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7/14/2019 10.-Entrevista-a-René-Girard http://slidepdf.com/reader/full/10-entrevista-a-rene-girard 1/15 Pensamento apocalíptico após o 11 de Setembro – entrevista a René Girard ROBERT DORAN *  René Girard é um filósofo, historiador e crítico literário francês, sendo um dos maiores pensadores contemporâneos sobre o sagrado e a sua relação com a violência.  Esta entrevista foi publicada em 2008, em inglês, na revista SubStance  , 115, vol. 37 (1). A conversa decorreu a 10 de Fevereiro de 2007, na casa do professor Girard em Stanford, na Califórnia. A 8 de Agosto de 2007, foi feita uma breve entrevista de seguimento, também em sua casa. Comunicação & Cultura, n.º 11, 2011, pp. 159-173 _______________ * Professor de Francês e de Literatura Comparada da Universidade de Rochester.

10.-Entrevista-a-René-Girard

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  • Pensamento apocalptico aps o 11 de Setembro entrevista a Ren GirardRObERt DORAN *

    Ren Girard um filsofo, historiador e crtico literrio francs, sendo um dos maiores pensadores contemporneos sobre o sagrado e a sua relao com a violncia.Esta entrevista foi publicada em 2008, em ingls, na revista SubStance, 115, vol. 37 (1). A conversa decorreu a 10 de Fevereiro de 2007, na casa do professor Girard em Stanford, na Califrnia. A 8 de Agosto de 2007, foi feita uma breve entrevista de seguimento, tambm em sua casa.

    Comunicao & Cultura, n. 11, 2011, pp. 159-173

    _______________* Professor de Francs e de Literatura Comparada da Universidade de Rochester.

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    Pouco depois dos ataques de 11 de Setembro de 2001, deu uma entrevista ao dirio francs Le Monde, em que afirmou que o que est a acontecer hoje uma rivalidade mimtica a uma escala planetria1. Esta obser-vao parece ser agora mais verdade do que nunca. Todas as evidncias apontam para uma continuao e uma intensificao do conflito mim-tico: as guerras no Afeganisto e no Iraque, os atentados em transportes pblicos em Madrid e em Londres, mesmo os incndios de carros nos subrbios de Paris, no lhes so alheios. Como v os acontecimentos de 11 de Setembro em retrospectiva?Penso que a sua afirmao est correcta. E gostaria de comear por fazer alguns comentrios sobre esse mesmo ponto. Parecia impossvel naquele momento, mas penso que muitas pessoas esqueceram o 11 de Setembro. No por completo, mas reduziram-no a uma espcie de norma silenciada. Quando dei essa entrevista ao Le Monde, todos concordaram em que era um acontecimento bastante raro, novo e incomparvel. E agora penso que muita gente no iria concordar com essa afirmao. Infelizmente, nos Estados Uni-dos, devido guerra no Iraque, a atitude relativa ao 11 de Setembro foi afec-tada pela ideologia. Enfatizar o 11 de Setembro tornou-se conservador e alarmista. Aqueles que querem acabar imediatamente com a guerra no Iraque tendem a minimiz-lo. No quero com isto dizer que estejam errados ao quererem acabar com a guerra no Iraque, mas deviam ter muito cuidado e considerar a situao no seu todo antes de reduzirem a importncia do 11 de Setembro. Hoje, esta tendncia est muito generalizada, porque os acontecimentos a que se refere, que ocorreram depois do 11 de Setembro e que so de certo modo vagamente evocativos deste acontecimento, foram incomparavelmente menos poderosos, menos espectaculares e por a adiante. E, por conseguinte, h todo um problema de interpretao: o que o 11 de Setembro?

    V pessoalmente o 11 de Setembro como uma espcie de ruptura, de acontecimento seminal?Sim, vejo-o como um acontecimento seminal, e fundamentalmente errado minimiz-lo hoje. O desejo, normal, de ser optimista, de no ver a singulari-dade do nosso tempo do ponto de vista da violncia, o desejo de se agarrar a qualquer bia de salvao para fazer o nosso tempo parecer a mera conti-nuao da violncia do sculo xx.Pessoalmente, penso que representa uma nova dimenso, uma nova dimen-so mundial. O que o comunismo estava a tentar fazer ter uma guerra

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    verdadeiramente global aconteceu, e agora real. Minimizar o 11 de Setembro tentar evitar pensar como eu penso sobre a importncia desta nova dimenso.

    Acabou de fazer uma referncia Guerra Fria. Como faria uma compa-rao das duas ameaas ao Ocidente?As duas so similares na medida em que representam uma ameaa revolu-cionria, uma ameaa global. Mas a ameaa presente vai para alm at da poltica, uma vez que h um aspecto religioso. Por conseguinte, a ideia de que poderia haver um conflito mais total do que o concebido pelos povos totalitaristas, como a Alemanha nazi, que se iria tornar de certo modo a pro-priedade do islo, algo totalmente fabuloso, muito contrrio ao que todos pensavam acerca da poltica. Isto exige uma quantidade imensa de pensa-mento, pois no h nenhuma reflexo correspondente sobre a coexistncia de outras religies com o islo, e em particular o cristianismo. O problema religioso o mais radical, na medida em que vai para l da diviso ideolgica, que, claro est, muitos intelectuais hoje no querem abandonar. E se este o caso, ento as nossas reflexes permanecero superficiais no que respeita ao 11 de Setembro. Temos de estar dispostos a pensar num contexto mais amplo, e na minha opinio este contexto mais amplo a dimenso apocalp-tica do cristianismo. A dimenso apocalptica do cristianismo uma ameaa porque a prpria sobrevivncia do planeta est em causa. O nosso planeta est sujeito a trs ameaas, todas criadas pelo Homem: a ameaa nuclear, a ameaa ecolgica e a manipulao biolgica da espcie humana. A ideia de que no se pode confiar no Homem e nos seus poderes tanto verdade no campo biolgico como no campo militar. Assim, uma ameaa tripla de propores globais que tomou forma no ltimo sculo.

    Volto dimenso apocalptica num momento. Num livro recente, Zbig-niew Brzezinski (consultor de Segurana Nacional do presidente Car-ter) escreve: Por trs de quase todos os actos terroristas esconde-se um problema poltico. [...] Parafraseando Clausewitz, o terrorismo poltica por outros meios.2 Embora possa ter outras motivaes, no o terro-rismo sempre em parte poltico, na medida em que, seja qual for o alvo real, ele sempre em ltima anlise dirigido aos governos?Bem, penso que no sequer por outros meios. O terrorismo uma forma de guerra, e a guerra poltica por outros meios. Nesse sentido, o terrorismo poltico. Mas o terrorismo a nica forma possvel de guerra perante a

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    tecnologia. O maior mistrio do que est a acontecer agora no Iraque a con-firmao deste facto imensamente importante. A superioridade do Ocidente a sua tecnologia, e esta revela nada ser no Iraque. claro que eles se pem na pior situao possvel ao dizerem que ns iramos transformar o Iraque numa democracia jeffersoniana o que foi a coisa mais estpida para dizer! Isto precisamente o que eles no podem fazer; eles so impotentes perante o islo. A diviso entre sunitas e xiitas infinitamente mais importante. Eles conseguem lutar uns contra os outros exactamente no mesmo momento em que esto a lutar contra o Ocidente, o que verdadeiramente espantoso. Por-que que o Ocidente se deveria envolver neste conflito dentro do islo? Ns nem sequer o compreendemos. A ns parece-nos um ressurgimento da que-rela entre jansenistas e jesutas. Ns no vemos como isto enormemente poderoso no mundo islmico.

    a nossa incompreenso do papel da religio? incompreenso do papel da religio e incompreenso do nosso prprio mundo, da debilidade das coisas que nos unem; pois, quando invocamos os nossos princpios democrticos, estamos a falar de coisas como igualdade e eleies, ou de capitalismo, consumo, comrcio livre e por a fora? Pode dizer- -se que nos prximos anos o Ocidente vai ser testado. A questo como rea-gir o Ocidente: de maneira forte ou fraca? Ir dissolver-se? O Ocidente devia comear a pensar se tem realmente princpios, se so cristos ou puramente consumistas. O consumismo no tem qualquer influncia sobre aqueles que se envolvem nestes ataques suicidas. sobre isto que a Amrica devia estar a pensar, porque a Amrica tem estado a expandir-se pelo mundo, dando a todos aquilo que consideramos mais sedutor do que qualquer outra coisa. Ser que no funciona mesmo nos povos muulmanos? Por outras palavras, ser que eles fingem que no funciona? Ser ressentimento? Tero eles um mecanismo de defesa bem organizado contra isso? Ou a sua viso religiosa de certo modo mais autntica e poderosa? Este o verdadeiro problema.

    A sua interpretao original foi de que o 11 de Setembro tinha aconte-cido devido a ressentimento.Sou muito menos assertivo do que fui na altura do 11 de Setembro, quando defendi um total ressentimento como razo. Lembro-me de que fiquei fas-cinado numa reunio na cole Polytechnique, em que concordei a cem por cento com Jean-Pierre Dupuy acerca da interpretao de ressentimento do mundo muulmano. Mas agora, no penso que seja suficiente. Pode o

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    ressentimento motivar esta capacidade para morrer daquele modo? Pode-ria o mundo muulmano realmente ser indiferente cultura de consumo em massa? Talvez. No sei. Talvez seja excessivo atribuir-lhes uma inveja disso. Se os islamitas esto realmente numa de domnio do mundo, ento esto para alm disso. No sabemos se ir dar-se uma espcie de industria-lizao rpida no mundo muulmano, ou se vo tentar ganhar com base no crescimento demogrfico e no fascnio que exercem. H cada vez mais con-verses no Ocidente. O fascnio pela violncia desempenha seguramente um papel.

    Mas a interpretao do ressentimento parecia lgica tendo em conta o seu pensamento.H aqui ressentimento, claro. E isto que ter incitado aqueles que aplau-diram os terroristas, como se estivessem num estdio. Isso ressentimento. bvio e inegvel. Mas essa a nica fora? essa a principal fora? Poder ele por si s conduzir aos ataques suicidas que vemos? No tenho a certeza. Tambm verdade que a riqueza acumulada no Ocidente, em comparao com o resto do mundo, um enorme escndalo, e que o 11 de Setembro no alheio a este facto. Por isso, eu no quero abandonar por completo a ideia do ressentimento. O factor ressentimento certamente considervel, mas no pode ser a nica explicao.

    E a outra fora?A outra fora seria religiosa. Al contra o consumismo e por a adiante. O que o muulmano v na realidade que os rituais religiosos de proibi-o so uma fora que mantm a comunidade unida o que desapareceu por completo ou est a desaparecer no Ocidente. As pessoas no Ocidente s esto unidas pelo consumismo, por bons salrios, etc. Os muulmanos dizem: As vossas armas so terrivelmente perigosas, mas como povo sois to dbeis que a vossa civilizao pode ser facilmente destruda. assim que eles pensam, e podem no estar totalmente errados. Penso que h algo de certo nisto. Em ltima anlise, penso que a viso crist de violncia ir superar tudo, mas podemos considerar isto um grande teste.

    No seu contributo para este volume [SubStance, 115, vol. 37], Jean-Pierre Dupuy chama ao 11 de Setembro um verdadeiro sacrif cio, no sentido antropolgico do termo3. Pode pensar-se no 11 de Setembro de acordo com uma lgica de sacrif cio?

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    Quero ser muito prudente ao responder a esta questo. Temos de ter cuidado para no justificarmos o 11 de Setembro chamando-lhe sacrificial. Penso que Jean-Pierre Dupuy no o faz. Ele mantm uma espcie de neutralidade. O que ele diz sobre a natureza sagrada do Ground Zero , penso eu, perfei-tamente justificado. No entanto, eu gostaria de citar um ensaio perspicaz de James Alison, que escreveu precisamente sobre este assunto:

    E imediatamente o centro sacrificial comeou a gerar o tipo de reaces que suposto os centros sacrificiais gerarem: um sentimento de unanimidade e pesar. [...] Comearam a aparecer expresses querendo dizer que Agora somos todos americanos um sentimento puramente fictcio para a maioria de ns. Foi espantoso observar o sentimento de unio a intensificar-se volta do centro sagrado, rapidamente consagrado como Ground Zero, um sentimento que iria consolidar-se nas horas seguintes no agitar da bandeira, um enorme recrudes-cimento dos servios e observncias religiosas, os lderes religiosos subitamente levados a srio, velas, santurios, oraes, todos os acessrios da religio da morte. [...] E havia o pesar. Como gostamos do pesar! Faz-nos sentir bons e ino-centes. Era a isto que Aristteles se referia com catarse, e tem ecos profunda-mente sinistros de razes de tragdia dramtica no sacrif cio. Um dos efeitos do sagrado violento volta do centro sacrificial fazer os presentes sentirem-se jus-tificados, sentirem-se bem moralmente. Um bem contrafactual que subitamente nos tira das nossas pequenas traies, dos actos de cobardia, das conscincias desconfortveis.4

    Penso que James Alison tem razo ao falar de catarse [ktharsis] no con-texto do 11 de Setembro. A noo de catarse tremendamente importante. As pessoas pensam que uma palavra aristotlica. No verdade. uma palavra religiosa. Na realidade, significa purga, no sentido de purificao. Na Igreja Ortodoxa, por exemplo, katharos significa purificao. a palavra que exprime o efeito positivo da religio. A purga torna-nos puros. o que suposto a religio fazer, e f-lo com sacrif cio. Considero o uso da pala-vra catarse por parte de Aristteles pura genialidade. Quando as pessoas condenam a teoria mimtica, no vem o suporte formidvel que tem em Aristteles. Aristteles parece estar a falar s de tragdia, mas o teatro tr-gico simplesmente sacrif cio reinterpretado como drama. por isto que se chama a ode ao bode5. Aristteles sempre convencional nas suas expli-caes, convencional no melhor sentido. Um grego muito inteligente, procu-rando justificar a sua religio, iria, penso eu, usar a palavra catarse. Assim, na minha resposta a esta questo, poria uma enorme nfase na catarse e no entendimento aristotlico do termo.

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    Certamente o aspecto espectacular do 11 de Setembro sugere uma rela-o anloga com o teatro. Mas com o 11 de Setembro podamos ser todos testemunhas de um acontecimento real enquanto este acontecia. Sim, com o 11 de Setembro havia televiso. A televiso torna-nos presentes na cena, intensificando assim a experincia. O acontecimento foi en direct, como se diz em francs. No sabamos o que ia acontecer em seguida. Vi o segundo avio a atingir o edif cio no como uma repetio mas como um acontecimento ao vivo. Foi como um espectculo trgico, mas ao mesmo tempo real. Se no o tivssemos vivido no sentido mais literal, no teria tido o mesmo impacto. Penso que se tivesse escrito Violence and the Sacred depois do 11 de Setembro, muito provavelmente teria includo o 11 de Setem-bro neste livro6. Este o acontecimento que possibilita uma compreenso do acontecimento moderno, pois torna o arcaico mais inteligvel. O 11 de Setembro representa um estranho retorno do arcaico dentro do secularismo do nosso tempo. No h muito tempo, as pessoas teriam tido uma reaco crist ao 11 de Setembro. Agora tm uma reaco arcaica, que no pressagia bem para o futuro.

    Voltemos dimenso apocalptica. O seu pensamento geralmente con-siderado pessimista. V o 11 de Setembro como uma indicao do cami-nho para um futuro apocalptico?O futuro apocalptico no algo histrico. algo religioso e, como tal, algo de que no se pode abrir mo. Isto o que os cristos modernos no com-preendem. Porque, no futuro apocalptico, os bons e os maus esto mistu-rados de tal forma que, de um ponto de vista cristo, no se pode falar de pessimismo. somente ser cristo. dizer que todos os textos pertencem mesma totalidade. Para compreender isto, basta citar a Primeira Carta aos Corntios: se os poderes, os poderes deste mundo, tivessem sabido o que iria acontecer, nunca teriam crucificado o Senhor da Glria, porque tal sig-nificava a sua destruio. Porque quando se crucifica o Senhor da Glria, revelado o estratagema dos poderes, que o mecanismo do bode expia-trio. Mostrar a crucificao como o assassnio de uma vtima inocente mostrar o assassnio colectivo e possibilitar s pessoas compreenderem que se trata de um fenmeno mimtico. Por conseguinte, os poderes acabaro por ser destrudos por esta verdade. E toda a histria simplesmente a reali-zao desta profecia. Aqueles que dizem que o cristianismo anarquista tm alguma razo. Os cristos esto a destruir os poderes deste mundo, no sen-tido de que esto a destruir a legitimidade de toda a violncia. Do ponto de

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    vista do estado, o cristianismo uma fora de anarquia. Sempre que recupera a sua antiga fora espiritual, isto reaparece de certo modo. Assim, o conflito com os muulmanos , de facto, muito mais significativo do que mesmo os fundamentalistas pensam. Os fundamentalistas pensam que o apocalipse a violncia de Deus. Mas se lermos os captulos apocalpticos, veremos que o apocalipse a violncia do Homem desencadeada pela destruio dos pode-res, isto , dos estados, que o que estamos agora a ver.

    Mas este entendimento possibilita que a violncia continue noutro nvel.Sim, mas no como uma fora religiosa. A fora religiosa est do lado de Cristo, em ltima anlise. No entanto, parece que a verdadeira fora religiosa estava do lado da violncia.

    Como ser quando os poderes forem vencidos?Bem, quando os poderes forem vencidos, a violncia tornar-se- de tal ordem, que o fim vir. Se pegarmos nos captulos apocalpticos, isto que eles nos anunciam. Haver revoluo e guerras. O estado ir elevar-se contra o estado, a nao contra a nao. As contrapartes so estas. Este o poder da anarquia que temos agora, com foras capazes de destrurem o mundo inteiro. Assim, podemos ver a vinda do apocalipse de uma forma que anteriormente no era possvel. Nos princpios do cristianismo, havia algo mgico sobre o apoca-lipse. O mundo vai acabar; estaremos todos no paraso e tudo estar bem. O erro dos primeiros cristos foi acreditar que o apocalipse seria uma ocor-rncia instantnea. Os primeiros textos cristos, cronologicamente falando, so as Cartas aos Tessalonicenses e so uma resposta questo: Porque que o mundo continua se anunciaram o seu fim? Paulo afirma que h algo a reter os poderes, o katochos (algo que retm). A interpretao mais comum a de que o Imprio Romano. A crucificao ainda no dissolveu toda a ordem. Se olharmos para os captulos apocalpticos do cristianismo, estes descrevem algo como o presente caos, que no existia no princpio do Imprio Romano. Como pode o mundo acabar se controlado to firmemente pelas foras da ordem?

    Ento a revelao crist ambivalente, na medida em que tem conse-quncias positivas e negativas?Porqu negativas? Fundamentalmente a religio que anuncia o mundo futuro; no se trata de lutar por este mundo. o cristianismo moderno que se esquece das suas origens e da sua direco real. O apocalipse no incio do

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    cristianismo era uma promessa, no uma ameaa, pois eles acreditavam ver-dadeiramente no prximo mundo.

    Ento poder-se-ia dizer que pessimista num sentido a priori?Sou pessimista no sentido em que toda a gente compreende a palavra pes-simismo. Mas sou optimista no sentido em que hoje, se olharmos para o mundo presente, j se verificam todas a predies. Pode ver-se a forma do apocalipse crescer todos os dias: o poder capaz de destruir o mundo, armas cada vez mais letais e as outras ameaas que se esto a multiplicar sob os nossos olhos. Ainda acreditamos que todos estes problemas so controlveis pelo Homem, mas se olharmos para o seu conjunto, podemos ver que no assim. Adquirem uma espcie de valor sobrenatural. Como os fundamen-talistas, muitos leitores dos Evangelhos se recordam da situao do mundo quando lem estes captulos apocalpticos. Mas os fundamentalistas acre-ditam que a violncia final vem de Deus, por isso no vem a relevncia do que se est a passar agora a relevncia religiosa. Isto mostra o quo pouco cristos eles so a um certo nvel. a violncia humana que est a ameaar o mundo de hoje, e isto est em maior conformidade com o tema apocalptico nos Evangelhos do que eles se apercebem.

    No se pode dizer que fizemos um progresso moral?Mas os dois so possveis em simultneo. Por exemplo, temos menos vio-lncia privada. Olhando para as estatsticas do sculo xviii, era incrvel a violncia que ento havia, em comparao com os dias de hoje.

    Eu estava a pensar em algo como o movimento pacifista, que teria sido inconcebvel h somente cem anos.Sim, o movimento pacifista totalmente cristo, quer o saiba quer no. Mas ao mesmo tempo h um desencadear de invenes tecnolgicas que j no so travadas por nenhuma fora cultural. Jacques Maritain disse que h mais bons e mais maus no mundo a todos os momentos. Penso que esta uma excelente frmula. Por outras palavras, o mundo ao mesmo tempo mais cristo e menos cristo, constantemente. Mas fundamentalmente desorga-nizado pelo cristianismo.

    Ento o que est a dizer ope-se perspectiva humanista de algum como Marcel Gauchet, que diz que o cristianismo a religio do fim da religio7.

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    Sim, Marcel Gauchet o resultado de toda a interpretao moderna de cris-tianismo. Ns dizemos que somos os herdeiros do cristianismo e que o legado do cristianismo o humanismo. Isto em parte verdade. Mas ao mesmo tempo, Marcel Gauchet no olha para o mundo no seu todo. Podemos man-ter tudo junto com a teoria mimtica. medida que o mundo parece ser mais ameaador, certo que a religio voltar. E de certo modo, o 11 de Setembro o princpio disto, pois neste ataque a tecnologia foi usada no para fins humanistas mas para fins radicais, metaf sico-religiosos, que no so cris-tos. por isso que para mim isto to fabuloso, porque estou habituado a considerar as foras religiosas e as foras humanistas em conjunto, no como se uma fosse verdadeira e a outra falsa, e depois subitamente a religio arcaica est a voltar de uma forma incrivelmente forte com o islo. O islo tem muitos aspectos das religies bblicas, menos a revelao da violncia como m, como no divina mas humana; torna a violncia totalmente divina. por isto que a oposio mais significativa do que com o comunismo, que um humanismo. um humanismo artificial, a forma ltima e mais incrivel-mente imbecil, que resulta em terror. Mas ainda humanismo. E subitamente estamos de regresso religio, religio arcaica, mas com armas modernas. O mundo est espera do momento em que os radicais muulmanos iro de algum modo ser capazes de usar armas nucleares. E o ponto para onde temos de olhar no mapa o Paquisto, que uma nao muulmana com armas nucleares. E o Iraque est a tentar desenvolv-las.

    Acha ento que a Guerra Fria est a ser suplantada tanto em dimenso como em importncia pelo conflito com o radicalismo islmico?Sim, totalmente suplantada. E a velocidade com que foi suplantada foi algo simplesmente incrvel. O momento em que a Unio Sovitica revelou que eles eram humanos foi quando no tentaram forar o bloqueio de Kennedy, e desde essa altura j no assustaram mais ningum. Depois de Khrushchev, era preciso chegar a Gorbatchev bastante depressa. O momento em que Gor-batchev chegou ao poder foi o momento em que as oposies j no estavam dentro do humanismo. Os comunistas tinham querido organizar o mundo para que no houvesse mais pessoas pobres, e os capitalistas tinham dito que os pobres eram insignificantes. Os capitalistas tinham prevalecido.

    E este conflito ser mais perigoso por j no ser uma luta dentro do humanismo?Sim, embora eles no tenham as mesmas armas que a Unio Sovitica, pelo

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    menos no por enquanto. As coisas mudam to depressa. No entanto, cada vez mais pessoas no Ocidente iro ver a debilidade do nosso humanismo; no nos vamos tornar novamente cristos, mas haver mais ateno ao facto de que a luta na realidade entre cristianismo e islamismo, mais do que entre islamismo e humanismo.

    Quer dizer, um conflito entre o entendimento de que a violncia humana e o entendimento de que a violncia divina?Sim, com o islo penso que a oposio total. No islo, se somos violentos, somos inevitavelmente um instrumento de Deus. Assim, est mesmo a dizer que a violncia apocalptica vem de Deus. Nos Estados Unidos, os funda-mentalistas dizem isso, mas as grandes Igrejas no. No entanto, no so pen-sadores suficientemente coerentes para dizer que se a violncia no vem de Deus, ento vem do Homem e, por conseguinte, somos responsveis por ela. Aceitamos viver sob a proteco de armas nucleares. Este foi provavelmente o maior pecado do Ocidente. Pense nas suas implicaes.

    Est a referir-se lgica da destruio mutuamente assegurada.Sim, dissuaso nuclear. Mas estas so desculpas mancas. Estamos a pr a nossa f na violncia; acreditamos que a violncia ir manter a paz. Mas esta concepo inevitavelmente falsa. Estamos a tentar no pensar radicalmente hoje sobre o que significa esta confiana na violncia.

    O que pensa que poderia ser o efeito de outro acontecimento como o 11 de Setembro?Penso que mais pessoas tomariam mais conscincia. Mas provavelmente seria como o primeiro ataque. Haveria um perodo de enorme tenso espiri-tual e intelectual, seguido de um relaxamento lento. Quando as pessoas no querem ver uma coisa, so bastante boas a faz-lo. Penso que haver revolu-es espirituais e intelectuais num futuro no muito distante. O que estou a dizer agora parece completamente insano, mas penso que o 11 de Setembro vai ter sempre cada vez mais significado.

    A sua viso do papel da violncia no cristianismo mudou?H erros em Things Hidden since the Foundation of the World 8: a recusa em usar a palavra sacrificial de uma boa maneira, por exemplo. Havia demasiada oposio entre o sacrificial e o no-sacrificial. No cristianismo, todos os actos sacrificiais se destinavam a afastar a violncia, a possibilitar ao Homem aca-

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    bar com a sua prpria violncia. Penso que o autntico cristianismo separa completamente Deus da violncia; no entanto, o papel da violncia no cris-tianismo algo complexo.

    Na altura de Things Hidden, disse que o cristianismo era uma religio no-sacrificial.O cristianismo sempre foi sacrificial. verdade que eu dei demasiada impor-tncia interpretao de no-sacrificial, com o objectivo de ser herege. Era o que restava em mim da atitude vanguardista. Eu tinha de estar contra a Igreja de algum modo. A atitude foi instintiva, uma vez que toda a minha formao intelectual veio do surrealismo, do existencialismo e por a adiante, que eram todos anticristos. Foi provavelmente uma boa coisa, pois de outro modo o livro poderia no ter tido xito.

    Se se tivesse mostrado mais ortodoxo?Se me tivesse mostrado mais ortodoxo, teria sido silenciado imediatamente pelo silncio dos meios de comunicao social.

    Qual a sua opinio actual sobre o sacrif cio no cristianismo?Temos de distinguir entre o sacrif cio dos outros e o auto-sacrif cio. Cristo diz ao Pai: No querias nem holocausto nem sacrif cio; ento eu disse: Aqui estou. Por outras palavras: prefiro sacrificar-me a mim mesmo a sacrificar os outros. Mas isto ainda tem de chamar-se sacrif cio. Quando dizemos sacrif cio nas nossas lnguas modernas, o termo s tem o sentido cristo. Por conseguinte, a paixo totalmente justificada. Deus diz: se mais ningum for suficientemente bom para se sacrificar a si mesmo em lugar do seu irmo, eu f-lo-ei. Por conseguinte, preencho os requisitos de Deus para homem. Prefiro morrer a matar. Mas todos os outros homens preferem matar a morrer.

    Mas e a ideia de martrio?No cristianismo no nos martirizamos a ns prprios. No nos volunta-riamos para sermos mortos. Pomo-nos numa situao em que a observn-cia dos preceitos de Deus (dar a outra face, etc.) levar a que nos matem. Mas seremos mortos porque os homens nos querem matar, no porque nos voluntariamos. No como a ideia japonesa de kamikaze. A ideia japonesa significa que estamos prontos para morrer em vez de matar. Esta a atitude da boa prostituta no julgamento de Salomo. Ela diz: d a criana minha

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    inimiga em vez de a matares. Sacrificar o seu filho como sacrific-la a ela, pois ao aceitar o equivalente morte, ela sacrifica-se a si prpria. E quando Salomo diz que ela a verdadeira me, isto nem sequer significa que ela seja a me biolgica, mas a espiritual. Esta histria do Livro dos Reis, que de certa forma um livro bastante cruel. Mas eu diria que no h nenhum sm-bolo pr-cristo do auto-sacrif cio de Cristo que seja superior a este.

    V isto em contraste com o conceito de martrio no islo?Vejo-o a contrastar o cristianismo com todas as religies de sacrif cio arcai-cas. Agora, como a religio muulmana copiou o cristianismo mais do que qualquer coisa, no abertamente sacrificial. Mas a religio muulmana no destruiu o sacrif cio da religio arcaica do modo como o cristianismo o fez. Nenhuma parte do mundo cristo manteve o sacrif cio pr-cristo. Muitas partes do mundo muulmano mantiveram o sacrif cio pr-muulmano.

    No seriam os linchamentos espontneos no Sul exemplos de sacrif cio arcaico?Sim, claro. Temos de ir a Faulkner para encontrar a verdade sobre isto, a um romancista. Muitas pessoas acreditam que o cristianismo corporalizado pelo Sul. Eu diria que o Sul talvez a parte menos crist dos Estados Unidos em termos de esprito, embora seja a mais crist em termos de ritual. No h dvida de que o cristianismo medieval estava muito mais perto daquilo que perdura do fundamentalismo. Mas h muitas formas de trair uma religio. No caso do Sul, muito bvio, tal o retorno s formas de religio mais arcai-cas. Temos de definir estes linchamentos como uma espcie de acto religioso arcaico.

    O que pensa da forma como as pessoas usam o termo violncia reli-giosa?As pessoas usam o termo violncia religiosa de formas que no esclarecem os problemas que o meu pensamento est a tentar esclarecer: de uma relao que est constantemente a passar a violncia, o que tambm histrico.

    Seria justo dizer que de acordo com o seu pensamento qualquer violn-cia religiosa necessariamente arcaica?Bem, eu diria que qualquer violncia religiosa inclui um grau de arcasmo. Mas alguns aspectos so muito complicados. Por exemplo, na Primeira Guerra Mundial, o que era cristo nos soldados que aceitaram ser destacados

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    para morrer pelo seu pas, muitos deles em nome do cristianismo? H algo nisto que no se coaduna com o cristianismo. Mas tambm h algo que verdade. Em minha opinio, isto no invalida o facto de haver uma histria de violncia religiosa, e de, no fundo, as religies, especialmente o cristianismo, serem continuamente influenciadas por esta histria, embora a sua influn-cia seja pervertida na maior parte do tempo.

    Traduo de Joana Bernardino(reviso cientfica de Nelson Ribeiro)

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    NOTAS

    1 Entrevista com Henri Tincq, Le Monde, 6 de Novembro de 2001.2 Zbigniew Brzezinski, The Choice: Global Domination or Global Leadership, Nova Iorque: Basic

    Books, 2004, p. 28.3 Jean-Pierre Dupuy, Anatomy of 9/11: Evil, Rationalism, and the Sacred, includo neste volume.4 James Alison, Contemplation in a World of Violence: Girard, Merton, Tolle, [http://www.thecen tering.org/Alison_Contemplation%20in%20a%20world%20of%20violence.html], consultado a 8 de

    Agosto de 2007. 5 A palavra grega tragoidia uma combinao de tragos (bode) e ode (cano): cano do bode ou

    a cano cantada no sacrif cio de um bode.6 Ren Girard, Violence and the Sacred, Baltimore: Johns Hopkins Univ. Press, 1977.7 Ver Marcel Gauchet, The Disenchantment of the World: A Political History of Religion, trans. Oscar

    Burge, pref. Charles Taylor, Princeton NJ: Princeton Univ. Press, 1997, p. 101.8 Ren Girard, Things Hidden since the Foundation of the World, trans. S. Bann & M. Metteer, Stan-

    ford Univ. Press, 1987.