conceito de espaço dos colonos brancos que os

substituíram; os acordos “territoriais” entre os grupos se baseavam em

significados tão diferentes que era inevitável o conflito (HARVEY: 1992

p 188).

Mediante esta construção de pensamento, percebemos que é preciso levar em

consideração os processos materiais que acontecem no espaço e no tempo para poder conceitua-

los adequadamente. É através de uma perspectiva materialista que afirmamos que as concepções

de tempo e de espaço são criadas necessariamente através de práticas e processos materiais que

servem a reprodução da vida social. Nesta prática, a lógica norteadora é o sistema capitalista

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considerado um modo de produção no qual as práticas e processos matérias de reprodução social

se encontram em permanente mudança. A partir dessa dinâmica, as qualidades objetivas com os

significados do tempo e do espaço também se modificam.

Diante do processo histórico de expansão do capitalismo, os termos “produção” e

“reprodução do espaço” foram tomados de um significado economicista que desencadeou o

processo de globalização, a partir da expansão mercadológica. Essa trajetória, nos ajuda a

compreender em que termos se efetua a redefinição da cidade e da urbanização, de seu

crescimento, da extensão das periferias, dos condomínios, da construção de um novo espaço.

Diante da complexidade da sociedade urbana, pode-se pressupor que a produção do

espaço constitui um elemento central da problemática do mundo contemporâneo. Os novos

espaços são gerados a partir da ação dos agentes que determinam o meio, o Estado, o Capital e os

agentes sociais.

A noção de “produção do espaço”, como vimos, importa conteúdos e

determinações, obriga-nos a considerar os vários níveis da realidade

como momentos diferenciados da reprodução geral da sociedade em sua

complexidade. Obriga-nos a considerar o sujeito da ação: o Estado,

como aquele da dominação política; o capital, com suas estratégias

objetivando sua reprodução continuada; os sujeitos sociais que, em suas

necessidades e seus desejos vinculados à realização da vida humana,

têm o espaço como condição, meio e produto de sua ação (CARLOS:

2014. p 64).

Somado ao espaço, abordamos a categoria de território. Tal categoria é fundamental para

a interação entre os agentes espaciais e os meios que são gerados como consequência da ação dos

agentes produtores das espacialidades como Estado e o Capital. Ressaltando que nesta

compreensão e de acordo com Maria Adélia “o urba é a expressão territorial do modo de produção

hegemônico e que vai além da cidade, enquanto que a cidade é materialidade construída”.

No contexto das novas espacialidades, consideramos o território usado. Como diz Maria

A. Aparecida 2014 “o território só existe quando usado, praticado, e aquele de lugar definido

como um espaço do acontecer solidário.”

A inserção nos estudos geográficos de território usado é algo recente e processual. Milton

Santos aprofunda e amplia esse conceito. “Consiste num indissociável e contraditório sistema de

objetos e ações” (Santos 1996). O território usado, espaço banal é aquele que pertence a todos,

sem exceção. Mesmo sendo território de todos, pessoas, instituições e organizações; no

capitalismo, passou a ser uma predominância de uso pelos interesses hegemônicos. Este último,

atrelado ao uso da técnica e tecnologia que transforma o território ao serviço do mercado,

diferente do território lugar do espaço solidário, das relações comuns.

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Diante destas categorias acima refletidas, como tempo, espaço e território, percebemos

que de modo acelerado gera uma mobilidade e mutação na sociedade que não conseguimos

acompanhar as mudanças e transformações. Daí surgem os novos desafios no campo da

evangelização. Muitas perguntas e angustias são apresentadas diante das urgências e desafios

deste tempo. Iremos abordar alguns desafios e apresentar algumas sugestões como um mecanismo

de superação e acompanhamento por parte da Igreja.

DESAFIOS PARA A TEOLOGIA PASTORAL E FORTALECIMENTO DAS

PASTORAIS URBANAS

Após termos apresentado o urbanismo no Brasil e os ensaios de uma pastoral urbana,

termos demonstrado as novas espacialidades produzidas pelo fenômeno urbano e fruto da

produção capitalista, nesta terceira parte identificaremos a seguir os desafios consequentes desses

espaços para a sociedade e para a Teologia.

A Igreja Católica buscou, desde os primórdios, dar respostas às necessidades de cada

época. A história das ordens e congregações religiosas com seus respectivos carismas demonstram

esta atitude. Diante desse processo histórico, é preciso considerar que uma ação pastoral não pode

prescindir do conhecimento da realidade. O Documento de Aparecida nº 36, ensina aos agentes

pastorais a considerar a realidade, mais não de modo fragmentado, como o pensamento

contemporâneo costuma fazer, mas a partir da espiritualidade que, tendo o Cristo como parâmetro,

possibilita um conhecimento amplo e uma ação eficaz.

É frequente que alguns queiram olhar a realidade unilateralmente a partir

de informação econômica, outros, a partir de informação política ou

científica, Outros a partir do entretenimento ou do espetáculo. Entanto,

nenhum desses critérios parciais, consegue propor-nos um significado

coerente para tudo o que existe. Quando as pessoas percebem essa

fragmentação e limitação, costumam sentir-se frustradas, ansiosas

angustiadas [...] Os cristãos precisam recomeçar a partir de Cristo, pois

só quem conhece a Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de

modo adequado e realmente humano (DAp nº 36).

Dado esta percepção, o que a Conferencia de Aparecida nos chama a atenção é para

termos a clareza que diante do cenário das novas espacialidades, acontece a “mudança de época”

onde o seu nível mais profundo é o cultural. Percebemos aqui um grande desafio à Teologia

Pastoral. Pois diante dessa mudança de época, ocorre uma sobrevalorização da subjetividade e

individualidade. O indivíduo e seus desejos tornaram-se objetos de mercado. A lógica de mercado

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associada a técnica e a ciência nesse processo global constrói uma nova colonização cultural que

tende cada vez mais a fragmentar as experiências comunitárias locais e impor uma cultura

homogênea e superficial pautada em criar necessidades e ao mesmo tempo satisfaze-las. Mediante

esse processo de fragmentação do qual padece o ser humano, o mesmo sofre o processo de

alienação na convivência das relações e pela lógica da nova cultura é motivado a viver de modo

superficial a sua identidade comunitária. Diante desse fato, a Teologia Pastoral é instigada a

fortalecer a experiência da pastoral de conjunto no tecido urbano. Uma ação pastoral de conjunto

é uma resposta a este desafio e ao mesmo tempo uma atualização efetiva da Igreja nos diversos

seguimentos da sociedade.

Pensar a evangelização é articular a relação entre dois conceitos dos quais não se pode

prescindir dentro da dinâmica do urbanismo: cidade e território. A mudança ou mutação que as

cidades passam não deve ser desconsideradas pela Teologia Pastoral. A Compreensão da cidade

como um espaço unitário, compacto e estático em que possibilitava tradicionais formas de

vizinhança, solidariedade, partilha e cumplicidade existencial, gradativamente, tal concepção foi

substituída devido a própria mutação que o fenômeno urbano causou nas cidades que hoje

percebemos como o território da mobilidade, do desenraizamento e do hibridismo cultural.

As cidades atuais, notadamente as que chamamos de grandes centros

urbanos, são cidades móveis. Crescem demograficamente,

especialmente avançam por territórios [...] são também cidades

policêntricas, na medida em que já não apresentam apenas um único

centro de cidade, mas diversos bairros aglutinadores de outros

(AMADO:2010 p 67).

Diante dessa nova configuração, surge para a Teologia Pastoral um outro desafio, o

impasse se dá porque não aconteceu ainda a assimilação sobre a territorialidade como algo amplo

e além de território fixo geográfico. Esta vinculação ao território fixo como se nele ainda

acontecesse as principais relações sociais é perceptível na prática administrativa e jurídica

eclesial. É preciso que os agentes pastorais entendam que a territorialidade como delimitação

geográfica é critério adicional, pode acontecer ou não. A tentativa é redescobrir novas alternativas

de alcançar essa dinâmica.

Não podemos esquecer que o cristianismo nos primeiros séculos contribuiu para a

formação de pequenas comunidades dentro dos espaços urbanos através do anúncio de Jesus

Cristo que gerou novas comunidades que passou a subsistir dentro de outras. O planejamento da

organização pastoral atual precisa considerar a diferença entre espaço físico e espaço social. Os

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moradores de um dado território como uma grande cidade, sabem que suas vivencias e

convivências nem sempre acontecem num território fixo. Assim a ação pastoral deve colaborar

para uma ação que contemple a mobilidade, pois a formação de espaços comunitários na qual

acontece a adesão seletiva rompe com os critérios monoespaciais. Um exemplo disto é as

comunidades virtuais que crescem progressivamente, é um exemplo entre a deslocalização do

espaço físico e o espaço social, no qual o ambiente virtual rompe com a territorialidade física.

Diante desta reflexão, não podemos deixar de contemplar a Paróquia compreendida como

comunidade de comunidades. A mesma, diante desse processo urbano deve buscar conhecer as

novas espacialidades, insistir na dimensão comunitária, e proporcionar novas formas de vivencias.

Percebemos nas paróquias apenas a mudança estrutural, física, para oferecer certa comodidade

aos fiéis, que também se faz necessária para acompanhar o avanço dos estabelecimentos. Porém,

a mudança a ser empreendida é na perspectiva de formar comunidades que cria vínculos. A

paróquia além de considerar a sua territorialidade geográfica delimitada pelo decreto de criação,

deve levar em consideração os espaços não fisicamente circunscritos. O desafio é conjugar a

convivência das espacialidades física ou territorial e a afetiva, ou seja, aquela que os fiéis se

elegem como um espaço de encontro. Encontramos no própria conceito de paróquia, no cânon

515 a formulação para esta ideia. Só uma paróquia em modelo de rede poderá acolher estes dois

momentos – dinâmica do alargamento – atuação pastoral em níveis que ultrapassam a

circunscrição territorial, uma característica indispensável para a configuração comunitária.

Após identificamos os desafios próprios da nova configuração espacial, percebemos a

grande contribuição analítica das ciências sociais e geográfica. A Teologia pastoral se utiliza

dessas análises para fazer sua própria leitura na busca de assessorar a Igreja a atender as novas

urgências e inculturar a Palavra de Deus nos novos espaços da sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O agir pastoral se configura a partir dessas exigências e se materializa nas experiências

que são desenvolvidas no tecido urbano. Por isso, percebemos que não há um único modelo de

ação pastoral que predomine nos novos espaços sociais, nem há um marco ou uma data

propriamente dita que marque o início da pastoral urbana. Ela acontece e se desenvolve nas

experiências efetuadas no tecido social. É devido aos ensaios que se efetivam nas novas

espacialidades que se descobre novos métodos de ação com a finalidade de apresentar uma

identidade e uma resposta ao homem e a mulher de hoje: Jesus Cristo, caminho, verdade de vida.

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28

Dentre as expressões mais concretas do fenômeno urbano está a cidade. Por isso, a Igreja

não pode descuidar da cidade e sua riqueza de diversidade. A cidade instiga a ação pastoral a se

refazer exigindo uma constante renovação.

A cidade é diversidade de pessoas, de ideias, religiões, culturas, modos

de viver, profissões, atividades, projetos, partidos, grupos. Cada grupo

precisa de um atendimento específico. Não pode haver nenhum esquema

uniforme de evangelização. O papel do bispo será manter a unidade na

diversidade e os presbíteros serão os assistentes dele nessa tarefa. Por

isso, uma pastoral urbana nunca será completa. Sempre vamos descobrir

realidades desconhecidas (COMBLIM: 2002 p 10).

As novas espacialidades atreladas ao território, são elementos determinantes para a

evolução da prática pastoral, pois devido a sua evolução e seus contrastes, exige uma atitude

pastoral que acompanhe a dinâmica da cidade formada por um tecido de grupos e classes que

imprimem um caráter plural e diversificado. Esta dinâmica exige dos cristãos uma continuada

conversão pastoral atrelada ao conhecimento da realidade sem descuidar de sua espiritualidade,

pois como percebemos, a espiritualidade é um elemento que possibilita a adesão a Fé nesse

contexto plural e marcado pela característica da subjetividade. Por isso, a ação pastoral deve

assumir uma postura plural e dialógica que lhe possibilite dialogar com as várias diversidades

dentro do mundo urbano e, ao mesmo tempo, estabelecer relações com as culturas que convivem

neste mesmo universo. Deve-se levar em consideração uma relação ecumênica com as diversas

tradições religiosas que também buscam alternativas de subsistir nos novos espaços, porém, sem

negar sua identidade que é o próprio Jesus Cristo. Desse modo, a evangelização torna-se original

e eficaz na medida em que compreende, dialoga e interage com essa nova realidade.

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Page 30: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

30

A CENTRALIDADE DO REINO NA EVANGELII GAUDIUM

Charles de Araújo Costa3.

Dr. Degislando Nóbrega de Lima4.

1. INTRODUÇÃO

A exortação apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, apresentada em

24 de novembro de 2013 é o programa de seu pontificado (EG, 1). Nela estão contidas as

características não só para seu pontificado, mas também para “o caminhar” da Igreja rumo

ao futuro.

Dentre as diversas características – ou categorias - da EG algumas estão

evidenciadas no texto, como as ideias da Igreja missionária, descentrada, colegial,

inculturada, de discípulos autênticos, pobres e etc., mas também há algumas não tão

evidentes, mas de suma importância para a compreensão do conjunto apresentado por

Francisco.

Assim sendo, nosso trabalho buscará apresentar o elemento, não evidenciado em

sua importância, que, sob nossa análise, é central, comporta todas as demais categorias

em si, e fundamenta toda a argumentação de Francisco, mas também toda a missão da

Igreja: a categoria do Reino de Deus no processo de evangelização.

À luz da categoria do Reino de Deus exporemos a fundamentação e a referência a

que tende à evangelização no contexto da Exortação Evangelii Gaudium, bem como, e

principalmente, a necessidade de compreendê-la para ser colocada em prática.

2. AS ÓTICAS NA EVANGELII GAUDIUM E SEUS CONTEÚDOS.

Num primeiro olhar observamos claramente que a Exortação Apostólica Evangelii

Gaudium se interessa pelos aspectos antropológicos e ético-sociais da realidade, sob uma

3 Graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (2012) e graduando em teologia pela

mesma universidade. 4 Doutor em Teologia da Missão pela Westfälische Wilhelms Universität (2001). Graduado em Teologia

pelo Centro de Estudos de Filosofia e Teologia do Seminário Imaculada Conceição da Arquidiocese da

Paraíba (1992), e em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (1991). Professor na

Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP, onde também é Diretor do Centro de Teologia e Ciências

Humanas. Tem experiência na área de Teologia e Ciências da Religião, é docente/pesquisador no Mestrado

em Ciências da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: pluralismo, libertação,

hermenêutica, cristianismo e modernidade/pós-modernidade. Avaliador de cursos do INEP.

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31

perspectiva pastoral, para identificar os desafios da missão evangelizadora da Igreja5. E,

de fato, essa é parte da intenção de Francisco (EG, 51).

Outro olhar nos poderia conduzir, também, ao aspecto humanístico e colocar o

homem no centro da Evangelii Gaudium6, já que na exortação são salientadas as noções

de pessoa como intersubjetividade (EG, 2), a primazia do ser humano nos processos

socioeconômicos (EG, 55) e a visão do ser humano como um ser que se narra e é narrado

por Deus (EG, 231).

Contudo, essas óticas não expressam a totalidade à qual está destinado o processo

evangelizador. A primeira ótica poderia nos conduzir a um assistencialismo de “cunho

caritativo”, a uma “caridade por receita” (EG, 180) que não nos conduziria ao real

objetivo da evangelização. A segunda ótica também poderia nos afastar do processo

evangelizador, pois poderia se focar no humano e deixar de lado a dimensão ascendente

à qual o Evangelho nos convida.

Poderíamos elencar diversas outras óticas, mas incorreríamos na parcialidade e

perderíamos o foco ao qual somos conduzidos a partir do texto: o anúncio do Reino de

Deus. Tal anúncio comporta os elementos acima citados, mas também outros elementos

que interpelem a todos7 e, acima de tudo, “as múltiplas vozes do nosso tempo” (GS 44)

que anseiam por respostas aos seus questionamentos.

Sobre isso Francisco utiliza as palavras de Paulo VI afirma que “Nenhuma

definição parcial e fragmentada, porém, chegará a dar razão da realidade rica, complexa

e dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de empobrecê-la e até mesmo de

mutilá-la” (EM apud, EG 176).

Assim sendo, todas as óticas e categorias têm seu início e seu fim na atividade

evangelizadora. É a partir dela e nela que se realiza a missão da Igreja.

A evangelização é o tema de destaque na Evangelii Gaudium. Sua importância é

tamanha: a evangelização é o motivo pelo qual a exortação é escrita (EG, 16-17); além

5 Essa ideia é levantada por Dom Benedito Beni dos Santos em sua obra Evangelizar com papa Francisco:

comentário à Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus, 2014. p. 11. 6 Por sinal, essa ótica é apresentada por Lúcia Pedrosa-Pádua em seu artigo “O ser humano, centro da

Evangelii Gaudium”, publicado no livro Evangelii Gaudium em questão: aspectos bíblicos, teológicos

e pastorais. São Paulo: Paulinas; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014. p. 135. 7 Fazendo referencia à XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre o tema A nova

evangelização para transmissão da fé cristã, ocorrida entre 07 e 08 de outubro de 2012, Francisco chama

atenção para o tríplice domínio da evangelização: primeiro a “pastoral ordinária” que tem em vista

reacender a o “fogo do Espírito” no coração dois fieis que frequentam as comunidades e dos que

“conservam uma fé católica intensa e sincera, embora não participem frequentemente do culto”; o segundo

domínio trata das pessoas que “batizadas, não vivem as exigências do Batismo”; e, por fim, “àqueles que

não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram”. (Cf. EG 14).

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32

disso, o termo evangelização perpassa todos os capítulos da exortação aparecendo 91

vezes e insere todos os elementos estruturais da vida humana em sua ação.

Contudo, a evangelização não é um fim em si mesma. Ela tem por fim o anúncio

e realização do Reino de Deus na experiência histórica. Por isso, Francisco afirma que:

“Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176). Nesses termos, o

centro ao qual tende a Igreja e sua missão, bem como as dimensões relacionadas a esse

processo é o Reino de Deus.

Assim, embora não tão explicitado – já que só apareceu cinco vezes em todo o

texto8 – o Reino de Deus é o centro da Evangelii Gaudium. E, já que “evangelizar é tornar

o Reino de Deus presente no Mundo” (EG 176), ou seja, os termos se “confundem” no

conjunto da exortação, podemos inferir que quando tratamos da evangelização tratamos

do Reino de Deus e vice-versa.

A intuição de Francisco sobre a evangelização, isto é, sobre tornar o “Reino de

Deus presente no mundo”, não é ingênua. Sua fundamentação parte de referências

cristológicas, que, por sinal, são apresentadas no início do texto. Paulo Cezar Costa chama

atenção para isso:

Já no início, onde Francisco exorta à alegria, esta se fundamenta na

Salvação de Deus preanunciada no Antigo Testamento, realizada no

ministério de Jesus de Nazaré, principalmente na sua ressurreição (EG

5). Jesus vive a alegria do Evangelho, exulta de alegria no Espírito e

louva o Pai, porque a sua revelação chegou aos pobres e pequeninos (cf.

Lc 10, 21; EG 21). Jesus Cristo é uma eterna novidade, ele é o

“evangelho eterno” (Ap 14,6), sendo “o mesmo, ontem, hoje e sempre”

(Hb 13,8; EG 11). Jesus “é o primeiro e o maior evangelizador” (EG

12) (COSTA, 2014. p. 173).

Assim, o fundamento da evangelização é o próprio Cristo. Da mesma forma que

Ele, ungido e guiado pelo Espírito, operou a obra de implantação do Reino de Deus, a

Igreja foi constituída e enviada por Ele a continuar sua missão.

Por isso, a missão da Igreja não parte de sua vontade própria, mas do desígnio

salvífico da Trindade, que se autorevelou, deu início ao “projeto evangelizador” e o

transmite a nós, capacitando-nos pela ação do Espírito, assim como acontecera com o

próprio Jesus Cristo.

8 Na Evangelii Gaudium a categoria do “Reino de Deus” aparece uma vez no nº. 179, duas vezes no nº.

180, uma vez no nº 197 e uma vez no nº 278.

Page 33: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

33

Destarte, para compreendermos o arcabouço da evangelização é necessário acenar

para a figura de Jesus Cristo.

3. ANÚNCIO DO REINO DE DEUS: CENTRO DO MINISTÉRIO DE JESUS

DE NAZARÉ.

O Reino de Deus é o tema central da Pregação de Jesus. Jesus “andava por toda a

Galiléia proclamando o Evangelho do Reino de Deus” (Mt 4,23).

É interessante observar que os evangelhos fazem questão de salientar o anúncio

do Reino por Jesus, bem como as suas consequências na sua vida e na vida dos que aderem

à “missão de anunciar o Reino”9. Basta olhar o início do ministério de Jesus, segundo

Lucas: após ler a passagem de Isaías e aplicá-la a si mesmo, como também após dizer

algumas verdades, Jesus vê as consequências do seu anúncio se voltarem contra ele

mesmo (Cf. Lc 4, 16-30). Contudo, Ele não se deixa desanimar, mas vai até o fim, pondo

em prática o seu ministério.

Nessa mesma passagem Jesus apresenta o seu projeto ministerial: “O Espírito do

Senhor está sobre mim, porque me ungiu e enviou-me para anunciar a Boa-Nova aos

pobres, para anunciar a liberdade aos cativos e a visão aos cegos, para pôr em liberdade

os oprimidos e para proclamar o Ano da graça do Senhor” (Lc 4, 18-19). Observar o

projeto de Jesus é muito interessante porque nos faz perceber que o Reino de Deus não é

uma realidade distante ou só futura, “a acontecer num apocalipse”, mas é uma realidade

presente, que acontece no hoje da existência daquele que é convidado a participar do

Reino.

Além disso, esses dados nos levam a inferir que o Reino está intimamente ligado

à pessoa de Jesus, aos seus gestos, às suas ações e as suas palavras. Nesse sentido, quando

ele fala, quando ele “faz alguma ação ou algum gesto”, estes não só revelam, mas realizam

o Reino de forma concreta10.

9 Paulo Cezar Costa em seu artigo “Dimensão Cristológica da Evangelii Gaudium” cita algumas passagens

dos evangelhos evidenciando esse as exigências e consequências para a vida no “Reino de Deus” partindo

do próprio Jesus. Evangelii Gaudium em questão: aspectos bíblicos, teológicos e pastorais. São Paulo:

Paulinas; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014. p. 173 à 180. 10 Tratando do termo Evangelho em sua obra Jesus de Nazaré, Joseph Ratzinguer chama atenção para o

significado do vocábulo sob a ótica do Reino de Deus: “No vocabulário atual da teoria da linguagem se

poderia dizer: o Evangelho não é um discurso puramente informativo, mas “performativo”; não simples

comunicação, mas ação, força eficaz que entra no mundo para curar e transformar”. RATZINGER, J. Jesus

Page 34: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

34

Passando por todos os evangelhos percebemos o intuito de Jesus em estabelecer o

conhecimento e a dedicação total ao Reino por meio de si mesmo. Jesus é a expressão do

Reino, pois, tudo nEle revela o Reino. E como o Reino é de seu Pai, a sua conformidade

ao projeto salienta que tudo o que Ele faz é querer do Pai; principalmente os mistérios

que envolvem sua vida, isto é, sua Encarnação, seu Padecimento e sua Ressurreição.

O anúncio e construção do Reino não se findaram com o evento Cristo, mas graças

a seu mandato aos discípulos – “ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a todas

as criaturas (Mc 16,15) – o anúncio do Reino foi passado para a Igreja, que tem a

obrigação de continuar essa missão; e continuando a missão evangelizadora, ela expressa

sua relação de intimidade com o Pai, a exemplo de Jesus.

Por isso, a evangelização não pode ser compreendida como o anúncio de uma

palavra qualquer, mas deve ser bem compreendida para orientar-se a anunciar a realidade

transformadora do Reino de Deus.

4. O REINO DE DEUS E SUA CONCRETUDE HISTÓRICA

Como enviada, a Igreja, Povo de Deus, tem a obrigação de realizar o mandato de

Jesus: “Ide por todo mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15), isto é,

de fazer de sua ação às ações de Jesus, percebendo a partir dos evangelhos como Jesus

anunciou e colocou em ação o Reino de Deus.

E, como a o anúncio do Reino por parte de Jesus não se resumiu a palavras, mas

realizou-se em ações, a Igreja é convidada a, também, fazer o mesmo. Por isso, o Papa

Francisco no capítulo 4 da exortação faz questão de salientar que a evangelização possui

uma intrínseca dimensão social, em vista da promoção humana:

“A partir do coração do Evangelho, reconhecemos a conexão

íntima que existe entre evangelização e promoção humana, que

se deve necessariamente exprimir e desenvolver em toda ação

evangelizadora” (EG, 178).

E essa dimensão não é uma redução de sua missão em vista de uma “tranquilização

da própria consciência” (EG, 180), mas é sinal da caridade que nos veio primeiro, pelo

de Nazaré: do Batismo do Jordão à Transfiguração. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007. 11ª

impressão. p. 58.

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35

amor do Pai em Jesus, e que somos chamados a também concretizar, já que somos, como

Igreja, íntimos do Pai. Por isso Francisco afirma que:

A aceitação do primeiro anúncio, que convida a deixar-se amar

por Deus e a amá-Lo com o amor que Ele mesmo nos comunica,

provoca na vida da pessoa e nas suas ações uma primeira e

fundamental reação: desejar, buscar e cuidar do bem dos outros

(EG, 178).

Do mesmo modo como tudo – palavras, gestos e ações - em Jesus revela o Reino

de Deus, o anúncio do Reino por parte da Igreja faz despontar a sua natureza: “Assim

como a Igreja é missionária por natureza, também brota inevitavelmente dessa natureza

a caridade efetiva para com o próximo, a compaixão que compreende, assiste e promove”

(EG 179).

Por isso, é importante que os cristãos aprendam que a “proposta” de Jesus não é

algo simples e pessoal, mas algo que toca toda a existência, e dissipa toda e qualquer

forma de isolamento ou de tentativa egoísta de ter o amor e ação de Deus para si mesmo,

ou de colocar-se no lugar dEle. “A proposta é o Reino (Lc 4,43); trata-se de amar a Deus,

que Reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será

um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos” (EG, 180).

Por isso, faz-se necessário que os cristãos alcancem e propaguem o conhecimento

do real objetivo da evangelização, isto é, o Reino de Deus, para que assim o concretizem.

E isso para que o assumam com todas as suas consequências, para que não retirem de

dentro do seu conjunto realidades que fazem parte do projeto e as isolem e, finalmente,

para que transformem em Cristo as realidades que afastam a efetivação do Reino.

Bibliografia:

Bíblia de Jerusalém. 3ª ed. São Paulo: Paulus, 2004.

AMADO, Joel Portella; FERNANDES, Leonardo Agostini. Evangelii Gaudium em

questão: aspectos bíblicos, teológicos e pastorais. São Paulo: Paulinas; Rio de Janeiro:

PUC Rio, 2014.

CONSTITUIÇÃO GAUDIUM ET SPES. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965.

Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas,1998.

FRANCISCO, papa. Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013.

Page 36: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

36

PAULO, papa. Evangelii Nuntiandi. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 2014.

RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém à Transfiguração. 5ª

ed. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2013. 5ª reimpressão.

SANTOS, Benedito Beni dos. Evangelizar com papa Francisco: comentário à Evangelii

Gaudium. São Paulo: Paulus, 2014.

SUESS, Paulo. Dicionário da Evangelii Gaudium: 50 palavras-chave para uma leitura

pastoral. São Paulo: Paulus, 2015.

Page 37: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

37

A IGREJA E A INTERNET

Davi Daniel Barbosa11

INTRODUÇÃO

Os computadores surgiram na Inglaterra e Estados Unidos nos anos de 1945 e

foram utilizados primeiramente para fins militares no início tratavam-se de imensas

máquinas, de elevado custo, que ocupavam andares inteiros, destinadas a fazer cálculos

científicos e estatísticos (LÉVY, 1999, p. 31). A partir dos anos 60 seu uso civil foi

disseminado, primeiramente para fins acadêmicos, tornando-se entre estudantes e

professores universitários, principalmente dos EUA, um importante meio de

comunicação, facilitando as trocas de ideias, mensagens e descobertas pelas linhas da

rede.

Nos anos 70 surgiu o microprocessador12cujas reduções do tamanho e custo dos

computadores trouxe um grande avanço na utilização e disseminação deste novo

equipamento, a partir disso, iniciaram-se as pequenas redes que conectavam alguns

poucos computadores.

No final dos anos de 1980 surgiram as máquinas pessoais que puderam ser

compradas e manuseadas facilmente até pelas pessoas sem formação científica. As

diferentes redes de computadores que se formaram nos finais dos anos 70 juntaram-se e

o número de pessoas e computadores conectados começou a crescer de forma

exponencial, cria-se a internet13 e o computador foi perdendo o seu status técnico,

começou a se apropriar de diversas mídias e possibilitou a interatividade, até que se criou

11Bacharel e Mestrando em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco, Recife, PE. e-mail

[email protected] 12 Unidade de cálculo aritmético e lógico localizada em um chip eletrônico. (LÉVI, 2002, p.31) 13 A palavra internet refere-se à INTERnationalNETworkof digital communication, que emerge

de aglomerados de centenas de redes (LAN = Local Area Network, CWUIS = Campus

WideInformation System, WAN= Wide Área Network, regional ou nacional) e interage através

de um número de protocolos comuns em todo o mundo. A internet é então; a infraestrutura

(dimensão física: computadores mais conectividade, anisotrópica e espaço hierárquico), uma

plataforma de memória (ambiente digital para software e documentos), é uma rede aberta de redes

independentes em que cada sub-rede opera e é autonomamente administrada (MOURÃO, 2001,

p. 68-69).

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38

um novo espaço, o ciberespaço14 que integra-se à vida cotidiana num novo contexto

social. Sobre este novo ambiente assim nos dia Antonio Spadaro:

Um espaço antropológico interconectado na fonte com outros espaços

de nossa vida. Em vez de nos fazer sair de nosso mundo para singrar o

mundo virtual, a tecnologia fez entrar o mundo virtual dentro do nosso

mundo ordinário (2012, p. 18).

O Brasil só começou utilizar a internet a partir dos finais dos anos 80, quando

ficou disponível apenas para algumas instituições de pesquisa. Em maio de 1995, foi

criado a figura do provedor de acesso privado possibilitando, na prática, a conexão à rede

de qualquer cidadão comum.

Nesses 20 anos, em que o Brasil faz uso desse instrumento, o computador passou

por inúmeros avanços e transformações: os equipamentos foram sendo reduzidos a

tamanho formato, que é possível tê-los “na palma da mão”; essa tecnologia ultrapassou

as linhas discadas de acesso a internet e aumentou a velocidade em escalas exponenciais,

cujas memórias15 ficaram cada vez mais potentes e mais acessíveis.

Foram criados pontos de acesso à rede para quem não tem computador, a

chamada (lan-house); cidades inteiras foram conectadas via wi-fi;16 aumentou-se

significativamente o número de programas de computação (software); neste período o

número de usuários não parou de cresceu velozmente, superando o ritmo de qualquer

outra implantação de tecnologia eletrônica de comunicação.

Hoje o país já possui mais de 85 milhões de usuários da internet no Brasil, o que

corresponde a 51,6% da população.17Junto com este crescimento também diversificaram-

se as possibilidade de uso deste ciberespaço que passou a ser um ambiente livre para a

manifestação de ideias, busca de pesquisa, um espaço de lazer, de compras, de

socialização e comunicação planetária, dinâmica, libertária e interativa entre os usuários,

14 O ciberespaço ou rede é um novo meio de comunicação gerado pela conexão mundial dos

computadores, o termo se refere à infraestrutura e também ao oceano de informações que ele

abriga e também aos seres humanos que usam e que alimentam este universo, é um instrumento

privilegiado de inteligência coletiva. 15 Memória são todos os dispositivos que permitem guardar dados, temporária ou

permanentemente em um computador. 16wi-fi embora seja uma marca registrada de uma empresa, é comumente utilizado para designar

dispositivos de rede local sem fios. 17http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/mais-da-metade-dos-brasileiros-sao-usuarios-da-

internet. Acesso em 18/05/2015 à 20hs.

Page 39: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

39

que deixam de ser meros receptores, tornando-se participantes e produtores de

informação.

Um veículo de comunicação com este potencial não poderia passar despercebido

pela Igreja, que compreende não ser suficiente usá-lo para difundir a mensagem cristã,

masque é necessário integrar a mensagem nesta ‘nova cultura’ e reconhece as mudanças

qualitativas deste novo ambiente, considerando os meios de comunicação social, incluso

a internet, como “dons de Deus” que possibilitam o relacionamento entre os seres

humanos a proporção que criam laços de solidariedade entre eles.

A Igreja percebe as transformações revolucionárias promovidas pela internet em

todos os campos e estas mudanças se manifestam no modo dos seres humanos se

comunicarem entre si e na forma de compreenderem a sua própria vida (PONTIFÍCIO

CONSELHO PARA AS COMUNICAÇÕES SOCIAIS, 2002).

A Igreja, através da internet, procura comunicar-se eficazmente com os

indivíduos, levando a mensagem cristã para além do púlpito e do templo, tanto para uma

parte das pessoas cuja rede atinge um significativo número, principalmente entre os mais

jovens - ávidos por esta nova ferramenta quanto para àquelas que são obrigadas a

permanecer em casa ou porque estão impossibilitados de ir à Igreja, por motivos de

doença, ou porque vivem em regiões remotas.

Além dos seus documentos oficiais, facilmente pode-se perceber como o

Vaticano e até o papa utiliza deste meio de comunicação para estar mais próximo aos

fiéis: a) em 2009, o Vaticano lançou seu próprio canal no Youtube18 com vídeos

atualizados diariamente; b) ainda no mesmo ano, foi lançada a página Pope2You, uma

iniciativa, que através do Facebook19 e de um aplicativo para iPhone, permitia o acesso a

mensagens do Papa Bento XVI e o envio de cartões digitais; c) em 2010, foi lançado o

site News.va, reunindo departamentos de mídia e comunicação da Santa Sé; d) em 2011

o site do vaticano foi reformulado, possibilitando o seu acesso à celulares e leitores

18YouTube é um site que permite que seus usuários carreguem e compartilhem vídeos em formato

digital. 19Facebook é um serviço de rede social que conecta pessoas através da internet.

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eletrônicos; e) em 2012, o Papa Bento XVI entrou no Twitter20 e começou a enviar suas

mensagens através da conta @Pontifex (SBARDELOTTO, 2013).

Quantificar com precisão a presença de páginas católicas brasileiras na web21 é

uma tarefa quase impossível, tendo em vista a diversidade de critérios, pelas

generalidades dos resultados e pela rapidez com que as mesmas se multiplicam,

transformam-se numa verdadeira “Babel” de informações, são necessários critérios

objetivos ao se utilizar de filtros que possam conduzir à pesquisa para resultados

realmente representativos. A título de ilustração, verifica-se que no maior site de pesquisa

da rede – Google, ao ser digitado o termo‘católico’ para pesquisa, encontra-se 7.820.000

resultados, além do mais, este mesmo site tem um espaço denominado “Google Católico”

– trata-se de uma ferramenta de buscas exclusivamente em sites católicos.

A grosso modo, ao pesquisar as páginas católicas, estas podem ser assim

classificadas: páginas institucionais de paróquias, de arquidioceses, das principais igrejas,

editoras, instituições religiosas e páginas pessoais de católicos sem ligação específica com

qualquer igreja, além de blogs22;também encontra-se referências à igreja no Facebook,

Instagram,23Twitter e vários aplicativos para telefones celulares que são os instrumentos

mais utilizados, tendo em vista a disponibilidade e a praticidade no acesso à internet.

No caso das páginas institucionais, encontram-se dados básicos como: nome,

localização, fotos dos templos, dos padres e/ou bispos, eventos ocorridos nas igrejas; em

algumas se encontram chats24 para comunicação online com o padre ou responsável, santo

do dia, links de acesso a outras instituições, etc.

20O Twitter é uma rede social que permite que os usuários enviem atualizações pessoais,

contendo apenas texto, em menos 140 caracteres via www.twitter.com, SMS, e-mail, ou algum

programa instalado no computador, como o TweetDeck. Disponível em

<www.claudiotorres.com.br/entenda-o-twitter-o-que-e-e-como-funciona>. Acesso em

09/06/2015. 21Web aparece aqui com o significado de rede (da internet). 22Blog ou blogue (contração do termo inglês weblog, "diário da rede") é um site cuja estrutura

permite a atualização rápida a partir de acréscimos dos chamados artigos, ou posts. Estes são, em

geral, organizados de forma cronológica inversa, tendo como foco a temática proposta do blog,

podendo ser escritos por um número variável de pessoas, de acordo com a política do blog. 23Instagram é uma rede social online de compartilhamento de foto e vídeo que permite aos seus

usuários tirar fotos e vídeos, aplicar filtros digitais e compartilhá-los em uma variedade de

serviços de redes sociais, como Facebook, Twitter, etc. Disponível em

<pt.wikipedia.org/wiki/Instagram>. Acesso em 09/06/2015. 24 Forma de comunicação a distância, utilizando computadores ligados à internet, na qual o que

se digita no teclado de um deles aparece em tempo real no vídeo de todos os participantes do bate-

papo.

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41

As páginas pessoais são mais simples, na sua grande maioria, podendo conter

alguns dos recursos mencionados nas páginas institucionais, mas basicamente eles se

destinam para o cristão testemunhar a sua fé através da internet, postar mensagens e

passagens bíblicas preferidas, além de informações pessoais.

Infelizmente, nem todos percebem a importância deste novo ambiente, ou se

percebem ainda não deram a devida importância, só comunicam fatos e informações, sem

permitir a interatividade, sem explorar as suas potencialidades, a exemplo do mito da

Caverna de Platão25, olham as sombras projetadas na parede e ficam felizes com o que

representam, ao invés de verificar a realidade que possuem atrás de si. Veja-se, por

exemplo, o site da Arquidiocese de Olinda e Recife:

25 O Mito da Caverna, é uma passagem do livro “A República” do filósofo grego Platão. É mais

uma alegoria do que propriamente um mito. É considerada uma das mais importantes alegorias

da história da Filosofia. Através desta metáfora é possível conhecer uma importante teoria

platônica: como, através do conhecimento, é possível captar a existência do mundo sensível

(conhecido através dos sentidos) e do mundo inteligível (conhecido somente através da razão).

O mito fala sobre prisioneiros (desde o nascimento) que vivem presos em correntes numa caverna

e que passam todo tempo olhando para a parede do fundo que é iluminada pela luz gerada por

uma fogueira. Nesta parede são projetadas sombras de estátuas representando pessoas, animais,

plantas e objetos, mostrando cenas e situações do dia-a-dia. Os prisioneiros ficam dando nomes

às imagens (sombras), analisando e julgando as situações.

Vamos imaginar que um dos prisioneiros fosse forçado a sair das correntes para poder explorar o

interior da caverna e o mundo externo. Entraria em contato com a realidade e perceberia que

passou a vida toda analisando e julgando apenas imagens projetadas por estátuas. Ao sair da

caverna e entrar em contato com o mundo real ficaria encantado com os seres de verdade, com a

natureza, com os animais e etc. Voltaria para a caverna para passar todo conhecimento adquirido

fora da caverna para seus colegas ainda presos. Porém, seria ridicularizado ao contar tudo o que

viu e sentiu, pois seus colegas só conseguem acreditar na realidade que enxergam na parede

iluminada da caverna. Os prisioneiros vão o chamar de louco, ameaçando-o de morte caso não

pare de falar daquelas ideias consideradas absurdas. Disponível em

<http://www.suapesquisa.com/platao/mito_da_caverna.htm>, acesso em 09/06/2015.

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42

A página principal do site apresenta

na sua parte superior uma foto da

cidade de Recife onde se sobrepõe o

brasão do Bispo com o nome da

Arquidiocese de Olinda e Recife; na

faixa da esquerda, que se manterá fixa

à escolha do menu, encontram-se

vários “botões” que levam às páginas

complementares do site, tais como:

história da arquidiocese; arcebispo -

rápida bibliografia dos três

arcebispos, o titular, o emérito e o

auxiliar; clero - relação dos padres

com respectivos endereços e contatos; vicariatos – subdivisão da arquidiocese; paróquias

que compõem a arquidiocese, pastorais– as desenvolvidas na arquidiocese; centros de

formação – endereços de casas de formação, curso para noivos – calendário dos cursos

para noivos na arquidiocese , notícias – da arquidiocese, formação – onde aparecem mais

notícias e fale conosco. Logo abaixo e, ainda na faixa a esquerda, encontra-se um “cartaz”

sobre a Campanha da Fraternidade deste ano que, ao ser clicado, só conduz para uma

ampliação do mesmo, abaixo tem-se um “cartaz botão” que direciona para o jornal online

da Arquidiocese, cujo exemplar de acesso corresponde ao bimestre de setembro/outubro

de 2012. O centro da página é representado por quatro grandes campos: palavras do

Arcebispo; Notícias (repetindo-se o apresentado nos botões principais); documentos e

formação (também repetição do botão principal) e eventos. De acordo com as escolhas

dos botões no menu principal, esta parte central da página é modificada, apresentando-se

o que foi requisitado. Na parte inferior é apresentado uma faixa fixa com links de acesso

para a Rádio Olinda, redes sociais, e paróquias.

Uma das possibilidades que mais levam um site ser visitado é o seu conteúdo, sua

interatividade e sua atualização. Entretanto, facilmente percebe-se que o site da

Arquidiocese local, falha sob estes pontos de vista em vários aspectos: a) ele se parece

com um quadro mural, utiliza uma mídia clássica para dar informações; b) a interatividade

com o internauta é mínima, reduzida ao quadro “fale conosco”; c) não se percebe, no site,

uma aproximação ao Sagrado; d) o site possui várias partes desatualizadas, em consulta

Page 43: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

43

ao mesmo em 09/06/2015, foram encontradas várias notícias defasadas, a mensagem do

Arcebispo, por exemplo, refere-se à Missa do Crisma e o acesso ao jornal online, que

possui destaque no site, conduz à edição do bimestre de set/out de 2012; e) há duplicidade

de acesso para as mesmas informações, etc.

Numa versão atualizada, contrária ao do site da Arquidiocese encontra-se o site

da Paróquia da Torre, pertencente à Arquidiocese de Olinda e Recife: o site

possui uma pagina inicial, cujo

conteúdo está na parte superior e onde

podemos encontrar “botões de acesso”

como paróquia, formação, orações,

multimídia e contato. O botão paróquia

conduz ao histórico, pastorais, ECC26,

padres e CAP27, no botão de formação

aparecem vários títulos e clicando sobre

os mesmos, tem-se acesso aos textos; no

botão multimídia, tem-se acesso à

webtv e aos links com Facebook,

Twitter, Instagram,etc. Há um botão

para contato e na parte central tem-se

também um acesso ao blog da capela da

paróquia; enquanto tudo isso ocorre,

fica a disposição do internauta os horários das missa, adoração e confissão, bem como, as

últimas notícias, sempre atualizadas.Além do site ser mais simpático, há um visual mais

moderno, mais interativo que possui uma atualização constante, de tal forma, que é muito

convidativo a sua consulta.

Pode-se descrever sites mais completos, com uma gama muito maior de opções e

de possíveis acessos, como por exemplo o da Canção Nova ( www.cancaonova.com.br),

ou ainda o site do Santuário de Aparecida, (www.a12.com/santuario-nacional), referem-

se à portais de acesso, tendo desde a parte referentes aos histórico e formação, liturgia;

passando pela parte de multimídia, chats, músicas, vídeos, livraria, peregrinações

26ECC, refere-se ao Encontro de Casais com Cristo, serviço da igreja criado nos anos 70 para

aproximação dos casais da Igreja. 27CAP - Conselho Administrativo e Pastoral

Page 44: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

44

virtuais, notícias, ensino bíblico, editoras, fórum de discussões e uma infinidade de outros

recursos que atraem o internauta cristão para que sempre o acesse.

Salienta-se que não é objetivo desse texto analisar site por site, mas tratar,

apenas,de uma tentativa para despertar as igrejas particulares à exploração desse

ambiente, de forma criativa, aproveitando o potencial desse novo método de divulgação

da mensagem cristã.

CONCLUSÃO

Pelos exemplos acima citados, pode-se concluir que, a formação de um bom

veículo de comunicação não fica restrito ao campo financeiro, mas amplia-se ao campo

estrutural, porque a princípio, uma paróquia, possui menos possibilidades do que a

Arquidiocese; é preciso que os envolvidos no processo, convençam-se das oportunidades

geradas nesse novo ambiente e o coloque ao serviço (Ag 2,4), em vista da formação do

Reino de Deus anunciado por Jesus.

A Igreja precisa se apoderar desse novo suporte e no ciberespaço, digitalizar seus

documentos e informações, integrando-os, na medida do possível, em uma mesma

plataforma que permita acessos rápidos e restritos; tal medida propiciaria a integração

entre as paróquias, tornaria o processo mais ágil, teria menos burocracia, além de oferecer

maior segurança aos dados que atualmente se perdem em armários sujeitos a todo tipo de

intempéries.

Projetos pastorais comuns, campanhas de ajudas mútuas, informações

centralizadas da Igreja local, recursos multimídias com o filmes, mensagens radiofônicas,

homilias, conteúdo doutrinal, seriam algumas das vantagens de um projeto estruturado de

utilização da internet. Isso poderia se tornar um canal confiável de informação a

respeitodas atividades na e da arquidiocese e poderia reforçar os vínculos de unidade entre

os cristãos.

A internet, por si só, não gera vínculos de relações como as desejadas desde o

inicio do cristianismo, mas ela pode ser um facilitador no contato com as pessoas e um

caminho para a divulgação da mensagem cristã. Faz-se necessário ensinar aos

seminaristas e jovens padres sobre o potencial deste novo instrumento; (cursos e

Page 45: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

45

seminários no que diz respeito ao uso da internet, podem seapresentar como uma proposta

viável dentro desse novo contexto de evangelização).

Deve-se aproveitar e utilizar a capacidade dos leigos que muitas vezes já utilizam

da internet de forma profissional, que coloquem seus talentos a serviço da Igreja e do

próximo.

A rede, cada vez mais, está na vida de todos os cristãos e influencia na capacidade de

compreender a realidade, na sua fé e no seu modo de vivê-la, como “ser e fazer igreja”,

ela possibilita ao ser humano desenvolver sua capacidade de conhecimento e de relações

humanas, pilares fundamentais da existência da Igreja.

REFERÊNCIAS

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Nota doutrinal sobre alguns

aspectos da evangelização. Disponível em <http://

www.vatican_curia/congregations/efaith/doc>. Acesso em: 09/06/2015.

LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: ed. 34, 1999.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA AS COMUNICAÇÕES SOCIAIS, Igreja e Internet.

Disponível em: <http:// www.vatican.va>. Acesso em 05/06/20115.

SPADARO, A. Ciberteologia: pensar o cristianismo nos tempos da rede. São Paulo:

Paulinas, 2012.

________Web 2.0: redes sociais. São Paulo: ed. Paulinas, 2013.

SBARDELOTO, M. E o verbo se fez bit: a comunicação e a experiência religiosas na

internet. São Paulo: Ed. Santuário, 2012.

________@Pontifex e os sacros tuites; as redes sociais digitais segundoBento XVI. São

Leopoldo, 30 jan. 2013. Artigo postado no site do Instituto Humanitas Unisinos, no link

Notícias. Disponível em: <http://migre.me/ds1SZ>.

Page 46: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

46

FAZENDO JUS AO NOME?:

Aspectos culturais do Filho do Homem em Jesus Cristo

Edivaldo Ferreira de Arruda28

1 Um panorama histórico

O termo “Filho do Homem”, entre outros títulos cristológicos, tem sido um objeto

de estudo desde o século XX e certamente divide opiniões. Tem se observado também

que a partir da perspectiva de muitos teólogos, o significado do termo pode ter sido

atribuído a uma gama diversa de opiniões dos escritores dos Evangelhos.

Inicialmente, em nível um nível mais superficial, é interessante relacionar os

diversos títulos cristológicos, ressaltando a importância destes para a pessoa e obra de

Jesus Cristo. Realizando em seguida a análise da historicidade do termo Filho do Homem,

a partir da perspectiva judaico-cristã. Por outro lado, por meio de apreciações de trabalhos

de vários comentaristas bíblicos e exegetas, também se faz necessário verificar as

possíveis semelhanças entre o Filho do Homem e o Messias, evidenciando as

características de convergências entre ambos.

Ademais, é interessante fazer um estudo linguístico do termo Filho do Homem, à

luz da análise histórico-teológica desta expressão, a fim de problematizar, as razões pelas

quais Jesus Cristo se utilizou desse aposto para referir-se à sua pessoa, e de que maneira

se pode relacionar as nuances da figura do Filho do Homem com a designação

escatológica.

2 O Filho do Homem na cultura judaico-helênica

28 O autor é ministro Batista na PIEBP, mestrando em Teologia pela UNICAP na área de interpretações de

literatura bíblica e teológica, graduado em Licenciatura em Física pela UFRPE, Bacharel em Teologia nos

seminários STBNB e STPN. Atualmente leciona no STPN as disciplinas de grego instrumental, hebraico

instrumental, Exegese do Novo e do Antigo Testamentos, orientação à monografia e Novo Testamento.

Page 47: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

47

A partir da perspectiva bíblica, é razoável perceber por que se gastou tempo nas

análises da apropriação do nome o Filho do Homem por Jesus Cristo, quem sabe com a

intenção de identificar-se com o Filho do Homem descrito em Dn 7.1329. Certamente,

muitos dos que adotam a linha de hermenêutica bíblica30 para investigar os aspectos que

davam significação à utilização da expressão o Filho do Homem em Jesus, procuram

ressaltar o papel exercido por uma figura escatológica31. Isso não quer dizer que Jesus

será despojado da sua natureza humana, mas que o ato de julgamento das nações no fim

dos tempos retrata a ação transcendental de Cristo. Evidentemente, diante da expectativa

messiânica, é razoável supor que “A literatura judaica tardia indica que este termo geral,

‘homem’, serviu, na época de Jesus, para designar um salvador escatológico: é o título

que ostentaria um mediador especial a aparecer no final dos tempos. ” 32

Em geral, a literatura judaica tardia é composta por livros históricos cujos textos

foram escritos posteriormente àqueles comumente aceitos pela tradição judaica. Com

efeito, embora muitos daqueles livros não sejam considerados proto-canônicos33, eles

oferecem em sua estrutura elementos que refletem o contexto aos quais se referem,

podendo trazer, por analogia, esclarecimentos significativos. A literatura judaica tardia

dos livros apocalípticos de 4 Esdras e Enoque também são relevantes para esboçar os

aspectos culturais da comunidade judaica, em contrapartida, não são interessantes para o

estudo linguístico, porque não são considerados pré-cristãos, tornando-se, por

conseguinte, historicamente distantes do cenário da literatura sinótica. Assim sendo, é

preciso ressaltar que:

Das três fontes principais, a evidência d 4Esdras 13 pode ser

descartada para o nosso propósito porque não é pré-cristã. A

passagem de Enoque na qual o título aparece (37-71) com toda a

probabilidade, não é pré-cristã pois não há evidências dessas

seções nas porções sobreviventes de Enoque encontradas na

biblioteca de Qumran. É perigoso, portanto, dar valor a ela para a

29 Daniel 7.13 “Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem, e dirigiu-se ao Ancião de Dias, e o fizeram chegar até ele.” 30 Hermenêutica bíblica é a ciência que trata da interpretação dos textos bíblicos. 31 Escatologia é o ramo da teologia sistemática que estuda a doutrina dos últimos dias. 32 CULLMANN, O. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008, p. 184. 33 Proto-canônicos se refere ao conjunto de livros do Antigo Testamento aceitos no primeiro momento pela

tradição judaica e mais tarde pela Igreja cristã.

Page 48: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

48

interpretação do uso sinótico. Isso nos deixa com Dn 7 como

única fonte pré-cristã. 34

Cullmann35 é menos enfático em relação a possibilidade de Daniel 7.13 ser

utilizado como fonte exclusiva de consulta para compreender a figura do Filho do

Homem. Conquanto ele reconheça a importância da obra judaica de Enoque para a

compreensão do começo do cristianismo, contudo, admite ser uma literatura tardia. Ladd

também considera pouco relevantes tais escritos para uma análise do termo Filho do

Homem, assinalando que:

Enoque obviamente consiste de cinco partes. Os fragmentos de

quatro partes foram encontrados entre os escritos de Qumran, mas

nenhum fragmento das Similitudes foi encontrado. Isto leva

muitos estudiosos a concluírem que as Similitudes não podem ser

pré-cristãs e não podem ser usadas para interpretar o conceito de

Filho do Homem encontrado no Novo Testamento.36

Entretanto, deve-se considerar que existem muitos debates acerca da importância

do uso de documentos helenistas como aparato linguístico, que visam o entendimento de

certas questões teológicas ocorridas durante o período cristão. Mas é razoável entender

os questionamentos levantados por Guthrie ao ressaltar a imprecisão de fontes

documentais do período helênico pelo fato de que estas não são pré-cristãs, embora de

certo modo ressaltem características que coincidam com o pensamento cristão. Destarte,

no período helenista, é difícil perceber referências significativas do termo grego o` ui`o.j

tou/ avnqrw.pou37 que tenha influenciado o pensamento cristão. Além do mais é possível

perceber historicamente que outras figuras preeminentes também passaram a fazer parte

da expectativa do mundo oriental e helenista, cujas características não coincidem com

àquelas descritas no Filho do Homem empregado nos Evangelhos Sinóticos. Em relação

a esse ponto de vista, Russell pontua que “por todo o mundo oriental e helenístico, havia

uma crença amplamente difundida em um Homem Primordial, cujas qualidades e

34 GUTHRIE, D. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 277. 35 CULLMANN, op. cit., p.186. 36 LADD, G. E. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003, p.197. 37 o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou (ho huiós tu anthrôpu) é o termo grego que se refere a expressão “O Filho do

Homem.”

Page 49: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

49

propriedades eram, em alguns aspectos, notavelmente semelhantes àquelas do Filho do

Homem do apocalíptico judaico. ” 38

No livro de Daniel e nas literaturas apocalípticas do primeiro século (4 Esdras e

Enoque), pode-se inferir que o Filho do Homem não tem característica de título, uma vez

que não corresponde a uma determinada designação decorrente do ofício do nome. Nota-

se que:

O que chama a atenção na expressão um como Filho do Homem

é o “como”. Ele parece estar relacionado ao começo da visão do

capítulo 7, quando Daniel vê os animais: um “como” um leão,

outro “como” um urso e outro “como” um leopardo. A linguagem

é claramente simbólica. A questão é saber se um como Filho do

Homem se refere a um homem elevado à esfera celeste, ou a um

ser celestial que aparece em forma humana. 39

É razoável considerar que entre os séculos I e II d.C. havia a significativa

preocupação com a reinterpretação das literaturas mais antigas, principalmente aquelas

nas quais existiam perspectivas apocalípticas. Talvez pela necessidade dessas releituras é

que muitos teólogos contemporâneos, entre eles, Bultmann, Jeremias, Dunn etc.

acreditam que o termo Filho do Homem também fosse uma releitura posterior dos

escritores sinóticos à luz de Daniel 7, e por essa razão colocaram nos lábios de Jesus esse

título escatológico. Diante dessas conjecturas não se pode negar que na tradição judaica

havia a expectativa de um ser transcendente, como um homem, que exerceria julgamento

sobre todas as nações, e o seu reinado seria eterno.

Por outro lado, é importante enfatizar a distinção observada no emprego do termo

“o Filho do Homem” na literatura véterotestamentária, ressaltando os aspectos

contextuais nos quais o significado da expressão está condicionado às circunstâncias

relativas ao ser humano diante de sua frágil condição enquanto criatura, ou ao ser humano

com aspectos transcendentais, retratando nesse último, a imagem descritiva da

perspectiva judaica que expectava, da parte de Deus, o ser que haveria de se manifestar e

soberanamente julgaria as nações; assim, partindo da analogia entre o livro de Daniel e

Ezequiel, pode-se dizer que:

38 RUSSELL, D. S. Entre o Antigo e o Novo Testamentos O Período Interbíblico. 2. ed.São Paulo: Abba

Press, 2007, p.140. 39 SCHIAVO, L. Anjos Messias: Messianismos judaicos e origem da cristologia. São Paulo: Paulinas,

2006, p. 51.

Page 50: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

50

Em Ezequiel, Deus se refere ao profeta com a expressão "filho do

homem" mais de noventa vezes, apontando para a fragilidade de

Ezequiel como um ser humano perante o poderoso Deus revelado

na visão. Mas "Filho do Homem" é usado também na profecia de

Daniel para se referir a um Soberano glorificado, a figura

apocalíptica messiânica que governa para sempre com o Ancião

de Dias (Dn. 7:13-14). 40

A síntese apresentada ressalta a figura do “filho do Homem” como o ser homem

no sentido frágil e debilitado diante do Deus Todo-Poderoso, conforme descrito no livro

de Ezequiel, é intensificada na figura escatológica apontada em Daniel 7, culminando no

humano-supremo, governante das nações e representante dos Santos do Altíssimo. Nesse

sentido, eleva-se, sem dúvida, a figura do “o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou. ”

A respeito dos aspectos escatológicos presentes na figura do “Filho do Homem”

em consonância com a perceptível predileção no tocante ao emprego desse termo por

parte de Jesus, é preciso considerar o seguinte: primeiro, é que para alguns estudiosos

essa expressão não tenha saído dos lábios do Jesus histórico; segundo, outros ainda

pontuam que este uso indistinto tenha sido uma tentativa forçada da parte dos discípulos

com objetivo de elevar a importância da obra de Jesus. Por outro lado, é imprescindível

levar em consideração o fato de que em nenhum outro momento de vida de Jesus, exceto,

é claro, na páscoa que antecedeu a sua morte, ocorre uma referência no textual na qual

ele tenha se apropriado do título messiânico, tendo em vista esse fazer sentido

preeminente no cenário judaico-cristão. Seja qual for o ponto de vista, o argumento do

silêncio messiânico reforça a conveniência no uso indistinto do termo “o Filho do

Homem”. Conquanto o Jesus histórico nunca tenha negado a sua messianidade ele prefere

não se expor, utilizando, assim a expressão que ressalta não só o aspecto escatológico,

mas reflete bem a sua humanidade, além do mais,

Com essa ambigüidade geral, "Filho do Homem", é conveniente

que Jesus use o termo, para dar instruções acerca da sua

verdadeira identidade. Ele não tem associações populares ligadas

a si, da maneira que foram ligadas aos títulos como "Messias",

"Filho de Davi", ou até mesmo “Filho de Deus.” [...] A missão de

Jesus não é sempre compreendida por causa das más

40 ARNOLD, E. C. Zondervan Illustrated Bible Commentary Backgrounds. v.1. Mateus, Marcos, Lucas. In: Sistema de Biblioteca Digital Libronix 3.0g, 2007. p. 59.

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51

interpretações e expectativas errôneas do povo, dos líderes

religiosos, e até mesmo seus próprios discípulos. Mas no final, é

perfeitamente claro que ele está afirmando ser o Messias divino

de Israel (cf. Mt 26:63-68). 41

Nota-se, portanto, que o texto de Mt 26.63-6842 citado por Arnold sugere uma

forte razão pela qual Jesus não tenha se colocado de maneira pública como o Messias. Do

exposto, é razoável perceber que esse argumento é consistente quando coloca que a

missão de Jesus estava sujeita às más interpretações dos líderes religiosos, pois mesmo o

“Filho do Homem” sendo o Servo Sofredor, consciente de sua missão, dependente de

Deus, sujeitando-se ao Pai com humilde, ressalta, todavia, o aspecto transcendental do

Reino escatológico de Deus.

3 O Filho do Homem e o Messias

Traçando-se um comparativo político entre os escritos judaicos canonizados e a

literatura judaica tardia, pode-se perceber que de certo modo a figura messiânica difere

da do Filho do Homem no seguinte ponto: enquanto o judaísmo oficial esperava

ansiosamente pelo Messias humano, mas investido de autoridade política para prevalecer

diante das forças dominantes e opressoras do Império romano, considerado inimigo de

Israel, o qual estabeleceria um reino terreno e próspero; por outro lado, a expectativa em

torno do Filho do Homem descrito em Dn 7.13, não obstante semelhante a um ser

humano, este tinha origem celestial, sobrenatural, cujo reino não era terreno, porém,

transcendental, celestial.

É possível perceber nas entrelinhas que a confissão de Pedro descrita em Mt

16.13-1643 fornece elementos que denotam uma clara distinção entre o termo Filho do

Homem e o Messias. Tendo em vista o fato de que Jesus fala de si próprio como o Filho

41 ARNOLD, 2007. p.59. 42 E Jesus, porém, guardava silêncio. E, insistindo o sumo sacerdote, disse-lhe: Conjuro-te pelo Deus vivo

que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus. Disse-lhes Jesus: Tu o disseste; digo-vos, porém, que

vereis em breve o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu.

Então, o sumo sacerdote rasgou as suas vestes, dizendo: Blasfemou; para que precisamos ainda de

testemunhas? Eis que bem ouvistes, agora, a sua blasfêmia. Que vos parece? E eles, respondendo,

disseram: É réu de morte. Então, cuspiram-lhe no rosto e lhe davam murros, e outros o esbofeteavam,

dizendo: Profetiza-nos, Cristo, quem é o que te bateu? 43 [...] Quem diz o povo ser o Filho do Homem? [...] Respondendo Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo, o

Filho do Deus vivo.

Page 52: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

52

do Homem ao interrogar os discípulos; Pedro, por sua vez, se antecipa ao emitir uma

resposta interpretada ao afirmar que este Jesus (Filho do Homem) tem as características

do tão esperado Messias. No entanto, mesmo que esses conceitos sejam convergentes em

muitas situações do Mundo Antigo, vale ressaltar, que nos testemunhos dos Evangelhos,

Jesus sempre se designou como o Filho do Homem ao falar de si mesmo; portanto, a partir

dos seus lábios, Jesus não costumava usar outro título quando se referia a sua pessoa,

embora eles coexistissem. Segundo Coenen44 O termo “Filho do Homem” aparece 82

vezes, sendo 69 nos sinóticos (Marcos 14 vezes; Mateus 30 vezes e Lucas 25 vezes) e 13

vezes no Evangelho segundo João. Dos 82 registros do termo “o Filho do Homem” nos

Evangelhos 15 citações ocorrem antes da confissão de Pedro em Cesareia de Felipe, cf.

Mt 16: 13-20.

Por outro lado, deve-se considerar as circunstâncias políticas em que Jesus estava

inserido, nas quais era imperativo que Jesus não chamasse a atenção para si como o

Messias, que haveria de vir para livrar Israel, definitivamente, do poder das nações

inimigas. Assim, “Jesus opta por esta designação para evitar o conceito de Messias,

sujeito a mal-entendidos. Ele trata de excluir todos os aspectos políticos e nacionais. Ele

não quer ser transformado em rei dos judeus”.45 É importante salientar que em nenhum

momento do seu ministério terreno Jesus tenha duvidado da sua missão no que diz

respeito ao aspecto messiânico, mas é significativo acentuar que:

Não é surpreendente que Jesus, desde o tempo de sua tentação, não

tenha apenas recusado a proclamar a si mesmo como o Messias, como

também desencorajado outros de usarem esse título em relação a ele.

[...] Fazê-lo antes teria levado a um completo mal-entendido, não

apenas por parte do povo, mas até mesmo por parte de seus próprios

discípulos. A interpretação de Jesus em relação ao Messias era

completamente diferente da interpretação do povo de seu tempo. 46

Por outro lado, muitas características transcendentes tendiam a prender-se à

pessoa do Messias, pois em muitos círculos apocalípticos, essas ideias vinculam-se a um

Messias genuinamente transcendente, cujo aparecimento passou a ter uma forte influência

nas expectativas messiânicas populares. 47 Nesse sentido, é razoável a distinção existente

entre o Messias e o Filho do Homem, pelo menos no que diz respeito ao sentido imediato

da compreensão do termo pelo auditório que circundava a Jesus, pois:

44 COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. v.2. São Paulo:

Vida Nova, 2008, p. 2360-2361. 45 HORSTER, G. Teologia do Novo Testamento. Curitiba: Evangélica Esperança, 2009, p. 80. 46 RUSSELL, 2007, p. 134. 47 Ibid., p. 136.

Page 53: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

53

De fato, em cada passagem o contexto revela que, quando Jesus

emprega esse título, ele está se referindo a si próprio. Ao usar esse título,

falando aos judeus, Jesus podia revelar-se gradualmente, não de uma só

vez. Em sua obra entre eles, se houvera imediatamente se denominado

o Messias, não teria seu ministério chegado a um fim prematuro? 48

Sendo assim, tal percepção progressiva por parte dos seguidores de Jesus Cristo,

tornava cada vez mais evidente que a pessoa do Filho do Homem revelava os aspectos

messiânicos. A partir daí, em consonância com essas inferências, observa-se que:

Gradualmente, contudo, à medida que Jesus continuava a descrever o

que estava fazendo, enfrentando e planejando como Filho do homem,

começassem a sentir-se perplexos e a perguntar: "Quem é esse Filho do

homem"? (Jo 12.34, a única passagem nos Evangelhos em que alguém

além do próprio Jesus usa esse termo.) E, assim, gradualmente a mente

dos ouvintes ia sendo iluminada. O clímax veio quando, sem a mínima

restrição, Jesus se identificou (Mt 26.62-64) em sua glória vindoura,

com a augusta pessoa que na profecia de Daniel (7.13,14) foi

introduzida na presença do Ancião de Dias! O uso da autodesignação,

"Filho do homem", enfatizava o fato de que o portador desse título não

era o Messias nacionalista da esperança judaica, mas (em certo sentido)

"o Salvador do mundo" (Jo 4.42; cf. lTm 4.10).49

Dessa forma, Jesus ao utilizar o termo em evidência se autodesignava como o

Salvador escatológico de Daniel 7:13-14. Coadunando com essa perspectiva, é razoável

perceber a convergência dos atos do Filho do Homem no Messias aguardado por Israel,

mediante o emprego do termo que só tem um significado messiânico à posteriori.

Portanto,

Ele não se denominou Messias, porque sua missão foi completamente

diferente da conotação que o termo messiânico tinha na mentalidade

popular. Denominou-se o Filho do Homem porque este título continha

uma reivindicação exaltada e ainda assim, ao mesmo tempo, permitia

que Jesus desse um novo significado ao termo. [...] Depois que os

discípulos foram convencidos de que Jesus era de fato o Messias, muito

embora um Messias de um novo tipo, instruiu-os nos aspectos mais

amplos do destino do Filho do Homem. 50

48 HENDRIKSEN, W. Comentário do Novo Testamento: Mateus. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 574.

49 Ibid., p. 574. 50 LADD, 2003, p. 206.

Page 54: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

54

De fato, é provável que Jesus tinha em mente a sua auto-designação como “Filho

do Homem” para ressaltar as características sobrenaturais implícitas nessa pessoa, o que

difere substancialmente do Messias-Rei triunfante em todos os seus aspectos. Dessa

forma, Jesus explicita a necessidade de um Reino transcendente iniciado a partir da sua

humilhação diante dos homens e a sua sujeição incondicional a Deus, tendo como

finalidade a sua morte, a partir da qual se iniciaria a exaltação do Filho do Homem e as

consequentes evidências de um Reino Messiânico visível. Por outro lado, afirmar que

Jesus se denominou o Messias ou inferir que o “Filho do Homem” é um termo

genuinamente messiânico no sentido da palavra é desconsiderar a cosmovisão que os

judeus tinham no primeiro momento em que se depararam com a expressão. É preciso

também considerar o aspecto progressivo da Revelação em que os discípulos de Jesus

estavam vivenciando. Houve sim, por parte desses seguidores de Jesus Cristo, no primeiro

instante uma leitura das características do Filho do Homem de Dn 7:13 presentes em

Jesus, assimiladas essas características, ocorreu consequentemente uma releitura do

conceito do Messias, a partir da perspectiva do “Filho do Homem” escatológico. Nesse

sentido, as duas figuras, o Filho do Homem e o Messias, se tocam, porém de maneira

gradual é que se podia fazer uma interpretação. Sendo assim, “ele estava, de fato,

reinterpretando o conceito de messianismo até que os seus discípulos pudessem

identificar o Filho do Homem com o Jesus, o Messias. ”51 Do exposto, é razoável entender

que o termo Filho do Homem tenha recebido, dentro do contexto judaico-cristão, um

enfoque messiânico à posteriori. Jesus tinha a plena consciência de que o Messias e o

Filho do Homem eram a mesma pessoa, mas a comunidade expressou essa idéia quando

escreveu os Evangelhos. Ademais, é provável que as ideias do Filho do Homem e do

Messias tenham origens diferentes e representem duas concepções bem distintas da

inauguração do reino vindouro, tendo em vista o aspecto progressivo da revelação. Além

do mais, os aspectos individuais das duas figuras, a do filho do homem e a do Messias,

configuram circunstâncias diferentes na história, ressaltando em alguns momentos

características distintas. Contudo, teologicamente, se conclui que os aspectos pessoais são

convergentes, ratificando, portanto, a multiplicidade dos ofícios de Jesus Cristo, no

decurso da história do Filho do Homem.

51 GUTHRIE, 2011, p. 285.

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4 Aspectos linguísticos do termo Filho do Homem

Precedido pelo artigo definido “o”, a expressão “Filho do Homem” pode designar

o homem no sentido maior, o homem extraordinário, o representante normal da

humanidade: um homem verdadeiro e simultaneamente o verdadeiro homem. Utilizando-

se de uma abordagem científica relacionada ao conhecimento do termo “Filho do Homem,

” Jeremias defende que a comunidade judaica tardia se utiliza de certos aramaismos que

denotavam a ideia de representatividade do todo ou da coletividade, sendo assim,

O título o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou é desconhecido no grego profano.

Antes, aí temos a tradução literal de um status constructus

determinativo aramaico: אנׂש בר [bar ‘enasha]. O que significa? Como o

hebraico O¤A [ben], o aramaico בר [bar] é usado diante de substantivos,

na maioria das vezes para designar a descendência, mas nem sempre é

o caso. [...] Este último caso está presente em bar ‘nasha: bar designa o

indivíduo que faz parte de ‘enash, “homem”, usado como conceito

coletivo. 52

Ainda, segundo Jeremias, pode-se entender que o termo aramaico que deu origem

ao grego “o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou” significando, portanto, em sentido indefinido, “um

homem”. Contudo, Marshall defende que para Marcos, assim como para os demais

evangelistas, o título “Filho do Homem” é de origem grega, refere-se a Jesus e é utilizado

exclusivamente por ele em relação a si mesmo. Sendo assim, acerca da origem deste

termo, Marshall escreve que:

Quaisquer que sejam as raízes desse título e sua referência

original, para Marcos ele guarda as seguintes conotações: 1. O

título "Filho do homem" é uma: alusão que Jesus faz a si mesmo,

sendo pouco provável que, qualquer que; tenha sido seu

significado original, o título tivesse alguma conotação de caráter

inclusivo ou genérico, de forma a permitir que pudesse ser usado

em afirmações que se relacionassem tanto a Jesus (no papel de

orador) quanto a quaisquer outras pessoas. Jesus, ao utilizá-lo,

está se referindo exclusivamente a si mesmo. 2. E um termo de

uso privilegiado nas 32 passagens que falam da paixão, morte e

ressurreição de Jesus (Mc 8.31; 9.12,31; 10.33,45; 14.21,41). 3.

Também é um título de uso privilegiado nas passagens relativas a

funções futuras de Jesus, quando ele virá para julgar, sentar-se à

direita do Pai e reunir o povo de Deus (Mc 8.38; 13,26; 14.62). 53

Essas afirmações a respeito do emprego do termo Filho do Homem como

resultado de um desenvolvimento contínuo na tradição sinótica também podem ser

sentidas porque:

52 JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008, p. 374. 53 MARSHALL, L H. Teologia do Novo Testamento: diversos testemunhos, um só evangelho. São Paulo:

Vida Nova, 2007, p. 76.

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Característico é o fato de que, já na tradição paralela,

frequentemente, a designação e o pronome pessoal são trocados.

Vejamos: Em Mc 8:27, o diálogo que leva a confissão de Pedro é

introduzido pela pergunta: “Quem dizem os homens quem eu

sou?” Mateus escreve nesta passagem: “... ser o filho do

Homem?” sendo que a designação misteriosa é explicada para o

ouvinte através da confissão que se segue; o filho do homem é “o

Cristo, o filho do Deus vivo”. Inversamente, no entanto com a

mesma intenção, Mateus formula, em 10:32: “Todo aquele que

me confessar diante dos homens, também eu o confessarei...”,

enquanto que Lc 12:8 continua: “O filho do homem o

confessará”. Não se pode provar que a designação tenha sido

usada mais vezes para substituir o pronome pessoal do que vice-

versa.54

Diante do exposto, no que diz respeito à divergência do emprego do termo o filho

do homem nos sinóticos, pode se perceber que estes refletem a possibilidade de um

desenvolvimento das idéias concernentes ao filho do homem de Dn 7:13, convergindo

para uma interpretação à posteriori pela tradição primitiva, e o conseqüente emprego do

termo de maneira titular. Ademais, percebe que a expressão o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou

aparece quase que exclusivamente nos lábios de Jesus, o que fortalece a ideia de que Jesus

mesmo teria se autodesignado o Filho do Homem descrito em Dn 7. Não apenas como

um título, mas como uma referência da sua pessoa identificada com a do Filho do Homem

na visão de Daniel. Vale ressaltar, no entanto, que em nenhum momento Jesus cita

explicitamente o texto do profeta Daniel, de maneira que viesse a relacionar a sua pessoa

com a do Filho do Homem em Dn 7:13. No entanto, não se pode negar a possibilidade da

expectativa presente na tradição judaica do “o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou” escatológico. O

que certamente levou a comunidade primitiva a refletir na pessoa de Jesus como o filho

do homem vindouro que haveria de julgar as nações, em conformidade com as

pressuposições apocalípticas preditas em Dn 7.

Considerações finais

Considerando que ainda hoje existem divergências em relação ao significado

exato do termo “o Filho do Homem”, pelo menos em determinados círculos cristãos, e

tendo em vista a necessidade de uma exposição a respeito dos questionamentos

54 GOLPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 195.

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levantados acerca das inferências feitas no decorrer dos anos, entende-se que o objetivo

deste trabalho foi alcançado.

Conquanto muitas questões ainda estejam abertas, dentro das possibilidades

históricas, o termo “o Filho do Homem” apresenta as características que remontam à

tradição judaica primitiva, perpassando por todo período pré-cristão e cristão, chegando

dentro da cultura helenista. Embora existam perspectivas diferentes entre muitos

teólogos, compreende-se que a palavra em evidência faz parte de toda uma tradição,

baseada na expectativa da figura escatológica descrita em Dn 7, cujas obras apontam para

o Messias. Por outro lado, é possível que o termo “filho do homem” tenha recebido

significado messiânico à posteriori, quando os seguidores de Jesus perceberam, no

decorrer de seu ministério, características intrinsecamente messiânicas. Isto pôde ser

verificado na confissão petrina em Cesareia, quando o “Filho do Homem” é interpretado

por Pedro como o Cristo, o Filho do Deus Vivo, a saber, o Messias.

Em seguida, considera-se a observação de teólogos como Jeremias, que defendem

o uso de “o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou” como um não-titular, durante o estágio primitivo da

tradição. Contudo, as análises de determinados aspectos linguísticos que envolvem o

termo em destaque evidenciaram certas características enigmáticas presentes no “filho do

homem”, verificando-se, por conseguinte, a consistência lógica que apontaram as razões

do uso da expressão no período helenista.

Finalmente, observa-se que, na trajetória de vida judaica, havia sempre a

expectativa do “Messias-Filho-do-Homem”. Muito embora, não se deve deixar de levar

em conta a tradição judaica e suas nuances culturais, bem como as possibilidades

linguísticas etc. De certo modo, acredita-se que algumas questões referentes ao uso do

termo Filho do Homem, exclusivamente nos Evangelhos, estão abertas às discussões.

Referências

ARNOLD, E. C. Zondervan Illustrated Bible Commentary Backgrounds. v.1. Mateus,

Marcos, Lucas. In: Sistema de Biblioteca Digital Libronix 3.0g, 2007.

COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento.

v.2. São Paulo: Vida Nova, 2008.

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CULLMANN, O. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008.

GOLPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2003.

GUTHRIE, D. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011.

HENDRIKSEN, W. Comentário do Novo Testamento: Mateus. São Paulo: Cultura

Cristã, 2001.

HORSTER, G. Teologia do Novo Testamento. Curitiba: Evangélica Esperança, 2009.

JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008.

LADD, G. E. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003.

MARSHALL, L. H. Teologia do Novo Testamento: diversos testemunhos, um só

Evangelho. São Paulo: Vida Nova, 2007.

RUSSELL, D. S. Entre o Antigo e o Novo Testamentos: o período interbíblico. 2 ed.

São Paulo: Abba Press, 2007.

SCHIAVO, L. Anjos Messias: Messianismos judaicos e origem da cristologia. São

Paulo: Paulinas, 2006.

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A PRÁXIS DE JESUS:

pressupostos bíblico-teológicos a partir do diálogo de Jesus

com o jovem rico em Mateus 19,16-22

Eltom de Sousa Melo55

Prof. Dr. João Luiz Correia Júnior56

Introdução

A presença de jovens nas ações pastorais da Igreja, sejam elas voltadas para

a juventude ou protagonizadas por jovens, tem chamado à atenção da ação evangelizadora

nas diversas instâncias eclesiais. Ao falarmos do trabalho com a juventude surgem muitos

exemplos de situações adversas ao que se espera de uma boa ação pastoral. Também nos

nossos redutos pastorais se lamentam a limitação e a insuficiência do trabalho com os

jovens. Assim, tornou-se objeto de nossa reflexão a figura do jovem rico como um dos

poucos momentos em que a missão de Jesus parece não encontrar sucesso no anúncio da

Boa Nova.

Os resultados da pesquisa estão apresentados em três capítulos. O primeiro faz um

estudo exegético-literário da perícope. O segundo capítulo trata do Movimento de Jesus,

considerando aspectos sociais da comunidade mateana. O terceiro apresentará elementos

pastorais dos nossos tempos que encontram correspondência com a práxis de Jesus.

1. O diálogo de Jesus com o jovem rico

A perícope do jovem rico em Mateus 19,16-22 está localizada na sexta parte

do evangelho, segundo a Bíblia de Jerusalém (2008), O advento próximo do Reino dos

Céus (capítulos 19-25). Vamos ao texto:

55 Graduando do Curso de Bacharelado em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco

(UNICAP). E-mail: [email protected] . 56 Mestre e Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC RIO). Pós-

doutor pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade

Católica de Goiás (PUC GOIÁS), Professor e pesquisador da Universidade Católica de Pernambuco

(UNICAP), onde leciona no Curso de Teologia e no Programa de Pós-Graduação em Teologia e Ciências

da Religião. E-mail: [email protected] .

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16Aí alguém se aproximou dele e disse: “Mestre, que farei de bom para

ter a vida eterna?” 17Respondeu: “Por que me perguntas sobre o que é

bom? O Bom é um só. Mas se queres entrar para a Vida, guarda os

mandamentos”. 18Ele perguntou-lhe: “Quais?” Jesus respondeu: “Estes:

Não matarás, não adulterarás, não roubarás, não levantarás falso

testemunho; 19 honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a

ti mesmo”. 20Disse-lhe então o moço: “Tudo isso tenho guardado. Que

me falta ainda?” 21Jesus lhe respondeu: “Se queres ser perfeito, vai,

vende o que possuis e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus.

Depois, vem e segue-me”. 22O moço, ouvindo essa palavra, saiu

pesaroso, pois era possuidor de muitos bens (Bíblia de Jerusalém).

O texto tem como introdução a aproximação de alguém, que só depois é

caracterizado como jovem, mais a pergunta que tematizará a reflexão, a vida eterna (v.

16). Uma especificidade do texto de Mateus em relação aos outros dois sinóticos (Marcos

10,17-22; Lucas 18,18-23) é a referência daquela pessoa que está em diálogo com Jesus

como sendo um jovem. O desenvolvimento do texto é marcado pelo diálogo entre Jesus

e o jovem (vv. 17-21), no qual “o interrogante mostra saber claramente qual o fim para

onde todo judeu pio sentia-se chamado por Deus: possuir a vida eterna, isto é, a salvação

final, a participação no Reino futuro” (BARBAGLIO, 1990, p. 300). E a conclusão se dá

com a resposta silenciosa do jovem à proposta de Jesus (v. 22). Pois, “a observância dos

mandamentos, embora necessária, não é suficiente” (BARBAGLIO, 1990, p. 301) para

obter a salvação.

O encontro de Jesus com o jovem rico acontece no caminho da Galileia rumo

a Jerusalém. A Galileia é tomada como local de partida de Jesus para sua missão, como

também da missão dos discípulos. Uma multidão o acompanha, além dos discípulos.

Estes são os destinatários de seu discurso de preparação para a vinda do Reino “que deve

restabelecer entre os homens a autoridade soberana de Deus, como Rei por fim

reconhecido, servido e amado” (Bíblia de Jerusalém, p.1695).

O evangelho de Mateus foi escrito entre os anos 80 e 90, após a destruição de

Jerusalém, no ano 70. O texto surge simultâneo a “um novo judaísmo, não mais centrado

no Templo, que não existe mais, mas na leitura da Lei de Moisés, (...) de inspiração

farisaica, chamado ‘judaísmo formativo’” (KONINGS, 2011, p.139). Ele foi escrito para

as comunidades cristãs da Síria e do norte da Palestina, das quais pertencia o apóstolo que

o nomeia; “foi endereçado a cristãos provenientes do judaísmo, que se sentem ‘filhos de

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Abraão’ e foram instruídos na Lei de Moisés” (PAGOLA, 2013, p.11). Sem o templo,

muitos judeu-cristãos fundaram comunidades entre os judeus da diáspora. Para estes, com

a restauração do judaísmo nasceria “a Igreja convocada pelo Ressuscitado; destruído o

templo, Jesus, o ‘filho amado de Deus’, é a nova presença de Deus no mundo” (PAGOLA,

2013, p.11). As narrativas de Mateus são fundamentadas no testemunho dos apóstolos e

dos discípulos.

A presença desta perícope nos sinóticos evidencia a importância deste episódio na

caminhada de Jesus rumo a Jerusalém. Porém, Mateus apresenta algumas modificações:

O indivíduo não corre e se ajoelha e, na sua pergunta, chama-o

simplesmente de “Mestre” (Mc 10,17: “Mestre bom/insigne”); substitui

o verbo “herdar” de Marcos por “obter”. Muda também a resposta de

Jesus; o mais saliente é a imprecisão da frase: “O Bom é um só”, que

não distingue (ao contrário de Mc) entre Deus e Jesus. As mudanças de

redação explicam-se pela qualidade deste expressa em Mt 1,23: “Deus

entre nós”. Tudo que se atribui a Deus atribui-se igualmente a Jesus.

(MATEOS; CAMACHO, 1993, p. 219).

O jovem, no texto de Mateus, vai ao encontro de Jesus, diferentemente de outros

encontros e diálogos que tem a iniciativa do próprio Jesus. “Esse jovem é fiel à Lei do

Senhor e o ama. Entretanto, está insatisfeito: algo lhe falta. Ele já se encontra na vontade

divina; porém, diante desse desejo autêntico de vida eterna, Jesus lhe oferecerá a

possibilidade de passar a uma nova etapa” (MADRE, 2010, p.43). Quando pergunta sobre

o que fazer para obter a vida eterna, o jovem rico depara-se com uma resposta radical

diante das suas perspectivas. A resposta de Jesus “não se trata de um ‘conselho’ mas de

uma ordem para a consecução da vida eterna. Jesus muda as perspectivas do moço: não é

necessário fazer alguma coisa para ter a vida eterna, mas, abandonar para receber”

(CADERNOS BÍBLICOS v. 12, 1982, p. 83).

A interpretação de Jesus ao anseio de vida eterna do jovem, “quando diz: ‘se

queres ser perfeito’, não introduz, pois, nenhum termo novo; apenas exprime, de modo

diferente, a ideia contida em Mt 19,17: ‘se queres entrar para a Vida’” (JEREMIAS, 1983,

p. 180). O ser perfeito não configura a ausência de defeitos, nem um grupo seleto de

pessoas da sociedade, “mas, na compreensão do baixo judaísmo, perfeito é o justo que

observa fielmente a Torá” (JEREMIAS, 1983, p. 180). “Mateus, diferentemente de

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Marcos e Lucas, acrescentou ao elenco o mandamento do amor ao próximo, ausente do

decálogo, mas testemunhado pelo livro do Levítico (19,18)” (BARBAGLIO, 1990, p.

300). Ao apresentar os mandamentos que fazem relação com o próximo, indica que a

relação com Deus se dá pela relação com os homens; aponta o amor a toda humanidade,

expressa pela pobreza, pelo “desfazer-se de tudo que tem sem esperança de retorno”

(MATEOS; CAMACHO, 1993, p. 221). A compreensão de Deus que Jesus transmite nos

seus ensinamentos prescinde da compreensão de relação em cada ser humano. Jesus

aponta Deus em relação, no outro, e não no cumprimento da Lei.

Na sua caminhada, Jesus encontra com fariseus, com cegos, e, sobretudo as

multidões continuam participando dos seus ensinamentos, não mais por palavras, mas a

partir da vida, de encontros do cotidiano. Os discípulos o acompanham e ficam sempre

mais admirados. Segundo Pagola, “podemos dizer que o evangelho de Mateus é um

grande convite para acolher Jesus como único Mestre de vida” (2013, p.12). Jesus

representa o novo caminho para entrar no Reino dos Céus, uma nova relação com Deus.

“A observância dos mandamentos é consequência dessa relação pessoal: os mandamentos

são bons porque expressam a vontade do Bom (cf. Am 5,4.6.14.15; Mq 6,8)” (MATEOS;

CAMACHO, 1993, p. 219). Seus ensinamentos exigem esforços da nossa parte para

converter-nos em seus discípulos e seguidores.

O seguimento de Jesus é um constante colocar-se à disposição do outro. Isto

remete também ao apego material que perpassa a humanidade. Como se ainda faltasse

algo à vida do jovem rico, Jesus lhe propõe: “vai, vende o que possuis e dá aos pobres”

(Mt 19,21), porém, como resposta deixou o silêncio e a tristeza, “pois era possuidor de

muitos bens” (Mt 19,22). Para J. Jeremias é preciso prudência com o sentido da palavra

‘tudo’. O desprendimento das riquezas materiais também seria limitado quanto à prática

da caridade.

No século I de nossa era, já estava em vigor a prescrição que proibia

dispor de mais de um quinto da fortuna pessoal para fins beneficentes.

Zaqueu, chefe dos publicanos, promete distribuir a metade de seus bens

em esmolas e ainda reparar os danos causados (Lc 19,8); Jesus louva-

lhe o intento e declara-o bem-aventurado. A expressão ‘vender todos os

seus bens’ não pode, pois, ser sempre tomada ao pé da letra. Esses

testemunhos mostram até onde, na prática, podia-se empregar os bens

com fitos caritativos (JEREMIAS, 1983, p. 180).

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O evangelista não relata o que teria feito o jovem rico posteriormente, como se

quisesse deixar a reflexão para seus interlocutores sobre qual deve ser a atitude a seguir.

De toda forma, a vida autenticamente cristã exige respostas com gestos e ações voltadas

para os pobres e mais necessitados da Boa Nova de Jesus Cristo.

2. A comunidade mateana e a práxis de Jesus

A relevância da figura de um jovem na perícope permite-nos perguntar sobre a

sensibilidade da comunidade de Mateus em relação a este público, como, também, sobre

a participação de jovens no movimento de Jesus. A princípio, sabemos que no período

que o texto foi escrito novas gerações renovavam a comunidade daqueles que

testemunharam a vida terrena do Cristo. A seguir nos voltamos para os elementos

redacionais e históricos que permitam entender como a sociedade judaico-cristã aceitava

a participação dos jovens e, em particular, como se dava a relação deles na comunidade

de Mateus.

2.1 Práxis caritativa

O grupo de Jesus praticava a esmola como outros grupos religiosos, entre eles as

confrarias de fariseus e os grupos essênios. Segundo Morin, “na sociedade judaica do

século I, a beneficência voluntária e as prescrições da Lei protegiam os pobres” (1988,

p.36). “A esmola representa grande papel na sociedade judaica. Ter compaixão do

próximo é sinal que permite reconhecer a descendência de Abraão” (JEREMIAS, 1983,

p. 179). A observância da Lei era a motivação das organizações caritativas, “também do

grupo que acompanhava Jesus (Judas era encarregado das esmolas)” (MORIN, 1988, p.

37). Entre as leis a favor dos pobres são notáveis o ano sabático (anulação das dívidas), o

terceiro dízimo (ajuda aos pobres) e a esmola ao peregrino a caminho de Jerusalém. “A

Lei e sua aplicação, na opinião de Mateus, devem ser compreendidas primordialmente

em termos da exigência de misericórdia por Jesus” (OVERMAN, 1997, p. 87).

Para o entendimento da estrutura social no tempo de Jesus, Morin faz uma

classificação social, na Palestina, em função da riqueza, no seu livro Jesus e as estruturas

de seu tempo. Os ricos eram,

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64

inicialmente, a corte de Herodes Antipas, na Galileia, com sua

criadagem, seus funcionários e oficiais, com parentes e amigos; (...) os

grandes negociante de trigo, de vinho, de óleo, de madeira; (...) os

grande proprietários de terra e a nobreza sacerdotal. Os judeus

medianamente favorecidos, sobretudo em Jerusalém, eram artesãos

proprietários de oficinas e casas de comércio. (...) Os pobres eram

diaristas, que recebem um denário e alimento, por dia; (...) os escravos

judeus, reduzidos à escravidão por causa de roubo ou para saldar uma

dívida; (...) escravos pagãos comprados por famílias ricas; (...) e aqueles

que eram ‘assistidos’, entre eles os mendigos (MORIN, 1988, pp. 38-

39).

Ainda segundo a proposta de Morin, sem “a pretensão de reconstruir a imagem

exata de Jesus” (1988, p. 41), é possível fazer indagações sobre a influência dele nas

estruturas do seu tempo, a partir deste cenário brevemente apresentado e examinando a

perícope do jovem rico de Mt 19,16-22. “Como no judaísmo formativo, a comunidade de

Mateus estava desenvolvendo um meio pelo qual a Lei tinha de ser interpretada e

aplicada. (...) A ação acompanha o entendimento e a interpretação. Este, Mateus sugere,

é o cumprimento de toda a justiça. A ação segundo a Lei é moldada pelos valores de amor

e misericórdia” (OVERMAN, 1997, p. 95). Como diz Barbaglio:

[...] não basta por isso a observância das numerosíssimas e

minuciosíssimas prescrições da lei, própria da práxis farisaica e do

ensinamento dos mestres judaicos. Dos chamados ao Reino se exige

algo amais e de melhor: a obediência radical à vontade do Pai: Eu vos

declaro que se a vossa obediência à vontade de Deus não superar a

observância dos mestres da lei e dos fariseus, não entrareis no Reino

dos Céus (Mt 5,20) (1990, p. 54).

Jesus, de Mateus, “traduz o amor ao próximo, num processo realista. Amar

positivamente o próximo, na sociedade judaica do século I, é repartir seus bens para os

pobres. (...) Com efeito, o rico, submetido à Antiga Lei pretende já ter praticado o amor

ao próximo” (MORIN, 1988, p. 44).

2.2 O verdadeiro discípulo

“Cada evangelista fala de Jesus não só a partir de sua experiência imediata, mas

também a partir da situação de sua comunidade eclesial, cujos problemas estão diante

dos olhos quando lançava por escrito a tradição que lhe vinha de e sobre Jesus”

(ECHEGARAY, 1982, p. 46). “Os discípulos no evangelho de Mateus parecem

representar os membros da comunidade. (...) Em muitos aspectos, os discípulos em

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65

Mateus tornaram-se tipos ideais; eles são protótipos para o seguidor de Jesus”

(OVERMAN, 1997, p. 136). Na perícope em questão, do homem rico no texto anterior

de Marcos, Mateus “faz um jovem homem rico (vv.20 e 22). A leitura dos Atos dos

Apóstolos e da Primeira Carta de João nos mostra que os jovens pareciam constituir

grupos nas comunidades” (MORIN, 1988, p. 47). “Certamente vários membros desse

grupo de seguidores eram jovens. Jesus trabalhou em equipe e ensinou o modo de viver

segundo o projeto de Deus. Jesus não segue as leis que discriminam” (LORASCHI, 2013,

p.12). Desta forma, Mateus pretende dirigir-se a eles. “Os discípulos, representando os

membros da comunidade, devem levar a sério essa mensagem de servir aos outros

membros; a comunidade inteira é chamada a aprender, compreender inteiramente os

ensinamentos de Jesus e cumpri-los” (OVERMAN, 1997, p. 136). “Tanto mais que Jesus

confirma seu ensinamento com a força do seu exemplo. Obediência À vontade do Pai,

práxis de amor misericordioso e indiscriminado e seguimento de Jesus formam um todo”

(BARBAGLIO, 1990, p. 55).

A tradição dos evangelhos é unânime: Jesus escolheu seus discípulos entre os

pobres. Se entre eles alguns provêm da classe rica, Jesus o permitiu com a condição de

que fizessem um ato de renúncia pessoal em favor dos pobres (ECHEGARAY, 1982, p.

78). Segundo Barbaglio, quanto aos seguidores de Jesus, “deve-se distinguir entre

seguimento e discipulado” (2011, p. 385). Ambos os termos definem “quem entrava na

escola deste ou daquele filósofo ou sábio grego”, como aqueles que “entraram em estreita

relação com Jesus”, e remete ao “seguimento das multidões atrás dos profetas

escatológicos e nos líderes carismáticos do século I d.C.”. “O discípulo ‘segue’ o mestre

e se forma na convivência com ele. Como os rabinos (mestres) da época, Jesus reúne

discípulos para formar comunidade com eles” (MESTERS, 2010, p. 79).

Lideranças carismáticas, como a exercida por Jesus, atrai muitos seguidores entre

o povo. Segundo Theissen e Merz,

[...] em torno do líder carismático formam-se três círculos concêntricos:

primeiro uma pequena ordem de carismáticos secundários, que se

constituía do grupo de discípulos de Jesus (especialmente seus doze

discípulos); depois um círculo maior de simpatizantes, sem cujo apoio

nenhum grupo carismático poderia existir; e também o círculo de

pessoas que não abandonaram casa e trabalho por causa de Jesus, como

o fizeram seus discípulos, mas seguiram suas vidas exteriormente como

antes (2002, p. 240).

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66

Este terceiro grupo pode ser uma possibilidade para encontrar a figura do jovem

rico, dada sua resposta à proposta de Jesus e a escassez de informação a seu respeito após

o diálogo. Para Theissen e Merz, este grupo “destaca-se da totalidade da população como

aqueles que ouviram a Jesus, sentiram-se atraídos por ele, mas não se tornaram seus

simpatizantes ou colaboradores ativos” (THEISSEN; MERZ, 2002, p. 240).

2.3 Os impedimentos do discipulado

Considerando os relatos de vocação dos textos sagrados, “note-se o nexo entre

seguimento e abandono do trabalho, em que está implicado também o afastamento da

casa e dos bens” (BARBAGLIO, 2011, p. 385), como no chamado de Simão e André (Mt

4,18-20). O caso do jovem rico “serve como quadro para um dito de Jesus sobre a força

impediente da riqueza”, diz Barbaglio. E continua: “Uma vocação ao seguimento

frustrada pela resposta negativa do interessado às exigências de desapego radical dos bens

possuídos: não quis livrar-se deles; a riqueza o manteve acorrentado à posse impedindo-

lhe uma escolha de liberdade” (BARBAGLIO, 2011, p. 387).

“O dinheiro e os bens contam-se entre os nossos apegos mais óbvios. Os nossos

bens incluem luxos, comodidades e prazeres. O problema é a nossa incapacidade egoísta

de largar essas coisas quando somos confrontados com as necessidades dos outros”, assim

nos lembra Albert Nolan (2010, p. 187). Como exemplo, Zaqueu (Lc 19,1-9) ao receber

Jesus em sua casa “não só a vê de súbito que tem bens em demasia, mas, sim que sua

posse foi adquirida com o prejuízo de terceiros. O gesto tem o sentido de corajosa

denúncia. Seu gesto implica uma autocrítica, contudo, vale também como acusação

indireta” (ECHEGARAY, 1982, p. 79).

“A prova da nossa liberdade interior dá-se quando nós atendemos às necessidades

dos outros de forma espontânea e generosa” (NOLAN, 2010, p.187). Pela formação que

recebeu, “esse jovem é fiel à lei do Senhor e o ama” (MADRE, 2010, p. 43), mas suas

expectativas de vida futura não são confirmadas no contato com o Mestre. “Ele deseja

profundamente a vida eterna e pressente que esse Jesus (a quem conhece apenas por ouvir

falar) pode atender aos seus anseios. Jesus o deixou diante de uma escolha pessoal a fazer,

e o rico, ainda que fosse amado por Jesus, não pôde abrir mão de seus bens” (MADRE,

2010, p. 43).

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67

3. Ressonâncias pastorais para os jovens de hoje

A fim de reforçar os esforços na evangelização da juventude, João Batista Libânio

aponta algumas tendências para a juventude nos nossos dias, quando consideradas as

diversas realidades e experiências que nossos jovens são inseridos. É relevante o

acompanhamento dos jovens para entender suas evoluções no processo de mudanças que

o mundo tem passado. Como lembra Libânio:

O jovem tradicional que vinha de família e cultura religiosa, mantinha

facilmente práticas religiosas. Ao entrar na modernidade, sobretudo a

urbana, a religião sofre processo de secularização. A dimensão sagrada

da existência cede lugar à valorização da própria liberdade e escolha

pessoal, sem o peso da tradição. Os compromissos sociopolíticos

substituem para muitos jovens o engajamento que tinham antes nos

movimentos de Igreja. O socialismo caiu. A falta de sentido bateu forte.

Então, explode com outra tonalidade o fenômeno religioso no meio dos

jovens. Cresce a busca de experiências religiosas, embora cresça a

ignorância doutrinal a respeito das verdades e dos ensinamentos das

igrejas. Falta-lhes articulação entre fé e vida (LIBÂNIO, 2012, p.183).

“É um grande desafio entrar e compreender o universo da juventude, mas,

ao mesmo tempo, compreender para além do período marcado por mudanças físicas,

cognitivas ou afetivas” (CALANDRO; LEDO, 2013, p.9). “Para a maioria dos jovens

hoje, o desafio não é tornar-se um agente sociotransformador, mas, assumir-se

inteiramente confiável para si, numa verdadeira fidelidade a si mesmo” (VILLEPELET

apud CARMO; JUNIOR, 2014, p. 28). Importa compreender isto para que a

evangelização da juventude não fique à margem das nossas pastorais, embora surjam

sempre novos movimentos. Contudo, “basta um pouco de honestidade para concluir que

o esforço empreendido não tem dado resultados desejados” (CARMO; JUNIOR, 2014, p.

24). Os jovens pós-modernos tendem a alijar a religião como peso, como tradição

constringente, para dar-lhe tom de festa, de prazer, de experiência gratificante. Ela se lhes

torna espaço das vivências presentes. Vale enquanto responde a elas, e nelas se realizam

(LIBÂNIO, 2012, p.185).

“A relação de acolhida, diálogo e reciprocidade deve ser incentivada por aqueles

e aquelas que assumem o papel e a missão de evangelizar os jovens” (CALANDRO;

LEDO, 2013, p.11). Neste sentido, não estariam faltando líderes carismáticos que saibam

dialogar com os jovens, como Jesus que acolhe a dúvida do jovem rico? “Alguns pontos

mostram como ficou difícil o diálogo entre a fé católica e o mundo da juventude: a moral

sexual da Igreja, as celebrações litúrgicas, a linguagem da fé e o modelo de comunidades

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eclesiais que prevalecem em nossas paróquias” (CARMO; JUNIOR, 2014, p. 24). Evitar

as perguntas não tem sido a melhor saída.

Urge aos agentes de pastoral a transmissão do Deus que é relação, presente no

diálogo de Jesus com o jovem rico ao perguntar-lhe sobre os mandamentos que implicam

responsabilidade com o outro (cf. Mt 19,18-19). A catequese de jovens deve ser revista.

Ela “deve ajudar o jovem a relacionar sua fé cristã com sua experiência existencial, com

sua vida concreta, e a assumir compromissos permanentes” (CALANDRO; LEDO, 2013,

p.16). É um desafio em nossos dias “proporcionar a experiência cristã de Deus, pois a

catequese já não pode pressupor a familiaridade das pessoas com o mistério cristão nem

pode se contentar em ensinar a fé como se a adesão a Jesus Cristo se limitasse ao problema

do conhecimento” (CARMO; JUNIOR, 2014, p. 29).

Neste sentido, é imprescindível compreender a juventude como um período de

formação e amadurecimento, independente do nível social, mas, respeitando em todos os

casos as diversas realidades e experiências que se apresentam. “Ninguém pode seguir

Jesus Cristo sem ter uma profunda experiência de vida com ele. A catequese com jovens

deve ser questionadora. Para seguir Jesus é preciso deixar-se questionar por ele: ‘Se

queres (...) vem e segue-me’ (Mt 19,21)” (CALANDRO; LEDO, 2013, p.16).

E este seguimento é exigente; requer desprendimento. Para além das diferenças

socioeconômicas, a juventude deve ser desafiada ao desapego, como o jovem rico frente

ao pedido de Jesus, “vai, vende o que possuis (...)”.

O rapaz foi incapaz de fazê-lo, pois estava demasiado ligado às suas

riquezas, estava escravizado por seus bens. O jovem passaria a fazer

parte de uma comunidade que partilhava tudo entre si, e teria a

segurança de quem confia nos seus irmãos e irmãs... e em Deus. No

entanto, não teve desprendimento suficiente para fazê-lo (NOLAN,

2010, p.185).

É o desafio da vida comunitária, da fraternidade que Deus nos convida a viver. Para os

jovens de hoje a pertença a uma comunidade não está relacionada a uma pertença estável, herdada

dos familiares. “A pertença depende de uma escolha que diz respeito ao campo de investimento

pessoal, do retorno que esse engajamento pode proporcionar” (CARMO; JUNIOR, 2014, p. 30).

Em contrapartida, a catequese precisa “ajudar os jovens a compreender que não se pode seguir

Jesus de forma isolada, egoísta, mas que o seguimento só se realiza plenamente quando estamos

na comunidade” (CALANDRO; LEDO, 2013, p.17).

Considerações finais

Portanto, “precisamos pensar uma evangelização que saiba lidar com a afetividade

efervescente que esse jovem vive em sua vida; do contrário, não estaremos anunciando a

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mensagem ao seu coração” (CALANDRO; LEDO, 2013, p.11). Estar disponível ao

diálogo é primordial. Isto implica em derrubar barreiras conceituais e certos moralismos

sobre determinados temas e encarar as questões da rapaziada, cada vez mais rodeada de

informações que nada humanizam a consciência e não conduzem no caminho para o Deus

de Jesus Cristo.

É necessário lançar o olhar sobre os jovens, numa atitude cristã de anúncio da Boa

Nova aproximando-se das realidades dos nossos interlocutores. A fim de tirá-los da

margem e torná-los verdadeiros membros de uma comunidade de fé são necessárias duas

constantes: “estarmos atentos às características e necessidades dos jovens e não apenas a

transmitir conteúdo e doutrina, e rever estruturas e criar itinerários que favoreçam a

formação humano-cristã” (CALANDRO; LEDO, 2013, p.10). “No contato com os

jovens, importa esclarecer-lhes se, na verdade, se comprometem com uma religião, ou se

buscam simples vivência religiosa ou aderem à fé cristã com as consequências de

conversão e práxis” (LIBÂNIO, 2012, p.), sem desconsiderar seus ideais de vida futura,

de vida eterna.

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Page 71: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

71

A IGREJA CATÓLICA NO CINEMA.

George José Rodrigues de Melo57

Introdução

De acordo com Bernadet, o cinema surgiu em 28 de dezembro de1895, na

França, tendo como criadores os irmão Lumiére. Desde então, percebe-se na sétima arte

que o interesse pela Igreja Católica é constante e rara é a década que não tinha surgido

algum filme que retrate um aspecto da sua doutrina ou a vida de algum dos seus santos.

Nos últimos quase 45 anos, por exemplo, foram produzidos mais de 10 filmes

sobre algum ponto central da Igreja Católica, sendo os principais: Irmão Sol Irmão Lua,

dirigido por Franco Zeffirelli de 1972; Jesus de Nazaré dirigido por Franco Zeffirelli de

1976; Romero, dirigido por John Duigan de 1989; O Código Da Vinci dirigido por Ron

Howard de 2006; e Irmã Dulce dirigido por Vicente Amorim de 2014.

Por que tanto interesse da sétima arte para com a IGREJA CATÓLICA? Por

que os filmes como esses levam milhões de pessoas para assisti-lo? Essas e outras

perguntas têm estado na mente desse pesquisador que além de cinéfilo tem também

interesse na relação entre cinema e religião.

A Igreja Católica

A Igreja Católica é o maior ramo do Cristianismo e o mais antigo como Igreja

organizada. Com sede no Vaticano, a Igreja Católica (do grego Katholikos, universal).

Desde o dia 13 de março de 2013, a Igreja Católica encontra-se sob a liderança do

argentino Jorge Mario Bergoglio, nomeado de Papa Francisco, ele vem promovendo

57 Graduação em História pela Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da Mata – Universidade

de Pernambuco. Especialização em Ensino de História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Secretaria Educação de Pernambuco. Secretaria Municipal de Educação de São Lourenço da Mata.

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mudança dentro da Igreja Católica. O último papa antes do argentino foi o Papa Bento

XVI, que abdicou do cargo no mesmo ano.

A Igreja Católica, chamada também de Igreja Católica Romana e Igreja Católica

Apostólica Romana, é uma Igreja Cristã com aproximadamente dois mil anos, colocada

sob a autoridade suprema visível do Papa, Bispo de Roma e sucessor do apóstolo Pedro.

Seu objetivo é a converção ao ensinamento à pessoa de Jesus Cristo em vista do Reino de

Deus – concede um papel condizente nesta missão à Nossa Senhora, a quem intitulou de

"Mãe da Igreja". A Igreja Católica administra os sacramentos e prega o Evangelho de

Jesus Cristo. Atua em programas sociais e instituições em todo o mundo, incluindo

escolas, universidades, hospitais e abrigos, bem como administra outras instituições de

caridade, que ajudam famílias, pobres, idosos e doentes.

Figura 1 - Papa Francisco

Fonte: www.google.com.br

Figura 2 – Papa Bento XVI

Fonte: www.google.com.br

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73

A principal cerimônia é a missa. Seu ponto culminante é a eucaristia, um dos sete

sacramentos (ritos sagrados) da Igreja, no qual, de acordo com a crença, Jesus Cristo se

encontra presente com seu corpo, sangue, alma e divindade, na forma de pão e vinho. Os

demais sacramentos são o batismo, a crisma, a confissão, o casamento, a ordenação e a

união dos enfermos. Os católicos reverenciam a Virgem Maria, a mais importante

intermediária entre os fiéis e seu filho, Jesus Cristo, e os Santos, mediadores entre o

homem e Deus.

Quando de sua entronação, ela contava aproximadamente com 1,2 bilhões de

membros, distribuídos principalmente na Europa e nas Américas mas também noutras

regiões do mundo. Sua influência na História do pensamento bem como sobre a História

da arte é considerável, notadamente na Europa.

A Igreja Católica, pretendendo respeitar a cultura e a tradição dos seus fiéis, é por

isso atualmente constituída por 23 Igrejas autônomas sui juris, todas elas em comunhão

completa e subordinadas ao Papa. Estas Igrejas, apesar de terem a mesma doutrina e fé,

possuem uma tradição cultural, histórica, teológica e litúrgia diferentes e uma estrutura e

organização territorial separadas. A Igreja Católica é muitas vezes confundida com a

Igreja Católica Latina, uma das suas 23 Igrejas autônomas e a maior de todas elas.

No Brasil, para onde foi trazida pelos portugueses, a Igreja Católica permanece

unida ao Estado até 1890. O país tem o maior número absoluto de católicos no mundo:

123,2 milhões, de acordo com o censo de 2010 do IBGE.

Cinema

Definido como a sétima arte, o Cinema é um sistema de reprodução de imagens

registradas em filme ou digitalmente e projetadas sobre uma tela. Seu nome deriva da

palavra cinematógrafo ( em grego, Kino significa movimento e graphos, escrita) e

representa uma das mais populares expressões culturais da humanidade, sustentada por

uma milionária indústria do entretedimento.

A invenção do cinematógrafo é creditada aos irmãos franceses Louis e Auguste

Lumière. Eles se tornam os pioneiros em conseguir projetar um filme em tela num ritmo

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constante, para vários espectadores simultaneamente. A primeira sessão da história ocorre

num café de Paris, em 28 de dezembro de 1895. A programação reúne nove filmes curtos,

entre eles A chegada do Trem à Estação de Ciotat, que provoca tumulto entreos

espectadores, assustados com a suposta proximidade da locomotiva. No ano seguinte,

Georges Méiliès constrói um estúdio nos arredores de Paris e dirigr Viagem à Lua, o

primeiro sucesso da história do cinema.

A ANÁLISE DOS FILMES

Paixão de Cristo.

Paixão de Cristo é um filme norte-americano de 2004, do gênero drama bíblico,

dirigido por Mel Gibson. O drama relata, de maneira relativamente fiel às escrituras

cristãs, as últimas doze horas da vida de Jesus Cristo, antes da crucificação.

Jesus de Nazaré.

Jesus de Nazaré é uma mini-série televisiva de 1977 a anglo-italiano e dramatizar

o nascimento, a vida, o ministério, a morte e ressurreição de Jesus de acordo com as contas

dos quatro Evangelhos canônicos do Novo Testamento. A versão sem cortes só está

disponível em DVD. O tempo total de produção é de 6 horas e 21 minutos.

O Evangelho Segundo João

O Evangelho Segundo João está fiel ao poderoso texto da bíblia sagrada. Mostra o

curso da vida de Jesus, durante um período tumultuado da história. Ele retrata as ações,

os milagres, as pregações, a vida e os ensinamentos de Jesus. Estrelando Henry Jan como

Jesus e narração de Cristopher Plummer, e também um elenco com mais de 2.500

pessoas.

O Nome da Rosa

O Nome da Rosa é um filme de 1986 dirigido por Jean-Jacques Annaud baseado

no romance homónimo do crítico literário italiano Umberto Eco. Sean Connery é o frade

franciscano Guilherme de Baskerville e Christian Slater é seu aprendiz Adson von Melk.

Na última semana de novembro de 1327, num mosteiro na Itália medieval, a morte, em

circunstâncias insólitas, de sete monges em sete dias e noites é o motor responsável pelo

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desenvolvimento da ação. O monge franciscano é chamado para solucionar o mistério e

cai nas malhas de uma trama diabólica. Na forma de uma crítica, as violências sexuais,

os conflitos no seio dos movimentos heréticos do século XIV, a luta contra a mistificação,

o poder, o esvaziamento dos valores pela demagogia, constroem uma reconstituição livre

dos fatos históricos da época aos olhos do espectador.

Irmão Sol Irmã Lua

A trajetória da vida de São Francisco de Assis, que quando jovem era filho de

comerciantes ricos e desfrutava de vinho, mulheres e canções sem ter nenhuma

preocupação. Quando a guerra e a doença assolam a região onde vive, ele sofre uma

grande transformação. Ao aparecer diante do bispo local e tirar suas roupas renuncia sua

vida prévia para se dedicar a Deus. Mas sua pregação só iria chegar ao ápice ao ir para

Roma, para ter uma audiência com o papa Inocêncio III.

Romero

O filme Romero, baseado em fatos reais, narra os três últimos anos da vida de

Óscar Arnulfo Romero y Galdámez, arcebispo de San Salvador, capital de El Salvador,

país da América Central.

No meio dessa turbulência, surge a figura de Oscar Romero. O arcebispo, a

princípio, defendia que a Igreja estivesse no centro, numa posição de vigia. Contudo, o

próprio clero estava dividido entre os conservadores e os adeptos da Teologia da

Libertação. Ao longo do filme, o personagem principal se transforma. O homem de

poucas palavras, com saúde delicada e amante dos livros deixa a neutralidade e passa a

defender o povo pobre. A mudança de atitude de Romero é motivada pelas mortes de um

amigo, o padre Rutílio Grande, e de outras pessoas, inclusive crianças. A invasão de

igrejas por militares também contribuiu para a transformação do arcebispo.

João XXIII

Conhecido como o papa da bondade, João XXIII mostrou ao mundo que a Igreja deve

atualizar-se e estar mais perto de todos os povos, atuando com misericórdia e esperança.

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Filme de grande qualidade artística e atualidade eclesial. Mostra o esforço sobre-humano

de João XXIII para organizar o Concílio Vaticano II e realizar a primeira sessão. O papa

da bondade mantinha seu inconfundível bom humor até nos momentos mais difíceis de

seu dia, dando ao filme um toque de bom humor, humanismo e paz.

João Paulo II

Karol Wojtyla nasceu na pequena cidade polonesa de Vadovice e teve uma

infância marcada por várias tragédias familiares. Aos 21 anos decidiu estudar em um

seminário e dedicar-se à vida eclesiástica. A partir de então segue carreira na Igreja

Católica, alcançando o apogeu ao ser escolhido como papa e assumindo o nome de João

Paulo II.

Madre Tereza

Inês Gonxha Bojaxhiu nasceu em Skopja, capital da atual república da Macedônia.

Aos 21 anos ela mudou seu nome para Teresa e ingressou em um convento em Calcutá.

Onze anos depois ela deixou o convento para trabalhar nos bairros mais pobres da cidade,

onde fundou em 1946 a Congregação das Missionárias da Caridade.

Cruzada

Balian é um jovem ferreiro francês, que guarda luto pela morte de sua esposa e

filho. Ele recebe a visita de Godfrey de Ibelin, seu pai, que é também um conceituado

barão do rei de Jerusalém e dedica sua vida a manter a paz na Terra Santa. Balian decide

se dedicar também à esta meta, mas após a morte de Godfrey ele herda terras e um título

de nobreza em Jerusalém. Determinado a manter seu juramento, Balian decide

permanecer no local e servir a um rei amaldiçoado como cavaleiro. Paralelamente ele se

apaixona pela princesa Sibylla, a irmã do rei.

A Missão

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No final do século XVIII Mendoza, um mercador de escravos, fica com crise de

consciência por ter matado Felipe, seu irmão, num duelo, pois Felipe se envolveu com

Carlotta. Ela havia se apaixonado por Felipe e Mendoza não aceitou isto, pois ela tinha

um relacionamento com ele. Para tentar se penitenciar Mendoza se torna um padre e se

une a Gabriel, um jesuíta bem intencionado que luta para defender os índios, mas se

depara com interesses econômicos.

Considerações Finais

Com o intuito de possibilitar um questionamento sobre determinados temas sobre

a História da Igreja Católica, trazemos a luz do cinema para a análise dos documentos da

trajetória evolutiva do Catolicismo Romano. Debruçamo-nos especificamente no uso de

filmes como uma rica e valorosa contribuição ao entendimento o ensinamento da Igreja

Católica.

O cinema é espaço de experiências de vida, de encontro com o cotidiano e com a

realidade, sendo, portanto um instrumento de comunicação e interação com o mundo.

A pesquisa aqui relata e sustenta a premissa de que, ao analisar filmes, é

imprescindível considerar o fato de que as imagens neles contidas são fruto de um

processo de seleção, de escolhas que, consequentemente, determinam os sentidos e o

resultado da produção.

Através deste trabalho, procuramos demonstrar a inserção do cinema no religioso

como um documento passível das intervenções da sociedade que o produz, e por isso,

buscamos fundamentação teórica para dar base a nossa pesquisa e utilizamos os principais

trabalhos daqueles que estudam o cinema e suas relações com os ensinamentos da Igreja

Católica.

Dentro desta perspectiva, o cinema torna-se o lugar de encontro com o sagrado. A

experiência será mais ou menos profunda, dependendo da freqüência que tivermos com

a obra cinematográfica e com a reflexão teológica que ela pode suscitar.

Assim sendo, esperamos ter contribuído para o estudo da relação entre Religião e

Cinema, que só é válida quando optemos por um filme que venha acrescentar algo a nossa

espiritualidade.

Page 78: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

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80

AS IMAGENS SACRAS:

reflexos de um patrimônio nunca esquecido

Prof. Dr. Sergio Sezino Douets Vasconcelos58

Iron Mendes de Araújo Júnior59

INTRODUÇÃO

Com o crescimento da valorização do Patrimônio Cultural e a expansão das

denominações60 que o caracterizam, vemos a necessidade de difundir o debate sobre o

patrimônio religioso, dando ênfase as imagens dos santos. Visando uma reflexão sobre

até que ponto as imagens de arte sacra merecem ser valorizadas e vistas como vestígios

materiais que resguardam em seus significados diversos elementos simbólicos que

fizeram e fazem parte das tradições centenárias que dão consistência as nossas tradições

culturais e religiosas. Para isso, basearemos nossa pesquisa em autores que dissertem

sobre as mesmas, buscando também esclarecer aspectos referentes a como se observam

essas imagens que detêm em suas raízes elementos tanto histórico-culturais quanto

litúrgicos, que regeram grande parte da vida religiosa popular desde o período da

colonização brasileira.

Não se deve negligenciar a contribuição direta que o catolicismo exerce dentro de

nossa nação. Os últimos dados do IBGE colocam que mais de 60% da população

brasileira ainda se denomina católica61. Sendo mais da metade ainda vista e

denominando-se como católica, em um Estado onde outras manifestações religiosas

começaram a ser amplamente aceitas e seus cultos oficializados, difundidos e

incentivados, se desenvolvendo, desde o lançamento da laicidade, que foi alcançada em

58 Doutor em Teologia. Possui Licenciatura em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco

(1991), graduação em Teologia pelo Instituto de Teologia do Recife (1989), graduação em Teologia –

Seminário Imaculada Conceição da Arquidiocese da Paraíba Centro de Estudos (1992) e doutorado em

Teologia Católica – Westfälische Wilhelms Universität Münster/ Alemanha (1999). E-mail:

[email protected] 59 Graduado em História pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e mestrando em Ciências

da Religião pela mesma instituição. E-mail: [email protected] 60 Basicamente observam-se três definições distintas de patrimônio: patrimônio material, patrimônio

imaterial e patrimônio vivo. 61 Seus dados sintetizados em tabelas definem o grupo da religião católica em três tipos: Católica

Apostólica Romana; Católica Apostólica Brasileira e Católica Ortodoxa (IBGE, 2015)

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detrimento da proclamação da república, junto a separação entre religião e estado,

buscando, assim, promover ao máximo possível um diálogo e respeito sobre as diversas

matrizes religiosas que compõem nossa cultura. Vemos a necessidade de expor a

importância das imagens sacras como meios de difusão e preservação da cultura e da

história de nosso país, a medida que se constata a influência direta do catolicismo para a

formação de nossa identidade social.

A DEFESA DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Pode-se observar no decorrer dos anos, um grande crescimento no que se refere

ao debate e as definições que cercam a temática sobre patrimônio cultural. De fato, temos

inúmeras formas de interpreta-lo e conhecê-lo, emanadas tanto nos vestígios materiais,

caracterizados pelos sítios históricos e bens tombados, ou podemos conhecê-lo através

das manifestações imateriais inerentes e resplandecentes em cada cultura de cada nação,

de cada povo, de cada região.

De fato, podemos observar nisso, uma vastidão de elementos culturais que devem

ser analisados em particular. Pois a cada dia, novas formas de interpretar-se os bens

culturais de um povo, de uma nação, de um grupo especifico, surgem, para ajudarem a

iluminar determinadas lacunas e questões que referem-se a formação da identidade

cultural do povo a ser estudado.

A defesa do bem tombado deve partir não só do estado, mais também do povo a

quem essas imagens dialogam. Para isso dedicarei algumas laudas a demonstrar a

construção da noção contemporânea de patrimônio e do porquê da necessidade de

salvaguarda-lo.

ORIGENS DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Não é de hoje que a temática, nem o termo patrimônio se originam e vem se

desenvolvendo. Podemos observar no decorrer dos séculos diversos elementos que

vieram a moldar as noções contemporâneas de patrimônio. As origens etimológicas da

palavra patrimônio podem ser observadas a partir do século XII, onde inicialmente

referia-se a “herança paterna” (PINTO, 2013), mais deve-se ter em mente, que assim

como o patrimônio modifica-se de geração para geração, o termo também sofre expansão

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82

e reinterpretação com o decorrer dos séculos. Sendo no século XVII os primeiros indícios

da utilização do termo, próximo ao que hoje definimos de Patrimônio Cultural. Moldado

através das ideias e reflexões iluministas e da busca pela revalorização do antigo. “De

fato, ao Iluminismo, especialmente ao ambiente francês, podemos fazer corresponder

certo gosto pelo antigo, pelo exótico, a que não podemos esquecer de juntar o nascimento

do gosto pelo colecionismo” (PINTO, 2013, p. 639). Nesse contexto as imagens, os bens

patrimoniais, eram colecionados e salvaguardados em acervos particulares, onde muitas

vezes suas obras foram adquiridas de maneiras escusas e com a finalidade de enriquecer

o acervo do colecionador, estando ainda o conceito de patrimônio ligado exclusivamente

ao bem material.

Nessa fase inicial das recolhas de materiais, era totalmente impossível

separar o colecionismo da genealogia e do comercio de antiguidades.

Por mais de dois séculos, marcando fortemente a forma como até inicios

do século XX se recolhiam antiguidades no Oriente Médio, o furto e o

saque eram a o principal forma de adquirir essas peças que eram,

sobretudo, bens com fins e utilidades privadas, longe ainda de qualquer

noção de patrimônio público (PINTO, 2013, p. 639).

Foi na Inglaterra, que o tema adquire uma perspectiva voltada a salvaguarda dos

bens históricos, observar-se o patrimônio, não só para descrevê-lo. Os antiquários foram

de grande influência em questões ligadas a preservação, criando diversas formas de

proteger o Patrimônio Histórico:

Os antiquários ingleses não se limitaram à observação e à descrição de

seus monumentos góticos, como foi o caso dos franceses. O vandalismo

religioso da Reforma desperta neles a indignação, pois fere a um tempo

seu senso prático – é “um desperdício absurdo” – e sobretudo seu

nacionalismo. Os danos causados aos monumentos religiosos legados

pela Idade Média são sentidos como um atentado contra as obras vivas

da nação. As associações de antiquários levantam-se como guardiões

dessa herança. Criam uma estrutura de proteção, privada e cívica, que

seria característica da Grã-Bretanha até o início do século XX

(CHOAY, 2001, p. 92)

São inúmeras os trajetos e modificações que a temática ainda viria a sofrer até

chegar ao conceito de Patrimônio Cultural. Essa evolução viria a tomar corpo através da

institucionalização do mesmo, que viria a ocorrer baseando-se na noção iluminista de

Res-publica – “bem comum”, noção essa que viria a dar corpo a noção de nacionalização

dos bens (PINTO, 2013).

A consolidação do patrimônio histórico como um bem tombado, de reconhecida

importância, ocorre através do documento elaborado pela Convenção sobre Proteção do

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83

Patrimônio Cultural e Natural, promovida pela UNESCO62 em 1972, onde é então

elaborado o documento que viria a identificar o patrimônio cultural como monumentos63,

os conjuntos64 e locais de interesses65, em suma, todos os vestígios materiais com grande

valor histórico, artístico e cientifico.

Trinta anos após a convenção, no dia 17 de outubro de 2003, é então realizada em

Paris a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, onde

estabeleceu-se a definição de patrimônio imaterial, sendo esse representado pelas

“tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural

imaterial; expressões artísticas; práticas sociais, rituais e atos festivos; conhecimentos e

práticas relacionados à natureza e ao universo; técnicas artesanais tradicionais”

(UNESCO, 2014, p. 11). Nesse contexto o patrimônio imaterial encontra-se em constante

mudança, na medida que as práticas imateriais vão sendo reinterpretadas pelas sucessivas

gerações.

Na realidade “a valorização do Patrimônio Histórico apresenta múltiplas formas,

de contornos imprecisos, que quase sempre se confundem ou se associam” (CHOAY,

2001, p. 213), fato que nos leva a observar a complexidade em entender de uma forma

definitiva o que deve ser considerado como patrimônio histórico-cultural ou não. Para

tanto, deve-se sempre levar em consideração fatores múltiplos e que modificam-se de

acordo com a cultura de determinado povo ou nação.

Tratando-se de imagens de santos, por exemplo, as mesmas só adquirem valor

histórico e cultural, quando referenciadas e interpretadas em seu local e período de

origem, ou ainda quando as mesmas apresentam em sua estrutura simbólica, laços que

interligam-se e condizem com a realidade vivenciada ou memorizada na sociedade e no

indivíduo ao qual elas remetem. Nesse caso: “O símbolo aparece, efetivamente, em sua

ambivalência e sua plurivocidade, como ligado à própria existência do homem tomado

individualmente ou em sua dimensão coletiva” (MESLIN, 2014, p. 223), é no cerne

62 Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. 63 “Obras arquitectónicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de carácter

arqueológico, inscrições, grutas e grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista

da história, da arte ou da ciência” Cf.: UNESCO, convenção para a proteção do Património Mundial,

Cultural e Natural. Disponível em: <http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf>. Acesso em: 08 de

abril de 2015. 64 “Grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude da sua arquitectura, unidade ou integração

na paisagem têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência”

(UNESCO,Convenção para a proteção do Património Mundial, Cultural e Natural.

Em:<http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf> acesso em 08 de abril de 2015). 65 “Obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de

interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico

ou antropológico.” Cf.: UNESCO,convenção para a proteção do Património Mundial, Cultural e Natural.

Disponível em: <http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf>. Acesso em: 08 de abril de 2015.

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dessas questões que buscaremos lapidar, da forma mais concisa possível devido as

limitações de laudas dessa publicação.

AS IMAGENS SACRAS E OS CONCÍLIOS

Trabalhar com um tema como a Arte Sacra, que liga duas realidades que se

completam e tendem a interpretações múltiplas exige certo cuidado, ao transcorrer as

informações textuais, pois o conceito de arte sofre diversos incrementos e reinterpretações

no transcursar do tempo, por isso, explicitaremos em que contexto iremos trabalhar com

tal consideração. Para isso, dedicamos as laudas a se seguir a contextualizar e demonstrar,

de forma sucinta e objetiva, o desenvolvimento do culto a essas imagens.

O II concílio de Nicéia, vem a consolidar a veneração as imagens dos santos,

tomando todo uma série de cuidados e consolidando a diferença entre adoração e

veneração. Almir Flávio Scomparim justifica que:

Esse Concílio assume um ensinamento tradicional da Igreja, a saber, a

distinção entre a adoração e veneração. Adoração () é o culto

prestado unicamente à natureza divina. Veneração ( ou

) é um culto inferior que é prestado às imagens de Maria e dos

Santos. As imagens podem ser honradas com luzes e incenso. Esse culto

é justificado, porque o Concílio reconhece a imagem como um canal de

graça: quando mais freqüentemente Deus e os Santos são contemplados

nas imagens, os contempladores “são levados à lembrança e ao desejo

dos modelos originais” [...] Quem venera uma imagem venera a pessoa

nela representada (SCOMPARIM, 2008, p. 14).

Cláudio Pastro (2008) coloca que no II concílio de Nicéia estabelece-se que a Arte

Sacra, em todas as suas representações artísticas, pinturas, músicas, estatuarias, obras

artísticas como um todo, não deve ter seu conteúdo visível diferente do invisível. Pois o

ícone tornar-se a realidade suprema do mistério onde “Conteúdo e forma,

necessariamente, devem casar” (PASTRO, 2008, p.18).

O concílio Vaticano II, assim como seus antecessores desde o de Nicéia, vem

corroborar e justificar a permanência das imagens dos santos, além disso é tido como o

primeiro a preocupar-se explicitamente com a questão das imagens sacras

(SCOMPARIM, 2008). Em seu texto, o concílio coloca que:

O sagrado Concílio propõe-se fomentar a vida cristã entre os fiéis,

adaptar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições

susceptíveis de mudança, promover tudo o que pode ajudar à união de

todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para

chamar a todos ao seio da Igreja. Julga, por isso, dever também

interessar-se de modo particular pela reforma e incremento da Liturgia

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(CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Apostólica sobre a Sagrada

Liturgia. Disponível em:

<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/docu

ments/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html>.

Acesso em 02 de maio 2015).

Sobre a arte sacra e religiosa o texto coloca que:

Entre as mais nobres actividades do espírito humano estão, de pleno

direito, as belas artes, e muito especialmente a arte religiosa e o seu

mais alto cimo, que é a arte sacra. Elas tendem, por natureza, a exprimir

de algum modo, nas obras saídas das mãos do homem, a infinita beleza

de Deus, e estarão mais orientadas para o louvor e glória de Deus se não

tiverem outro fim senão o de conduzir piamente e o mais eficazmente

possível, através das suas obras, o espírito do homem até Deus

(Ibidem.)

Esses são alguns dos moldes estabelecidos pelo concílio, buscando uma definição

e valorização plena das diversas manifestações artísticas que ligam-se ao sagrado, ou a

manifestação religiosa cristã. Após abordarmos um pouco sobre os concílios e a visão da

Igreja sobre as imagens sacras, torna-se necessário demonstrarmos a importância dessas

imagens enquanto patrimônio cultural material, e porque as mesmas devem ser vistas pelo

contexto além do religioso.

AS IMAGENS SACRAS E SUA IMPORTÂNCIA PARA O PATRIMÔNIO

CULTURAL

Dentro de todo o processo desde seu descobrimento até sua colonização e

posterior independência, o Brasil teve como principal base de sua cultura religiosa o

catolicismo, porem entende-se aqui o catolicismo brasileiro de uma forma diferente do

catolicismo europeu. Eduardo Hoornaert defende que dentro das diversas manifestações

e práticas religiosas no Brasil, foram várias as formas de entender e praticar o catolicismo,

geradas através de um processo sincrético que o autor define em três tipos, sendo esses o

catolicismo guerreiro66, patriarcal67 e por fim o popular, todos ligados às necessidades de

66 Fruto da mentalidade guerreira das cruzadas medievais, que parte da ideia que existiram vários combates

a serem travados dentro do território luso-brasileiro, chegando a ser entendidos como uma espécie de

“guerra santa”, ideia, segundo o autor, que ainda era plenamente aceita pela cristandade ibérica, buscando

através da “violência sagrada”, utilizada contra os povos indígenas ou “gentios da terra” e posteriormente

também contra os negros, a sua sujeição e readequação a sociedade e aos princípios da igreja católica

(HOORNAERT, 1991.). 67 Busca “[...] impedir o nascimento de uma consciência de comunidade entre trabalhadores no engenho,

nas fazendas, nas minerações. [...] se insere na longa lista de ‘religiões do estado’ que tiveram como função

a de sacralizar e assim perpetuar o poder dos estados” (HOORNAERT, 1991, p. 74.), o rei e posteriormente

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86

uma certa classe e de determinado interesse, seja interesse político, por parte dos senhores

de engenhos ou da coroa portuguesa, a necessidade de redenção por parte do povo ou

simplesmente pela necessidade de organização social (HOORNAERT, 1991).

Não podemos aqui explorar de forma profunda todas essas manifestações da

cultura e religiosidade católica luso-brasileira, então nos permitiremos dar ênfase a

algumas questões ligadas as interpretações do que pode ser acentuado como “catolicismo

popular”. Por acreditarmos que, a abordagem sobre essa forma de vivencia católica, é

suficiente para transmitirmos ao leitor a importância das imagens sacras e religiosas,

como forma de compreender-se elementos importantes de nossa cultura.

O catolicismo popular é ainda um tema muito complexo para se fazer uma

definição única e abordar de forma especifica o seu sentido. Porem para resumir o

contexto, generalizando, seria a interpretação leiga do povo, sua vivência, mitos, formas

de praticar-se e viver-se como cristão. É o catolicismo, que durante os períodos da história

de nosso país, foi vivido pela população pobre, que contempla elementos mágicos da

diversidade cultural brasileira. Muitas vezes as imagens dos santos, utilizadas para o culto

e devoção, representavam simbolicamente, muito mais do que aparentam.

O simbolismo religioso [...] é fonte válida para pesquisa da vida do

povo, pois a sua linguagem é sincera, embora difícil de ser interpretada.

A religião diz respeito a experiências humanas concretas. Ela constitui

uma história simbólica de grande valor. [...] numerosas imagens

“significam” o medo do mar que portugueses sentiram na empresa

ultramarina: Nossa Senhora Aparecida, da Penha, da Guia, das Graças.

Outras significam a saudade da terra natal: Nossa Senhora do Desterro,

outras o encanto: Nossa senhora das Maravilhas, outras ainda a

gratidão: Nossa Senhora do Livramento, do Amparo, do Bom Sucesso,

da Piedade. As imagens de Nossa Senhora das dores, da Conceição, do

Rosário, refletem a vida nos engenhos (HOORNAERT, 1991, p. 13).

Como citado, essas imagens vão além do culto religioso, e integram-se a vivência

e ao cotidiano de seus fiéis, resplandecendo elementos relevantes para compreendermos,

por uma perspectiva simbólica, diversas questões culturais de nossa sociedade.

Outro exemplo pode ser dado relacionando as imagens dos santos com o

sincretismo religioso sofrido em nossa sociedade no Brasil colonial através da introdução

da matriz religiosa africana:

o imperador apresentavam-se com o espirito paternalista, eram os lideres, os pais do povo, vistos como

representantes de Deus, sua nobreza de espirito refletia-se assim, dentre outros fatores, em suas obras de

caridade.

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É importante registrar que no Brasil, conforme nos ensina Volney J.

Berkenbrock o sincretismo não ocorreu de maneira uniforme em todos

os lugares, antes, conheceu várias fases distintas. Os africanos trazidos

para o Brasil percebiam separadamente as tradições religiosas de

origem cristãs. A tendência inicial foi simplesmente justapor os

elementos dessas religiões, sem vínculo de conteúdo entre eles. Já os

descendentes dos escravos nascidos no Brasil, não conheceram essa

situação de duas mundividências religiosas diferenciadas; assim, o

sincretismo serviu também como um mecanismo para se preencherem

lacunas. No caso do sincretismo afro-brasileiro, a lógica imperante não

foi a da separação dos elementos, mas sim a que une esses elementos.

Pode-se dizer, pois, que não foi a pergunta pela origem (de onde vem?),

mas sim a pergunta pelo objetivo (para que serve?) que mais influenciou

o processo do sincretismo (KENBROCK apud, BITTENCOURT

FILHO, 2003, p.64).

Esse processo de mistura de elementos religiosos, inicialmente distintos, viria a

gerar novas formas de perceber, praticar e vivenciar a religiosidade, tanto afro-brasileira,

quanto luso-brasileira.

Observando agora sobre a ótica da história comparada, Ulisses Neves Rafael ao

trabalhar com as festividades populares no ciclo junino (ou joanino), coloca que:

A origem comum, neste caso, refere-se às festas brasileiras, boa parte

das quais “nasce” em Portugal, guardando, portanto, com o modelo que

lhe inspira inúmeras aproximações. Contudo, sem descartar essa

“origem comum”, é para as transformações a que estiveram sujeitas tais

práticas, que deve estar voltada nossa atenção (RAFAEL, 2013, p. 65)

Nesse caso, o parâmetro de comparação utilizado, são festas religiosas católicas,

que ainda hoje são praticadas tanto em Portugal e no Brasil, festas essas, que detêm como

símbolo os santos do período joanino (São Pedro, Santo Antônio e São João), que em

locais diversos de culto e devoção, tornam-se parte integrante e inerente da cultura

popular, e trazem com suas celebrações a devoção fervorosa do povo, que nesse período

costuma fazer diversas simpatias e pedidos aos santos. Mais uma vez, o símbolo tangível

e intangível, visível e invisível é o Santo, e sua representação física através das imagens

a ele destinadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Olhar para as estátuas dos santos, compreende observar algo muito além do que a

imagem inicialmente pode vir a retratar em nossas interpretações. Olhar pra uma imagem

Sacra é observar toda uma construção cultural que precede a formação do nosso país,

mais é ressignificada pelas nossa riqueza e multiplicidade étnica e cultural. Elas remetem

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a aspectos históricos que fogem ao culto religioso e transformam-se em portadoras

materiais de nossa historicidade e identidade. Olhar para uma imagem sacra e buscar

interpretá-la é ir além do religioso em busca do cultural.

Por fim, concluímos que a polissemia de valores e elementos contidos dentro dos

significados, e ressignificações, impressos nos elementos, compostos, dentro da vivência

e religiosidade brasileira, torna a análise dessas imagens, uma fórmula de imprescindível

valor, para os estudos sobre o cotidiano, sobre a formação cultural e religiosa não só

católica como também da Nação como um todo. Podem ser encontrados elementos dentro

das práticas religiosas populares, que remetem tanto as tradições indígenas quanto

africanas. Desta forma, as imagens tornam-se fontes de grande valia para a pesquisa, são

monumentos que retratam elementos que vão além do religioso. Suas feições modificam-

se de acordo com a cultura e sociedade em que se encontram, tomando forma e

transformando em “memórias físicas”, tornam-se elementos da identidade de um povo.

Infelizmente, não é possível alargar as considerações sobre os sistemas simbólicos e as

interpretações das imagens sacras, ficando assim uma promessa para análises futuras mais

aprofundadas.

BIBLIOGRAFIA

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CONCILIUM SOBRE A SAGRADA LITURGIA. Disponível em:

<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-

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pessoas com deficiência. Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

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<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_religiao

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MESLIN, M. Fundamentos de antropologia religiosa. Aexperiência humana do

divino. Petrópolis: Vozes, 2014.

PASTRO, C. O Deus da beleza: a educação através da beleza. São Paulo: Paulinas,

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PINTO, P. M. (Org.). Compêndio de Ciências da Religião. São Paulo: Paulinas;

Paulus, 2013.

SCOMPARIM, A. F. A iconografia na Igreja Católica. São Paulo: Paulus, 2008.

UNESCO. Textos base Convenção de 2003 para a salvaguarda do patrimônio

cultural imaterial. Brasília: UNESCO, 2014.

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Disponível: http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf >. Disponível em: 08 de 04

de 2015.

Page 90: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

90

PASTORAL URBANA: ONTEM E HOJE

CRITÉRIO HERMENÊUTICO DO MOVIMENTO DE MOISÉS

RUMO À URBANIZAÇÃO EM CANAÃ

Jário Carlos S. Jr. 68

Introdução

Poeticamente falando, a meditação incomparável do padre Antônio Vieira pode

muito bem nos fazer ingressar em nossa reflexão a respeito da missão da Igreja na cidade:

Os antigos, quando queriam prognosticar o futuro, sacrificavam os

animais, consultavam-lhes as entranhas, e conforme o que viam nelas,

assim prognosticavam. Não consultavam a cabeça, que é o assento do

entendimento, senão as entranhas, que é o lugar do amor; porque não

prognostica melhor quem melhor entende senão quem melhor ama. E

este costume era geral em toda a Europa antes da vinda de Cristo, e os

portugueses tinham uma grande singularidade nele entre os outros

gentios. Os outros consultavam as entranhas dos animais, os

portugueses consultavam as entranhas de homens. A superstição era

falsa, mas a alegoria era muito verdadeira. Não há lume de profecia

mais certo no mundo que consultar as entranhas dos homens. E de que

homens? De todos? Não. Dos sacrificados. Se quereis profetizar os

futuros, consultai as entranhas dos homens sacrificados: consultem-se

as entranhas dos que se sacrificaram e dos que se sacrificam; e o que

elas disserem, isto se tenha por profecia. Porém, consultar de quem não

se sacrificou, nem se sacrifica, nem se há de sacrificar, é não querer

profecias verdadeiras; é querer cegar o presente, e não acertar o futuro

(ALVES, 1985, p. 70-71).

Sem qualquer intenção de desprezar os referenciais da mais legítima tradição

teológica, grande parte de nossa missão pastoral urbana reside em consultar as entranhas

dos sacrificados a fim de que caminhemos em direção ao futuro inevitável das nações da

terra e, porque não dizer, das cidades do mundo.

O fato é que a mudança física e social aumenta o potencial para a mudança moral

e religiosa, razão porque devemos veementemente enfatizar que atualmente 90% da

população mundial habita em cidades. Estima-se que em 2025 mais de 97 % estará na

cidade. Segundo estatísticas de 1996, no Brasil, 123 milhões de habitantes pertencem ao

68 Mestrando em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: [email protected]

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91

mundo urbano, enquanto quase 34 milhões estavam no campo. Sabendo que nesses

últimos anos, no Brasil, o êxodo rural continua como um fato, caminhamos para mais de

80% da população como sendo urbana. Nesse sentido, impressiona o dado de 1940

quando tínhamos apenas cerca de 30 % de população urbana e 70% no campo (LIBÂNIO,

2001, p. 30). Diante de tamanho quadro, a exigência básica de nossa missão pastoral

urbana, assim como em qualquer planejamento comprometido com a esperança, pode-se

dizer, tríplice.

Em primeiro lugar, é preciso ter os pés no chão. Sim! Nosso campo de ação é

o chão da vida, no qual a Igreja pode eficazmente inculturar o evangelho, o que exige de

cada um de seus membros a inserção na própria realidade. E, sem dúvida, “partir da

realidade é partir de onde se está, e não de onde gostaríamos de estar” (BRIGHENTI,

2000, p. 46). Em segundo lugar, é necessário ter os olhos no horizonte. Isso significa:

olhar longe e “saber-se acompanhado e interpelado por Deus, que vai à frente” (Ibid,

2000, p. 46). Partir da realidade não significa que os desafios que se apresentam têm a

última palavra. Sem essa atitude de esperança, “não há metodologia, por melhor que seja,

que consiga fazer caminhar” (Ibid, p. 47). Em terceiro lugar, é imprescindível ter a

coragem de “sujar” as mãos. Sem dúvida, os pés no chão e o olhar no horizonte precisam

entrecruzar-se com as mãos. E “sujar” as mãos tem haver com as “instâncias pelas quais

se passa do teórico ao prático” (Ibid, p. 47). É verdade que, bem aqui, reside o risco do

fracasso, mas esse é “o preço do exercício da liberdade, condição para criar o novo, para

avançar, para quem quer ser protagonista da mudança” (Ibid, p. 48).

Essa é a razão de uma reflexão acerca da missão pastoral urbana da Igreja que

passe, em um primeiro momento, pela necessidade de uma práxis missional que traga à

memória uma faceta esquecida da história das missões – a história regional de missões.

Nossa reflexão passará ainda, em um segundo momento, pela negação do alto teor de

importação que ainda caracteriza a ação missionária no Brasil, via-de-regra, ainda

intrigada com a brasilidade e regionalidade, sem as quais nunca poderemos sonhar com a

concretização, em nosso contexto, do projeto alternativo proposto pelo movimento de

Moisés rumo à urbanização em Canaã, movimento que, por sua vez, nos permitirá acessar

o critério para a missão pastoral urbana proposta aqui.

Assim, nossa tentativa será a de interpretar o movimento mosaico de saída em

missão, o êxodo israelita do Egito como a gestação de uma comunidade alternativa em

saída. Isso faremos objetivando a necessária passagem da reflexão à prática, crendo ser

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esta última, o modo de diagnosticar saúde e relevância em nossa temática, pois

entendemos que: “Uma teologia sadia tem um modo de ser intensamente prático”

(BAKKE, 1989, p. 05). Afinal, “a voz do Senhor é uma voz de novidade”

(BRUEGGEMANN, 1993, p. 21), razão porque, de fato, a missão pastoral urbana possui:

“cheiro de novidade” (Ibid, 1993, p. 17-31).

Da inserção à inadequação missional em solo brasileiro. Abortando uma História

Regional de Missões

A história da antiga evangelização realizada, tanto pelo catolicismo europeu como pelo

protestantismo de missão norte-americano em solo brasileiro,69 se nos oferece como uma

oportunidade de se fazer uma meditação mais abrangente acerca daquilo que terminou

por constituir a ação missionária no Brasil.

A Inserção do Protestantismo no Brasil – Um estudo de caso

É bem verdade que, para citar um caso específico, a inserção do protestantismo na cultura

brasileira terminou por configurar-se como inadequação missional, visto que a chegada

do protestantismo de missão norte-americano no último terço do século XIX tenha sido

produto de um sentimento expansionista combinado com motivações teológicas alheias à

nossa realidade nacional. Trata-se daquilo que se tem chamado de religião civil

americana, com suas seitas e sua teologia, sua regulamentação da vida social dentro da

ética rigorosa do puritanismo colorido pelo metodismo (MENDONÇA, 1984, p. 29-65).

O fato é que, para os missionários e líderes protestantes nacionais, o catolicismo

brasileiro nada fizera pelo progresso moral e material da sociedade, o que ocasiona uma

estratégia de missão baseada numa certa “ausência da cultura” (MENDONÇA;

VELÁSQUEZ, 1990, p. 143), o que conduz à afirmação de que “tornar-se protestante, na

perspectiva analisada, implica em deixar de ser brasileiro e latino para, culturalmente,

tornar-se anglo-saxão” (Ibid, 1990, p. 230). De fato, não somente toda proposta missional

69 A esse respeito, faremos um breve estudo de caso sobre o protestantismo de missão não somente em sua

inserção em solo brasileiro, mas principalmente na defectiva reflexão crítica em torno de tal inserção feita

pelo protestantismo brasileiro por ocasião da chamada “Conferência do Nordeste”.

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carrega consigo um arsenal teológico, mas principalmente toda mudança de rota das

correntes teológicas repercute na ação missionária.

Por essa razão, a teologia protestante fez recair – ainda mais do que a tendência

do catolicismo ocidental – sua ênfase sobre a culpa do pecador, enfatizando os erros da

religião dominante em uma verdadeira reação protestante (HAHN, 1989, p. 234-236) ao

invés de procurar fazer uma leitura lúcida dos males sociais que, naqueles dias,

destroçavam o Brasil como um todo, o que ocasionou indubitavelmente um agudo

“descompasso entre protestantismo histórico brasileiro e sociedade” (MENDONÇA;

VELÁSQUEZ, 1990, p. 13).

Tal contexto, não apenas nos faz entender as razões da inadequação da inserção

do protestantismo histórico brasileiro, mas também nos faz compreender as razões que

levaram às igrejas pentecostais e neopentecostais a toda uma criatividade acalourada de

projetos e estratégias, sem critérios abalizados pré-definidos. Segundo Fernandes (1992),

cumpriu-se uma agenda missionária que reduziu a missão protestante a um universo

circunscrito que abriu espaço à realização da chamada Conferência do Nordeste pelos

idos de 1962. A esse respeito, devemos historiar o contexto e realização de tal

conferência, como segue:

Na ocasião, após a segunda guerra mundial, a vitória das forças aliadas

favoreceu certa aliança entre o mundo liberal, social democrata e

comunista. Todos se aliaram na guerra contra o Eixo. Tais alianças

seriam rompidas com a divisão do mundo que deflagra a guerra fria. O

mundo passa a viver a polaridade: capitalismo – comunismo. Todavia,

ainda havia consenso em torno da dinâmica do progresso. O tema do

desenvolvimento surge com toda força. Na América Latina, o tema do

desenvolvimento é muito forte. No Brasil a era Kubitsckek coloca o

país nessa discussão. Nesses anos eclode também Cuba que representa

a alternativa socialista dentro da América Latina. No Brasil, o Nordeste

passou a ser encarado como a Cuba brasileira, pois era símbolo da

pobreza, exploração e da revolução. O sul estava no processo do

progresso diante dos marcos capitalistas, enquanto que o Nordeste

parecia condenado ao atraso. Daí a revolta e o significado da região

crescerem ao se entender que é da injustiça que nasce a alternativa

socialista. Um exemplo está no fato de que todo mundo que queria fazer

filme progressista no Brasil ia para o Nordeste, pois ele significava o

referencial simbólico ideal. Foi essa também a época em que surgiram

no Nordeste as ligas camponesas. Tudo isso favoreceu o vôo de uma

andorinha nordestina – a realização da Conferência do Nordeste. Esta

conferência nos aproximava de Cuba, das ligas camponesas, enfim do

imaginário da grande transformação. Se aquela geração que fez a guerra

e a reconstrução passava, surgia um grande debate ideológico nos anos

60 que empolgava a juventude. Quem fez a guerra tinha a cabeça

complicada, enquanto a juventude era ganha por esse debate. O

Page 94: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

94

movimento estudantil explodiu nas universidades e representou um

verdadeiro fervilhão cultural. A juventude ganhava um plano de

primeira linha no debate nacional e fazia uma opção clara pelo

socialismo. A empolgação era tanta que os jovens achavam que

poderiam mudar o mundo. Mas, havia uma tremenda ingenuidade

messiânica e um desconhecimento da complexidade da realidade. Não

se tratava de um messianismo do além, mas um messianismo

sociologizado, da história, feito por forças históricas e sociais. Essa era

a revolução. Foi nesse contexto que a Igreja foi apanhada quando

começou a se interessar pelas ciências sociais. Como sempre, a igreja

foi afetada de maneira similar à sociedade. A juventude era uma força

de engajamento e vanguarda. Os seminários foram permeados por essa

efervescência universitária. Enquanto isso, as bases da Igreja, as

gerações mais antigas estavam muito assustadas com tudo isso. O

isolamento intelectual dos revolucionários não tornou o zeitgeist e sua

práxis como realidades acessíveis, fazendo com que as igrejas

protestantes tivessem uma reação forte porque esse messianismo

sociológico tendia a ser caracterizado pelo ateísmo, visto que era

composto por setores bem pouco religiosos. A igreja protestante vinha

de uma história de oposição aos católicos e a proposta extemporânea

era a de um diálogo com católicos e marxistas. Para a igreja, de modo

geral, esse tipo de encontro, de diálogo, parecia muito arriscado, pois

ela não estava preparada para isso. A opção, portanto, foi a de rejeição

ao diálogo, uma reação conservadora que acompanhou a postura do país

como um todo. O fato é que, se por um lado, vislumbrava-se um novo

futuro de independência, autonomia, e de uma prática democrática

regida pela lógica das maiorias empobrecidas, por outro lado, o golpe

militar de 1964 desabou sobre o país quando as reformas de base, o

papel dos sindicatos, a organização camponesa estavam na ordem do

dia. No seio da igreja, iniciativas desencadeavam um processo de

consultas e encontros que se desejava fossem capazes de aglutinar as

igrejas do protestantismo de missão norte-americano. A proposta era a

de fazer com que se aprofundasse raízes na realidade sócio-cultural

brasileira: um programa conjunto de participação efetiva relevante na

realidade nacional, mas isto de forma autóctone, ou seja, autônoma em

relação às igrejas-mães norte-americanas. Isso exigia a participação de

leigos, pastores e líderes, assim como a produção de um conhecimento

bíblico-teológico que atendesse a demanda dos novos desafios e novas

modalidades de ação e participação sociais que adviriam. Assim, em

tamanho empreendimento não se poderia prescindir do concurso das

ciências sociais. Era fato que a questão cultural tinha sido um ponto

fraco do evangelismo protestante, em decorrência da identificação

apressada efetuada pelas missões norte-americanas entre pecado e

cultura nativa. Foi nesse contexto que a Conferência do Nordeste se

constituiu como meta indispensável. O local da conferência de 1962

não foi escolhido aleatoriamente: o Recife era o epicentro político do

Nordeste. A própria escolha do local constituía-se também num

símbolo de aproximação do protestantismo da autêntica cultura

brasileira, nascida na criatividade do povo em meio à opressão e

pobreza (FERNANDES, 1992, p. 14-15).

Indubitavelmente, às tentativas de certo revisionismo missiológico protestante

empreendido pela conferência do Nordeste no Recife da década de 60 correspondiam “os

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95

ecos do evangelho social no Brasil” (REILY, 1984, p. 275-276), ecos e tentativas que

poderiam levar à precipitada indagação: É certo que a igreja furtou-se à realização de um

projeto lúcido? Esvaiu-se de fato a oportunidade de antecipações inusitadas como as de

uma relação mais estreita entre teologia e ciências sociais? Nos teria escapado um projeto

de unidade cujo eixo fosse o do serviço ao próximo e de uma práxis solidária?

Nossa resposta se mistura à esperança de que o Espírito de Deus certamente irá

providenciar uma nova oportunidade à Igreja brasileira. Então, em meio à atraente

proposta de um evangelismo encapsulado por entre reducionismos doutrinais e

inadequações missionais, haverá lugar, quem sabe, para um cristianismo equilibrado e

mais criterioso, razão de nossa recorrente indagação: Diante da crise, ou mesmo do ‘fim

da utopia’ proclamado pela pós-modernidade, será possível a Igreja, em meio à um

cristianismo tão flagelado e frágil, prestar uma contribuição relevante?

Dos porões do êxodo aos portões do advento missional. Ressignificando a

hermenêutica pastoral

A possibilidade de uma contribuição relevante por parte da Igreja em meio ao

contexto atual de nossas cidades, com toda problemática que dele demanda, exige de nós

um retorno ao movimento de saída proposto por Moisés no êxodo israelita do Egito, onde

nos deparamos com a dessacralização da política como uma condição inevitável tão bem

interpretada por Harvey Cox ao afirmar: “A mudança política depende de uma

dessacralização prévia da política” (COX, 1965, p. 35-36). De fato, foi somente a reação

israelita promovida por Moisés que deflagrou um processo de derrocada do sistema

idolátrico egípcio conhecido na história como “a divinização do poder estatal do Faraó”

(AQUINO; FRANCO; LOPES, 1992, p. 92), abrindo alas para uma mentalidade de

mudanças promovida pela “força ideológica de uma ‘religião revelada’” (Ibid, 1992, p.

130).

Aqui reside, portanto, o critério hermenêutico advindo do movimento de Moisés,

um critério norteador das escolhas eclesiais em meio ao atual contexto da pastoral urbana

da Igreja no Brasil. Trata-se de uma espécie de ponto de partida para uma teologia bíblica

de missões urbanas, pois não é suficiente apenas importar-se com o que foi abortado –

uma história regional de missões – e abortar o que tem sido importado – modelos

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96

missionais estrangeiros – mas encarar lucidamente a realidade dos porões da

clandestinidade israelita veterotestamentária em meio ao Egito de então, de onde surge

uma comunidade alternativa arraigada à origens teologais, desde há muito reveladas a

uma família de forasteiros sem pátria e sem templos, família que vivia na leveza da

criatividade que teima em ensaiar as promessas divinas por meio da simplicidade da graça

vivida na austeridade de sua fé a caminho e na radicalidade de uma esperança peregrina.

À largada na corrida dos patriarcas rumo à terra das promessas – a pátria e cidade

imorredouras – corresponde a hermenêutica da peregrinação pelos desertos encontrada

no êxodo de Israel do Egito rumo à urbanização em Canaã.

Assim sendo, diante do desafio imposto pela atual urbanização, precisamos voltar

o foco para o movimento de Moisés, se realmente queremos encontrar nas Escrituras o

critério norteador da missão pastoral urbana no contexto da cidade moderna, pois o

cenário de tão significativo critério foi o de uma tensão entre o projeto macro-estrutural

do imperialismo egípcio sob o totalitarismo de seus governantes e o projeto de uma

comunidade alternativa teocraticamente liderada a partir de uma proposta específica – a

proposta de Moisés a respeito de uma comunidade alternativa radicada em seu passado

energizador e unida por esperanças fundamentais (BRUEGGEMANN, 1983, p. 09-32).

Nas elucidativas intuições de Brueggemann, o movimento de Moisés possuía três

itens em seu programa de ação: (1) a viabilização da identidade do povo de Israel a partir

de um aprofundamento étnico interno que o levou às raízes de sua fé e da sua experiência

histórica; (2) a ruptura radical com a realidade egípcia através da denúncia do triunfalismo

de uma religião estática e de uma política de opressão; e (3) a proposta de uma consciência

alternativa formada a partir de uma angústia e de um modelo fundado na celebração de

uma práxis de liberdade. Em suma, podemos afirmar que:

Moisés exprime a contracultura – vida alternativa – de um grupo

humano historicamente situado, cuja crítica do presente e nostalgia do

passado dinamizam a sua descontinuidade e ruptura com a realidade

imposta contra a qual se insurge soberanamente Aquele que não pode

ser por ela cooptado, nem dominado, mas permanece irredutivelmente

livre – o Deus de toda a terra[...] Trata-se da liberdade de Yahweh em

inverter a história para promoção do homem todo e conseqüente

instauração do Seu Reino (SILVA Jr., 2005, p. 19, passim).

Tal contracultura encontrou solo fértil para nutrir suas ideias a respeito do

movimento de Moisés em torno da aliança do Sinai nos meios rurais do reino do sul –

Page 97: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

97

Judá – e nos meios proféticos e levíticos do reino do norte. É inegável que a idéia de

aliança tenha sido preservada pelo ideal nômade dos profetas de Israel que “condenavam

o luxo e as facilidades da vida urbana e viam a salvação em um retorno à vida no deserto”

(VAUX, 2002, p. 34). De fato,

Nessa atitude há uma reação contra a civilização sedentária de Canaã

com todos os seus riscos de perversão moral e religiosa. Há também a

recordação e a nostalgia do tempo em que Deus havia feito aliança com

Israel no deserto e em que Israel estava ligado com seu Deus. Seu ideal

não é o nomadismo, mas aquela pureza da vida religiosa e a fidelidade

à aliança. Se eles (os profetas) falavam de retorno ao deserto, não é

porque recordavam uma gloriosa vida nômade que tivessem levado seus

antepassados, mas como meio de evadir-se de uma civilização

corruptora (Ibid, 2002, p. 34-35).

Como acentua Roland de Vaux (2002), a proposta que remonta aos profetas –

enquanto portadores da tradição mosaica e em seu alinhamento com a divina Revelação

– e propiciada pelo movimento de Moisés, é a de um movimento de reação que

desempenhou o seu papel histórico com relevância.

Assim, podemos destacar como elementos básicos da contracultura israelita

iniciada por Moisés (1) a visão nômade de pureza ética dominante no antigo Israel

colocada como uma alternativa ao imperialismo egípcio e, posteriormente, à cidade-

estado cananita e (2) o conceito de uma comunidade, cujo propósito é o compromisso

pactual com uma ideologia e organização social diferentes (MENDENHALL, 1959, p.

157-158). Note-se aqui, a estreita relação entre processo social e visão teológica, entre

“epistemologia e economia” (MILLER apud, BRUEGGEMANN, 1994, p. 08). À

semelhança da expressão de Karl Barth, 70 quando o Deus da liberdade e justiça é aceito

como “sócio” pactual, todo e qualquer totalitarismo encontra-se longe de se tornar

necessário ou viável.

Assim sendo, tão nítida trajetória de uma religião de um Deus da liberdade em

Sua política de justiça em favor do humano é o próprio critério hermenêutico do

movimento de Moisés. É, pois, somente a partir de tal critério que se torna possível a

Brueggemann (1994, p. 13-42) trabalhar as trajetórias da literatura veterotestamentária

70 Karl Barth usou a expressão “sócio do homem”, de acordo com GRIFFEN, Karn. “The Church as a

Therapeutic Community” apud ANDERSON, Ray (ed.). Theological Foundations for Ministry. Grand

Rapids: Eerdmans, 1979, p. 734. Vale frisar que, uma expressão similar “sócio de Iahweh” é usada

igualmente por Brueggemann em BRUEGGEMANN, Walther. Theology of the Old Testament.

Testemony, Dispute, Advocacy. Minneápolis: Fortress Press, 1997, p. 413-49.

Page 98: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

98

em associação com uma sociologia do antigo Israel, onde dois ciclos de tradições

concernentes ao pacto em Israel, um derivado de Moisés e outro Davídico em suas

formulações coexistiram, tendendo a tradição mosaica a um movimento de protesto,

enquanto a tradição davídica a um movimento de consolidação (Ibid, 1994, p. 43-63). Em

suma, podemos afirmar que Moisés gestaciona todo um imaginário, uma espécie de

utopia de alternância com sabor de deserto, para citar uma linguagem mais técnica e

poética e menos teológica.

Conclusão

Dessa forma, a relevância da missão pastoral da Igreja nos grandes centros

urbanos em nossos dias encontra o critério hermenêutico proveniente do movimento de

Moisés em pleno Antigo Testamento como forma de remediar as lacunas de uma história

regional de missões nem sempre lúcida e quase sempre carente de plausibilidade.

As inconsistências grotescas e agudas contradições entre o ideal americano de

implantação de agências estrangeiras no Brasil e a posterior reflexão fomentada pela

Conferência do Nordente no âmbito do protestantismo, por exemplo, aguçaram nossa

necessidade de buscarmos melhores respostas à práxis missional contemporânea, sendo

tal necessidade suprida por uma proposta bíblico-missiológica a ser remodelada na

contemporaneidade – e ressignificada pelos mais variegados contextos – à luz do critério

hermenêutico do movimento mosaico, cujo delineamento em nossos dias passa

sugestivamente pela (1) angústia intencionalmente articulada pela Igreja ao denunciar

corajosamente o atual desmantelamento das soluções meramente sóciopolíticas; pela (2)

proposta de uma consciência alternativa da Igreja radicada às origens teologais de seu

passado energizador e unida pela celebração de uma práxis de liberdade e esperança

fundamentais; e pela (3) emergência de uma contracultura profética, asceticamente

centrada, como movimento de reação, ético e anti-totalitário, comprometido com uma

ideologia e organização social diferentes. Trata-se inevitavelmente, como já dissemos, da

religião de um Deus da liberdade, cuja política em favor do humano descerre a missão

pastoral urbana da Igreja.

Page 99: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

99

Referências

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MENDENHALL, George. The Monarchy. Michigan: Interpretation Review, 1959.

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1984.

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100

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movimento peregrino de Moisés rumo à urbanização de Canaã, enquanto estrutura

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VAUX, Roland de. As Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Editora

Teológica, 2002.

Page 101: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

101

COMO FAZER COM QUE OS TEXTOS BÍBLICOS DIALOGUEM,

MESMO QUE ELES PAREÇAM TÃO DÍSPARES?

João de Sousa Brito71

1. A divergência entre textos

Como fazer com que os textos bíblicos dialoguem, mesmo que eles pareçam tão

díspares? Uma das percepções mais comuns, feita por quem se aproxima do texto bíblico

pela primeira vez é a grande incoerência entre suas diversas partes. Entretanto é preciso

salientar que “[...]toda contradição aparente encontrada na Bíblia – toda discrepância,

todo suposto erro histórico ou científico, incorreção gramatical, fato ou comentário

controverso – já foi percebida, discutida e debatida literalmente milhares de vezes[...]”72

Não se trata de nenhuma novidade perceber a existências dessas incoerências. A

pluralidade de gêneros literários, de autores, de lugares de redação, faz parecer, à primeira

vista, que a Bíblia é fruto de uma bricolagem que não teve êxito.

O desafio é perceber que, apesar de uma imagem supostamente bizarra, existe uma

harmonia entre os textos que pode ser trazida à tona mediante procedimentos exegéticos

e literários apropriados. Uma visão mais acurada do conjunto trará a compreensão de que

os textos possuem uma harmonia interna bem maior do que se pode pensar normalmente.

Uma das teorias mais aceitas e que explicam a divergência entre textos é teoria

documentária. Os cinco primeiros livros da Bíblia teriam se originado de quatro fontes: a

javista, eloísta, deuteronomista e sacerdotal.

Entretanto, essas composições teriam sido intencionalmente editadas para mostrar

uma visão harmônica da revelação divina. “Todos os grupos atuaram com intenções

teológicas: a ligação e a revisão dos textos realiza-se acompanhada por uma visão de

história baseada na fé na promessa de Deus.” 73

2. Dinâmica da intertextualidade

71Bacharel em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP-PE); pesquisador júnior no

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UNICAP-PE; mestrando em Teologia na

UNICAP-PE. E-mail: [email protected] 72 HUTCHINSON, Robert J. Uma história politicamente incorreta da Bíblia. Rio de Janeiro: Agir,

2012. p.59 73 VV.AA. Guia para ler a Bíblia. Trad. de Antônio Maia da Rocha. São Paulo: Paulus, 1997. p.75.

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Por trás da aparente linearidade dos textos bíblicos existem diálogos transversais

muito esclarecedores e que confirmam a possibilidade de uma “leitura infinita” da Bíblia.

Nesses diálogos é possível detectar o que de contínuo ou de descontínuo existe entre o

antigo e a novidade, ou como a novidade auxilia na leitura do antigo.

Uma das ferramentas que nos permite essa percepção é a dinâmica da

intertextualidade. A intertextualidade é um traço já há bastante tempo observado na

Bíblia. A Bíblia cita a si mesma de forma explícita, implícita ou alusivamente. Já os

Padres da Igreja haviam observado esse fenômeno de modo bastante evidente.

Entretanto somente com a dinâmica da intertextualidade, propostas mais

recentemente por Marguerat e Moiyse, é que se poderão perceber, com maior clareza, os

diálogos internos da Bíblia que vão surgindo de modo surpreendente.

Conforme nos lembram Marguerat e Bourquin, “a intertextualidade pode ser

definida como uma relação de copresença entre dois ou vários textos, ou, se preferirem,

como a presença efetiva de um texto dentro de outro texto.”74

A dinâmica da intertextualidade é uma vital ferramenta nesse processo de

descoberta e percepção das inter-relações estabelecidas pelas diversas partes da Bíblia.

Ao se perceber a presença de outros textos num texto corrente, a visão de harmonia se

amplia. A Bíblia foi trabalhada e composta minuciosamente para dar essa idéia.

3. Tipos de intertextualidade

No caso da Bíblia, existem, basicamente, dois tipos de intertextualidade, uma

explícita e uma implícita. O primeiro tipo ocorre quando é feita menção à fonte do

intertexto ou simplesmente ocorre a citação literal do intertexto. O segundo tipo se

apresenta quando se introduz intertexto alheio sem menção à fonte ou a citação é feita de

maneira aproximada.

Dependo da forma como ocorrer a relação intertextual o novo texto pode trazer

luz ao antigo, dando-lhe novo significado ou ampliando o sentido já existente. Trata-se

de uma relação dinâmica entre as diversas partes da Bíblia e que é melhor percebida

através de uma análise metódica e cuidadosa.

74 BOURQUIN, Yvan; MARGUERAT, Daniel. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise

narrativa. São Paulo: Loyola, 2010. p.130.

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Os textos permanecem dialogando entre si, apesar de terem sido escritos há

centenas de anos. E a intertextualidade vem evidenciar esse processo. Com o método

apropriado essas vozes tornam-se audíveis.

Como explica Koch, “[...]o produtor do texto espero que o leitor/ouvinte seja

capaz de reconhecer a presença do intertexto, pela ativação do texto-fonte em sua

memória discursiva, visto que, se tal não ocorrer, estará prejudicada a construção do

sentido[...]”.75

Os autores bíblicos não tinham, provavelmente, noções dessas ferramentas

literárias de análise de que se dispõe atualmente, contudo, eles visavam dar uma aparência

harmônica àqueles textos, e, ao que parece, eles intencionavam que esse trabalho de

interpretação fosse feito pelo leitor. No dizer de Marguerat e Bourquin: “Quanto mais

implícita é a mensagem, mais ativa deve ser a participação do leitor no ato de leitura”.76

4. Como funciona a dinâmica da intertextualidade

É necessário se levar em consideração alguns pressupostos e alguns passos

metodológicos na utilização da dinâmica da intertextualidade. Com relação aos

pressupostos, é necessário compreender que a Bíblia, como um todo, compõe uma única

história da salvação, cujo centro é a pessoa de Jesus Cristo. Jesus Cristo é a grande

novidade dessa extensa narrativa. Todos os textos contidos na Bíblia referem-se a algum

momento da história salvífica.

De maneira sintética, a metodologia vem descrita a seguir. Como primeiro passo

propõe-se a escolha e leitura pormenorizada de duas perícopes que poderiam estar

relacionadas intertextulamente. A leitura deve partir, preferencialmente, dos textos em

hebraico e grego. Em decorrência disso um conhecimento das línguas bíblicas torna-se

indispensável, pois somente assim se poderá detectar melhor onde e como ocorre a

intertextualidade.

Em seguida, deve-se proceder à análise semântica desses textos, quando se

observará a existência de palavras iguais ou sinônimas, especialmente os verbos, bem

75 KOCH, Ingedore G. Villaça; BENTES, Ana Cristina; CAVALCANTE, Monica Magalhães.

Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo, Cortez, 2007. p.28-31 76 BOURQUIN, Yvan; MARGUERAT, Daniel. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise

narrativa. São Paulo: EDIÇÕES LOYOLA, 2010. p.146

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como a quantidade de sua ocorrência. Vai se começando a perceber como esses textos

vão dialogando, semântica e tematicamente.

Após a análise semântica, deve-se proceder à análise temática. Caberá ao leitor

procurar identificar os temas carreados por cada um dos textos, bem como o modo como

esses temas são abordados.

Finalmente, surgem as hipóteses de leitura, que são possibilidades de

entendimento proporcionadas pelo estudo da intertextualidade bíblica. Ou seja, possíveis

compreensões ou respostas a diversas questões teológicas e humanas oferecidas pelos

autores bíblicos.

5. Um exemplo de utilização da dinâmica da intertextualidade

Como exemplo de como essa ferramenta pode ser utilizada, propõe-se a análise

da inter-relação entre os textos dos livro dos Cânticos 3, 1-4 e evangelho de João 20,11-

1777. Que relação intertextual poderia haver entre esses textos?

A seguir os respectivos relatos:

Sobre meu leito, ao longo da noite,

procuro aquele que eu amo.

Eu procuro, não o encontro.

Tenho de levantar-me,

dar a volta pela cidade;

nas ruas, nas praças,

procurar aquele que eu amo.

Eu o procuro, não o encontro.

Encontram-me os guardas

que fazem a ronda na cidade:

“Aquele que eu amo, não o viste?”.

Mal os tenho passado,

encontro aquele que eu amo.

Seguro-o e não o largo,

Até tê-lo introduzido na casa de minha mãe,

no quarto da que me concebeu:

Maria ficara fora, perto do túmulo, e chorava.

Chorando, ela se inclinou para o túmulo e viu

dois anjos vestidos de branco, sentados no

mesmo lugar onde o corpo de Jesus fora

depositado, um a cabeceira e outro aos pés.

“Mulher, disseram-lhe, por que choras?” Ela

lhes respondeu: “Tiraram o meu Senhor e eu

não sei onde o puseram”. Enquanto falava, ela

se voltou e viu Jesus que estava ali, mas não

sabia que era ele. Jesus lhe disse; “Mulher, por

que choras? Quem procuras?”. Mas ela,

pensando que se tratava do jardineiro, disse-

lhe: “Senhor, se foste tu que o tiraste, dize-me

onde o puseste, e eu o levarei”. Jesus lhe disse:

“Mariam”. Ela se voltou e lhe disse em

hebraico: “Rabuni”, o que significa mestre.

Jesus lhe disse: “Não me retenhas! Pois eu

ainda não subi para meu Pai. Mas tu, vai ter

com os meus irmãos e dize-lhes que eu subo

para o meu Pai, que é vosso Pai, para o meu

Deus, que é vosso Deus”. (grifos do autor)

77 Bíblia Tradução Ecumênica - TEB. São Paulo: Loyola, 1994.

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105

Logo se percebe que um verbo une os dois trechos, o verbo procurar. São duas

passagens que retratam a busca de uma mulher. A análise intertextual deles poderá

apontar o que o segundo texto traz de novidade em relação ao primeiro. Como o Novo

Testamento explica e amplia o sentido do Antigo Testamento? Será que esses textos tão

distintos poderiam ter algo mais em comum?

Alguns apontamentos.

Duas mulheres angustiadas, uma procurava o amado, a outra chorava e procurava

seu senhor. Num primeiro momento, uma encontra guardas e lhes indaga, a outra encontra

anjos, e é indagada por eles. Uma procura um vivo, a outra procura o senhor morto.

Quando a primeira mulher encontra seu amado, logo o reconhece. A segunda, não

reconhece logo seu senhor e o confunde com um jardineiro – o livro do Cântico dos

Cânticos parece ter um jardim como cenário. Ao encontrar seu amado, a primeira o segura

e não o larga. Ao reconhecer seu senhor, este diz à mulher para não o reter, e a envia

numa missão.

Nos textos encontramos continuidades e descontinuidades que nos esclarecem

sobre a nova perspectiva da vida de fé iluminada pelo evento Cristo. “Foi em meio a essa

maré montante de fragmentação, de conflito e de desespero que apareceu Jesus de Nazaré

com sua mensagem e sua visão ímpares”.78 A antiga experiência se repete, praticamente,

os mesmos personagens, porém com um novo formato, com um novo desfecho.

REFERÊNCIAS

Bíblia Tradução Ecumênica - TEB. São Paulo: Loyola, 1994.

BOURQUIN, Yvan; MARGUERAT, Daniel. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação

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78 MILLER, John W. As origens da Bíblia: repensando a história canônica. São Paulo: Loyola, 2004.

p.175

Page 106: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

106

O LUGAR DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NATEOLOGIA DE JOSÉ COMBLIN

MSc. Jorge Roberto de Araújo Aguiar79

1 A importância das Ciências Sociais80 no modo de fazer Teologia81 na América

Latina

Investiga-se neste primeiro momento a relação entre Ciências Sociais e teologia

no contexto da América Latina onde, se tornou necessário o recurso às Ciências Sociais

para conhecer a situação de pobreza em nosso continente. Francisco Aquino Júnior (2012,

p.1325) revela duas posturas fundamentais nesta relação. A primeira atribui grande

importância às ciências constituindo-se em um momento pré-teológico, e a

segunda,consiste em ressaltar a dimensão social da teologia e a sua instrumentalização

ideológica. Inicia-se o trabalho abordando o momento pré-teológico, dialogando com

Gustavo Gutiérrez e Clodovis Boff. Em seguida, trabalhar-se-á a questão da libertação da

teologia, ou seja, a sua não instrumentalização ideológica com Juan Luis Segundo.

1.1 O momento pré-teológico, dialogando com Gutiérrez e Boff

Verifica-se não só em Gustavo Gutiérrez como também em Clodovis Boff a fé

como participação da ação salvífica de Deus enquanto práxis. Reconhece-se, no entanto,

que coube a Gutiérrez, o mérito de ter iniciado o novo campo epistemológico no âmbito

do pensamento cristão, a partir do evangelho e do mundo da pobreza. Seu esforço para

compreender os mecanismos de opressão do sistema capitalista o levou a uma análise

social, e conseqüentemente, ao encontro com as Ciências Sociais, como também, com a

análise marxista. Gutiérrez (2000, p.73), ao se aproximar das Ciências Sociais, tinha em

79 Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (2011). Especialista em

Filosofia e Existência (2006), História do Brasil (1990) e Administração Escolar (1998). Possui

graduação em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1977). Atualmente é professor do

Liceu Alagoano e do Colégio Marista de Maceió. Tem experiência na área de História e Filosofia, com

ênfase em História Latino-Americana, Filosofia da História, Ética da Alteridade e da Libertação. E-mail:

[email protected] 80 Entende-se aqui que, tais ciências são auxiliares da teologia no sentido de ajudá-la a inculturar a fé na

atualidade histórica, ou seja, adequar a mensagem cristã à cultura moderna 81 Segundo Clodovis Boff, a teologia tematiza uma realidade que não é um ser parcial, como nas demais

ciências, mas o horizonte de todos os seres. Nesse sentido, a teologia constitui uma ciência necessária

como todas as outras. Mais: é uma ciência rigorosamente fundamental (BOFF, 2009, p.364).

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107

vista o conhecimento de uma situação e não de um estudo considerado teológico.Em

relação ao uso da análise social e do espírito crítico afirma:

Sem dúvida, o uso das Ciências Sociais, que como é indicado várias

vezes em nossos trabalhos está dando seus primeiros passos, como

esforço científico tem muito de aleatório, mas na atual situação nos

ajuda a conhecer melhor a realidade social. A postura diante delas deve

ser de discernimento, não só pelo que tem de incipiente, como já foi

sublinhado, mas também porque afirmar que tais disciplinas se situam

em um terreno científico não significa que se trata de algo irrefutável e

indiscutível (GUTIÉRREZ, 2000, p.74).

Como se observa em sua fala, o espírito científico não está isento do exame crítico.

Para ele a ciência progride por hipóteses. Ao afirmar que algo é científico significa

sustentar que está submetido a uma crítica permanente, e que a teologia deve está atenta

a essas variações e as críticas.

Já Clodovis Boff encara o problema da relação entre teologia e as Ciências Sociais

como mediações culturais a que recorre a fé para falar sobre Deus. Em seus escritos(1982,

p. 42) deixa claro que esta relação está determinada pelas exigências da práxis cristã.

Segundo ele, existem cristãos que estão engajados em práticas políticas. Sua fé se

confrontam com implicações teóricas e práticas no tecido das relações sociais. Daí a

necessidade de uma síntese orgânica entre a opção de vida, exprimindo-se nas e pelas

coordenadas da fé, e as opções históricas, levando a um questionamento cruzado entre fé

e política. Verifica-se neste sentido que se a fé pretende ser eficaz não pode se pretender

isolada da mediação política concreta. Daí a pergunta de Clodovis Boff (1982, p. 43) que

é ser cristão numa situação histórica como a da América Latina dependente? O que

significa essa situação aos olhos da fé? Nesse sentido afirma:

[...] a preocupação por uma teologia do político nasceu do solo

originário que é o engajamento de cristãos na política. As produções da

teologia do político se elaboraram de fato, e querem ainda se elaborar

em função desse mesmo engajamento. Eis aí duas constatações

importantes, relacionadas entre elas subentendidas na base da

articulação teologia e Ciências Sociais(BOFF, 1982, p. 43).

No que se diz respeito a esta relação, ela se dá, no momento da relação fé e política.

Sendo assim, o encontro prático dos cristãos com os desafios políticos, se constitui o

ponto de partida do encontro dos teólogos com as Ciências Sociais. Portanto, a relação

teologia e ciências ocorre na relação fé e práxis. Em outras palavras, não há teologia em

função da práxis política senão por uma mediação sociopolítica.

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108

Gutiérrez admite em relação as Ciências Sociais, que elas constituem ferramentas

de estudo da realidade social, e que ocorrem nestas ciências, elementos de análises

provenientes do marxismo82. Segundo Gutiérrez (2000, p.77), isto não autoriza se

identificar as Ciências Sociais ao marxismo. As alusões a Marx e as suas contribuições

no campo da análise são também frequentes na teologia o que não significa uma aceitação

ao marxismo. A aceitação de uma ideologia ateia seria contraria a fé que é fundamental

na questão teológica. No entanto Gutierrez (2000, p.81) chama atenção para a relação

entre a análise científica da realidade e a reflexão teológica como dimensões autônomas

e necessárias uma a outra. Porém, do evangelho não se deve deduzir ações políticas, pois

se trata de outro campo. Gutiérrez (2000, p. 81) vai mais longe quando comenta com mais

clareza: não se trata de elaborar ideologias que identifiquem posições, nem de forjar uma

teologia da qual se deduza uma ação política. Trata-se de nos deixar julgar pela palavra

do senhor e esta é a função da teologia. Não cabe a teologia da libertação buscar soluções

de políticas alternativas.

No entanto se há de convir que não se justifica a falta de ação da teologia no

anúncio da palavra, mas entende-se que o que cabe a reflexão da teologia se realiza à luz

da fé e não a luz da sociologia. No entanto, Aquino(2011, p.29) chega a afirmar que, a

relação entre teologia e política pertence a estrutura mesma da revelação e é um elemento

constitutivo do dinamismo cristão. Gutiérrez por sua vez, se posiciona da seguinte forma:

[...] deve-se pedir à teologia que assinale a presença da relação com

Deus e da ruptura da relação com Deus no âmago da situação histórica,

política econômica, o que uma análise social nunca poderá fazer. Um

sociólogo nunca verá que no cerne de uma realidade social injusta está

o pecado: ruptura com Deus e, portanto, ruptura com o próximo

(GUTIÉRREZ, 2000, p.82).

Sem dúvida, a fé em si como algo separado da vida não existe, não se trata de

esferas auto-suficientes. No entanto, a presença das Ciências Sociais na teologia, não

significa uma submissão da reflexão teológica, como também não se trata de descaso

pelas questões que a luta pela justiça suscita. A teologia deve compreender sua caminhada

apelando para suas próprias fontes.

82Clodovis Boff, em seu livro Teoria do Método Teológico reconhece que a Teologia da Libertação, no

momento de mediar a fé cristã com a realidade social e não no momento de constituir seus princípios

hermenêuticos privilegiou a tradição marxista. Tomou essa posição, segundo Clodovis Boff, quer por

razões de caráter científico (seria a corrente que melhor consegue explicar os fenômenos ligados à

pobreza) quer, mais na base ainda, por razões de tipo ético (ela se coloca na perspectiva da justiça e na

ótica do oprimido) (BOFF, 2008, p.385).

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109

Já em relação à teologia do político, Clodovis Boff (1982, p. 44) esclarece que se

trata de uma exigência interna da comunidade eclesial. Ela é vivida pelos cristãos

politizados. Segundo ele os cristãos vivem a experiência da fé na política, como se tratasse

da realização última do homem. Aí está talvez, o porque mais radical do interesse que

manifestam os cristãos engajados por uma síntese teórico-prática entre fé e política. Dessa

forma para uma teologia que vise a práxis as classes sociais exercem uma função de

mediação teórica necessária que Clodovis Boff chama de “Mediação-analítica”. Sendo

assim, há de se concluir que, as práticas políticas serão adequadamente realizadas quando

compreendidas através de análises das disciplinas que lhes dizem respeito. Desta maneira,

quando se diz que a práxis e o referente da articulação, teologia do político com as

Ciências Sociais, entende-se a práxis no sentido moderno do termo. A práxis subentende

uma interioridade, não é uma ação puramente mecânica, resulta num efeito objetivo, não

é uma ação que se esgota no âmbito interno. Seu sujeito é social, implica numa ação

transformadora. Segundo Clodovis Boff (2009, p. 393), quando se afirma que a teologia

é finalizada na práxis, não se deve entender práxis como apenas práxis pastoral. Para ele,

a teologia se destina também a prática ética, à prática política. A prática em que termina

a teologia é antes de tudo uma prática espiritual: ausculta a palavra, conversão, fé,

adoração. A práxis tem uma conotação política uma vez que é por intermédio do político

que se pode intervir sobre a estruturas sociais.

No entanto não se pode falar de teologia, na perspectiva cristã, sem falar da práxis

histórica de libertação. Francisco Aquino (2011, p.43) comentando Ignacio Ellacuria,

insiste na intrínseca relação da história da salvação com a salvação na história, isto é, a

progressiva realização do reinado de Deus na história, por ser o corpo histórico da

salvação, seu lugar próprio de realização e verificação do reino. Daí o duplo caráter social

e político da revelação de Deus. A revelação cristã de Deus acontece numa história social.

Este caráter práxico da relação teologia e política a qual Gutiérrez também, chama

atenção, diz respeito a estrutura mesma da revelação “histórico-salvífica” de Deus na

história. A fé é participação na ação salvífica de Deus e, portanto,práxis, e enquanto

práxis tem sempre uma dimensão social e política. Trata-se de uma revelação que tem

repercussão na estruturação das relações sociais. Sendo assim, em relação a fé, tem

sentido afirmar que, enquanto entrega ao Deus que se revela, a fé é participação nessa

mesma ação. Gutiérrez toma a realidade social como lugar onde se vive a fé e onde se

deve anunciar o evangelho.

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110

Francisco Aquino em artigo publicado pela revista Horizonte da PUC Minas,

chega a conclusão que Gustavo Gutiérrez e Clodovis Boff, assumem a mesma posição

quanto a questão que diz respeito a relação entre teologia e Ciências Sociais. Para

Aquino(2012, p.1335), enquanto Gutiérrez toma a realidade social como lugar onde se

vive a fé, Clodovis Boff a toma como um dos temas a ser pensado teologicamente.

Enquanto Gutiérrez restringe o uso das Ciências Sociais ao conhecimento da realidade

social, anterior ao trabalho teológico. Boff compreende a mediação sócio analítica como

um momento constitutivo do processo teológico total da teologia. No entanto, conclui

Aquino, ambos restringem a mediação das Ciências Sociais ao momento do

conhecimento da realidade.

1.2 As Ciências Sociais e a instrumentalização da Teologia: conversando com Juan Luis

Segundo

Torna-se evidente que as Ciências Sociais na América Latina, continua sendo uma

mediação significativa para o conhecimento da realidade social, onde os cristãos vivem a

sua fé. Cabe agora verificar a segunda postura assinalada por Francisco Aquino, em que

as Ciências Sociais ajudam na explicitação dos interesses sociais que condicionam o fazer

teológico.Juan Luis Segundo, chama atenção para o fato de quea teologia vem sendo

ideologizada ao longo da história em função de interesses nada evangélicos. Essa foi a

sua contribuição mais significativa no debate. As Ciências Sociais são significativas no

processo de desi-deologização da teologia

Nos textos de Juan Luis Segundo, principalmente em uma de suas obras mais

significativa: Libertação da Teologia demonstra sua preocupação com a libertação da

própria teologia. Inicia esta obra estabelecendo a diferença entre um teólogo acadêmico

com um da libertação. Para Segundo (1978, p.10), a diferença entre estes dois, consiste

em que o da libertação se vê obrigado a colocar juntas as disciplinas que lhe abrem o

passado e as disciplinas que lhes explicam o presente, enquanto a teologia acadêmica é

marcada por uma autonomia com relação ao presente e às ciências. Em relação a teologia

da libertação, insiste na interação com o presente e com as ciências do presente. Para ele

sem essa conexão, não poderia existir a teologia da libertação.

Quanto ao método,que chama de "Círculo hermenêutico" a relação entre a palavra

de Deus, o passado e o presente é fundamental.Referindo-se ao método, esclarece:

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111

Uma primeira definição pode ser esta:a contínua mudança de nossa

interpretação da Bíblia em função das contínuas mudanças de nossa

realidade presente, tanto individual quanto social. Hermenêutica quer

dizer interpretação. O caráter circular dessa interpretação significa que

cada realidade nova obriga a interpretar de novo a revelação de Deus, a

mudar, com ela a realidade e daí, voltar a interpretar [...] e assim

sucessivamente (SEGUNDO, 1978, p.10).

Sendo assim, este método implica numa contínua mudança da interpretação

bíblica em função das mudanças do presente. Mediado pelas ciências do passado como

pelas do presente, teria um caráter circular, pois, para cada realidade nova haveria a

necessidade de uma nova interpretação da revelação de Deus. Segundo (1978, p.11),

indica duas condições para haver um círculo hermenêutico em teologia. A primeira

consiste na riqueza e profundidade das perguntas do presente, e a segunda na riqueza e

profundidade de uma nova interpretação da Bíblia. A estas duas condições, Segundo,

identifica quatro pontos decisivos no círculo:

Primeiro: nossa maneira de experimentar a realidade, que nos leva a

suspeita ideológica; segundo: a aplicação da suspeita ideológica a toda

a superestrutura ideológica em geral e à teologia em particular; terceiro:

uma nova maneira de experimentar a realidade teológica que nos leva à

suspeita exegética, isto é, à suspeita de que a interpretação bíblica

corrente não toma em consideração certos dados importantes; e quarto:

nossa nova hermenêutica, isto é, o novo modo de interpretar a fonte de

nossa fé, que é a escritura, com os novos elementos à nossa disposição

(SEGUNDO, 1978, p.12).

Portanto, chega-se a uma nova interpretação das fontes de nossa fé,

fundamentadas nas perguntas novas, partindo de uma experiência crítica da realidade,

passando pela suspeita ideológica das idéias em geral, da teologia e da exegese em

particular. Sobre o lugar e a importância que Segundo atribui às Ciências Sociais na

teologia,Aquino (2012, p.1337) comenta: “elas são muito importantes, exercem uma

função fundamental, no processo de libertação da teologia no que ela tenha de opressão

ou de legitimação da opressão”. Aquino (2012, p.1337) considera que, para Segundo, “as

Ciências Sociais penetram no fazer teológico, sem pretender com isso substituir as fontes

da própria teologia, com a suspeita ideológica, desmascara os elementos de dominação

presentes nos vários discursos”.

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112

2 A dimensão social da teologia de Comblin e a suspeita ideológica

Abordadas as diversas compreensões sobre a relação entre Ciências Sociais e

teologia na América Latina, dialogando com Gustavo Gutiérrez, Clodovis Boff e Juan

Luis Segundo, resta agora verificar a contribuição das Ciências Sociais na elaboração do

discurso teológico de Comblin.

Para cumprir a exigência metodológica de apresentar os dados que fundamentam

a argumentação, se analisará o texto de Comblin, identificando a presença das Ciências

Sociais83 na sua produção como referência empírica. Em outras palavras, parte-se da

análise do texto devidamente escolhido, no sentido de verificar a participação das

Ciências Sociais como mediadora de sua teologia, ou seja, a maneira como Comblin usa

as Ciências Sociais para compreender a realidade na qual vive a sua fé. Para tanto,

supomos que a interpretação teológica das escrituras em Comblin, implica em um

compromisso de mudar o mundo de acordo com uma análise sempre nova da realidade

oculta sob os mecanismos ideológicos. Sendo assim, torna-se evidente que a busca da

sociologia, em Comblin, não podia evitar-se. Com efeito mudar o mundo supõe ter a

certeza que a nova imagem é melhor do que aquela que hoje funciona. Descobrir, pois,

quais são os mecanismos que ocultam e dão valor a realidade presente supõe realizar uma

análise ideológica que permite, verificar a nossa hipótese de maneira científica.

2.1 A morte de um Deus

Referindo-se à substituição do Deus dos filósofos pelo Deus de Jesus, no contexto

que vai dos Padres gregos à teologia escolástica, Comblin (2012,p. 99) deixa claro que

Deus foi apresentado nas categorias da ontologia grega diferentemente da mensagem de

Jesus, um Deus abstrato sem relação com a vida humana. Para Comblin (2012, p.99), essa

concepção de um Deus abstrato, que permanece além do tempo e do espaço, independente

da história é próprio também da concepção popular, que trata de um Deus cósmico,

fundador e base do universo,autor da vida, superior e muito distante, no entanto, Comblin

83 Francisco Taborda, em seu livro: Cristianismo e ideologia afirma que, nas Ciências Sociais existem

duas direções a funcionalista e a dialética. A primeira analisa a sociedade como ela é, e a segunda analisa

a sociedade a partir do que ela deveria ser. Neste segundo sentido, busca-se descobrir os mecanismos

ocultos de conservação do status quo para entender cientificamente como atuar no sentido de transformara

sociedade (TABORDA, 1984, p. 125). Neste sentido fica subentendido que há dois interesses

epistemológicos distintos que movem as duas perspectivas das ciências do social: o técnico e o

emancipatório por rejeitar como valor a sociedade vigente.

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113

(2012, p.99) considera que o ponto de partida de toda teologia, não pode ser nem o Deus

popular nem o Deus dos filósofos, mas o Deus de Jesus.

Quando Comblin se refere a concepção de um Deus abstrato, que permanece além

do tempo e do espaço, independente da história e, que é próprio também, da concepção

popular, Comblin entende que essa concepção de Deus se acomoda aos interesses de

grupos dominantes, e é um dos fatores ideológicos mais poderoso para manter o status

quo. Ele entende que o Deus de Jesus se posiciona ao lado dos excluídos, irritando aqueles

que prefeririam um Deus sentado num trono modelo para os poderosos. Num contexto

marcado por acentuadas dicotomias entre os que são considerados justos e outros

pecadores, os representantes do sistema religioso da época, consideram que Jesus age de

maneira escandalosa por se situar ao lado daqueles que o sistema rejeitou.

Portanto, percebemos na fala de Comblin a compreensão de um Deus que se faz

presente e atua na história, ou seja, de um Reinado de Deus que de alguma forma é uma

re-ação frente a determinadas situações. Consequentemente, essa concepção influi na

configuração do processo histórico, nas relações sociais e das forças políticas.O Deus de

Jesus como Comblin demonstra na sua interpretação não funcionaria no sistema descrito

do Deus dos filósofos nem do Deus popular.O Deus de Jesus não se situaria ao lado de

nenhum poder. As reflexões que Comblin desenvolve, desmascaram toda estrutura de

dominação, o que não seria possível sem a presença das Ciências Sociais.

2.2 Deus sem poder

Neste item, referindo-se ao Deus sem poder, Comblin (2012, p.101), observa não

só, na liturgia romana um Deus que nunca é invocado como Pai, e sim como o Deus

eterno e todo poderoso, como também, nas representações artísticas, desde a entrada no

Império depois de Constantino, Deus é representado por imagens do poder. Segundo ele,

o próprio Jesus ressuscitado na cristandade é também representado assim. Na consciência

dos povos tradicionais, ocorre a mesma coisa, Deus torna-se visível na imensidão do céu,

no sol, nas estrelas, nos fenômenos da natureza que demonstram poder.Porém, Comblin

(2012, p. 101) afirma fundamentando-se no evangelho, que Deus se revelou na vida

terrestre de Jesus na Galileia, e essa vida revela tudo o que podemos saber. Jesus era um

humilde habitante da Galileia, província desprezada pelos judeus por não ser considerada

pura. Ele não nasceu como filho de um latifundiário, mas, como filho de um modesto

carpinteiro rural, fabricando objeto de madeira usados pelos pobres camponeses, nada

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114

que merecesse estima pública. Não era proprietário, não tinha nada, Era destituído de

qualquer atributo que significasse poder.Referindo-se à imagem de Deus, Comblin

ressalta o caráter desigual das relações de poder na organização da vida coletiva no tempo

de Jesus.Segundo Comblin (2012, p.102), Jesus nasceu e cresceu entre os pobres, foi ao

encontro deles e anunciou-lhes a libertação da sua miséria, acolheu os pecadores, e todos

os que eram rejeitados. Escolheu os apóstolos entre os pobres. Denunciou os sacerdotes

que exploravam o povo em nome de Deus sob o pretexto de que Deus queria oferendas e

sacrifícios. Denunciou os doutores da lei que queriam impor a todos prescrições

impossíveis e mandamentos absurdos como a lei da pureza. Denunciou os ricos, os

proprietários que exploravam o trabalho dos seus escravos. Denunciou o Império. A cruz

foi o resultado da opção pelo amor. Aos que sempre tinham sido tratados sem amor quis,

revelar-lhes um novo mundo.

Importa aqui, ressaltar a função libertadora da sua teologia, a eficácia de sua

linguagem na configuração de uma nova imagem de Deus. Com suas suspeitas

ideológicas, Comblin desmascara os mecanismos de dominação presente em outros

discursos, liberando assim seu potencial libertador. Ele revela o caráter desigual das

relações de poder na organização da vida coletiva no tempo de Jesus, fundada e regulada

em vista da dominação de uns sobre os outros. Aqui, Comblin, recupera a tradição de um

Deus que faz aliança com um pequeno grupo de seminômades, despojados de todo poder,

sem influência alguma e desprovido de qualquer peso na política de dominação. Aqui

pode-se observar que enquanto as Ciências Sociais buscam compreender a função da

religião na configuração dos processos históricos, das relações sociais e das forças

políticas, a teologia procura ver o engajamento dos crentes nesses processos a partir da

fé.

2.3 O Reino de Deus

Referindo-se ao Reino, Comblin (2012, p.102) deixa claro que Jesus veio para

realizar a obra do Pai. A obra do Pai é a humanidade reconciliada com ele em que ele

faria sua habitação. Ele não podia estar em seres humanos que não o aceitassem e ainda

estivessem sob o jugo do pecado. Comblin (2012, p.103), questiona: o que é o Reino de

Deus? Onde está presente hoje em dia? O mundo tal como Jesus o encontra não é o Reino

de Deus. O mundo está dividido entre uma classe que domina, acumula todos os recursos

da terra, e obriga os outros a servir aos seus interesses. Há outra classe que esta reduzida

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a um nível de sobrevivência. Esse pecado ainda não desapareceu no mundo atual. Em

cada época os seres humanos tiveram a impressão de que nunca tinha havido tanta

opressão e tanta violência. A violência e opressão são evidentes, também, neste início de

século XXI.

Quando Comblin afirma que Jesus veio para realizar a obra do Pai, que é a

humanidade reconciliada com ele, e que não podia está com seres humanos sob o jugo do

pecado, Comblin questiona sobre o Reino de Deus. Nota-se que para ele o Reinado de

Deus, consiste no governo de Deus em ação. Falar no Reinado de Deus em Comblin

implica sempre falar do povo de Deus, do povo sobre o qual Deus reina e cuja vida, na

medida em que é regida por ele, torna-se expressão real de seu poder. Percebe-se que a

marca principal desse Reinado para Comblin, é a realização da justiça, proteção aos

desamparados, fracos e pobres por parte de Deus. Comblin faz transparecer que os pobres

são produtos de relações que produzem e reproduzem a desigualdade no plano social,

político, econômico e cultural, definindo para eles um lugar na sociedade, onde são

desqualificados.Certamente, as Ciências Sociais aqui continuam sendo uma mediação

imprescindível, para conhecimento da realidade social que é pensada teologicamente na

produção de Comblin. Cabe, neste sentido, recorrer a posição de Juan Luis Segundo em

relação a importância da suspeita ideológica, como momento constitutivo do fazer

teológico, pois para Juan Luis Segundo, como já foi mencionado, as Ciências Sociais têm

uma tarefa fundamental no interior da reflexão teológica, evitar a sua instrumentalização.

2.4 A vinda do Espírito Santo

Diz Comblin (2012, p.105), referindo-se à ação do Espírito Santo:Jesus não

deixou nenhum programa aos discípulos, porém, não os abandonou. O Espírito seria fonte

de coragem e perseverança para assumir a missão. Os levaria a entenderas palavras e os

atos de Jesus, pois, Jesus foi a revelação do Pai, essa revelação somente poderia ser

entendida pelo Espírito Santo, o resto é jogo intelectual gratuito, ideologia sem aplicação

prática. Comblin (2012, p. 105), deixa claro que, não há por parte do Espírito nenhuma

exposição dos ensinamentos de Jesus, O Espírito ilumina a mente para que a pessoa se

torne mais livre e livremente construa o Reino. Para o nosso autor (2012, p.105), o

Espírito é dado a todos, cada um é responsável pela sua vida e orientado pelo Espírito de

acordo com a situação em que se encontra na história. Nenhuma autoridade pode decidir

em seu lugar, pode dar-lhe um programa de vida imposto. O Reino de Deus é uma

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humanidade reunida no amor, pelo diálogo e pela colaboração de todos com todos. A

unidade é obra do Espírito não é feita pela hierarquia, pelo clero, ou seja, por uma classe

separada do povo,segundo Comblin (2012, p. 105), não foi isso que Jesus ensinou. A

hierarquia não pode impor sua interpretação, não pode agir por imposição, deve se

submeter aos movimentos do Espírito que está em todos os que seguem o caminho de

Jesus.

É notória a dimensão social da teologia de Comblin, e sua repercussão na vida

social, legitimando e favorecendo certos interesses ou, deslegitimando e contrapondo

outros. Entende-se aqui que, a ideologia, mesmo tomada em seu sentido estrito de sistema

de idéias com que se oculta e justifica determinada relação de produção, constitui algo

profundamente cristão e não exclusivamente marxista. Quando Comblin afirma que a

unidade é obra do Espírito e não da hierarquia, pelo clero, ou seja, por uma classe separada

do povo. Fica claro que Comblin revela a instrumentalização da teologia em função de

interesses pouco ou nada evangélicos. Segundo ele a história tem demonstrado o quanto

ela tem sido utilizada para legitimar as mais diferentes formas de opressão. Neste sentido,

as Ciências Sociais têm tido uma importância muito grande na sua teologia pois, aguçam

a suspeita ideológica na elaboração do seu discurso teológico e na crítica de outros

produtos. Não resta dúvida de que, dado o caráter social da teologia e a aparente

inverificabilidade de muitas de suas afirmações, ela é muito mais facilmente

instrumentalizada.

2.5 A salvação

Neste item, Comblin (2012, p.107) apresenta a Igreja como instituição que durante

séculos concentrou a sua mensagem na salvação da alma. Segundo ele o problema da

humanidade era a sorte da alma depois da morte. A vida era uma preparação para a morte.

O papel da Igreja era oferecer os meios da salvação. Por isso não havia salvação possível

fora da Igreja. No entanto diz, Comblin (2012, p.107) a salvação das almas parece não ter

sido a preocupação de Jesus. Ele veio trazer a vida divina, quem estava na vida divina

não precisaria se preocupar, já estava na vida eterna. Quem vivia no amor não precisava

preocupar-se com a morte. Deus oferece a vida eterna desde já pela vida no amor.Não há

necessidade de meios de salvação.O ponto de partida da mensagem de Jesus, para

Comblin (2012, p.108), é a situação de pecado em que se acha a humanidade, dividida

em duas categorias opostas e complementares. Há uma parte da humanidade que domina

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117

e obriga a outra parte a trabalhar para o seu proveito. Em cada época entende Comblin

(2012, p.109), esse pecado explicita-se em inumeráveis formas porque as maneiras de

explorar, de dominar variam com o desenvolvimento do conhecimento da natureza e da

humanidade. Os poderosos aprendem novas maneiras de opressão. Assim como o pecado

do mundo Comblin (2012, p.109) vê que a libertação também, passa por uma história que

sempre é a mesma, mas as modalidades seriam de acordo com os tempos e os lugares.

Houve o desafio da libertação dos escravos. Houve a libertação dos operários, a libertação

dos camponeses sem terra. Na América Latina, os fatos dominantes da história foram a

libertação dos escravos africanos e a libertação dos indígenas. Houve a libertação da

dependência colonial, e na atualidade estamos na fase da dominação neocolonial,

dominação dos países ricos e sobretudo do capital e das transnacionais. Todas essas

estruturas são formas de exploração e de destruição dos pobres.

Nota-se a partir destas colocações que a teologia de Comblin é uma teologia feita

a partir do reverso da história. No entanto, entende-se que ele não deixa de colocar a

religião sob suspeita ideológica, isto aparece quando numa determinada interpretação das

escrituras imposta pelas classes dominantes para manter sua exploração e por outra parte,

como uma possibilidade aberta para os que são dominados fazer da religião, por meio de

uma nova interpretação das escrituras, uma arma para a luta de classe. O que importa

deixar claro, são as razões que levou Comblin a entender dessa forma. Para ele, os pobres

são os destinatários privilegiados da salvação, a serviço do qual está sua teologia.

Certamente, sem a presença das ciências sócio históricas e da suspeita ideológica, sua

teologia seria impossível.

Evidenciado a importância e o lugar das Ciências Sociais na elaboração do

discurso teológico na América Latina; demonstrado como Comblin faz uso das Ciências

Sociais para compreender a realidade em que vive a sua fé. Cabe agora, desenvolver a

última parte do trabalho, que busca verificar o sentido atribuído por Comblin ao mundo

dos pobres como lugar adequado para explicitar o reinado de Deus.

3 O mundo dos pobres e o reinado de Deus: a modo de conclusão

Procura-se nesta última parte do trabalho o mundo dos pobres,como lugar

adequado para se revelar o Reinado de Deus. Compreende-se que o Reino de Deus se

constitui não só de uma relação entre Deus e o homem, como também dos homens entre

si em um dado contexto histórico. Ele expressa o modo de agir do homem. O amor ao

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118

próximo, por exemplo, é uma ação que revela a presença do Reino.Taborda, considera

que o Reino de Deus é justiça, assim ele se expressa:

O pobre me interpela em sua situação de opressão, de despojamento,

pelo contraste de estar passando fome num mundo onde não há falta de

bens. Na medida em que ouço a interpelação do rosto do pobre, nessa

medida se realiza justiça, a justiça de Deus em minha vida (TABORDA.

1984, p. 222).

Sem dúvida, o Reino de Deus é justiça. Aceitar os marginalizados e deixar

interpelar-se pela sua presença, essa atitude caracteriza a presença do Reino. Justiça de

Deus significa dignificar o homem a começar pelo último de todos, o pobre. Sendo assim,

o Reino de Deus não é algo abstrato, é algo que se reflete no modo de ser. É necessário

que se insista no caráter dinâmico e concreto do Reinado de Deus, como diz Aquino:

É uma ação, e uma ação histórica: governo de Deus sobre seu povo -

realização da vontade de Deus por parte do seu povo. Nada mais longe,

portanto, de um reino dos céus, entendido caprichosa e

interessadamente como um reino que está fora da terra, que está

completamente fora da história (AQUINO, 2010, p.191).

Ora, fica claro que há nos escritos de Comblin, uma incidência da ação de Deus

no mundo dos pobres. Comblin (2012, p.354), em seu livro, O Espírito Santo e a

tradição de Jesus, relata que Jesus vai à Galileia, país desprezado pelas elites judaicas,

e ali anuncia o Reino de Deus e pede para que tenham fé nesse Reino. Eles, os pobres,

que são os rejeitados vão ser os eleitos. O Espírito se manifesta fora dos lugares

privilegiados. Comblin (2012, p.354) não deixa dúvidas neste texto que os eleitos são os

pobres, deles é o Reino de Deus. O estabelecimento do Reino de Deus se dará entre o

povo dos pobres, dos rejeitados, dos sem poder. No entanto, Comblin afirma que a Igreja

perdeu a lembrança dos pobres, porém, segundo ele, sempre aparecem vozes que como

Jesus os privilegiam. Descobrem os pobres e saem do mundo privilegiado para

colocarem-se entre os eles e aí construírem um mundo novo, uma vida nova. Para

Comblin (2012, p.454) a sabedoria de Deus consiste na fraqueza. Deus agi sem poder, o

que não aconteceu na história da cristandade e ainda hoje entre os nostálgicos da

cristandade, que buscam dinheiro, apoio políticos, buscam os recursos das ciências, da

tecnologia, do poder de comunicação.A sabedoria de Deus, porém, consiste em agir com

amor e por amor confiando nessa força. Ele busca os rejeitados: os cobradores de

impostos, as prostitutas, os impuros segundo a lei. Essa foi a sabedoria de Jesus. Ele não

se submeteu a lei para amar o próximo e mostra como a lei é o obstáculo. A lei leva a

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119

condenação em lugar da salvação, é aí que ele nos deixa ver o caráter escandaloso deste

Reinado, por ter uma destinação aos pobres.

Portanto em Comblin, o pobre pelo simples fato de ser desamparado, fraco e

vítima dos poderosos, passa a ser o preferido de Deus, em razão de sua misericórdia e de

sua justiça. Em um mundo de pecado, Deus expressa seu amor pela humanidade como

justiça. Não somente pôs nos pobres suas preferências, mas também os chamou para

reinar em seu Reino. Nos escritos de Comblin, como pode-se verificar, a preferência de

Deus os constituiu no verdadeiro lugar para explicitar seu Reinado.

Referências

AQUINO JÚNIOR, Francisco de.A dimensão sócio estrutural do Reinado de Deus:

escritos de teologia social. São Paulo: Paulinas, 2011.

______. A teologia como intelecção do reinado de Deus: o método da teologia da

libertação segundo Inácio Ellacuría. São Paulo: Loyola, 2010.

______. Teologia e Ciências Sociais. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 28, p. 1325,

out/dez. 2012.

BOFF, Clodovis.Teoria do método teológico. Petrópolis: Vozes, 2009.

______. Teoria e prática: teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes,

1978.

COMBLIN, José. O Espírito Santo e a Tradição de Jesus. São Bernardo do Campo:

Nhanduti, 2012.

GUTIÉRREZ, Gustavo. A verdade vos libertará: confrontos. Trad. de Gilmar Saint

'Clair Ribeiro. São Paulo: Loyola, 2000.

SEGUNDO, Juan Luis. Libertação da teologia. São Paulo: Loyola, 1978.

TABORDA, Francisco. Cristianismo e ideologia: ensaios teológicos. São Paulo:

Loyola, 1984.

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120

O PAPEL QUE A RELIGIÃO PODE TER PARA A CONSTRUÇÃO DE

SENTIDO DA VIDA: UM ESTUDO DE CASO

Jussara Rocha Kouryh84

Dr. Sérgio S. D. Vasconcelos85

Tamandaré

Gosto de ver casulos de borboletas.

Lagartas feias que adormecem,

esperando a mágica metamorfose.

De fora olhamos

e tudo parece imóvel e morto.

Lá dentro, entretanto,

longe dos olhos e invisível,

a vida amadurece vagarosamente.

Chegará o momento em que ela será

grande demais para o invólucro que a contém.

E ele se romperá.

Não lhe restará outra alternativa,

e a borboleta voará livre,

deixando sua antiga prisão...

(ALVES, 2006, p. 83).

Palco desse estudo de caso, Tamandaré é um município localizado na

mesorregião da Mata Pernambucana, pertence à microrregião de Vitória de Santo Antão.

É um município recém-nascido. Sua criação se deu em 1995 (Lei nº 11.257 de 28 de

setembro)86 em atenção ao plebiscito realizado em 03 de setembro do mesmo ano quando

a população decidiu por sua emancipação política. Dessa forma, descolada de Rio

Formoso (PE), Tamandaré assumiu vida própria e, segundo o Censo IBGE 2010, possui

20.715 habitantes.

Apesar de nova, tem uma história que remonta aos primórdios da ocupação

portuguesa, nos séculos XVI/XVII. No século XX, mais especificamente na sua segunda

metade, percebe-se a forte presença da Igreja Católica na formação da cidade e do seu

povo.

84 Mestranda do Programa de Pós-graduação no Mestrado em Ciências da Religião da Universidade

Católica de Pernambuco. [email protected] 85 Professor dos Programas de Pós-graduação em Ciências da Religião e em Teologia da UNICAP.

[email protected] 86 Publicada no Diário Oficial do Estado de Pernambuco – DOE, de 29 de setembro de 1995, N º 185, p.

4. Disponível em:

<http://200.238.101.22/docreader/DocReader.aspx?bib=DO_199509&pesq=Tamandar%C3%A9>.

Acesso em: 16.05.2014.

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121

A igreja católica e os pescadores artesanais

Para compreendermos a interface da Igreja Católica com a vida dos pecadores

artesanais é necessário (re)visitarmos algumas situações específicas.

Diferente dos demais órgãos de classe, as Colônias foram criadas

compulsoriamente, pela Marinha. Vejamos breves traços dessa construção.

O Decreto nº 358, de 14 de agosto de 184587, criou a Capitania dos Portos,

regulamentada por outro Decreto, o de nº 447, de 14 de maio de 184688, o qual, entre

outras coisas, obrigava a todos os brasileiros que trabalhavam no mar a se matricularem

na Capitania do Porto de sua província.

[...]

CAPITULO II

Da Matrícula de todos os indivíduos empregados na vida do mar.

Art. 64. Os indivíduos nacionais empregados na vida do mar, tanto no

tráfico do Porto, e pequenos rios, como na navegação dos grandes rios

e lagoas, na pequena e grande cabotagem, nas viagens de longo curso,

e na pesca, serão matriculados na Capitania do Porto, e na forma deste

Regulamento.

Os pescadores estavam dispensados de se apresentar para serem soldados da

Guarda Nacional, porém sujeitos ao serviço naval na Marinha de Guerra. Foi a primeira

tentativa de realizar um cadastro de marinheiros e pescadores.

A fundação das Colônias de Pescadores em grande escala ocorreu logo depois

do fim da Primeira Guerra Mundial, em 1919, sob a batuta do Comandante Frederico

Villar, com o seu Cruzador José Bonifácio. Duas foram as motivações maiores:

nacionalizar e industrializar o pescado brasileiro e ver o pescador como personagem

chave na defesa da costa brasileira.

[...] São reservas de homens e barcos que se articularão ao mecanismo

bélico do país”. E Villar tenta despertar no pescador o senso patriótico

chamando-o de ´Sentinela Avançada da Pátria sobre o oceano´.

Um ano depois da Primeira Guerra Mundial, Villar foi encarregado pela

Marinha de fundar Colônias de Pescadores em todo o litoral brasileiro.

A missão do “Cruzador José Bonifácio” em 1919, deu início à fundação

das Colônias tendo como resultado a criação de quase 1.000 Colônias

de Pescadores no litoral brasileiro e a elaboração do Estatuto da

Confederação Geral dos Pescadores do Brasil (CGPB) (CPP, 1984).

87 Decreto Imperial do Brasil através do qual o governo fica autorizado “a estabelecer Capitanias de

Portos nas Províncias marítimas do Império”. 88 Decreto Imperial do Brasil que regulamenta a Capitania dos Portos.

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122

Seus estatutos patronizados foram criados em 1923, através do aviso da Marinha

nº 194, aprovado pelo então Ministério dos Negócios da Marinha. Também seguiu o

mesmo percurso a criação das Federações Estaduais e a Confederação Geral dos

Pescadores do Brasil – aviso da Marinha nº 568, também de 1923.

As Colônias foram legalmente definidas como “agregados associados”

ou agrupamento de pescadores descartando, assim, a possibilidade de

serem “órgão de classe”. Isso é consolidado quando, entre os objetivos,

encontra-se a organização das Colônias como “viveiros da Marinha” e

“Reserva Naval da Nação”, o que implica em considerar os pescadores

como meios para outros fins e não como pessoas e como categoria que

aspiram ao seu desenvolvimento e realização integrais (CPP, 1984).

A partir de então, os presidentes das Colônias, Federações e Confederação eram

interventores nomeados pelas Capitanias dos Portos de cada Estado.

No período da Segunda Grande Guerra (1939/45), a Marinha do Brasil lançou

mão dos pescadores que, já a partir da fundação das Colônias, como vimos, eram

considerados “Reserva Naval da Nação” (CPP, 1984). Alguns chegaram à graduação de

2º Sargento. Estavam integrados à Força Naval do Nordeste.

Como todas as demais colônias de pescadores espalhadas pelo Brasil, também a

de Tamandaré sempre esteve sob o jugo da Marinha e sua presidência era exercida por

interventores nomeados pela Capitânia dos Portos de Pernambuco até a chegada de Padre

Paulo Hendrickus Punt, em 1968. Ele “deu nome aos pescadores”89, segundo aqueles

mais antigos, organizou a documentação desses profissionais e da própria Colônia.

Tornou-se, também, oficialmente pescador. Criou uma cooperativa de pesca, assumiu a

presidência da Colônia. Saiu em defesa dos pescadores quando descobriu o contrabando

de bebidas e eletrodomésticos. Alguns pescadores transportavam essas mercadorias dos

navios ancorados fora da barra para um pequeno ancoradouro, em Rio Formoso. Procurou

dissuadir aqueles pescadores de tal atividade. Denunciou aos órgãos competentes.

Tentando afastar o Pe. Paulo, foram feitas denúncias de que ele era

comunista, o que, na época da ditadura militar que havia no país, era

algo bastante grave. Mas, os próprios órgãos de segurança nacional

constataram que tudo não passava de infundadas denúncias.

Por várias vezes, temendo pela vida do confrade, o então Provincial,

Padre Pedro Neefs, tentou persuadir o P. Paulo a deixar Tamandaré

porém, mesmo sabendo do risco de vida que corria, ele entendia que ali

era o seu lugar.

[...]

89 Expressão usada pela marisqueira Maria Margarida de Lira Jacques para definir a importância de Pe.

Paulo para os pescadores de Tamandaré, em entrevista concedida à pesquisadora (Tamandaré,

19.07.2014).

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123

Muito mais apostando na vida, o Pe. Paulo não foi percebendo a trama

que sordidamente era feita contra ele. Para que sua morte não parecesse

como um trabalho encomendado, os que viam e sentiam a presença de

ajuda de Pe. Paulo junto aos pescadores, sobretudo na linha da

organização e da conscientização, insinuaram ao auxiliar de polícia que

sua esposa o estava traindo com o padre e, inclusive, um dos seus filhos

era filho do sacerdote.

15 de dezembro de 1975 era um dia festivo por causa da conclusão de

curso do ginásio local. No final do dia, após todas as solenidades, o

assassino dirigiu-se ao Pe. Paulo e desfechou 3 certeiros e mortais tiros

que acabaram com sua vida terrena.

Estranhamente, as próprias autoridades policiais locais se encarregaram

de dar uma versão passional ao crime mas, na memória do povo, todos

sabiam que o Amaro (nome do assassino) tinha sido usado para calar a

voz do P. Paulo. O próprio juiz de Rio Formoso, Adalberto Lopes,

enviou o processo a um tribunal superior em Recife porque via a

presença de forças ocultas contrárias ao Pe. Paulo envolvendo até o

prefeito, a polícia local e alguns membros de organismos federais

(TERTÜNTE, [19--], s.p.).

Poderá padre Paulo ser inscrito em algum livro que conte a história dos mártires

do século XX? Rubem Alves o teria elencado como um dos profetas daquele século,

afinal, para Alves o profeta é aquele

[...] que se dedicava, com paixão sem paralelo, a ver, compreender,

anunciar e denunciar o que ocorria em seu presente [...]. E isso porque

eles entendiam que o sagrado, a que davam o nome de vontade de Deus,

tinha a ver fundamentalmente com a justiça e a misericórdia. [...]

Instaurou-se com os profetas um novo tipo de religião, de natureza ética

e política, e que entendia que as relações dos homens com Deus têm de

passar pelas relações dos homens, uns com os outros [...] (ALVES,

2014, p. 101).

O fato de o padre ter exercido o cargo de presidente da Colônia foi um marco na

transitoriedade entre a nomeação de interventores para presidir a Colônia e a livre escolha

dos pescadores para eleger seus dirigentes. A partir dele os pescadores assumiram

definitivamente a condução da Colônia. Assim, depois de sua passagem, a Colônia

sempre foi presidida por um legítimo representante dos pescadores, entre os quais, Paulo

Guimarães que, formado diretamente pelo padre, em 1997 foi eleito o primeiro prefeito

de Tamandaré, e Maria Margarida de Lira Jacques, uma das poucas marisqueiras do Brasil

a assumir o posto de presidente de uma Colônia de Pescadores.

Na década de 1980, assessorados pelo Grupo de Trabalho de Pesca do Centro

Josué de Castro e pela Comissão Pastoral dos Pescadores, atual Conselho Pastoral dos

Pescadores, pastoral social ligada à Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade

Solidária, Justiça e Paz, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a Colônia de

Pescadores Z-5 participou do Movimento Constituinte da Pesca, uma mobilização

Page 124: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

124

nacional criada em 1985 com o objetivo de articular os pescadores do Brasil inteiro para

garantir mudanças na legislação. Entre as reivindicações do Movimento, estavam a

criação de um Ministério da Pesca (o que ocorreria somente em 01 de janeiro de 2003), a

equiparação das Colônias aos demais órgãos de classe com forma e natureza jurídicas

próprias, o que foi garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,

no seu artigo 8º:

Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o

seguinte:

[...]

Parágrafo único. As disposições deste artigo aplicam-se à organização

de sindicatos rurais e de colônias de pescadores, atendidas as condições

que a lei estabelecer.

E pela Lei nº 11.699, de 13 de junho de 200890:

Art. 1o As Colônias de Pescadores, as Federações Estaduais e a

Confederação Nacional dos Pescadores ficam reconhecidas como

órgãos de classe dos trabalhadores do setor artesanal da pesca, com

forma e natureza jurídica próprias, obedecendo ao princípio da livre

organização previsto no art. 8o da Constituição Federal.

Portanto, com Pe. Paulo, a organização dos pescadores resultou na eleição de um

pescador para o cargo máximo do município e na eleição de uma marisqueira para a

presidência da colônia, num claro processo de empoderamento das mulheres;

assessorados também pela Pastoral dos Pescadores, à época sob a coordenação de Frei

Alfredo Schnuettgen, frade franciscano, participação política na conquista pela

legitimidade das diretorias das federações estaduais e confederação nacional, e no

Movimento Constituinte da Pesca com suas consequentes conquistas.

Invólucro rompido, como disse Rubem Alves? Início de um “livre voo”,

rompendo casulos, para assumir o leme da própria vida pessoal e coletiva?

A igreja católica e as crianças e adolescentes

Rubem Alves contrapõe duas situações: aquela dos dominantes e aquela dos

dominados. Delas, decorrem sonhos. Para os dominantes, o sonho é que tudo permaneça

90 A Lei Federal nº 11.699, de 13 de junho de 2008, “dispõe sobre as Colônias, Federações e

Confederação Nacional dos Pescadores, regulamentando o parágrafo único do art. 8o da Constituição

Federal e revoga dispositivo do Decreto-Lei no 221, de 28 de fevereiro de 1967”.

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125

como está para que sua zona de conforto não sofra qualquer ameaça. Para os dominados,

entretanto, o sonho inquieta, questiona o que está colocado, provoca rupturas.

[...] os dominados [...]. Não habitam os oásis, mas os desertos. Sem

poder, sem segurança, sem tranquilidade, de um lado para o outro, sem

raízes e sem terras, sem casas, sem trabalho. Sua condição é de

humilhação. Doença. Morte prematura. E o futuro? Os fracos exigem a

mudança, se não com sua voz, pelo menos em seus sonhos. [...]. E dos

pobres brotam as esperanças – tal como aconteceu com os profetas

hebreus – de um futuro em que eles herdarão a terra.

Reencontramo-nos assim no mundo dos profetas em que a religião

aparece com toda a sua ambivalência política: os sonhos dos poderosos

eternizam o presente e exorcizam um futuro novo; os sonhos dos

oprimidos exigem a dissolução do presente para que o futuro seja a

realização do Reino de Deus, não importa o nome que se lhe dê

(ALVES, 2014, p. 107-108).

Padre Enzo Rizzo teve seus inquietantes sonhos. Natural de Tribano (Pádua), na

Itália, nasceu em 08 de junho de 1951, veio ao Brasil em 1983. Foi trabalhar em São José

do Egito, cidade pernambucana do Sertão do Pajeú, famosa por seus grandes poetas

populares. No ano seguinte, mudou-se para Escada onde teve contato com os

trabalhadores rurais. Em 1989 conheceu Dom Acácio Rodrigues Alves, então bispo da

Diocese dos Palmares. Ordenou-se sacerdote em 17 de janeiro de 1993.

Chegou em Tamandaré em 1994. Participou ativamente de todo o seu processo

de emancipação política. Em contato com as questões sociais de sua paróquia, com a

ajuda dos paroquianos, amigos, familiares e associações italianas, fundou o “Projeto

Tamandaré”, cujo objetivo o próprio padre assim definiu: “... a formação de uma

comunidade de homens e mulheres conscientes da sua dignidade como pessoas, da sua

grandeza de filhos de Deus, capaz de conceber e viver um futuro de liberdade e de

serenidade”91.

A primeira realização do Projeto foi a Creche Solidariedade. No início,

conseguiu acolher 40 crianças. Depois, com ajuda de uma benfeitora, a Creche foi

ampliada recebendo cerca de 200 crianças.

Contemporaneamente, em Tamandaré e no Distrito de Saué, estruturou duas

cozinhas comunitárias. Cotidianamente, de março a outubro, eram distribuídas, à noite,

200 refeições.

Em Saué, criou um Centro Comunitário no qual funcionou cursos de corte e

costura frequentados por cerca de 40 pessoas, entre mulheres e adolescentes. Em 2002

91 Tal objetivo está explicitado no site do Projeto. Disponível em:

<http://projetotamandare.com.br/progetto-tamandare/?lang=pt>. Acesso em: 25.05.2014.

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126

um grupo de pessoas que passaram por esses cursos constituíram uma microempresa

autônoma.

Para atender às necessidades das famílias daquelas crianças inseridas na Creche,

o Projeto implantou o curso de alfabetização de adultos.

O que, hoje, o Projeto oferece? De acordo com Giorgio Curreri, Coordenador do

Setor Social do Centro de Solidariedade Padre Enzo,

O projeto desenvolve atividades em creche, pré-escola e contra turno

escolar para mais de 500 crianças e adolescentes de 2 a 15 anos de

idade.

Além da educação formal, são oferecidas oficinas de dança, artes

plásticas, capoeira, esporte, horta orgânica, gastronomia, padaria e

teatro.

Para os jovens e adultos são oferecidos anualmente cursos

profissionalizantes em diferentes áreas, entre elas turismo, informática,

línguas e gastronomia. Após terminar os cursos, os participantes são

inseridos no mercado de trabalho local.

As famílias que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade

social são acompanhadas por uma assistente social e uma psicóloga em

busca de soluções para os problemas e encaminhamento aos serviços

públicos, vislumbrando uma melhoria de condição de vida.92.

Em 2014 o Projeto Tamandaré ganhou o Prêmio Anu, idealizado pela CUFA

(Central Única das Favelas), sediada no Rio de Janeiro, que tem como principal objetivo

destacar ações de toda natureza desenvolvidas dentro de favelas de todos os estados

brasileiros que contribuam para o desenvolvimento humano e social desses espaços.

Pe. Enzo faleceu na Itália, em 27 de janeiro de 2000, depois de um longo período

de doença.

Os sonhos do padre Enzo, frutos do sofrimento constatado no seu entorno, o

impulsionaram a não ser indiferente, a buscar melhor qualidade de vida para aquelas

desemparadas famílias. E chegam as mudanças... Mas, sobretudo, geram outros sonhos,

outros lampejos de esperanças...

São “os sonhos dos oprimidos” que “exigem a dissolução do presente para que o

futuro seja a realização do Reino de Deus”, como descreveu Rubem Alves? O tempo dirá,

afinal, para o rompimento do casulo há um período de maturação e de espera. Essas

crianças e adolescentes estão recebendo uma formação (tempo de amadurecimento).

Depois, quando chegar o tempo de assumirem seus próprios destinos, alçarem seus

próprios voos, será possível averiguar que tipo de cidadão se tornaram.

92 Informações obtidas oralmente pela pesquisadora em entrevista com Giorgio Curreri, Coordenador do

Setor Social do Centro de Solidariedade Padre Enzo (Tamandaré, 19.07.2014).

Page 127: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

127

A igreja católica e a inclusão de dependentes do álcool

No mesmo período da emancipação política, por decreto diocesano datado de 29

de junho de 1995, foi criada a nova Paróquia de São Pedro, em Tamandaré, desmembrada

da Paróquia de São José, em Rio Formoso e a pequena igreja de São Pedro, à beira mar

da praia de Campas, adquire privilégios de igreja matriz, sendo Pe. Enzo seu primeiro

pároco.

A primeira Igreja Matriz de São Pedro tem capacidade para 60 pessoas. Não é

um espaço suficiente para acolher os paroquianos nativos e os veranistas que, nos meses

de férias, invadem aquelas praias. Porém, o percurso entre a primeira Igreja Matriz e a

atual, no centro da cidade, tem uma história que mistura vários ingredientes: sonhos,

persistência, fé, colaboração, comunhão, inclusão...

Tudo começou com um sonho de Pe. Arlindo Laurindo Matos Júnior, ou,

simplesmente, Pe. Arlindo. Queria oferecer o melhor àquela gente a quem logo aprendera

a amar. A Igreja Matriz, à beira da praia, pequenininha, não comportava o número de

fiéis. A igreja maior era dedicada à Nossa Senhora de Fátima. Portanto, o padroeiro, São

Pedro, carecia de um espaço onde pudesse acolher toda a comunidade permanente e

aqueles visitantes que, de passagem por Tamandaré, sentiam a necessidade de participar

das celebrações litúrgicas.

A primeira ideia: elaborar um projeto e tentar recursos nas instituições brasileiras

e aquelas fora do Brasil. Assim o fez. E nada! Todas as instituições a quem recorreu,

alegando a crise econômica por que passa a Europa e o mundo, cordialmente ponderaram

a impossibilidade de ajudar àquela paróquia.

Restava uma última tentativa. A resposta não foi diferente das demais. Seguiu

para a missa. No púlpito, o anúncio:

– Eu tenho duas notícias para vocês: uma boa e outra melhor ainda.

Qual vocês querem ouvir primeiro?... Está bem, eu vou começar pela

notícia boa: recebemos as respostas dos pedidos de ajuda para

construção e, por incrível que pareça, todas as instituições nos disseram

que não podem ajudar...”

Toda a igreja olhava espantada o Pe. Arlindo dar a notícia e se

perguntava como ele poderia dizer que era boa. No entanto, ele

continuou:

– Eu sei que vocês estão querendo saber por que a gente ter levado três

nãos é um notícia boa... É boa [e altera a voz, contagiando a todos]

porque é o povo de Tamandaré, com ajuda dos irmãos que vêm passar

o verão aqui e partilham conosco a vida em comunidade que a gente vai

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128

conseguir erguer essa igreja!!! Pois, se cada um der um pouco do que

tem, eu garanto a vocês que não vai faltar nada para a gente conseguir...

E digo mais, não vou descansar um dia até que a gente possa passar por

aquela avenida, olhar para a igreja e ter orgulho de dizer que foi o povo

daqui que construiu a maior igreja da Diocese dos Palmares e quem

sabe de toda essa região!!!...

E aí, foi aplauso que não acabava mais, enquanto os olhos marejados

do padre denunciavam a sua emoção e a vitória de conseguir mais apoio

para as dificuldades seguintes.

– E sabe como é que a gente vai conseguir o dinheiro para a primeira

parte do projeto?... Estão vendo aquelas senhoras ali na porta da igreja?

Elas têm uma sacolinha na qual vocês vão ofertar o que puderem para

a gente começar a construção e vai ser assim até que a gente tenha

terminado. Agora, me digam uma coisa: vocês vão ajudar?

– Eu ajudo, padre!”

Quem respondeu primeiro foi Ezequiel, um homem conhecido na

comunidade por viver há muitos anos sofrendo com o alcoolismo e que,

tão logo o Pe. Arlindo chegou à cidade fez amizade com ele...

Esse homem costuma pedir ajuda às pessoas, recebe comida, roupas e

calçados nas visitas que faz à casa paroquial, mas foi o primeiro a dizer

sim e a se encaminhar até o altar com a sua doação: vinte e cinto

centavos de real e uma frase:

– Pode começar a sua igreja.

O Pe. Arlindo logo fez do gesto de quem pouco tem uma lição para os

que poderiam mais ajudar:

– Pronto. Já tenho a primeira doação. Será que vocês, assim como este

amigo que me ajudou, não poderiam ajudar também? (SILVA;

JÚNIOR, 2011, p. 11-12).

Uma construção de 2,5 milhões teve início com uma moeda de vinte e cinco

centavos.

Pe. Arlindo começou, ele mesmo, a cavar os alicerces da nova igreja. Antes do

sol nascer, estava ele ali, com seus instrumentos de trabalho. Seus ajudantes incansáveis

e operários da primeira hora? Os amigos desde que chegou à Tamandaré: um grupo de

homens dependentes do álcool. Com eles, as aventuras foram muitas. Certa feita, pessoas

da comunidade vieram alertar o padre de que aquele grupo estava na praia pedindo

dinheiro para a igreja aos banhistas. O padre contemporizou. No fundo, porém, uma

dúvida atroz: será que estavam usando a igreja para financiarem o próprio vício? O que

fazer e, sobretudo, como fazer? Dias depois, procuraram o padre. Entregaram o resultado

dos pedidos: oitocentos reais. Na missa de Natal, Pe. Arlindo contou para todos.

A experiência de ajudar na construção da Igreja Matriz parece ter extrapolado a

areia e o cimento. Parece ter propiciado uma outra construção.

[...] três desses homens cujas vidas foram destruídas pela bebida,

conseguiram se juntar e abdicar do vício para ajudar na construção da

igreja.

Page 129: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

129

O que eles fizeram: deram a improvável contribuição de dois mil e cem

reais ao padre. Arrumaram um trabalho temporário e deram ao amigo

padre o que ganharam para que fossem comprados três novos bancos

da nova Matriz. Não consumiram uma gota de bebida alcoólica com

este dinheiro; fizeram sua oferta mais generosa.

[...]

Dois mil e cem reais doados por pessoas que na maior parte dos dias

nada têm para comer e que quando pegam em algum trocado logo se

dirigem a um lugar onde possam se embriagar novamente, significam

muito mais do que o valor em si, pois ultrapassam os limites da bondade

e do sentido de pertencimento a um projeto tão abençoado como a

construção da nova Matriz de São Pedro (SILVA; JÚNIOR, 2011, p.

27).

Essa história nos remete às considerações de Rubem Alves sobre o sentido da

vida.

Mas o que é isto, o sentido da vida?

O sentido da vida [...]. É uma transformação de nossa visão de mundo,

na qual as coisas se integram como em uma melodia, o que nos faz

sentir reconciliados com o universo ao nosso redor, possuídos de um

sentimento oceânico –, na poética expressão de Romain Rolland –,

sensação inefável de eternidade e infinitude, de comunhão com algo

que nos transcende, envolve e embala, como se fosse um útero materno

de dimensões cósmicas.

[...].

Afirmar que a vida tem sentido é propor a fantástica hipótese de que o

universo vibra com nossos sentimentos [...]. Tudo está ligado.

Convicção de que, por detrás das coisas visíveis, há um rosto invisível

que sorri, presença amiga, braços que abraçam, como na famosa tela de

Salvador Dalí. E é esta crença que explica os sacrifícios que se oferecem

nos altares e as preces que se balbuciam na solidão (ALVES, 2014, p.

120-121).

Terá sido essa “presença amiga”, esses “braços que abraçam” sobre os quais

escreveu Rubem Alves, que fizeram dependentes do álcool encontrar um novo sentido

para a vida? Que os impulsionaram a “uma intensificação da vontade de viver a ponto de

dar coragem” para transformar o dinheiro da cachaça em bancos da nova igreja matriz?

O fato é que, todos os dependentes do álcool que ajudaram a construir a nova Igreja Matriz

de São Pedro, quer tenham deixado ou não a dependência, participam assiduamente das

celebrações.

Considerações finais

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130

O papel desempenhado pela Igreja Católica em Tamandaré, considerando os três

recortes propostos nesse estudo de caso, indica faces diversas para diversas épocas. Ao

mesmo tempo, cada uma delas se identifica com um público singular.

Nas décadas de 1970-80, no que se refere aos pescadores artesanais, a face é

política. E aqui é possível encontrar o sentido coletivo do exercício da cidadania visto que

todas as ações estudadas foram direcionadas para a conquista de direitos comuns: a

organização, a eleição de legítimos representantes para a presidência da Colônia, a

inserção na política nacional e municipal, o empoderamento das marisqueiras.

No final do século XX e início do século XXI, em relação às crianças e

adolescentes, para além de uma ação social, as atividades desenvolvidas apontam para

uma formação humana e profissional sem deixar de considerar o cuidado com as famílias

dos beneficiários do Projeto Tamandaré.

Por fim, o último recorte – década de 2010 – nos remete à religião como um dos

nascedouros da cultura do acolhimento. Aqui, dois sentidos ficaram evidentes: o primeiro,

por parte dos excluídos, a possibilidade de pertencimento a um grupo; o segundo, por

parte da comunidade, a possibilidade de incluir, em seu corpo sócio-religioso, aqueles

que, em outros grupos, são colocados à margem.

Retomando, pois, a imagem do casulo descrita por Rubem Alves, parece possível

visualizar pescadores, marisqueiras, crianças, adolescentes, famílias, dependentes do

álcool, conseguindo romper seus próprios invólucros, alçar voos, correr em busca de

“sonhos dos oprimidos” para significar e (re)significar a vida cotidiana.

Referências:

ALVES, Rubem. O que é religião?. 15ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

ALVES, Rubem. Reverência pela vida: A sedução de Gandhi. Campinas: Papirus,

2006.

CPP – Comissão Pastoral dos Pescadores. Os Pescadores do Brasil – Síntese. – Doc.

03. Recife, 1984. Disponível em: <http://www.cppnac.org.br/subsidios/>. Acesso em:

25.05.2014.

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acosse em:

25.05.2014.

Page 131: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

131

Decreto Imperial nº 447, de 14 de maio de 1846. Disponível em:

<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-447-19-maio-1846-

560415-publicacaooriginal-83218-pe.html>. Acesso em: 25.05.2014.

Decreto Imperial nº 358, de 14 de agosto de 1845. Disponível em:

<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-358-14-agosto-1845-

560447-publicacaooriginal-83266-pl.html>. Acesso em: 25.05.2014.

Diário Oficial do Estado de Pernambuco – DOE

Lei Federal nº 11.699, de 13 de junho de 2008. Disponível em:

˂http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11699.htm˃. Acesso

em: 27.05.2014.

TERTÜNTE, Stefan. Os mártires dehonianos. Disponível em:

<http://www.scj.org/scj_homp/dehoniana/2001/2-2001/2-2001-08-por.htm>. Acesso

em: 25.05.2014.

SILVA, Edson; JÚNIOR, Pe. Arlindo. Acorda, povo de Deus. Construção da nova

Matriz de São Pedro. Tamandaré, 2011. Disponível em:

˂http://www.submit.10envolve.com.br/uploads/5c8d0e2bbec268ac4624eb4f17bf1ae6.p

df˃. Acesso em: 22.08.2014.

Page 132: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

132

A REVELAÇÃO DE DEUS E O PAPEL DO HOMEM NESTE ATO

Marcelo Leonardo Ximenes93

Introdução

O tema sobre a revelação de Deus é um dos principais assuntos dentro da

teologia cristã, e teólogos discutem acerca deste tema desde o início da história da Igreja

e da sua teologia. Ao longo dos séculos de reflexão teológica, vários pontos de vista

diferentes foram colocados sobre esta temática, sendo este tema ainda atual, dentro da

preocupação da Igreja de que Deus também se revele ao homem contemporâneo, em suas

singularidades. Uma das divergências sobre este tema foi sobre a participação do homem

no processo de revelação. Seria o homem um mero receptor da revelação de Deus? Ou

seria ele também protagonista neste processo pelo qual Deus se revelou? Atribuir

importância à ação humana neste processo, não seria diminuir a soberania de Deus?

Também não seria um contrassenso dar esta ênfase a humanidade, uma vez que revelação

é a autocomunicação de Deus? Refletir sobre isto é o objetivo deste trabalho. Para isto,

iremos primeiro apresentar um panorama sobre revelação, incluindo a categorização desta

em revelação natural e revelação especial. Nesta parte do trabalho estaremos nos

baseando principalmente nas explanações de Santana Filho (2008). Depois entraremos na

discursão acerca da revelação e da participação do homem neste ato. Ao explanar o

argumento que atribui ênfase a participação humana, iremos nos basear no pensamento

de Paul Tillich (1987). Já para apreciar uma perspectiva que se baseia mais na ação e na

soberania de Deus no ato de se revelar, iremos partir do trabalho de Alister McGrath

(2005).

93 O autor é mestrando em teologia na Universidade Católica de Pernambuco e também é bacharel em

teologia pela mesma universidade. Além disto, é formado em teologia pelo Seminário Teológico Batista

do Norte do Brasil, onde atualmente atua como professor, sendo ordenado como pastor batista desde

2010. Email: [email protected]

Page 133: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

133

1 Revelação

O termo revelação vem da palavra grega apocalypto. Desde Heródoto,

historiador grego nascido no século V a.C. em Halicarnasso (hoje Bodrum, na Turquia),

este termo aparece com sentido de desvendar. A palavra é formada pela raiz kalypto

(encobrir, ocultar) com o prefixo apo (de). Juntos, tem o sentido de manifestar algo

oculto. Já o substantivo apocalypsis, com o significado de manifestação e revelação, é

empregado desde o século primeiro num sentido essencialmente religioso.

Na expressão que o termo assume na literatura bíblica, revelação é um ato

que só diz respeito a Deus. É ele que assume o papel de agente da revelação, ou seja,

Deus é aquele que se revela. Nesse sentido, não há o que se questionar sobre a revelação,

expressão que se tornou técnica para falar da auto-manifestação de Deus. O ato de Deus

se revelar é baseado na soberania da sua vontade. De acordo com o pensamento de Barth

(apud. Santana Filho, 2008, p.876), não há outro meio do homem conhecer a Deus, a não

ser pela revelação. A mente do indivíduo não teria elementos para iniciar essa busca,

devido a sua finitude. Muita coisa permanece enigmática e desconhecida para o ser

humano, uma vez que este não conhece o mundo em seu todo. O mistério incondicionado

só pode ser concebido por meio da revelação, pois não pertence a este mundo, é

supramundano. Só através da manifestação de Deus pode-se “perceber” a sua atividade

(1Co 2.9). Deus, o Criador e Senhor, é mostrado pela Bíblia como mistério absoluto. A

revelação e o Deus da Bíblia estão tão ligados, que não há outro conhecimento possível

de Deus. Mas, ao falar-se a respeito de revelação, pode-se subdividi-la pedagogicamente

em categorias diferentes, de acordo com as formas como ela acontece, e também a seus

objetivos específicos.

2 Revelação natural

Pode-se então falar sobre revelação Geral que, segundo Santa Filho (2008,

p.876), é realizada por meios naturais. Ela é resultado do próprio ato da criação do

universo. O ser humano, ao olhar o mundo, percebe claros sinais da presença de Deus, o

que o torna capaz de reconhecer os sinais de sua presença. Quando é dito pela Bíblia que

o homem foi feito por Deus a sua imagem e semelhança (Gn 1.27), significa que foi lhe

dado, além da racionalidade e perfeição moral, também o conhecimento do seu criador.

Mesmo este conhecimento estando prejudicado pelo pecado, é capaz de ver na natureza

Page 134: 1 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO MESTRADO EM

134

a presença do Deus criador. Pode-se ver esta afirmação no livro de Salmos: “os céus

declaram a glória de Deus; e o firmamento proclama a obra das suas mãos”. (Sl 19.1).

Também o apóstolo Paulo diz: “pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre

eles, porque Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis

de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo

compreendidos por meio das coisas criadas...” (Rm 1.19-20).

3 Revelação Especial

Mas há outro tipo de revelação a ser contemplada. É a que se denomina:

Revelação Especial (Santana Filho, 2008, p.876). A respeito disto gostaríamos de fazer

algumas considerações. Primeiramente, o objetivo da revelação no Antigo Testamento é

duplo: é revelação do próprio Deus e do seu designo da salvação. Ele primeiro se revela

como ser pessoal, como o que “É”, em contraste com “outros” deuses. Israel então foi

sendo educado progressivamente, a ter uma compreensão mais profunda dos atributos

divinos.

Também queremos enfatizar que a Escritura traz em si a revelação de Deus a

todas as pessoas, escrita para instruir todos sobre os propósitos de Yahweh. O Senhor se

deu a conhecer inicialmente aos profetas que registraram eventos relacionados em

diversos tempos e formas. Depois se revelou pelo Filho (Hb 1.1-2), ápice da revelação.

Como afirma Santana Filho (2008, p.877): “tudo para tornar perceptível o

incondicionado.” Diferentes dos profetas, com exceção de João Batista, os apóstolos

pregaram sobre alguém que viram e ouviram. O conteúdo central da revelação de Deus é

Jesus, o Logos94 que se fez carne. Chega-se então ao momento onde se percebe o valor

da revelação Especial, que conduz a humanidade, pelos caminhos da fé e da

racionalidade, a buscar uma forma de interpretar esta revelação. E é exatamente a isto que

se dá o nome de teologia, o esforço intelectual do homem tentando compreender o

significado da manifestação de Deus. Mas deve-se sempre partir do pressuposto da

perfeição da revelação. Deus não se “enganou” e não pode se “enganar”. Ele, em sua

94 Logos (λόγος) é um termo grego que significava inicialmente a “palavra” escrita ou falada - o Verbo.

Mas a partir de filósofos gregos como Heráclito passou a ter um significado mais amplo. Logos passa a ser

um conceito filosófico traduzido como “razão”, tanto como a capacidade de racionalização individual ou

como um princípio cósmico da Ordem e da Beleza.

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135

infinita sabedoria, se manifestou aos seres humanos. Só que esta epifania95 adentrou o

mundo de uma forma determinada. Deus, para se fazer entendido, se utilizou de sinais e

linguagem. Além do mais, a revelação se deu em uma determinada época. A invasão do

sagrado no mundo se deu em um dado momento. Para se fazer histórico, Deus utilizou a

linguagem e a cultura de um povo.

A revelação acontece na história. Isto é, a experiência da revelação consiste

em ir captando, ao longo da história e no âmago da própria vida, a manifestação pessoal

de Deus. Isto permite o surgimento de dois polos unificantes: de um lado, Deus

compreendido cada vez mais claramente como origem única e onicompreensiva; do outro

lado as pessoas que se movimentam em torno dessa manifestação.

Revelação é uma realidade complexa, pois ao mesmo tempo é manifestação

e comunicação de Deus, a realidade dinâmica que cumpre os seus desígnios na história

humana. Além disso, revelação é também mensagem que se traduz em expressões

humanas nos lábios dos profetas, dos apóstolos e do próprio Cristo. O que a revelação

pretende é esclarecer o sentido misteriosos dos acontecimentos da salvação. Ela é palavra

ativa e criadora, é palavra que gesta a ação de Deus entre os seres humanos e sua

comunicação na história. E ela comunica para produzir vida. É pela revelação que Deus

se abre ao ser humano para uma relação de amor e o convida para uma atitude de amizade.

Santana Filho (2008, p.877) postula que os traços específicos da revelação especial são:

1. Tem destinação universal, ou seja, dirige-se a todas as pessoas; seu propósito é chamar

todos à salvação.

2. Ela é pública, pois sua verdade não é comunicada a um determinado povo e nem

pretende permanecer apenas de forma abstrata nos corações, é uma boa nova

destinada a ser transmitida e proclamada em praça pública.

3. Ela também é uma verdade de apropriação progressiva: Deus se comunica com a

humanidade em sua história. A revelação é perfeita em si, mas a apropriação desta é

falha porque se dá pelo exercício da teologia, ciência exercida pelo homem, e sendo

assim, é passível de erros. O ser humano apreende com deficiência; por isso, exercita.

Este é o motivo pelo qual a absorção da revelação é progressiva. Ela desenvolve-se

95 Epifania (Ἐπιφάνεια,) significa: "a aparição; um fenômeno miraculoso". Epifania é nome grego que quer

dizer manifestação da identidade de uma pessoa, neste caso usado para manifestações divinas. Mas este

termo está relacionado com a manifestação da glória de Deus. Geralmente estes eventos estão ligados com

eventos salvíficos. E podem ser manifestos através de eventos da natureza. Exemplos: abertura do Mar

Vermelho, nuvem e coluna de fogo que acompanhou Israel no deserto, ações do Espírito Santo no

pentecostes, descritas em At 2.

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136

através dos séculos e vai amadurecendo pouco a pouco. Por meio dessa compreensão,

a humanidade vai sendo preparada para a plenitude dos tempos.

Latourelle (apud SANTANA FILHO, 2008, p.877), nos lembra da afirmação

de Tomás de Aquino de que há um tríplice conhecimento humano das coisas divinas: no

primeiro, o ser humano, graças à luz natural da razão, eleva-se ao conhecimento de Deus

por meio das criaturas; no segundo, a divina verdade, que excede os limites da inteligência

humana, desce ao homem como revelação, não como uma demonstração a penetrar, e sim

como uma palavra a crer; no terceiro, o espírito será elevado a ver perfeitamente o que

Deus lhe revelou.

A revelação é uma ação divina, algo que não procede e nem pode proceder

do ser humano. É algo que vem ao encontro da pessoa humana. É um fenômeno objetivo

independentemente do ato subjetivo da percepção. A palavra dos profetas, da pessoa de

Cristo, os ensinos dos apóstolos, que vêm através das Escrituras, fazem parte da revelação

de Deus para o ser humano. Elas são o que são, independentemente do que se pode pensar

delas. O evangelho de João afirma: “... Aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu

também o amarei e me revelarei a ele.” (Jo 14.21b).

Brunner (apud SANTANA FILHO, 2008, p.878) afirma que revelação é

aquilo que se torna manifesto por um ato definitivo de Deus. Significa que se passa a ver

o que não se via antes, ou seja, que ao homem, que estava na escuridão, agora brilha uma

luz. A revelação não é um fato em si, mas aquilo que torna um fato conhecido. Outra

palavra que também podemos usar é iluminação, que pode ser entendida como parte do

processo de revelação. A recepção da revelação se dá por meio de um ato de fé. É o ato

em que a autocomunicação de Deus é recebida. De certa forma, então, pode-se dizer que

ter fé é um ato de conhecimento. É nesse sentido que Anselmo (apud Santana Filho, 2008,

p.878) afirma Fides Quaerens Intellectum (A fé busca entendimento).

Santana Filho (2008, p.878) afirma: “Mas, quem é esse Deus da revelação?

Não é o deus de Epicuro que promove o prazer e a impassibilidade, nem o deus de Spinoza

– deus sive natura (deus natureza), nem o “Primeiro Motor” de Aristóteles e nem a

divindade de que nos fala Platão. Todas essas divindades podem ser sublimes, mas não

podem se revelar ao ser humano. Não podem ser conhecidos por meio de uma revelação.

Só podem ser conhecidos pelo pensamento. O Deus da Bíblia é o Deus da revelação. Ele

é o Senhor, é o sujeito incondicionado que só pode ser conhecido por meio de sua

autocomunicação”.

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137

Pode-se ao longo do estudo teológico encontrar pontos de vista, e de partida,

diferenciados a respeito do tema da revelação especial. Alguns estudiosos afirmam que a

revelação só é possível quando assumem participação decisiva, tanto o agente da

revelação, ou seja, Deus, quanto àquele que recebe a revelação, ou seja, o homem, a partir

de suas preocupações, interesses, condições emocionais, psicológicas, espirituais e

contextuais. Este é o tipo de pensamento que se pode encontrar em Paul Tillich (1987).

Outros pensadores, como Alister McGrath (2005), vão enfatizar que a revelação depende

muito mais de Deus e de sua soberania e vontade, do que dos recebedores desta, que

podem estar em qualquer situação, contexto ou condição e, mesmo assim, serem alvos

dessa manifestação de Deus. Contempla-se a seguir a exposição das ideias destes dois

autores.

4 Ênfase na participação humana no processo de revelação – o pensamento de Paul

Tillich

Tillich, na elaboração dos três volumes de sua teologia sistemática, dedicou

toda a primeira parte, do primeiro volume, a dissertação a respeito da revelação (sendo

que este primeiro volume só possui duas partes). Para muitos, ele é considerado o maior

pensador sistemático do seu século. Sua teologia pode ser situada como um meio caminho

entre a teologia liberal e a neo-ortodoxia e seu princípio hermenêutico é o princípio da

correlação.

Dentro desta perspectiva, Tillich (1987, p.96) ao escrever sobre a revelação

faz uma correlação, que para ele é fundamental ao assunto, entre revelação e mistério. Ele

começa afirmando que a palavra “revelação” (“remover o véu”) foi usada

tradicionalmente para significar a manifestação de algo escondido que não pode ser

alcançado através das formas ordinárias de conseguir conhecimento. Para ele, existe um

uso mais amplo da palavra na linguagem cotidiana que é bastante vago. Ele exemplifica

isso no fato de alguém revelar um pensamento escondido a um amigo, ou uma testemunha

que revela as circunstancias de um crime, ou mesmo um cientista que revela um novo

método que foi testado por longo tempo, ou até mesmo um “insight” que vem a alguém

“como uma revelação”. Mas o autor em questão enfatiza que em todos esses casos,

contudo, a força das palavras “revelar” e “revelação” é derivada de seu sentido próprio e

mais estrito. Para ele, uma revelação é uma manifestação especial e extraordinária que

remove o véu de algo que está escondido de forma especial e extraordinária. Esse

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138

ocultamento frequentemente é chamado “mistério”. Ele afirma que esta palavra também

tem um sentido mais limitado e outro mais amplo. Em sentido mais limitado, do qual se

deriva a força destas frases, aponta para algo que é essencialmente um mistério. Algo que

perderia sua própria natureza se perdesse seu caráter misterioso. “Mistério”, em sentido

próprio, é derivado de muein, “fechar os olhos”, ou “fechar a boca”.

Tillich (1987, p.97) também afirma que aquilo que é essencialmente

misterioso não pode perder seu caráter misterioso, mesmo quando é revelado. De outra

forma, algo que só parecia misterioso poderia ser revelado, e não aquilo que é

essencialmente misterioso. Mas não é uma contradição em termos falar de algo que

permanece um mistério no próprio ato da revelação? A isto ele responde, dizendo que é

exatamente este aparente paradoxo que é afirmado pela religião e teologia. Onde quer que

sejam mantidas as duas proposições: que Deus se revelou a si mesmo e que Deus é um

mistério infinito para aqueles a quem ele se revelou, o paradoxo é afirmado

implicitamente. Mas para ele, este não é um paradoxo real, pois, mesmo que a revelação

inclua elementos cognitivos, ela não dissolve o mistério em conhecimento. Nem significa,

tão pouco, a manifestação de algo dentro do contexto da experiência ordinária que

transcende o contexto ordinário da experiência. Algo mais é conhecido do mistério depois

que ele se manifestou na revelação. Primeiramente, sua realidade se tornou uma questão

de experiência. Ambos os aspectos são elementos cognitivos. Mas, como já foi dito, a

revelação não dissolve o mistério em conhecimento, nem acrescenta algo diretamente à

totalidade do conhecimento humano ordinário, isto é, ao conhecimento humano sobre a

estrutura sujeito-objeto da realidade.

Este autor (TILLICH, 1987, p.98) pressupõe que o genuíno mistério aparece

quando a razão é conduzida para além de si mesma, a seu “fundamento e abismo”, a

aquilo que “precede” a razão, ao fato de que “o ser é e o não-ser não é” (Parmênides96),

ao fato original (Urtatsache), que há algo e não nada. Ele diz que se pode chamar a isso

de “lado negativo” do mistério. Este lado do mistério está presente em todas as funções

da razão; ele se torna manifesto tanto na razão subjetiva, quanto na razão objetiva.

Também é apresentado o “estigma” da finitude, que aparece em todas as coisas e na

totalidade da realidade e o “choque” que se apodera da mente quando se encontra com a

ameaça do não-ser, revela o lado negativo do mistério, o elemento abismal no fundamento

do ser. Para Tillich, este lado negativo está sempre potencialmente presente. Pode ser

96 Parmênides foi um filósofo nascido em Eléia, hoje Vélia, Itália. Foi o fundador da escola eleática.

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139

detectado nas experiências cognitivas, bem como comunitárias. É um elemento

necessário na revelação. Sem ele o mistério não seria mistério. Ele exemplifica dizendo

que sem o “eu estou perdido” de Isaías em sua visão vocacional, Deus não pode ser

experimentado (Is 6.5).

Em contra ponto, ele apresenta o lado positivo do mistério, afirmando que

este inclui o lado negativo, e torna-se manifesto na revelação atual. Aqui o mistério

aparece como fundamento e não como abismo. Aparece como poder de ser, conquistando

o não ser. Aparece como preocupação última do homem. E se expressa em símbolos e

mitos que apontam para a profundidade da razão e seu mistério.

Tillich (1987, p.98) faz questão de colocar como elemento fundamental, a

revelação como manifestação daquilo que diz respeito ao homem de forma última. O

mistério revelado é de preocupação última para a humanidade, porque é fundamento de

seu ser. Ele afirma que na história da religião, eventos revelatórios sempre foram descritos

como abaladores, transformadores, exigentes, significativos de forma última. Eles

derivam de fontes divinas, do poder daquilo que é santo e que, portanto, têm uma

reivindicação incondicional sobre o homem. Só o mistério que é de preocupação última

para o homem aparece na revelação. Grande parte das ideias que se derivam de pretensas

revelações a respeito de objetos e eventos dentro da estrutura sujeito-objeto da realidade,

nem são mistérios genuínos, nem se baseiam em genuína revelação. Conhecimento sobre

a natureza e a história, sobre indivíduos, seu futuro e seu passado, sobre coisas escondidas

e acontecimentos, tudo isso não é questão de revelação, mas de observações, intuições e

conclusões.

Para Tillich (1987, p.99), revelação, como revelação do mistério, é

preocupação última do homem e é invariavelmente revelação para alguém numa situação

concreta de preocupação. Para ele, isto está claramente indicado em todos os eventos que

tradicionalmente foram caracterizados como revelatórios. Não há revelação “em geral”

(Offenbarung ueberhaupt). Revelação abarca um indivíduo ou um grupo, geralmente um

grupo através de um indivíduo; ela só tem poder revelador nesta correlação. Revelações

recebidas fora da situação concreta podem ser apreendidas só como reportagens sobre

revelações que outros grupos afirmam haver recebido. O conhecimento de tais relatos, e

mesmo uma aguda compreensão dos mesmos, não os torna revelatórios para ninguém que

não pertença ao grupo abarcado pela revelação. Não há revelação se não houver ninguém

que a receba como sua preocupação última.

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140

Tillich (1987, p. 99) diz que a revelação sempre é um evento subjetivo e

objetivo em estrita interdependência. Alguém é abarcado pela manifestação do mistério;

este é o lado subjetivo do evento. Algo ocorre através do qual o mistério da revelação

abarca alguém; este é o lado objetivo. Para ele, esses dois lados não podem ser separados.

Se nada acontece objetivamente, nada é revelado. Se ninguém recebe o que acontece

subjetivamente, o evento deixa de revelar algo. A ocorrência objetiva e a recepção

subjetiva pertencem ao evento total da revelação. Revelação não é real sem o lado

receptivo, e não é real sem o lado doador. O mistério aparece objetivamente em termos

do que foi chamado tradicionalmente de “milagre”. Aparece subjetivamente em termos

do que foi às vezes chamado “êxtase”. Ambos os termos necessitam de uma

reinterpretação radical.

Por isso, para este autor (TILLICH, 1987, p.99), também é importante fazer

a relação entre revelação e êxtase. Ele começa afirmando que “êxtase” (“estar fora de si

mesmo”) aponta para um estado da mente que é extraordinário no sentido de que a mente

transcende sua situação ordinária. Êxtase não é uma negação da razão; é o estado da mente

no qual a razão está além de si mesma, isto é, além da estrutura sujeito-objeto. Ao estar

além de si mesma, a razão não nega a si mesma. “Razão extática” permanece razão; ela

não recebe nada irracional ou antirracional, o que não poderia fazer sem autodestruição,

mas ela transcende a condição básica da racionalidade finita, a estrutura sujeito-objeto.

Para Tillich, este é o estado que os místicos tentam alcançar por atividades ascéticas e

místicas. Mas os místicos sabem que estas atividades só são preparações e que a

experiência do êxtase é devida exclusivamente à manifestação do mistério em uma

situação revelatória. O êxtase ocorre só se a mente é possuída pelo mistério, isto é, pelo

fundamento do ser e sentido. E, vice-versa, não há revelação sem êxtase. No máximo, há

informação que pode ser testada cientificamente. O “êxtase do profeta”, do qual a

literatura profética está cheia, indica que a experiência do êxtase tem significado

universal.

Tillich (1987, p.103) também faz a relação entre revelação e milagre. Para

ele, os sinais-evento, nos quais o mistério do ser se dá a si mesmo, consistem em

constelações especiais de elementos da realidade, em correlação com constelações

especiais da mente. Um milagre genuíno é antes de tudo um evento que é assombroso,

incomum, abalador, sem contradizer a estrutura racional da realidade. Em segundo lugar

é um evento que aponta para o mistério do ser, expressando sua relação com o homem de

forma definida. Em terceiro lugar, é uma ocorrência que é recebida como um sinal evento

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141

em experiência extática. Para ele, só se estas três condições forem satisfeitas pode-se falar

em milagre genuíno. Aquilo que não abala alguém por seu caráter assombroso não tem

poder revelatório. Aquilo que abala sem apontar para o mistério do ser não é milagre, mas

magia. Aquilo que não é recebido em êxtase é um relato sobre a crença num milagre, não

um milagre atual. Ele afirma que isto está enfatizado nos registros sinóticos dos milagres

de Jesus. Milagres só são dados para aqueles a quem eles são sinais-eventos, para aqueles

que o recebem em fé. Jesus se recusa a realizar milagres “objetivos”. Eles são uma

contradição em termos. Esta correlação estreita torna possível intercambiar as palavras

que descrevem milagres e as que descrevem êxtase. Pode-se dizer que êxtase é o milagre

da mente e milagre é o êxtase da realidade.

O autor em questão (TILLICH, 1987, p.104), em sua obra sobre a revelação,

também descreve quais seriam os meios pelos quais a revelação acontece. O primeiro

deles é a natureza como meio da revelação. Para ele, não há realidade, coisa ou evento

que não possa se tornar um portador do mistério do ser e entrar numa correlação

revelatória. Nada está excluído da revelação em principio porque nada está incluído nela

à base de qualidades especiais. Nenhuma pessoa e nenhuma coisa é digna em si mesma

de representar a preocupação última do homem. Por outro lado, toda pessoa e toda coisa

participa no ser-em-si, isto é, o fundamento e sentido do ser. Sem essa participação não

teria poder de ser. Esta é a razão, para ele, do porquê quase todo tipo de realidade se

tornou um meio de revelação em algum lugar. Outros meios que Tillich descreve são a

história, grupos e indivíduos como meio de revelação. Na verdade, para ele, eventos

históricos, grupos ou indivíduos em si não são meios de revelação. É a constelação

revelatória dentro da qual eles entram, sob condições especiais, que os torna revelatórios,

não seu significado histórico ou sua grandeza pessoal e social. Se a história aponta para

além de si mesma em uma correlação de êxtase e sinal-evento, ocorre revelação. Se

grupos de pessoas se tornam transparentes ao fundamento do ser e sentido, ocorre

revelação. Mas sua ocorrência não pode ser prevista ou derivada de qualidades de pessoas,

grupos e eventos. É questão de destino histórico, social e pessoal. Está sob a “criatividade

diretiva” da vida divina. A última forma que ele descreve é a palavra como um meio de

revelação. Ele explica que a estrutura racional do homem não pode ser entendida sem a

palavra, na qual a estrutura racional da realidade é compreendida. A revelação não pode

ser entendida sem a palavra como meio de revelação. O conhecimento de Deus não pode

ser descrito exceto através de uma analise semântica da palavra simbólica. Os símbolos

“Palavra de Deus” e “Logos” não podem ser entendidos em seus vários sentidos sem uma

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142

penetração na natureza geral da palavra. A mensagem bíblica não pode ser interpretada

sem princípios semânticos e hermenêuticos. A pregação da igreja pressupõe uma

compreensão das funções expressiva e denotativa da palavra, acrescentadas à sua função

comunicativa.

Sobre a Dinâmica da revelação, Tillich (1987, p.111) descreve a respeito de

revelação Original e revelação Dependente, dizendo que a história da revelação indica

que há uma diferença entre revelações originais e dependentes. Uma revelação original,

segundo ele, é aquela que ocorre numa constelação que não existiu antes. O milagre e o

êxtase estão unidos pela primeira vez. Ambos os aspectos são originais. Numa revelação

dependente, o milagre e sua recepção original formam juntos o aspecto objetivo, aquilo

que é dado. Ao passo que o aspecto receptivo muda, na medida em que indivíduos e

grupos entram na mesma correlação. Ele explica isso exemplificando na afirmação de que

Jesus é o Cristo, tanto porque poderia se tornar o Cristo como porque foi recebido como

sendo o Cristo. Sem ambos estes aspectos, não teria sido o Cristo. Verifica-se aqui, porém,

que esta última afirmação apresentada por Tillich, não é de fácil aceitação, uma vez que

Jesus é o Cristo, independente de ser reconhecido como tal, unicamente pela vontade de

Deus. Mas pode-se ver que o estudo dos pensamentos de Tillich é útil para a reflexão

sobre muitas questões a respeito da revelação, uma vez que este autor escreveu muito

sobre tal assunto, de maneira que aqui foi contemplada apenas uma parte de seus escritos.

5 Ênfase na soberania e ação de Deus ao se revelar – o pensamento de Alister

McGrath

McGrath é um estudioso bastante atuante no mundo teológico, sendo hoje

professor de teologia histórica na universidade de Oxford. Ele tem lecionado nas áreas de

teologia sistemática, ciência da religião, espiritualidade e apologética. Autor de inúmeros

livros, o Dr. McGrath é considerado um dos mais influentes pensadores cristãos da

atualidade, sendo considerado também um referencial conservador. Ao começar sua

dissertação a respeito do conceito de revelação, ele aponta que um tema central da

teologia cristã, ao longo dos tempos, tem sido o fato de que as tentativas do ser humano,

no sentido de compreender plenamente a natureza e os propósitos de Deus, ser

fundamentalmente tentativas frustradas. Ele ressalta que, embora, geralmente, sustente-

se a ideia de que seja possível um conhecimento natural de Deus (sendo as primeiras

reflexões de Barth uma notável exceção a esse consenso), esse conhecimento é limitado

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143

tanto em termos de profundidade quanto de alcance. Fazendo uma citação de Jünge,

McGrath (2005, p.246) informa que o conceito de revelação expressa um dogma universal

da teologia cristã que propõe a necessidade de que nos “seja dito como é Deus”.

Em seguida, este autor (2005, p.246) vem trazendo o fato de que a década de

1960 assistiu a uma grande revolução na área da teologia cristã, em que vários conceitos

tradicionais foram desafiados e reformulados, inclusive o conceito de revelação. Para

McGrath, neste contexto surgiram duas questões, em que cada uma delas parecia lançar

dúvidas sobre o conceito de revelação sustentado pela visão cristã tradicional.

A primeira destas questões foi trazida quando Downing propôs que o

interesse moderno quanto à questão da revelação não se devia ao material bíblico em si,

mas à relevância das questões epistemológicas para a filosofia moderna. A importância

das questões relativas ao “conhecimento verdadeiro” na área da filosofia da ciência, por

exemplo, havia sido indevidamente transferida para a área da teologia. Era alegado que a

Bíblia voltava-se para a questão da salvação, e não para a questão do conhecimento. O

questionamento que dominava o Novo Testamento era: “O que devo fazer para ser

salvo?”, e não: “O que devo saber para alcançar a salvação?”.

McGrath (2005, p.246) apresenta a reação a esta questão, quando destaca o

fato de que a concepção bíblica de salvação se exprime normalmente em termos de

“conhecimento”, sendo a salvação humana considerada como algo que se fundamentava

no conhecimento da possibilidade de salvação em Cristo, assim como a resposta

apropriada a isto, fatores necessários à ocorrência da salvação. Também é afirmado que,

em sentido bíblico, “o conhecimento de Deus” não significa simplesmente o fato de

possuir “informações a respeito de Deus”, mas sim uma auto-revelação de Deus, em

Cristo Jesus, que é capaz de proporcionar vida e trazer salvação.

A segunda questão está relacionada ao fato de acadêmicos da bíblia, como

Barr (apud MACGRATH, 2005, p.246), terem defendido que a questão da revelação

parecia ter tido uma importância secundária em ambos os testamentos. Eles sugeriam que

a linguagem da revelação não era sequer fundamental ou homogênea no contexto bíblico.

Mas para McGrath, logo ficou evidente que sua análise se baseava em uma aceitação

indiscriminada de conceitos de revelação elaborados sistematicamente, e não em uma

análise do vocabulário encontrado nas Escrituras a respeito da revelação. Para este autor,

é verdade que os conceitos medievais ou modernos de revelação não se encontram

expressamente declarados, nem no Antigo nem no Novo Testamento. Contudo, isto de

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144

forma alguma indica que a linguagem da revelação esteja ausente do contexto das

Escrituras ou, até mesmo, que ocupe uma posição secundária nelas.

McGrath (2005, p.246) afirma que o significado de revelação no Novo

Testamento não sugere uma “manifestação de um Deus até o momento desconhecido”.

Em sua acepção geral, o termo “revelação” significa “A possibilidade do conhecimento

de algo em sua plenitude” ou “a manifestação total daquilo que fora até então obscuro ou

incerto”. No entanto, para ele, falar da “revelação de Deus”, em um contexto teológico,

não significa dizer que essa revelação de Deus seja plena, total.

Testificando isto, este autor (2005, p.246) traz exemplos, como os vários

escritores pertencentes à tradição ortodoxa grega que enfatizam que a revelação divina

não liquida o mistério de Deus. Ele dá o exemplo da doutrina da “reserva”, de Newman,

também destacando esse ponto. Sobre isso, a sempre mais de Deus do que aquilo que

somos capazes de saber. Também Lutero (apud MCGRATH, 2005, p.247) sugere que a

revelação de Deus é somente parcial, embora seja confiável e adequada, ainda que parcial.

Para defender este ponto, Lutero elabora o conceito de uma “revelação secreta de Deus”,

que é um dos aspectos mais relevantes de sua “teologia da cruz”.

Para McGrath (2005, p.247), existe consenso na teologia cristã, no sentido de

que a natureza (ou a criação) dá testemunho de Deus, seu criador. Esse conhecimento

natural de Deus deve ser completado pela revelação, que dá acesso a informações de outra

forma inatingíveis. Para ele, contudo, o conceito de revelação vai além da ideia da

transmissão de conhecimento sobre Deus, pois ele carrega em si a noção da auto-

revelação divina. Este autor então, brilhantemente, exemplifica que ao falarmos a respeito

de outras pessoas, podemos traçar uma diferença entre “saber algo a respeito de alguém”

e “conhecer alguém”. A primeira ideia implica em um conhecimento intelectual ou no

acúmulo de informações sobre uma pessoa (como, por exemplo, sua altura, peso e assim

por diante). A segunda ideia envolve a noção de um relacionamento pessoal.

Segundo McGrath (2005, p.247), em sentido mais elaborado, o conceito de

revelação não significa mera transmissão de um conjunto de conhecimentos, mas sim a

manifestação pessoal de Deus na história. Deus tomou a iniciativa por intermédio de um

processo de auto-revelação, que atinge seu ápice e plenitude na história de Jesus de

Nazaré.

McGrath (2005, p.247) apresenta quatro formas principais de como a

revelação especial foi entendida, onde elas não são mutuamente excludentes. A primeira

delas é a da Doutrina como revelação. Essa tem sido a abordagem característica das

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145

correntes católicas neo-escolásticas e evangélicas conservadoras, as quais continuam a

exercer grande influência na tradição cristã por intermédio de suas formas modificadas

ou ampliadas. Ao passo que os evangélicos enfatizam o papel das Escrituras na mediação

da revelação, os católicos neo-escolásticos têm também atribuído importância ao papel

da tradição, em particular à função de ensino da igreja (o magisterium). Os termos “o

reservatório de revelação” ou “o repositório da verdade” são geralmente empregados

neste contexto, com o significado de repertorio dos conhecimentos acumulados pela

igreja ao longo dos anos. De acordo com essa abordagem, deve-se considerar a revelação

primordialmente (embora não exclusivamente) sob a forma proposicional.

A segunda delas é a da Presença como revelação. Esse modelo sobre a

revelação está relacionado especialmente a escritores da escola dialética de teologia,

influenciada pelo personalismo dialógico de Buber. Talvez a declaração mais importante

dessa perspectiva encontre-se no livro de Brunner, Truth as encounter (verdade como

encontro), que estabelece a noção de revelação como comunicação pessoal de Deus. Isto

é, uma revelação da presença pessoal de Deus no interior daquele que crê. “O senhorio e

o amor de Deus não podem ser comunicados de outra forma que não seja por intermédio

da auto-revelação de Deus”. A tese de Brunner defende que Deus, no processo de

revelação, não transmite informações apenas. A revelação envolve a manifestação da

presença pessoal de Deus e não meras informações ao seu respeito. Brunner, baseando-

se na análise de Martin Buber sobre as formas de relação “Eu-tu” e “Eu-isso”, insiste na

existência de um elemento fortemente relacional na revelação. Deus dá-se a conhecer

como “Tu” e não como “Ele”. A revelação é teleológica, um processo voltado para um

fim, e essa finalidade representa o surgimento de uma mútua relação entre o Deus que se

revela e a humanidade que reage a essa revelação.

A terceira forma apresentada por McGrath é a da Experiência como

revelação. Este modelo tem grande influência e concentra-se em torno da experiência

humana. De acordo com essa perspectiva, entende-se que Deus se revela ou se dá a

conhecer por intermédio da experiência pessoal. Esta é considerada por muitos como a

abordagem ligada ao protestantismo liberal alemão do século XIX, especialmente com

Schleiermacher e Ristschl.

A quarta e última forma é a da História como revelação. Esta é uma

abordagem totalmente distinta, particularmente associada ao teólogo alemão:

Pannenberg. Ela concentra-se no tema da “revelação como história”. De acordo com ele,

a teologia cristã baseia-se na análise da história universal e conhecida, e não na subjetiva

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146

interna da existência humana pessoal ou em uma interpretação particular dessa história.

A história é em si mesma a revelação (ou pelo menos tem a capacidade de vir a sê-lo).

Para Pannenberg, a revelação é essencialmente um evento histórico notório e universal,

reconhecido e interpretado como “ato de Deus”.

Considerações finais

Ao se fazer uma comparação entre Tillich e McGrath, percebemos que a

revelação especial pode ser entendida a partir de duas maneiras principais. A primeira diz

respeito a uma revelação que depende tanto do agir de Deus, como no indivíduo e suas

necessidades, situações, estado em que se encontra, em seu contexto e vontade. A segunda

diz respeito numa revelação que depende muito mais da vontade e do agir de Deus,

independentemente de qualquer característica e situação de um indivíduo. Seguindo a

linha da teologia nascida da Reforma Protestante, defendemos a percepção que coloca a

ênfase na soberania e no agir de Deus ao se revelar, mas reconhecemos a existência e da

relevância da outra forma defendida. Também podemos notar um ponto em comum entre

esses dois autores, que parece ser um ponto em comum com a maioria dos autores. É o

fato de que ao acontecer o evento da revelação, o mistério não é encerrado ou esgotado.

Mesmo quando Deus se revela, existe muito mais de Deus que é desconhecido pela

humanidade. Existe sempre mais de Deus a se conhecer.

Referências

BÍBLIA Sagrada: Nova Versão Internacional. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional, 2003.

GEISLER, Norman L.; FEINBERG, Paul D. Introdução à Filosofia: uma perspectiva cristã. São

Paulo: Edições Vida Nova, 1996.

HORTON, Michael. A Face de Deus: Os perigos e as delícias da intimidade espiritual. São Paulo:

Editora Cultura Cristã, 1999.

MCGRAFTH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução a teologia

cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.

SANTANA FILHO, Manoel Bernardino. Revelação. In: BORTOLLETO FILHO, Fernando

(org.). Dicionário Brasileiro de Teologia. São Paulo: ASTE, 2008.

TILLICH, Paul. Teologia sistemática. São Paulo: Paulinas; São Leopoldo, RS: Sinodal, 1987.

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DO ROUBO DAS PERAS A BISPO DE HIPONA: o pretexto da fé na

contextualização do texto agostiniano

Pompeia Rosalia Sena Maltese97

Introdução

O trabalho em questão pretende apresentar a trajetória de Agostinho de Hipona a

partir do seu próprio relato em suas Confissões, relacionando toda sua obra, ou seja, o seu

texto na perspectiva das Escrituras – seu contexto –, mobilizado pela fé – seu pretexto –

que, advinda de sua “conversão”, lhe confere todo o sentido de sua vida.

O título que ora utilizamos reporta-se a uma frase da sabedoria popular que diz:

“Texto sem contexto é pretexto”. Com ela, configuramos um jogo de palavras usando

texto, contexto e pretexto de acordo com o que pretendemos ilustrar. É comum que a partir

de tal frase nos perguntemos: “Pretexto para quê? ”. Com isso, vamos discorrendo:

pretexto pra mentiras, pra falar bobagens e assim por diante. No nosso caso, queremos

ilustrar que para o nosso autor, conforme citado acima, a sua fé foi o “pretexto” – portanto,

no bom sentido – para a digressão ou desenvolvimento de toda a sua obra. Ou seja, foi a

sua motivação, o seu argumento.

A nossa proposta é, portanto, trazer a história deste sujeito, Aurélio Agostinho,

que para desenvolver sua obra torna-se ele próprio o protagonista por excelência. O autor

em questão desenvolveu uma antropologia onde o pensar sobre o homem se debruça sobre

si mesmo e inaugura, assim, uma subjetividade na reflexão filosófica onde, anteriormente,

este pensar era tomado sob uma certa distância. Com Agostinho, ela se volta para o

homem em sua realidade experiencial, é ele próprio que fala de si, uma vez que se

confessa98. Portanto, o seu livro autobiográfico não é uma simples autobiografia, não é

97 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); graduada em Filosofia (Licenciatura

e Bacharelado) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Psicologia (Licenciatura, Bacharelado

e Formação de Psicólogos) pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e aluna do curso de

Bacharelado em Teologia da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). 98 Ver sua obra Confissões. A relação dialógica posta em debate é a do sujeito que se confessa para Deus.

O próprio autor refere que esta sua confissão - e é esta sua intenção - pode servir de testemunho para as

pessoas que a conhecerem, no sentido de serem fortalecidas em sua caminhada na fé ou mesmo como

promovedora de uma conversão. A este respeito, na célebre passagem do Livro X, 27.38 das Confissões

(Tarde Vos Amei!), encontramos na nota do tradutor o seguinte comentário: “Este clamor de pródigo e de

esteta converteu a elegante M.elle Lionne, ao escutá-lo da boca do orador P.Cláudio La Colombière, que a

Igreja depois beatificou”.

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148

apenas o relato de quem conta uma história, é primordialmente uma interlocução e,

naturalmente, como qualquer interlocução, o sujeito está implicado emocionalmente na

sua exposição naquele momento em que a esboça. Desta forma, enquanto confissão, põe

em realce uma relação dialógica. Santo Agostinho a descreve de forma despojada,

corajosa e dramática. É o homem Agostinho que vai mobilizar sua busca para a

compreensão da realidade a partir de uma reflexão sobre si mesmo, para daí inquirir sobre

o antrophos (ανθρωπος) que o constitui.

Assim sendo, à medida em que nos referimos à obra agostiniana, estamos nos

referindo ao seu texto que, do ponto de vista de sua antropologia, deu um salto qualitativo

justamente a partir de sua conversão ao cristianismo, muito embora, referindo-nos a santo

Agostinho, no dizer dos seus comentadores, não podemos falar de conversão, mas de

conversões99. Sendo fundamentalmente uma antropologia, a sua obra está, portanto,

centrada e fundada em sua experiência após esta sua conversão. Valendo-se, portanto de

uma inspeção da alma, ele faz um “mergulho” em sua interioridade, na busca do

esclarecimento daquele pretexto que muda toda a sua história. Ele vai buscar o

esclarecimento da fé em confronto com a própria razão, ou seja, o esclarecimento de um

dado de revelação a partir da razão: “Entenda que você pode acreditar, acredite para que

você entenda”100. Na sua época, a razão vinha sendo desacreditada, uma vez que a

diversidade de escolas filosóficas101 apontava, obviamente, para uma diversidade de

argumentos, desprestigiando, assim, o seu próprio “instrumento do pensar”, a razão, uma

vez que esta já não assegurava um conhecimento verdadeiro e tudo era posto em dúvida.

Agostinho nos traz justamente todo um ensaio em que vai nos apresentando a fé como

resultado de raciocínios e, deste resultado, lhe advém uma certeza lógica, de acordo com

o que podemos constatar em De civitate Dei (A cidade de Deus):

Tais verdades desafiam todos os argumentos dos acadêmicos, que

dizem: Quê? E se te enganas? Pois, se me engano, existo. Quem não

existe não pode enganar-se; por isso, se me engano, existo. Logo, se

existo, se me engano, como me engano, crendo que existo, quando é

99 Conforme Gilson, a primeira das conversões de Agostinho foi à Filosofia, a partir do livro Hortensius,

de Cícero. 100 Cf. a nota complementar 5 do De Libero arbitrio (O Livre-arbítrio): “Intllige ut credas, crede ut

intelligas”. Além do livro citado, encontramos ainda esta máxima – dita de outra forma – no De Magistro

(O Mestre) XI, 37: “Se não credes, não entendereis” e no De Trinitate (A Trindade) VII, 6.12). A nota

inclusive comenta a alusão frequentemente referida por Agostinho ao texto de Isaías 7,9, cujo fundamento

- no dizer da referida nota - é impróprio, mas que encontra “sólido apoio nas Escrituras”. Assim, nosso

autor subleva a fé sem contrastá-la ao confronto com a razão. 101 O Estoicismo, Epicurismo e Ceticismo impregnavam toda a cultura greco-romana da época. A História

da Filosofia, vol. I de Reale e Antiseri, bem como a História da Filosofia, Vol. II, de Nicola Abbagnano

nos traz um panorama bastante completo e muito bem comentado dessas correntes filosóficas.

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certo que existo, se me engano? Embora me engane, sou eu que me

engano e, portanto, no que conheço que existo, não me engano (parte

II, XI .26, 1989, p. 45).

Estabeleceu-se, desta forma, o chamado Cogito agostiniano102 que nos coloca

diante de uma experiência inequívoca que antecede ao pensamento, sendo assim um

contato apriorístico do sujeito consigo mesmo.

Ora, a razão é um atributo humano que nos confere a capacidade de raciocinar,

donde nos advém o intelecto e o entendimento. No entanto, o homem, consequentemente

seu intelecto, é mutável, perecível e, portanto, corruptível (passível de destruição). Deste

modo, o conhecimento da verdade só lhe pode ser assegurado por algo que se coloque

acima dos homens e das coisas. É exatamente neste ponto que o homem acede ao

conhecimento de Deus. Então, para alcançar a verdade, aprioristicamente, é preciso crer.

Assim sendo, para o nosso autor a razão não se incompatibilizava com a fé, uma vez que

ela era sua auxiliar em seu amadurecimento.

A fé resgata a possibilidade da verdade que vinha sendo escamoteada e restaura a

validade da razão. Sendo que esta razão é um instrumento, ela está a serviço do

esclarecimento que vem da fé. É a fé que vai esclarecer a razão e, com isso, nosso autor

desenvolve a teoria da iluminação103. Embora seguindo numa linha de consideração

positiva sobre a razão, ao contrário de dizer que a mesma de nada vale – como nos

embates que se travavam habitualmente em seu descrédito –, santo Agostinho a vê como

serva. Fé e razão, portanto, em Agostinho se compatibilizam.

Em sua perspectiva antropológica, nosso autor compreende que o universo e,

portanto, o homem, está inserido numa determinada ordem, princípio que governa todas

as coisas. Esta ordem se insere, por sua vez, no Princípio da Criação104. Enquanto ordem

e enquanto Criação, existe uma hierarquia entre o Criador e as coisas criadas e também

entre estas coisas criadas entre si, de modo que o homem enquanto criado é, entre todas

as demais criaturas, a excelência da Criação, pois foi pensado como Imago Dei e,

portanto, esta essência lhe é constitutiva. Naturalmente, também é constitutiva sua

transcendência. À medida em que iniciamos um processo de autoconhecimento,

102 O Cogito agostiniano é muito pouco mencionado na elaboração cartesiana posterior. Encontramos em

Gilson um vasto comentário a respeito intercalado em seus capítulos que seguem até à p. 156. Vale ressaltar

que de Agostinho para Descartes passam-se onze séculos. 103 A este respeito encontramos em seu livro De Magistro toda uma explanação sobre o conhecimento, a

linguagem e a iluminação divina. 104 Conforme seu livro A ordem, no qual expõe estes argumentos e os fundamenta de acordo com as

Escrituras bíblicas.

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150

recordamos essa nossa essência que está em Deus e, assim, encontramos a felicidade e a

verdadeira liberdade105. À medida em que prossegue nesta sua interlocução com Deus,

seu diálogo interior vai sendo iluminado. Mas, esta trajetória dá-se sempre diante de uma

situação conflitiva. O homem está lançado no mundo, como ser histórico e situado e

distante de sua lembrança está sua constitutividade transcendental. Isto é algo que vai ter

que ser recuperado para que o homem não se perca e alcance verdadeiramente a

felicidade.

Poderíamos dizer que nesta relação estabelece-se uma dependência, pela própria

contingência das coisas criadas e de sua mutabilidade, nas quais situa-se a humanidade.

No entanto, reconhecendo-se com esta essência, em sua dependência de Deus, ele se torna

independente das demais contingências do mundo (também criado), ao menos sobre as

quais pode agir, porque dependem de sua vontade. Suas afeições, o pathos (πάθος) que o

constitui em sua humanidade (lembrar a contingência, mutabilidade, corruptibilidade)

tornam-se ordenadas – o que não quer dizer apatia (απαθεία) – mesmo que em

movimentos por vezes desordenados que, no entanto, ao invés de impeli-lo para a

desordem do seu ser (fazer o mal que não se quer)106 propicia-lhe os seus ajustes

necessários, ou seja, os ajustes necessários a todo ser em estado de desenvolvimento.

Sua independência das contingências do mundo naquilo em que pode agir com

sua vontade orientada (poderíamos dizer ordenada) para o bem, naturalmente conduzi-lo-

á à felicidade. Agostinho não prescinde de elementos dos quais hoje fazemos referência

como as escolhas inconscientes – embora questões a este respeito fossem ainda

incipientes107 –, reconhecendo-as como típicas desta contingência, mutabilidade e

corruptibilidade da constitutividade humana. No entanto, elas não lhe são determinantes.

A evolução na autonomia em relação a elas vai depender do “caminhar” de cada um. No

dizer psicanalítico atual do termo, poderíamos dizer que não precisamos fugir das nossas

“sombras”108, precisamos integrá-las e reconhecê-las, pois fazem parte da inspeção da

105 Ver Solilóquios e A Vida Feliz. No primeiro, o autor trava um diálogo consigo mesmo. No segundo,

temos um diálogo entre diversos amigos onde as mesmas questões sobre a felicidade, o conhecimento, entre

outras, são discutidas. 106 Alusão à Carta aos Romanos do Apóstolo Paulo, capítulo 7,19: “Com efeito, não faço o bem que eu

quero, mas pratico o mal que não quero” (Bíblia de Jerusalém). 107 Ver no Livro I das Confissões, em seu capítulo 6.8 a referência às questões inconscientes. 108 A teoria psicanalítica junguiana faz referência às sombras como aqueles aspectos obscuros da

personalidade com os quais temos pouco ou nenhum contanto, de modo que elas se mantêm inconscientes.

À guisa de ser um compêndio para os iniciantes em tais leituras, vale à pena conferir em Teorias da

Personalidade de Fadiman e Frager como também em Teorias da Personalidade de Hall, Lindzey e

Campbell os bem elaborados capítulos acerca das teorias psicanalíticas junguiana e freudiana. Para um

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alma. Para Agostinho, em toda esta inspeção, a razão torna-se instrumento para o seu

desdobramento.

O homem é, portanto, um ser histórico e situado, inserido num tempo

determinado, onde cada um em particular precisa encontrar o “si mesmo”, ou seja, o seu

sentido no mundo. Enquanto maravilha da criação, precisa encontrar-se nesta sua

estrutura constitutiva. Do contrário, vai estar apenas “jogado no mundo”, no dizer dos

existencialistas modernos. Na compreensão agostiniana, o homem tem, portanto, uma

essência, uma estrutura e ela vai se constituindo num diálogo, uma vez que sua essência

é trinitária – porque Deus é trinitário – e é próprio da Trindade viver em koinonia

(κοινωνία)109. Portanto, numa dialogicidade interpessoal, pois ao esboço deste diálogo

com Deus, encontramos um Outro que se nos responde.

Considerações finais

O texto do nosso autor reflete este encontro com Deus que, por sua vez, desemboca

num processo de amadurecimento e encontro consigo mesmo. Nas suas Confissões, este

relato se dá de forma pungente e traz-nos diversas situações deste seu drama existencial.

Entre elas, a descrição angustiante do roubo de umas peras110 que poderia passar para o

leitor como um julgamento extremamente severo de si mesmo, mas que traduz esta sua

inquietante interpelação diante de Deus, visto retrospectivamente num momento em que

o seu maior desejo é corresponder a este Outro. O pesar com que se confessa parece-nos

mortificante, se não levarmos em conta o caráter apaixonado de Agostinho, por demais

expressivo, sobretudo nesta sua obra, que é o texto por excelência carregado de

subjetividade e, consequentemente, de uma poética sem par entre os seus escritos. O

contexto de sua obra é, portanto, de caráter apologético ao cristianismo, do qual é defensor

apaixonado e donde retira todo o desdobrar de sua antropologia, cosmologia, ontologia,

bem como de sua ética, considerando uma ordem originária que subjaz à Criação.

maior conhecimento da teoria psicanalítica freudiana, recomendamos Noções Básicas de Psicanálise que

nos traz elementos essenciais desta teoria. 109Termo grego que significa comunhão. Ver o Livro V, de A Trindade e sua referência à característica de

pessoa com a qual se constitui a Trindade e as relações que se estabelecem entre estas pessoas

reciprocamente. 110 Confissões, Livro II, 4,9.

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152

Aproximadamente vinte e cinco anos depois do episódio do roubo das peras, Agostinho

torna-se bispo de Hipona, no ano 395 da era cristã.

No sentido de favorecer uma perspectiva panorâmica da nossa exposição,

trazemos em seguida uma breve cronologia ligeiramente modificada de Os Pensadores:

Cronologia:

Nasc.: 13/11/354, em Tagaste, cidade da atual Argélia.

Morte: 430.

313: Imperador Constantino: Edito de Milão; liberdade de culto aos

cristãos.

365 aos 10 anos: estuda em Madaura.

369, aos 14, 15 anos volta para Tagaste. Episódio do roubo das peras.

370, aos 26 anos: estuda em Cartago, também Norte da África.

372: nasce seu filho Adeodato.

384: início da tradução da Bíblia para o latim, por são Jerônimo.

386: conversão (32 anos), escreve “Contra os Acadêmicos”, “A Vida

Feliz”, “A ordem” e “Solilóquios”.

387, aos 33 anos: “A Imortalidade da Alma”.

391, aos 37 anos: presbítero de Hipona.

395, aos 41 anos: bispo de Hipona.

397 a 398: Confissões (42/43 anos).

Em mais ou menos 405 (aos 51 anos) escreve “A Instrução dos

Catecúmenos”.

400 a 416: A Trindade.

413: começa a escrever “A Cidade de Deus”.

São transcorridos 16 séculos até os nossos dias.

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1987. (Coleção os Pensadores)

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______. Solilóquios. São Paulo: Paulus, 1998.

______. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1984.

______. De Magistro. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção os Pensadores)

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153

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BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Sociedade Bíblica Católica Internacional e

Paulus, São Paulo, 1985.

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Row do Brasil, 1979.

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Editorial; Paulus, 2006.

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personalidade. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

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São Paulo: Ed. Mestre Jou, 1967. vol. I.

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Paulo: Nova Cultural. 1987. v. I.

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154

VIDA CONSAGRADA E NOVAS FRONTEIRAS:

desafios à frente

Tiago Santos da Silva111

INTRODUÇÃO

A semente antes de crescer para cima ela cresce para baixo, buscando fincar raízes

para manter-se segura e ainda buscar a seiva que a manterá viva, no mais profundo da

terra. Nossa reflexão tem o objetivo de apresentar alguns aspectos da caminhada da VC

nos últimos anos, tendo em vista a celebração dos cinquenta anos de promulgação do

decreto Perfectae Caritatis e o anúncio do ano da vida consagrada, convocado pelo Papa

Francisco. Buscando perceber nos rastros da história e no momento presente, desafios e

possibilidades para uma VC que se pretende sinal do Reino, dentro de uma sociedade em

transformação. Apontamos alguns desafios que interpelam os consagrados, e alguns

sinais de revitalização nas experiências de quem vive tal modo de vida.

Os desafios devem nos provocar e interpelar, e não encher de medo ou fazer-nos

recuar. A parábola da semente (Mt 13, 1 – 9) e do fermento (Mt 13, 33) nos mostram que

tanto um como o outro fazem crescer mas sem barulho, no silêncio fecundo e operante.

Diz um provérbio popular que ‘é mais fácil perceber a queda de uma árvore, do que

perscrutar o crescimento de muitíssimas sementes que brotam em silêncio’. Assim a VC

vai perfazendo seu caminho de maneira, porém atuante, profética.

1. Perfectae Caritatis: 50 anos.

Celebrando os cinquenta anos de encerramento do Concílio Ecumênico Vaticano

II, fazemos memória da aprovação do decreto Perfectae Caritatis (PC), que trata da

atualização dos religiosos.

Cinquenta anos, aponta, para um caminho percorrido. Aparentemente longo, e

relativamente curto, pois apesar de denotar anos e anos de caminhada, aplicado a uma

instituição, parece-nos quase indiferente, pois estas, parecem imunes ao tempo.

111 Tiago Santos da Silva. Frade capuchinho, estudou Filosofia no INSAF – Instituto Salesiano de

Filosofia e Teologia na UNICAP – Universidade Católica de Pernambuco. E-mail:

[email protected] .

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Entretanto, as instituições não existem por si só, elas são formadas por pessoas, que a ela

se agregam e as dirigem. Estas, sim, são filhas do tempo presente e geralmente não se

‘conformam’ com o simples “dado”, mas buscam a seu tempo e a seu modo viver e

transformar cada segundo.

Revisitar Perfectae Caritatis é assim fazer memória de um acontecimento na

instituição e, por conseguinte, na vida daqueles que a fazem. Esta memória que não é

simples lembrança, mas uma atualização de um projeto de vida é significativa quando é

acolhida e levada adiante como propósito a ser atingido, seja individualmente, seja

coletivamente.

O documento conciliar é fruto de um contexto social e religioso de busca de

diálogo e renovação por parte da Igreja para com a sociedade moderna. De modo que não

pode ser lido isoladamente, mas tem que ser compreendido no conjunto dos documentos

conciliares. Cleto Caliman (2012, p. 19) nos aponta ainda que haviam diferentes linhas

de compreensão do que realmente deve ser a renovação da Vida Religiosa:

Fala-se em linguagens diferentes. Os que defendem uma abordagem

mais ascética e jurídica tendem justamente a retomar as normas

tradicionais, atualizando-as para o novo momento histórico. Os que

pretendem dar uma orientação mais teológico-espiritual são de outro

aviso. A renovação da VR se dá não no campo das normas mais sim no

campo da vida espiritual, onde se vive e se alimenta da opção

fundamental pelo caminho evangélico do seguimento de Jesus Cristo

(CALIMAN, 2012, p.19).

Temos assim que o processo de renovação, para o diálogo com o mundo moderno

foi e continua sendo não um problema, mas um desafio, uma interpelação.

O desafio de Perfectae Caritatis é ad intra e ad extra, ou seja, levar a VC a um

diálogo com o mundo, porém se autocompreendendo dentro da Igreja, pois aí também

necessita saber quem ela é. Lumen Gentium (LG) no capítulo V trata da vocação universal

à santidade, e claro que aquela compreensão de sociedade perfeita atribuída à VC é

questionada, pois que há um só caminho para santidade na Igreja: Jesus Cristo e seu

Evangelho. Assim a VR deve buscar se autocompreender e se articular com o pensamento

mais geral do Concílio (da Igreja). De modo a buscar superar a compreensão tradicional

de VC como “classe” à parte em relação aos cristãos do “mundo”.

O Decreto conciliar é um convite à atualização da VR, e este compreende ao

mesmo tempo contínuo retorno ás fontes de toda a vida cristã e a inspiração primitiva e

original dos institutos, e adaptação dos mesmos às novas condições dos tempos (PC 1).

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Na América Latina, o processo de renovação da VC tomou um caminho

significativo, dinâmico e cheio de vida. A junção das conferências de religiosos de todos

os países do continente em março de 1959 deu origem a CLAR – Confederação Latino-

americana de religiosos- que animou e anima de forma dinâmica e criativa a VC neste

continente.

A recepção da ‘renovação conciliar’ na América Latina se dá a partir das

conferências do CELAM – Conselho Episcopal Latino Americano – e com ele a VC,

presente e atuante, tanto na “cúpula” como na base. Contudo, esta atualização não está de

todo concluída, pois que o caminho é longo, e as configurações sociais mudam cada vez

mais rápidas. Com isso não queremos afirmar que a VC deva seguir a lógica dos

paradigmas sociais, porém, não se pode pensar em anunciar o Evangelho sem se analisar

as possibilidades que a cultura local e atual oferece.

2. Ano da Vida Consagrada: textos e contextos.

Em âmbito católico o ano de 2013 foi de fato surpreendente. Bento XVI, um papa

teólogo, ex-prefeito da congregação para a Doutrina da fé, participante do Concílio

Vaticano II, eleito papa em 2005 para suceder João Paulo II, de quem foi fiel

companheiro, agora renuncia.

As perguntas começam: quem será o novo papa? Que linha irá seguir? Que

repostas tem para as novas perguntas? A mídia especuladora cria expectativas e faz

previsões. Mas em março, deste mesmo ano, o Espírito sopra do lado sul do mundo, e

chega Francisco. Este, trás no nome um projeto de Igreja, e suas atitudes lembram-nos a

figura carismática do poverello de Assis. Chega exalando simplicidade, desde o vestir às

opções que vem fazendo, aos escritos.

Ele, Jesuíta, lança o ano da VC - 30 de novembro 2014 a 02 de fevereiro de 2016

– e com essa iniciativa quer chamar os religiosos a um maior aprofundamento, nas raízes

cristãs e em seus carismas fundacionais, e ainda a uma adaptação aos tempos de hoje,

como pede o decreto Perfectae Caritatis.

A quem defina o contexto atual da VC como um contexto de crise. Crise de

vocações, das instituições, da falta de sentido, de ‘identidade’. Alargando a visão diz-se

que estamos em uma crise que atinge toda a sociedade, a Igreja e por conseguinte a VR.

Acreditamos porem, que talvez não seja uma crise na VR, mas sim no modelo que se

configurou como ‘o modelo de VR’. E somos de acordo que se estamos em um momento

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157

de crise, este é propício ao crescimento, deixando de lado práticas obsoletas e buscando

balizas que ajudem a encontrar novas maneiras de ‘Ser’ vida religiosa nos tempos atuais.

Contribuindo na evangelização e encontrando respostas ás novas perguntas.

As aberturas oferecidas pelo Concílio geraram coisas boas, novidades, caminhos

se abriram, mas também o desfazer-se de práticas até então entendidas como as ‘corretas’,

abertura a mundos diferentes, mudança de lugar social, ‘refundação’ de muitos institutos,

releitura das regras e/ou constituições. De modo que essa vida religiosa, sem deixar de

sê-lo, muda a roupagem e se “embrenha” nas novas veredas da história, como uma ponta

de lança, que vai abrindo passagens ao novo que chega.

O papa convida os religiosos ao ano da Vida Consagrada com três escritos:

Alegrai-vos, Perscrutai e Às pessoas consagradas. Pontuamos alguns aspectos de cada

um deles:

Alegrai-vos: A palavra é na verdade um verbo, que dependendo de como

se lê teremos um caminho a percorrer. A exclamação no final daria uma

conotação de convite, de ânimo. A interrogação, certamente nos

questionaria: alegrar-se com quê? Para quê? Porém se a lermos com um

ponto final, ela pode ser um imperativo carregado de sentido e de vida.

Logo em seguida ele lança as expressões exultai, regozijai-vos. É palavra

de ânimo, encorajamento.

Perscrutai: Outro verbo provocativo. Estar atentos aos ‘sinais dos

tempos’, a escuta de Deus em tempos tão confusos. Em êxodo obediente e

na esperança continua do advento, como uma vigília vigilante. No meio

da orquestra escutar o instrumento principal. Perceber nas realidades,

aparentemente mais duras e sem sentido, os sinais d reino. E indica como

norte de compreensão a “ventania” provocada pelo Espírito do Concílio

Vaticano II.

Às pessoas Consagradas: Os objetivos são diretos: olhar com gratidão o

passado, viver com paixão o presente e abraçar com esperança o futuro. A

expectativa é de que onde estão os religiosos, aí está a alegria, pois estes

são chamados a mostrar que Deus é capaz de preencher seu corações. Daí

a alegria. Os religiosos são convocados a serem peritos em comunhão, a

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promoverem a vida, a desempenhar seu profetismo em meio a tantas

injustiças. E brota o apelo: espero que desperteis o mundo, por que a nota

característica da VR é a profecia.

3. A Vida Consagrada desafiada em um mundo plural, porém, prenhe de

possibilidades.

O tempo que chamamos hoje é quase indizível. São tantas palavras ou frases que

querem definir ou pelo menos dizer algo sobre a realidade que vivemos que as vezes cria-

se mais confusão que pistas para entender a realidade. Alguns falam de tempos líquidos,

era do vazio, pós-modernidade, modernidade tardia, fragmentação da modernidade, e de

maneira mais geral contrapondo os paradigmas anteriores – cosmocentrísmo,

teocentrismo, antropocentrismo - a quem fale em paradigma da complexidade.

O período moderno com o advento de uma razão que se propõe absoluta, entra em

crise. Crise na política, na economia, nas religiões, etc, e o ‘projeto’ de modernidade

parece obsoleto, contudo a quem aponte que o que há de fato são novas perguntas que

carecem respostas novas, pois o ‘paradigma da modernidade’ ainda não foi superado

(BRIGHENTI, 2015, p. 24).

Nesse contexto em ebulição, temos a compreensão de um mundo cada vez mais

plural. Que por um lado nos parece algo muito positivo, pois é o mundo das

possibilidades, e com isso não se está travado, mas cada espaço, cada dia se apresenta

como uma folha de papel onde se pode escrever a história de vários ângulos, e por

caminhos diversos. Por outro lado, passa-nos a ideia de fragmentação, liquidez. Nada

parece oferecer certeza. Verdades que se pretendiam absolutas, são relativizadas em nome

dos mais diversos argumentos. ‘As vezes chega-se a passar a imagem de que tudo pode e

nada pode’. Tudo “é” e nada “é”.

Outro aspecto que trazemos é que enquanto sociedade, Igreja, VC, estamos diante

de uma dinâmica de busca da identidade e de reconhecimento da alteridade, que, ao invés

de nos assustar, deve nos interpelar, desafiar a, em meio a essa ‘tempestade’ de situações

e propostas encontrar pistas para uma vivência fraterna, mais ética, mas tolerante, mas

fraterna. Como VC cabe-nos o discernimento, pois, na transitoriedade das realidades

humanas, onde, como e quando Deus se deixa experimentar em nosso dia-a-dia

(LIBANIO, 1994, p. 86).

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Em meio a essa ‘tempestade’ encontra-se a VC no seio da Igreja, servindo e

testemunhando o Reino de Deus no mundo. Também ela é desafiada, seja por sua natureza

mesma, pois que nasce e renasce ao longo da história em momentos singulares e para dar

respostas às realidades mais diversas, seja pelas exigências do momento atual.

Pontuamos a seguir alguns desafios ou fronteiras que se colocam ante a VC, e

também sinais de que ela se refaz nos contextos mais diversos.

O primeiro é o universo urbano. Este, aqui entendido como conceito cultural e não

meramente geográfico. A cultura do século XXI, majoritariamente urbana, penetra em

todos os espaços da vida humana, direta ou indiretamente. Essa cultura urbana traz como

características a transitoriedade, o novo, a moda, o espetáculo, a multidão e

paradoxalmente o solitário. Claro que a atitude da VC ante tal realidade, não pode ser a

de diluir-se nesta realidade, nem tampouco negá-la, mas antes buscar aí pistas,

possibilidades de diálogo. Buscar pontos convergentes.

Nesta mesma linha de compreensão, temos o segundo elemento que são os povos

em movimento. Óbvio que os seres humanos são seres de movimento, pois, desde os

povos primitivos que eram nômades, aos que buscam viver em lugares onde a vida lhes

parece mais afável, as pessoas movem-se seja em busca de viver ou de sobreviver.

Contudo em nossa realidade há uma movimentação muito maior, seja pelas facilidades

nos meios de transporte, seja pelas formas de trabalho, seja pelo clima de inquietação que

se vive hoje. Este dado não pode ser visto como algo mal de um todo, mas, deve nos

instigar a perceber aí a possibilidade de uma VC que se coloca a serviço de transeuntes,

que na maioria das vezes, na busca por viver e sobreviver, buscam também sentido para

suas vidas. Alimentam na sua transitoriedade a fé em Deus, e descobrem novas maneiras

de vivê-la.

Em meio a esse ‘vai e vem’ percebem-se os choques entre compreensões até então

muito válidas e situações novas – com perguntas novas – que tomam de assalto o homem

e a mulher da atualidade. Percebemos assim que, realidades como a família e a juventude

parecem se redesenharem ante nossos olhos, e ainda levantam problemáticas até então

conciliáveis. Pais que tem que trabalhar para dar uma vida ‘digna’ aos filhos, e com isso

gerando a ausência na formação destes. Filhos – crianças e jovens – com o tempo tão

cheio de atividades que mal sobra tempo para a convivência familiar. A ‘desestruturação

familiar’, seja pelas separações matrimoniais, seja pela crise ética e moral pela qual passa

a sociedade como um todo. A vida religiosa na sua missão de apostolado vê-se desafiada

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160

a acompanhar esses processos de mudanças familiares e juvenis, até mesmo por que os

que buscam a VC vêm dessa realidade.

Outro aspecto que provoca, não só a VC, mas a Igreja e claro toda a sociedade, é

o da ecologia. Aqui entendida como a perca de um equilíbrio das forças da natureza com

a humanidade. Do ponto de vista cristão, o cuidado com a criação é um elemento chave

da auto compreensão do humano que tem uma missão neste mundo. Cuidar da criação de

Deus. E no tocante a VC, a de se questionar a dimensão solidária do voto de pobreza, para

com o cuidado da criação, especialmente no tocante a vida e projetos que muitos

religiosos buscam implementar.

Dois aspectos ainda, que interpelam à VC são a metodologia e linguagem na

evangelização. Como já pontuamos, as mudanças na sociedade têm sido cada vez mais

frequentes, e com isso a missão da Igreja e da VC, vê-se provocada a se ‘reinventar’, não

que deva deixar de anunciar Jesus e seu Reino, mas deve buscar meios eficazes que

proponham a boa nova de Jesus em linguagem condizente com os tempos atuais. Os

métodos de evangelização necessitam serem repensados, pois, passamos de uma

sociedade rural, a uma sociedade urbana, não só geograficamente, mas também

culturalmente.

Nessa compreensão da necessidade de mudanças, percebemos, por exemplo, a

grande influência que exercem hoje os meios de comunicação, em todas as instâncias da

vida humana. Não seria exagero dizer que já vivemos na era digital. E claro, também aí

há de se evangelizar, pois que é um espaço rico de possibilidades, e que provoca à VC a

inserir-se nesse meio e aí ser sinal. Um exemplo, o uso da palavra comunidade, que no

contexto de VC tem um sentido bem significativo, hoje é utilizada nas redes sociais de

modo virtual às vezes sem muito comprometimento. A VC é interpelada a ser sinal em

meio a nova mídia até mesmo por que esta hoje infelizmente encontra-se

instrumentalizada de forma a não contribuir para a formação integral da pessoa humana,

e mais ainda há uma ‘espetacularização da fé’, esta transformada em ‘comércio sagrado’.

Como aspectos mais ad intra VC em meio a esta realidade complexa, destacamos

três elementos apontados pela Ir Annette Havenne (2015, p. 352) como sinais de uma VC

que, apesar de está “mudando” a roupagem dá sinais de vitalidade: a missão, a

fraternidade e a espiritualidade.

Transcrevemos o texto quase literalmente, pois este foi fruto da escuta de

religiosos jovens, e somos de acordo que este não é abstração reflexiva de nossa parte

mais, relatos de experiências de quem vive a VC nos mais diferentes espaços.

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No tocante a missão, os jovens apontaram que ir aos mais distantes e esquecidos,

ver seus rostos transfigurados ao final de cada encontro, sentir a confiança das pessoas,

visitar suas casas, escutar, ‘perder tempo com pessoas humildes’, ser presença que faz

diferença, evangelizar (HAVENNE, 2015, p 352) são sinais da vitalidade da VC. Ela vai

deixando de ser importante pelas estruturas que tem e passa a fazer a diferença por aquilo

que se é, que se vive.

Referente a fraternidade, aqui com um corte ainda mais interno, pois que refere-

se a vivencia e convivência dos religiosos entre si, o jovens, apontam: a comunidade

religiosa com sua dinâmica interna – oração, refeição, partilha de vida em comum -, as

relações dessa comunidade com o povo, a CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil)

com as experiências de intercongregacionalidade [...]. Mesmo em meio as dificuldades,

aos conflitos, as crises pessoais, a uma doação em prol do mesmo objetivo, há ânimo

diante das adversidades (HAVENNE, 2015, p. 352).

A espiritualidade como força que move e alimenta os religiosos em sua

caminhada, é assinalado pelos jovens religiosos nos seguintes aspectos: a experiência da

oração, permanecer com Jesus, acolher e viver sua Palavra, a Eucaristia, o sentido e o

desejo de doar a vida, a afinidade com o carisma, são elementos que perfazem o dia-a-dia

de uma VR que se atualiza nos tempos atuais sem perder o elã fundacional (HAVENNE,

2015, p. 353).

CONCLUSÃO

Buscando arrematar o que refletimos até aqui, sem com isso concluir a reflexão,

sinalizamos que o momento presente é um convite a olhar as nossas realidades de VR,

fazer uma leitura crítica e entusiasmada das realidades que nos cercam, e buscar com

esperança, caminhos de renovação e atualização desta realidade eclesial.

O Evangelho e as primeiras comunidades de VR são modelos normativos que

devem ser luz para uma releitura profunda e fecunda de nossas intuições fundacionais. A

celebração dos cinquenta anos do Concilio é um convite à releitura de Perfectae Caritatis,

como uma provocação a olhar para Cristo e para humanidade com paixão.

O Ano da VC é momento de celebrar a caminhada até aqui traçada, mas também

a possibilidade de redesenhar e resignificar projetos e sonhos. É tempo de escuta atenta e

decisão no Espírito para uma vida apaixonada por Jesus.

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Uma VR marcada pelas realidades mais diversas, porém com um objetivo claro,

vai buscando ser sinal nas mais diversas realidades, como já pontuamos anteriormente. A

crise torna-se momento de avaliação, de repensar as estruturas e as atividades que se tem

por objetivo, frente às necessidades do Reino.

Sugerimos assim uma releitura das parábolas do reino, isto é, buscar aí sinais de

vida e de esperança, pois estas são imagens de transformação que primam pela vitalidade.

Essas parábolas movem-se não na lógica do fracasso ou do sucesso, pois que são sempre

relativos, mas na lógica do dar frutos. Daí temos as parábolas do tesouro Mt 13, 44; da

ovelha perdida Lc 15, 6; da moeda perdida Lc 15, 9; do parto Jo 16, 21; do Pai amoroso

Lc 15, 32; do servo fiel Mt 24, 46; da videira Jo 15, 5. 11. Todas elas têm em comum a

alegria. De que o convite permanece: Alegrai-vos, pois onde estão os religiosos aí está a

alegria (Papa Francisco).

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2002.

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