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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
MESTRADO EM TEOLOGIA
CURSO DE BACHARELADO EM TEOLOGIA
ANAIS DO SIMPÓSIO DE TEOLOGIA DA UNICAP- 2015
A Teologia na Contemporaneidade
Agenda para uma Igreja em saída
ISSN 2238-894X
2015
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Equipe de coordenação do evento:
Profa. Dra. Maria Abraão (Coordenadora)
Prof. Dr. Drance Elias da Silva
Prof. Dr. Sergio Sezino Douets Vasconcelos
ISSN 2238-894X
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SIMPÓSIO DE TEOLOGIA DA UNICAP- 2015
A Teologia na Contemporaneidade
Agenda para uma Igreja em saída
Apresentação
Aconteceu nos dias 21 e 22 de maio de 2015, o Simpósio de Teologia da
UNICAP, que teve por tema: “A Teologia na Contemporaneidade: agenda para uma
Igreja em saída”. O referido Simpósio teve como perspectiva fundamental, fazer um
aprofundamento acerca da herança recebida daquilo que foi considerado a “primavera
da Igreja”: o Concílio Vaticano II.
A eleição e o pontificado do Papa Francisco estiveram subjacentes a todo estudo
desenvolvido, pois, o jeito de como vem conduzindo e apresentando a Igreja ao mundo,
sugeriu a todos os que estiveram envolvidos com o Simpósio, parar e pensar sobre o
panorama eclesiológico que vem sendo construído bem como perceber os caminhos
que se vislumbram, e que parecem interpelar a Igreja a entrar decididamente num
movimento de “saída”.
Assim, a Semana de Teologia 2015 pretendeu elucidar e suscitar questões ao
“labor teológico”, exercício sempre inacabado. Para alcançar tal meta, foram oferecidas
sessões de comunicações, conferências, além de apresentação cultural. A seguir,
teremos a oportunidade de conferir, através da leitura, a produção científica
desenvolvida por todos àqueles que se colocaram diante da árdua missão intelectual de
refletir, apresentando as suas comunicações científicas ao longo do evento. Os
auspícios de um tempo, se bem interpretados, apontam para caminhos que firmam o
desejo de Deus de continuar vendo sua criação como boa.
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UNIVERSJDADE CATOLICA DE PERNAMBUCO
CENTRO DE TEOLOGIA E CIENCIAS HUMANAS
BACHARELADO EM TEOLOGIA
SIMPÓSIO DE TEOLOGIA 2015
A TEOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: AGENDA PARA UMA IGREJA EM
SAIDA
COMUNICAÇÕES
Dia 21 - quinta-feira, a partir das 14h - Bloco G - SALA 204
Coord. Prof. Sergio Grigoleto (Por ordem de apresentação)
1. DESCENTRALIZAÇÃO ECLESIAL: DOS NOVOS PARADIGMAS À
ABERTURA CATOLICA
(Romário José da Silva).
2. VIDA CONSAGRADA E NOVAS FRONTEIRAS: DESAFLOS A FRENTE
(Tiago Santos).
3. PRESSUPOSTOS FILOSOFICOS E ITINERÁRIO TEOLÓGICO PARA UMA
COSMOVISÃO ATUAL: CRISE E BUSCA DE SENTIDO PARA UMA IGREJA
EM SAÍDA
(Aerton Alexander de Carvalho Silva).
4. BIOETICA E IGREJA: UM OLHAR CONJUNTO ACERCA DA
FRAGMENTAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA NA CONTEMPORANEIDADE
FRENTE À UITILIZAÇÃO DAS CELULAS-TRONCO –
(Marcos Antonio de Arruda Moura).
5. A IGREJA CATOLICA NO CINEMA
(George José Rodrigues de Melo).
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UNIVERSIDADE CATOLICA DE PERNAMBUCO
CENTRO. DE TEOLOGIA E CIENCIAS HUMANAS
BACHARELADO EM TEOLOGIA
SIMPOSIO DE TEOLOGIA 2015
A TEOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: AGENDA PARA UMA IGREJA EM
SAÍDA
COMUNICACOES
Dia 21 - Quinta-feira a partir das 14h - Bloco G - -SALA G-205
Coord. Prof. Luiz Alencar Libório (Por ordem de apresentação)
1. 0 PAPEL DA RELIGIÃO PARA A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DA VIDA: UM
ESTUDO DE CASO.
(Jussara Rocha Kouryh; Sérgio S. D. Vasconcelos). 2. RELIGIOSIDADE E PSICOLOGIA: INTERFACES PARA UMA
ESPIRITUALIDADE CONTEMPORANEA SAUDAVEL.
(David Márcio Santos Bezerra; Severino Ramos Lima de Souza; Luiz Alencar Libório).
3. PSICOLOGIA DIFERENCIAL: COMPLEXO DE EDIPO, ARRANJOS
FAMILIARES E SUBJETIVIDADES AFROBRASILEIRAS A PARTIR DA IDENTIDADE
SOCIORRELIGIOSA AFRICANA.
(Claudia Lima; Luiz Alencar Libório)
4. COEXISTENCIA E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO: UMA PROPOSTA PARA
CONVIVENCIA PACFICA ENTRE RELIGIOSOS E NAO RELIGIOSOS NUMA
ESCOLA PÚBLICA DA REGIAO METROPOLITANA DO RECIFE
(Carlos Alberto Pinheiro Vieira)
5. A METODOLOGIA E A DIDÁTICA NAS ESCOLAS PÚBLICAS E COLÉGIOS
RELIGIOSOS EM PERNAMBUCO EM 1940.
(Luiz Henrique Rodrigues Paiva).
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CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS
BACHARELADO EM TEOLOGIA
SIMPÓSIO DE TEOLOGIA 2015
A TEOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: AGENDA PARA UMA IGREJA EM
SAÍDA
COMUNICAÇÕES
Dia 21 - Quinta-feira a partir das 14h - Sala G-206
Coord. Prof. Sergio Sezino Douets Vasconcelos (Por ordem de apresentação)
1. A REVELAÇÃO DE DEUS E A DIFERENCIAÇÃO DE REVELAÇÃO
NATURAL, ESPECIAL E INDIVIDUAL
(Marcelo Leonardo Ximenes).
2. A ATUALIDADE DA PERSPECTIVA TEOLÓGICA DE JOÃO DIAS DE
ARAUJO: UMA POSTURA A FRENTE DO SEU TEMPO
(Márcio Ananias Ferreira Vilela; José Roberto de Souza).
3. UMA TEOLOGIA DO CAMINHO COMO REVELADORA DO ROSTO DO DEUS
DOS POBRES
(Artur Peregrino).
4. A PRODUÇÃO DOS NOVOS ESPAÇOS URBANOS: DESAFIOS PARA A
TEOLOGIA PASTORAL.
(Bartolomeu Felix).
5. TEOLOGIA DA JUREMA: CONCEITO E EPISTEMOLOGIA
(Alexandre Alberto Santos de Oliveira; Sergio Sezino Douets Vasconcelos).
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CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS
BACHARELADO EM TEOLOGIA
SIMPÓSIO DE TEOLOGIA 2015
A TEOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: AGENDA PARA UMA IGREJA EM
SAÍDA
COMUNICAÇÕES
Dia 21 - Quinta-feira a partir das 14h - Sala G-207
Coord. Prof. João Luiz Correia Júnior (Por ordem de apresentação)
1. FAZENDO JUS AO NOME: ASPECTOS CULTURAIS E LINGUÍSTICOS DO
FILHO DO HOMEM EM JESUS CRISTO.
(Edivaldo Ferreira de Arruda).
2. A PRAXIS DE JESUS: PRESSUPOSTOS BÍBLICO-TEOLOGICOS A PARTIR
DO DIÁLOGO DE JESUS COM O JOVEM RICO EM Mt 19,16-22.
(Eltom de Sousa Melo; João Luiz Correia Júnior)
3. "A CENTRALIDADE DO REINO NA EVANGELII GAUDIUM"
(Charles de Araújo; Degislando Nóbrega de Lima).
4. COMO FAZER COM QUE OS TEXTOS BÍBLICOS DIALOGUEM, MESMO
QUE ELES PAREÇAM TÃO DISPARES?
(João de Sousa Brito)
5. DO ROUBO DAS PERAS A BISPO DE HIPONA: O PRETEXTO DA FE NA
CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEXTO AGOSTINIANO
(Pompeia Rosalia Sena Maltese).
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CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS
BACHARELADO EM TEOLOGIA
SIMPÓSIO DE TEOLOGIA 2015
A TEOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE: AGENDA PARA UMA IGREJA EM
SAÍDA
COMUNICACOES
Dia 21 - Quinta-feira a partir das 14h - Sala G-208
Coord. Prof. Claudio Vianney Malzoni - (Por ordem de apresentação)
1. A IGREJA E A INTERNET
(Davi Daniel Barbosa)
2. AS IMAGENS SACRAS: REFLEXOS DE UM PATRIMÔNIO NUNCA
ESQUECIDO.
(Iron Mendes de Araújo Junior; Sergio Sezino Douets Vasconcelos).
3. A ESPIRITUALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE
(Adriana Barata dos Santos Figueira)
4. O LUGAR DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NA TEOLOGIA DE JOSÉ COMBLIN
(Jorge Roberto de Araújo Aguiar).
5. PASTORAL URBANA: ONTEM E HOJE CRITÉRIO HERMNEÊUTICO DO
MOVIMENTO DE MOISÉS RUMO À URBANIZAÇÃO EM CANAÃ
(Jário Carlos Silva Júnior)
6. NEM JUDEU, NEM SAMARITANO
(Maelite Araujo)
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TEXTOS COMPLETOS
(Por ordem alfabética)
PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS E ITINERÁRIOS TEOLÓGICOS PARA UMA
COSMOVISÃO ATUAL: CRISE E BUSCA DE SENTIDO
Ms. Aerton A. de Carvalho Silva1
Introdução:
A busca pelo princípio fundamental de todas as coisas por parte de pensadores como
Tales de Mileto e os que vieram depois possibilitou o surgimento da filosofia. A forma de
enxergar o mundo mudou significativamente. Então se fez o processo do pensamento mítico à
chamada razão filosófica. Passa-se pelo cosmocentrismo grego, pelo teocentrismo medieval até
chegar à conceituação de uma razão autônoma que apreende o mundo, ao que chamamos
antropocentrismo.
A Chamada Pós-Modernidade tem forjado uma nova maneira de interpretar o mundo
numa tentativa de harmonização do velho com um novo, da revisitação. Ao mesmo tempo em que
se rechaça a visão mecanicista e cientificista, vemos uma aura de sacralização e sacralização do
mundo concomitantemente.
A Teologia cristã apresenta itinerários que possibilitam uma aproximação à
concepção de Deus nessa cosmologia atual em relação ao pensamento teológico clássico, diante
de todo esse novo quadro pós-moderno de crise e de busca de sentido que desafia e desinstala fé
cristã e a impele a compreender seu lugar e sentido na história atual.
A Igreja Católica, no seu magistério tem buscado responder às questões acima
colocadas num diálogo profícuo entre ciência e fé e, mais recentemente, segundo as palavras do
1 Doutorando e Mestre em Ciências da Religião, licenciado em Filosofia pela Unicap. Cursou Teologia no
IFTO. Professor do Colégio e da Faculdade Damas, onde é membro do CONEP.
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Papa Francisco, saindo de seu castelo teológico para tocar o mundo nas suas mais variadas
dimensões.
Esse trabalho tem como objetivo debruçar-se sobre as questões acima lançando um
olhar atual sobre a interpretação do mundo e suas implicações na ação pastoral da Igreja e na vida
concreta dos cristãos.
I. Cosmovisão filosófica clássica
A filosofia grega deu um grande contributo para a civilização humana quando
ofereceu pistas de conhecimento que alavancaram o entendimento e a sua localização perante o
cosmos.
Primeiro os pensadores, como Tales de Mileto (640 aC. – 545 aC.), Pitágoras (570
aC. – 497 aC.) e os demais pré-socráticos, buscavam o princípio fundamental de todas as coisas;
estes encontravam nos elementos naturais ou nos mitos a resposta para suas dúvidas existenciais.
Vivencia-se, nesse período grego, o cosmocentrismo. Sócrates (470 aC. – 399 aC.) dá um salto
qualitativo quando desloca a reflexão que girava em torno da natureza e coloca no centro da
questão o próprio homem. Para Sócrates, o homem precisa conhecer a si mesmo para depois
conhecer as coisas (REALE, 1993, p.28, 257-259).
Dois outros pensadores são de fundamental importância nesse processo: Platão (428
a.C. – 348 a.C.) e Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.). O primeiro com o conceito do mundo das
ideias, imaterial, eterno e imutável, totalmente separado do mundo sensível, a que temos acesso
por meio da razão. As ideias, para Platão, são realidades existentes em si mesmas, independentes
do pensamento e das coisas materiais que são meras aparências que sempre se transformam e não
permitem que o homem chegue a lugar algum. O segundo, afirmava a possibilidade de conhecer
o mundo por meio da experiência sensorial com o auxílio da razão o que possibilitaria o conhecer
a verdade das coisas. Conceitos como substância (características fundamentais) e acidente (ex. no
homem: cor, altura), potência e ato, possibilitam a Aristóteles refletir sobre a condição de
movimento das coisas e de passagem de uma condição à outra, pois o ato seria a realização de
uma potência (CHALITA, 2004, p. 52-71).
Os pensamentos platônico e aristotélico se tornaram importantes para o Ocidente
quando a Igreja baseou sua teologia e concepção de mundo a partir dessas ideias. Os
representantes imediatos, responsáveis por tal releitura, foram Santo Agostinho (354 – 430) e São
Tomás de Aquino (1225 – 1274), que reproduziram teologicamente essa cosmovisão. Como
sabemos, as ideias desses dois expoentes e suas maneiras de interpretar o mundo predominam e
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perduram durante toda a Idade Média, e de certa maneira, ainda têm forte influência na construção
do pensamento e da cultura ocidental até nossos dias. (ARANHA, 2003, p.171). É patente nessa
época a visão teocêntrica que perpassa toda a esfera da vida ocidental.
II. Entre a cosmovisão da idade média e da idade moderna
Após o período medieval, a filosofia recuperou o conceito de razão, numa exaltação
à supremacia da apreensão do mundo. É próprio de muitos pensadores modernos expressarem
uma atitude antirreligiosa, pois, segundo eles, um pensamento transcendental seria incompatível
com a ciência. Há uma destruição do princípio de autoridade formado pela Bíblia, pela Igreja e
por filósofos que erigiam dogmas. Trata-se de uma filosofia “profana” e crítica, baseando-se em
paradigmas da racionalidade, da natureza e da experiência (CHAUÍ, 2003, p.60-86).
Descartes, que é considerado o pai dessa filosofia moderna, na busca pela verdade,
converte a dúvida em método. Com o seu “cogito, ergo sum”, fundamenta sua filosofia
apresentando o “eu” como puro pensamento que questiona e coloca em xeque a realidade do
corpo. Há uma auto-evidência do sujeito pensante e acentua-se o caráter absoluto e universal da
razão.
Em sua tentativa de construir uma ciência natural completa, Descartes
estendeu sua concepção mecanicista da matéria aos organismos vivos.
Plantas e animais passaram a ser considerados simples máquinas; os
seres humanos eram habitados por uma alma racional que estava ligada
ao corpo através da glândula pineal, no centro do cérebro (CAPRA,
1982, p. 56).
Coloca-se em xeque, neste caso, a atitude filosófica que afirma e duvida da
capacidade da razão humana para conhecer a realidade exterior e o homem. Ao mesmo tempo,
tudo o que está fora da razão humana passa a fazer parte de uma subcategoria, a categoria das
coisas. Como senhor de suas atitudes e opções, o sujeito torna-se livre para escolher ou rejeitar o
absoluto. Essa visão gera um descentramento do entendimento de mundo, esfacelando toda
tentativa de unificar a cosmovisão que até então vigorava sob os cânones da igreja.
Percebemos, então, na modernidade, o surgimento da razão autônoma, o
antropocentrismo. Na verdade, há uma secularização das esferas de valor, onde o indivíduo passa
a ser o centro e a dominar dimensões até então pré-determinadas pelas instituições, como é o caso
da religião e da religiosidade. O sujeito passa a ser autor e ator de seu caminho, pois “o
conhecimento sobre a natureza e sobre o próprio ser humano, a compreensão do mundo ‘escapou’,
aos poucos, do controle do religioso” (BARRERO, 2003, p. 441), dando espaço cada vez mais ao
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sujeito secularizado nos diversos âmbitos da vida pós-moderna, especialmente em relação ao
sagrado.
Enquanto o pensamento medieval é predominantemente teocêntrico
(centrado na figura de Deus), o indivíduo moderno coloca a si próprio no
centro dos interesses e decisões. Ao prevalecimento da explicação
religiosa do mundo, é contraposta a laicização do saber, da moral, da
política, que é estimulada pela capacidade de livre exame. Da mesma
forma que em ciência se aprende a ver com os próprios olhos, até na
religião os adeptos da reforma defendem o acesso direto ao texto bíblico,
dando a cada um direito de interpretá-lo (ARANHA, 2003, p. 178).
A Idade Média, herdeira da teologia cristã, com sua cosmovisão de que Deus é
princípio e fim da história e que o centro de todo fazer e ser humano, estão intrinsecamente
envolvidos pelas possibilidades de bem e de mal, interpretou o mundo e as coisas a partir do
dualismo. Falar de um Deus que governa e rege todas as coisas gerava um conforto espiritual e
criava um clima no qual se recebia da igreja a racionalização de todas as esferas da existência
humana.
Segundo Peter Berger e Thomas Luckmann, como é próprio de toda sociedade, em
toda história, a estrutura de valores que sempre foi repassada de pai para filho possibilitou uma
religião única e que envolvesse tudo e todos. Com essa visão, a Idade Média europeia tentou
“trazer todas as pessoas para dentro de um espaço de poder e mantê-las dentro de um único,
comum e supra-ordenado sistema de sentido” (BERGER, LUCKAMNN, 2004, p. 41).
A Modernidade busca romper com essa ideia de uma divindade que governa absoluta
e poderosamente as coisas. Os modernos, representados por Descartes, criaram um subjetivismo
idealista e racional; rejeitaram certezas religiosas e prontas, trilhando o caminho da dúvida, na
ânsia de compreender o mundo; desejaram conhecer clara e distintamente por meio de um
método; em sua concepção, acreditaram que os sentidos podem enganar todo conhecimento
intelectivo ou sensível. Descartes propôs, por conseguinte, a existência de três substâncias: a
substância pensante (a alma), definida pelo atributo do pensamento; a substância extensa (a
matéria dos corpos), definida pelo atributo da extensão; a substância infinita (Deus), definida pelo
atributo da finitude (CHAUÍ, 2003, p. 196).
Alguns pensadores buscaram contrapor o racionalismo apresentando o empirismo,
cuja etimologia vem do grego “emperia”, e significa experiência, enfatizando o papel da
experiência sensível no processo do conhecimento. Trilharam o caminho da ciência instrumental
que domina a natureza, o caminho psicológico da sensação e da reflexão, levando à conclusão de
que o trabalho da razão é subordinado à experiência (ARANHA, 2003, p. 130-136).
Kant buscou duvidar e criticar o próprio pensamento humano ousando um “despertar
do sono dogmático” (Idem, p.135). Posteriormente, o discurso da racionalidade, baseado nas
ciências da natureza e mais à frente no idealismo alemão, desejou uma universalidade a partir de
seu pensamento. Perpassando o racionalismo e o empirismo, o materialismo e o niilismo, bem
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como outras teorias que buscaram interpretar o mundo pelo conhecimento, há ainda uma busca
por pressupostos teóricos e metodológicos para as questões existenciais.
Se antes, na Idade Média, ou bem anteriormente, na Idade Antiga, o saber tinha a
característica contemplativa, na Modernidade, o saber é ativo, e, por conseguinte o indivíduo é
capaz, subjetivamente, de dizer e optar pela fé que lhe convém, ou mesmo de rejeitar a fé e a
divindade. Há uma concepção mais individualista do sujeito, que se entende soberano e senhor
da subjetividade na qual se encontra isolado.
III. Cosmovisão pós-moderna e a crise de sentido
A ideia da existência de uma Pós-Modernidade que tem sido bastante difundida nas
mais diversas áreas da ciência e da cultura em geral, com toda a sua característica de abertura,
diálogo e quebra de paradigmas, forjou uma nova maneira de interpretar o mundo. Não é nosso
objeto de pesquisa, no presente trabalho, a questão da existência efetiva e determinada da Pós-
Modernidade. Levamos em consideração a perspectiva apresentada por J.F. Lyotard, quando
lança mão de uma reflexão partindo do pressuposto de que o período em que vivemos é fruto de
uma evolução da era pré-moderna, com suas narrações míticas e religiosas, passando pela
Modernidade, marcada pela racionalidade das ciências da natureza, e desembocando no período
atual, Pós-Moderno, que “se caracteriza exatamente pela incredulidade perante o metadiscurso
filosófico-metafísico, com suas pretensões atemporais e universalizantes” (LYOTARD, 1986, p.
08). Seguindo esse pensamento, Manfredo Oliveira completa: a Pós-Modernidade, cuja
“característica básica consiste precisamente numa ruptura radical com a forma de pensar, com
toda pretensão de articulação do sentido do todo, com ideias de sistema fechado [...], um processo
de libertação do uno, do imutável e do eterno para a diferença, para a pluralidade, para a mudança,
para o contingente e para a história” (OLIVEIRA, 2003, p. 21-25).
A Pós-Modernidade gera uma nova crise de paradigmas. Para alguns, as teorias
Modernas vão lentamente sendo refutadas ou simplesmente relegadas numa atmosfera de perene
mudança. Diante desse quadro, entre tantas maneiras de explicar o mundo, as instituições de
ensino confessionais, especialmente, católicas se vêem diante de uma nova alternativa de
interpretação da existência, do cosmos, do sagrado e do próprio homem a partir da ideia do
holismo, da totalidade. Nessa concepção, o indivíduo, livre de toda e qualquer influência
econômica, social, política, histórica, religiosa etc., entende-se com pleno potencial para emergir
do seu estado de mera latência atualizando sua potencialidade. Libertando-se das condições
humanas aprisionadoras e cultivando-se interiormente, o indivíduo ruma em direção ao auto
aprimoramento.
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Na visão do físico e pensador austríaco Fritjof Capra, a modernidade viveu um
paradigma “mecânico-cartesiano” ou “cartesiano-newtoniano”; a cultura ocidental esteve ligada
à revolução industrial e à revolução científica, tendo as ciências naturais como centro do
pensamento e uma certeza de que o progresso material seria inevitável (CAPRA, 1982, p.49-69).
É o próprio Capra quem diz:
Na Física moderna, a imagem do Universo como uma máquina foi
transcendida por uma visão dele como um todo dinâmico e indivisível,
cujas partes estão essencialmente inter-relacionadas e só podem ser
entendidas como modelos de um processo cósmico. No nível
subatômico, as inter-relações e interações entre as partes e o todo são
mais fundamentais do que as próprias partes. Há movimento, mas não
existem, em última análise, objetos moventes; há atividade, mas não
existem atores; não há dançarinos, somente a dança” (Idem, p. 86).
Tudo no universo estaria ligado por redes de sistemas que passam pelo biológico,
pelo ecológico ou pelo econômico (BINDO, 2003).
Apoiada nessa e noutras afirmativas de Capra e tantos outros pensadores, cientistas,
religiosos e filósofos, uma nova onda encontra um vasto celeiro para fundamentar-se e defender
a possibilidade de uma unidade que, em sua percepção, se contrapõe à idéia de fragmentar o
mundo, desligando o sensível do supra-sensível, a matéria do espírito, o sagrado do profano, o
científico do religioso, como defendeu a modernidade de Newton e de Descartes. A possibilidade
é de interligação, interdependência e correlação entre mente e espírito (TAVARES, 1994, p. 56-
57).
É, também, uma contraposição às meta-narrativas religiosas que pretendem confinar
na instituição a manifestação do sagrado e, ao mesmo tempo, um certo aprisionamento aos antigos
sistemas e às antigas visões de mundo, às antigas tradições religiosas. Percebe-se, sim, essa
tentativa de harmonização do velho com um novo, da revisitação. Ao mesmo tempo em que se
rechaça a visão mecanicista e cientificista, vemos um arcabouço sendo forjado sob a égide da
psicologia, da física, da filosofia, da teologia e de tantos ramos da ciência. A visão de mundo
funda-se na verdade da junção de toda essa gama científica unida às tradições, por exemplo, como
afirma Stefano Martelli, há “um acento cada vez menor sobre as igrejas e as instituições religiosas,
e mais sobre a contribuição dada pela Religião, como sistema simbólico, para a estabilização das
concepções gerais que regulam as sociedades modernas” (MARTELLI, 1995, p. 461).
Apoiados nesses pressupostos filosóficos, cabe-nos propor itinerários que
possibilitem uma aproximação à concepção de Deus nessa cosmologia atual em relação ao
pensamento teológico clássico, diante de todo esse novo quadro pós-moderno.
IV. Itinerário teológico para uma cosmovisão atual
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As reflexões filosóficas e teológicas do século XX buscaram superar a ideia de
mundo alienante. Para isso a reflexão de Teilhard de Chardin busca harmonizar as ciências da
natureza sobre a evolução dos cosmos com as respostas teológico históricas. A partir da
concepção de evolução cósmica para um centro de convergência: Cristo. Para Chardin a
história da evolução cósmica é ao mesmo tempo história da cristificação desse cosmo.
O problema que mais vem à tona a partir dessa concepção é a tendência dualista
platônica tão marcada na vida da Igreja que faz sempre uma divisão entre a história do mundo
material do espiritual que leva alguns homens a projetar sua suas esperanças na vida espiritual,
enquanto outros nas esperanças utópicas do mundo imanente. Para superar essa dicotomia
entre fé e história natural, Chardin propõe a redescoberta de uma visão de mundo em processo
evolutivo que caminha para a sua plenificação em Deus.
Deus cria o mundo como processo evolutivo, como imã, atrai todas as
forças do universo e, no fim dos tempos recolhe este mundo e o introduz
na glória. Há unidade sem falhas no devir do mundo; a criação é
evolução, a evolução é nascimento do homem; o homem, no seu íntimo,
está aberto em direção ao divino; Deus aparece com Jesus Cristo na
história, Cristo dirige a humanidade, e com ela o universo, até a vida
eterna (BLANK, 1993. p. 48).
Criacionismo e Evolucionismo já não mais podem duelar, senão complementar
já que um pergunta o porquê?, o sentido último das coisas, enquanto o segundo busca
responder o como tudo passou a existir?. Esse tema já foi abordado pela teologia, amplamente
nos últimos anos desde as intervenções de Chardin, passando por João Paulo II, até
permanecer na teologia atual.
João Paulo II, diante da assembleia plenária da Pontifícia Academia de
Ciências. ´Lembrou que a Encíclica Humani Generis considera o
Evolucionismo como uma ´hipótese séria, digna de uma investigação e
de uma reflexão aprofundadas como a hipótese oposta. Hoje, novos
conhecimentos levam a reconhecer na teoria da evolução mais que uma
hipótese (TEPE, 2003 p. 54).
Nessa perspectiva o indivíduo que crê faz ao mesmo tempo uma experiência
intima e comunitária que o lança num mesmo grau de intensidade no seu crer em Deus e crer
no humano. O que significa dizer que a partir do mistério da encarnação há que a teologia
perceber que “ o que nos mete medo é afirmar com toda seriedade que em Jesus de Nazaré,
Deus se humanizou. E isso nos incute medo porque tal afirmação equivale à aceitação de que
em Jesus, Deus se fundiu e confundiu como humano” (CASTILLO, 2013, p. 109). Portanto,
se Deus fez parte desse húmus do planeta terra, se tocou as galáxias, e fez-nos enxergar a
poeira do cosmos impulsiona esse mesmo homem a construir o Reino no chão onde está
fincado.
E o Papa Francisco no discurso do dia 27 de outubro de 2014 na mesma Pontifícia
Academia de Ciência reafirmou:
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Ele criou os seres e deixou que se desenvolvessem segundo as leis
internas que Ele mesmo inscreveu em cada um, para que progredissem e
chegassem à própria plenitude. E deu a autonomia aos seres do universo,
assegurando ao mesmo tempo a sua presença contínua, ... Deus não é um
demiurgo nem um mago, mas o Criador que dá a existência a todos os
seres. O início do mundo não é obra do caos, que deve a sua origem a
outrem, mas deriva diretamente de um Princípio supremo que cria por
amor. A evolução na natureza não se opõe à noção de Criação, porque a
evolução pressupõe a criação dos seres que evoluem (PAPA
FRANCISCO, 2014)
Essa natureza humana, aberta ao infinito, nesse homem está o desejo do mundo
que Deus atrai para si. Num impulso dinâmico o mundo é atraído amorosamente por Deus e
para Deus. O termo Cosmovisão vem da junção de cosmo + visão, a visão que se tem do
mundo ou a mundividência. Assim concepção de fé, de vida, de morte, do próprio papel no
mundo vão delineando a cosmovisão dos indivíduos que compõem a Igreja. Dependendo da
forma como encara a morte, o limite e a finitude os homens e mulheres vão enxergar o mundo.
Por isso, Blank (1993), propõe percebermos a ação histórica de Deus, naquele termo
teológico clássico de “ler os sinais dos tempos” como a ação e presença de Deus que sacraliza
esse mundo e o lança na virtude teologal da esperança que no hoje da história, no mundo social
já denota a sua presença amorosa e santificante.
Hoje vemos numa nova primavera eclesial o olhar do Papa Francisco na Exortação
Apostólica Evangelii Gaudium questionar uma fé autocentrada, uma fuga do mundo aos moldes
medievais, uma cosmovisão baseada no teocentrismo ou no mecanicismo e propor uma Igreja em
saída para o mundo, lugar da concretização da ação sacralizadora e santificadora. Um cosmos
sagrado sendo levado à sua plenitude na ação de homens e mulheres com um olhar novo, um olhar
e uma ação em Deus, pois Deus não se aposentou ao criar um mundo, nele permanece como força
perene criadora que deseja carecer da ação humana para levar a termo o seu plano de amor. Afinal,
segundo as palavras do papa no número 215 do referido documento: “Deus uniu-nos tão
estreitamente ao mundo que nos rodeia” (EVANGELII, 215). E se assim o fez, esse mundo, em
todas as suas dimensões, não poderia ser mal, mas lugar privilegiado da plenificação da obra
iniciada por Ele mesmo.
Uma Igreja que enxerga no mundo a presença de Deus compreende que “pequenos
mas fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis, todos nós, cristãos, somos chamados
a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos.” (EVANGELII, 216) E arremata:
“Na nossa relação com o mundo, somos convidados a dar razão da nossa esperança, mas não
como inimigos que apontam o dedo e condenam” (EVANGELII, 271). Visto não sermos os juízes
do mundo, mas irmãos universais.
Considerações finais
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As questões existenciais humanas: de onde viemos? Para onde vamos? Como situar-nos
nessa imensidão cósmica? Quem somos?... tem reverberado desde que nos tornamos sapiens
sapiens. Diante dessas questões a Filosofia grega foi um significativo divisor que lançou a
humanidade a olhar os cosmos como lugar privilegiado para responder à sua angustiante e, ao
mesmo tempo fascinante procura, de como situar-se nesse planeta. Como mergulhar no mistério
de si mesmo e do cosmos.
A água, o fogo, o ápeiron, foram apresentados como princípio fundamental de todas as
coisas. Uma transposição qualitativa do mito à razão em suas diversas fases. Desde os pré-
socráticos, passando pelo próprio Sócrates, Platão e Aristóteles. Cada filósofo interpretou e
apresentou uma visão de mundo como alicerce pra situar-se no chão da história.
Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino teologizaram a filosofia e consequentemente
suas cosmovisões foram sacralizando esse mundo e abrindo trilhas para que a teologia medieval,
teocêntrica, pudesse ditar o ritmo da reflexão do ser no mundo.
Na encruzilhada da crise da modernidade vimos o arcabouço teológico de um planeta
regido pelo criador e governado pela Igreja desmoronar aos poucos. Na pós-modernidade emerge
a falta de sentido e uma crise sem precedente na história humana. Tecnologia, cibernética, espaço
virtual, aldeia global, desafios ecológicos, êxodos, genocídios, corrupção, e tantos outros fatores
suscitam uma grande interrogação a respeito do futuro.
A Teologia tem buscado responder às questões existenciais humanas a partir de uma
cosmovisão que destrona Deus das nuvens e o reconhece a partir dos “sinais dos tempos”
santificando e levando à consumação toda a história. Um cosmos gerado pelo amor e configurado
à imagem d´Ele mesmo. Santificado, o ecossistema, o planeta, as galáxias, o homem são vistos
como parte de um grande plano de amor onde a evolução e a criação se apresentam como formas
de interpretar o mesmo fenômeno e como tentativa de responder às questões últimas do homem.
É nessa dimensão que uma Igreja em saída vai se inserindo, compreendendo o seu papel
de ser fermento no mundo e sinal profético nos tempos hodiernos. Atualizando o mistério salvífico
numa perene alegria e esperança que o Evangelho confere aos que creem.
Referências
ARANHA, Maria Lúcia. MARTINS, Maria Helena P. Filosofando: introdução à filosofia. 3ª
ed. São Paulo: Moderna. 2003.
BARRERO, Pablo. Fragmentação do sagrado e crise das tradições na Pós-Modernidade:
desafios para o estudo da religião. In: TRASFERETTI, José; GONÇALVES, Paulo Sérgio L.
18
Teologia na Pós-Modernidade: abordagem epistemológica, sistemática e teórico-prática. São
Paulo: Paulinas. 2003.
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orientação do homem moderno. Tradução de Edgar Orth. Petrópolis: Vozes, 2004.
BLANK, Renold J. Nossa vida tem futuro: Escatologia Cristã, 1. S. Paulo: Paulus, 1991.
______ Nosso mundo tem futuro: Escatologia Cristã, 2. S. Paulo: Paulinas, 1993.
CHALITA, Gabriel. Vivendo a Filosofia. 2. ed. São Paulo: Atual, 2004.
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1986.
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REALE, Giovanni, História da Filosofia antiga. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola,
1993. (Série História da Filosofia).
TEPE, Valfredo. Antropologia cristã: diálogo interdisciplinar. Petrópolis: Vozes, 2003.
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TRASFERETTI, José; GONÇALVES, Paulo Sério L. Teologia na pós-modernidade:
abordagem epistemológica, sistemática e teórico-prática. São Paulo: Paulinas. 2003.
TAVARES, Clotilde Santa Cruz. Iniciação à visão holística. 2ed. Rio de Janeiro: Record,
1994. (Coleção Iniciação).
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<http://vidasimples.abril.uol.com.br/edicoes/009/03.shtml>. Acesso em: 23 de nov. 2007.
FRANCISCO, Papa, Discurso na Pontifícia Academia de Ciência. Disponível em:
<https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2014/october/documents/papa-
francesco_20141027_plenaria-accademia-scienze.html>.Acesso em: 04 de junho de 2015.
20
A PRODUÇÃO DOS NOVOS ESPAÇOS URBANOS:
DESAFIOS PARA A TEOLOGIA PASTORAL
José Bartolomeu Felix de Lima2.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho parte da compreensão do fenômeno urbano e das novas
espacialidades produzidas pelo mesmo fenômeno, analisadas sobre a óptica da sociologia, do
pensamento geográfico e teológico. Tais compreensões relaciono com a teologia pastoral,
analisando o fenômeno urbano e buscando alternativas para um desenvolvimento da pastoral
urbana através de uma práxis coerente com essas novas realidades.
O urbano é um fenômeno que está sempre em movimento, em constante reinvenção. É
um processo dinâmico que produz novas espacialidades. Por isso, no presente trabalho,
contextualizo, no primeiro momento, o urbanismo no Brasil e neste processo o surgimento da
pastoral urbana atrelada aos movimentos sociais. Com a contribuição das ciências geográficas e
sociais, no segundo momento iremos especificar a produção das novas espacialidades como
produto do fenômeno urbano e nestas, a novidade do território como um espaço das novas formas
de relações entre os sujeitos espaciais. No terceiro momento, identificamos os desafios que
surgiram a partir da dinâmica dos novos espaços e como a Teologia Pastoral poderá interagir com
esta realidade através do fortalecimento de uma pastoral de conjunto.
O URBANISMO NO BRASIL E OS ENSAIOS DE UMA PASTORAL URBANA.
O fator histórico nos possibilitará conhecer melhor os meandros das iniciativas que
despertaram a atenção da Igreja para a realidade urbana. Focalizaremos historicamente o Brasil.
Isso não significa dizer que a ação pastoral no setor urbano deu-se a partir do contexto Latino-
americano.
Historicamente no Brasil, de acordo com Oliveira (1980, p 8), o urbanismo é fundado
numa contradição singular, ou seja, a economia brasileira deu-se nos moldes do capitalismo
2 Mestrando do programa de pós-graduação em teologia da Universidade Católica de Pernambuco.
21
mercantilista do século XVI, atuando na produção de alimentos e matérias primas através do
trabalho escravo. A sede desse produção era o campo, mas a sede que controlava todo esse sistema
era urbana, atendendo aos comandos da metrópole cuja produção visava à exploração.
Com isso, percebe-se o caráter político-administrativo das cidades no Brasil, desde o
período colonial. Então dizemos erroneamente que houve um predomínio do campo sobre a
cidade. Mas o caráter da urbanização no Brasil não refletia o domínio do campo sobre a cidade,
mas a estrutura de produção, em sua maioria, monocultura e escravista. Portanto, as cidades por
não ser o mercado produtivo, tornaram-se os centros de controle e da burocracia representando o
Estado Português.
No século XIX e meados do século XX, a divisão social do trabalho com o campo e a
cidade se acentua fortemente através da oligarquia cafeeira que limita o desenvolvimento da
economia mercantil, pois há um movimento de nacionalização do capital pela maior retenção de
uma parte do excedente, internamente, dando lugar à formação de uma quase burguesia agrária.
A burguesia industrial emergente não detinha o controle do Estado e não conseguiu imprimir sua
marca à cidade. De acordo com o sociólogo Oliveira (1980, p 9), surgiram nessa época as
deficiências de que padecem todas as cidades brasileiras, sem exceção, em matéria de serviço
público já são secular.
Mesmo com o bloqueio da política do café, a economia estava em desenvolvimento, até
porque o sistema da economia cafeeira não se sustentou devido sua inviabilidade de acumulação,
tendo que cumprir suas despesas para sua manutenção e a inviabilidade da manutenção do
esquema de relações internacionais que lhe dava garantia de reposição. Com a queda do sistema
cafeeiro, avança a divisão social do trabalho em direção à industrialização e, consequentemente,
ao urbanismo.
Tendo o período de trinta como referência, o que vai emergir é, de fato,
o modo de produção de mercadorias e ela será simultaneamente
industrial e urbano, mais intensamente urbano que industrial, mais
politicamente urbano que industrial. A acumulação industrial dispara e
a acumulação urbana fica sempre retrasada; a contradição se resolve
mediante a utilização do extenso exército industrial de reserva como
fornecedor de serviços; emergem com novo e redobrado vigor, as
classes sociais urbanas proletárias, a burguesia industrial dirige o
aparato do Estado. [...] esse conjunto de fatores, que se fusionam no
histórico e no estrutural explode as cidades: o crescimento urbano se dá
décadas seguintes a taxas médias acima de 5% para todo o país, e
aparecem da noite para o dia as grandes cidades brasileiras, com sua
tendência incoercível ao gigantismo (OLIVEIRA: 1980. p.10).
22
A partir do exposto, podemos esclarecer o que é o urbanismo em dois momentos da
história. O primeiro momento é o do Estado Português, constituído pela burguesia industrial e a
classe operária. É um Estado burguês industrial que atende aos objetivos da burguesia que se
afirma econômica e politicamente contra as oligarquias rurais; daí instaura-se o populismo, um
período da história em que o sistema não poderia ser repressivo nem opressor. Nesse sistema
populista, o urbano é o movimento campo-cidade e a desarticulação das economias regionais,
sendo uma poderosa acumulação de capital estruturado pelo confisco de uma maior valia em
expansão, na manutenção do “status quo”no campo e no confisco de parte das riquezas das antigas
classes latifundiárias oligárquicas passadas à burguesia industrial, como diz Oliveira (1980, 11),
o urbano nesse período é a afirmação da sede urbana da produção e do controle político-social, é
a negação do campo.
O segundo momento inicia-se com a chamada “Restauração Kubitschek”, na qual o
urbano se configura com o assentamento definitivo da produção e do controle político-social na
cidade, por certo, mas a cidade agora é todo o país. O urbano passa a ser a unificação do mercado
de trabalho propriamente urbano e rural.
Feito este percurso histórico, no qual demonstramos o fenômeno urbano no Brasil,
apresentamos a partir deste contexto atuação dos movimentos sociais urbanos que consideramos
os primeiros ensaios nos quais a pastoral urbana foi se desenvolvendo no Brasil.
Os movimentos sociais urbanos surgiram no desenvolvimento do
processo de urbano-industrial e nascem dentro de setores da sociedade
civil, apresentando composição social heterogênea, com demandas
reivindicativas e defensivas que agiram fundamentalmente em torno da
esfera do consumismo (WANDERLEY: 1980. p 16).
Ao processo urbano-industrial dão-se também as consequências devido aos conflitos de
classes: de um lado, o Estado e a burguesia internacional associada; de outro, as classes populares,
um agente social único e singular, dissolvendo as antigas diferenciações entre cidade e campo.
No meio, as chamadas classes médias, cujo peso político específico tende a cair com a
dissolução/unificação apontada, tendencial, mas ainda viva. Esses movimentos têm origem quase
sempre de problemas locais e em função de interesses imediatos, formando pequenos grupos
solidários.
Surgem os movimentos sociais reivindicatórios e com eles nascem os primeiros embriões
da ação pastoral urbana. O diferencial entre esses movimentos e a pastoral urbana é que quando
os movimentos alcançam seu objetivo, tendem a se extinguir. Já a ação pastoral não tem um fim
imediato, não se limita a um movimento social, nem prende-se a estruturas políticas e econômicas.
23
Esta tarefa pastoral é feita sem se antepor a nenhum grupo ou movimento, pois como já
mencionava Comblim, a pastoral da cidade não exclui, e sim, inclui todos os serviços a nível
local, familiar, privado. Mas ela integra cada serviço numa perspectiva de conjunto em função
dos problemas globais.
AS NOVAS ESPACIALIDADES PRODUZIDAS PELO FENÔMENO URBANO.
Todos nós já refletimos sobre o espaço e o tempo. Comumente não damos importância a
estas categorias por consideramos inerentes a nós e nos contentarmos as definições do senso
comum.
A compreensão do espaço e tempo é variada. O espaço ou espacialidade pode ser
compreendida de maneira distintas por diversas culturas e diferentes sociedades. David Harvey
considera importante contestar a ideia de um sentido único e objetivo de tempo e espaço, com
base na qual possamos medir a diversidade das concepções e percepções humanas. O mesmo não
define uma dissolução total da distinção objetivo-subjetivo, mas insiste em que reconheçamos a
multiplicidade das qualidades objetivas que o espaço e o tempo podem exprimir e o papel das
práticas humanas em sua construção. No cenário da sociedade moderna, muitos sentidos distintos
de tempo e espaço se entrecruzam.
O espaço também é tratado como um fato da natureza, “naturalizados”
através da atribuição de sentidos cotidianos comuns. Sob certos aspectos
mais complexo do que o tempo – tem direção, área, forma, padrão e
volume como principais atributos, bem como distância, o espaço é tratado
tipicamente como um atributo objetivo das coisas que pode ser medido e,
portanto, apreendido. Reconhecemos, é verdade, que a nossa experiência
subjetiva pode nos levar a domínios de percepção, de imaginação, de
ficção e de fantasia que produzem espaços e mapas mentais como
miragens da coisa supostamente “real”. Também descobrimos que
sociedades ou grupos distintos possuem concepções de espaço diferentes.
Os índios das planícies do que são hoje os Estados Unidos de modo algum
seguiam o mesmo conceito de espaço dos colonos brancos que os
substituíram; os acordos “territoriais” entre os grupos se baseavam em
significados tão diferentes que era inevitável o conflito (HARVEY: 1992
p 188).
Mediante esta construção de pensamento, percebemos que é preciso levar em
consideração os processos materiais que acontecem no espaço e no tempo para poder conceitua-
los adequadamente. É através de uma perspectiva materialista que afirmamos que as concepções
de tempo e de espaço são criadas necessariamente através de práticas e processos materiais que
servem a reprodução da vida social. Nesta prática, a lógica norteadora é o sistema capitalista
24
considerado um modo de produção no qual as práticas e processos matérias de reprodução social
se encontram em permanente mudança. A partir dessa dinâmica, as qualidades objetivas com os
significados do tempo e do espaço também se modificam.
Diante do processo histórico de expansão do capitalismo, os termos “produção” e
“reprodução do espaço” foram tomados de um significado economicista que desencadeou o
processo de globalização, a partir da expansão mercadológica. Essa trajetória, nos ajuda a
compreender em que termos se efetua a redefinição da cidade e da urbanização, de seu
crescimento, da extensão das periferias, dos condomínios, da construção de um novo espaço.
Diante da complexidade da sociedade urbana, pode-se pressupor que a produção do
espaço constitui um elemento central da problemática do mundo contemporâneo. Os novos
espaços são gerados a partir da ação dos agentes que determinam o meio, o Estado, o Capital e os
agentes sociais.
A noção de “produção do espaço”, como vimos, importa conteúdos e
determinações, obriga-nos a considerar os vários níveis da realidade
como momentos diferenciados da reprodução geral da sociedade em sua
complexidade. Obriga-nos a considerar o sujeito da ação: o Estado,
como aquele da dominação política; o capital, com suas estratégias
objetivando sua reprodução continuada; os sujeitos sociais que, em suas
necessidades e seus desejos vinculados à realização da vida humana,
têm o espaço como condição, meio e produto de sua ação (CARLOS:
2014. p 64).
Somado ao espaço, abordamos a categoria de território. Tal categoria é fundamental para
a interação entre os agentes espaciais e os meios que são gerados como consequência da ação dos
agentes produtores das espacialidades como Estado e o Capital. Ressaltando que nesta
compreensão e de acordo com Maria Adélia “o urba é a expressão territorial do modo de produção
hegemônico e que vai além da cidade, enquanto que a cidade é materialidade construída”.
No contexto das novas espacialidades, consideramos o território usado. Como diz Maria
A. Aparecida 2014 “o território só existe quando usado, praticado, e aquele de lugar definido
como um espaço do acontecer solidário.”
A inserção nos estudos geográficos de território usado é algo recente e processual. Milton
Santos aprofunda e amplia esse conceito. “Consiste num indissociável e contraditório sistema de
objetos e ações” (Santos 1996). O território usado, espaço banal é aquele que pertence a todos,
sem exceção. Mesmo sendo território de todos, pessoas, instituições e organizações; no
capitalismo, passou a ser uma predominância de uso pelos interesses hegemônicos. Este último,
atrelado ao uso da técnica e tecnologia que transforma o território ao serviço do mercado,
diferente do território lugar do espaço solidário, das relações comuns.
25
Diante destas categorias acima refletidas, como tempo, espaço e território, percebemos
que de modo acelerado gera uma mobilidade e mutação na sociedade que não conseguimos
acompanhar as mudanças e transformações. Daí surgem os novos desafios no campo da
evangelização. Muitas perguntas e angustias são apresentadas diante das urgências e desafios
deste tempo. Iremos abordar alguns desafios e apresentar algumas sugestões como um mecanismo
de superação e acompanhamento por parte da Igreja.
DESAFIOS PARA A TEOLOGIA PASTORAL E FORTALECIMENTO DAS
PASTORAIS URBANAS
Após termos apresentado o urbanismo no Brasil e os ensaios de uma pastoral urbana,
termos demonstrado as novas espacialidades produzidas pelo fenômeno urbano e fruto da
produção capitalista, nesta terceira parte identificaremos a seguir os desafios consequentes desses
espaços para a sociedade e para a Teologia.
A Igreja Católica buscou, desde os primórdios, dar respostas às necessidades de cada
época. A história das ordens e congregações religiosas com seus respectivos carismas demonstram
esta atitude. Diante desse processo histórico, é preciso considerar que uma ação pastoral não pode
prescindir do conhecimento da realidade. O Documento de Aparecida nº 36, ensina aos agentes
pastorais a considerar a realidade, mais não de modo fragmentado, como o pensamento
contemporâneo costuma fazer, mas a partir da espiritualidade que, tendo o Cristo como parâmetro,
possibilita um conhecimento amplo e uma ação eficaz.
É frequente que alguns queiram olhar a realidade unilateralmente a partir
de informação econômica, outros, a partir de informação política ou
científica, Outros a partir do entretenimento ou do espetáculo. Entanto,
nenhum desses critérios parciais, consegue propor-nos um significado
coerente para tudo o que existe. Quando as pessoas percebem essa
fragmentação e limitação, costumam sentir-se frustradas, ansiosas
angustiadas [...] Os cristãos precisam recomeçar a partir de Cristo, pois
só quem conhece a Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de
modo adequado e realmente humano (DAp nº 36).
Dado esta percepção, o que a Conferencia de Aparecida nos chama a atenção é para
termos a clareza que diante do cenário das novas espacialidades, acontece a “mudança de época”
onde o seu nível mais profundo é o cultural. Percebemos aqui um grande desafio à Teologia
Pastoral. Pois diante dessa mudança de época, ocorre uma sobrevalorização da subjetividade e
individualidade. O indivíduo e seus desejos tornaram-se objetos de mercado. A lógica de mercado
26
associada a técnica e a ciência nesse processo global constrói uma nova colonização cultural que
tende cada vez mais a fragmentar as experiências comunitárias locais e impor uma cultura
homogênea e superficial pautada em criar necessidades e ao mesmo tempo satisfaze-las. Mediante
esse processo de fragmentação do qual padece o ser humano, o mesmo sofre o processo de
alienação na convivência das relações e pela lógica da nova cultura é motivado a viver de modo
superficial a sua identidade comunitária. Diante desse fato, a Teologia Pastoral é instigada a
fortalecer a experiência da pastoral de conjunto no tecido urbano. Uma ação pastoral de conjunto
é uma resposta a este desafio e ao mesmo tempo uma atualização efetiva da Igreja nos diversos
seguimentos da sociedade.
Pensar a evangelização é articular a relação entre dois conceitos dos quais não se pode
prescindir dentro da dinâmica do urbanismo: cidade e território. A mudança ou mutação que as
cidades passam não deve ser desconsideradas pela Teologia Pastoral. A Compreensão da cidade
como um espaço unitário, compacto e estático em que possibilitava tradicionais formas de
vizinhança, solidariedade, partilha e cumplicidade existencial, gradativamente, tal concepção foi
substituída devido a própria mutação que o fenômeno urbano causou nas cidades que hoje
percebemos como o território da mobilidade, do desenraizamento e do hibridismo cultural.
As cidades atuais, notadamente as que chamamos de grandes centros
urbanos, são cidades móveis. Crescem demograficamente,
especialmente avançam por territórios [...] são também cidades
policêntricas, na medida em que já não apresentam apenas um único
centro de cidade, mas diversos bairros aglutinadores de outros
(AMADO:2010 p 67).
Diante dessa nova configuração, surge para a Teologia Pastoral um outro desafio, o
impasse se dá porque não aconteceu ainda a assimilação sobre a territorialidade como algo amplo
e além de território fixo geográfico. Esta vinculação ao território fixo como se nele ainda
acontecesse as principais relações sociais é perceptível na prática administrativa e jurídica
eclesial. É preciso que os agentes pastorais entendam que a territorialidade como delimitação
geográfica é critério adicional, pode acontecer ou não. A tentativa é redescobrir novas alternativas
de alcançar essa dinâmica.
Não podemos esquecer que o cristianismo nos primeiros séculos contribuiu para a
formação de pequenas comunidades dentro dos espaços urbanos através do anúncio de Jesus
Cristo que gerou novas comunidades que passou a subsistir dentro de outras. O planejamento da
organização pastoral atual precisa considerar a diferença entre espaço físico e espaço social. Os
27
moradores de um dado território como uma grande cidade, sabem que suas vivencias e
convivências nem sempre acontecem num território fixo. Assim a ação pastoral deve colaborar
para uma ação que contemple a mobilidade, pois a formação de espaços comunitários na qual
acontece a adesão seletiva rompe com os critérios monoespaciais. Um exemplo disto é as
comunidades virtuais que crescem progressivamente, é um exemplo entre a deslocalização do
espaço físico e o espaço social, no qual o ambiente virtual rompe com a territorialidade física.
Diante desta reflexão, não podemos deixar de contemplar a Paróquia compreendida como
comunidade de comunidades. A mesma, diante desse processo urbano deve buscar conhecer as
novas espacialidades, insistir na dimensão comunitária, e proporcionar novas formas de vivencias.
Percebemos nas paróquias apenas a mudança estrutural, física, para oferecer certa comodidade
aos fiéis, que também se faz necessária para acompanhar o avanço dos estabelecimentos. Porém,
a mudança a ser empreendida é na perspectiva de formar comunidades que cria vínculos. A
paróquia além de considerar a sua territorialidade geográfica delimitada pelo decreto de criação,
deve levar em consideração os espaços não fisicamente circunscritos. O desafio é conjugar a
convivência das espacialidades física ou territorial e a afetiva, ou seja, aquela que os fiéis se
elegem como um espaço de encontro. Encontramos no própria conceito de paróquia, no cânon
515 a formulação para esta ideia. Só uma paróquia em modelo de rede poderá acolher estes dois
momentos – dinâmica do alargamento – atuação pastoral em níveis que ultrapassam a
circunscrição territorial, uma característica indispensável para a configuração comunitária.
Após identificamos os desafios próprios da nova configuração espacial, percebemos a
grande contribuição analítica das ciências sociais e geográfica. A Teologia pastoral se utiliza
dessas análises para fazer sua própria leitura na busca de assessorar a Igreja a atender as novas
urgências e inculturar a Palavra de Deus nos novos espaços da sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O agir pastoral se configura a partir dessas exigências e se materializa nas experiências
que são desenvolvidas no tecido urbano. Por isso, percebemos que não há um único modelo de
ação pastoral que predomine nos novos espaços sociais, nem há um marco ou uma data
propriamente dita que marque o início da pastoral urbana. Ela acontece e se desenvolve nas
experiências efetuadas no tecido social. É devido aos ensaios que se efetivam nas novas
espacialidades que se descobre novos métodos de ação com a finalidade de apresentar uma
identidade e uma resposta ao homem e a mulher de hoje: Jesus Cristo, caminho, verdade de vida.
28
Dentre as expressões mais concretas do fenômeno urbano está a cidade. Por isso, a Igreja
não pode descuidar da cidade e sua riqueza de diversidade. A cidade instiga a ação pastoral a se
refazer exigindo uma constante renovação.
A cidade é diversidade de pessoas, de ideias, religiões, culturas, modos
de viver, profissões, atividades, projetos, partidos, grupos. Cada grupo
precisa de um atendimento específico. Não pode haver nenhum esquema
uniforme de evangelização. O papel do bispo será manter a unidade na
diversidade e os presbíteros serão os assistentes dele nessa tarefa. Por
isso, uma pastoral urbana nunca será completa. Sempre vamos descobrir
realidades desconhecidas (COMBLIM: 2002 p 10).
As novas espacialidades atreladas ao território, são elementos determinantes para a
evolução da prática pastoral, pois devido a sua evolução e seus contrastes, exige uma atitude
pastoral que acompanhe a dinâmica da cidade formada por um tecido de grupos e classes que
imprimem um caráter plural e diversificado. Esta dinâmica exige dos cristãos uma continuada
conversão pastoral atrelada ao conhecimento da realidade sem descuidar de sua espiritualidade,
pois como percebemos, a espiritualidade é um elemento que possibilita a adesão a Fé nesse
contexto plural e marcado pela característica da subjetividade. Por isso, a ação pastoral deve
assumir uma postura plural e dialógica que lhe possibilite dialogar com as várias diversidades
dentro do mundo urbano e, ao mesmo tempo, estabelecer relações com as culturas que convivem
neste mesmo universo. Deve-se levar em consideração uma relação ecumênica com as diversas
tradições religiosas que também buscam alternativas de subsistir nos novos espaços, porém, sem
negar sua identidade que é o próprio Jesus Cristo. Desse modo, a evangelização torna-se original
e eficaz na medida em que compreende, dialoga e interage com essa nova realidade.
REFERÊNCIA
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Brasilia: Edições CNBB, 2010.
Carlos, Ana. Souza, Marcelo e Sposito Maria. A produção do Espaço Urbano. Agentes e
processos, escalas e desafios. São Paulo: Contexto, 2011.
CNBB. Pistas para uma Pastoral Urbana. São Paulo: Paulinas, 1979.
CNBB. Documento de Aparecida. São Paulo: Paulinas, 2007.
COMBLIM, José. Teologia da Cidade. São Paulo: Paulus, 1991.
HARVEY, David. Condição Pós-moderna. São Paulo: Loyola: 1992.
29
OLIVEIRA, Francisco. O que é o urbanismo no Brasil: curto ensaio. In: Pastoral Urbana. São
Paulo: Paulinas, 1980.
WANDERLEY, Luis Eduardo. Movimentos sociais urbanos. In: Pastoral Urbana. São Paulo:
Paulinas, 1980.
30
A CENTRALIDADE DO REINO NA EVANGELII GAUDIUM
Charles de Araújo Costa3.
Dr. Degislando Nóbrega de Lima4.
1. INTRODUÇÃO
A exortação apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, apresentada em
24 de novembro de 2013 é o programa de seu pontificado (EG, 1). Nela estão contidas as
características não só para seu pontificado, mas também para “o caminhar” da Igreja rumo
ao futuro.
Dentre as diversas características – ou categorias - da EG algumas estão
evidenciadas no texto, como as ideias da Igreja missionária, descentrada, colegial,
inculturada, de discípulos autênticos, pobres e etc., mas também há algumas não tão
evidentes, mas de suma importância para a compreensão do conjunto apresentado por
Francisco.
Assim sendo, nosso trabalho buscará apresentar o elemento, não evidenciado em
sua importância, que, sob nossa análise, é central, comporta todas as demais categorias
em si, e fundamenta toda a argumentação de Francisco, mas também toda a missão da
Igreja: a categoria do Reino de Deus no processo de evangelização.
À luz da categoria do Reino de Deus exporemos a fundamentação e a referência a
que tende à evangelização no contexto da Exortação Evangelii Gaudium, bem como, e
principalmente, a necessidade de compreendê-la para ser colocada em prática.
2. AS ÓTICAS NA EVANGELII GAUDIUM E SEUS CONTEÚDOS.
Num primeiro olhar observamos claramente que a Exortação Apostólica Evangelii
Gaudium se interessa pelos aspectos antropológicos e ético-sociais da realidade, sob uma
3 Graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (2012) e graduando em teologia pela
mesma universidade. 4 Doutor em Teologia da Missão pela Westfälische Wilhelms Universität (2001). Graduado em Teologia
pelo Centro de Estudos de Filosofia e Teologia do Seminário Imaculada Conceição da Arquidiocese da
Paraíba (1992), e em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (1991). Professor na
Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP, onde também é Diretor do Centro de Teologia e Ciências
Humanas. Tem experiência na área de Teologia e Ciências da Religião, é docente/pesquisador no Mestrado
em Ciências da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: pluralismo, libertação,
hermenêutica, cristianismo e modernidade/pós-modernidade. Avaliador de cursos do INEP.
31
perspectiva pastoral, para identificar os desafios da missão evangelizadora da Igreja5. E,
de fato, essa é parte da intenção de Francisco (EG, 51).
Outro olhar nos poderia conduzir, também, ao aspecto humanístico e colocar o
homem no centro da Evangelii Gaudium6, já que na exortação são salientadas as noções
de pessoa como intersubjetividade (EG, 2), a primazia do ser humano nos processos
socioeconômicos (EG, 55) e a visão do ser humano como um ser que se narra e é narrado
por Deus (EG, 231).
Contudo, essas óticas não expressam a totalidade à qual está destinado o processo
evangelizador. A primeira ótica poderia nos conduzir a um assistencialismo de “cunho
caritativo”, a uma “caridade por receita” (EG, 180) que não nos conduziria ao real
objetivo da evangelização. A segunda ótica também poderia nos afastar do processo
evangelizador, pois poderia se focar no humano e deixar de lado a dimensão ascendente
à qual o Evangelho nos convida.
Poderíamos elencar diversas outras óticas, mas incorreríamos na parcialidade e
perderíamos o foco ao qual somos conduzidos a partir do texto: o anúncio do Reino de
Deus. Tal anúncio comporta os elementos acima citados, mas também outros elementos
que interpelem a todos7 e, acima de tudo, “as múltiplas vozes do nosso tempo” (GS 44)
que anseiam por respostas aos seus questionamentos.
Sobre isso Francisco utiliza as palavras de Paulo VI afirma que “Nenhuma
definição parcial e fragmentada, porém, chegará a dar razão da realidade rica, complexa
e dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de empobrecê-la e até mesmo de
mutilá-la” (EM apud, EG 176).
Assim sendo, todas as óticas e categorias têm seu início e seu fim na atividade
evangelizadora. É a partir dela e nela que se realiza a missão da Igreja.
A evangelização é o tema de destaque na Evangelii Gaudium. Sua importância é
tamanha: a evangelização é o motivo pelo qual a exortação é escrita (EG, 16-17); além
5 Essa ideia é levantada por Dom Benedito Beni dos Santos em sua obra Evangelizar com papa Francisco:
comentário à Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus, 2014. p. 11. 6 Por sinal, essa ótica é apresentada por Lúcia Pedrosa-Pádua em seu artigo “O ser humano, centro da
Evangelii Gaudium”, publicado no livro Evangelii Gaudium em questão: aspectos bíblicos, teológicos
e pastorais. São Paulo: Paulinas; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014. p. 135. 7 Fazendo referencia à XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre o tema A nova
evangelização para transmissão da fé cristã, ocorrida entre 07 e 08 de outubro de 2012, Francisco chama
atenção para o tríplice domínio da evangelização: primeiro a “pastoral ordinária” que tem em vista
reacender a o “fogo do Espírito” no coração dois fieis que frequentam as comunidades e dos que
“conservam uma fé católica intensa e sincera, embora não participem frequentemente do culto”; o segundo
domínio trata das pessoas que “batizadas, não vivem as exigências do Batismo”; e, por fim, “àqueles que
não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram”. (Cf. EG 14).
32
disso, o termo evangelização perpassa todos os capítulos da exortação aparecendo 91
vezes e insere todos os elementos estruturais da vida humana em sua ação.
Contudo, a evangelização não é um fim em si mesma. Ela tem por fim o anúncio
e realização do Reino de Deus na experiência histórica. Por isso, Francisco afirma que:
“Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176). Nesses termos, o
centro ao qual tende a Igreja e sua missão, bem como as dimensões relacionadas a esse
processo é o Reino de Deus.
Assim, embora não tão explicitado – já que só apareceu cinco vezes em todo o
texto8 – o Reino de Deus é o centro da Evangelii Gaudium. E, já que “evangelizar é tornar
o Reino de Deus presente no Mundo” (EG 176), ou seja, os termos se “confundem” no
conjunto da exortação, podemos inferir que quando tratamos da evangelização tratamos
do Reino de Deus e vice-versa.
A intuição de Francisco sobre a evangelização, isto é, sobre tornar o “Reino de
Deus presente no mundo”, não é ingênua. Sua fundamentação parte de referências
cristológicas, que, por sinal, são apresentadas no início do texto. Paulo Cezar Costa chama
atenção para isso:
Já no início, onde Francisco exorta à alegria, esta se fundamenta na
Salvação de Deus preanunciada no Antigo Testamento, realizada no
ministério de Jesus de Nazaré, principalmente na sua ressurreição (EG
5). Jesus vive a alegria do Evangelho, exulta de alegria no Espírito e
louva o Pai, porque a sua revelação chegou aos pobres e pequeninos (cf.
Lc 10, 21; EG 21). Jesus Cristo é uma eterna novidade, ele é o
“evangelho eterno” (Ap 14,6), sendo “o mesmo, ontem, hoje e sempre”
(Hb 13,8; EG 11). Jesus “é o primeiro e o maior evangelizador” (EG
12) (COSTA, 2014. p. 173).
Assim, o fundamento da evangelização é o próprio Cristo. Da mesma forma que
Ele, ungido e guiado pelo Espírito, operou a obra de implantação do Reino de Deus, a
Igreja foi constituída e enviada por Ele a continuar sua missão.
Por isso, a missão da Igreja não parte de sua vontade própria, mas do desígnio
salvífico da Trindade, que se autorevelou, deu início ao “projeto evangelizador” e o
transmite a nós, capacitando-nos pela ação do Espírito, assim como acontecera com o
próprio Jesus Cristo.
8 Na Evangelii Gaudium a categoria do “Reino de Deus” aparece uma vez no nº. 179, duas vezes no nº.
180, uma vez no nº 197 e uma vez no nº 278.
33
Destarte, para compreendermos o arcabouço da evangelização é necessário acenar
para a figura de Jesus Cristo.
3. ANÚNCIO DO REINO DE DEUS: CENTRO DO MINISTÉRIO DE JESUS
DE NAZARÉ.
O Reino de Deus é o tema central da Pregação de Jesus. Jesus “andava por toda a
Galiléia proclamando o Evangelho do Reino de Deus” (Mt 4,23).
É interessante observar que os evangelhos fazem questão de salientar o anúncio
do Reino por Jesus, bem como as suas consequências na sua vida e na vida dos que aderem
à “missão de anunciar o Reino”9. Basta olhar o início do ministério de Jesus, segundo
Lucas: após ler a passagem de Isaías e aplicá-la a si mesmo, como também após dizer
algumas verdades, Jesus vê as consequências do seu anúncio se voltarem contra ele
mesmo (Cf. Lc 4, 16-30). Contudo, Ele não se deixa desanimar, mas vai até o fim, pondo
em prática o seu ministério.
Nessa mesma passagem Jesus apresenta o seu projeto ministerial: “O Espírito do
Senhor está sobre mim, porque me ungiu e enviou-me para anunciar a Boa-Nova aos
pobres, para anunciar a liberdade aos cativos e a visão aos cegos, para pôr em liberdade
os oprimidos e para proclamar o Ano da graça do Senhor” (Lc 4, 18-19). Observar o
projeto de Jesus é muito interessante porque nos faz perceber que o Reino de Deus não é
uma realidade distante ou só futura, “a acontecer num apocalipse”, mas é uma realidade
presente, que acontece no hoje da existência daquele que é convidado a participar do
Reino.
Além disso, esses dados nos levam a inferir que o Reino está intimamente ligado
à pessoa de Jesus, aos seus gestos, às suas ações e as suas palavras. Nesse sentido, quando
ele fala, quando ele “faz alguma ação ou algum gesto”, estes não só revelam, mas realizam
o Reino de forma concreta10.
9 Paulo Cezar Costa em seu artigo “Dimensão Cristológica da Evangelii Gaudium” cita algumas passagens
dos evangelhos evidenciando esse as exigências e consequências para a vida no “Reino de Deus” partindo
do próprio Jesus. Evangelii Gaudium em questão: aspectos bíblicos, teológicos e pastorais. São Paulo:
Paulinas; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014. p. 173 à 180. 10 Tratando do termo Evangelho em sua obra Jesus de Nazaré, Joseph Ratzinguer chama atenção para o
significado do vocábulo sob a ótica do Reino de Deus: “No vocabulário atual da teoria da linguagem se
poderia dizer: o Evangelho não é um discurso puramente informativo, mas “performativo”; não simples
comunicação, mas ação, força eficaz que entra no mundo para curar e transformar”. RATZINGER, J. Jesus
34
Passando por todos os evangelhos percebemos o intuito de Jesus em estabelecer o
conhecimento e a dedicação total ao Reino por meio de si mesmo. Jesus é a expressão do
Reino, pois, tudo nEle revela o Reino. E como o Reino é de seu Pai, a sua conformidade
ao projeto salienta que tudo o que Ele faz é querer do Pai; principalmente os mistérios
que envolvem sua vida, isto é, sua Encarnação, seu Padecimento e sua Ressurreição.
O anúncio e construção do Reino não se findaram com o evento Cristo, mas graças
a seu mandato aos discípulos – “ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a todas
as criaturas (Mc 16,15) – o anúncio do Reino foi passado para a Igreja, que tem a
obrigação de continuar essa missão; e continuando a missão evangelizadora, ela expressa
sua relação de intimidade com o Pai, a exemplo de Jesus.
Por isso, a evangelização não pode ser compreendida como o anúncio de uma
palavra qualquer, mas deve ser bem compreendida para orientar-se a anunciar a realidade
transformadora do Reino de Deus.
4. O REINO DE DEUS E SUA CONCRETUDE HISTÓRICA
Como enviada, a Igreja, Povo de Deus, tem a obrigação de realizar o mandato de
Jesus: “Ide por todo mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15), isto é,
de fazer de sua ação às ações de Jesus, percebendo a partir dos evangelhos como Jesus
anunciou e colocou em ação o Reino de Deus.
E, como a o anúncio do Reino por parte de Jesus não se resumiu a palavras, mas
realizou-se em ações, a Igreja é convidada a, também, fazer o mesmo. Por isso, o Papa
Francisco no capítulo 4 da exortação faz questão de salientar que a evangelização possui
uma intrínseca dimensão social, em vista da promoção humana:
“A partir do coração do Evangelho, reconhecemos a conexão
íntima que existe entre evangelização e promoção humana, que
se deve necessariamente exprimir e desenvolver em toda ação
evangelizadora” (EG, 178).
E essa dimensão não é uma redução de sua missão em vista de uma “tranquilização
da própria consciência” (EG, 180), mas é sinal da caridade que nos veio primeiro, pelo
de Nazaré: do Batismo do Jordão à Transfiguração. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007. 11ª
impressão. p. 58.
35
amor do Pai em Jesus, e que somos chamados a também concretizar, já que somos, como
Igreja, íntimos do Pai. Por isso Francisco afirma que:
A aceitação do primeiro anúncio, que convida a deixar-se amar
por Deus e a amá-Lo com o amor que Ele mesmo nos comunica,
provoca na vida da pessoa e nas suas ações uma primeira e
fundamental reação: desejar, buscar e cuidar do bem dos outros
(EG, 178).
Do mesmo modo como tudo – palavras, gestos e ações - em Jesus revela o Reino
de Deus, o anúncio do Reino por parte da Igreja faz despontar a sua natureza: “Assim
como a Igreja é missionária por natureza, também brota inevitavelmente dessa natureza
a caridade efetiva para com o próximo, a compaixão que compreende, assiste e promove”
(EG 179).
Por isso, é importante que os cristãos aprendam que a “proposta” de Jesus não é
algo simples e pessoal, mas algo que toca toda a existência, e dissipa toda e qualquer
forma de isolamento ou de tentativa egoísta de ter o amor e ação de Deus para si mesmo,
ou de colocar-se no lugar dEle. “A proposta é o Reino (Lc 4,43); trata-se de amar a Deus,
que Reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será
um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos” (EG, 180).
Por isso, faz-se necessário que os cristãos alcancem e propaguem o conhecimento
do real objetivo da evangelização, isto é, o Reino de Deus, para que assim o concretizem.
E isso para que o assumam com todas as suas consequências, para que não retirem de
dentro do seu conjunto realidades que fazem parte do projeto e as isolem e, finalmente,
para que transformem em Cristo as realidades que afastam a efetivação do Reino.
Bibliografia:
Bíblia de Jerusalém. 3ª ed. São Paulo: Paulus, 2004.
AMADO, Joel Portella; FERNANDES, Leonardo Agostini. Evangelii Gaudium em
questão: aspectos bíblicos, teológicos e pastorais. São Paulo: Paulinas; Rio de Janeiro:
PUC Rio, 2014.
CONSTITUIÇÃO GAUDIUM ET SPES. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965.
Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas,1998.
FRANCISCO, papa. Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013.
36
PAULO, papa. Evangelii Nuntiandi. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 2014.
RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém à Transfiguração. 5ª
ed. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2013. 5ª reimpressão.
SANTOS, Benedito Beni dos. Evangelizar com papa Francisco: comentário à Evangelii
Gaudium. São Paulo: Paulus, 2014.
SUESS, Paulo. Dicionário da Evangelii Gaudium: 50 palavras-chave para uma leitura
pastoral. São Paulo: Paulus, 2015.
37
A IGREJA E A INTERNET
Davi Daniel Barbosa11
INTRODUÇÃO
Os computadores surgiram na Inglaterra e Estados Unidos nos anos de 1945 e
foram utilizados primeiramente para fins militares no início tratavam-se de imensas
máquinas, de elevado custo, que ocupavam andares inteiros, destinadas a fazer cálculos
científicos e estatísticos (LÉVY, 1999, p. 31). A partir dos anos 60 seu uso civil foi
disseminado, primeiramente para fins acadêmicos, tornando-se entre estudantes e
professores universitários, principalmente dos EUA, um importante meio de
comunicação, facilitando as trocas de ideias, mensagens e descobertas pelas linhas da
rede.
Nos anos 70 surgiu o microprocessador12cujas reduções do tamanho e custo dos
computadores trouxe um grande avanço na utilização e disseminação deste novo
equipamento, a partir disso, iniciaram-se as pequenas redes que conectavam alguns
poucos computadores.
No final dos anos de 1980 surgiram as máquinas pessoais que puderam ser
compradas e manuseadas facilmente até pelas pessoas sem formação científica. As
diferentes redes de computadores que se formaram nos finais dos anos 70 juntaram-se e
o número de pessoas e computadores conectados começou a crescer de forma
exponencial, cria-se a internet13 e o computador foi perdendo o seu status técnico,
começou a se apropriar de diversas mídias e possibilitou a interatividade, até que se criou
11Bacharel e Mestrando em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco, Recife, PE. e-mail
[email protected] 12 Unidade de cálculo aritmético e lógico localizada em um chip eletrônico. (LÉVI, 2002, p.31) 13 A palavra internet refere-se à INTERnationalNETworkof digital communication, que emerge
de aglomerados de centenas de redes (LAN = Local Area Network, CWUIS = Campus
WideInformation System, WAN= Wide Área Network, regional ou nacional) e interage através
de um número de protocolos comuns em todo o mundo. A internet é então; a infraestrutura
(dimensão física: computadores mais conectividade, anisotrópica e espaço hierárquico), uma
plataforma de memória (ambiente digital para software e documentos), é uma rede aberta de redes
independentes em que cada sub-rede opera e é autonomamente administrada (MOURÃO, 2001,
p. 68-69).
38
um novo espaço, o ciberespaço14 que integra-se à vida cotidiana num novo contexto
social. Sobre este novo ambiente assim nos dia Antonio Spadaro:
Um espaço antropológico interconectado na fonte com outros espaços
de nossa vida. Em vez de nos fazer sair de nosso mundo para singrar o
mundo virtual, a tecnologia fez entrar o mundo virtual dentro do nosso
mundo ordinário (2012, p. 18).
O Brasil só começou utilizar a internet a partir dos finais dos anos 80, quando
ficou disponível apenas para algumas instituições de pesquisa. Em maio de 1995, foi
criado a figura do provedor de acesso privado possibilitando, na prática, a conexão à rede
de qualquer cidadão comum.
Nesses 20 anos, em que o Brasil faz uso desse instrumento, o computador passou
por inúmeros avanços e transformações: os equipamentos foram sendo reduzidos a
tamanho formato, que é possível tê-los “na palma da mão”; essa tecnologia ultrapassou
as linhas discadas de acesso a internet e aumentou a velocidade em escalas exponenciais,
cujas memórias15 ficaram cada vez mais potentes e mais acessíveis.
Foram criados pontos de acesso à rede para quem não tem computador, a
chamada (lan-house); cidades inteiras foram conectadas via wi-fi;16 aumentou-se
significativamente o número de programas de computação (software); neste período o
número de usuários não parou de cresceu velozmente, superando o ritmo de qualquer
outra implantação de tecnologia eletrônica de comunicação.
Hoje o país já possui mais de 85 milhões de usuários da internet no Brasil, o que
corresponde a 51,6% da população.17Junto com este crescimento também diversificaram-
se as possibilidade de uso deste ciberespaço que passou a ser um ambiente livre para a
manifestação de ideias, busca de pesquisa, um espaço de lazer, de compras, de
socialização e comunicação planetária, dinâmica, libertária e interativa entre os usuários,
14 O ciberespaço ou rede é um novo meio de comunicação gerado pela conexão mundial dos
computadores, o termo se refere à infraestrutura e também ao oceano de informações que ele
abriga e também aos seres humanos que usam e que alimentam este universo, é um instrumento
privilegiado de inteligência coletiva. 15 Memória são todos os dispositivos que permitem guardar dados, temporária ou
permanentemente em um computador. 16wi-fi embora seja uma marca registrada de uma empresa, é comumente utilizado para designar
dispositivos de rede local sem fios. 17http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/mais-da-metade-dos-brasileiros-sao-usuarios-da-
internet. Acesso em 18/05/2015 à 20hs.
39
que deixam de ser meros receptores, tornando-se participantes e produtores de
informação.
Um veículo de comunicação com este potencial não poderia passar despercebido
pela Igreja, que compreende não ser suficiente usá-lo para difundir a mensagem cristã,
masque é necessário integrar a mensagem nesta ‘nova cultura’ e reconhece as mudanças
qualitativas deste novo ambiente, considerando os meios de comunicação social, incluso
a internet, como “dons de Deus” que possibilitam o relacionamento entre os seres
humanos a proporção que criam laços de solidariedade entre eles.
A Igreja percebe as transformações revolucionárias promovidas pela internet em
todos os campos e estas mudanças se manifestam no modo dos seres humanos se
comunicarem entre si e na forma de compreenderem a sua própria vida (PONTIFÍCIO
CONSELHO PARA AS COMUNICAÇÕES SOCIAIS, 2002).
A Igreja, através da internet, procura comunicar-se eficazmente com os
indivíduos, levando a mensagem cristã para além do púlpito e do templo, tanto para uma
parte das pessoas cuja rede atinge um significativo número, principalmente entre os mais
jovens - ávidos por esta nova ferramenta quanto para àquelas que são obrigadas a
permanecer em casa ou porque estão impossibilitados de ir à Igreja, por motivos de
doença, ou porque vivem em regiões remotas.
Além dos seus documentos oficiais, facilmente pode-se perceber como o
Vaticano e até o papa utiliza deste meio de comunicação para estar mais próximo aos
fiéis: a) em 2009, o Vaticano lançou seu próprio canal no Youtube18 com vídeos
atualizados diariamente; b) ainda no mesmo ano, foi lançada a página Pope2You, uma
iniciativa, que através do Facebook19 e de um aplicativo para iPhone, permitia o acesso a
mensagens do Papa Bento XVI e o envio de cartões digitais; c) em 2010, foi lançado o
site News.va, reunindo departamentos de mídia e comunicação da Santa Sé; d) em 2011
o site do vaticano foi reformulado, possibilitando o seu acesso à celulares e leitores
18YouTube é um site que permite que seus usuários carreguem e compartilhem vídeos em formato
digital. 19Facebook é um serviço de rede social que conecta pessoas através da internet.
40
eletrônicos; e) em 2012, o Papa Bento XVI entrou no Twitter20 e começou a enviar suas
mensagens através da conta @Pontifex (SBARDELOTTO, 2013).
Quantificar com precisão a presença de páginas católicas brasileiras na web21 é
uma tarefa quase impossível, tendo em vista a diversidade de critérios, pelas
generalidades dos resultados e pela rapidez com que as mesmas se multiplicam,
transformam-se numa verdadeira “Babel” de informações, são necessários critérios
objetivos ao se utilizar de filtros que possam conduzir à pesquisa para resultados
realmente representativos. A título de ilustração, verifica-se que no maior site de pesquisa
da rede – Google, ao ser digitado o termo‘católico’ para pesquisa, encontra-se 7.820.000
resultados, além do mais, este mesmo site tem um espaço denominado “Google Católico”
– trata-se de uma ferramenta de buscas exclusivamente em sites católicos.
A grosso modo, ao pesquisar as páginas católicas, estas podem ser assim
classificadas: páginas institucionais de paróquias, de arquidioceses, das principais igrejas,
editoras, instituições religiosas e páginas pessoais de católicos sem ligação específica com
qualquer igreja, além de blogs22;também encontra-se referências à igreja no Facebook,
Instagram,23Twitter e vários aplicativos para telefones celulares que são os instrumentos
mais utilizados, tendo em vista a disponibilidade e a praticidade no acesso à internet.
No caso das páginas institucionais, encontram-se dados básicos como: nome,
localização, fotos dos templos, dos padres e/ou bispos, eventos ocorridos nas igrejas; em
algumas se encontram chats24 para comunicação online com o padre ou responsável, santo
do dia, links de acesso a outras instituições, etc.
20O Twitter é uma rede social que permite que os usuários enviem atualizações pessoais,
contendo apenas texto, em menos 140 caracteres via www.twitter.com, SMS, e-mail, ou algum
programa instalado no computador, como o TweetDeck. Disponível em
<www.claudiotorres.com.br/entenda-o-twitter-o-que-e-e-como-funciona>. Acesso em
09/06/2015. 21Web aparece aqui com o significado de rede (da internet). 22Blog ou blogue (contração do termo inglês weblog, "diário da rede") é um site cuja estrutura
permite a atualização rápida a partir de acréscimos dos chamados artigos, ou posts. Estes são, em
geral, organizados de forma cronológica inversa, tendo como foco a temática proposta do blog,
podendo ser escritos por um número variável de pessoas, de acordo com a política do blog. 23Instagram é uma rede social online de compartilhamento de foto e vídeo que permite aos seus
usuários tirar fotos e vídeos, aplicar filtros digitais e compartilhá-los em uma variedade de
serviços de redes sociais, como Facebook, Twitter, etc. Disponível em
<pt.wikipedia.org/wiki/Instagram>. Acesso em 09/06/2015. 24 Forma de comunicação a distância, utilizando computadores ligados à internet, na qual o que
se digita no teclado de um deles aparece em tempo real no vídeo de todos os participantes do bate-
papo.
41
As páginas pessoais são mais simples, na sua grande maioria, podendo conter
alguns dos recursos mencionados nas páginas institucionais, mas basicamente eles se
destinam para o cristão testemunhar a sua fé através da internet, postar mensagens e
passagens bíblicas preferidas, além de informações pessoais.
Infelizmente, nem todos percebem a importância deste novo ambiente, ou se
percebem ainda não deram a devida importância, só comunicam fatos e informações, sem
permitir a interatividade, sem explorar as suas potencialidades, a exemplo do mito da
Caverna de Platão25, olham as sombras projetadas na parede e ficam felizes com o que
representam, ao invés de verificar a realidade que possuem atrás de si. Veja-se, por
exemplo, o site da Arquidiocese de Olinda e Recife:
25 O Mito da Caverna, é uma passagem do livro “A República” do filósofo grego Platão. É mais
uma alegoria do que propriamente um mito. É considerada uma das mais importantes alegorias
da história da Filosofia. Através desta metáfora é possível conhecer uma importante teoria
platônica: como, através do conhecimento, é possível captar a existência do mundo sensível
(conhecido através dos sentidos) e do mundo inteligível (conhecido somente através da razão).
O mito fala sobre prisioneiros (desde o nascimento) que vivem presos em correntes numa caverna
e que passam todo tempo olhando para a parede do fundo que é iluminada pela luz gerada por
uma fogueira. Nesta parede são projetadas sombras de estátuas representando pessoas, animais,
plantas e objetos, mostrando cenas e situações do dia-a-dia. Os prisioneiros ficam dando nomes
às imagens (sombras), analisando e julgando as situações.
Vamos imaginar que um dos prisioneiros fosse forçado a sair das correntes para poder explorar o
interior da caverna e o mundo externo. Entraria em contato com a realidade e perceberia que
passou a vida toda analisando e julgando apenas imagens projetadas por estátuas. Ao sair da
caverna e entrar em contato com o mundo real ficaria encantado com os seres de verdade, com a
natureza, com os animais e etc. Voltaria para a caverna para passar todo conhecimento adquirido
fora da caverna para seus colegas ainda presos. Porém, seria ridicularizado ao contar tudo o que
viu e sentiu, pois seus colegas só conseguem acreditar na realidade que enxergam na parede
iluminada da caverna. Os prisioneiros vão o chamar de louco, ameaçando-o de morte caso não
pare de falar daquelas ideias consideradas absurdas. Disponível em
<http://www.suapesquisa.com/platao/mito_da_caverna.htm>, acesso em 09/06/2015.
42
A página principal do site apresenta
na sua parte superior uma foto da
cidade de Recife onde se sobrepõe o
brasão do Bispo com o nome da
Arquidiocese de Olinda e Recife; na
faixa da esquerda, que se manterá fixa
à escolha do menu, encontram-se
vários “botões” que levam às páginas
complementares do site, tais como:
história da arquidiocese; arcebispo -
rápida bibliografia dos três
arcebispos, o titular, o emérito e o
auxiliar; clero - relação dos padres
com respectivos endereços e contatos; vicariatos – subdivisão da arquidiocese; paróquias
que compõem a arquidiocese, pastorais– as desenvolvidas na arquidiocese; centros de
formação – endereços de casas de formação, curso para noivos – calendário dos cursos
para noivos na arquidiocese , notícias – da arquidiocese, formação – onde aparecem mais
notícias e fale conosco. Logo abaixo e, ainda na faixa a esquerda, encontra-se um “cartaz”
sobre a Campanha da Fraternidade deste ano que, ao ser clicado, só conduz para uma
ampliação do mesmo, abaixo tem-se um “cartaz botão” que direciona para o jornal online
da Arquidiocese, cujo exemplar de acesso corresponde ao bimestre de setembro/outubro
de 2012. O centro da página é representado por quatro grandes campos: palavras do
Arcebispo; Notícias (repetindo-se o apresentado nos botões principais); documentos e
formação (também repetição do botão principal) e eventos. De acordo com as escolhas
dos botões no menu principal, esta parte central da página é modificada, apresentando-se
o que foi requisitado. Na parte inferior é apresentado uma faixa fixa com links de acesso
para a Rádio Olinda, redes sociais, e paróquias.
Uma das possibilidades que mais levam um site ser visitado é o seu conteúdo, sua
interatividade e sua atualização. Entretanto, facilmente percebe-se que o site da
Arquidiocese local, falha sob estes pontos de vista em vários aspectos: a) ele se parece
com um quadro mural, utiliza uma mídia clássica para dar informações; b) a interatividade
com o internauta é mínima, reduzida ao quadro “fale conosco”; c) não se percebe, no site,
uma aproximação ao Sagrado; d) o site possui várias partes desatualizadas, em consulta
43
ao mesmo em 09/06/2015, foram encontradas várias notícias defasadas, a mensagem do
Arcebispo, por exemplo, refere-se à Missa do Crisma e o acesso ao jornal online, que
possui destaque no site, conduz à edição do bimestre de set/out de 2012; e) há duplicidade
de acesso para as mesmas informações, etc.
Numa versão atualizada, contrária ao do site da Arquidiocese encontra-se o site
da Paróquia da Torre, pertencente à Arquidiocese de Olinda e Recife: o site
possui uma pagina inicial, cujo
conteúdo está na parte superior e onde
podemos encontrar “botões de acesso”
como paróquia, formação, orações,
multimídia e contato. O botão paróquia
conduz ao histórico, pastorais, ECC26,
padres e CAP27, no botão de formação
aparecem vários títulos e clicando sobre
os mesmos, tem-se acesso aos textos; no
botão multimídia, tem-se acesso à
webtv e aos links com Facebook,
Twitter, Instagram,etc. Há um botão
para contato e na parte central tem-se
também um acesso ao blog da capela da
paróquia; enquanto tudo isso ocorre,
fica a disposição do internauta os horários das missa, adoração e confissão, bem como, as
últimas notícias, sempre atualizadas.Além do site ser mais simpático, há um visual mais
moderno, mais interativo que possui uma atualização constante, de tal forma, que é muito
convidativo a sua consulta.
Pode-se descrever sites mais completos, com uma gama muito maior de opções e
de possíveis acessos, como por exemplo o da Canção Nova ( www.cancaonova.com.br),
ou ainda o site do Santuário de Aparecida, (www.a12.com/santuario-nacional), referem-
se à portais de acesso, tendo desde a parte referentes aos histórico e formação, liturgia;
passando pela parte de multimídia, chats, músicas, vídeos, livraria, peregrinações
26ECC, refere-se ao Encontro de Casais com Cristo, serviço da igreja criado nos anos 70 para
aproximação dos casais da Igreja. 27CAP - Conselho Administrativo e Pastoral
44
virtuais, notícias, ensino bíblico, editoras, fórum de discussões e uma infinidade de outros
recursos que atraem o internauta cristão para que sempre o acesse.
Salienta-se que não é objetivo desse texto analisar site por site, mas tratar,
apenas,de uma tentativa para despertar as igrejas particulares à exploração desse
ambiente, de forma criativa, aproveitando o potencial desse novo método de divulgação
da mensagem cristã.
CONCLUSÃO
Pelos exemplos acima citados, pode-se concluir que, a formação de um bom
veículo de comunicação não fica restrito ao campo financeiro, mas amplia-se ao campo
estrutural, porque a princípio, uma paróquia, possui menos possibilidades do que a
Arquidiocese; é preciso que os envolvidos no processo, convençam-se das oportunidades
geradas nesse novo ambiente e o coloque ao serviço (Ag 2,4), em vista da formação do
Reino de Deus anunciado por Jesus.
A Igreja precisa se apoderar desse novo suporte e no ciberespaço, digitalizar seus
documentos e informações, integrando-os, na medida do possível, em uma mesma
plataforma que permita acessos rápidos e restritos; tal medida propiciaria a integração
entre as paróquias, tornaria o processo mais ágil, teria menos burocracia, além de oferecer
maior segurança aos dados que atualmente se perdem em armários sujeitos a todo tipo de
intempéries.
Projetos pastorais comuns, campanhas de ajudas mútuas, informações
centralizadas da Igreja local, recursos multimídias com o filmes, mensagens radiofônicas,
homilias, conteúdo doutrinal, seriam algumas das vantagens de um projeto estruturado de
utilização da internet. Isso poderia se tornar um canal confiável de informação a
respeitodas atividades na e da arquidiocese e poderia reforçar os vínculos de unidade entre
os cristãos.
A internet, por si só, não gera vínculos de relações como as desejadas desde o
inicio do cristianismo, mas ela pode ser um facilitador no contato com as pessoas e um
caminho para a divulgação da mensagem cristã. Faz-se necessário ensinar aos
seminaristas e jovens padres sobre o potencial deste novo instrumento; (cursos e
45
seminários no que diz respeito ao uso da internet, podem seapresentar como uma proposta
viável dentro desse novo contexto de evangelização).
Deve-se aproveitar e utilizar a capacidade dos leigos que muitas vezes já utilizam
da internet de forma profissional, que coloquem seus talentos a serviço da Igreja e do
próximo.
A rede, cada vez mais, está na vida de todos os cristãos e influencia na capacidade de
compreender a realidade, na sua fé e no seu modo de vivê-la, como “ser e fazer igreja”,
ela possibilita ao ser humano desenvolver sua capacidade de conhecimento e de relações
humanas, pilares fundamentais da existência da Igreja.
REFERÊNCIAS
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Nota doutrinal sobre alguns
aspectos da evangelização. Disponível em <http://
www.vatican_curia/congregations/efaith/doc>. Acesso em: 09/06/2015.
LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: ed. 34, 1999.
PONTIFÍCIO CONSELHO PARA AS COMUNICAÇÕES SOCIAIS, Igreja e Internet.
Disponível em: <http:// www.vatican.va>. Acesso em 05/06/20115.
SPADARO, A. Ciberteologia: pensar o cristianismo nos tempos da rede. São Paulo:
Paulinas, 2012.
________Web 2.0: redes sociais. São Paulo: ed. Paulinas, 2013.
SBARDELOTO, M. E o verbo se fez bit: a comunicação e a experiência religiosas na
internet. São Paulo: Ed. Santuário, 2012.
________@Pontifex e os sacros tuites; as redes sociais digitais segundoBento XVI. São
Leopoldo, 30 jan. 2013. Artigo postado no site do Instituto Humanitas Unisinos, no link
Notícias. Disponível em: <http://migre.me/ds1SZ>.
46
FAZENDO JUS AO NOME?:
Aspectos culturais do Filho do Homem em Jesus Cristo
Edivaldo Ferreira de Arruda28
1 Um panorama histórico
O termo “Filho do Homem”, entre outros títulos cristológicos, tem sido um objeto
de estudo desde o século XX e certamente divide opiniões. Tem se observado também
que a partir da perspectiva de muitos teólogos, o significado do termo pode ter sido
atribuído a uma gama diversa de opiniões dos escritores dos Evangelhos.
Inicialmente, em nível um nível mais superficial, é interessante relacionar os
diversos títulos cristológicos, ressaltando a importância destes para a pessoa e obra de
Jesus Cristo. Realizando em seguida a análise da historicidade do termo Filho do Homem,
a partir da perspectiva judaico-cristã. Por outro lado, por meio de apreciações de trabalhos
de vários comentaristas bíblicos e exegetas, também se faz necessário verificar as
possíveis semelhanças entre o Filho do Homem e o Messias, evidenciando as
características de convergências entre ambos.
Ademais, é interessante fazer um estudo linguístico do termo Filho do Homem, à
luz da análise histórico-teológica desta expressão, a fim de problematizar, as razões pelas
quais Jesus Cristo se utilizou desse aposto para referir-se à sua pessoa, e de que maneira
se pode relacionar as nuances da figura do Filho do Homem com a designação
escatológica.
2 O Filho do Homem na cultura judaico-helênica
28 O autor é ministro Batista na PIEBP, mestrando em Teologia pela UNICAP na área de interpretações de
literatura bíblica e teológica, graduado em Licenciatura em Física pela UFRPE, Bacharel em Teologia nos
seminários STBNB e STPN. Atualmente leciona no STPN as disciplinas de grego instrumental, hebraico
instrumental, Exegese do Novo e do Antigo Testamentos, orientação à monografia e Novo Testamento.
47
A partir da perspectiva bíblica, é razoável perceber por que se gastou tempo nas
análises da apropriação do nome o Filho do Homem por Jesus Cristo, quem sabe com a
intenção de identificar-se com o Filho do Homem descrito em Dn 7.1329. Certamente,
muitos dos que adotam a linha de hermenêutica bíblica30 para investigar os aspectos que
davam significação à utilização da expressão o Filho do Homem em Jesus, procuram
ressaltar o papel exercido por uma figura escatológica31. Isso não quer dizer que Jesus
será despojado da sua natureza humana, mas que o ato de julgamento das nações no fim
dos tempos retrata a ação transcendental de Cristo. Evidentemente, diante da expectativa
messiânica, é razoável supor que “A literatura judaica tardia indica que este termo geral,
‘homem’, serviu, na época de Jesus, para designar um salvador escatológico: é o título
que ostentaria um mediador especial a aparecer no final dos tempos. ” 32
Em geral, a literatura judaica tardia é composta por livros históricos cujos textos
foram escritos posteriormente àqueles comumente aceitos pela tradição judaica. Com
efeito, embora muitos daqueles livros não sejam considerados proto-canônicos33, eles
oferecem em sua estrutura elementos que refletem o contexto aos quais se referem,
podendo trazer, por analogia, esclarecimentos significativos. A literatura judaica tardia
dos livros apocalípticos de 4 Esdras e Enoque também são relevantes para esboçar os
aspectos culturais da comunidade judaica, em contrapartida, não são interessantes para o
estudo linguístico, porque não são considerados pré-cristãos, tornando-se, por
conseguinte, historicamente distantes do cenário da literatura sinótica. Assim sendo, é
preciso ressaltar que:
Das três fontes principais, a evidência d 4Esdras 13 pode ser
descartada para o nosso propósito porque não é pré-cristã. A
passagem de Enoque na qual o título aparece (37-71) com toda a
probabilidade, não é pré-cristã pois não há evidências dessas
seções nas porções sobreviventes de Enoque encontradas na
biblioteca de Qumran. É perigoso, portanto, dar valor a ela para a
29 Daniel 7.13 “Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem, e dirigiu-se ao Ancião de Dias, e o fizeram chegar até ele.” 30 Hermenêutica bíblica é a ciência que trata da interpretação dos textos bíblicos. 31 Escatologia é o ramo da teologia sistemática que estuda a doutrina dos últimos dias. 32 CULLMANN, O. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008, p. 184. 33 Proto-canônicos se refere ao conjunto de livros do Antigo Testamento aceitos no primeiro momento pela
tradição judaica e mais tarde pela Igreja cristã.
48
interpretação do uso sinótico. Isso nos deixa com Dn 7 como
única fonte pré-cristã. 34
Cullmann35 é menos enfático em relação a possibilidade de Daniel 7.13 ser
utilizado como fonte exclusiva de consulta para compreender a figura do Filho do
Homem. Conquanto ele reconheça a importância da obra judaica de Enoque para a
compreensão do começo do cristianismo, contudo, admite ser uma literatura tardia. Ladd
também considera pouco relevantes tais escritos para uma análise do termo Filho do
Homem, assinalando que:
Enoque obviamente consiste de cinco partes. Os fragmentos de
quatro partes foram encontrados entre os escritos de Qumran, mas
nenhum fragmento das Similitudes foi encontrado. Isto leva
muitos estudiosos a concluírem que as Similitudes não podem ser
pré-cristãs e não podem ser usadas para interpretar o conceito de
Filho do Homem encontrado no Novo Testamento.36
Entretanto, deve-se considerar que existem muitos debates acerca da importância
do uso de documentos helenistas como aparato linguístico, que visam o entendimento de
certas questões teológicas ocorridas durante o período cristão. Mas é razoável entender
os questionamentos levantados por Guthrie ao ressaltar a imprecisão de fontes
documentais do período helênico pelo fato de que estas não são pré-cristãs, embora de
certo modo ressaltem características que coincidam com o pensamento cristão. Destarte,
no período helenista, é difícil perceber referências significativas do termo grego o` ui`o.j
tou/ avnqrw.pou37 que tenha influenciado o pensamento cristão. Além do mais é possível
perceber historicamente que outras figuras preeminentes também passaram a fazer parte
da expectativa do mundo oriental e helenista, cujas características não coincidem com
àquelas descritas no Filho do Homem empregado nos Evangelhos Sinóticos. Em relação
a esse ponto de vista, Russell pontua que “por todo o mundo oriental e helenístico, havia
uma crença amplamente difundida em um Homem Primordial, cujas qualidades e
34 GUTHRIE, D. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 277. 35 CULLMANN, op. cit., p.186. 36 LADD, G. E. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003, p.197. 37 o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou (ho huiós tu anthrôpu) é o termo grego que se refere a expressão “O Filho do
Homem.”
49
propriedades eram, em alguns aspectos, notavelmente semelhantes àquelas do Filho do
Homem do apocalíptico judaico. ” 38
No livro de Daniel e nas literaturas apocalípticas do primeiro século (4 Esdras e
Enoque), pode-se inferir que o Filho do Homem não tem característica de título, uma vez
que não corresponde a uma determinada designação decorrente do ofício do nome. Nota-
se que:
O que chama a atenção na expressão um como Filho do Homem
é o “como”. Ele parece estar relacionado ao começo da visão do
capítulo 7, quando Daniel vê os animais: um “como” um leão,
outro “como” um urso e outro “como” um leopardo. A linguagem
é claramente simbólica. A questão é saber se um como Filho do
Homem se refere a um homem elevado à esfera celeste, ou a um
ser celestial que aparece em forma humana. 39
É razoável considerar que entre os séculos I e II d.C. havia a significativa
preocupação com a reinterpretação das literaturas mais antigas, principalmente aquelas
nas quais existiam perspectivas apocalípticas. Talvez pela necessidade dessas releituras é
que muitos teólogos contemporâneos, entre eles, Bultmann, Jeremias, Dunn etc.
acreditam que o termo Filho do Homem também fosse uma releitura posterior dos
escritores sinóticos à luz de Daniel 7, e por essa razão colocaram nos lábios de Jesus esse
título escatológico. Diante dessas conjecturas não se pode negar que na tradição judaica
havia a expectativa de um ser transcendente, como um homem, que exerceria julgamento
sobre todas as nações, e o seu reinado seria eterno.
Por outro lado, é importante enfatizar a distinção observada no emprego do termo
“o Filho do Homem” na literatura véterotestamentária, ressaltando os aspectos
contextuais nos quais o significado da expressão está condicionado às circunstâncias
relativas ao ser humano diante de sua frágil condição enquanto criatura, ou ao ser humano
com aspectos transcendentais, retratando nesse último, a imagem descritiva da
perspectiva judaica que expectava, da parte de Deus, o ser que haveria de se manifestar e
soberanamente julgaria as nações; assim, partindo da analogia entre o livro de Daniel e
Ezequiel, pode-se dizer que:
38 RUSSELL, D. S. Entre o Antigo e o Novo Testamentos O Período Interbíblico. 2. ed.São Paulo: Abba
Press, 2007, p.140. 39 SCHIAVO, L. Anjos Messias: Messianismos judaicos e origem da cristologia. São Paulo: Paulinas,
2006, p. 51.
50
Em Ezequiel, Deus se refere ao profeta com a expressão "filho do
homem" mais de noventa vezes, apontando para a fragilidade de
Ezequiel como um ser humano perante o poderoso Deus revelado
na visão. Mas "Filho do Homem" é usado também na profecia de
Daniel para se referir a um Soberano glorificado, a figura
apocalíptica messiânica que governa para sempre com o Ancião
de Dias (Dn. 7:13-14). 40
A síntese apresentada ressalta a figura do “filho do Homem” como o ser homem
no sentido frágil e debilitado diante do Deus Todo-Poderoso, conforme descrito no livro
de Ezequiel, é intensificada na figura escatológica apontada em Daniel 7, culminando no
humano-supremo, governante das nações e representante dos Santos do Altíssimo. Nesse
sentido, eleva-se, sem dúvida, a figura do “o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou. ”
A respeito dos aspectos escatológicos presentes na figura do “Filho do Homem”
em consonância com a perceptível predileção no tocante ao emprego desse termo por
parte de Jesus, é preciso considerar o seguinte: primeiro, é que para alguns estudiosos
essa expressão não tenha saído dos lábios do Jesus histórico; segundo, outros ainda
pontuam que este uso indistinto tenha sido uma tentativa forçada da parte dos discípulos
com objetivo de elevar a importância da obra de Jesus. Por outro lado, é imprescindível
levar em consideração o fato de que em nenhum outro momento de vida de Jesus, exceto,
é claro, na páscoa que antecedeu a sua morte, ocorre uma referência no textual na qual
ele tenha se apropriado do título messiânico, tendo em vista esse fazer sentido
preeminente no cenário judaico-cristão. Seja qual for o ponto de vista, o argumento do
silêncio messiânico reforça a conveniência no uso indistinto do termo “o Filho do
Homem”. Conquanto o Jesus histórico nunca tenha negado a sua messianidade ele prefere
não se expor, utilizando, assim a expressão que ressalta não só o aspecto escatológico,
mas reflete bem a sua humanidade, além do mais,
Com essa ambigüidade geral, "Filho do Homem", é conveniente
que Jesus use o termo, para dar instruções acerca da sua
verdadeira identidade. Ele não tem associações populares ligadas
a si, da maneira que foram ligadas aos títulos como "Messias",
"Filho de Davi", ou até mesmo “Filho de Deus.” [...] A missão de
Jesus não é sempre compreendida por causa das más
40 ARNOLD, E. C. Zondervan Illustrated Bible Commentary Backgrounds. v.1. Mateus, Marcos, Lucas. In: Sistema de Biblioteca Digital Libronix 3.0g, 2007. p. 59.
51
interpretações e expectativas errôneas do povo, dos líderes
religiosos, e até mesmo seus próprios discípulos. Mas no final, é
perfeitamente claro que ele está afirmando ser o Messias divino
de Israel (cf. Mt 26:63-68). 41
Nota-se, portanto, que o texto de Mt 26.63-6842 citado por Arnold sugere uma
forte razão pela qual Jesus não tenha se colocado de maneira pública como o Messias. Do
exposto, é razoável perceber que esse argumento é consistente quando coloca que a
missão de Jesus estava sujeita às más interpretações dos líderes religiosos, pois mesmo o
“Filho do Homem” sendo o Servo Sofredor, consciente de sua missão, dependente de
Deus, sujeitando-se ao Pai com humilde, ressalta, todavia, o aspecto transcendental do
Reino escatológico de Deus.
3 O Filho do Homem e o Messias
Traçando-se um comparativo político entre os escritos judaicos canonizados e a
literatura judaica tardia, pode-se perceber que de certo modo a figura messiânica difere
da do Filho do Homem no seguinte ponto: enquanto o judaísmo oficial esperava
ansiosamente pelo Messias humano, mas investido de autoridade política para prevalecer
diante das forças dominantes e opressoras do Império romano, considerado inimigo de
Israel, o qual estabeleceria um reino terreno e próspero; por outro lado, a expectativa em
torno do Filho do Homem descrito em Dn 7.13, não obstante semelhante a um ser
humano, este tinha origem celestial, sobrenatural, cujo reino não era terreno, porém,
transcendental, celestial.
É possível perceber nas entrelinhas que a confissão de Pedro descrita em Mt
16.13-1643 fornece elementos que denotam uma clara distinção entre o termo Filho do
Homem e o Messias. Tendo em vista o fato de que Jesus fala de si próprio como o Filho
41 ARNOLD, 2007. p.59. 42 E Jesus, porém, guardava silêncio. E, insistindo o sumo sacerdote, disse-lhe: Conjuro-te pelo Deus vivo
que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus. Disse-lhes Jesus: Tu o disseste; digo-vos, porém, que
vereis em breve o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu.
Então, o sumo sacerdote rasgou as suas vestes, dizendo: Blasfemou; para que precisamos ainda de
testemunhas? Eis que bem ouvistes, agora, a sua blasfêmia. Que vos parece? E eles, respondendo,
disseram: É réu de morte. Então, cuspiram-lhe no rosto e lhe davam murros, e outros o esbofeteavam,
dizendo: Profetiza-nos, Cristo, quem é o que te bateu? 43 [...] Quem diz o povo ser o Filho do Homem? [...] Respondendo Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo, o
Filho do Deus vivo.
52
do Homem ao interrogar os discípulos; Pedro, por sua vez, se antecipa ao emitir uma
resposta interpretada ao afirmar que este Jesus (Filho do Homem) tem as características
do tão esperado Messias. No entanto, mesmo que esses conceitos sejam convergentes em
muitas situações do Mundo Antigo, vale ressaltar, que nos testemunhos dos Evangelhos,
Jesus sempre se designou como o Filho do Homem ao falar de si mesmo; portanto, a partir
dos seus lábios, Jesus não costumava usar outro título quando se referia a sua pessoa,
embora eles coexistissem. Segundo Coenen44 O termo “Filho do Homem” aparece 82
vezes, sendo 69 nos sinóticos (Marcos 14 vezes; Mateus 30 vezes e Lucas 25 vezes) e 13
vezes no Evangelho segundo João. Dos 82 registros do termo “o Filho do Homem” nos
Evangelhos 15 citações ocorrem antes da confissão de Pedro em Cesareia de Felipe, cf.
Mt 16: 13-20.
Por outro lado, deve-se considerar as circunstâncias políticas em que Jesus estava
inserido, nas quais era imperativo que Jesus não chamasse a atenção para si como o
Messias, que haveria de vir para livrar Israel, definitivamente, do poder das nações
inimigas. Assim, “Jesus opta por esta designação para evitar o conceito de Messias,
sujeito a mal-entendidos. Ele trata de excluir todos os aspectos políticos e nacionais. Ele
não quer ser transformado em rei dos judeus”.45 É importante salientar que em nenhum
momento do seu ministério terreno Jesus tenha duvidado da sua missão no que diz
respeito ao aspecto messiânico, mas é significativo acentuar que:
Não é surpreendente que Jesus, desde o tempo de sua tentação, não
tenha apenas recusado a proclamar a si mesmo como o Messias, como
também desencorajado outros de usarem esse título em relação a ele.
[...] Fazê-lo antes teria levado a um completo mal-entendido, não
apenas por parte do povo, mas até mesmo por parte de seus próprios
discípulos. A interpretação de Jesus em relação ao Messias era
completamente diferente da interpretação do povo de seu tempo. 46
Por outro lado, muitas características transcendentes tendiam a prender-se à
pessoa do Messias, pois em muitos círculos apocalípticos, essas ideias vinculam-se a um
Messias genuinamente transcendente, cujo aparecimento passou a ter uma forte influência
nas expectativas messiânicas populares. 47 Nesse sentido, é razoável a distinção existente
entre o Messias e o Filho do Homem, pelo menos no que diz respeito ao sentido imediato
da compreensão do termo pelo auditório que circundava a Jesus, pois:
44 COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. v.2. São Paulo:
Vida Nova, 2008, p. 2360-2361. 45 HORSTER, G. Teologia do Novo Testamento. Curitiba: Evangélica Esperança, 2009, p. 80. 46 RUSSELL, 2007, p. 134. 47 Ibid., p. 136.
53
De fato, em cada passagem o contexto revela que, quando Jesus
emprega esse título, ele está se referindo a si próprio. Ao usar esse título,
falando aos judeus, Jesus podia revelar-se gradualmente, não de uma só
vez. Em sua obra entre eles, se houvera imediatamente se denominado
o Messias, não teria seu ministério chegado a um fim prematuro? 48
Sendo assim, tal percepção progressiva por parte dos seguidores de Jesus Cristo,
tornava cada vez mais evidente que a pessoa do Filho do Homem revelava os aspectos
messiânicos. A partir daí, em consonância com essas inferências, observa-se que:
Gradualmente, contudo, à medida que Jesus continuava a descrever o
que estava fazendo, enfrentando e planejando como Filho do homem,
começassem a sentir-se perplexos e a perguntar: "Quem é esse Filho do
homem"? (Jo 12.34, a única passagem nos Evangelhos em que alguém
além do próprio Jesus usa esse termo.) E, assim, gradualmente a mente
dos ouvintes ia sendo iluminada. O clímax veio quando, sem a mínima
restrição, Jesus se identificou (Mt 26.62-64) em sua glória vindoura,
com a augusta pessoa que na profecia de Daniel (7.13,14) foi
introduzida na presença do Ancião de Dias! O uso da autodesignação,
"Filho do homem", enfatizava o fato de que o portador desse título não
era o Messias nacionalista da esperança judaica, mas (em certo sentido)
"o Salvador do mundo" (Jo 4.42; cf. lTm 4.10).49
Dessa forma, Jesus ao utilizar o termo em evidência se autodesignava como o
Salvador escatológico de Daniel 7:13-14. Coadunando com essa perspectiva, é razoável
perceber a convergência dos atos do Filho do Homem no Messias aguardado por Israel,
mediante o emprego do termo que só tem um significado messiânico à posteriori.
Portanto,
Ele não se denominou Messias, porque sua missão foi completamente
diferente da conotação que o termo messiânico tinha na mentalidade
popular. Denominou-se o Filho do Homem porque este título continha
uma reivindicação exaltada e ainda assim, ao mesmo tempo, permitia
que Jesus desse um novo significado ao termo. [...] Depois que os
discípulos foram convencidos de que Jesus era de fato o Messias, muito
embora um Messias de um novo tipo, instruiu-os nos aspectos mais
amplos do destino do Filho do Homem. 50
48 HENDRIKSEN, W. Comentário do Novo Testamento: Mateus. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 574.
49 Ibid., p. 574. 50 LADD, 2003, p. 206.
54
De fato, é provável que Jesus tinha em mente a sua auto-designação como “Filho
do Homem” para ressaltar as características sobrenaturais implícitas nessa pessoa, o que
difere substancialmente do Messias-Rei triunfante em todos os seus aspectos. Dessa
forma, Jesus explicita a necessidade de um Reino transcendente iniciado a partir da sua
humilhação diante dos homens e a sua sujeição incondicional a Deus, tendo como
finalidade a sua morte, a partir da qual se iniciaria a exaltação do Filho do Homem e as
consequentes evidências de um Reino Messiânico visível. Por outro lado, afirmar que
Jesus se denominou o Messias ou inferir que o “Filho do Homem” é um termo
genuinamente messiânico no sentido da palavra é desconsiderar a cosmovisão que os
judeus tinham no primeiro momento em que se depararam com a expressão. É preciso
também considerar o aspecto progressivo da Revelação em que os discípulos de Jesus
estavam vivenciando. Houve sim, por parte desses seguidores de Jesus Cristo, no primeiro
instante uma leitura das características do Filho do Homem de Dn 7:13 presentes em
Jesus, assimiladas essas características, ocorreu consequentemente uma releitura do
conceito do Messias, a partir da perspectiva do “Filho do Homem” escatológico. Nesse
sentido, as duas figuras, o Filho do Homem e o Messias, se tocam, porém de maneira
gradual é que se podia fazer uma interpretação. Sendo assim, “ele estava, de fato,
reinterpretando o conceito de messianismo até que os seus discípulos pudessem
identificar o Filho do Homem com o Jesus, o Messias. ”51 Do exposto, é razoável entender
que o termo Filho do Homem tenha recebido, dentro do contexto judaico-cristão, um
enfoque messiânico à posteriori. Jesus tinha a plena consciência de que o Messias e o
Filho do Homem eram a mesma pessoa, mas a comunidade expressou essa idéia quando
escreveu os Evangelhos. Ademais, é provável que as ideias do Filho do Homem e do
Messias tenham origens diferentes e representem duas concepções bem distintas da
inauguração do reino vindouro, tendo em vista o aspecto progressivo da revelação. Além
do mais, os aspectos individuais das duas figuras, a do filho do homem e a do Messias,
configuram circunstâncias diferentes na história, ressaltando em alguns momentos
características distintas. Contudo, teologicamente, se conclui que os aspectos pessoais são
convergentes, ratificando, portanto, a multiplicidade dos ofícios de Jesus Cristo, no
decurso da história do Filho do Homem.
51 GUTHRIE, 2011, p. 285.
55
4 Aspectos linguísticos do termo Filho do Homem
Precedido pelo artigo definido “o”, a expressão “Filho do Homem” pode designar
o homem no sentido maior, o homem extraordinário, o representante normal da
humanidade: um homem verdadeiro e simultaneamente o verdadeiro homem. Utilizando-
se de uma abordagem científica relacionada ao conhecimento do termo “Filho do Homem,
” Jeremias defende que a comunidade judaica tardia se utiliza de certos aramaismos que
denotavam a ideia de representatividade do todo ou da coletividade, sendo assim,
O título o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou é desconhecido no grego profano.
Antes, aí temos a tradução literal de um status constructus
determinativo aramaico: אנׂש בר [bar ‘enasha]. O que significa? Como o
hebraico O¤A [ben], o aramaico בר [bar] é usado diante de substantivos,
na maioria das vezes para designar a descendência, mas nem sempre é
o caso. [...] Este último caso está presente em bar ‘nasha: bar designa o
indivíduo que faz parte de ‘enash, “homem”, usado como conceito
coletivo. 52
Ainda, segundo Jeremias, pode-se entender que o termo aramaico que deu origem
ao grego “o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou” significando, portanto, em sentido indefinido, “um
homem”. Contudo, Marshall defende que para Marcos, assim como para os demais
evangelistas, o título “Filho do Homem” é de origem grega, refere-se a Jesus e é utilizado
exclusivamente por ele em relação a si mesmo. Sendo assim, acerca da origem deste
termo, Marshall escreve que:
Quaisquer que sejam as raízes desse título e sua referência
original, para Marcos ele guarda as seguintes conotações: 1. O
título "Filho do homem" é uma: alusão que Jesus faz a si mesmo,
sendo pouco provável que, qualquer que; tenha sido seu
significado original, o título tivesse alguma conotação de caráter
inclusivo ou genérico, de forma a permitir que pudesse ser usado
em afirmações que se relacionassem tanto a Jesus (no papel de
orador) quanto a quaisquer outras pessoas. Jesus, ao utilizá-lo,
está se referindo exclusivamente a si mesmo. 2. E um termo de
uso privilegiado nas 32 passagens que falam da paixão, morte e
ressurreição de Jesus (Mc 8.31; 9.12,31; 10.33,45; 14.21,41). 3.
Também é um título de uso privilegiado nas passagens relativas a
funções futuras de Jesus, quando ele virá para julgar, sentar-se à
direita do Pai e reunir o povo de Deus (Mc 8.38; 13,26; 14.62). 53
Essas afirmações a respeito do emprego do termo Filho do Homem como
resultado de um desenvolvimento contínuo na tradição sinótica também podem ser
sentidas porque:
52 JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008, p. 374. 53 MARSHALL, L H. Teologia do Novo Testamento: diversos testemunhos, um só evangelho. São Paulo:
Vida Nova, 2007, p. 76.
56
Característico é o fato de que, já na tradição paralela,
frequentemente, a designação e o pronome pessoal são trocados.
Vejamos: Em Mc 8:27, o diálogo que leva a confissão de Pedro é
introduzido pela pergunta: “Quem dizem os homens quem eu
sou?” Mateus escreve nesta passagem: “... ser o filho do
Homem?” sendo que a designação misteriosa é explicada para o
ouvinte através da confissão que se segue; o filho do homem é “o
Cristo, o filho do Deus vivo”. Inversamente, no entanto com a
mesma intenção, Mateus formula, em 10:32: “Todo aquele que
me confessar diante dos homens, também eu o confessarei...”,
enquanto que Lc 12:8 continua: “O filho do homem o
confessará”. Não se pode provar que a designação tenha sido
usada mais vezes para substituir o pronome pessoal do que vice-
versa.54
Diante do exposto, no que diz respeito à divergência do emprego do termo o filho
do homem nos sinóticos, pode se perceber que estes refletem a possibilidade de um
desenvolvimento das idéias concernentes ao filho do homem de Dn 7:13, convergindo
para uma interpretação à posteriori pela tradição primitiva, e o conseqüente emprego do
termo de maneira titular. Ademais, percebe que a expressão o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou
aparece quase que exclusivamente nos lábios de Jesus, o que fortalece a ideia de que Jesus
mesmo teria se autodesignado o Filho do Homem descrito em Dn 7. Não apenas como
um título, mas como uma referência da sua pessoa identificada com a do Filho do Homem
na visão de Daniel. Vale ressaltar, no entanto, que em nenhum momento Jesus cita
explicitamente o texto do profeta Daniel, de maneira que viesse a relacionar a sua pessoa
com a do Filho do Homem em Dn 7:13. No entanto, não se pode negar a possibilidade da
expectativa presente na tradição judaica do “o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou” escatológico. O
que certamente levou a comunidade primitiva a refletir na pessoa de Jesus como o filho
do homem vindouro que haveria de julgar as nações, em conformidade com as
pressuposições apocalípticas preditas em Dn 7.
Considerações finais
Considerando que ainda hoje existem divergências em relação ao significado
exato do termo “o Filho do Homem”, pelo menos em determinados círculos cristãos, e
tendo em vista a necessidade de uma exposição a respeito dos questionamentos
54 GOLPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 195.
57
levantados acerca das inferências feitas no decorrer dos anos, entende-se que o objetivo
deste trabalho foi alcançado.
Conquanto muitas questões ainda estejam abertas, dentro das possibilidades
históricas, o termo “o Filho do Homem” apresenta as características que remontam à
tradição judaica primitiva, perpassando por todo período pré-cristão e cristão, chegando
dentro da cultura helenista. Embora existam perspectivas diferentes entre muitos
teólogos, compreende-se que a palavra em evidência faz parte de toda uma tradição,
baseada na expectativa da figura escatológica descrita em Dn 7, cujas obras apontam para
o Messias. Por outro lado, é possível que o termo “filho do homem” tenha recebido
significado messiânico à posteriori, quando os seguidores de Jesus perceberam, no
decorrer de seu ministério, características intrinsecamente messiânicas. Isto pôde ser
verificado na confissão petrina em Cesareia, quando o “Filho do Homem” é interpretado
por Pedro como o Cristo, o Filho do Deus Vivo, a saber, o Messias.
Em seguida, considera-se a observação de teólogos como Jeremias, que defendem
o uso de “o` ui`o.j tou/ avnqrw.pou” como um não-titular, durante o estágio primitivo da
tradição. Contudo, as análises de determinados aspectos linguísticos que envolvem o
termo em destaque evidenciaram certas características enigmáticas presentes no “filho do
homem”, verificando-se, por conseguinte, a consistência lógica que apontaram as razões
do uso da expressão no período helenista.
Finalmente, observa-se que, na trajetória de vida judaica, havia sempre a
expectativa do “Messias-Filho-do-Homem”. Muito embora, não se deve deixar de levar
em conta a tradição judaica e suas nuances culturais, bem como as possibilidades
linguísticas etc. De certo modo, acredita-se que algumas questões referentes ao uso do
termo Filho do Homem, exclusivamente nos Evangelhos, estão abertas às discussões.
Referências
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Marcos, Lucas. In: Sistema de Biblioteca Digital Libronix 3.0g, 2007.
COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento.
v.2. São Paulo: Vida Nova, 2008.
58
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HENDRIKSEN, W. Comentário do Novo Testamento: Mateus. São Paulo: Cultura
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São Paulo: Abba Press, 2007.
SCHIAVO, L. Anjos Messias: Messianismos judaicos e origem da cristologia. São
Paulo: Paulinas, 2006.
59
A PRÁXIS DE JESUS:
pressupostos bíblico-teológicos a partir do diálogo de Jesus
com o jovem rico em Mateus 19,16-22
Eltom de Sousa Melo55
Prof. Dr. João Luiz Correia Júnior56
Introdução
A presença de jovens nas ações pastorais da Igreja, sejam elas voltadas para
a juventude ou protagonizadas por jovens, tem chamado à atenção da ação evangelizadora
nas diversas instâncias eclesiais. Ao falarmos do trabalho com a juventude surgem muitos
exemplos de situações adversas ao que se espera de uma boa ação pastoral. Também nos
nossos redutos pastorais se lamentam a limitação e a insuficiência do trabalho com os
jovens. Assim, tornou-se objeto de nossa reflexão a figura do jovem rico como um dos
poucos momentos em que a missão de Jesus parece não encontrar sucesso no anúncio da
Boa Nova.
Os resultados da pesquisa estão apresentados em três capítulos. O primeiro faz um
estudo exegético-literário da perícope. O segundo capítulo trata do Movimento de Jesus,
considerando aspectos sociais da comunidade mateana. O terceiro apresentará elementos
pastorais dos nossos tempos que encontram correspondência com a práxis de Jesus.
1. O diálogo de Jesus com o jovem rico
A perícope do jovem rico em Mateus 19,16-22 está localizada na sexta parte
do evangelho, segundo a Bíblia de Jerusalém (2008), O advento próximo do Reino dos
Céus (capítulos 19-25). Vamos ao texto:
55 Graduando do Curso de Bacharelado em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco
(UNICAP). E-mail: [email protected] . 56 Mestre e Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC RIO). Pós-
doutor pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade
Católica de Goiás (PUC GOIÁS), Professor e pesquisador da Universidade Católica de Pernambuco
(UNICAP), onde leciona no Curso de Teologia e no Programa de Pós-Graduação em Teologia e Ciências
da Religião. E-mail: [email protected] .
60
16Aí alguém se aproximou dele e disse: “Mestre, que farei de bom para
ter a vida eterna?” 17Respondeu: “Por que me perguntas sobre o que é
bom? O Bom é um só. Mas se queres entrar para a Vida, guarda os
mandamentos”. 18Ele perguntou-lhe: “Quais?” Jesus respondeu: “Estes:
Não matarás, não adulterarás, não roubarás, não levantarás falso
testemunho; 19 honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a
ti mesmo”. 20Disse-lhe então o moço: “Tudo isso tenho guardado. Que
me falta ainda?” 21Jesus lhe respondeu: “Se queres ser perfeito, vai,
vende o que possuis e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus.
Depois, vem e segue-me”. 22O moço, ouvindo essa palavra, saiu
pesaroso, pois era possuidor de muitos bens (Bíblia de Jerusalém).
O texto tem como introdução a aproximação de alguém, que só depois é
caracterizado como jovem, mais a pergunta que tematizará a reflexão, a vida eterna (v.
16). Uma especificidade do texto de Mateus em relação aos outros dois sinóticos (Marcos
10,17-22; Lucas 18,18-23) é a referência daquela pessoa que está em diálogo com Jesus
como sendo um jovem. O desenvolvimento do texto é marcado pelo diálogo entre Jesus
e o jovem (vv. 17-21), no qual “o interrogante mostra saber claramente qual o fim para
onde todo judeu pio sentia-se chamado por Deus: possuir a vida eterna, isto é, a salvação
final, a participação no Reino futuro” (BARBAGLIO, 1990, p. 300). E a conclusão se dá
com a resposta silenciosa do jovem à proposta de Jesus (v. 22). Pois, “a observância dos
mandamentos, embora necessária, não é suficiente” (BARBAGLIO, 1990, p. 301) para
obter a salvação.
O encontro de Jesus com o jovem rico acontece no caminho da Galileia rumo
a Jerusalém. A Galileia é tomada como local de partida de Jesus para sua missão, como
também da missão dos discípulos. Uma multidão o acompanha, além dos discípulos.
Estes são os destinatários de seu discurso de preparação para a vinda do Reino “que deve
restabelecer entre os homens a autoridade soberana de Deus, como Rei por fim
reconhecido, servido e amado” (Bíblia de Jerusalém, p.1695).
O evangelho de Mateus foi escrito entre os anos 80 e 90, após a destruição de
Jerusalém, no ano 70. O texto surge simultâneo a “um novo judaísmo, não mais centrado
no Templo, que não existe mais, mas na leitura da Lei de Moisés, (...) de inspiração
farisaica, chamado ‘judaísmo formativo’” (KONINGS, 2011, p.139). Ele foi escrito para
as comunidades cristãs da Síria e do norte da Palestina, das quais pertencia o apóstolo que
o nomeia; “foi endereçado a cristãos provenientes do judaísmo, que se sentem ‘filhos de
61
Abraão’ e foram instruídos na Lei de Moisés” (PAGOLA, 2013, p.11). Sem o templo,
muitos judeu-cristãos fundaram comunidades entre os judeus da diáspora. Para estes, com
a restauração do judaísmo nasceria “a Igreja convocada pelo Ressuscitado; destruído o
templo, Jesus, o ‘filho amado de Deus’, é a nova presença de Deus no mundo” (PAGOLA,
2013, p.11). As narrativas de Mateus são fundamentadas no testemunho dos apóstolos e
dos discípulos.
A presença desta perícope nos sinóticos evidencia a importância deste episódio na
caminhada de Jesus rumo a Jerusalém. Porém, Mateus apresenta algumas modificações:
O indivíduo não corre e se ajoelha e, na sua pergunta, chama-o
simplesmente de “Mestre” (Mc 10,17: “Mestre bom/insigne”); substitui
o verbo “herdar” de Marcos por “obter”. Muda também a resposta de
Jesus; o mais saliente é a imprecisão da frase: “O Bom é um só”, que
não distingue (ao contrário de Mc) entre Deus e Jesus. As mudanças de
redação explicam-se pela qualidade deste expressa em Mt 1,23: “Deus
entre nós”. Tudo que se atribui a Deus atribui-se igualmente a Jesus.
(MATEOS; CAMACHO, 1993, p. 219).
O jovem, no texto de Mateus, vai ao encontro de Jesus, diferentemente de outros
encontros e diálogos que tem a iniciativa do próprio Jesus. “Esse jovem é fiel à Lei do
Senhor e o ama. Entretanto, está insatisfeito: algo lhe falta. Ele já se encontra na vontade
divina; porém, diante desse desejo autêntico de vida eterna, Jesus lhe oferecerá a
possibilidade de passar a uma nova etapa” (MADRE, 2010, p.43). Quando pergunta sobre
o que fazer para obter a vida eterna, o jovem rico depara-se com uma resposta radical
diante das suas perspectivas. A resposta de Jesus “não se trata de um ‘conselho’ mas de
uma ordem para a consecução da vida eterna. Jesus muda as perspectivas do moço: não é
necessário fazer alguma coisa para ter a vida eterna, mas, abandonar para receber”
(CADERNOS BÍBLICOS v. 12, 1982, p. 83).
A interpretação de Jesus ao anseio de vida eterna do jovem, “quando diz: ‘se
queres ser perfeito’, não introduz, pois, nenhum termo novo; apenas exprime, de modo
diferente, a ideia contida em Mt 19,17: ‘se queres entrar para a Vida’” (JEREMIAS, 1983,
p. 180). O ser perfeito não configura a ausência de defeitos, nem um grupo seleto de
pessoas da sociedade, “mas, na compreensão do baixo judaísmo, perfeito é o justo que
observa fielmente a Torá” (JEREMIAS, 1983, p. 180). “Mateus, diferentemente de
62
Marcos e Lucas, acrescentou ao elenco o mandamento do amor ao próximo, ausente do
decálogo, mas testemunhado pelo livro do Levítico (19,18)” (BARBAGLIO, 1990, p.
300). Ao apresentar os mandamentos que fazem relação com o próximo, indica que a
relação com Deus se dá pela relação com os homens; aponta o amor a toda humanidade,
expressa pela pobreza, pelo “desfazer-se de tudo que tem sem esperança de retorno”
(MATEOS; CAMACHO, 1993, p. 221). A compreensão de Deus que Jesus transmite nos
seus ensinamentos prescinde da compreensão de relação em cada ser humano. Jesus
aponta Deus em relação, no outro, e não no cumprimento da Lei.
Na sua caminhada, Jesus encontra com fariseus, com cegos, e, sobretudo as
multidões continuam participando dos seus ensinamentos, não mais por palavras, mas a
partir da vida, de encontros do cotidiano. Os discípulos o acompanham e ficam sempre
mais admirados. Segundo Pagola, “podemos dizer que o evangelho de Mateus é um
grande convite para acolher Jesus como único Mestre de vida” (2013, p.12). Jesus
representa o novo caminho para entrar no Reino dos Céus, uma nova relação com Deus.
“A observância dos mandamentos é consequência dessa relação pessoal: os mandamentos
são bons porque expressam a vontade do Bom (cf. Am 5,4.6.14.15; Mq 6,8)” (MATEOS;
CAMACHO, 1993, p. 219). Seus ensinamentos exigem esforços da nossa parte para
converter-nos em seus discípulos e seguidores.
O seguimento de Jesus é um constante colocar-se à disposição do outro. Isto
remete também ao apego material que perpassa a humanidade. Como se ainda faltasse
algo à vida do jovem rico, Jesus lhe propõe: “vai, vende o que possuis e dá aos pobres”
(Mt 19,21), porém, como resposta deixou o silêncio e a tristeza, “pois era possuidor de
muitos bens” (Mt 19,22). Para J. Jeremias é preciso prudência com o sentido da palavra
‘tudo’. O desprendimento das riquezas materiais também seria limitado quanto à prática
da caridade.
No século I de nossa era, já estava em vigor a prescrição que proibia
dispor de mais de um quinto da fortuna pessoal para fins beneficentes.
Zaqueu, chefe dos publicanos, promete distribuir a metade de seus bens
em esmolas e ainda reparar os danos causados (Lc 19,8); Jesus louva-
lhe o intento e declara-o bem-aventurado. A expressão ‘vender todos os
seus bens’ não pode, pois, ser sempre tomada ao pé da letra. Esses
testemunhos mostram até onde, na prática, podia-se empregar os bens
com fitos caritativos (JEREMIAS, 1983, p. 180).
63
O evangelista não relata o que teria feito o jovem rico posteriormente, como se
quisesse deixar a reflexão para seus interlocutores sobre qual deve ser a atitude a seguir.
De toda forma, a vida autenticamente cristã exige respostas com gestos e ações voltadas
para os pobres e mais necessitados da Boa Nova de Jesus Cristo.
2. A comunidade mateana e a práxis de Jesus
A relevância da figura de um jovem na perícope permite-nos perguntar sobre a
sensibilidade da comunidade de Mateus em relação a este público, como, também, sobre
a participação de jovens no movimento de Jesus. A princípio, sabemos que no período
que o texto foi escrito novas gerações renovavam a comunidade daqueles que
testemunharam a vida terrena do Cristo. A seguir nos voltamos para os elementos
redacionais e históricos que permitam entender como a sociedade judaico-cristã aceitava
a participação dos jovens e, em particular, como se dava a relação deles na comunidade
de Mateus.
2.1 Práxis caritativa
O grupo de Jesus praticava a esmola como outros grupos religiosos, entre eles as
confrarias de fariseus e os grupos essênios. Segundo Morin, “na sociedade judaica do
século I, a beneficência voluntária e as prescrições da Lei protegiam os pobres” (1988,
p.36). “A esmola representa grande papel na sociedade judaica. Ter compaixão do
próximo é sinal que permite reconhecer a descendência de Abraão” (JEREMIAS, 1983,
p. 179). A observância da Lei era a motivação das organizações caritativas, “também do
grupo que acompanhava Jesus (Judas era encarregado das esmolas)” (MORIN, 1988, p.
37). Entre as leis a favor dos pobres são notáveis o ano sabático (anulação das dívidas), o
terceiro dízimo (ajuda aos pobres) e a esmola ao peregrino a caminho de Jerusalém. “A
Lei e sua aplicação, na opinião de Mateus, devem ser compreendidas primordialmente
em termos da exigência de misericórdia por Jesus” (OVERMAN, 1997, p. 87).
Para o entendimento da estrutura social no tempo de Jesus, Morin faz uma
classificação social, na Palestina, em função da riqueza, no seu livro Jesus e as estruturas
de seu tempo. Os ricos eram,
64
inicialmente, a corte de Herodes Antipas, na Galileia, com sua
criadagem, seus funcionários e oficiais, com parentes e amigos; (...) os
grandes negociante de trigo, de vinho, de óleo, de madeira; (...) os
grande proprietários de terra e a nobreza sacerdotal. Os judeus
medianamente favorecidos, sobretudo em Jerusalém, eram artesãos
proprietários de oficinas e casas de comércio. (...) Os pobres eram
diaristas, que recebem um denário e alimento, por dia; (...) os escravos
judeus, reduzidos à escravidão por causa de roubo ou para saldar uma
dívida; (...) escravos pagãos comprados por famílias ricas; (...) e aqueles
que eram ‘assistidos’, entre eles os mendigos (MORIN, 1988, pp. 38-
39).
Ainda segundo a proposta de Morin, sem “a pretensão de reconstruir a imagem
exata de Jesus” (1988, p. 41), é possível fazer indagações sobre a influência dele nas
estruturas do seu tempo, a partir deste cenário brevemente apresentado e examinando a
perícope do jovem rico de Mt 19,16-22. “Como no judaísmo formativo, a comunidade de
Mateus estava desenvolvendo um meio pelo qual a Lei tinha de ser interpretada e
aplicada. (...) A ação acompanha o entendimento e a interpretação. Este, Mateus sugere,
é o cumprimento de toda a justiça. A ação segundo a Lei é moldada pelos valores de amor
e misericórdia” (OVERMAN, 1997, p. 95). Como diz Barbaglio:
[...] não basta por isso a observância das numerosíssimas e
minuciosíssimas prescrições da lei, própria da práxis farisaica e do
ensinamento dos mestres judaicos. Dos chamados ao Reino se exige
algo amais e de melhor: a obediência radical à vontade do Pai: Eu vos
declaro que se a vossa obediência à vontade de Deus não superar a
observância dos mestres da lei e dos fariseus, não entrareis no Reino
dos Céus (Mt 5,20) (1990, p. 54).
Jesus, de Mateus, “traduz o amor ao próximo, num processo realista. Amar
positivamente o próximo, na sociedade judaica do século I, é repartir seus bens para os
pobres. (...) Com efeito, o rico, submetido à Antiga Lei pretende já ter praticado o amor
ao próximo” (MORIN, 1988, p. 44).
2.2 O verdadeiro discípulo
“Cada evangelista fala de Jesus não só a partir de sua experiência imediata, mas
também a partir da situação de sua comunidade eclesial, cujos problemas estão diante
dos olhos quando lançava por escrito a tradição que lhe vinha de e sobre Jesus”
(ECHEGARAY, 1982, p. 46). “Os discípulos no evangelho de Mateus parecem
representar os membros da comunidade. (...) Em muitos aspectos, os discípulos em
65
Mateus tornaram-se tipos ideais; eles são protótipos para o seguidor de Jesus”
(OVERMAN, 1997, p. 136). Na perícope em questão, do homem rico no texto anterior
de Marcos, Mateus “faz um jovem homem rico (vv.20 e 22). A leitura dos Atos dos
Apóstolos e da Primeira Carta de João nos mostra que os jovens pareciam constituir
grupos nas comunidades” (MORIN, 1988, p. 47). “Certamente vários membros desse
grupo de seguidores eram jovens. Jesus trabalhou em equipe e ensinou o modo de viver
segundo o projeto de Deus. Jesus não segue as leis que discriminam” (LORASCHI, 2013,
p.12). Desta forma, Mateus pretende dirigir-se a eles. “Os discípulos, representando os
membros da comunidade, devem levar a sério essa mensagem de servir aos outros
membros; a comunidade inteira é chamada a aprender, compreender inteiramente os
ensinamentos de Jesus e cumpri-los” (OVERMAN, 1997, p. 136). “Tanto mais que Jesus
confirma seu ensinamento com a força do seu exemplo. Obediência À vontade do Pai,
práxis de amor misericordioso e indiscriminado e seguimento de Jesus formam um todo”
(BARBAGLIO, 1990, p. 55).
A tradição dos evangelhos é unânime: Jesus escolheu seus discípulos entre os
pobres. Se entre eles alguns provêm da classe rica, Jesus o permitiu com a condição de
que fizessem um ato de renúncia pessoal em favor dos pobres (ECHEGARAY, 1982, p.
78). Segundo Barbaglio, quanto aos seguidores de Jesus, “deve-se distinguir entre
seguimento e discipulado” (2011, p. 385). Ambos os termos definem “quem entrava na
escola deste ou daquele filósofo ou sábio grego”, como aqueles que “entraram em estreita
relação com Jesus”, e remete ao “seguimento das multidões atrás dos profetas
escatológicos e nos líderes carismáticos do século I d.C.”. “O discípulo ‘segue’ o mestre
e se forma na convivência com ele. Como os rabinos (mestres) da época, Jesus reúne
discípulos para formar comunidade com eles” (MESTERS, 2010, p. 79).
Lideranças carismáticas, como a exercida por Jesus, atrai muitos seguidores entre
o povo. Segundo Theissen e Merz,
[...] em torno do líder carismático formam-se três círculos concêntricos:
primeiro uma pequena ordem de carismáticos secundários, que se
constituía do grupo de discípulos de Jesus (especialmente seus doze
discípulos); depois um círculo maior de simpatizantes, sem cujo apoio
nenhum grupo carismático poderia existir; e também o círculo de
pessoas que não abandonaram casa e trabalho por causa de Jesus, como
o fizeram seus discípulos, mas seguiram suas vidas exteriormente como
antes (2002, p. 240).
66
Este terceiro grupo pode ser uma possibilidade para encontrar a figura do jovem
rico, dada sua resposta à proposta de Jesus e a escassez de informação a seu respeito após
o diálogo. Para Theissen e Merz, este grupo “destaca-se da totalidade da população como
aqueles que ouviram a Jesus, sentiram-se atraídos por ele, mas não se tornaram seus
simpatizantes ou colaboradores ativos” (THEISSEN; MERZ, 2002, p. 240).
2.3 Os impedimentos do discipulado
Considerando os relatos de vocação dos textos sagrados, “note-se o nexo entre
seguimento e abandono do trabalho, em que está implicado também o afastamento da
casa e dos bens” (BARBAGLIO, 2011, p. 385), como no chamado de Simão e André (Mt
4,18-20). O caso do jovem rico “serve como quadro para um dito de Jesus sobre a força
impediente da riqueza”, diz Barbaglio. E continua: “Uma vocação ao seguimento
frustrada pela resposta negativa do interessado às exigências de desapego radical dos bens
possuídos: não quis livrar-se deles; a riqueza o manteve acorrentado à posse impedindo-
lhe uma escolha de liberdade” (BARBAGLIO, 2011, p. 387).
“O dinheiro e os bens contam-se entre os nossos apegos mais óbvios. Os nossos
bens incluem luxos, comodidades e prazeres. O problema é a nossa incapacidade egoísta
de largar essas coisas quando somos confrontados com as necessidades dos outros”, assim
nos lembra Albert Nolan (2010, p. 187). Como exemplo, Zaqueu (Lc 19,1-9) ao receber
Jesus em sua casa “não só a vê de súbito que tem bens em demasia, mas, sim que sua
posse foi adquirida com o prejuízo de terceiros. O gesto tem o sentido de corajosa
denúncia. Seu gesto implica uma autocrítica, contudo, vale também como acusação
indireta” (ECHEGARAY, 1982, p. 79).
“A prova da nossa liberdade interior dá-se quando nós atendemos às necessidades
dos outros de forma espontânea e generosa” (NOLAN, 2010, p.187). Pela formação que
recebeu, “esse jovem é fiel à lei do Senhor e o ama” (MADRE, 2010, p. 43), mas suas
expectativas de vida futura não são confirmadas no contato com o Mestre. “Ele deseja
profundamente a vida eterna e pressente que esse Jesus (a quem conhece apenas por ouvir
falar) pode atender aos seus anseios. Jesus o deixou diante de uma escolha pessoal a fazer,
e o rico, ainda que fosse amado por Jesus, não pôde abrir mão de seus bens” (MADRE,
2010, p. 43).
67
3. Ressonâncias pastorais para os jovens de hoje
A fim de reforçar os esforços na evangelização da juventude, João Batista Libânio
aponta algumas tendências para a juventude nos nossos dias, quando consideradas as
diversas realidades e experiências que nossos jovens são inseridos. É relevante o
acompanhamento dos jovens para entender suas evoluções no processo de mudanças que
o mundo tem passado. Como lembra Libânio:
O jovem tradicional que vinha de família e cultura religiosa, mantinha
facilmente práticas religiosas. Ao entrar na modernidade, sobretudo a
urbana, a religião sofre processo de secularização. A dimensão sagrada
da existência cede lugar à valorização da própria liberdade e escolha
pessoal, sem o peso da tradição. Os compromissos sociopolíticos
substituem para muitos jovens o engajamento que tinham antes nos
movimentos de Igreja. O socialismo caiu. A falta de sentido bateu forte.
Então, explode com outra tonalidade o fenômeno religioso no meio dos
jovens. Cresce a busca de experiências religiosas, embora cresça a
ignorância doutrinal a respeito das verdades e dos ensinamentos das
igrejas. Falta-lhes articulação entre fé e vida (LIBÂNIO, 2012, p.183).
“É um grande desafio entrar e compreender o universo da juventude, mas,
ao mesmo tempo, compreender para além do período marcado por mudanças físicas,
cognitivas ou afetivas” (CALANDRO; LEDO, 2013, p.9). “Para a maioria dos jovens
hoje, o desafio não é tornar-se um agente sociotransformador, mas, assumir-se
inteiramente confiável para si, numa verdadeira fidelidade a si mesmo” (VILLEPELET
apud CARMO; JUNIOR, 2014, p. 28). Importa compreender isto para que a
evangelização da juventude não fique à margem das nossas pastorais, embora surjam
sempre novos movimentos. Contudo, “basta um pouco de honestidade para concluir que
o esforço empreendido não tem dado resultados desejados” (CARMO; JUNIOR, 2014, p.
24). Os jovens pós-modernos tendem a alijar a religião como peso, como tradição
constringente, para dar-lhe tom de festa, de prazer, de experiência gratificante. Ela se lhes
torna espaço das vivências presentes. Vale enquanto responde a elas, e nelas se realizam
(LIBÂNIO, 2012, p.185).
“A relação de acolhida, diálogo e reciprocidade deve ser incentivada por aqueles
e aquelas que assumem o papel e a missão de evangelizar os jovens” (CALANDRO;
LEDO, 2013, p.11). Neste sentido, não estariam faltando líderes carismáticos que saibam
dialogar com os jovens, como Jesus que acolhe a dúvida do jovem rico? “Alguns pontos
mostram como ficou difícil o diálogo entre a fé católica e o mundo da juventude: a moral
sexual da Igreja, as celebrações litúrgicas, a linguagem da fé e o modelo de comunidades
68
eclesiais que prevalecem em nossas paróquias” (CARMO; JUNIOR, 2014, p. 24). Evitar
as perguntas não tem sido a melhor saída.
Urge aos agentes de pastoral a transmissão do Deus que é relação, presente no
diálogo de Jesus com o jovem rico ao perguntar-lhe sobre os mandamentos que implicam
responsabilidade com o outro (cf. Mt 19,18-19). A catequese de jovens deve ser revista.
Ela “deve ajudar o jovem a relacionar sua fé cristã com sua experiência existencial, com
sua vida concreta, e a assumir compromissos permanentes” (CALANDRO; LEDO, 2013,
p.16). É um desafio em nossos dias “proporcionar a experiência cristã de Deus, pois a
catequese já não pode pressupor a familiaridade das pessoas com o mistério cristão nem
pode se contentar em ensinar a fé como se a adesão a Jesus Cristo se limitasse ao problema
do conhecimento” (CARMO; JUNIOR, 2014, p. 29).
Neste sentido, é imprescindível compreender a juventude como um período de
formação e amadurecimento, independente do nível social, mas, respeitando em todos os
casos as diversas realidades e experiências que se apresentam. “Ninguém pode seguir
Jesus Cristo sem ter uma profunda experiência de vida com ele. A catequese com jovens
deve ser questionadora. Para seguir Jesus é preciso deixar-se questionar por ele: ‘Se
queres (...) vem e segue-me’ (Mt 19,21)” (CALANDRO; LEDO, 2013, p.16).
E este seguimento é exigente; requer desprendimento. Para além das diferenças
socioeconômicas, a juventude deve ser desafiada ao desapego, como o jovem rico frente
ao pedido de Jesus, “vai, vende o que possuis (...)”.
O rapaz foi incapaz de fazê-lo, pois estava demasiado ligado às suas
riquezas, estava escravizado por seus bens. O jovem passaria a fazer
parte de uma comunidade que partilhava tudo entre si, e teria a
segurança de quem confia nos seus irmãos e irmãs... e em Deus. No
entanto, não teve desprendimento suficiente para fazê-lo (NOLAN,
2010, p.185).
É o desafio da vida comunitária, da fraternidade que Deus nos convida a viver. Para os
jovens de hoje a pertença a uma comunidade não está relacionada a uma pertença estável, herdada
dos familiares. “A pertença depende de uma escolha que diz respeito ao campo de investimento
pessoal, do retorno que esse engajamento pode proporcionar” (CARMO; JUNIOR, 2014, p. 30).
Em contrapartida, a catequese precisa “ajudar os jovens a compreender que não se pode seguir
Jesus de forma isolada, egoísta, mas que o seguimento só se realiza plenamente quando estamos
na comunidade” (CALANDRO; LEDO, 2013, p.17).
Considerações finais
Portanto, “precisamos pensar uma evangelização que saiba lidar com a afetividade
efervescente que esse jovem vive em sua vida; do contrário, não estaremos anunciando a
69
mensagem ao seu coração” (CALANDRO; LEDO, 2013, p.11). Estar disponível ao
diálogo é primordial. Isto implica em derrubar barreiras conceituais e certos moralismos
sobre determinados temas e encarar as questões da rapaziada, cada vez mais rodeada de
informações que nada humanizam a consciência e não conduzem no caminho para o Deus
de Jesus Cristo.
É necessário lançar o olhar sobre os jovens, numa atitude cristã de anúncio da Boa
Nova aproximando-se das realidades dos nossos interlocutores. A fim de tirá-los da
margem e torná-los verdadeiros membros de uma comunidade de fé são necessárias duas
constantes: “estarmos atentos às características e necessidades dos jovens e não apenas a
transmitir conteúdo e doutrina, e rever estruturas e criar itinerários que favoreçam a
formação humano-cristã” (CALANDRO; LEDO, 2013, p.10). “No contato com os
jovens, importa esclarecer-lhes se, na verdade, se comprometem com uma religião, ou se
buscam simples vivência religiosa ou aderem à fé cristã com as consequências de
conversão e práxis” (LIBÂNIO, 2012, p.), sem desconsiderar seus ideais de vida futura,
de vida eterna.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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71
A IGREJA CATÓLICA NO CINEMA.
George José Rodrigues de Melo57
Introdução
De acordo com Bernadet, o cinema surgiu em 28 de dezembro de1895, na
França, tendo como criadores os irmão Lumiére. Desde então, percebe-se na sétima arte
que o interesse pela Igreja Católica é constante e rara é a década que não tinha surgido
algum filme que retrate um aspecto da sua doutrina ou a vida de algum dos seus santos.
Nos últimos quase 45 anos, por exemplo, foram produzidos mais de 10 filmes
sobre algum ponto central da Igreja Católica, sendo os principais: Irmão Sol Irmão Lua,
dirigido por Franco Zeffirelli de 1972; Jesus de Nazaré dirigido por Franco Zeffirelli de
1976; Romero, dirigido por John Duigan de 1989; O Código Da Vinci dirigido por Ron
Howard de 2006; e Irmã Dulce dirigido por Vicente Amorim de 2014.
Por que tanto interesse da sétima arte para com a IGREJA CATÓLICA? Por
que os filmes como esses levam milhões de pessoas para assisti-lo? Essas e outras
perguntas têm estado na mente desse pesquisador que além de cinéfilo tem também
interesse na relação entre cinema e religião.
A Igreja Católica
A Igreja Católica é o maior ramo do Cristianismo e o mais antigo como Igreja
organizada. Com sede no Vaticano, a Igreja Católica (do grego Katholikos, universal).
Desde o dia 13 de março de 2013, a Igreja Católica encontra-se sob a liderança do
argentino Jorge Mario Bergoglio, nomeado de Papa Francisco, ele vem promovendo
57 Graduação em História pela Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da Mata – Universidade
de Pernambuco. Especialização em Ensino de História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Secretaria Educação de Pernambuco. Secretaria Municipal de Educação de São Lourenço da Mata.
72
mudança dentro da Igreja Católica. O último papa antes do argentino foi o Papa Bento
XVI, que abdicou do cargo no mesmo ano.
A Igreja Católica, chamada também de Igreja Católica Romana e Igreja Católica
Apostólica Romana, é uma Igreja Cristã com aproximadamente dois mil anos, colocada
sob a autoridade suprema visível do Papa, Bispo de Roma e sucessor do apóstolo Pedro.
Seu objetivo é a converção ao ensinamento à pessoa de Jesus Cristo em vista do Reino de
Deus – concede um papel condizente nesta missão à Nossa Senhora, a quem intitulou de
"Mãe da Igreja". A Igreja Católica administra os sacramentos e prega o Evangelho de
Jesus Cristo. Atua em programas sociais e instituições em todo o mundo, incluindo
escolas, universidades, hospitais e abrigos, bem como administra outras instituições de
caridade, que ajudam famílias, pobres, idosos e doentes.
Figura 1 - Papa Francisco
Fonte: www.google.com.br
Figura 2 – Papa Bento XVI
Fonte: www.google.com.br
73
A principal cerimônia é a missa. Seu ponto culminante é a eucaristia, um dos sete
sacramentos (ritos sagrados) da Igreja, no qual, de acordo com a crença, Jesus Cristo se
encontra presente com seu corpo, sangue, alma e divindade, na forma de pão e vinho. Os
demais sacramentos são o batismo, a crisma, a confissão, o casamento, a ordenação e a
união dos enfermos. Os católicos reverenciam a Virgem Maria, a mais importante
intermediária entre os fiéis e seu filho, Jesus Cristo, e os Santos, mediadores entre o
homem e Deus.
Quando de sua entronação, ela contava aproximadamente com 1,2 bilhões de
membros, distribuídos principalmente na Europa e nas Américas mas também noutras
regiões do mundo. Sua influência na História do pensamento bem como sobre a História
da arte é considerável, notadamente na Europa.
A Igreja Católica, pretendendo respeitar a cultura e a tradição dos seus fiéis, é por
isso atualmente constituída por 23 Igrejas autônomas sui juris, todas elas em comunhão
completa e subordinadas ao Papa. Estas Igrejas, apesar de terem a mesma doutrina e fé,
possuem uma tradição cultural, histórica, teológica e litúrgia diferentes e uma estrutura e
organização territorial separadas. A Igreja Católica é muitas vezes confundida com a
Igreja Católica Latina, uma das suas 23 Igrejas autônomas e a maior de todas elas.
No Brasil, para onde foi trazida pelos portugueses, a Igreja Católica permanece
unida ao Estado até 1890. O país tem o maior número absoluto de católicos no mundo:
123,2 milhões, de acordo com o censo de 2010 do IBGE.
Cinema
Definido como a sétima arte, o Cinema é um sistema de reprodução de imagens
registradas em filme ou digitalmente e projetadas sobre uma tela. Seu nome deriva da
palavra cinematógrafo ( em grego, Kino significa movimento e graphos, escrita) e
representa uma das mais populares expressões culturais da humanidade, sustentada por
uma milionária indústria do entretedimento.
A invenção do cinematógrafo é creditada aos irmãos franceses Louis e Auguste
Lumière. Eles se tornam os pioneiros em conseguir projetar um filme em tela num ritmo
74
constante, para vários espectadores simultaneamente. A primeira sessão da história ocorre
num café de Paris, em 28 de dezembro de 1895. A programação reúne nove filmes curtos,
entre eles A chegada do Trem à Estação de Ciotat, que provoca tumulto entreos
espectadores, assustados com a suposta proximidade da locomotiva. No ano seguinte,
Georges Méiliès constrói um estúdio nos arredores de Paris e dirigr Viagem à Lua, o
primeiro sucesso da história do cinema.
A ANÁLISE DOS FILMES
Paixão de Cristo.
Paixão de Cristo é um filme norte-americano de 2004, do gênero drama bíblico,
dirigido por Mel Gibson. O drama relata, de maneira relativamente fiel às escrituras
cristãs, as últimas doze horas da vida de Jesus Cristo, antes da crucificação.
Jesus de Nazaré.
Jesus de Nazaré é uma mini-série televisiva de 1977 a anglo-italiano e dramatizar
o nascimento, a vida, o ministério, a morte e ressurreição de Jesus de acordo com as contas
dos quatro Evangelhos canônicos do Novo Testamento. A versão sem cortes só está
disponível em DVD. O tempo total de produção é de 6 horas e 21 minutos.
O Evangelho Segundo João
O Evangelho Segundo João está fiel ao poderoso texto da bíblia sagrada. Mostra o
curso da vida de Jesus, durante um período tumultuado da história. Ele retrata as ações,
os milagres, as pregações, a vida e os ensinamentos de Jesus. Estrelando Henry Jan como
Jesus e narração de Cristopher Plummer, e também um elenco com mais de 2.500
pessoas.
O Nome da Rosa
O Nome da Rosa é um filme de 1986 dirigido por Jean-Jacques Annaud baseado
no romance homónimo do crítico literário italiano Umberto Eco. Sean Connery é o frade
franciscano Guilherme de Baskerville e Christian Slater é seu aprendiz Adson von Melk.
Na última semana de novembro de 1327, num mosteiro na Itália medieval, a morte, em
circunstâncias insólitas, de sete monges em sete dias e noites é o motor responsável pelo
75
desenvolvimento da ação. O monge franciscano é chamado para solucionar o mistério e
cai nas malhas de uma trama diabólica. Na forma de uma crítica, as violências sexuais,
os conflitos no seio dos movimentos heréticos do século XIV, a luta contra a mistificação,
o poder, o esvaziamento dos valores pela demagogia, constroem uma reconstituição livre
dos fatos históricos da época aos olhos do espectador.
Irmão Sol Irmã Lua
A trajetória da vida de São Francisco de Assis, que quando jovem era filho de
comerciantes ricos e desfrutava de vinho, mulheres e canções sem ter nenhuma
preocupação. Quando a guerra e a doença assolam a região onde vive, ele sofre uma
grande transformação. Ao aparecer diante do bispo local e tirar suas roupas renuncia sua
vida prévia para se dedicar a Deus. Mas sua pregação só iria chegar ao ápice ao ir para
Roma, para ter uma audiência com o papa Inocêncio III.
Romero
O filme Romero, baseado em fatos reais, narra os três últimos anos da vida de
Óscar Arnulfo Romero y Galdámez, arcebispo de San Salvador, capital de El Salvador,
país da América Central.
No meio dessa turbulência, surge a figura de Oscar Romero. O arcebispo, a
princípio, defendia que a Igreja estivesse no centro, numa posição de vigia. Contudo, o
próprio clero estava dividido entre os conservadores e os adeptos da Teologia da
Libertação. Ao longo do filme, o personagem principal se transforma. O homem de
poucas palavras, com saúde delicada e amante dos livros deixa a neutralidade e passa a
defender o povo pobre. A mudança de atitude de Romero é motivada pelas mortes de um
amigo, o padre Rutílio Grande, e de outras pessoas, inclusive crianças. A invasão de
igrejas por militares também contribuiu para a transformação do arcebispo.
João XXIII
Conhecido como o papa da bondade, João XXIII mostrou ao mundo que a Igreja deve
atualizar-se e estar mais perto de todos os povos, atuando com misericórdia e esperança.
76
Filme de grande qualidade artística e atualidade eclesial. Mostra o esforço sobre-humano
de João XXIII para organizar o Concílio Vaticano II e realizar a primeira sessão. O papa
da bondade mantinha seu inconfundível bom humor até nos momentos mais difíceis de
seu dia, dando ao filme um toque de bom humor, humanismo e paz.
João Paulo II
Karol Wojtyla nasceu na pequena cidade polonesa de Vadovice e teve uma
infância marcada por várias tragédias familiares. Aos 21 anos decidiu estudar em um
seminário e dedicar-se à vida eclesiástica. A partir de então segue carreira na Igreja
Católica, alcançando o apogeu ao ser escolhido como papa e assumindo o nome de João
Paulo II.
Madre Tereza
Inês Gonxha Bojaxhiu nasceu em Skopja, capital da atual república da Macedônia.
Aos 21 anos ela mudou seu nome para Teresa e ingressou em um convento em Calcutá.
Onze anos depois ela deixou o convento para trabalhar nos bairros mais pobres da cidade,
onde fundou em 1946 a Congregação das Missionárias da Caridade.
Cruzada
Balian é um jovem ferreiro francês, que guarda luto pela morte de sua esposa e
filho. Ele recebe a visita de Godfrey de Ibelin, seu pai, que é também um conceituado
barão do rei de Jerusalém e dedica sua vida a manter a paz na Terra Santa. Balian decide
se dedicar também à esta meta, mas após a morte de Godfrey ele herda terras e um título
de nobreza em Jerusalém. Determinado a manter seu juramento, Balian decide
permanecer no local e servir a um rei amaldiçoado como cavaleiro. Paralelamente ele se
apaixona pela princesa Sibylla, a irmã do rei.
A Missão
77
No final do século XVIII Mendoza, um mercador de escravos, fica com crise de
consciência por ter matado Felipe, seu irmão, num duelo, pois Felipe se envolveu com
Carlotta. Ela havia se apaixonado por Felipe e Mendoza não aceitou isto, pois ela tinha
um relacionamento com ele. Para tentar se penitenciar Mendoza se torna um padre e se
une a Gabriel, um jesuíta bem intencionado que luta para defender os índios, mas se
depara com interesses econômicos.
Considerações Finais
Com o intuito de possibilitar um questionamento sobre determinados temas sobre
a História da Igreja Católica, trazemos a luz do cinema para a análise dos documentos da
trajetória evolutiva do Catolicismo Romano. Debruçamo-nos especificamente no uso de
filmes como uma rica e valorosa contribuição ao entendimento o ensinamento da Igreja
Católica.
O cinema é espaço de experiências de vida, de encontro com o cotidiano e com a
realidade, sendo, portanto um instrumento de comunicação e interação com o mundo.
A pesquisa aqui relata e sustenta a premissa de que, ao analisar filmes, é
imprescindível considerar o fato de que as imagens neles contidas são fruto de um
processo de seleção, de escolhas que, consequentemente, determinam os sentidos e o
resultado da produção.
Através deste trabalho, procuramos demonstrar a inserção do cinema no religioso
como um documento passível das intervenções da sociedade que o produz, e por isso,
buscamos fundamentação teórica para dar base a nossa pesquisa e utilizamos os principais
trabalhos daqueles que estudam o cinema e suas relações com os ensinamentos da Igreja
Católica.
Dentro desta perspectiva, o cinema torna-se o lugar de encontro com o sagrado. A
experiência será mais ou menos profunda, dependendo da freqüência que tivermos com
a obra cinematográfica e com a reflexão teológica que ela pode suscitar.
Assim sendo, esperamos ter contribuído para o estudo da relação entre Religião e
Cinema, que só é válida quando optemos por um filme que venha acrescentar algo a nossa
espiritualidade.
78
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80
AS IMAGENS SACRAS:
reflexos de um patrimônio nunca esquecido
Prof. Dr. Sergio Sezino Douets Vasconcelos58
Iron Mendes de Araújo Júnior59
INTRODUÇÃO
Com o crescimento da valorização do Patrimônio Cultural e a expansão das
denominações60 que o caracterizam, vemos a necessidade de difundir o debate sobre o
patrimônio religioso, dando ênfase as imagens dos santos. Visando uma reflexão sobre
até que ponto as imagens de arte sacra merecem ser valorizadas e vistas como vestígios
materiais que resguardam em seus significados diversos elementos simbólicos que
fizeram e fazem parte das tradições centenárias que dão consistência as nossas tradições
culturais e religiosas. Para isso, basearemos nossa pesquisa em autores que dissertem
sobre as mesmas, buscando também esclarecer aspectos referentes a como se observam
essas imagens que detêm em suas raízes elementos tanto histórico-culturais quanto
litúrgicos, que regeram grande parte da vida religiosa popular desde o período da
colonização brasileira.
Não se deve negligenciar a contribuição direta que o catolicismo exerce dentro de
nossa nação. Os últimos dados do IBGE colocam que mais de 60% da população
brasileira ainda se denomina católica61. Sendo mais da metade ainda vista e
denominando-se como católica, em um Estado onde outras manifestações religiosas
começaram a ser amplamente aceitas e seus cultos oficializados, difundidos e
incentivados, se desenvolvendo, desde o lançamento da laicidade, que foi alcançada em
58 Doutor em Teologia. Possui Licenciatura em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco
(1991), graduação em Teologia pelo Instituto de Teologia do Recife (1989), graduação em Teologia –
Seminário Imaculada Conceição da Arquidiocese da Paraíba Centro de Estudos (1992) e doutorado em
Teologia Católica – Westfälische Wilhelms Universität Münster/ Alemanha (1999). E-mail:
[email protected] 59 Graduado em História pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e mestrando em Ciências
da Religião pela mesma instituição. E-mail: [email protected] 60 Basicamente observam-se três definições distintas de patrimônio: patrimônio material, patrimônio
imaterial e patrimônio vivo. 61 Seus dados sintetizados em tabelas definem o grupo da religião católica em três tipos: Católica
Apostólica Romana; Católica Apostólica Brasileira e Católica Ortodoxa (IBGE, 2015)
81
detrimento da proclamação da república, junto a separação entre religião e estado,
buscando, assim, promover ao máximo possível um diálogo e respeito sobre as diversas
matrizes religiosas que compõem nossa cultura. Vemos a necessidade de expor a
importância das imagens sacras como meios de difusão e preservação da cultura e da
história de nosso país, a medida que se constata a influência direta do catolicismo para a
formação de nossa identidade social.
A DEFESA DO PATRIMÔNIO CULTURAL
Pode-se observar no decorrer dos anos, um grande crescimento no que se refere
ao debate e as definições que cercam a temática sobre patrimônio cultural. De fato, temos
inúmeras formas de interpreta-lo e conhecê-lo, emanadas tanto nos vestígios materiais,
caracterizados pelos sítios históricos e bens tombados, ou podemos conhecê-lo através
das manifestações imateriais inerentes e resplandecentes em cada cultura de cada nação,
de cada povo, de cada região.
De fato, podemos observar nisso, uma vastidão de elementos culturais que devem
ser analisados em particular. Pois a cada dia, novas formas de interpretar-se os bens
culturais de um povo, de uma nação, de um grupo especifico, surgem, para ajudarem a
iluminar determinadas lacunas e questões que referem-se a formação da identidade
cultural do povo a ser estudado.
A defesa do bem tombado deve partir não só do estado, mais também do povo a
quem essas imagens dialogam. Para isso dedicarei algumas laudas a demonstrar a
construção da noção contemporânea de patrimônio e do porquê da necessidade de
salvaguarda-lo.
ORIGENS DO PATRIMÔNIO CULTURAL
Não é de hoje que a temática, nem o termo patrimônio se originam e vem se
desenvolvendo. Podemos observar no decorrer dos séculos diversos elementos que
vieram a moldar as noções contemporâneas de patrimônio. As origens etimológicas da
palavra patrimônio podem ser observadas a partir do século XII, onde inicialmente
referia-se a “herança paterna” (PINTO, 2013), mais deve-se ter em mente, que assim
como o patrimônio modifica-se de geração para geração, o termo também sofre expansão
82
e reinterpretação com o decorrer dos séculos. Sendo no século XVII os primeiros indícios
da utilização do termo, próximo ao que hoje definimos de Patrimônio Cultural. Moldado
através das ideias e reflexões iluministas e da busca pela revalorização do antigo. “De
fato, ao Iluminismo, especialmente ao ambiente francês, podemos fazer corresponder
certo gosto pelo antigo, pelo exótico, a que não podemos esquecer de juntar o nascimento
do gosto pelo colecionismo” (PINTO, 2013, p. 639). Nesse contexto as imagens, os bens
patrimoniais, eram colecionados e salvaguardados em acervos particulares, onde muitas
vezes suas obras foram adquiridas de maneiras escusas e com a finalidade de enriquecer
o acervo do colecionador, estando ainda o conceito de patrimônio ligado exclusivamente
ao bem material.
Nessa fase inicial das recolhas de materiais, era totalmente impossível
separar o colecionismo da genealogia e do comercio de antiguidades.
Por mais de dois séculos, marcando fortemente a forma como até inicios
do século XX se recolhiam antiguidades no Oriente Médio, o furto e o
saque eram a o principal forma de adquirir essas peças que eram,
sobretudo, bens com fins e utilidades privadas, longe ainda de qualquer
noção de patrimônio público (PINTO, 2013, p. 639).
Foi na Inglaterra, que o tema adquire uma perspectiva voltada a salvaguarda dos
bens históricos, observar-se o patrimônio, não só para descrevê-lo. Os antiquários foram
de grande influência em questões ligadas a preservação, criando diversas formas de
proteger o Patrimônio Histórico:
Os antiquários ingleses não se limitaram à observação e à descrição de
seus monumentos góticos, como foi o caso dos franceses. O vandalismo
religioso da Reforma desperta neles a indignação, pois fere a um tempo
seu senso prático – é “um desperdício absurdo” – e sobretudo seu
nacionalismo. Os danos causados aos monumentos religiosos legados
pela Idade Média são sentidos como um atentado contra as obras vivas
da nação. As associações de antiquários levantam-se como guardiões
dessa herança. Criam uma estrutura de proteção, privada e cívica, que
seria característica da Grã-Bretanha até o início do século XX
(CHOAY, 2001, p. 92)
São inúmeras os trajetos e modificações que a temática ainda viria a sofrer até
chegar ao conceito de Patrimônio Cultural. Essa evolução viria a tomar corpo através da
institucionalização do mesmo, que viria a ocorrer baseando-se na noção iluminista de
Res-publica – “bem comum”, noção essa que viria a dar corpo a noção de nacionalização
dos bens (PINTO, 2013).
A consolidação do patrimônio histórico como um bem tombado, de reconhecida
importância, ocorre através do documento elaborado pela Convenção sobre Proteção do
83
Patrimônio Cultural e Natural, promovida pela UNESCO62 em 1972, onde é então
elaborado o documento que viria a identificar o patrimônio cultural como monumentos63,
os conjuntos64 e locais de interesses65, em suma, todos os vestígios materiais com grande
valor histórico, artístico e cientifico.
Trinta anos após a convenção, no dia 17 de outubro de 2003, é então realizada em
Paris a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, onde
estabeleceu-se a definição de patrimônio imaterial, sendo esse representado pelas
“tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural
imaterial; expressões artísticas; práticas sociais, rituais e atos festivos; conhecimentos e
práticas relacionados à natureza e ao universo; técnicas artesanais tradicionais”
(UNESCO, 2014, p. 11). Nesse contexto o patrimônio imaterial encontra-se em constante
mudança, na medida que as práticas imateriais vão sendo reinterpretadas pelas sucessivas
gerações.
Na realidade “a valorização do Patrimônio Histórico apresenta múltiplas formas,
de contornos imprecisos, que quase sempre se confundem ou se associam” (CHOAY,
2001, p. 213), fato que nos leva a observar a complexidade em entender de uma forma
definitiva o que deve ser considerado como patrimônio histórico-cultural ou não. Para
tanto, deve-se sempre levar em consideração fatores múltiplos e que modificam-se de
acordo com a cultura de determinado povo ou nação.
Tratando-se de imagens de santos, por exemplo, as mesmas só adquirem valor
histórico e cultural, quando referenciadas e interpretadas em seu local e período de
origem, ou ainda quando as mesmas apresentam em sua estrutura simbólica, laços que
interligam-se e condizem com a realidade vivenciada ou memorizada na sociedade e no
indivíduo ao qual elas remetem. Nesse caso: “O símbolo aparece, efetivamente, em sua
ambivalência e sua plurivocidade, como ligado à própria existência do homem tomado
individualmente ou em sua dimensão coletiva” (MESLIN, 2014, p. 223), é no cerne
62 Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. 63 “Obras arquitectónicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de carácter
arqueológico, inscrições, grutas e grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista
da história, da arte ou da ciência” Cf.: UNESCO, convenção para a proteção do Património Mundial,
Cultural e Natural. Disponível em: <http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf>. Acesso em: 08 de
abril de 2015. 64 “Grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude da sua arquitectura, unidade ou integração
na paisagem têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência”
(UNESCO,Convenção para a proteção do Património Mundial, Cultural e Natural.
Em:<http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf> acesso em 08 de abril de 2015). 65 “Obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de
interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico
ou antropológico.” Cf.: UNESCO,convenção para a proteção do Património Mundial, Cultural e Natural.
Disponível em: <http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf>. Acesso em: 08 de abril de 2015.
84
dessas questões que buscaremos lapidar, da forma mais concisa possível devido as
limitações de laudas dessa publicação.
AS IMAGENS SACRAS E OS CONCÍLIOS
Trabalhar com um tema como a Arte Sacra, que liga duas realidades que se
completam e tendem a interpretações múltiplas exige certo cuidado, ao transcorrer as
informações textuais, pois o conceito de arte sofre diversos incrementos e reinterpretações
no transcursar do tempo, por isso, explicitaremos em que contexto iremos trabalhar com
tal consideração. Para isso, dedicamos as laudas a se seguir a contextualizar e demonstrar,
de forma sucinta e objetiva, o desenvolvimento do culto a essas imagens.
O II concílio de Nicéia, vem a consolidar a veneração as imagens dos santos,
tomando todo uma série de cuidados e consolidando a diferença entre adoração e
veneração. Almir Flávio Scomparim justifica que:
Esse Concílio assume um ensinamento tradicional da Igreja, a saber, a
distinção entre a adoração e veneração. Adoração () é o culto
prestado unicamente à natureza divina. Veneração ( ou
) é um culto inferior que é prestado às imagens de Maria e dos
Santos. As imagens podem ser honradas com luzes e incenso. Esse culto
é justificado, porque o Concílio reconhece a imagem como um canal de
graça: quando mais freqüentemente Deus e os Santos são contemplados
nas imagens, os contempladores “são levados à lembrança e ao desejo
dos modelos originais” [...] Quem venera uma imagem venera a pessoa
nela representada (SCOMPARIM, 2008, p. 14).
Cláudio Pastro (2008) coloca que no II concílio de Nicéia estabelece-se que a Arte
Sacra, em todas as suas representações artísticas, pinturas, músicas, estatuarias, obras
artísticas como um todo, não deve ter seu conteúdo visível diferente do invisível. Pois o
ícone tornar-se a realidade suprema do mistério onde “Conteúdo e forma,
necessariamente, devem casar” (PASTRO, 2008, p.18).
O concílio Vaticano II, assim como seus antecessores desde o de Nicéia, vem
corroborar e justificar a permanência das imagens dos santos, além disso é tido como o
primeiro a preocupar-se explicitamente com a questão das imagens sacras
(SCOMPARIM, 2008). Em seu texto, o concílio coloca que:
O sagrado Concílio propõe-se fomentar a vida cristã entre os fiéis,
adaptar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições
susceptíveis de mudança, promover tudo o que pode ajudar à união de
todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para
chamar a todos ao seio da Igreja. Julga, por isso, dever também
interessar-se de modo particular pela reforma e incremento da Liturgia
85
(CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Apostólica sobre a Sagrada
Liturgia. Disponível em:
<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/docu
ments/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html>.
Acesso em 02 de maio 2015).
Sobre a arte sacra e religiosa o texto coloca que:
Entre as mais nobres actividades do espírito humano estão, de pleno
direito, as belas artes, e muito especialmente a arte religiosa e o seu
mais alto cimo, que é a arte sacra. Elas tendem, por natureza, a exprimir
de algum modo, nas obras saídas das mãos do homem, a infinita beleza
de Deus, e estarão mais orientadas para o louvor e glória de Deus se não
tiverem outro fim senão o de conduzir piamente e o mais eficazmente
possível, através das suas obras, o espírito do homem até Deus
(Ibidem.)
Esses são alguns dos moldes estabelecidos pelo concílio, buscando uma definição
e valorização plena das diversas manifestações artísticas que ligam-se ao sagrado, ou a
manifestação religiosa cristã. Após abordarmos um pouco sobre os concílios e a visão da
Igreja sobre as imagens sacras, torna-se necessário demonstrarmos a importância dessas
imagens enquanto patrimônio cultural material, e porque as mesmas devem ser vistas pelo
contexto além do religioso.
AS IMAGENS SACRAS E SUA IMPORTÂNCIA PARA O PATRIMÔNIO
CULTURAL
Dentro de todo o processo desde seu descobrimento até sua colonização e
posterior independência, o Brasil teve como principal base de sua cultura religiosa o
catolicismo, porem entende-se aqui o catolicismo brasileiro de uma forma diferente do
catolicismo europeu. Eduardo Hoornaert defende que dentro das diversas manifestações
e práticas religiosas no Brasil, foram várias as formas de entender e praticar o catolicismo,
geradas através de um processo sincrético que o autor define em três tipos, sendo esses o
catolicismo guerreiro66, patriarcal67 e por fim o popular, todos ligados às necessidades de
66 Fruto da mentalidade guerreira das cruzadas medievais, que parte da ideia que existiram vários combates
a serem travados dentro do território luso-brasileiro, chegando a ser entendidos como uma espécie de
“guerra santa”, ideia, segundo o autor, que ainda era plenamente aceita pela cristandade ibérica, buscando
através da “violência sagrada”, utilizada contra os povos indígenas ou “gentios da terra” e posteriormente
também contra os negros, a sua sujeição e readequação a sociedade e aos princípios da igreja católica
(HOORNAERT, 1991.). 67 Busca “[...] impedir o nascimento de uma consciência de comunidade entre trabalhadores no engenho,
nas fazendas, nas minerações. [...] se insere na longa lista de ‘religiões do estado’ que tiveram como função
a de sacralizar e assim perpetuar o poder dos estados” (HOORNAERT, 1991, p. 74.), o rei e posteriormente
86
uma certa classe e de determinado interesse, seja interesse político, por parte dos senhores
de engenhos ou da coroa portuguesa, a necessidade de redenção por parte do povo ou
simplesmente pela necessidade de organização social (HOORNAERT, 1991).
Não podemos aqui explorar de forma profunda todas essas manifestações da
cultura e religiosidade católica luso-brasileira, então nos permitiremos dar ênfase a
algumas questões ligadas as interpretações do que pode ser acentuado como “catolicismo
popular”. Por acreditarmos que, a abordagem sobre essa forma de vivencia católica, é
suficiente para transmitirmos ao leitor a importância das imagens sacras e religiosas,
como forma de compreender-se elementos importantes de nossa cultura.
O catolicismo popular é ainda um tema muito complexo para se fazer uma
definição única e abordar de forma especifica o seu sentido. Porem para resumir o
contexto, generalizando, seria a interpretação leiga do povo, sua vivência, mitos, formas
de praticar-se e viver-se como cristão. É o catolicismo, que durante os períodos da história
de nosso país, foi vivido pela população pobre, que contempla elementos mágicos da
diversidade cultural brasileira. Muitas vezes as imagens dos santos, utilizadas para o culto
e devoção, representavam simbolicamente, muito mais do que aparentam.
O simbolismo religioso [...] é fonte válida para pesquisa da vida do
povo, pois a sua linguagem é sincera, embora difícil de ser interpretada.
A religião diz respeito a experiências humanas concretas. Ela constitui
uma história simbólica de grande valor. [...] numerosas imagens
“significam” o medo do mar que portugueses sentiram na empresa
ultramarina: Nossa Senhora Aparecida, da Penha, da Guia, das Graças.
Outras significam a saudade da terra natal: Nossa Senhora do Desterro,
outras o encanto: Nossa senhora das Maravilhas, outras ainda a
gratidão: Nossa Senhora do Livramento, do Amparo, do Bom Sucesso,
da Piedade. As imagens de Nossa Senhora das dores, da Conceição, do
Rosário, refletem a vida nos engenhos (HOORNAERT, 1991, p. 13).
Como citado, essas imagens vão além do culto religioso, e integram-se a vivência
e ao cotidiano de seus fiéis, resplandecendo elementos relevantes para compreendermos,
por uma perspectiva simbólica, diversas questões culturais de nossa sociedade.
Outro exemplo pode ser dado relacionando as imagens dos santos com o
sincretismo religioso sofrido em nossa sociedade no Brasil colonial através da introdução
da matriz religiosa africana:
o imperador apresentavam-se com o espirito paternalista, eram os lideres, os pais do povo, vistos como
representantes de Deus, sua nobreza de espirito refletia-se assim, dentre outros fatores, em suas obras de
caridade.
87
É importante registrar que no Brasil, conforme nos ensina Volney J.
Berkenbrock o sincretismo não ocorreu de maneira uniforme em todos
os lugares, antes, conheceu várias fases distintas. Os africanos trazidos
para o Brasil percebiam separadamente as tradições religiosas de
origem cristãs. A tendência inicial foi simplesmente justapor os
elementos dessas religiões, sem vínculo de conteúdo entre eles. Já os
descendentes dos escravos nascidos no Brasil, não conheceram essa
situação de duas mundividências religiosas diferenciadas; assim, o
sincretismo serviu também como um mecanismo para se preencherem
lacunas. No caso do sincretismo afro-brasileiro, a lógica imperante não
foi a da separação dos elementos, mas sim a que une esses elementos.
Pode-se dizer, pois, que não foi a pergunta pela origem (de onde vem?),
mas sim a pergunta pelo objetivo (para que serve?) que mais influenciou
o processo do sincretismo (KENBROCK apud, BITTENCOURT
FILHO, 2003, p.64).
Esse processo de mistura de elementos religiosos, inicialmente distintos, viria a
gerar novas formas de perceber, praticar e vivenciar a religiosidade, tanto afro-brasileira,
quanto luso-brasileira.
Observando agora sobre a ótica da história comparada, Ulisses Neves Rafael ao
trabalhar com as festividades populares no ciclo junino (ou joanino), coloca que:
A origem comum, neste caso, refere-se às festas brasileiras, boa parte
das quais “nasce” em Portugal, guardando, portanto, com o modelo que
lhe inspira inúmeras aproximações. Contudo, sem descartar essa
“origem comum”, é para as transformações a que estiveram sujeitas tais
práticas, que deve estar voltada nossa atenção (RAFAEL, 2013, p. 65)
Nesse caso, o parâmetro de comparação utilizado, são festas religiosas católicas,
que ainda hoje são praticadas tanto em Portugal e no Brasil, festas essas, que detêm como
símbolo os santos do período joanino (São Pedro, Santo Antônio e São João), que em
locais diversos de culto e devoção, tornam-se parte integrante e inerente da cultura
popular, e trazem com suas celebrações a devoção fervorosa do povo, que nesse período
costuma fazer diversas simpatias e pedidos aos santos. Mais uma vez, o símbolo tangível
e intangível, visível e invisível é o Santo, e sua representação física através das imagens
a ele destinadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Olhar para as estátuas dos santos, compreende observar algo muito além do que a
imagem inicialmente pode vir a retratar em nossas interpretações. Olhar pra uma imagem
Sacra é observar toda uma construção cultural que precede a formação do nosso país,
mais é ressignificada pelas nossa riqueza e multiplicidade étnica e cultural. Elas remetem
88
a aspectos históricos que fogem ao culto religioso e transformam-se em portadoras
materiais de nossa historicidade e identidade. Olhar para uma imagem sacra e buscar
interpretá-la é ir além do religioso em busca do cultural.
Por fim, concluímos que a polissemia de valores e elementos contidos dentro dos
significados, e ressignificações, impressos nos elementos, compostos, dentro da vivência
e religiosidade brasileira, torna a análise dessas imagens, uma fórmula de imprescindível
valor, para os estudos sobre o cotidiano, sobre a formação cultural e religiosa não só
católica como também da Nação como um todo. Podem ser encontrados elementos dentro
das práticas religiosas populares, que remetem tanto as tradições indígenas quanto
africanas. Desta forma, as imagens tornam-se fontes de grande valia para a pesquisa, são
monumentos que retratam elementos que vão além do religioso. Suas feições modificam-
se de acordo com a cultura e sociedade em que se encontram, tomando forma e
transformando em “memórias físicas”, tornam-se elementos da identidade de um povo.
Infelizmente, não é possível alargar as considerações sobre os sistemas simbólicos e as
interpretações das imagens sacras, ficando assim uma promessa para análises futuras mais
aprofundadas.
BIBLIOGRAFIA
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CONCILIUM SOBRE A SAGRADA LITURGIA. Disponível em:
<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-
ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html>. Acesso em: 15 de Abril de
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1991.
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pessoas com deficiência. Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_religiao
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de 2015.
89
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divino. Petrópolis: Vozes, 2014.
PASTRO, C. O Deus da beleza: a educação através da beleza. São Paulo: Paulinas,
2008.
PINTO, P. M. (Org.). Compêndio de Ciências da Religião. São Paulo: Paulinas;
Paulus, 2013.
SCOMPARIM, A. F. A iconografia na Igreja Católica. São Paulo: Paulus, 2008.
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cultural imaterial. Brasília: UNESCO, 2014.
UNESCO. Convenção para a protecção do património mundial, cultural e natural.
Disponível: http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf >. Disponível em: 08 de 04
de 2015.
90
PASTORAL URBANA: ONTEM E HOJE
CRITÉRIO HERMENÊUTICO DO MOVIMENTO DE MOISÉS
RUMO À URBANIZAÇÃO EM CANAÃ
Jário Carlos S. Jr. 68
Introdução
Poeticamente falando, a meditação incomparável do padre Antônio Vieira pode
muito bem nos fazer ingressar em nossa reflexão a respeito da missão da Igreja na cidade:
Os antigos, quando queriam prognosticar o futuro, sacrificavam os
animais, consultavam-lhes as entranhas, e conforme o que viam nelas,
assim prognosticavam. Não consultavam a cabeça, que é o assento do
entendimento, senão as entranhas, que é o lugar do amor; porque não
prognostica melhor quem melhor entende senão quem melhor ama. E
este costume era geral em toda a Europa antes da vinda de Cristo, e os
portugueses tinham uma grande singularidade nele entre os outros
gentios. Os outros consultavam as entranhas dos animais, os
portugueses consultavam as entranhas de homens. A superstição era
falsa, mas a alegoria era muito verdadeira. Não há lume de profecia
mais certo no mundo que consultar as entranhas dos homens. E de que
homens? De todos? Não. Dos sacrificados. Se quereis profetizar os
futuros, consultai as entranhas dos homens sacrificados: consultem-se
as entranhas dos que se sacrificaram e dos que se sacrificam; e o que
elas disserem, isto se tenha por profecia. Porém, consultar de quem não
se sacrificou, nem se sacrifica, nem se há de sacrificar, é não querer
profecias verdadeiras; é querer cegar o presente, e não acertar o futuro
(ALVES, 1985, p. 70-71).
Sem qualquer intenção de desprezar os referenciais da mais legítima tradição
teológica, grande parte de nossa missão pastoral urbana reside em consultar as entranhas
dos sacrificados a fim de que caminhemos em direção ao futuro inevitável das nações da
terra e, porque não dizer, das cidades do mundo.
O fato é que a mudança física e social aumenta o potencial para a mudança moral
e religiosa, razão porque devemos veementemente enfatizar que atualmente 90% da
população mundial habita em cidades. Estima-se que em 2025 mais de 97 % estará na
cidade. Segundo estatísticas de 1996, no Brasil, 123 milhões de habitantes pertencem ao
68 Mestrando em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: [email protected]
91
mundo urbano, enquanto quase 34 milhões estavam no campo. Sabendo que nesses
últimos anos, no Brasil, o êxodo rural continua como um fato, caminhamos para mais de
80% da população como sendo urbana. Nesse sentido, impressiona o dado de 1940
quando tínhamos apenas cerca de 30 % de população urbana e 70% no campo (LIBÂNIO,
2001, p. 30). Diante de tamanho quadro, a exigência básica de nossa missão pastoral
urbana, assim como em qualquer planejamento comprometido com a esperança, pode-se
dizer, tríplice.
Em primeiro lugar, é preciso ter os pés no chão. Sim! Nosso campo de ação é
o chão da vida, no qual a Igreja pode eficazmente inculturar o evangelho, o que exige de
cada um de seus membros a inserção na própria realidade. E, sem dúvida, “partir da
realidade é partir de onde se está, e não de onde gostaríamos de estar” (BRIGHENTI,
2000, p. 46). Em segundo lugar, é necessário ter os olhos no horizonte. Isso significa:
olhar longe e “saber-se acompanhado e interpelado por Deus, que vai à frente” (Ibid,
2000, p. 46). Partir da realidade não significa que os desafios que se apresentam têm a
última palavra. Sem essa atitude de esperança, “não há metodologia, por melhor que seja,
que consiga fazer caminhar” (Ibid, p. 47). Em terceiro lugar, é imprescindível ter a
coragem de “sujar” as mãos. Sem dúvida, os pés no chão e o olhar no horizonte precisam
entrecruzar-se com as mãos. E “sujar” as mãos tem haver com as “instâncias pelas quais
se passa do teórico ao prático” (Ibid, p. 47). É verdade que, bem aqui, reside o risco do
fracasso, mas esse é “o preço do exercício da liberdade, condição para criar o novo, para
avançar, para quem quer ser protagonista da mudança” (Ibid, p. 48).
Essa é a razão de uma reflexão acerca da missão pastoral urbana da Igreja que
passe, em um primeiro momento, pela necessidade de uma práxis missional que traga à
memória uma faceta esquecida da história das missões – a história regional de missões.
Nossa reflexão passará ainda, em um segundo momento, pela negação do alto teor de
importação que ainda caracteriza a ação missionária no Brasil, via-de-regra, ainda
intrigada com a brasilidade e regionalidade, sem as quais nunca poderemos sonhar com a
concretização, em nosso contexto, do projeto alternativo proposto pelo movimento de
Moisés rumo à urbanização em Canaã, movimento que, por sua vez, nos permitirá acessar
o critério para a missão pastoral urbana proposta aqui.
Assim, nossa tentativa será a de interpretar o movimento mosaico de saída em
missão, o êxodo israelita do Egito como a gestação de uma comunidade alternativa em
saída. Isso faremos objetivando a necessária passagem da reflexão à prática, crendo ser
92
esta última, o modo de diagnosticar saúde e relevância em nossa temática, pois
entendemos que: “Uma teologia sadia tem um modo de ser intensamente prático”
(BAKKE, 1989, p. 05). Afinal, “a voz do Senhor é uma voz de novidade”
(BRUEGGEMANN, 1993, p. 21), razão porque, de fato, a missão pastoral urbana possui:
“cheiro de novidade” (Ibid, 1993, p. 17-31).
Da inserção à inadequação missional em solo brasileiro. Abortando uma História
Regional de Missões
A história da antiga evangelização realizada, tanto pelo catolicismo europeu como pelo
protestantismo de missão norte-americano em solo brasileiro,69 se nos oferece como uma
oportunidade de se fazer uma meditação mais abrangente acerca daquilo que terminou
por constituir a ação missionária no Brasil.
A Inserção do Protestantismo no Brasil – Um estudo de caso
É bem verdade que, para citar um caso específico, a inserção do protestantismo na cultura
brasileira terminou por configurar-se como inadequação missional, visto que a chegada
do protestantismo de missão norte-americano no último terço do século XIX tenha sido
produto de um sentimento expansionista combinado com motivações teológicas alheias à
nossa realidade nacional. Trata-se daquilo que se tem chamado de religião civil
americana, com suas seitas e sua teologia, sua regulamentação da vida social dentro da
ética rigorosa do puritanismo colorido pelo metodismo (MENDONÇA, 1984, p. 29-65).
O fato é que, para os missionários e líderes protestantes nacionais, o catolicismo
brasileiro nada fizera pelo progresso moral e material da sociedade, o que ocasiona uma
estratégia de missão baseada numa certa “ausência da cultura” (MENDONÇA;
VELÁSQUEZ, 1990, p. 143), o que conduz à afirmação de que “tornar-se protestante, na
perspectiva analisada, implica em deixar de ser brasileiro e latino para, culturalmente,
tornar-se anglo-saxão” (Ibid, 1990, p. 230). De fato, não somente toda proposta missional
69 A esse respeito, faremos um breve estudo de caso sobre o protestantismo de missão não somente em sua
inserção em solo brasileiro, mas principalmente na defectiva reflexão crítica em torno de tal inserção feita
pelo protestantismo brasileiro por ocasião da chamada “Conferência do Nordeste”.
93
carrega consigo um arsenal teológico, mas principalmente toda mudança de rota das
correntes teológicas repercute na ação missionária.
Por essa razão, a teologia protestante fez recair – ainda mais do que a tendência
do catolicismo ocidental – sua ênfase sobre a culpa do pecador, enfatizando os erros da
religião dominante em uma verdadeira reação protestante (HAHN, 1989, p. 234-236) ao
invés de procurar fazer uma leitura lúcida dos males sociais que, naqueles dias,
destroçavam o Brasil como um todo, o que ocasionou indubitavelmente um agudo
“descompasso entre protestantismo histórico brasileiro e sociedade” (MENDONÇA;
VELÁSQUEZ, 1990, p. 13).
Tal contexto, não apenas nos faz entender as razões da inadequação da inserção
do protestantismo histórico brasileiro, mas também nos faz compreender as razões que
levaram às igrejas pentecostais e neopentecostais a toda uma criatividade acalourada de
projetos e estratégias, sem critérios abalizados pré-definidos. Segundo Fernandes (1992),
cumpriu-se uma agenda missionária que reduziu a missão protestante a um universo
circunscrito que abriu espaço à realização da chamada Conferência do Nordeste pelos
idos de 1962. A esse respeito, devemos historiar o contexto e realização de tal
conferência, como segue:
Na ocasião, após a segunda guerra mundial, a vitória das forças aliadas
favoreceu certa aliança entre o mundo liberal, social democrata e
comunista. Todos se aliaram na guerra contra o Eixo. Tais alianças
seriam rompidas com a divisão do mundo que deflagra a guerra fria. O
mundo passa a viver a polaridade: capitalismo – comunismo. Todavia,
ainda havia consenso em torno da dinâmica do progresso. O tema do
desenvolvimento surge com toda força. Na América Latina, o tema do
desenvolvimento é muito forte. No Brasil a era Kubitsckek coloca o
país nessa discussão. Nesses anos eclode também Cuba que representa
a alternativa socialista dentro da América Latina. No Brasil, o Nordeste
passou a ser encarado como a Cuba brasileira, pois era símbolo da
pobreza, exploração e da revolução. O sul estava no processo do
progresso diante dos marcos capitalistas, enquanto que o Nordeste
parecia condenado ao atraso. Daí a revolta e o significado da região
crescerem ao se entender que é da injustiça que nasce a alternativa
socialista. Um exemplo está no fato de que todo mundo que queria fazer
filme progressista no Brasil ia para o Nordeste, pois ele significava o
referencial simbólico ideal. Foi essa também a época em que surgiram
no Nordeste as ligas camponesas. Tudo isso favoreceu o vôo de uma
andorinha nordestina – a realização da Conferência do Nordeste. Esta
conferência nos aproximava de Cuba, das ligas camponesas, enfim do
imaginário da grande transformação. Se aquela geração que fez a guerra
e a reconstrução passava, surgia um grande debate ideológico nos anos
60 que empolgava a juventude. Quem fez a guerra tinha a cabeça
complicada, enquanto a juventude era ganha por esse debate. O
94
movimento estudantil explodiu nas universidades e representou um
verdadeiro fervilhão cultural. A juventude ganhava um plano de
primeira linha no debate nacional e fazia uma opção clara pelo
socialismo. A empolgação era tanta que os jovens achavam que
poderiam mudar o mundo. Mas, havia uma tremenda ingenuidade
messiânica e um desconhecimento da complexidade da realidade. Não
se tratava de um messianismo do além, mas um messianismo
sociologizado, da história, feito por forças históricas e sociais. Essa era
a revolução. Foi nesse contexto que a Igreja foi apanhada quando
começou a se interessar pelas ciências sociais. Como sempre, a igreja
foi afetada de maneira similar à sociedade. A juventude era uma força
de engajamento e vanguarda. Os seminários foram permeados por essa
efervescência universitária. Enquanto isso, as bases da Igreja, as
gerações mais antigas estavam muito assustadas com tudo isso. O
isolamento intelectual dos revolucionários não tornou o zeitgeist e sua
práxis como realidades acessíveis, fazendo com que as igrejas
protestantes tivessem uma reação forte porque esse messianismo
sociológico tendia a ser caracterizado pelo ateísmo, visto que era
composto por setores bem pouco religiosos. A igreja protestante vinha
de uma história de oposição aos católicos e a proposta extemporânea
era a de um diálogo com católicos e marxistas. Para a igreja, de modo
geral, esse tipo de encontro, de diálogo, parecia muito arriscado, pois
ela não estava preparada para isso. A opção, portanto, foi a de rejeição
ao diálogo, uma reação conservadora que acompanhou a postura do país
como um todo. O fato é que, se por um lado, vislumbrava-se um novo
futuro de independência, autonomia, e de uma prática democrática
regida pela lógica das maiorias empobrecidas, por outro lado, o golpe
militar de 1964 desabou sobre o país quando as reformas de base, o
papel dos sindicatos, a organização camponesa estavam na ordem do
dia. No seio da igreja, iniciativas desencadeavam um processo de
consultas e encontros que se desejava fossem capazes de aglutinar as
igrejas do protestantismo de missão norte-americano. A proposta era a
de fazer com que se aprofundasse raízes na realidade sócio-cultural
brasileira: um programa conjunto de participação efetiva relevante na
realidade nacional, mas isto de forma autóctone, ou seja, autônoma em
relação às igrejas-mães norte-americanas. Isso exigia a participação de
leigos, pastores e líderes, assim como a produção de um conhecimento
bíblico-teológico que atendesse a demanda dos novos desafios e novas
modalidades de ação e participação sociais que adviriam. Assim, em
tamanho empreendimento não se poderia prescindir do concurso das
ciências sociais. Era fato que a questão cultural tinha sido um ponto
fraco do evangelismo protestante, em decorrência da identificação
apressada efetuada pelas missões norte-americanas entre pecado e
cultura nativa. Foi nesse contexto que a Conferência do Nordeste se
constituiu como meta indispensável. O local da conferência de 1962
não foi escolhido aleatoriamente: o Recife era o epicentro político do
Nordeste. A própria escolha do local constituía-se também num
símbolo de aproximação do protestantismo da autêntica cultura
brasileira, nascida na criatividade do povo em meio à opressão e
pobreza (FERNANDES, 1992, p. 14-15).
Indubitavelmente, às tentativas de certo revisionismo missiológico protestante
empreendido pela conferência do Nordeste no Recife da década de 60 correspondiam “os
95
ecos do evangelho social no Brasil” (REILY, 1984, p. 275-276), ecos e tentativas que
poderiam levar à precipitada indagação: É certo que a igreja furtou-se à realização de um
projeto lúcido? Esvaiu-se de fato a oportunidade de antecipações inusitadas como as de
uma relação mais estreita entre teologia e ciências sociais? Nos teria escapado um projeto
de unidade cujo eixo fosse o do serviço ao próximo e de uma práxis solidária?
Nossa resposta se mistura à esperança de que o Espírito de Deus certamente irá
providenciar uma nova oportunidade à Igreja brasileira. Então, em meio à atraente
proposta de um evangelismo encapsulado por entre reducionismos doutrinais e
inadequações missionais, haverá lugar, quem sabe, para um cristianismo equilibrado e
mais criterioso, razão de nossa recorrente indagação: Diante da crise, ou mesmo do ‘fim
da utopia’ proclamado pela pós-modernidade, será possível a Igreja, em meio à um
cristianismo tão flagelado e frágil, prestar uma contribuição relevante?
Dos porões do êxodo aos portões do advento missional. Ressignificando a
hermenêutica pastoral
A possibilidade de uma contribuição relevante por parte da Igreja em meio ao
contexto atual de nossas cidades, com toda problemática que dele demanda, exige de nós
um retorno ao movimento de saída proposto por Moisés no êxodo israelita do Egito, onde
nos deparamos com a dessacralização da política como uma condição inevitável tão bem
interpretada por Harvey Cox ao afirmar: “A mudança política depende de uma
dessacralização prévia da política” (COX, 1965, p. 35-36). De fato, foi somente a reação
israelita promovida por Moisés que deflagrou um processo de derrocada do sistema
idolátrico egípcio conhecido na história como “a divinização do poder estatal do Faraó”
(AQUINO; FRANCO; LOPES, 1992, p. 92), abrindo alas para uma mentalidade de
mudanças promovida pela “força ideológica de uma ‘religião revelada’” (Ibid, 1992, p.
130).
Aqui reside, portanto, o critério hermenêutico advindo do movimento de Moisés,
um critério norteador das escolhas eclesiais em meio ao atual contexto da pastoral urbana
da Igreja no Brasil. Trata-se de uma espécie de ponto de partida para uma teologia bíblica
de missões urbanas, pois não é suficiente apenas importar-se com o que foi abortado –
uma história regional de missões – e abortar o que tem sido importado – modelos
96
missionais estrangeiros – mas encarar lucidamente a realidade dos porões da
clandestinidade israelita veterotestamentária em meio ao Egito de então, de onde surge
uma comunidade alternativa arraigada à origens teologais, desde há muito reveladas a
uma família de forasteiros sem pátria e sem templos, família que vivia na leveza da
criatividade que teima em ensaiar as promessas divinas por meio da simplicidade da graça
vivida na austeridade de sua fé a caminho e na radicalidade de uma esperança peregrina.
À largada na corrida dos patriarcas rumo à terra das promessas – a pátria e cidade
imorredouras – corresponde a hermenêutica da peregrinação pelos desertos encontrada
no êxodo de Israel do Egito rumo à urbanização em Canaã.
Assim sendo, diante do desafio imposto pela atual urbanização, precisamos voltar
o foco para o movimento de Moisés, se realmente queremos encontrar nas Escrituras o
critério norteador da missão pastoral urbana no contexto da cidade moderna, pois o
cenário de tão significativo critério foi o de uma tensão entre o projeto macro-estrutural
do imperialismo egípcio sob o totalitarismo de seus governantes e o projeto de uma
comunidade alternativa teocraticamente liderada a partir de uma proposta específica – a
proposta de Moisés a respeito de uma comunidade alternativa radicada em seu passado
energizador e unida por esperanças fundamentais (BRUEGGEMANN, 1983, p. 09-32).
Nas elucidativas intuições de Brueggemann, o movimento de Moisés possuía três
itens em seu programa de ação: (1) a viabilização da identidade do povo de Israel a partir
de um aprofundamento étnico interno que o levou às raízes de sua fé e da sua experiência
histórica; (2) a ruptura radical com a realidade egípcia através da denúncia do triunfalismo
de uma religião estática e de uma política de opressão; e (3) a proposta de uma consciência
alternativa formada a partir de uma angústia e de um modelo fundado na celebração de
uma práxis de liberdade. Em suma, podemos afirmar que:
Moisés exprime a contracultura – vida alternativa – de um grupo
humano historicamente situado, cuja crítica do presente e nostalgia do
passado dinamizam a sua descontinuidade e ruptura com a realidade
imposta contra a qual se insurge soberanamente Aquele que não pode
ser por ela cooptado, nem dominado, mas permanece irredutivelmente
livre – o Deus de toda a terra[...] Trata-se da liberdade de Yahweh em
inverter a história para promoção do homem todo e conseqüente
instauração do Seu Reino (SILVA Jr., 2005, p. 19, passim).
Tal contracultura encontrou solo fértil para nutrir suas ideias a respeito do
movimento de Moisés em torno da aliança do Sinai nos meios rurais do reino do sul –
97
Judá – e nos meios proféticos e levíticos do reino do norte. É inegável que a idéia de
aliança tenha sido preservada pelo ideal nômade dos profetas de Israel que “condenavam
o luxo e as facilidades da vida urbana e viam a salvação em um retorno à vida no deserto”
(VAUX, 2002, p. 34). De fato,
Nessa atitude há uma reação contra a civilização sedentária de Canaã
com todos os seus riscos de perversão moral e religiosa. Há também a
recordação e a nostalgia do tempo em que Deus havia feito aliança com
Israel no deserto e em que Israel estava ligado com seu Deus. Seu ideal
não é o nomadismo, mas aquela pureza da vida religiosa e a fidelidade
à aliança. Se eles (os profetas) falavam de retorno ao deserto, não é
porque recordavam uma gloriosa vida nômade que tivessem levado seus
antepassados, mas como meio de evadir-se de uma civilização
corruptora (Ibid, 2002, p. 34-35).
Como acentua Roland de Vaux (2002), a proposta que remonta aos profetas –
enquanto portadores da tradição mosaica e em seu alinhamento com a divina Revelação
– e propiciada pelo movimento de Moisés, é a de um movimento de reação que
desempenhou o seu papel histórico com relevância.
Assim, podemos destacar como elementos básicos da contracultura israelita
iniciada por Moisés (1) a visão nômade de pureza ética dominante no antigo Israel
colocada como uma alternativa ao imperialismo egípcio e, posteriormente, à cidade-
estado cananita e (2) o conceito de uma comunidade, cujo propósito é o compromisso
pactual com uma ideologia e organização social diferentes (MENDENHALL, 1959, p.
157-158). Note-se aqui, a estreita relação entre processo social e visão teológica, entre
“epistemologia e economia” (MILLER apud, BRUEGGEMANN, 1994, p. 08). À
semelhança da expressão de Karl Barth, 70 quando o Deus da liberdade e justiça é aceito
como “sócio” pactual, todo e qualquer totalitarismo encontra-se longe de se tornar
necessário ou viável.
Assim sendo, tão nítida trajetória de uma religião de um Deus da liberdade em
Sua política de justiça em favor do humano é o próprio critério hermenêutico do
movimento de Moisés. É, pois, somente a partir de tal critério que se torna possível a
Brueggemann (1994, p. 13-42) trabalhar as trajetórias da literatura veterotestamentária
70 Karl Barth usou a expressão “sócio do homem”, de acordo com GRIFFEN, Karn. “The Church as a
Therapeutic Community” apud ANDERSON, Ray (ed.). Theological Foundations for Ministry. Grand
Rapids: Eerdmans, 1979, p. 734. Vale frisar que, uma expressão similar “sócio de Iahweh” é usada
igualmente por Brueggemann em BRUEGGEMANN, Walther. Theology of the Old Testament.
Testemony, Dispute, Advocacy. Minneápolis: Fortress Press, 1997, p. 413-49.
98
em associação com uma sociologia do antigo Israel, onde dois ciclos de tradições
concernentes ao pacto em Israel, um derivado de Moisés e outro Davídico em suas
formulações coexistiram, tendendo a tradição mosaica a um movimento de protesto,
enquanto a tradição davídica a um movimento de consolidação (Ibid, 1994, p. 43-63). Em
suma, podemos afirmar que Moisés gestaciona todo um imaginário, uma espécie de
utopia de alternância com sabor de deserto, para citar uma linguagem mais técnica e
poética e menos teológica.
Conclusão
Dessa forma, a relevância da missão pastoral da Igreja nos grandes centros
urbanos em nossos dias encontra o critério hermenêutico proveniente do movimento de
Moisés em pleno Antigo Testamento como forma de remediar as lacunas de uma história
regional de missões nem sempre lúcida e quase sempre carente de plausibilidade.
As inconsistências grotescas e agudas contradições entre o ideal americano de
implantação de agências estrangeiras no Brasil e a posterior reflexão fomentada pela
Conferência do Nordente no âmbito do protestantismo, por exemplo, aguçaram nossa
necessidade de buscarmos melhores respostas à práxis missional contemporânea, sendo
tal necessidade suprida por uma proposta bíblico-missiológica a ser remodelada na
contemporaneidade – e ressignificada pelos mais variegados contextos – à luz do critério
hermenêutico do movimento mosaico, cujo delineamento em nossos dias passa
sugestivamente pela (1) angústia intencionalmente articulada pela Igreja ao denunciar
corajosamente o atual desmantelamento das soluções meramente sóciopolíticas; pela (2)
proposta de uma consciência alternativa da Igreja radicada às origens teologais de seu
passado energizador e unida pela celebração de uma práxis de liberdade e esperança
fundamentais; e pela (3) emergência de uma contracultura profética, asceticamente
centrada, como movimento de reação, ético e anti-totalitário, comprometido com uma
ideologia e organização social diferentes. Trata-se inevitavelmente, como já dissemos, da
religião de um Deus da liberdade, cuja política em favor do humano descerre a missão
pastoral urbana da Igreja.
99
Referências
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Comunidades Primitivas às Sociedades Medievais. São Paulo: Editora ao Livro Técnico,
1992.
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Westminster Theological Seminary, 1989.
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BRUEGGEMANN, Walther. Using God’s Resources Wisely – Isaiah and Urban
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_____ , A Imaginação Profética. São Paulo: Paulinas, 1983.
_____ , A Social Reading of the Old Testament. Prophetic Approaches to Israel’s
Communal Life. Minneapolis: Fortress Press, 1994.
_____ , Theology of the Old Testament. Testemony, Dispute, Advocacy. Minneápolis:
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COX, Harvey. A Cidade do Homem. São Paulo: Paz e Terra, 1965.
FERNANDES, Rubem César. Jornal Contexto Pastoral, número 08, maio/junho. São
Paulo: Igreja Presbiteriana Independente, 1992.
HAHN, Carl Joseph. História do Culto Protestante no Brasil. São Paulo, ASTE, 1989.
LIBÂNIO, João Batista. As Lógicas da Cidade. São Paulo: Loyola, 2001.
MENDENHALL, George. The Monarchy. Michigan: Interpretation Review, 1959.
MENDONÇA, Antônio Gouveia. O Celeste Porvir. A inserção do protestantismo no
Brasil. São Paulo: Paulinas, 1984.
MENDONÇA, Antônio Gouvêia; VELÁSQUEZ, Prócoro. Introdução ao
Protestantismo no Brasil. Rio de Janeiro: Loyola, 1990.
REILY, Duncan. História Documental do Protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE,
1984.
100
SILVA Jr., Jário Carlos da. Missões Urbanas, uma Alternativa para a Cidade. O
movimento peregrino de Moisés rumo à urbanização de Canaã, enquanto estrutura
sociológica da cidade. Recife: Multhgráfica, 2005.
VAUX, Roland de. As Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Editora
Teológica, 2002.
101
COMO FAZER COM QUE OS TEXTOS BÍBLICOS DIALOGUEM,
MESMO QUE ELES PAREÇAM TÃO DÍSPARES?
João de Sousa Brito71
1. A divergência entre textos
Como fazer com que os textos bíblicos dialoguem, mesmo que eles pareçam tão
díspares? Uma das percepções mais comuns, feita por quem se aproxima do texto bíblico
pela primeira vez é a grande incoerência entre suas diversas partes. Entretanto é preciso
salientar que “[...]toda contradição aparente encontrada na Bíblia – toda discrepância,
todo suposto erro histórico ou científico, incorreção gramatical, fato ou comentário
controverso – já foi percebida, discutida e debatida literalmente milhares de vezes[...]”72
Não se trata de nenhuma novidade perceber a existências dessas incoerências. A
pluralidade de gêneros literários, de autores, de lugares de redação, faz parecer, à primeira
vista, que a Bíblia é fruto de uma bricolagem que não teve êxito.
O desafio é perceber que, apesar de uma imagem supostamente bizarra, existe uma
harmonia entre os textos que pode ser trazida à tona mediante procedimentos exegéticos
e literários apropriados. Uma visão mais acurada do conjunto trará a compreensão de que
os textos possuem uma harmonia interna bem maior do que se pode pensar normalmente.
Uma das teorias mais aceitas e que explicam a divergência entre textos é teoria
documentária. Os cinco primeiros livros da Bíblia teriam se originado de quatro fontes: a
javista, eloísta, deuteronomista e sacerdotal.
Entretanto, essas composições teriam sido intencionalmente editadas para mostrar
uma visão harmônica da revelação divina. “Todos os grupos atuaram com intenções
teológicas: a ligação e a revisão dos textos realiza-se acompanhada por uma visão de
história baseada na fé na promessa de Deus.” 73
2. Dinâmica da intertextualidade
71Bacharel em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP-PE); pesquisador júnior no
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UNICAP-PE; mestrando em Teologia na
UNICAP-PE. E-mail: [email protected] 72 HUTCHINSON, Robert J. Uma história politicamente incorreta da Bíblia. Rio de Janeiro: Agir,
2012. p.59 73 VV.AA. Guia para ler a Bíblia. Trad. de Antônio Maia da Rocha. São Paulo: Paulus, 1997. p.75.
102
Por trás da aparente linearidade dos textos bíblicos existem diálogos transversais
muito esclarecedores e que confirmam a possibilidade de uma “leitura infinita” da Bíblia.
Nesses diálogos é possível detectar o que de contínuo ou de descontínuo existe entre o
antigo e a novidade, ou como a novidade auxilia na leitura do antigo.
Uma das ferramentas que nos permite essa percepção é a dinâmica da
intertextualidade. A intertextualidade é um traço já há bastante tempo observado na
Bíblia. A Bíblia cita a si mesma de forma explícita, implícita ou alusivamente. Já os
Padres da Igreja haviam observado esse fenômeno de modo bastante evidente.
Entretanto somente com a dinâmica da intertextualidade, propostas mais
recentemente por Marguerat e Moiyse, é que se poderão perceber, com maior clareza, os
diálogos internos da Bíblia que vão surgindo de modo surpreendente.
Conforme nos lembram Marguerat e Bourquin, “a intertextualidade pode ser
definida como uma relação de copresença entre dois ou vários textos, ou, se preferirem,
como a presença efetiva de um texto dentro de outro texto.”74
A dinâmica da intertextualidade é uma vital ferramenta nesse processo de
descoberta e percepção das inter-relações estabelecidas pelas diversas partes da Bíblia.
Ao se perceber a presença de outros textos num texto corrente, a visão de harmonia se
amplia. A Bíblia foi trabalhada e composta minuciosamente para dar essa idéia.
3. Tipos de intertextualidade
No caso da Bíblia, existem, basicamente, dois tipos de intertextualidade, uma
explícita e uma implícita. O primeiro tipo ocorre quando é feita menção à fonte do
intertexto ou simplesmente ocorre a citação literal do intertexto. O segundo tipo se
apresenta quando se introduz intertexto alheio sem menção à fonte ou a citação é feita de
maneira aproximada.
Dependo da forma como ocorrer a relação intertextual o novo texto pode trazer
luz ao antigo, dando-lhe novo significado ou ampliando o sentido já existente. Trata-se
de uma relação dinâmica entre as diversas partes da Bíblia e que é melhor percebida
através de uma análise metódica e cuidadosa.
74 BOURQUIN, Yvan; MARGUERAT, Daniel. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise
narrativa. São Paulo: Loyola, 2010. p.130.
103
Os textos permanecem dialogando entre si, apesar de terem sido escritos há
centenas de anos. E a intertextualidade vem evidenciar esse processo. Com o método
apropriado essas vozes tornam-se audíveis.
Como explica Koch, “[...]o produtor do texto espero que o leitor/ouvinte seja
capaz de reconhecer a presença do intertexto, pela ativação do texto-fonte em sua
memória discursiva, visto que, se tal não ocorrer, estará prejudicada a construção do
sentido[...]”.75
Os autores bíblicos não tinham, provavelmente, noções dessas ferramentas
literárias de análise de que se dispõe atualmente, contudo, eles visavam dar uma aparência
harmônica àqueles textos, e, ao que parece, eles intencionavam que esse trabalho de
interpretação fosse feito pelo leitor. No dizer de Marguerat e Bourquin: “Quanto mais
implícita é a mensagem, mais ativa deve ser a participação do leitor no ato de leitura”.76
4. Como funciona a dinâmica da intertextualidade
É necessário se levar em consideração alguns pressupostos e alguns passos
metodológicos na utilização da dinâmica da intertextualidade. Com relação aos
pressupostos, é necessário compreender que a Bíblia, como um todo, compõe uma única
história da salvação, cujo centro é a pessoa de Jesus Cristo. Jesus Cristo é a grande
novidade dessa extensa narrativa. Todos os textos contidos na Bíblia referem-se a algum
momento da história salvífica.
De maneira sintética, a metodologia vem descrita a seguir. Como primeiro passo
propõe-se a escolha e leitura pormenorizada de duas perícopes que poderiam estar
relacionadas intertextulamente. A leitura deve partir, preferencialmente, dos textos em
hebraico e grego. Em decorrência disso um conhecimento das línguas bíblicas torna-se
indispensável, pois somente assim se poderá detectar melhor onde e como ocorre a
intertextualidade.
Em seguida, deve-se proceder à análise semântica desses textos, quando se
observará a existência de palavras iguais ou sinônimas, especialmente os verbos, bem
75 KOCH, Ingedore G. Villaça; BENTES, Ana Cristina; CAVALCANTE, Monica Magalhães.
Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo, Cortez, 2007. p.28-31 76 BOURQUIN, Yvan; MARGUERAT, Daniel. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise
narrativa. São Paulo: EDIÇÕES LOYOLA, 2010. p.146
104
como a quantidade de sua ocorrência. Vai se começando a perceber como esses textos
vão dialogando, semântica e tematicamente.
Após a análise semântica, deve-se proceder à análise temática. Caberá ao leitor
procurar identificar os temas carreados por cada um dos textos, bem como o modo como
esses temas são abordados.
Finalmente, surgem as hipóteses de leitura, que são possibilidades de
entendimento proporcionadas pelo estudo da intertextualidade bíblica. Ou seja, possíveis
compreensões ou respostas a diversas questões teológicas e humanas oferecidas pelos
autores bíblicos.
5. Um exemplo de utilização da dinâmica da intertextualidade
Como exemplo de como essa ferramenta pode ser utilizada, propõe-se a análise
da inter-relação entre os textos dos livro dos Cânticos 3, 1-4 e evangelho de João 20,11-
1777. Que relação intertextual poderia haver entre esses textos?
A seguir os respectivos relatos:
Sobre meu leito, ao longo da noite,
procuro aquele que eu amo.
Eu procuro, não o encontro.
Tenho de levantar-me,
dar a volta pela cidade;
nas ruas, nas praças,
procurar aquele que eu amo.
Eu o procuro, não o encontro.
Encontram-me os guardas
que fazem a ronda na cidade:
“Aquele que eu amo, não o viste?”.
Mal os tenho passado,
encontro aquele que eu amo.
Seguro-o e não o largo,
Até tê-lo introduzido na casa de minha mãe,
no quarto da que me concebeu:
Maria ficara fora, perto do túmulo, e chorava.
Chorando, ela se inclinou para o túmulo e viu
dois anjos vestidos de branco, sentados no
mesmo lugar onde o corpo de Jesus fora
depositado, um a cabeceira e outro aos pés.
“Mulher, disseram-lhe, por que choras?” Ela
lhes respondeu: “Tiraram o meu Senhor e eu
não sei onde o puseram”. Enquanto falava, ela
se voltou e viu Jesus que estava ali, mas não
sabia que era ele. Jesus lhe disse; “Mulher, por
que choras? Quem procuras?”. Mas ela,
pensando que se tratava do jardineiro, disse-
lhe: “Senhor, se foste tu que o tiraste, dize-me
onde o puseste, e eu o levarei”. Jesus lhe disse:
“Mariam”. Ela se voltou e lhe disse em
hebraico: “Rabuni”, o que significa mestre.
Jesus lhe disse: “Não me retenhas! Pois eu
ainda não subi para meu Pai. Mas tu, vai ter
com os meus irmãos e dize-lhes que eu subo
para o meu Pai, que é vosso Pai, para o meu
Deus, que é vosso Deus”. (grifos do autor)
77 Bíblia Tradução Ecumênica - TEB. São Paulo: Loyola, 1994.
105
Logo se percebe que um verbo une os dois trechos, o verbo procurar. São duas
passagens que retratam a busca de uma mulher. A análise intertextual deles poderá
apontar o que o segundo texto traz de novidade em relação ao primeiro. Como o Novo
Testamento explica e amplia o sentido do Antigo Testamento? Será que esses textos tão
distintos poderiam ter algo mais em comum?
Alguns apontamentos.
Duas mulheres angustiadas, uma procurava o amado, a outra chorava e procurava
seu senhor. Num primeiro momento, uma encontra guardas e lhes indaga, a outra encontra
anjos, e é indagada por eles. Uma procura um vivo, a outra procura o senhor morto.
Quando a primeira mulher encontra seu amado, logo o reconhece. A segunda, não
reconhece logo seu senhor e o confunde com um jardineiro – o livro do Cântico dos
Cânticos parece ter um jardim como cenário. Ao encontrar seu amado, a primeira o segura
e não o larga. Ao reconhecer seu senhor, este diz à mulher para não o reter, e a envia
numa missão.
Nos textos encontramos continuidades e descontinuidades que nos esclarecem
sobre a nova perspectiva da vida de fé iluminada pelo evento Cristo. “Foi em meio a essa
maré montante de fragmentação, de conflito e de desespero que apareceu Jesus de Nazaré
com sua mensagem e sua visão ímpares”.78 A antiga experiência se repete, praticamente,
os mesmos personagens, porém com um novo formato, com um novo desfecho.
REFERÊNCIAS
Bíblia Tradução Ecumênica - TEB. São Paulo: Loyola, 1994.
BOURQUIN, Yvan; MARGUERAT, Daniel. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação
à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2010.
HUTCHINSON, Robert J. Uma história politicamente incorreta da Bíblia. Rio de
Janeiro: Agir, 2012.
KOCH, Ingedore G. Villaça; BENTES, Ana Cristina; CAVALCANTE, Monica
Magalhães. Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo, Cortez, 2007.
MILLER, John W. As origens da Bíblia: repensando a história canônica. São Paulo:
Loyola, 2004.
VV.AA. Guia para ler a Bíblia. Trad. de Antônio Maia da Rocha. São Paulo: Paulus,
1997.
78 MILLER, John W. As origens da Bíblia: repensando a história canônica. São Paulo: Loyola, 2004.
p.175
106
O LUGAR DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NATEOLOGIA DE JOSÉ COMBLIN
MSc. Jorge Roberto de Araújo Aguiar79
1 A importância das Ciências Sociais80 no modo de fazer Teologia81 na América
Latina
Investiga-se neste primeiro momento a relação entre Ciências Sociais e teologia
no contexto da América Latina onde, se tornou necessário o recurso às Ciências Sociais
para conhecer a situação de pobreza em nosso continente. Francisco Aquino Júnior (2012,
p.1325) revela duas posturas fundamentais nesta relação. A primeira atribui grande
importância às ciências constituindo-se em um momento pré-teológico, e a
segunda,consiste em ressaltar a dimensão social da teologia e a sua instrumentalização
ideológica. Inicia-se o trabalho abordando o momento pré-teológico, dialogando com
Gustavo Gutiérrez e Clodovis Boff. Em seguida, trabalhar-se-á a questão da libertação da
teologia, ou seja, a sua não instrumentalização ideológica com Juan Luis Segundo.
1.1 O momento pré-teológico, dialogando com Gutiérrez e Boff
Verifica-se não só em Gustavo Gutiérrez como também em Clodovis Boff a fé
como participação da ação salvífica de Deus enquanto práxis. Reconhece-se, no entanto,
que coube a Gutiérrez, o mérito de ter iniciado o novo campo epistemológico no âmbito
do pensamento cristão, a partir do evangelho e do mundo da pobreza. Seu esforço para
compreender os mecanismos de opressão do sistema capitalista o levou a uma análise
social, e conseqüentemente, ao encontro com as Ciências Sociais, como também, com a
análise marxista. Gutiérrez (2000, p.73), ao se aproximar das Ciências Sociais, tinha em
79 Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (2011). Especialista em
Filosofia e Existência (2006), História do Brasil (1990) e Administração Escolar (1998). Possui
graduação em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1977). Atualmente é professor do
Liceu Alagoano e do Colégio Marista de Maceió. Tem experiência na área de História e Filosofia, com
ênfase em História Latino-Americana, Filosofia da História, Ética da Alteridade e da Libertação. E-mail:
[email protected] 80 Entende-se aqui que, tais ciências são auxiliares da teologia no sentido de ajudá-la a inculturar a fé na
atualidade histórica, ou seja, adequar a mensagem cristã à cultura moderna 81 Segundo Clodovis Boff, a teologia tematiza uma realidade que não é um ser parcial, como nas demais
ciências, mas o horizonte de todos os seres. Nesse sentido, a teologia constitui uma ciência necessária
como todas as outras. Mais: é uma ciência rigorosamente fundamental (BOFF, 2009, p.364).
107
vista o conhecimento de uma situação e não de um estudo considerado teológico.Em
relação ao uso da análise social e do espírito crítico afirma:
Sem dúvida, o uso das Ciências Sociais, que como é indicado várias
vezes em nossos trabalhos está dando seus primeiros passos, como
esforço científico tem muito de aleatório, mas na atual situação nos
ajuda a conhecer melhor a realidade social. A postura diante delas deve
ser de discernimento, não só pelo que tem de incipiente, como já foi
sublinhado, mas também porque afirmar que tais disciplinas se situam
em um terreno científico não significa que se trata de algo irrefutável e
indiscutível (GUTIÉRREZ, 2000, p.74).
Como se observa em sua fala, o espírito científico não está isento do exame crítico.
Para ele a ciência progride por hipóteses. Ao afirmar que algo é científico significa
sustentar que está submetido a uma crítica permanente, e que a teologia deve está atenta
a essas variações e as críticas.
Já Clodovis Boff encara o problema da relação entre teologia e as Ciências Sociais
como mediações culturais a que recorre a fé para falar sobre Deus. Em seus escritos(1982,
p. 42) deixa claro que esta relação está determinada pelas exigências da práxis cristã.
Segundo ele, existem cristãos que estão engajados em práticas políticas. Sua fé se
confrontam com implicações teóricas e práticas no tecido das relações sociais. Daí a
necessidade de uma síntese orgânica entre a opção de vida, exprimindo-se nas e pelas
coordenadas da fé, e as opções históricas, levando a um questionamento cruzado entre fé
e política. Verifica-se neste sentido que se a fé pretende ser eficaz não pode se pretender
isolada da mediação política concreta. Daí a pergunta de Clodovis Boff (1982, p. 43) que
é ser cristão numa situação histórica como a da América Latina dependente? O que
significa essa situação aos olhos da fé? Nesse sentido afirma:
[...] a preocupação por uma teologia do político nasceu do solo
originário que é o engajamento de cristãos na política. As produções da
teologia do político se elaboraram de fato, e querem ainda se elaborar
em função desse mesmo engajamento. Eis aí duas constatações
importantes, relacionadas entre elas subentendidas na base da
articulação teologia e Ciências Sociais(BOFF, 1982, p. 43).
No que se diz respeito a esta relação, ela se dá, no momento da relação fé e política.
Sendo assim, o encontro prático dos cristãos com os desafios políticos, se constitui o
ponto de partida do encontro dos teólogos com as Ciências Sociais. Portanto, a relação
teologia e ciências ocorre na relação fé e práxis. Em outras palavras, não há teologia em
função da práxis política senão por uma mediação sociopolítica.
108
Gutiérrez admite em relação as Ciências Sociais, que elas constituem ferramentas
de estudo da realidade social, e que ocorrem nestas ciências, elementos de análises
provenientes do marxismo82. Segundo Gutiérrez (2000, p.77), isto não autoriza se
identificar as Ciências Sociais ao marxismo. As alusões a Marx e as suas contribuições
no campo da análise são também frequentes na teologia o que não significa uma aceitação
ao marxismo. A aceitação de uma ideologia ateia seria contraria a fé que é fundamental
na questão teológica. No entanto Gutierrez (2000, p.81) chama atenção para a relação
entre a análise científica da realidade e a reflexão teológica como dimensões autônomas
e necessárias uma a outra. Porém, do evangelho não se deve deduzir ações políticas, pois
se trata de outro campo. Gutiérrez (2000, p. 81) vai mais longe quando comenta com mais
clareza: não se trata de elaborar ideologias que identifiquem posições, nem de forjar uma
teologia da qual se deduza uma ação política. Trata-se de nos deixar julgar pela palavra
do senhor e esta é a função da teologia. Não cabe a teologia da libertação buscar soluções
de políticas alternativas.
No entanto se há de convir que não se justifica a falta de ação da teologia no
anúncio da palavra, mas entende-se que o que cabe a reflexão da teologia se realiza à luz
da fé e não a luz da sociologia. No entanto, Aquino(2011, p.29) chega a afirmar que, a
relação entre teologia e política pertence a estrutura mesma da revelação e é um elemento
constitutivo do dinamismo cristão. Gutiérrez por sua vez, se posiciona da seguinte forma:
[...] deve-se pedir à teologia que assinale a presença da relação com
Deus e da ruptura da relação com Deus no âmago da situação histórica,
política econômica, o que uma análise social nunca poderá fazer. Um
sociólogo nunca verá que no cerne de uma realidade social injusta está
o pecado: ruptura com Deus e, portanto, ruptura com o próximo
(GUTIÉRREZ, 2000, p.82).
Sem dúvida, a fé em si como algo separado da vida não existe, não se trata de
esferas auto-suficientes. No entanto, a presença das Ciências Sociais na teologia, não
significa uma submissão da reflexão teológica, como também não se trata de descaso
pelas questões que a luta pela justiça suscita. A teologia deve compreender sua caminhada
apelando para suas próprias fontes.
82Clodovis Boff, em seu livro Teoria do Método Teológico reconhece que a Teologia da Libertação, no
momento de mediar a fé cristã com a realidade social e não no momento de constituir seus princípios
hermenêuticos privilegiou a tradição marxista. Tomou essa posição, segundo Clodovis Boff, quer por
razões de caráter científico (seria a corrente que melhor consegue explicar os fenômenos ligados à
pobreza) quer, mais na base ainda, por razões de tipo ético (ela se coloca na perspectiva da justiça e na
ótica do oprimido) (BOFF, 2008, p.385).
109
Já em relação à teologia do político, Clodovis Boff (1982, p. 44) esclarece que se
trata de uma exigência interna da comunidade eclesial. Ela é vivida pelos cristãos
politizados. Segundo ele os cristãos vivem a experiência da fé na política, como se tratasse
da realização última do homem. Aí está talvez, o porque mais radical do interesse que
manifestam os cristãos engajados por uma síntese teórico-prática entre fé e política. Dessa
forma para uma teologia que vise a práxis as classes sociais exercem uma função de
mediação teórica necessária que Clodovis Boff chama de “Mediação-analítica”. Sendo
assim, há de se concluir que, as práticas políticas serão adequadamente realizadas quando
compreendidas através de análises das disciplinas que lhes dizem respeito. Desta maneira,
quando se diz que a práxis e o referente da articulação, teologia do político com as
Ciências Sociais, entende-se a práxis no sentido moderno do termo. A práxis subentende
uma interioridade, não é uma ação puramente mecânica, resulta num efeito objetivo, não
é uma ação que se esgota no âmbito interno. Seu sujeito é social, implica numa ação
transformadora. Segundo Clodovis Boff (2009, p. 393), quando se afirma que a teologia
é finalizada na práxis, não se deve entender práxis como apenas práxis pastoral. Para ele,
a teologia se destina também a prática ética, à prática política. A prática em que termina
a teologia é antes de tudo uma prática espiritual: ausculta a palavra, conversão, fé,
adoração. A práxis tem uma conotação política uma vez que é por intermédio do político
que se pode intervir sobre a estruturas sociais.
No entanto não se pode falar de teologia, na perspectiva cristã, sem falar da práxis
histórica de libertação. Francisco Aquino (2011, p.43) comentando Ignacio Ellacuria,
insiste na intrínseca relação da história da salvação com a salvação na história, isto é, a
progressiva realização do reinado de Deus na história, por ser o corpo histórico da
salvação, seu lugar próprio de realização e verificação do reino. Daí o duplo caráter social
e político da revelação de Deus. A revelação cristã de Deus acontece numa história social.
Este caráter práxico da relação teologia e política a qual Gutiérrez também, chama
atenção, diz respeito a estrutura mesma da revelação “histórico-salvífica” de Deus na
história. A fé é participação na ação salvífica de Deus e, portanto,práxis, e enquanto
práxis tem sempre uma dimensão social e política. Trata-se de uma revelação que tem
repercussão na estruturação das relações sociais. Sendo assim, em relação a fé, tem
sentido afirmar que, enquanto entrega ao Deus que se revela, a fé é participação nessa
mesma ação. Gutiérrez toma a realidade social como lugar onde se vive a fé e onde se
deve anunciar o evangelho.
110
Francisco Aquino em artigo publicado pela revista Horizonte da PUC Minas,
chega a conclusão que Gustavo Gutiérrez e Clodovis Boff, assumem a mesma posição
quanto a questão que diz respeito a relação entre teologia e Ciências Sociais. Para
Aquino(2012, p.1335), enquanto Gutiérrez toma a realidade social como lugar onde se
vive a fé, Clodovis Boff a toma como um dos temas a ser pensado teologicamente.
Enquanto Gutiérrez restringe o uso das Ciências Sociais ao conhecimento da realidade
social, anterior ao trabalho teológico. Boff compreende a mediação sócio analítica como
um momento constitutivo do processo teológico total da teologia. No entanto, conclui
Aquino, ambos restringem a mediação das Ciências Sociais ao momento do
conhecimento da realidade.
1.2 As Ciências Sociais e a instrumentalização da Teologia: conversando com Juan Luis
Segundo
Torna-se evidente que as Ciências Sociais na América Latina, continua sendo uma
mediação significativa para o conhecimento da realidade social, onde os cristãos vivem a
sua fé. Cabe agora verificar a segunda postura assinalada por Francisco Aquino, em que
as Ciências Sociais ajudam na explicitação dos interesses sociais que condicionam o fazer
teológico.Juan Luis Segundo, chama atenção para o fato de quea teologia vem sendo
ideologizada ao longo da história em função de interesses nada evangélicos. Essa foi a
sua contribuição mais significativa no debate. As Ciências Sociais são significativas no
processo de desi-deologização da teologia
Nos textos de Juan Luis Segundo, principalmente em uma de suas obras mais
significativa: Libertação da Teologia demonstra sua preocupação com a libertação da
própria teologia. Inicia esta obra estabelecendo a diferença entre um teólogo acadêmico
com um da libertação. Para Segundo (1978, p.10), a diferença entre estes dois, consiste
em que o da libertação se vê obrigado a colocar juntas as disciplinas que lhe abrem o
passado e as disciplinas que lhes explicam o presente, enquanto a teologia acadêmica é
marcada por uma autonomia com relação ao presente e às ciências. Em relação a teologia
da libertação, insiste na interação com o presente e com as ciências do presente. Para ele
sem essa conexão, não poderia existir a teologia da libertação.
Quanto ao método,que chama de "Círculo hermenêutico" a relação entre a palavra
de Deus, o passado e o presente é fundamental.Referindo-se ao método, esclarece:
111
Uma primeira definição pode ser esta:a contínua mudança de nossa
interpretação da Bíblia em função das contínuas mudanças de nossa
realidade presente, tanto individual quanto social. Hermenêutica quer
dizer interpretação. O caráter circular dessa interpretação significa que
cada realidade nova obriga a interpretar de novo a revelação de Deus, a
mudar, com ela a realidade e daí, voltar a interpretar [...] e assim
sucessivamente (SEGUNDO, 1978, p.10).
Sendo assim, este método implica numa contínua mudança da interpretação
bíblica em função das mudanças do presente. Mediado pelas ciências do passado como
pelas do presente, teria um caráter circular, pois, para cada realidade nova haveria a
necessidade de uma nova interpretação da revelação de Deus. Segundo (1978, p.11),
indica duas condições para haver um círculo hermenêutico em teologia. A primeira
consiste na riqueza e profundidade das perguntas do presente, e a segunda na riqueza e
profundidade de uma nova interpretação da Bíblia. A estas duas condições, Segundo,
identifica quatro pontos decisivos no círculo:
Primeiro: nossa maneira de experimentar a realidade, que nos leva a
suspeita ideológica; segundo: a aplicação da suspeita ideológica a toda
a superestrutura ideológica em geral e à teologia em particular; terceiro:
uma nova maneira de experimentar a realidade teológica que nos leva à
suspeita exegética, isto é, à suspeita de que a interpretação bíblica
corrente não toma em consideração certos dados importantes; e quarto:
nossa nova hermenêutica, isto é, o novo modo de interpretar a fonte de
nossa fé, que é a escritura, com os novos elementos à nossa disposição
(SEGUNDO, 1978, p.12).
Portanto, chega-se a uma nova interpretação das fontes de nossa fé,
fundamentadas nas perguntas novas, partindo de uma experiência crítica da realidade,
passando pela suspeita ideológica das idéias em geral, da teologia e da exegese em
particular. Sobre o lugar e a importância que Segundo atribui às Ciências Sociais na
teologia,Aquino (2012, p.1337) comenta: “elas são muito importantes, exercem uma
função fundamental, no processo de libertação da teologia no que ela tenha de opressão
ou de legitimação da opressão”. Aquino (2012, p.1337) considera que, para Segundo, “as
Ciências Sociais penetram no fazer teológico, sem pretender com isso substituir as fontes
da própria teologia, com a suspeita ideológica, desmascara os elementos de dominação
presentes nos vários discursos”.
112
2 A dimensão social da teologia de Comblin e a suspeita ideológica
Abordadas as diversas compreensões sobre a relação entre Ciências Sociais e
teologia na América Latina, dialogando com Gustavo Gutiérrez, Clodovis Boff e Juan
Luis Segundo, resta agora verificar a contribuição das Ciências Sociais na elaboração do
discurso teológico de Comblin.
Para cumprir a exigência metodológica de apresentar os dados que fundamentam
a argumentação, se analisará o texto de Comblin, identificando a presença das Ciências
Sociais83 na sua produção como referência empírica. Em outras palavras, parte-se da
análise do texto devidamente escolhido, no sentido de verificar a participação das
Ciências Sociais como mediadora de sua teologia, ou seja, a maneira como Comblin usa
as Ciências Sociais para compreender a realidade na qual vive a sua fé. Para tanto,
supomos que a interpretação teológica das escrituras em Comblin, implica em um
compromisso de mudar o mundo de acordo com uma análise sempre nova da realidade
oculta sob os mecanismos ideológicos. Sendo assim, torna-se evidente que a busca da
sociologia, em Comblin, não podia evitar-se. Com efeito mudar o mundo supõe ter a
certeza que a nova imagem é melhor do que aquela que hoje funciona. Descobrir, pois,
quais são os mecanismos que ocultam e dão valor a realidade presente supõe realizar uma
análise ideológica que permite, verificar a nossa hipótese de maneira científica.
2.1 A morte de um Deus
Referindo-se à substituição do Deus dos filósofos pelo Deus de Jesus, no contexto
que vai dos Padres gregos à teologia escolástica, Comblin (2012,p. 99) deixa claro que
Deus foi apresentado nas categorias da ontologia grega diferentemente da mensagem de
Jesus, um Deus abstrato sem relação com a vida humana. Para Comblin (2012, p.99), essa
concepção de um Deus abstrato, que permanece além do tempo e do espaço, independente
da história é próprio também da concepção popular, que trata de um Deus cósmico,
fundador e base do universo,autor da vida, superior e muito distante, no entanto, Comblin
83 Francisco Taborda, em seu livro: Cristianismo e ideologia afirma que, nas Ciências Sociais existem
duas direções a funcionalista e a dialética. A primeira analisa a sociedade como ela é, e a segunda analisa
a sociedade a partir do que ela deveria ser. Neste segundo sentido, busca-se descobrir os mecanismos
ocultos de conservação do status quo para entender cientificamente como atuar no sentido de transformara
sociedade (TABORDA, 1984, p. 125). Neste sentido fica subentendido que há dois interesses
epistemológicos distintos que movem as duas perspectivas das ciências do social: o técnico e o
emancipatório por rejeitar como valor a sociedade vigente.
113
(2012, p.99) considera que o ponto de partida de toda teologia, não pode ser nem o Deus
popular nem o Deus dos filósofos, mas o Deus de Jesus.
Quando Comblin se refere a concepção de um Deus abstrato, que permanece além
do tempo e do espaço, independente da história e, que é próprio também, da concepção
popular, Comblin entende que essa concepção de Deus se acomoda aos interesses de
grupos dominantes, e é um dos fatores ideológicos mais poderoso para manter o status
quo. Ele entende que o Deus de Jesus se posiciona ao lado dos excluídos, irritando aqueles
que prefeririam um Deus sentado num trono modelo para os poderosos. Num contexto
marcado por acentuadas dicotomias entre os que são considerados justos e outros
pecadores, os representantes do sistema religioso da época, consideram que Jesus age de
maneira escandalosa por se situar ao lado daqueles que o sistema rejeitou.
Portanto, percebemos na fala de Comblin a compreensão de um Deus que se faz
presente e atua na história, ou seja, de um Reinado de Deus que de alguma forma é uma
re-ação frente a determinadas situações. Consequentemente, essa concepção influi na
configuração do processo histórico, nas relações sociais e das forças políticas.O Deus de
Jesus como Comblin demonstra na sua interpretação não funcionaria no sistema descrito
do Deus dos filósofos nem do Deus popular.O Deus de Jesus não se situaria ao lado de
nenhum poder. As reflexões que Comblin desenvolve, desmascaram toda estrutura de
dominação, o que não seria possível sem a presença das Ciências Sociais.
2.2 Deus sem poder
Neste item, referindo-se ao Deus sem poder, Comblin (2012, p.101), observa não
só, na liturgia romana um Deus que nunca é invocado como Pai, e sim como o Deus
eterno e todo poderoso, como também, nas representações artísticas, desde a entrada no
Império depois de Constantino, Deus é representado por imagens do poder. Segundo ele,
o próprio Jesus ressuscitado na cristandade é também representado assim. Na consciência
dos povos tradicionais, ocorre a mesma coisa, Deus torna-se visível na imensidão do céu,
no sol, nas estrelas, nos fenômenos da natureza que demonstram poder.Porém, Comblin
(2012, p. 101) afirma fundamentando-se no evangelho, que Deus se revelou na vida
terrestre de Jesus na Galileia, e essa vida revela tudo o que podemos saber. Jesus era um
humilde habitante da Galileia, província desprezada pelos judeus por não ser considerada
pura. Ele não nasceu como filho de um latifundiário, mas, como filho de um modesto
carpinteiro rural, fabricando objeto de madeira usados pelos pobres camponeses, nada
114
que merecesse estima pública. Não era proprietário, não tinha nada, Era destituído de
qualquer atributo que significasse poder.Referindo-se à imagem de Deus, Comblin
ressalta o caráter desigual das relações de poder na organização da vida coletiva no tempo
de Jesus.Segundo Comblin (2012, p.102), Jesus nasceu e cresceu entre os pobres, foi ao
encontro deles e anunciou-lhes a libertação da sua miséria, acolheu os pecadores, e todos
os que eram rejeitados. Escolheu os apóstolos entre os pobres. Denunciou os sacerdotes
que exploravam o povo em nome de Deus sob o pretexto de que Deus queria oferendas e
sacrifícios. Denunciou os doutores da lei que queriam impor a todos prescrições
impossíveis e mandamentos absurdos como a lei da pureza. Denunciou os ricos, os
proprietários que exploravam o trabalho dos seus escravos. Denunciou o Império. A cruz
foi o resultado da opção pelo amor. Aos que sempre tinham sido tratados sem amor quis,
revelar-lhes um novo mundo.
Importa aqui, ressaltar a função libertadora da sua teologia, a eficácia de sua
linguagem na configuração de uma nova imagem de Deus. Com suas suspeitas
ideológicas, Comblin desmascara os mecanismos de dominação presente em outros
discursos, liberando assim seu potencial libertador. Ele revela o caráter desigual das
relações de poder na organização da vida coletiva no tempo de Jesus, fundada e regulada
em vista da dominação de uns sobre os outros. Aqui, Comblin, recupera a tradição de um
Deus que faz aliança com um pequeno grupo de seminômades, despojados de todo poder,
sem influência alguma e desprovido de qualquer peso na política de dominação. Aqui
pode-se observar que enquanto as Ciências Sociais buscam compreender a função da
religião na configuração dos processos históricos, das relações sociais e das forças
políticas, a teologia procura ver o engajamento dos crentes nesses processos a partir da
fé.
2.3 O Reino de Deus
Referindo-se ao Reino, Comblin (2012, p.102) deixa claro que Jesus veio para
realizar a obra do Pai. A obra do Pai é a humanidade reconciliada com ele em que ele
faria sua habitação. Ele não podia estar em seres humanos que não o aceitassem e ainda
estivessem sob o jugo do pecado. Comblin (2012, p.103), questiona: o que é o Reino de
Deus? Onde está presente hoje em dia? O mundo tal como Jesus o encontra não é o Reino
de Deus. O mundo está dividido entre uma classe que domina, acumula todos os recursos
da terra, e obriga os outros a servir aos seus interesses. Há outra classe que esta reduzida
115
a um nível de sobrevivência. Esse pecado ainda não desapareceu no mundo atual. Em
cada época os seres humanos tiveram a impressão de que nunca tinha havido tanta
opressão e tanta violência. A violência e opressão são evidentes, também, neste início de
século XXI.
Quando Comblin afirma que Jesus veio para realizar a obra do Pai, que é a
humanidade reconciliada com ele, e que não podia está com seres humanos sob o jugo do
pecado, Comblin questiona sobre o Reino de Deus. Nota-se que para ele o Reinado de
Deus, consiste no governo de Deus em ação. Falar no Reinado de Deus em Comblin
implica sempre falar do povo de Deus, do povo sobre o qual Deus reina e cuja vida, na
medida em que é regida por ele, torna-se expressão real de seu poder. Percebe-se que a
marca principal desse Reinado para Comblin, é a realização da justiça, proteção aos
desamparados, fracos e pobres por parte de Deus. Comblin faz transparecer que os pobres
são produtos de relações que produzem e reproduzem a desigualdade no plano social,
político, econômico e cultural, definindo para eles um lugar na sociedade, onde são
desqualificados.Certamente, as Ciências Sociais aqui continuam sendo uma mediação
imprescindível, para conhecimento da realidade social que é pensada teologicamente na
produção de Comblin. Cabe, neste sentido, recorrer a posição de Juan Luis Segundo em
relação a importância da suspeita ideológica, como momento constitutivo do fazer
teológico, pois para Juan Luis Segundo, como já foi mencionado, as Ciências Sociais têm
uma tarefa fundamental no interior da reflexão teológica, evitar a sua instrumentalização.
2.4 A vinda do Espírito Santo
Diz Comblin (2012, p.105), referindo-se à ação do Espírito Santo:Jesus não
deixou nenhum programa aos discípulos, porém, não os abandonou. O Espírito seria fonte
de coragem e perseverança para assumir a missão. Os levaria a entenderas palavras e os
atos de Jesus, pois, Jesus foi a revelação do Pai, essa revelação somente poderia ser
entendida pelo Espírito Santo, o resto é jogo intelectual gratuito, ideologia sem aplicação
prática. Comblin (2012, p. 105), deixa claro que, não há por parte do Espírito nenhuma
exposição dos ensinamentos de Jesus, O Espírito ilumina a mente para que a pessoa se
torne mais livre e livremente construa o Reino. Para o nosso autor (2012, p.105), o
Espírito é dado a todos, cada um é responsável pela sua vida e orientado pelo Espírito de
acordo com a situação em que se encontra na história. Nenhuma autoridade pode decidir
em seu lugar, pode dar-lhe um programa de vida imposto. O Reino de Deus é uma
116
humanidade reunida no amor, pelo diálogo e pela colaboração de todos com todos. A
unidade é obra do Espírito não é feita pela hierarquia, pelo clero, ou seja, por uma classe
separada do povo,segundo Comblin (2012, p. 105), não foi isso que Jesus ensinou. A
hierarquia não pode impor sua interpretação, não pode agir por imposição, deve se
submeter aos movimentos do Espírito que está em todos os que seguem o caminho de
Jesus.
É notória a dimensão social da teologia de Comblin, e sua repercussão na vida
social, legitimando e favorecendo certos interesses ou, deslegitimando e contrapondo
outros. Entende-se aqui que, a ideologia, mesmo tomada em seu sentido estrito de sistema
de idéias com que se oculta e justifica determinada relação de produção, constitui algo
profundamente cristão e não exclusivamente marxista. Quando Comblin afirma que a
unidade é obra do Espírito e não da hierarquia, pelo clero, ou seja, por uma classe separada
do povo. Fica claro que Comblin revela a instrumentalização da teologia em função de
interesses pouco ou nada evangélicos. Segundo ele a história tem demonstrado o quanto
ela tem sido utilizada para legitimar as mais diferentes formas de opressão. Neste sentido,
as Ciências Sociais têm tido uma importância muito grande na sua teologia pois, aguçam
a suspeita ideológica na elaboração do seu discurso teológico e na crítica de outros
produtos. Não resta dúvida de que, dado o caráter social da teologia e a aparente
inverificabilidade de muitas de suas afirmações, ela é muito mais facilmente
instrumentalizada.
2.5 A salvação
Neste item, Comblin (2012, p.107) apresenta a Igreja como instituição que durante
séculos concentrou a sua mensagem na salvação da alma. Segundo ele o problema da
humanidade era a sorte da alma depois da morte. A vida era uma preparação para a morte.
O papel da Igreja era oferecer os meios da salvação. Por isso não havia salvação possível
fora da Igreja. No entanto diz, Comblin (2012, p.107) a salvação das almas parece não ter
sido a preocupação de Jesus. Ele veio trazer a vida divina, quem estava na vida divina
não precisaria se preocupar, já estava na vida eterna. Quem vivia no amor não precisava
preocupar-se com a morte. Deus oferece a vida eterna desde já pela vida no amor.Não há
necessidade de meios de salvação.O ponto de partida da mensagem de Jesus, para
Comblin (2012, p.108), é a situação de pecado em que se acha a humanidade, dividida
em duas categorias opostas e complementares. Há uma parte da humanidade que domina
117
e obriga a outra parte a trabalhar para o seu proveito. Em cada época entende Comblin
(2012, p.109), esse pecado explicita-se em inumeráveis formas porque as maneiras de
explorar, de dominar variam com o desenvolvimento do conhecimento da natureza e da
humanidade. Os poderosos aprendem novas maneiras de opressão. Assim como o pecado
do mundo Comblin (2012, p.109) vê que a libertação também, passa por uma história que
sempre é a mesma, mas as modalidades seriam de acordo com os tempos e os lugares.
Houve o desafio da libertação dos escravos. Houve a libertação dos operários, a libertação
dos camponeses sem terra. Na América Latina, os fatos dominantes da história foram a
libertação dos escravos africanos e a libertação dos indígenas. Houve a libertação da
dependência colonial, e na atualidade estamos na fase da dominação neocolonial,
dominação dos países ricos e sobretudo do capital e das transnacionais. Todas essas
estruturas são formas de exploração e de destruição dos pobres.
Nota-se a partir destas colocações que a teologia de Comblin é uma teologia feita
a partir do reverso da história. No entanto, entende-se que ele não deixa de colocar a
religião sob suspeita ideológica, isto aparece quando numa determinada interpretação das
escrituras imposta pelas classes dominantes para manter sua exploração e por outra parte,
como uma possibilidade aberta para os que são dominados fazer da religião, por meio de
uma nova interpretação das escrituras, uma arma para a luta de classe. O que importa
deixar claro, são as razões que levou Comblin a entender dessa forma. Para ele, os pobres
são os destinatários privilegiados da salvação, a serviço do qual está sua teologia.
Certamente, sem a presença das ciências sócio históricas e da suspeita ideológica, sua
teologia seria impossível.
Evidenciado a importância e o lugar das Ciências Sociais na elaboração do
discurso teológico na América Latina; demonstrado como Comblin faz uso das Ciências
Sociais para compreender a realidade em que vive a sua fé. Cabe agora, desenvolver a
última parte do trabalho, que busca verificar o sentido atribuído por Comblin ao mundo
dos pobres como lugar adequado para explicitar o reinado de Deus.
3 O mundo dos pobres e o reinado de Deus: a modo de conclusão
Procura-se nesta última parte do trabalho o mundo dos pobres,como lugar
adequado para se revelar o Reinado de Deus. Compreende-se que o Reino de Deus se
constitui não só de uma relação entre Deus e o homem, como também dos homens entre
si em um dado contexto histórico. Ele expressa o modo de agir do homem. O amor ao
118
próximo, por exemplo, é uma ação que revela a presença do Reino.Taborda, considera
que o Reino de Deus é justiça, assim ele se expressa:
O pobre me interpela em sua situação de opressão, de despojamento,
pelo contraste de estar passando fome num mundo onde não há falta de
bens. Na medida em que ouço a interpelação do rosto do pobre, nessa
medida se realiza justiça, a justiça de Deus em minha vida (TABORDA.
1984, p. 222).
Sem dúvida, o Reino de Deus é justiça. Aceitar os marginalizados e deixar
interpelar-se pela sua presença, essa atitude caracteriza a presença do Reino. Justiça de
Deus significa dignificar o homem a começar pelo último de todos, o pobre. Sendo assim,
o Reino de Deus não é algo abstrato, é algo que se reflete no modo de ser. É necessário
que se insista no caráter dinâmico e concreto do Reinado de Deus, como diz Aquino:
É uma ação, e uma ação histórica: governo de Deus sobre seu povo -
realização da vontade de Deus por parte do seu povo. Nada mais longe,
portanto, de um reino dos céus, entendido caprichosa e
interessadamente como um reino que está fora da terra, que está
completamente fora da história (AQUINO, 2010, p.191).
Ora, fica claro que há nos escritos de Comblin, uma incidência da ação de Deus
no mundo dos pobres. Comblin (2012, p.354), em seu livro, O Espírito Santo e a
tradição de Jesus, relata que Jesus vai à Galileia, país desprezado pelas elites judaicas,
e ali anuncia o Reino de Deus e pede para que tenham fé nesse Reino. Eles, os pobres,
que são os rejeitados vão ser os eleitos. O Espírito se manifesta fora dos lugares
privilegiados. Comblin (2012, p.354) não deixa dúvidas neste texto que os eleitos são os
pobres, deles é o Reino de Deus. O estabelecimento do Reino de Deus se dará entre o
povo dos pobres, dos rejeitados, dos sem poder. No entanto, Comblin afirma que a Igreja
perdeu a lembrança dos pobres, porém, segundo ele, sempre aparecem vozes que como
Jesus os privilegiam. Descobrem os pobres e saem do mundo privilegiado para
colocarem-se entre os eles e aí construírem um mundo novo, uma vida nova. Para
Comblin (2012, p.454) a sabedoria de Deus consiste na fraqueza. Deus agi sem poder, o
que não aconteceu na história da cristandade e ainda hoje entre os nostálgicos da
cristandade, que buscam dinheiro, apoio políticos, buscam os recursos das ciências, da
tecnologia, do poder de comunicação.A sabedoria de Deus, porém, consiste em agir com
amor e por amor confiando nessa força. Ele busca os rejeitados: os cobradores de
impostos, as prostitutas, os impuros segundo a lei. Essa foi a sabedoria de Jesus. Ele não
se submeteu a lei para amar o próximo e mostra como a lei é o obstáculo. A lei leva a
119
condenação em lugar da salvação, é aí que ele nos deixa ver o caráter escandaloso deste
Reinado, por ter uma destinação aos pobres.
Portanto em Comblin, o pobre pelo simples fato de ser desamparado, fraco e
vítima dos poderosos, passa a ser o preferido de Deus, em razão de sua misericórdia e de
sua justiça. Em um mundo de pecado, Deus expressa seu amor pela humanidade como
justiça. Não somente pôs nos pobres suas preferências, mas também os chamou para
reinar em seu Reino. Nos escritos de Comblin, como pode-se verificar, a preferência de
Deus os constituiu no verdadeiro lugar para explicitar seu Reinado.
Referências
AQUINO JÚNIOR, Francisco de.A dimensão sócio estrutural do Reinado de Deus:
escritos de teologia social. São Paulo: Paulinas, 2011.
______. A teologia como intelecção do reinado de Deus: o método da teologia da
libertação segundo Inácio Ellacuría. São Paulo: Loyola, 2010.
______. Teologia e Ciências Sociais. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 28, p. 1325,
out/dez. 2012.
BOFF, Clodovis.Teoria do método teológico. Petrópolis: Vozes, 2009.
______. Teoria e prática: teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes,
1978.
COMBLIN, José. O Espírito Santo e a Tradição de Jesus. São Bernardo do Campo:
Nhanduti, 2012.
GUTIÉRREZ, Gustavo. A verdade vos libertará: confrontos. Trad. de Gilmar Saint
'Clair Ribeiro. São Paulo: Loyola, 2000.
SEGUNDO, Juan Luis. Libertação da teologia. São Paulo: Loyola, 1978.
TABORDA, Francisco. Cristianismo e ideologia: ensaios teológicos. São Paulo:
Loyola, 1984.
120
O PAPEL QUE A RELIGIÃO PODE TER PARA A CONSTRUÇÃO DE
SENTIDO DA VIDA: UM ESTUDO DE CASO
Jussara Rocha Kouryh84
Dr. Sérgio S. D. Vasconcelos85
Tamandaré
Gosto de ver casulos de borboletas.
Lagartas feias que adormecem,
esperando a mágica metamorfose.
De fora olhamos
e tudo parece imóvel e morto.
Lá dentro, entretanto,
longe dos olhos e invisível,
a vida amadurece vagarosamente.
Chegará o momento em que ela será
grande demais para o invólucro que a contém.
E ele se romperá.
Não lhe restará outra alternativa,
e a borboleta voará livre,
deixando sua antiga prisão...
(ALVES, 2006, p. 83).
Palco desse estudo de caso, Tamandaré é um município localizado na
mesorregião da Mata Pernambucana, pertence à microrregião de Vitória de Santo Antão.
É um município recém-nascido. Sua criação se deu em 1995 (Lei nº 11.257 de 28 de
setembro)86 em atenção ao plebiscito realizado em 03 de setembro do mesmo ano quando
a população decidiu por sua emancipação política. Dessa forma, descolada de Rio
Formoso (PE), Tamandaré assumiu vida própria e, segundo o Censo IBGE 2010, possui
20.715 habitantes.
Apesar de nova, tem uma história que remonta aos primórdios da ocupação
portuguesa, nos séculos XVI/XVII. No século XX, mais especificamente na sua segunda
metade, percebe-se a forte presença da Igreja Católica na formação da cidade e do seu
povo.
84 Mestranda do Programa de Pós-graduação no Mestrado em Ciências da Religião da Universidade
Católica de Pernambuco. [email protected] 85 Professor dos Programas de Pós-graduação em Ciências da Religião e em Teologia da UNICAP.
[email protected] 86 Publicada no Diário Oficial do Estado de Pernambuco – DOE, de 29 de setembro de 1995, N º 185, p.
4. Disponível em:
<http://200.238.101.22/docreader/DocReader.aspx?bib=DO_199509&pesq=Tamandar%C3%A9>.
Acesso em: 16.05.2014.
121
A igreja católica e os pescadores artesanais
Para compreendermos a interface da Igreja Católica com a vida dos pecadores
artesanais é necessário (re)visitarmos algumas situações específicas.
Diferente dos demais órgãos de classe, as Colônias foram criadas
compulsoriamente, pela Marinha. Vejamos breves traços dessa construção.
O Decreto nº 358, de 14 de agosto de 184587, criou a Capitania dos Portos,
regulamentada por outro Decreto, o de nº 447, de 14 de maio de 184688, o qual, entre
outras coisas, obrigava a todos os brasileiros que trabalhavam no mar a se matricularem
na Capitania do Porto de sua província.
[...]
CAPITULO II
Da Matrícula de todos os indivíduos empregados na vida do mar.
Art. 64. Os indivíduos nacionais empregados na vida do mar, tanto no
tráfico do Porto, e pequenos rios, como na navegação dos grandes rios
e lagoas, na pequena e grande cabotagem, nas viagens de longo curso,
e na pesca, serão matriculados na Capitania do Porto, e na forma deste
Regulamento.
Os pescadores estavam dispensados de se apresentar para serem soldados da
Guarda Nacional, porém sujeitos ao serviço naval na Marinha de Guerra. Foi a primeira
tentativa de realizar um cadastro de marinheiros e pescadores.
A fundação das Colônias de Pescadores em grande escala ocorreu logo depois
do fim da Primeira Guerra Mundial, em 1919, sob a batuta do Comandante Frederico
Villar, com o seu Cruzador José Bonifácio. Duas foram as motivações maiores:
nacionalizar e industrializar o pescado brasileiro e ver o pescador como personagem
chave na defesa da costa brasileira.
[...] São reservas de homens e barcos que se articularão ao mecanismo
bélico do país”. E Villar tenta despertar no pescador o senso patriótico
chamando-o de ´Sentinela Avançada da Pátria sobre o oceano´.
Um ano depois da Primeira Guerra Mundial, Villar foi encarregado pela
Marinha de fundar Colônias de Pescadores em todo o litoral brasileiro.
A missão do “Cruzador José Bonifácio” em 1919, deu início à fundação
das Colônias tendo como resultado a criação de quase 1.000 Colônias
de Pescadores no litoral brasileiro e a elaboração do Estatuto da
Confederação Geral dos Pescadores do Brasil (CGPB) (CPP, 1984).
87 Decreto Imperial do Brasil através do qual o governo fica autorizado “a estabelecer Capitanias de
Portos nas Províncias marítimas do Império”. 88 Decreto Imperial do Brasil que regulamenta a Capitania dos Portos.
122
Seus estatutos patronizados foram criados em 1923, através do aviso da Marinha
nº 194, aprovado pelo então Ministério dos Negócios da Marinha. Também seguiu o
mesmo percurso a criação das Federações Estaduais e a Confederação Geral dos
Pescadores do Brasil – aviso da Marinha nº 568, também de 1923.
As Colônias foram legalmente definidas como “agregados associados”
ou agrupamento de pescadores descartando, assim, a possibilidade de
serem “órgão de classe”. Isso é consolidado quando, entre os objetivos,
encontra-se a organização das Colônias como “viveiros da Marinha” e
“Reserva Naval da Nação”, o que implica em considerar os pescadores
como meios para outros fins e não como pessoas e como categoria que
aspiram ao seu desenvolvimento e realização integrais (CPP, 1984).
A partir de então, os presidentes das Colônias, Federações e Confederação eram
interventores nomeados pelas Capitanias dos Portos de cada Estado.
No período da Segunda Grande Guerra (1939/45), a Marinha do Brasil lançou
mão dos pescadores que, já a partir da fundação das Colônias, como vimos, eram
considerados “Reserva Naval da Nação” (CPP, 1984). Alguns chegaram à graduação de
2º Sargento. Estavam integrados à Força Naval do Nordeste.
Como todas as demais colônias de pescadores espalhadas pelo Brasil, também a
de Tamandaré sempre esteve sob o jugo da Marinha e sua presidência era exercida por
interventores nomeados pela Capitânia dos Portos de Pernambuco até a chegada de Padre
Paulo Hendrickus Punt, em 1968. Ele “deu nome aos pescadores”89, segundo aqueles
mais antigos, organizou a documentação desses profissionais e da própria Colônia.
Tornou-se, também, oficialmente pescador. Criou uma cooperativa de pesca, assumiu a
presidência da Colônia. Saiu em defesa dos pescadores quando descobriu o contrabando
de bebidas e eletrodomésticos. Alguns pescadores transportavam essas mercadorias dos
navios ancorados fora da barra para um pequeno ancoradouro, em Rio Formoso. Procurou
dissuadir aqueles pescadores de tal atividade. Denunciou aos órgãos competentes.
Tentando afastar o Pe. Paulo, foram feitas denúncias de que ele era
comunista, o que, na época da ditadura militar que havia no país, era
algo bastante grave. Mas, os próprios órgãos de segurança nacional
constataram que tudo não passava de infundadas denúncias.
Por várias vezes, temendo pela vida do confrade, o então Provincial,
Padre Pedro Neefs, tentou persuadir o P. Paulo a deixar Tamandaré
porém, mesmo sabendo do risco de vida que corria, ele entendia que ali
era o seu lugar.
[...]
89 Expressão usada pela marisqueira Maria Margarida de Lira Jacques para definir a importância de Pe.
Paulo para os pescadores de Tamandaré, em entrevista concedida à pesquisadora (Tamandaré,
19.07.2014).
123
Muito mais apostando na vida, o Pe. Paulo não foi percebendo a trama
que sordidamente era feita contra ele. Para que sua morte não parecesse
como um trabalho encomendado, os que viam e sentiam a presença de
ajuda de Pe. Paulo junto aos pescadores, sobretudo na linha da
organização e da conscientização, insinuaram ao auxiliar de polícia que
sua esposa o estava traindo com o padre e, inclusive, um dos seus filhos
era filho do sacerdote.
15 de dezembro de 1975 era um dia festivo por causa da conclusão de
curso do ginásio local. No final do dia, após todas as solenidades, o
assassino dirigiu-se ao Pe. Paulo e desfechou 3 certeiros e mortais tiros
que acabaram com sua vida terrena.
Estranhamente, as próprias autoridades policiais locais se encarregaram
de dar uma versão passional ao crime mas, na memória do povo, todos
sabiam que o Amaro (nome do assassino) tinha sido usado para calar a
voz do P. Paulo. O próprio juiz de Rio Formoso, Adalberto Lopes,
enviou o processo a um tribunal superior em Recife porque via a
presença de forças ocultas contrárias ao Pe. Paulo envolvendo até o
prefeito, a polícia local e alguns membros de organismos federais
(TERTÜNTE, [19--], s.p.).
Poderá padre Paulo ser inscrito em algum livro que conte a história dos mártires
do século XX? Rubem Alves o teria elencado como um dos profetas daquele século,
afinal, para Alves o profeta é aquele
[...] que se dedicava, com paixão sem paralelo, a ver, compreender,
anunciar e denunciar o que ocorria em seu presente [...]. E isso porque
eles entendiam que o sagrado, a que davam o nome de vontade de Deus,
tinha a ver fundamentalmente com a justiça e a misericórdia. [...]
Instaurou-se com os profetas um novo tipo de religião, de natureza ética
e política, e que entendia que as relações dos homens com Deus têm de
passar pelas relações dos homens, uns com os outros [...] (ALVES,
2014, p. 101).
O fato de o padre ter exercido o cargo de presidente da Colônia foi um marco na
transitoriedade entre a nomeação de interventores para presidir a Colônia e a livre escolha
dos pescadores para eleger seus dirigentes. A partir dele os pescadores assumiram
definitivamente a condução da Colônia. Assim, depois de sua passagem, a Colônia
sempre foi presidida por um legítimo representante dos pescadores, entre os quais, Paulo
Guimarães que, formado diretamente pelo padre, em 1997 foi eleito o primeiro prefeito
de Tamandaré, e Maria Margarida de Lira Jacques, uma das poucas marisqueiras do Brasil
a assumir o posto de presidente de uma Colônia de Pescadores.
Na década de 1980, assessorados pelo Grupo de Trabalho de Pesca do Centro
Josué de Castro e pela Comissão Pastoral dos Pescadores, atual Conselho Pastoral dos
Pescadores, pastoral social ligada à Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade
Solidária, Justiça e Paz, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a Colônia de
Pescadores Z-5 participou do Movimento Constituinte da Pesca, uma mobilização
124
nacional criada em 1985 com o objetivo de articular os pescadores do Brasil inteiro para
garantir mudanças na legislação. Entre as reivindicações do Movimento, estavam a
criação de um Ministério da Pesca (o que ocorreria somente em 01 de janeiro de 2003), a
equiparação das Colônias aos demais órgãos de classe com forma e natureza jurídicas
próprias, o que foi garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
no seu artigo 8º:
Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o
seguinte:
[...]
Parágrafo único. As disposições deste artigo aplicam-se à organização
de sindicatos rurais e de colônias de pescadores, atendidas as condições
que a lei estabelecer.
E pela Lei nº 11.699, de 13 de junho de 200890:
Art. 1o As Colônias de Pescadores, as Federações Estaduais e a
Confederação Nacional dos Pescadores ficam reconhecidas como
órgãos de classe dos trabalhadores do setor artesanal da pesca, com
forma e natureza jurídica próprias, obedecendo ao princípio da livre
organização previsto no art. 8o da Constituição Federal.
Portanto, com Pe. Paulo, a organização dos pescadores resultou na eleição de um
pescador para o cargo máximo do município e na eleição de uma marisqueira para a
presidência da colônia, num claro processo de empoderamento das mulheres;
assessorados também pela Pastoral dos Pescadores, à época sob a coordenação de Frei
Alfredo Schnuettgen, frade franciscano, participação política na conquista pela
legitimidade das diretorias das federações estaduais e confederação nacional, e no
Movimento Constituinte da Pesca com suas consequentes conquistas.
Invólucro rompido, como disse Rubem Alves? Início de um “livre voo”,
rompendo casulos, para assumir o leme da própria vida pessoal e coletiva?
A igreja católica e as crianças e adolescentes
Rubem Alves contrapõe duas situações: aquela dos dominantes e aquela dos
dominados. Delas, decorrem sonhos. Para os dominantes, o sonho é que tudo permaneça
90 A Lei Federal nº 11.699, de 13 de junho de 2008, “dispõe sobre as Colônias, Federações e
Confederação Nacional dos Pescadores, regulamentando o parágrafo único do art. 8o da Constituição
Federal e revoga dispositivo do Decreto-Lei no 221, de 28 de fevereiro de 1967”.
125
como está para que sua zona de conforto não sofra qualquer ameaça. Para os dominados,
entretanto, o sonho inquieta, questiona o que está colocado, provoca rupturas.
[...] os dominados [...]. Não habitam os oásis, mas os desertos. Sem
poder, sem segurança, sem tranquilidade, de um lado para o outro, sem
raízes e sem terras, sem casas, sem trabalho. Sua condição é de
humilhação. Doença. Morte prematura. E o futuro? Os fracos exigem a
mudança, se não com sua voz, pelo menos em seus sonhos. [...]. E dos
pobres brotam as esperanças – tal como aconteceu com os profetas
hebreus – de um futuro em que eles herdarão a terra.
Reencontramo-nos assim no mundo dos profetas em que a religião
aparece com toda a sua ambivalência política: os sonhos dos poderosos
eternizam o presente e exorcizam um futuro novo; os sonhos dos
oprimidos exigem a dissolução do presente para que o futuro seja a
realização do Reino de Deus, não importa o nome que se lhe dê
(ALVES, 2014, p. 107-108).
Padre Enzo Rizzo teve seus inquietantes sonhos. Natural de Tribano (Pádua), na
Itália, nasceu em 08 de junho de 1951, veio ao Brasil em 1983. Foi trabalhar em São José
do Egito, cidade pernambucana do Sertão do Pajeú, famosa por seus grandes poetas
populares. No ano seguinte, mudou-se para Escada onde teve contato com os
trabalhadores rurais. Em 1989 conheceu Dom Acácio Rodrigues Alves, então bispo da
Diocese dos Palmares. Ordenou-se sacerdote em 17 de janeiro de 1993.
Chegou em Tamandaré em 1994. Participou ativamente de todo o seu processo
de emancipação política. Em contato com as questões sociais de sua paróquia, com a
ajuda dos paroquianos, amigos, familiares e associações italianas, fundou o “Projeto
Tamandaré”, cujo objetivo o próprio padre assim definiu: “... a formação de uma
comunidade de homens e mulheres conscientes da sua dignidade como pessoas, da sua
grandeza de filhos de Deus, capaz de conceber e viver um futuro de liberdade e de
serenidade”91.
A primeira realização do Projeto foi a Creche Solidariedade. No início,
conseguiu acolher 40 crianças. Depois, com ajuda de uma benfeitora, a Creche foi
ampliada recebendo cerca de 200 crianças.
Contemporaneamente, em Tamandaré e no Distrito de Saué, estruturou duas
cozinhas comunitárias. Cotidianamente, de março a outubro, eram distribuídas, à noite,
200 refeições.
Em Saué, criou um Centro Comunitário no qual funcionou cursos de corte e
costura frequentados por cerca de 40 pessoas, entre mulheres e adolescentes. Em 2002
91 Tal objetivo está explicitado no site do Projeto. Disponível em:
<http://projetotamandare.com.br/progetto-tamandare/?lang=pt>. Acesso em: 25.05.2014.
126
um grupo de pessoas que passaram por esses cursos constituíram uma microempresa
autônoma.
Para atender às necessidades das famílias daquelas crianças inseridas na Creche,
o Projeto implantou o curso de alfabetização de adultos.
O que, hoje, o Projeto oferece? De acordo com Giorgio Curreri, Coordenador do
Setor Social do Centro de Solidariedade Padre Enzo,
O projeto desenvolve atividades em creche, pré-escola e contra turno
escolar para mais de 500 crianças e adolescentes de 2 a 15 anos de
idade.
Além da educação formal, são oferecidas oficinas de dança, artes
plásticas, capoeira, esporte, horta orgânica, gastronomia, padaria e
teatro.
Para os jovens e adultos são oferecidos anualmente cursos
profissionalizantes em diferentes áreas, entre elas turismo, informática,
línguas e gastronomia. Após terminar os cursos, os participantes são
inseridos no mercado de trabalho local.
As famílias que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade
social são acompanhadas por uma assistente social e uma psicóloga em
busca de soluções para os problemas e encaminhamento aos serviços
públicos, vislumbrando uma melhoria de condição de vida.92.
Em 2014 o Projeto Tamandaré ganhou o Prêmio Anu, idealizado pela CUFA
(Central Única das Favelas), sediada no Rio de Janeiro, que tem como principal objetivo
destacar ações de toda natureza desenvolvidas dentro de favelas de todos os estados
brasileiros que contribuam para o desenvolvimento humano e social desses espaços.
Pe. Enzo faleceu na Itália, em 27 de janeiro de 2000, depois de um longo período
de doença.
Os sonhos do padre Enzo, frutos do sofrimento constatado no seu entorno, o
impulsionaram a não ser indiferente, a buscar melhor qualidade de vida para aquelas
desemparadas famílias. E chegam as mudanças... Mas, sobretudo, geram outros sonhos,
outros lampejos de esperanças...
São “os sonhos dos oprimidos” que “exigem a dissolução do presente para que o
futuro seja a realização do Reino de Deus”, como descreveu Rubem Alves? O tempo dirá,
afinal, para o rompimento do casulo há um período de maturação e de espera. Essas
crianças e adolescentes estão recebendo uma formação (tempo de amadurecimento).
Depois, quando chegar o tempo de assumirem seus próprios destinos, alçarem seus
próprios voos, será possível averiguar que tipo de cidadão se tornaram.
92 Informações obtidas oralmente pela pesquisadora em entrevista com Giorgio Curreri, Coordenador do
Setor Social do Centro de Solidariedade Padre Enzo (Tamandaré, 19.07.2014).
127
A igreja católica e a inclusão de dependentes do álcool
No mesmo período da emancipação política, por decreto diocesano datado de 29
de junho de 1995, foi criada a nova Paróquia de São Pedro, em Tamandaré, desmembrada
da Paróquia de São José, em Rio Formoso e a pequena igreja de São Pedro, à beira mar
da praia de Campas, adquire privilégios de igreja matriz, sendo Pe. Enzo seu primeiro
pároco.
A primeira Igreja Matriz de São Pedro tem capacidade para 60 pessoas. Não é
um espaço suficiente para acolher os paroquianos nativos e os veranistas que, nos meses
de férias, invadem aquelas praias. Porém, o percurso entre a primeira Igreja Matriz e a
atual, no centro da cidade, tem uma história que mistura vários ingredientes: sonhos,
persistência, fé, colaboração, comunhão, inclusão...
Tudo começou com um sonho de Pe. Arlindo Laurindo Matos Júnior, ou,
simplesmente, Pe. Arlindo. Queria oferecer o melhor àquela gente a quem logo aprendera
a amar. A Igreja Matriz, à beira da praia, pequenininha, não comportava o número de
fiéis. A igreja maior era dedicada à Nossa Senhora de Fátima. Portanto, o padroeiro, São
Pedro, carecia de um espaço onde pudesse acolher toda a comunidade permanente e
aqueles visitantes que, de passagem por Tamandaré, sentiam a necessidade de participar
das celebrações litúrgicas.
A primeira ideia: elaborar um projeto e tentar recursos nas instituições brasileiras
e aquelas fora do Brasil. Assim o fez. E nada! Todas as instituições a quem recorreu,
alegando a crise econômica por que passa a Europa e o mundo, cordialmente ponderaram
a impossibilidade de ajudar àquela paróquia.
Restava uma última tentativa. A resposta não foi diferente das demais. Seguiu
para a missa. No púlpito, o anúncio:
– Eu tenho duas notícias para vocês: uma boa e outra melhor ainda.
Qual vocês querem ouvir primeiro?... Está bem, eu vou começar pela
notícia boa: recebemos as respostas dos pedidos de ajuda para
construção e, por incrível que pareça, todas as instituições nos disseram
que não podem ajudar...”
Toda a igreja olhava espantada o Pe. Arlindo dar a notícia e se
perguntava como ele poderia dizer que era boa. No entanto, ele
continuou:
– Eu sei que vocês estão querendo saber por que a gente ter levado três
nãos é um notícia boa... É boa [e altera a voz, contagiando a todos]
porque é o povo de Tamandaré, com ajuda dos irmãos que vêm passar
o verão aqui e partilham conosco a vida em comunidade que a gente vai
128
conseguir erguer essa igreja!!! Pois, se cada um der um pouco do que
tem, eu garanto a vocês que não vai faltar nada para a gente conseguir...
E digo mais, não vou descansar um dia até que a gente possa passar por
aquela avenida, olhar para a igreja e ter orgulho de dizer que foi o povo
daqui que construiu a maior igreja da Diocese dos Palmares e quem
sabe de toda essa região!!!...
E aí, foi aplauso que não acabava mais, enquanto os olhos marejados
do padre denunciavam a sua emoção e a vitória de conseguir mais apoio
para as dificuldades seguintes.
– E sabe como é que a gente vai conseguir o dinheiro para a primeira
parte do projeto?... Estão vendo aquelas senhoras ali na porta da igreja?
Elas têm uma sacolinha na qual vocês vão ofertar o que puderem para
a gente começar a construção e vai ser assim até que a gente tenha
terminado. Agora, me digam uma coisa: vocês vão ajudar?
– Eu ajudo, padre!”
Quem respondeu primeiro foi Ezequiel, um homem conhecido na
comunidade por viver há muitos anos sofrendo com o alcoolismo e que,
tão logo o Pe. Arlindo chegou à cidade fez amizade com ele...
Esse homem costuma pedir ajuda às pessoas, recebe comida, roupas e
calçados nas visitas que faz à casa paroquial, mas foi o primeiro a dizer
sim e a se encaminhar até o altar com a sua doação: vinte e cinto
centavos de real e uma frase:
– Pode começar a sua igreja.
O Pe. Arlindo logo fez do gesto de quem pouco tem uma lição para os
que poderiam mais ajudar:
– Pronto. Já tenho a primeira doação. Será que vocês, assim como este
amigo que me ajudou, não poderiam ajudar também? (SILVA;
JÚNIOR, 2011, p. 11-12).
Uma construção de 2,5 milhões teve início com uma moeda de vinte e cinco
centavos.
Pe. Arlindo começou, ele mesmo, a cavar os alicerces da nova igreja. Antes do
sol nascer, estava ele ali, com seus instrumentos de trabalho. Seus ajudantes incansáveis
e operários da primeira hora? Os amigos desde que chegou à Tamandaré: um grupo de
homens dependentes do álcool. Com eles, as aventuras foram muitas. Certa feita, pessoas
da comunidade vieram alertar o padre de que aquele grupo estava na praia pedindo
dinheiro para a igreja aos banhistas. O padre contemporizou. No fundo, porém, uma
dúvida atroz: será que estavam usando a igreja para financiarem o próprio vício? O que
fazer e, sobretudo, como fazer? Dias depois, procuraram o padre. Entregaram o resultado
dos pedidos: oitocentos reais. Na missa de Natal, Pe. Arlindo contou para todos.
A experiência de ajudar na construção da Igreja Matriz parece ter extrapolado a
areia e o cimento. Parece ter propiciado uma outra construção.
[...] três desses homens cujas vidas foram destruídas pela bebida,
conseguiram se juntar e abdicar do vício para ajudar na construção da
igreja.
129
O que eles fizeram: deram a improvável contribuição de dois mil e cem
reais ao padre. Arrumaram um trabalho temporário e deram ao amigo
padre o que ganharam para que fossem comprados três novos bancos
da nova Matriz. Não consumiram uma gota de bebida alcoólica com
este dinheiro; fizeram sua oferta mais generosa.
[...]
Dois mil e cem reais doados por pessoas que na maior parte dos dias
nada têm para comer e que quando pegam em algum trocado logo se
dirigem a um lugar onde possam se embriagar novamente, significam
muito mais do que o valor em si, pois ultrapassam os limites da bondade
e do sentido de pertencimento a um projeto tão abençoado como a
construção da nova Matriz de São Pedro (SILVA; JÚNIOR, 2011, p.
27).
Essa história nos remete às considerações de Rubem Alves sobre o sentido da
vida.
Mas o que é isto, o sentido da vida?
O sentido da vida [...]. É uma transformação de nossa visão de mundo,
na qual as coisas se integram como em uma melodia, o que nos faz
sentir reconciliados com o universo ao nosso redor, possuídos de um
sentimento oceânico –, na poética expressão de Romain Rolland –,
sensação inefável de eternidade e infinitude, de comunhão com algo
que nos transcende, envolve e embala, como se fosse um útero materno
de dimensões cósmicas.
[...].
Afirmar que a vida tem sentido é propor a fantástica hipótese de que o
universo vibra com nossos sentimentos [...]. Tudo está ligado.
Convicção de que, por detrás das coisas visíveis, há um rosto invisível
que sorri, presença amiga, braços que abraçam, como na famosa tela de
Salvador Dalí. E é esta crença que explica os sacrifícios que se oferecem
nos altares e as preces que se balbuciam na solidão (ALVES, 2014, p.
120-121).
Terá sido essa “presença amiga”, esses “braços que abraçam” sobre os quais
escreveu Rubem Alves, que fizeram dependentes do álcool encontrar um novo sentido
para a vida? Que os impulsionaram a “uma intensificação da vontade de viver a ponto de
dar coragem” para transformar o dinheiro da cachaça em bancos da nova igreja matriz?
O fato é que, todos os dependentes do álcool que ajudaram a construir a nova Igreja Matriz
de São Pedro, quer tenham deixado ou não a dependência, participam assiduamente das
celebrações.
Considerações finais
130
O papel desempenhado pela Igreja Católica em Tamandaré, considerando os três
recortes propostos nesse estudo de caso, indica faces diversas para diversas épocas. Ao
mesmo tempo, cada uma delas se identifica com um público singular.
Nas décadas de 1970-80, no que se refere aos pescadores artesanais, a face é
política. E aqui é possível encontrar o sentido coletivo do exercício da cidadania visto que
todas as ações estudadas foram direcionadas para a conquista de direitos comuns: a
organização, a eleição de legítimos representantes para a presidência da Colônia, a
inserção na política nacional e municipal, o empoderamento das marisqueiras.
No final do século XX e início do século XXI, em relação às crianças e
adolescentes, para além de uma ação social, as atividades desenvolvidas apontam para
uma formação humana e profissional sem deixar de considerar o cuidado com as famílias
dos beneficiários do Projeto Tamandaré.
Por fim, o último recorte – década de 2010 – nos remete à religião como um dos
nascedouros da cultura do acolhimento. Aqui, dois sentidos ficaram evidentes: o primeiro,
por parte dos excluídos, a possibilidade de pertencimento a um grupo; o segundo, por
parte da comunidade, a possibilidade de incluir, em seu corpo sócio-religioso, aqueles
que, em outros grupos, são colocados à margem.
Retomando, pois, a imagem do casulo descrita por Rubem Alves, parece possível
visualizar pescadores, marisqueiras, crianças, adolescentes, famílias, dependentes do
álcool, conseguindo romper seus próprios invólucros, alçar voos, correr em busca de
“sonhos dos oprimidos” para significar e (re)significar a vida cotidiana.
Referências:
ALVES, Rubem. O que é religião?. 15ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
ALVES, Rubem. Reverência pela vida: A sedução de Gandhi. Campinas: Papirus,
2006.
CPP – Comissão Pastoral dos Pescadores. Os Pescadores do Brasil – Síntese. – Doc.
03. Recife, 1984. Disponível em: <http://www.cppnac.org.br/subsidios/>. Acesso em:
25.05.2014.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acosse em:
25.05.2014.
131
Decreto Imperial nº 447, de 14 de maio de 1846. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-447-19-maio-1846-
560415-publicacaooriginal-83218-pe.html>. Acesso em: 25.05.2014.
Decreto Imperial nº 358, de 14 de agosto de 1845. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-358-14-agosto-1845-
560447-publicacaooriginal-83266-pl.html>. Acesso em: 25.05.2014.
Diário Oficial do Estado de Pernambuco – DOE
Lei Federal nº 11.699, de 13 de junho de 2008. Disponível em:
˂http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11699.htm˃. Acesso
em: 27.05.2014.
TERTÜNTE, Stefan. Os mártires dehonianos. Disponível em:
<http://www.scj.org/scj_homp/dehoniana/2001/2-2001/2-2001-08-por.htm>. Acesso
em: 25.05.2014.
SILVA, Edson; JÚNIOR, Pe. Arlindo. Acorda, povo de Deus. Construção da nova
Matriz de São Pedro. Tamandaré, 2011. Disponível em:
˂http://www.submit.10envolve.com.br/uploads/5c8d0e2bbec268ac4624eb4f17bf1ae6.p
df˃. Acesso em: 22.08.2014.
132
A REVELAÇÃO DE DEUS E O PAPEL DO HOMEM NESTE ATO
Marcelo Leonardo Ximenes93
Introdução
O tema sobre a revelação de Deus é um dos principais assuntos dentro da
teologia cristã, e teólogos discutem acerca deste tema desde o início da história da Igreja
e da sua teologia. Ao longo dos séculos de reflexão teológica, vários pontos de vista
diferentes foram colocados sobre esta temática, sendo este tema ainda atual, dentro da
preocupação da Igreja de que Deus também se revele ao homem contemporâneo, em suas
singularidades. Uma das divergências sobre este tema foi sobre a participação do homem
no processo de revelação. Seria o homem um mero receptor da revelação de Deus? Ou
seria ele também protagonista neste processo pelo qual Deus se revelou? Atribuir
importância à ação humana neste processo, não seria diminuir a soberania de Deus?
Também não seria um contrassenso dar esta ênfase a humanidade, uma vez que revelação
é a autocomunicação de Deus? Refletir sobre isto é o objetivo deste trabalho. Para isto,
iremos primeiro apresentar um panorama sobre revelação, incluindo a categorização desta
em revelação natural e revelação especial. Nesta parte do trabalho estaremos nos
baseando principalmente nas explanações de Santana Filho (2008). Depois entraremos na
discursão acerca da revelação e da participação do homem neste ato. Ao explanar o
argumento que atribui ênfase a participação humana, iremos nos basear no pensamento
de Paul Tillich (1987). Já para apreciar uma perspectiva que se baseia mais na ação e na
soberania de Deus no ato de se revelar, iremos partir do trabalho de Alister McGrath
(2005).
93 O autor é mestrando em teologia na Universidade Católica de Pernambuco e também é bacharel em
teologia pela mesma universidade. Além disto, é formado em teologia pelo Seminário Teológico Batista
do Norte do Brasil, onde atualmente atua como professor, sendo ordenado como pastor batista desde
2010. Email: [email protected]
133
1 Revelação
O termo revelação vem da palavra grega apocalypto. Desde Heródoto,
historiador grego nascido no século V a.C. em Halicarnasso (hoje Bodrum, na Turquia),
este termo aparece com sentido de desvendar. A palavra é formada pela raiz kalypto
(encobrir, ocultar) com o prefixo apo (de). Juntos, tem o sentido de manifestar algo
oculto. Já o substantivo apocalypsis, com o significado de manifestação e revelação, é
empregado desde o século primeiro num sentido essencialmente religioso.
Na expressão que o termo assume na literatura bíblica, revelação é um ato
que só diz respeito a Deus. É ele que assume o papel de agente da revelação, ou seja,
Deus é aquele que se revela. Nesse sentido, não há o que se questionar sobre a revelação,
expressão que se tornou técnica para falar da auto-manifestação de Deus. O ato de Deus
se revelar é baseado na soberania da sua vontade. De acordo com o pensamento de Barth
(apud. Santana Filho, 2008, p.876), não há outro meio do homem conhecer a Deus, a não
ser pela revelação. A mente do indivíduo não teria elementos para iniciar essa busca,
devido a sua finitude. Muita coisa permanece enigmática e desconhecida para o ser
humano, uma vez que este não conhece o mundo em seu todo. O mistério incondicionado
só pode ser concebido por meio da revelação, pois não pertence a este mundo, é
supramundano. Só através da manifestação de Deus pode-se “perceber” a sua atividade
(1Co 2.9). Deus, o Criador e Senhor, é mostrado pela Bíblia como mistério absoluto. A
revelação e o Deus da Bíblia estão tão ligados, que não há outro conhecimento possível
de Deus. Mas, ao falar-se a respeito de revelação, pode-se subdividi-la pedagogicamente
em categorias diferentes, de acordo com as formas como ela acontece, e também a seus
objetivos específicos.
2 Revelação natural
Pode-se então falar sobre revelação Geral que, segundo Santa Filho (2008,
p.876), é realizada por meios naturais. Ela é resultado do próprio ato da criação do
universo. O ser humano, ao olhar o mundo, percebe claros sinais da presença de Deus, o
que o torna capaz de reconhecer os sinais de sua presença. Quando é dito pela Bíblia que
o homem foi feito por Deus a sua imagem e semelhança (Gn 1.27), significa que foi lhe
dado, além da racionalidade e perfeição moral, também o conhecimento do seu criador.
Mesmo este conhecimento estando prejudicado pelo pecado, é capaz de ver na natureza
134
a presença do Deus criador. Pode-se ver esta afirmação no livro de Salmos: “os céus
declaram a glória de Deus; e o firmamento proclama a obra das suas mãos”. (Sl 19.1).
Também o apóstolo Paulo diz: “pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre
eles, porque Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis
de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo
compreendidos por meio das coisas criadas...” (Rm 1.19-20).
3 Revelação Especial
Mas há outro tipo de revelação a ser contemplada. É a que se denomina:
Revelação Especial (Santana Filho, 2008, p.876). A respeito disto gostaríamos de fazer
algumas considerações. Primeiramente, o objetivo da revelação no Antigo Testamento é
duplo: é revelação do próprio Deus e do seu designo da salvação. Ele primeiro se revela
como ser pessoal, como o que “É”, em contraste com “outros” deuses. Israel então foi
sendo educado progressivamente, a ter uma compreensão mais profunda dos atributos
divinos.
Também queremos enfatizar que a Escritura traz em si a revelação de Deus a
todas as pessoas, escrita para instruir todos sobre os propósitos de Yahweh. O Senhor se
deu a conhecer inicialmente aos profetas que registraram eventos relacionados em
diversos tempos e formas. Depois se revelou pelo Filho (Hb 1.1-2), ápice da revelação.
Como afirma Santana Filho (2008, p.877): “tudo para tornar perceptível o
incondicionado.” Diferentes dos profetas, com exceção de João Batista, os apóstolos
pregaram sobre alguém que viram e ouviram. O conteúdo central da revelação de Deus é
Jesus, o Logos94 que se fez carne. Chega-se então ao momento onde se percebe o valor
da revelação Especial, que conduz a humanidade, pelos caminhos da fé e da
racionalidade, a buscar uma forma de interpretar esta revelação. E é exatamente a isto que
se dá o nome de teologia, o esforço intelectual do homem tentando compreender o
significado da manifestação de Deus. Mas deve-se sempre partir do pressuposto da
perfeição da revelação. Deus não se “enganou” e não pode se “enganar”. Ele, em sua
94 Logos (λόγος) é um termo grego que significava inicialmente a “palavra” escrita ou falada - o Verbo.
Mas a partir de filósofos gregos como Heráclito passou a ter um significado mais amplo. Logos passa a ser
um conceito filosófico traduzido como “razão”, tanto como a capacidade de racionalização individual ou
como um princípio cósmico da Ordem e da Beleza.
135
infinita sabedoria, se manifestou aos seres humanos. Só que esta epifania95 adentrou o
mundo de uma forma determinada. Deus, para se fazer entendido, se utilizou de sinais e
linguagem. Além do mais, a revelação se deu em uma determinada época. A invasão do
sagrado no mundo se deu em um dado momento. Para se fazer histórico, Deus utilizou a
linguagem e a cultura de um povo.
A revelação acontece na história. Isto é, a experiência da revelação consiste
em ir captando, ao longo da história e no âmago da própria vida, a manifestação pessoal
de Deus. Isto permite o surgimento de dois polos unificantes: de um lado, Deus
compreendido cada vez mais claramente como origem única e onicompreensiva; do outro
lado as pessoas que se movimentam em torno dessa manifestação.
Revelação é uma realidade complexa, pois ao mesmo tempo é manifestação
e comunicação de Deus, a realidade dinâmica que cumpre os seus desígnios na história
humana. Além disso, revelação é também mensagem que se traduz em expressões
humanas nos lábios dos profetas, dos apóstolos e do próprio Cristo. O que a revelação
pretende é esclarecer o sentido misteriosos dos acontecimentos da salvação. Ela é palavra
ativa e criadora, é palavra que gesta a ação de Deus entre os seres humanos e sua
comunicação na história. E ela comunica para produzir vida. É pela revelação que Deus
se abre ao ser humano para uma relação de amor e o convida para uma atitude de amizade.
Santana Filho (2008, p.877) postula que os traços específicos da revelação especial são:
1. Tem destinação universal, ou seja, dirige-se a todas as pessoas; seu propósito é chamar
todos à salvação.
2. Ela é pública, pois sua verdade não é comunicada a um determinado povo e nem
pretende permanecer apenas de forma abstrata nos corações, é uma boa nova
destinada a ser transmitida e proclamada em praça pública.
3. Ela também é uma verdade de apropriação progressiva: Deus se comunica com a
humanidade em sua história. A revelação é perfeita em si, mas a apropriação desta é
falha porque se dá pelo exercício da teologia, ciência exercida pelo homem, e sendo
assim, é passível de erros. O ser humano apreende com deficiência; por isso, exercita.
Este é o motivo pelo qual a absorção da revelação é progressiva. Ela desenvolve-se
95 Epifania (Ἐπιφάνεια,) significa: "a aparição; um fenômeno miraculoso". Epifania é nome grego que quer
dizer manifestação da identidade de uma pessoa, neste caso usado para manifestações divinas. Mas este
termo está relacionado com a manifestação da glória de Deus. Geralmente estes eventos estão ligados com
eventos salvíficos. E podem ser manifestos através de eventos da natureza. Exemplos: abertura do Mar
Vermelho, nuvem e coluna de fogo que acompanhou Israel no deserto, ações do Espírito Santo no
pentecostes, descritas em At 2.
136
através dos séculos e vai amadurecendo pouco a pouco. Por meio dessa compreensão,
a humanidade vai sendo preparada para a plenitude dos tempos.
Latourelle (apud SANTANA FILHO, 2008, p.877), nos lembra da afirmação
de Tomás de Aquino de que há um tríplice conhecimento humano das coisas divinas: no
primeiro, o ser humano, graças à luz natural da razão, eleva-se ao conhecimento de Deus
por meio das criaturas; no segundo, a divina verdade, que excede os limites da inteligência
humana, desce ao homem como revelação, não como uma demonstração a penetrar, e sim
como uma palavra a crer; no terceiro, o espírito será elevado a ver perfeitamente o que
Deus lhe revelou.
A revelação é uma ação divina, algo que não procede e nem pode proceder
do ser humano. É algo que vem ao encontro da pessoa humana. É um fenômeno objetivo
independentemente do ato subjetivo da percepção. A palavra dos profetas, da pessoa de
Cristo, os ensinos dos apóstolos, que vêm através das Escrituras, fazem parte da revelação
de Deus para o ser humano. Elas são o que são, independentemente do que se pode pensar
delas. O evangelho de João afirma: “... Aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu
também o amarei e me revelarei a ele.” (Jo 14.21b).
Brunner (apud SANTANA FILHO, 2008, p.878) afirma que revelação é
aquilo que se torna manifesto por um ato definitivo de Deus. Significa que se passa a ver
o que não se via antes, ou seja, que ao homem, que estava na escuridão, agora brilha uma
luz. A revelação não é um fato em si, mas aquilo que torna um fato conhecido. Outra
palavra que também podemos usar é iluminação, que pode ser entendida como parte do
processo de revelação. A recepção da revelação se dá por meio de um ato de fé. É o ato
em que a autocomunicação de Deus é recebida. De certa forma, então, pode-se dizer que
ter fé é um ato de conhecimento. É nesse sentido que Anselmo (apud Santana Filho, 2008,
p.878) afirma Fides Quaerens Intellectum (A fé busca entendimento).
Santana Filho (2008, p.878) afirma: “Mas, quem é esse Deus da revelação?
Não é o deus de Epicuro que promove o prazer e a impassibilidade, nem o deus de Spinoza
– deus sive natura (deus natureza), nem o “Primeiro Motor” de Aristóteles e nem a
divindade de que nos fala Platão. Todas essas divindades podem ser sublimes, mas não
podem se revelar ao ser humano. Não podem ser conhecidos por meio de uma revelação.
Só podem ser conhecidos pelo pensamento. O Deus da Bíblia é o Deus da revelação. Ele
é o Senhor, é o sujeito incondicionado que só pode ser conhecido por meio de sua
autocomunicação”.
137
Pode-se ao longo do estudo teológico encontrar pontos de vista, e de partida,
diferenciados a respeito do tema da revelação especial. Alguns estudiosos afirmam que a
revelação só é possível quando assumem participação decisiva, tanto o agente da
revelação, ou seja, Deus, quanto àquele que recebe a revelação, ou seja, o homem, a partir
de suas preocupações, interesses, condições emocionais, psicológicas, espirituais e
contextuais. Este é o tipo de pensamento que se pode encontrar em Paul Tillich (1987).
Outros pensadores, como Alister McGrath (2005), vão enfatizar que a revelação depende
muito mais de Deus e de sua soberania e vontade, do que dos recebedores desta, que
podem estar em qualquer situação, contexto ou condição e, mesmo assim, serem alvos
dessa manifestação de Deus. Contempla-se a seguir a exposição das ideias destes dois
autores.
4 Ênfase na participação humana no processo de revelação – o pensamento de Paul
Tillich
Tillich, na elaboração dos três volumes de sua teologia sistemática, dedicou
toda a primeira parte, do primeiro volume, a dissertação a respeito da revelação (sendo
que este primeiro volume só possui duas partes). Para muitos, ele é considerado o maior
pensador sistemático do seu século. Sua teologia pode ser situada como um meio caminho
entre a teologia liberal e a neo-ortodoxia e seu princípio hermenêutico é o princípio da
correlação.
Dentro desta perspectiva, Tillich (1987, p.96) ao escrever sobre a revelação
faz uma correlação, que para ele é fundamental ao assunto, entre revelação e mistério. Ele
começa afirmando que a palavra “revelação” (“remover o véu”) foi usada
tradicionalmente para significar a manifestação de algo escondido que não pode ser
alcançado através das formas ordinárias de conseguir conhecimento. Para ele, existe um
uso mais amplo da palavra na linguagem cotidiana que é bastante vago. Ele exemplifica
isso no fato de alguém revelar um pensamento escondido a um amigo, ou uma testemunha
que revela as circunstancias de um crime, ou mesmo um cientista que revela um novo
método que foi testado por longo tempo, ou até mesmo um “insight” que vem a alguém
“como uma revelação”. Mas o autor em questão enfatiza que em todos esses casos,
contudo, a força das palavras “revelar” e “revelação” é derivada de seu sentido próprio e
mais estrito. Para ele, uma revelação é uma manifestação especial e extraordinária que
remove o véu de algo que está escondido de forma especial e extraordinária. Esse
138
ocultamento frequentemente é chamado “mistério”. Ele afirma que esta palavra também
tem um sentido mais limitado e outro mais amplo. Em sentido mais limitado, do qual se
deriva a força destas frases, aponta para algo que é essencialmente um mistério. Algo que
perderia sua própria natureza se perdesse seu caráter misterioso. “Mistério”, em sentido
próprio, é derivado de muein, “fechar os olhos”, ou “fechar a boca”.
Tillich (1987, p.97) também afirma que aquilo que é essencialmente
misterioso não pode perder seu caráter misterioso, mesmo quando é revelado. De outra
forma, algo que só parecia misterioso poderia ser revelado, e não aquilo que é
essencialmente misterioso. Mas não é uma contradição em termos falar de algo que
permanece um mistério no próprio ato da revelação? A isto ele responde, dizendo que é
exatamente este aparente paradoxo que é afirmado pela religião e teologia. Onde quer que
sejam mantidas as duas proposições: que Deus se revelou a si mesmo e que Deus é um
mistério infinito para aqueles a quem ele se revelou, o paradoxo é afirmado
implicitamente. Mas para ele, este não é um paradoxo real, pois, mesmo que a revelação
inclua elementos cognitivos, ela não dissolve o mistério em conhecimento. Nem significa,
tão pouco, a manifestação de algo dentro do contexto da experiência ordinária que
transcende o contexto ordinário da experiência. Algo mais é conhecido do mistério depois
que ele se manifestou na revelação. Primeiramente, sua realidade se tornou uma questão
de experiência. Ambos os aspectos são elementos cognitivos. Mas, como já foi dito, a
revelação não dissolve o mistério em conhecimento, nem acrescenta algo diretamente à
totalidade do conhecimento humano ordinário, isto é, ao conhecimento humano sobre a
estrutura sujeito-objeto da realidade.
Este autor (TILLICH, 1987, p.98) pressupõe que o genuíno mistério aparece
quando a razão é conduzida para além de si mesma, a seu “fundamento e abismo”, a
aquilo que “precede” a razão, ao fato de que “o ser é e o não-ser não é” (Parmênides96),
ao fato original (Urtatsache), que há algo e não nada. Ele diz que se pode chamar a isso
de “lado negativo” do mistério. Este lado do mistério está presente em todas as funções
da razão; ele se torna manifesto tanto na razão subjetiva, quanto na razão objetiva.
Também é apresentado o “estigma” da finitude, que aparece em todas as coisas e na
totalidade da realidade e o “choque” que se apodera da mente quando se encontra com a
ameaça do não-ser, revela o lado negativo do mistério, o elemento abismal no fundamento
do ser. Para Tillich, este lado negativo está sempre potencialmente presente. Pode ser
96 Parmênides foi um filósofo nascido em Eléia, hoje Vélia, Itália. Foi o fundador da escola eleática.
139
detectado nas experiências cognitivas, bem como comunitárias. É um elemento
necessário na revelação. Sem ele o mistério não seria mistério. Ele exemplifica dizendo
que sem o “eu estou perdido” de Isaías em sua visão vocacional, Deus não pode ser
experimentado (Is 6.5).
Em contra ponto, ele apresenta o lado positivo do mistério, afirmando que
este inclui o lado negativo, e torna-se manifesto na revelação atual. Aqui o mistério
aparece como fundamento e não como abismo. Aparece como poder de ser, conquistando
o não ser. Aparece como preocupação última do homem. E se expressa em símbolos e
mitos que apontam para a profundidade da razão e seu mistério.
Tillich (1987, p.98) faz questão de colocar como elemento fundamental, a
revelação como manifestação daquilo que diz respeito ao homem de forma última. O
mistério revelado é de preocupação última para a humanidade, porque é fundamento de
seu ser. Ele afirma que na história da religião, eventos revelatórios sempre foram descritos
como abaladores, transformadores, exigentes, significativos de forma última. Eles
derivam de fontes divinas, do poder daquilo que é santo e que, portanto, têm uma
reivindicação incondicional sobre o homem. Só o mistério que é de preocupação última
para o homem aparece na revelação. Grande parte das ideias que se derivam de pretensas
revelações a respeito de objetos e eventos dentro da estrutura sujeito-objeto da realidade,
nem são mistérios genuínos, nem se baseiam em genuína revelação. Conhecimento sobre
a natureza e a história, sobre indivíduos, seu futuro e seu passado, sobre coisas escondidas
e acontecimentos, tudo isso não é questão de revelação, mas de observações, intuições e
conclusões.
Para Tillich (1987, p.99), revelação, como revelação do mistério, é
preocupação última do homem e é invariavelmente revelação para alguém numa situação
concreta de preocupação. Para ele, isto está claramente indicado em todos os eventos que
tradicionalmente foram caracterizados como revelatórios. Não há revelação “em geral”
(Offenbarung ueberhaupt). Revelação abarca um indivíduo ou um grupo, geralmente um
grupo através de um indivíduo; ela só tem poder revelador nesta correlação. Revelações
recebidas fora da situação concreta podem ser apreendidas só como reportagens sobre
revelações que outros grupos afirmam haver recebido. O conhecimento de tais relatos, e
mesmo uma aguda compreensão dos mesmos, não os torna revelatórios para ninguém que
não pertença ao grupo abarcado pela revelação. Não há revelação se não houver ninguém
que a receba como sua preocupação última.
140
Tillich (1987, p. 99) diz que a revelação sempre é um evento subjetivo e
objetivo em estrita interdependência. Alguém é abarcado pela manifestação do mistério;
este é o lado subjetivo do evento. Algo ocorre através do qual o mistério da revelação
abarca alguém; este é o lado objetivo. Para ele, esses dois lados não podem ser separados.
Se nada acontece objetivamente, nada é revelado. Se ninguém recebe o que acontece
subjetivamente, o evento deixa de revelar algo. A ocorrência objetiva e a recepção
subjetiva pertencem ao evento total da revelação. Revelação não é real sem o lado
receptivo, e não é real sem o lado doador. O mistério aparece objetivamente em termos
do que foi chamado tradicionalmente de “milagre”. Aparece subjetivamente em termos
do que foi às vezes chamado “êxtase”. Ambos os termos necessitam de uma
reinterpretação radical.
Por isso, para este autor (TILLICH, 1987, p.99), também é importante fazer
a relação entre revelação e êxtase. Ele começa afirmando que “êxtase” (“estar fora de si
mesmo”) aponta para um estado da mente que é extraordinário no sentido de que a mente
transcende sua situação ordinária. Êxtase não é uma negação da razão; é o estado da mente
no qual a razão está além de si mesma, isto é, além da estrutura sujeito-objeto. Ao estar
além de si mesma, a razão não nega a si mesma. “Razão extática” permanece razão; ela
não recebe nada irracional ou antirracional, o que não poderia fazer sem autodestruição,
mas ela transcende a condição básica da racionalidade finita, a estrutura sujeito-objeto.
Para Tillich, este é o estado que os místicos tentam alcançar por atividades ascéticas e
místicas. Mas os místicos sabem que estas atividades só são preparações e que a
experiência do êxtase é devida exclusivamente à manifestação do mistério em uma
situação revelatória. O êxtase ocorre só se a mente é possuída pelo mistério, isto é, pelo
fundamento do ser e sentido. E, vice-versa, não há revelação sem êxtase. No máximo, há
informação que pode ser testada cientificamente. O “êxtase do profeta”, do qual a
literatura profética está cheia, indica que a experiência do êxtase tem significado
universal.
Tillich (1987, p.103) também faz a relação entre revelação e milagre. Para
ele, os sinais-evento, nos quais o mistério do ser se dá a si mesmo, consistem em
constelações especiais de elementos da realidade, em correlação com constelações
especiais da mente. Um milagre genuíno é antes de tudo um evento que é assombroso,
incomum, abalador, sem contradizer a estrutura racional da realidade. Em segundo lugar
é um evento que aponta para o mistério do ser, expressando sua relação com o homem de
forma definida. Em terceiro lugar, é uma ocorrência que é recebida como um sinal evento
141
em experiência extática. Para ele, só se estas três condições forem satisfeitas pode-se falar
em milagre genuíno. Aquilo que não abala alguém por seu caráter assombroso não tem
poder revelatório. Aquilo que abala sem apontar para o mistério do ser não é milagre, mas
magia. Aquilo que não é recebido em êxtase é um relato sobre a crença num milagre, não
um milagre atual. Ele afirma que isto está enfatizado nos registros sinóticos dos milagres
de Jesus. Milagres só são dados para aqueles a quem eles são sinais-eventos, para aqueles
que o recebem em fé. Jesus se recusa a realizar milagres “objetivos”. Eles são uma
contradição em termos. Esta correlação estreita torna possível intercambiar as palavras
que descrevem milagres e as que descrevem êxtase. Pode-se dizer que êxtase é o milagre
da mente e milagre é o êxtase da realidade.
O autor em questão (TILLICH, 1987, p.104), em sua obra sobre a revelação,
também descreve quais seriam os meios pelos quais a revelação acontece. O primeiro
deles é a natureza como meio da revelação. Para ele, não há realidade, coisa ou evento
que não possa se tornar um portador do mistério do ser e entrar numa correlação
revelatória. Nada está excluído da revelação em principio porque nada está incluído nela
à base de qualidades especiais. Nenhuma pessoa e nenhuma coisa é digna em si mesma
de representar a preocupação última do homem. Por outro lado, toda pessoa e toda coisa
participa no ser-em-si, isto é, o fundamento e sentido do ser. Sem essa participação não
teria poder de ser. Esta é a razão, para ele, do porquê quase todo tipo de realidade se
tornou um meio de revelação em algum lugar. Outros meios que Tillich descreve são a
história, grupos e indivíduos como meio de revelação. Na verdade, para ele, eventos
históricos, grupos ou indivíduos em si não são meios de revelação. É a constelação
revelatória dentro da qual eles entram, sob condições especiais, que os torna revelatórios,
não seu significado histórico ou sua grandeza pessoal e social. Se a história aponta para
além de si mesma em uma correlação de êxtase e sinal-evento, ocorre revelação. Se
grupos de pessoas se tornam transparentes ao fundamento do ser e sentido, ocorre
revelação. Mas sua ocorrência não pode ser prevista ou derivada de qualidades de pessoas,
grupos e eventos. É questão de destino histórico, social e pessoal. Está sob a “criatividade
diretiva” da vida divina. A última forma que ele descreve é a palavra como um meio de
revelação. Ele explica que a estrutura racional do homem não pode ser entendida sem a
palavra, na qual a estrutura racional da realidade é compreendida. A revelação não pode
ser entendida sem a palavra como meio de revelação. O conhecimento de Deus não pode
ser descrito exceto através de uma analise semântica da palavra simbólica. Os símbolos
“Palavra de Deus” e “Logos” não podem ser entendidos em seus vários sentidos sem uma
142
penetração na natureza geral da palavra. A mensagem bíblica não pode ser interpretada
sem princípios semânticos e hermenêuticos. A pregação da igreja pressupõe uma
compreensão das funções expressiva e denotativa da palavra, acrescentadas à sua função
comunicativa.
Sobre a Dinâmica da revelação, Tillich (1987, p.111) descreve a respeito de
revelação Original e revelação Dependente, dizendo que a história da revelação indica
que há uma diferença entre revelações originais e dependentes. Uma revelação original,
segundo ele, é aquela que ocorre numa constelação que não existiu antes. O milagre e o
êxtase estão unidos pela primeira vez. Ambos os aspectos são originais. Numa revelação
dependente, o milagre e sua recepção original formam juntos o aspecto objetivo, aquilo
que é dado. Ao passo que o aspecto receptivo muda, na medida em que indivíduos e
grupos entram na mesma correlação. Ele explica isso exemplificando na afirmação de que
Jesus é o Cristo, tanto porque poderia se tornar o Cristo como porque foi recebido como
sendo o Cristo. Sem ambos estes aspectos, não teria sido o Cristo. Verifica-se aqui, porém,
que esta última afirmação apresentada por Tillich, não é de fácil aceitação, uma vez que
Jesus é o Cristo, independente de ser reconhecido como tal, unicamente pela vontade de
Deus. Mas pode-se ver que o estudo dos pensamentos de Tillich é útil para a reflexão
sobre muitas questões a respeito da revelação, uma vez que este autor escreveu muito
sobre tal assunto, de maneira que aqui foi contemplada apenas uma parte de seus escritos.
5 Ênfase na soberania e ação de Deus ao se revelar – o pensamento de Alister
McGrath
McGrath é um estudioso bastante atuante no mundo teológico, sendo hoje
professor de teologia histórica na universidade de Oxford. Ele tem lecionado nas áreas de
teologia sistemática, ciência da religião, espiritualidade e apologética. Autor de inúmeros
livros, o Dr. McGrath é considerado um dos mais influentes pensadores cristãos da
atualidade, sendo considerado também um referencial conservador. Ao começar sua
dissertação a respeito do conceito de revelação, ele aponta que um tema central da
teologia cristã, ao longo dos tempos, tem sido o fato de que as tentativas do ser humano,
no sentido de compreender plenamente a natureza e os propósitos de Deus, ser
fundamentalmente tentativas frustradas. Ele ressalta que, embora, geralmente, sustente-
se a ideia de que seja possível um conhecimento natural de Deus (sendo as primeiras
reflexões de Barth uma notável exceção a esse consenso), esse conhecimento é limitado
143
tanto em termos de profundidade quanto de alcance. Fazendo uma citação de Jünge,
McGrath (2005, p.246) informa que o conceito de revelação expressa um dogma universal
da teologia cristã que propõe a necessidade de que nos “seja dito como é Deus”.
Em seguida, este autor (2005, p.246) vem trazendo o fato de que a década de
1960 assistiu a uma grande revolução na área da teologia cristã, em que vários conceitos
tradicionais foram desafiados e reformulados, inclusive o conceito de revelação. Para
McGrath, neste contexto surgiram duas questões, em que cada uma delas parecia lançar
dúvidas sobre o conceito de revelação sustentado pela visão cristã tradicional.
A primeira destas questões foi trazida quando Downing propôs que o
interesse moderno quanto à questão da revelação não se devia ao material bíblico em si,
mas à relevância das questões epistemológicas para a filosofia moderna. A importância
das questões relativas ao “conhecimento verdadeiro” na área da filosofia da ciência, por
exemplo, havia sido indevidamente transferida para a área da teologia. Era alegado que a
Bíblia voltava-se para a questão da salvação, e não para a questão do conhecimento. O
questionamento que dominava o Novo Testamento era: “O que devo fazer para ser
salvo?”, e não: “O que devo saber para alcançar a salvação?”.
McGrath (2005, p.246) apresenta a reação a esta questão, quando destaca o
fato de que a concepção bíblica de salvação se exprime normalmente em termos de
“conhecimento”, sendo a salvação humana considerada como algo que se fundamentava
no conhecimento da possibilidade de salvação em Cristo, assim como a resposta
apropriada a isto, fatores necessários à ocorrência da salvação. Também é afirmado que,
em sentido bíblico, “o conhecimento de Deus” não significa simplesmente o fato de
possuir “informações a respeito de Deus”, mas sim uma auto-revelação de Deus, em
Cristo Jesus, que é capaz de proporcionar vida e trazer salvação.
A segunda questão está relacionada ao fato de acadêmicos da bíblia, como
Barr (apud MACGRATH, 2005, p.246), terem defendido que a questão da revelação
parecia ter tido uma importância secundária em ambos os testamentos. Eles sugeriam que
a linguagem da revelação não era sequer fundamental ou homogênea no contexto bíblico.
Mas para McGrath, logo ficou evidente que sua análise se baseava em uma aceitação
indiscriminada de conceitos de revelação elaborados sistematicamente, e não em uma
análise do vocabulário encontrado nas Escrituras a respeito da revelação. Para este autor,
é verdade que os conceitos medievais ou modernos de revelação não se encontram
expressamente declarados, nem no Antigo nem no Novo Testamento. Contudo, isto de
144
forma alguma indica que a linguagem da revelação esteja ausente do contexto das
Escrituras ou, até mesmo, que ocupe uma posição secundária nelas.
McGrath (2005, p.246) afirma que o significado de revelação no Novo
Testamento não sugere uma “manifestação de um Deus até o momento desconhecido”.
Em sua acepção geral, o termo “revelação” significa “A possibilidade do conhecimento
de algo em sua plenitude” ou “a manifestação total daquilo que fora até então obscuro ou
incerto”. No entanto, para ele, falar da “revelação de Deus”, em um contexto teológico,
não significa dizer que essa revelação de Deus seja plena, total.
Testificando isto, este autor (2005, p.246) traz exemplos, como os vários
escritores pertencentes à tradição ortodoxa grega que enfatizam que a revelação divina
não liquida o mistério de Deus. Ele dá o exemplo da doutrina da “reserva”, de Newman,
também destacando esse ponto. Sobre isso, a sempre mais de Deus do que aquilo que
somos capazes de saber. Também Lutero (apud MCGRATH, 2005, p.247) sugere que a
revelação de Deus é somente parcial, embora seja confiável e adequada, ainda que parcial.
Para defender este ponto, Lutero elabora o conceito de uma “revelação secreta de Deus”,
que é um dos aspectos mais relevantes de sua “teologia da cruz”.
Para McGrath (2005, p.247), existe consenso na teologia cristã, no sentido de
que a natureza (ou a criação) dá testemunho de Deus, seu criador. Esse conhecimento
natural de Deus deve ser completado pela revelação, que dá acesso a informações de outra
forma inatingíveis. Para ele, contudo, o conceito de revelação vai além da ideia da
transmissão de conhecimento sobre Deus, pois ele carrega em si a noção da auto-
revelação divina. Este autor então, brilhantemente, exemplifica que ao falarmos a respeito
de outras pessoas, podemos traçar uma diferença entre “saber algo a respeito de alguém”
e “conhecer alguém”. A primeira ideia implica em um conhecimento intelectual ou no
acúmulo de informações sobre uma pessoa (como, por exemplo, sua altura, peso e assim
por diante). A segunda ideia envolve a noção de um relacionamento pessoal.
Segundo McGrath (2005, p.247), em sentido mais elaborado, o conceito de
revelação não significa mera transmissão de um conjunto de conhecimentos, mas sim a
manifestação pessoal de Deus na história. Deus tomou a iniciativa por intermédio de um
processo de auto-revelação, que atinge seu ápice e plenitude na história de Jesus de
Nazaré.
McGrath (2005, p.247) apresenta quatro formas principais de como a
revelação especial foi entendida, onde elas não são mutuamente excludentes. A primeira
delas é a da Doutrina como revelação. Essa tem sido a abordagem característica das
145
correntes católicas neo-escolásticas e evangélicas conservadoras, as quais continuam a
exercer grande influência na tradição cristã por intermédio de suas formas modificadas
ou ampliadas. Ao passo que os evangélicos enfatizam o papel das Escrituras na mediação
da revelação, os católicos neo-escolásticos têm também atribuído importância ao papel
da tradição, em particular à função de ensino da igreja (o magisterium). Os termos “o
reservatório de revelação” ou “o repositório da verdade” são geralmente empregados
neste contexto, com o significado de repertorio dos conhecimentos acumulados pela
igreja ao longo dos anos. De acordo com essa abordagem, deve-se considerar a revelação
primordialmente (embora não exclusivamente) sob a forma proposicional.
A segunda delas é a da Presença como revelação. Esse modelo sobre a
revelação está relacionado especialmente a escritores da escola dialética de teologia,
influenciada pelo personalismo dialógico de Buber. Talvez a declaração mais importante
dessa perspectiva encontre-se no livro de Brunner, Truth as encounter (verdade como
encontro), que estabelece a noção de revelação como comunicação pessoal de Deus. Isto
é, uma revelação da presença pessoal de Deus no interior daquele que crê. “O senhorio e
o amor de Deus não podem ser comunicados de outra forma que não seja por intermédio
da auto-revelação de Deus”. A tese de Brunner defende que Deus, no processo de
revelação, não transmite informações apenas. A revelação envolve a manifestação da
presença pessoal de Deus e não meras informações ao seu respeito. Brunner, baseando-
se na análise de Martin Buber sobre as formas de relação “Eu-tu” e “Eu-isso”, insiste na
existência de um elemento fortemente relacional na revelação. Deus dá-se a conhecer
como “Tu” e não como “Ele”. A revelação é teleológica, um processo voltado para um
fim, e essa finalidade representa o surgimento de uma mútua relação entre o Deus que se
revela e a humanidade que reage a essa revelação.
A terceira forma apresentada por McGrath é a da Experiência como
revelação. Este modelo tem grande influência e concentra-se em torno da experiência
humana. De acordo com essa perspectiva, entende-se que Deus se revela ou se dá a
conhecer por intermédio da experiência pessoal. Esta é considerada por muitos como a
abordagem ligada ao protestantismo liberal alemão do século XIX, especialmente com
Schleiermacher e Ristschl.
A quarta e última forma é a da História como revelação. Esta é uma
abordagem totalmente distinta, particularmente associada ao teólogo alemão:
Pannenberg. Ela concentra-se no tema da “revelação como história”. De acordo com ele,
a teologia cristã baseia-se na análise da história universal e conhecida, e não na subjetiva
146
interna da existência humana pessoal ou em uma interpretação particular dessa história.
A história é em si mesma a revelação (ou pelo menos tem a capacidade de vir a sê-lo).
Para Pannenberg, a revelação é essencialmente um evento histórico notório e universal,
reconhecido e interpretado como “ato de Deus”.
Considerações finais
Ao se fazer uma comparação entre Tillich e McGrath, percebemos que a
revelação especial pode ser entendida a partir de duas maneiras principais. A primeira diz
respeito a uma revelação que depende tanto do agir de Deus, como no indivíduo e suas
necessidades, situações, estado em que se encontra, em seu contexto e vontade. A segunda
diz respeito numa revelação que depende muito mais da vontade e do agir de Deus,
independentemente de qualquer característica e situação de um indivíduo. Seguindo a
linha da teologia nascida da Reforma Protestante, defendemos a percepção que coloca a
ênfase na soberania e no agir de Deus ao se revelar, mas reconhecemos a existência e da
relevância da outra forma defendida. Também podemos notar um ponto em comum entre
esses dois autores, que parece ser um ponto em comum com a maioria dos autores. É o
fato de que ao acontecer o evento da revelação, o mistério não é encerrado ou esgotado.
Mesmo quando Deus se revela, existe muito mais de Deus que é desconhecido pela
humanidade. Existe sempre mais de Deus a se conhecer.
Referências
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GEISLER, Norman L.; FEINBERG, Paul D. Introdução à Filosofia: uma perspectiva cristã. São
Paulo: Edições Vida Nova, 1996.
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Editora Cultura Cristã, 1999.
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TILLICH, Paul. Teologia sistemática. São Paulo: Paulinas; São Leopoldo, RS: Sinodal, 1987.
147
DO ROUBO DAS PERAS A BISPO DE HIPONA: o pretexto da fé na
contextualização do texto agostiniano
Pompeia Rosalia Sena Maltese97
Introdução
O trabalho em questão pretende apresentar a trajetória de Agostinho de Hipona a
partir do seu próprio relato em suas Confissões, relacionando toda sua obra, ou seja, o seu
texto na perspectiva das Escrituras – seu contexto –, mobilizado pela fé – seu pretexto –
que, advinda de sua “conversão”, lhe confere todo o sentido de sua vida.
O título que ora utilizamos reporta-se a uma frase da sabedoria popular que diz:
“Texto sem contexto é pretexto”. Com ela, configuramos um jogo de palavras usando
texto, contexto e pretexto de acordo com o que pretendemos ilustrar. É comum que a partir
de tal frase nos perguntemos: “Pretexto para quê? ”. Com isso, vamos discorrendo:
pretexto pra mentiras, pra falar bobagens e assim por diante. No nosso caso, queremos
ilustrar que para o nosso autor, conforme citado acima, a sua fé foi o “pretexto” – portanto,
no bom sentido – para a digressão ou desenvolvimento de toda a sua obra. Ou seja, foi a
sua motivação, o seu argumento.
A nossa proposta é, portanto, trazer a história deste sujeito, Aurélio Agostinho,
que para desenvolver sua obra torna-se ele próprio o protagonista por excelência. O autor
em questão desenvolveu uma antropologia onde o pensar sobre o homem se debruça sobre
si mesmo e inaugura, assim, uma subjetividade na reflexão filosófica onde, anteriormente,
este pensar era tomado sob uma certa distância. Com Agostinho, ela se volta para o
homem em sua realidade experiencial, é ele próprio que fala de si, uma vez que se
confessa98. Portanto, o seu livro autobiográfico não é uma simples autobiografia, não é
97 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); graduada em Filosofia (Licenciatura
e Bacharelado) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Psicologia (Licenciatura, Bacharelado
e Formação de Psicólogos) pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e aluna do curso de
Bacharelado em Teologia da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). 98 Ver sua obra Confissões. A relação dialógica posta em debate é a do sujeito que se confessa para Deus.
O próprio autor refere que esta sua confissão - e é esta sua intenção - pode servir de testemunho para as
pessoas que a conhecerem, no sentido de serem fortalecidas em sua caminhada na fé ou mesmo como
promovedora de uma conversão. A este respeito, na célebre passagem do Livro X, 27.38 das Confissões
(Tarde Vos Amei!), encontramos na nota do tradutor o seguinte comentário: “Este clamor de pródigo e de
esteta converteu a elegante M.elle Lionne, ao escutá-lo da boca do orador P.Cláudio La Colombière, que a
Igreja depois beatificou”.
148
apenas o relato de quem conta uma história, é primordialmente uma interlocução e,
naturalmente, como qualquer interlocução, o sujeito está implicado emocionalmente na
sua exposição naquele momento em que a esboça. Desta forma, enquanto confissão, põe
em realce uma relação dialógica. Santo Agostinho a descreve de forma despojada,
corajosa e dramática. É o homem Agostinho que vai mobilizar sua busca para a
compreensão da realidade a partir de uma reflexão sobre si mesmo, para daí inquirir sobre
o antrophos (ανθρωπος) que o constitui.
Assim sendo, à medida em que nos referimos à obra agostiniana, estamos nos
referindo ao seu texto que, do ponto de vista de sua antropologia, deu um salto qualitativo
justamente a partir de sua conversão ao cristianismo, muito embora, referindo-nos a santo
Agostinho, no dizer dos seus comentadores, não podemos falar de conversão, mas de
conversões99. Sendo fundamentalmente uma antropologia, a sua obra está, portanto,
centrada e fundada em sua experiência após esta sua conversão. Valendo-se, portanto de
uma inspeção da alma, ele faz um “mergulho” em sua interioridade, na busca do
esclarecimento daquele pretexto que muda toda a sua história. Ele vai buscar o
esclarecimento da fé em confronto com a própria razão, ou seja, o esclarecimento de um
dado de revelação a partir da razão: “Entenda que você pode acreditar, acredite para que
você entenda”100. Na sua época, a razão vinha sendo desacreditada, uma vez que a
diversidade de escolas filosóficas101 apontava, obviamente, para uma diversidade de
argumentos, desprestigiando, assim, o seu próprio “instrumento do pensar”, a razão, uma
vez que esta já não assegurava um conhecimento verdadeiro e tudo era posto em dúvida.
Agostinho nos traz justamente todo um ensaio em que vai nos apresentando a fé como
resultado de raciocínios e, deste resultado, lhe advém uma certeza lógica, de acordo com
o que podemos constatar em De civitate Dei (A cidade de Deus):
Tais verdades desafiam todos os argumentos dos acadêmicos, que
dizem: Quê? E se te enganas? Pois, se me engano, existo. Quem não
existe não pode enganar-se; por isso, se me engano, existo. Logo, se
existo, se me engano, como me engano, crendo que existo, quando é
99 Conforme Gilson, a primeira das conversões de Agostinho foi à Filosofia, a partir do livro Hortensius,
de Cícero. 100 Cf. a nota complementar 5 do De Libero arbitrio (O Livre-arbítrio): “Intllige ut credas, crede ut
intelligas”. Além do livro citado, encontramos ainda esta máxima – dita de outra forma – no De Magistro
(O Mestre) XI, 37: “Se não credes, não entendereis” e no De Trinitate (A Trindade) VII, 6.12). A nota
inclusive comenta a alusão frequentemente referida por Agostinho ao texto de Isaías 7,9, cujo fundamento
- no dizer da referida nota - é impróprio, mas que encontra “sólido apoio nas Escrituras”. Assim, nosso
autor subleva a fé sem contrastá-la ao confronto com a razão. 101 O Estoicismo, Epicurismo e Ceticismo impregnavam toda a cultura greco-romana da época. A História
da Filosofia, vol. I de Reale e Antiseri, bem como a História da Filosofia, Vol. II, de Nicola Abbagnano
nos traz um panorama bastante completo e muito bem comentado dessas correntes filosóficas.
149
certo que existo, se me engano? Embora me engane, sou eu que me
engano e, portanto, no que conheço que existo, não me engano (parte
II, XI .26, 1989, p. 45).
Estabeleceu-se, desta forma, o chamado Cogito agostiniano102 que nos coloca
diante de uma experiência inequívoca que antecede ao pensamento, sendo assim um
contato apriorístico do sujeito consigo mesmo.
Ora, a razão é um atributo humano que nos confere a capacidade de raciocinar,
donde nos advém o intelecto e o entendimento. No entanto, o homem, consequentemente
seu intelecto, é mutável, perecível e, portanto, corruptível (passível de destruição). Deste
modo, o conhecimento da verdade só lhe pode ser assegurado por algo que se coloque
acima dos homens e das coisas. É exatamente neste ponto que o homem acede ao
conhecimento de Deus. Então, para alcançar a verdade, aprioristicamente, é preciso crer.
Assim sendo, para o nosso autor a razão não se incompatibilizava com a fé, uma vez que
ela era sua auxiliar em seu amadurecimento.
A fé resgata a possibilidade da verdade que vinha sendo escamoteada e restaura a
validade da razão. Sendo que esta razão é um instrumento, ela está a serviço do
esclarecimento que vem da fé. É a fé que vai esclarecer a razão e, com isso, nosso autor
desenvolve a teoria da iluminação103. Embora seguindo numa linha de consideração
positiva sobre a razão, ao contrário de dizer que a mesma de nada vale – como nos
embates que se travavam habitualmente em seu descrédito –, santo Agostinho a vê como
serva. Fé e razão, portanto, em Agostinho se compatibilizam.
Em sua perspectiva antropológica, nosso autor compreende que o universo e,
portanto, o homem, está inserido numa determinada ordem, princípio que governa todas
as coisas. Esta ordem se insere, por sua vez, no Princípio da Criação104. Enquanto ordem
e enquanto Criação, existe uma hierarquia entre o Criador e as coisas criadas e também
entre estas coisas criadas entre si, de modo que o homem enquanto criado é, entre todas
as demais criaturas, a excelência da Criação, pois foi pensado como Imago Dei e,
portanto, esta essência lhe é constitutiva. Naturalmente, também é constitutiva sua
transcendência. À medida em que iniciamos um processo de autoconhecimento,
102 O Cogito agostiniano é muito pouco mencionado na elaboração cartesiana posterior. Encontramos em
Gilson um vasto comentário a respeito intercalado em seus capítulos que seguem até à p. 156. Vale ressaltar
que de Agostinho para Descartes passam-se onze séculos. 103 A este respeito encontramos em seu livro De Magistro toda uma explanação sobre o conhecimento, a
linguagem e a iluminação divina. 104 Conforme seu livro A ordem, no qual expõe estes argumentos e os fundamenta de acordo com as
Escrituras bíblicas.
150
recordamos essa nossa essência que está em Deus e, assim, encontramos a felicidade e a
verdadeira liberdade105. À medida em que prossegue nesta sua interlocução com Deus,
seu diálogo interior vai sendo iluminado. Mas, esta trajetória dá-se sempre diante de uma
situação conflitiva. O homem está lançado no mundo, como ser histórico e situado e
distante de sua lembrança está sua constitutividade transcendental. Isto é algo que vai ter
que ser recuperado para que o homem não se perca e alcance verdadeiramente a
felicidade.
Poderíamos dizer que nesta relação estabelece-se uma dependência, pela própria
contingência das coisas criadas e de sua mutabilidade, nas quais situa-se a humanidade.
No entanto, reconhecendo-se com esta essência, em sua dependência de Deus, ele se torna
independente das demais contingências do mundo (também criado), ao menos sobre as
quais pode agir, porque dependem de sua vontade. Suas afeições, o pathos (πάθος) que o
constitui em sua humanidade (lembrar a contingência, mutabilidade, corruptibilidade)
tornam-se ordenadas – o que não quer dizer apatia (απαθεία) – mesmo que em
movimentos por vezes desordenados que, no entanto, ao invés de impeli-lo para a
desordem do seu ser (fazer o mal que não se quer)106 propicia-lhe os seus ajustes
necessários, ou seja, os ajustes necessários a todo ser em estado de desenvolvimento.
Sua independência das contingências do mundo naquilo em que pode agir com
sua vontade orientada (poderíamos dizer ordenada) para o bem, naturalmente conduzi-lo-
á à felicidade. Agostinho não prescinde de elementos dos quais hoje fazemos referência
como as escolhas inconscientes – embora questões a este respeito fossem ainda
incipientes107 –, reconhecendo-as como típicas desta contingência, mutabilidade e
corruptibilidade da constitutividade humana. No entanto, elas não lhe são determinantes.
A evolução na autonomia em relação a elas vai depender do “caminhar” de cada um. No
dizer psicanalítico atual do termo, poderíamos dizer que não precisamos fugir das nossas
“sombras”108, precisamos integrá-las e reconhecê-las, pois fazem parte da inspeção da
105 Ver Solilóquios e A Vida Feliz. No primeiro, o autor trava um diálogo consigo mesmo. No segundo,
temos um diálogo entre diversos amigos onde as mesmas questões sobre a felicidade, o conhecimento, entre
outras, são discutidas. 106 Alusão à Carta aos Romanos do Apóstolo Paulo, capítulo 7,19: “Com efeito, não faço o bem que eu
quero, mas pratico o mal que não quero” (Bíblia de Jerusalém). 107 Ver no Livro I das Confissões, em seu capítulo 6.8 a referência às questões inconscientes. 108 A teoria psicanalítica junguiana faz referência às sombras como aqueles aspectos obscuros da
personalidade com os quais temos pouco ou nenhum contanto, de modo que elas se mantêm inconscientes.
À guisa de ser um compêndio para os iniciantes em tais leituras, vale à pena conferir em Teorias da
Personalidade de Fadiman e Frager como também em Teorias da Personalidade de Hall, Lindzey e
Campbell os bem elaborados capítulos acerca das teorias psicanalíticas junguiana e freudiana. Para um
151
alma. Para Agostinho, em toda esta inspeção, a razão torna-se instrumento para o seu
desdobramento.
O homem é, portanto, um ser histórico e situado, inserido num tempo
determinado, onde cada um em particular precisa encontrar o “si mesmo”, ou seja, o seu
sentido no mundo. Enquanto maravilha da criação, precisa encontrar-se nesta sua
estrutura constitutiva. Do contrário, vai estar apenas “jogado no mundo”, no dizer dos
existencialistas modernos. Na compreensão agostiniana, o homem tem, portanto, uma
essência, uma estrutura e ela vai se constituindo num diálogo, uma vez que sua essência
é trinitária – porque Deus é trinitário – e é próprio da Trindade viver em koinonia
(κοινωνία)109. Portanto, numa dialogicidade interpessoal, pois ao esboço deste diálogo
com Deus, encontramos um Outro que se nos responde.
Considerações finais
O texto do nosso autor reflete este encontro com Deus que, por sua vez, desemboca
num processo de amadurecimento e encontro consigo mesmo. Nas suas Confissões, este
relato se dá de forma pungente e traz-nos diversas situações deste seu drama existencial.
Entre elas, a descrição angustiante do roubo de umas peras110 que poderia passar para o
leitor como um julgamento extremamente severo de si mesmo, mas que traduz esta sua
inquietante interpelação diante de Deus, visto retrospectivamente num momento em que
o seu maior desejo é corresponder a este Outro. O pesar com que se confessa parece-nos
mortificante, se não levarmos em conta o caráter apaixonado de Agostinho, por demais
expressivo, sobretudo nesta sua obra, que é o texto por excelência carregado de
subjetividade e, consequentemente, de uma poética sem par entre os seus escritos. O
contexto de sua obra é, portanto, de caráter apologético ao cristianismo, do qual é defensor
apaixonado e donde retira todo o desdobrar de sua antropologia, cosmologia, ontologia,
bem como de sua ética, considerando uma ordem originária que subjaz à Criação.
maior conhecimento da teoria psicanalítica freudiana, recomendamos Noções Básicas de Psicanálise que
nos traz elementos essenciais desta teoria. 109Termo grego que significa comunhão. Ver o Livro V, de A Trindade e sua referência à característica de
pessoa com a qual se constitui a Trindade e as relações que se estabelecem entre estas pessoas
reciprocamente. 110 Confissões, Livro II, 4,9.
152
Aproximadamente vinte e cinco anos depois do episódio do roubo das peras, Agostinho
torna-se bispo de Hipona, no ano 395 da era cristã.
No sentido de favorecer uma perspectiva panorâmica da nossa exposição,
trazemos em seguida uma breve cronologia ligeiramente modificada de Os Pensadores:
Cronologia:
Nasc.: 13/11/354, em Tagaste, cidade da atual Argélia.
Morte: 430.
313: Imperador Constantino: Edito de Milão; liberdade de culto aos
cristãos.
365 aos 10 anos: estuda em Madaura.
369, aos 14, 15 anos volta para Tagaste. Episódio do roubo das peras.
370, aos 26 anos: estuda em Cartago, também Norte da África.
372: nasce seu filho Adeodato.
384: início da tradução da Bíblia para o latim, por são Jerônimo.
386: conversão (32 anos), escreve “Contra os Acadêmicos”, “A Vida
Feliz”, “A ordem” e “Solilóquios”.
387, aos 33 anos: “A Imortalidade da Alma”.
391, aos 37 anos: presbítero de Hipona.
395, aos 41 anos: bispo de Hipona.
397 a 398: Confissões (42/43 anos).
Em mais ou menos 405 (aos 51 anos) escreve “A Instrução dos
Catecúmenos”.
400 a 416: A Trindade.
413: começa a escrever “A Cidade de Deus”.
São transcorridos 16 séculos até os nossos dias.
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VALVERDE, José Maria. História do pensamento: das origens à idade média. São
Paulo: Nova Cultural. 1987. v. I.
154
VIDA CONSAGRADA E NOVAS FRONTEIRAS:
desafios à frente
Tiago Santos da Silva111
INTRODUÇÃO
A semente antes de crescer para cima ela cresce para baixo, buscando fincar raízes
para manter-se segura e ainda buscar a seiva que a manterá viva, no mais profundo da
terra. Nossa reflexão tem o objetivo de apresentar alguns aspectos da caminhada da VC
nos últimos anos, tendo em vista a celebração dos cinquenta anos de promulgação do
decreto Perfectae Caritatis e o anúncio do ano da vida consagrada, convocado pelo Papa
Francisco. Buscando perceber nos rastros da história e no momento presente, desafios e
possibilidades para uma VC que se pretende sinal do Reino, dentro de uma sociedade em
transformação. Apontamos alguns desafios que interpelam os consagrados, e alguns
sinais de revitalização nas experiências de quem vive tal modo de vida.
Os desafios devem nos provocar e interpelar, e não encher de medo ou fazer-nos
recuar. A parábola da semente (Mt 13, 1 – 9) e do fermento (Mt 13, 33) nos mostram que
tanto um como o outro fazem crescer mas sem barulho, no silêncio fecundo e operante.
Diz um provérbio popular que ‘é mais fácil perceber a queda de uma árvore, do que
perscrutar o crescimento de muitíssimas sementes que brotam em silêncio’. Assim a VC
vai perfazendo seu caminho de maneira, porém atuante, profética.
1. Perfectae Caritatis: 50 anos.
Celebrando os cinquenta anos de encerramento do Concílio Ecumênico Vaticano
II, fazemos memória da aprovação do decreto Perfectae Caritatis (PC), que trata da
atualização dos religiosos.
Cinquenta anos, aponta, para um caminho percorrido. Aparentemente longo, e
relativamente curto, pois apesar de denotar anos e anos de caminhada, aplicado a uma
instituição, parece-nos quase indiferente, pois estas, parecem imunes ao tempo.
111 Tiago Santos da Silva. Frade capuchinho, estudou Filosofia no INSAF – Instituto Salesiano de
Filosofia e Teologia na UNICAP – Universidade Católica de Pernambuco. E-mail:
155
Entretanto, as instituições não existem por si só, elas são formadas por pessoas, que a ela
se agregam e as dirigem. Estas, sim, são filhas do tempo presente e geralmente não se
‘conformam’ com o simples “dado”, mas buscam a seu tempo e a seu modo viver e
transformar cada segundo.
Revisitar Perfectae Caritatis é assim fazer memória de um acontecimento na
instituição e, por conseguinte, na vida daqueles que a fazem. Esta memória que não é
simples lembrança, mas uma atualização de um projeto de vida é significativa quando é
acolhida e levada adiante como propósito a ser atingido, seja individualmente, seja
coletivamente.
O documento conciliar é fruto de um contexto social e religioso de busca de
diálogo e renovação por parte da Igreja para com a sociedade moderna. De modo que não
pode ser lido isoladamente, mas tem que ser compreendido no conjunto dos documentos
conciliares. Cleto Caliman (2012, p. 19) nos aponta ainda que haviam diferentes linhas
de compreensão do que realmente deve ser a renovação da Vida Religiosa:
Fala-se em linguagens diferentes. Os que defendem uma abordagem
mais ascética e jurídica tendem justamente a retomar as normas
tradicionais, atualizando-as para o novo momento histórico. Os que
pretendem dar uma orientação mais teológico-espiritual são de outro
aviso. A renovação da VR se dá não no campo das normas mais sim no
campo da vida espiritual, onde se vive e se alimenta da opção
fundamental pelo caminho evangélico do seguimento de Jesus Cristo
(CALIMAN, 2012, p.19).
Temos assim que o processo de renovação, para o diálogo com o mundo moderno
foi e continua sendo não um problema, mas um desafio, uma interpelação.
O desafio de Perfectae Caritatis é ad intra e ad extra, ou seja, levar a VC a um
diálogo com o mundo, porém se autocompreendendo dentro da Igreja, pois aí também
necessita saber quem ela é. Lumen Gentium (LG) no capítulo V trata da vocação universal
à santidade, e claro que aquela compreensão de sociedade perfeita atribuída à VC é
questionada, pois que há um só caminho para santidade na Igreja: Jesus Cristo e seu
Evangelho. Assim a VR deve buscar se autocompreender e se articular com o pensamento
mais geral do Concílio (da Igreja). De modo a buscar superar a compreensão tradicional
de VC como “classe” à parte em relação aos cristãos do “mundo”.
O Decreto conciliar é um convite à atualização da VR, e este compreende ao
mesmo tempo contínuo retorno ás fontes de toda a vida cristã e a inspiração primitiva e
original dos institutos, e adaptação dos mesmos às novas condições dos tempos (PC 1).
156
Na América Latina, o processo de renovação da VC tomou um caminho
significativo, dinâmico e cheio de vida. A junção das conferências de religiosos de todos
os países do continente em março de 1959 deu origem a CLAR – Confederação Latino-
americana de religiosos- que animou e anima de forma dinâmica e criativa a VC neste
continente.
A recepção da ‘renovação conciliar’ na América Latina se dá a partir das
conferências do CELAM – Conselho Episcopal Latino Americano – e com ele a VC,
presente e atuante, tanto na “cúpula” como na base. Contudo, esta atualização não está de
todo concluída, pois que o caminho é longo, e as configurações sociais mudam cada vez
mais rápidas. Com isso não queremos afirmar que a VC deva seguir a lógica dos
paradigmas sociais, porém, não se pode pensar em anunciar o Evangelho sem se analisar
as possibilidades que a cultura local e atual oferece.
2. Ano da Vida Consagrada: textos e contextos.
Em âmbito católico o ano de 2013 foi de fato surpreendente. Bento XVI, um papa
teólogo, ex-prefeito da congregação para a Doutrina da fé, participante do Concílio
Vaticano II, eleito papa em 2005 para suceder João Paulo II, de quem foi fiel
companheiro, agora renuncia.
As perguntas começam: quem será o novo papa? Que linha irá seguir? Que
repostas tem para as novas perguntas? A mídia especuladora cria expectativas e faz
previsões. Mas em março, deste mesmo ano, o Espírito sopra do lado sul do mundo, e
chega Francisco. Este, trás no nome um projeto de Igreja, e suas atitudes lembram-nos a
figura carismática do poverello de Assis. Chega exalando simplicidade, desde o vestir às
opções que vem fazendo, aos escritos.
Ele, Jesuíta, lança o ano da VC - 30 de novembro 2014 a 02 de fevereiro de 2016
– e com essa iniciativa quer chamar os religiosos a um maior aprofundamento, nas raízes
cristãs e em seus carismas fundacionais, e ainda a uma adaptação aos tempos de hoje,
como pede o decreto Perfectae Caritatis.
A quem defina o contexto atual da VC como um contexto de crise. Crise de
vocações, das instituições, da falta de sentido, de ‘identidade’. Alargando a visão diz-se
que estamos em uma crise que atinge toda a sociedade, a Igreja e por conseguinte a VR.
Acreditamos porem, que talvez não seja uma crise na VR, mas sim no modelo que se
configurou como ‘o modelo de VR’. E somos de acordo que se estamos em um momento
157
de crise, este é propício ao crescimento, deixando de lado práticas obsoletas e buscando
balizas que ajudem a encontrar novas maneiras de ‘Ser’ vida religiosa nos tempos atuais.
Contribuindo na evangelização e encontrando respostas ás novas perguntas.
As aberturas oferecidas pelo Concílio geraram coisas boas, novidades, caminhos
se abriram, mas também o desfazer-se de práticas até então entendidas como as ‘corretas’,
abertura a mundos diferentes, mudança de lugar social, ‘refundação’ de muitos institutos,
releitura das regras e/ou constituições. De modo que essa vida religiosa, sem deixar de
sê-lo, muda a roupagem e se “embrenha” nas novas veredas da história, como uma ponta
de lança, que vai abrindo passagens ao novo que chega.
O papa convida os religiosos ao ano da Vida Consagrada com três escritos:
Alegrai-vos, Perscrutai e Às pessoas consagradas. Pontuamos alguns aspectos de cada
um deles:
Alegrai-vos: A palavra é na verdade um verbo, que dependendo de como
se lê teremos um caminho a percorrer. A exclamação no final daria uma
conotação de convite, de ânimo. A interrogação, certamente nos
questionaria: alegrar-se com quê? Para quê? Porém se a lermos com um
ponto final, ela pode ser um imperativo carregado de sentido e de vida.
Logo em seguida ele lança as expressões exultai, regozijai-vos. É palavra
de ânimo, encorajamento.
Perscrutai: Outro verbo provocativo. Estar atentos aos ‘sinais dos
tempos’, a escuta de Deus em tempos tão confusos. Em êxodo obediente e
na esperança continua do advento, como uma vigília vigilante. No meio
da orquestra escutar o instrumento principal. Perceber nas realidades,
aparentemente mais duras e sem sentido, os sinais d reino. E indica como
norte de compreensão a “ventania” provocada pelo Espírito do Concílio
Vaticano II.
Às pessoas Consagradas: Os objetivos são diretos: olhar com gratidão o
passado, viver com paixão o presente e abraçar com esperança o futuro. A
expectativa é de que onde estão os religiosos, aí está a alegria, pois estes
são chamados a mostrar que Deus é capaz de preencher seu corações. Daí
a alegria. Os religiosos são convocados a serem peritos em comunhão, a
158
promoverem a vida, a desempenhar seu profetismo em meio a tantas
injustiças. E brota o apelo: espero que desperteis o mundo, por que a nota
característica da VR é a profecia.
3. A Vida Consagrada desafiada em um mundo plural, porém, prenhe de
possibilidades.
O tempo que chamamos hoje é quase indizível. São tantas palavras ou frases que
querem definir ou pelo menos dizer algo sobre a realidade que vivemos que as vezes cria-
se mais confusão que pistas para entender a realidade. Alguns falam de tempos líquidos,
era do vazio, pós-modernidade, modernidade tardia, fragmentação da modernidade, e de
maneira mais geral contrapondo os paradigmas anteriores – cosmocentrísmo,
teocentrismo, antropocentrismo - a quem fale em paradigma da complexidade.
O período moderno com o advento de uma razão que se propõe absoluta, entra em
crise. Crise na política, na economia, nas religiões, etc, e o ‘projeto’ de modernidade
parece obsoleto, contudo a quem aponte que o que há de fato são novas perguntas que
carecem respostas novas, pois o ‘paradigma da modernidade’ ainda não foi superado
(BRIGHENTI, 2015, p. 24).
Nesse contexto em ebulição, temos a compreensão de um mundo cada vez mais
plural. Que por um lado nos parece algo muito positivo, pois é o mundo das
possibilidades, e com isso não se está travado, mas cada espaço, cada dia se apresenta
como uma folha de papel onde se pode escrever a história de vários ângulos, e por
caminhos diversos. Por outro lado, passa-nos a ideia de fragmentação, liquidez. Nada
parece oferecer certeza. Verdades que se pretendiam absolutas, são relativizadas em nome
dos mais diversos argumentos. ‘As vezes chega-se a passar a imagem de que tudo pode e
nada pode’. Tudo “é” e nada “é”.
Outro aspecto que trazemos é que enquanto sociedade, Igreja, VC, estamos diante
de uma dinâmica de busca da identidade e de reconhecimento da alteridade, que, ao invés
de nos assustar, deve nos interpelar, desafiar a, em meio a essa ‘tempestade’ de situações
e propostas encontrar pistas para uma vivência fraterna, mais ética, mas tolerante, mas
fraterna. Como VC cabe-nos o discernimento, pois, na transitoriedade das realidades
humanas, onde, como e quando Deus se deixa experimentar em nosso dia-a-dia
(LIBANIO, 1994, p. 86).
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Em meio a essa ‘tempestade’ encontra-se a VC no seio da Igreja, servindo e
testemunhando o Reino de Deus no mundo. Também ela é desafiada, seja por sua natureza
mesma, pois que nasce e renasce ao longo da história em momentos singulares e para dar
respostas às realidades mais diversas, seja pelas exigências do momento atual.
Pontuamos a seguir alguns desafios ou fronteiras que se colocam ante a VC, e
também sinais de que ela se refaz nos contextos mais diversos.
O primeiro é o universo urbano. Este, aqui entendido como conceito cultural e não
meramente geográfico. A cultura do século XXI, majoritariamente urbana, penetra em
todos os espaços da vida humana, direta ou indiretamente. Essa cultura urbana traz como
características a transitoriedade, o novo, a moda, o espetáculo, a multidão e
paradoxalmente o solitário. Claro que a atitude da VC ante tal realidade, não pode ser a
de diluir-se nesta realidade, nem tampouco negá-la, mas antes buscar aí pistas,
possibilidades de diálogo. Buscar pontos convergentes.
Nesta mesma linha de compreensão, temos o segundo elemento que são os povos
em movimento. Óbvio que os seres humanos são seres de movimento, pois, desde os
povos primitivos que eram nômades, aos que buscam viver em lugares onde a vida lhes
parece mais afável, as pessoas movem-se seja em busca de viver ou de sobreviver.
Contudo em nossa realidade há uma movimentação muito maior, seja pelas facilidades
nos meios de transporte, seja pelas formas de trabalho, seja pelo clima de inquietação que
se vive hoje. Este dado não pode ser visto como algo mal de um todo, mas, deve nos
instigar a perceber aí a possibilidade de uma VC que se coloca a serviço de transeuntes,
que na maioria das vezes, na busca por viver e sobreviver, buscam também sentido para
suas vidas. Alimentam na sua transitoriedade a fé em Deus, e descobrem novas maneiras
de vivê-la.
Em meio a esse ‘vai e vem’ percebem-se os choques entre compreensões até então
muito válidas e situações novas – com perguntas novas – que tomam de assalto o homem
e a mulher da atualidade. Percebemos assim que, realidades como a família e a juventude
parecem se redesenharem ante nossos olhos, e ainda levantam problemáticas até então
conciliáveis. Pais que tem que trabalhar para dar uma vida ‘digna’ aos filhos, e com isso
gerando a ausência na formação destes. Filhos – crianças e jovens – com o tempo tão
cheio de atividades que mal sobra tempo para a convivência familiar. A ‘desestruturação
familiar’, seja pelas separações matrimoniais, seja pela crise ética e moral pela qual passa
a sociedade como um todo. A vida religiosa na sua missão de apostolado vê-se desafiada
160
a acompanhar esses processos de mudanças familiares e juvenis, até mesmo por que os
que buscam a VC vêm dessa realidade.
Outro aspecto que provoca, não só a VC, mas a Igreja e claro toda a sociedade, é
o da ecologia. Aqui entendida como a perca de um equilíbrio das forças da natureza com
a humanidade. Do ponto de vista cristão, o cuidado com a criação é um elemento chave
da auto compreensão do humano que tem uma missão neste mundo. Cuidar da criação de
Deus. E no tocante a VC, a de se questionar a dimensão solidária do voto de pobreza, para
com o cuidado da criação, especialmente no tocante a vida e projetos que muitos
religiosos buscam implementar.
Dois aspectos ainda, que interpelam à VC são a metodologia e linguagem na
evangelização. Como já pontuamos, as mudanças na sociedade têm sido cada vez mais
frequentes, e com isso a missão da Igreja e da VC, vê-se provocada a se ‘reinventar’, não
que deva deixar de anunciar Jesus e seu Reino, mas deve buscar meios eficazes que
proponham a boa nova de Jesus em linguagem condizente com os tempos atuais. Os
métodos de evangelização necessitam serem repensados, pois, passamos de uma
sociedade rural, a uma sociedade urbana, não só geograficamente, mas também
culturalmente.
Nessa compreensão da necessidade de mudanças, percebemos, por exemplo, a
grande influência que exercem hoje os meios de comunicação, em todas as instâncias da
vida humana. Não seria exagero dizer que já vivemos na era digital. E claro, também aí
há de se evangelizar, pois que é um espaço rico de possibilidades, e que provoca à VC a
inserir-se nesse meio e aí ser sinal. Um exemplo, o uso da palavra comunidade, que no
contexto de VC tem um sentido bem significativo, hoje é utilizada nas redes sociais de
modo virtual às vezes sem muito comprometimento. A VC é interpelada a ser sinal em
meio a nova mídia até mesmo por que esta hoje infelizmente encontra-se
instrumentalizada de forma a não contribuir para a formação integral da pessoa humana,
e mais ainda há uma ‘espetacularização da fé’, esta transformada em ‘comércio sagrado’.
Como aspectos mais ad intra VC em meio a esta realidade complexa, destacamos
três elementos apontados pela Ir Annette Havenne (2015, p. 352) como sinais de uma VC
que, apesar de está “mudando” a roupagem dá sinais de vitalidade: a missão, a
fraternidade e a espiritualidade.
Transcrevemos o texto quase literalmente, pois este foi fruto da escuta de
religiosos jovens, e somos de acordo que este não é abstração reflexiva de nossa parte
mais, relatos de experiências de quem vive a VC nos mais diferentes espaços.
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No tocante a missão, os jovens apontaram que ir aos mais distantes e esquecidos,
ver seus rostos transfigurados ao final de cada encontro, sentir a confiança das pessoas,
visitar suas casas, escutar, ‘perder tempo com pessoas humildes’, ser presença que faz
diferença, evangelizar (HAVENNE, 2015, p 352) são sinais da vitalidade da VC. Ela vai
deixando de ser importante pelas estruturas que tem e passa a fazer a diferença por aquilo
que se é, que se vive.
Referente a fraternidade, aqui com um corte ainda mais interno, pois que refere-
se a vivencia e convivência dos religiosos entre si, o jovens, apontam: a comunidade
religiosa com sua dinâmica interna – oração, refeição, partilha de vida em comum -, as
relações dessa comunidade com o povo, a CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil)
com as experiências de intercongregacionalidade [...]. Mesmo em meio as dificuldades,
aos conflitos, as crises pessoais, a uma doação em prol do mesmo objetivo, há ânimo
diante das adversidades (HAVENNE, 2015, p. 352).
A espiritualidade como força que move e alimenta os religiosos em sua
caminhada, é assinalado pelos jovens religiosos nos seguintes aspectos: a experiência da
oração, permanecer com Jesus, acolher e viver sua Palavra, a Eucaristia, o sentido e o
desejo de doar a vida, a afinidade com o carisma, são elementos que perfazem o dia-a-dia
de uma VR que se atualiza nos tempos atuais sem perder o elã fundacional (HAVENNE,
2015, p. 353).
CONCLUSÃO
Buscando arrematar o que refletimos até aqui, sem com isso concluir a reflexão,
sinalizamos que o momento presente é um convite a olhar as nossas realidades de VR,
fazer uma leitura crítica e entusiasmada das realidades que nos cercam, e buscar com
esperança, caminhos de renovação e atualização desta realidade eclesial.
O Evangelho e as primeiras comunidades de VR são modelos normativos que
devem ser luz para uma releitura profunda e fecunda de nossas intuições fundacionais. A
celebração dos cinquenta anos do Concilio é um convite à releitura de Perfectae Caritatis,
como uma provocação a olhar para Cristo e para humanidade com paixão.
O Ano da VC é momento de celebrar a caminhada até aqui traçada, mas também
a possibilidade de redesenhar e resignificar projetos e sonhos. É tempo de escuta atenta e
decisão no Espírito para uma vida apaixonada por Jesus.
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Uma VR marcada pelas realidades mais diversas, porém com um objetivo claro,
vai buscando ser sinal nas mais diversas realidades, como já pontuamos anteriormente. A
crise torna-se momento de avaliação, de repensar as estruturas e as atividades que se tem
por objetivo, frente às necessidades do Reino.
Sugerimos assim uma releitura das parábolas do reino, isto é, buscar aí sinais de
vida e de esperança, pois estas são imagens de transformação que primam pela vitalidade.
Essas parábolas movem-se não na lógica do fracasso ou do sucesso, pois que são sempre
relativos, mas na lógica do dar frutos. Daí temos as parábolas do tesouro Mt 13, 44; da
ovelha perdida Lc 15, 6; da moeda perdida Lc 15, 9; do parto Jo 16, 21; do Pai amoroso
Lc 15, 32; do servo fiel Mt 24, 46; da videira Jo 15, 5. 11. Todas elas têm em comum a
alegria. De que o convite permanece: Alegrai-vos, pois onde estão os religiosos aí está a
alegria (Papa Francisco).
REFERÊNCIAS
BIBLIA. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus,
2002.
BRIGHENTI, A. A ação pastoral em tempos de mudança: modelos obsoletos e balizas de
um novo paradigma. In: Revista Vida Pastoral. São Paulo: Paulus, março/abril 2015, p.
23 – 34.
CALIMAN, C. Perfectae Caritatis: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012.
FRANCISCO. Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus/ Loyola, 2013.
___________Perscrutai. São Paulo: Paulinas, 2014.
___________ Às pessoas Consagradas. São Paulo: Paulinas, 2014.
___________ Alegrai-vos. São Paulo: Paulinas, 2014.
HAVENNE, A. Uma vida religiosa consagrada em meio às novas pobrezas. In: Revista
convergência. Brasília: maio, 2015, p. 351 – 360.
LIBANIO, J.B. A vida religiosa e a sociedade moderna urbana: ainda em torno de santo
Domingo. In: Revista Convergência. Rio de Janeiro: março, 1994 p. 86 – 95.