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Juiz de Fora 2006 137 POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: INVENÇÃO E LIBERDADE NA TRADIÇÃO CULTURAL AFRO-BRASILEIRA Edimilson de Almeida Pereira (UFJF) RESUMO Palavras-chave: Palabras-clave: O presente artigo analisa a poesia brasileira contemporânea, privilegiando a chamada poesia afro-brasileira. A partir das obras poéticas de Adão Ventura, Luís Silva (Cuti), Estevão Maya-Maya e Oliveira Silveira discute-se a formação das tendências historicista e de invenção na poesia afro-brasileira contemporânea. Cultura, Identidade, Afrodescendência Cultura, Identidad, Afrodescendencia * * * A história da literatura brasileira nos apresenta aspectos de ordem social e étnica que influenciaram a formação de escritores e público leitor em nosso território. Dentre esses aspectos se destacam o vínculo de nossa literatura com as fontes européias, a expressão em língua portuguesa, o sistema escravista, a discriminação racial e cultural de negros e índios – aspectos, enfim, que indicam a interferência da colonização em nossa origem enquanto sociedade e produtores-consumidores de literatura. A herança colonial imprimiu na literatura (série literária) esquemas que nortearam as relações entre colônia e metrópole (série social). Assim sendo, na série social se estabeleceu uma linha hierárquica que demarcava a colônia RESUMEN Este artículo analiza la poesía brasileña contemporánea, privilegiando la llamada poesía afro-brasileña. A partir de las obras poéticas de Adão Ventura, Luís Silva (Cuti), Estevão Maya- Maya y Oliveira, se discute la formación de las tendencias de carácter histórico y de invención en la poesía afro-brasileña contemporánea. como o lugar da barbárie em oposição ao estado de civilização da metrópole. Na série literária as modalidades de linguagem

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POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA:INVENÇÃO E LIBERDADE NA TRADIÇÃOCULTURAL AFRO-BRASILEIRA

Edimilson de Almeida Pereira (UFJF)

RESUMO

Palavras-chave:

Palabras-clave:

O presente artigo analisa a poesia brasileira contemporânea,privilegiando a chamada poesia afro-brasileira. A partir das obraspoéticas de Adão Ventura, Luís Silva (Cuti), Estevão Maya-Maya eOliveira Silveira discute-se a formação das tendências historicistae de invenção na poesia afro-brasileira contemporânea.

Cultura, Identidade, Afrodescendência

Cultura, Identidad, Afrodescendencia

* * *

A história da literatura brasileira nos apresenta aspectosde ordem social e étnica que influenciaram a formação deescritores e público leitor em nosso território. Dentre essesaspectos se destacam o vínculo de nossa literatura com as fonteseuropéias, a expressão em língua portuguesa, o sistemaescravista, a discriminação racial e cultural de negros e índios –aspectos, enfim, que indicam a interferência da colonização emnossa origem enquanto sociedade e produtores-consumidoresde literatura. A herança colonial imprimiu na literatura (sérieliterária) esquemas que nortearam as relações entre colônia emetrópole (série social). Assim sendo, na série social seestabeleceu uma linha hierárquica que demarcava a colônia

RESUMENEste artículo analiza la poesía brasileña contemporánea,privilegiando la llamada poesía afro-brasileña. A partir de lasobras poéticas de Adão Ventura, Luís Silva (Cuti), Estevão Maya-Maya y Oliveira, se discute la formación de las tendencias decarácter histórico y de invención en la poesía afro-brasileñacontemporánea.

como o lugar da barbárie em oposição ao estado de civilizaçãoda metrópole. Na série literária as modalidades de linguagem

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ameríndias e africanas foram ignoradas como formas estéticas esilenciadas pelas correntes estéticas européias. As referênciasestéticas afro-ameríndias, nas ocasiões em que se tornaram“ , passaram pelo filtro do gosto europeizado,sem que, no entanto, fossem expressadas através de seuspróprios recursos de representação.

O antropólogo Antônio Risério, em seu livro: poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros (1993,

p. 69), critica o que a colonização européia, osautores e os críticos da história da literatura brasileiraimpuseram ao repertório textual africano. Risério observa que o“o texto criativo africano foi ladeado ou ignorado” e “nãoconheceu, na história da cultura textual brasileira, o mesmodestino que premiou o texto ameríndio”, especialmente nachamada fase indianista de nosso Romantismo. Uma análise dapoesia afro-brasileira contemporânea revela que entre ospróprios poetas afrodescendentes há um relativo abandono dotexto criativo africano em parte representado pelas realizaçõespoéticas de fundo religioso como os orikis do Candomblé (dematriz iorubá) e os pontos de Candombe (de matriz banto). Osorikis e os pontos podem ser interpretados como elementosrituais que auxiliam a fundamentação de valores sociais dedeterminadas tradições afro-brasileiras. Mas, além de suaimportância enquanto documento cultural, os orikis e os pontospodem ser entendidos como criações literárias. Neles estãopresentes os procedimentos que fundamentam a obra poética,ou seja, figuras de linguagem, ousadias sintáticas e estruturaçãode ritmos são fatores que fazem dos orikis e dos pontos obrasliterárias que sintonizam o sujeito com a realidade social e osrumos inumeráveis da imaginação.

Considerando, de um lado, o impacto da herançacolonial na formação do escritor e do circuito literário brasileiroe, de outro lado, a escassa viagem dos poetas afrodescendentesao texto criativo africano – nos permitimos delinear duasdireções na atual poesia afro-brasileira. Utilizaremos osconceitos operacionais tendência historicista e tendência deinvenção para suprirmos a ausência de termos mais adequados.Uma tendência não exclui a outra, as duas se relacionam paraafirmar diferentes aspirações da comunidade afro-brasileira. Atendência historicista indica o desejo explícito do poeta de

objeto literário”

Textos etribos

black-out

VERBO DE MINAS: l e t r a s

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estabelecer a ligação entre a obra literária e a realidade social. Aliteratura é vista como algo mais do que obra de arte, na medidaem que pode e deve ser um instrumento de intervenção nasociedade. Questões graves como a discriminação racial, amiséria e a violência se tornam temas centrais da obra poéticaque enfoca a trajetória dos afro-brasileiros. A atual poesia afro-brasileira apresenta vários autores que se encaixam – pelomenos numa abordagem geral – nesta tendência a quechamamos de historicista. Para elaborarmos uma leituravertical, e não apenas horizontal, nos limitaremos a comentar asobras poéticas de Luís Silva (Cuti) e Adão Ventura, visto que osdois autores nos permitem ilustrar alguns argumentos datendência historicista. Também é certo que suas obras nosdesafiam a buscar outros significados para além dos parâmetroshistoricistas.

O poeta e dramaturgo Cuti nasceu a 31 de outubro de1951, em Ourinhos, São Paulo. Suas obras incluem textos emprosa (contos, teatro, pesquisa biográfica) e verso. Dos livros depoesia destacamos (1978),

(1982), (1987).Adão Ventura Ferreira Reis nasceu em 1946, na cidade doSerro, Minas Gerais. Publicou, entre outros, os livros

(1970),(1976),

(1980), (1992). É importante observar que ospoetas assumem atitudes diferentes diante dos mesmos temas.A semelhança entre suas obras é de ordem geral e se exprime naintensidade de uma poesia que combate a opressão social epsicológica, que cobra o justo lugar para o negro na sociedadebrasileira, que fala sobre assuntos até então considerados “nãopoéticos”. Ainda no que diz respeito à semelhança, Cuti e AdãoVentura trabalham no limite de uma criação poética queperturba negros e brancos em função de dois pontos que serelacionam de forma tensa: primeiro, por atacar temas-tabuscomo racismo, violência, masoquismo e alienação encobertos(ou mal encobertos) pela sociedade brasileira; segundo, portrazer em si mesma armadilhas que podem reafirmar certasnoções de preconceitos. Esta tensão é uma característica quefaz da poesia afro-brasileira contemporânea um campo fértil,onde estão sendo plantadas sementes diversas, que serão

Poemas da carapinha Batuque detocaia Flash crioulo sobre o sangue e o sonho

Abrir-seum abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azulAs musculaturas do Arco do Triunfo A cor da pele

Textura Afro

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responsáveis por diferentes árvores, cada qual com seus frutos eseus espinhos.

Ferina e cortante é a poesia de Cuti, qualidadesnecessárias para quem deseja mudar a imagem negativa donegro. Um dos caminhos para ler Adão Ventura procede doforte sentimento de individualidade que identifica o eu emmeio à coletividade. O poeta quer falar de todos ou por todos,mas de acordo com a sua sensibilidade individualmentemarcada. A poesia de Adão Ventura é existencial no sentido deser vivida no cotidiano, como experiência lírica do homem noseu tempo e no tempo dos ancestrais. Por isso, Cuti e Venturaapresentam diferenças, ainda que percorram a estrada datendência historicista. O historicismo de Cuti é dinâmico, reagecontra a marca da miséria para modificá-la. O hábito dos negrosalisarem os cabelos a ferro (pente) aquecido é visto pelo poetacomo extensão da tortura física imposta aos escravos pelossenhores. A partir disso, Cuti reinterpreta o significado dosferros que feriram o negro, atualizando significados que, doponto de vista do negro, apontam a direção da liberdade.

O historicismo de Adão Ventura possibilita ao poeta irao instante inicial do fato para trazê-lo ao presente aindaintacto: a pele do negro foi e é uma faca voltada contra elemesmo. Isso nos leva a indagar: afinal, não mudou a história dosnegros brasileiros? Não mudaram os comportamentos denegros e de brancos? A obra do poeta é conservadora? Dizer sima todas as perguntas é não compreender que para se mudar umfato é preciso apresentá-lo aos interessados. A poesia de AdãoVentura se detém na apresentação dos fatos históricos,indicando um dinamismo que poderá se desdobrar ou não emtransformações. A palavra cortante de Cuti fere em cheio negrose brancos, chamando-os para a reflexão e a ação. A palavraapresentadora de Adão Ventura prenuncia uma flexão lírica quesitua o homem – que pode ser maior do que suas ideologias –em meio às perdas causadas pelo racismo.

O tema da comparação entre passado e presente éuma constante na tendência historicista, aparecendo nos textosde forma explícita ou implícita. Constitui um método quepermite ao poeta estabelecer juízos de valor sobre a sociedadede ontem e de hoje. Isso possibilita a construção de quadrosideais (quando o passado longínquo da África mostra o negro

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fora do alcance da escravidão do branco) ou de quadros críticos(quando a opressão sobre o negro se manifesta em diferentesépocas, sob diferentes máscaras de escravização). Cuti trabalhaesse tema sob a ótica da reinterpretação, isto é, lendo como umafrodescendente os fatos do passado que os brancosdominantes escreveram. Por isso, como demonstra Cuti nopoema “Teses”, os modelos de liberdade são diferentes: o dahistória oficial está na Lei Áurea assinada pela Princesa Isabel,em 13 de maio de 1888; o dos negros está no dia 20 denovembro de 1695, data em que sucumbiu Zumbi, o líder doquilombo dos Palmares.

Na poesia de Adão Ventura o juízo de valor revela umpassado e um presente que aprisionam o negro, antes com ascorrentes, hoje na própria pele. Enquanto prevalecer opreconceito, passado e presente serão semelhantes. Por isso, asmetáforas antigas continuam a fazer parte do vocabulário donegro contemporâneo, tal como se pode observar neste

registrado por Ventura:

O documento histórico adquire uma configuraçãoestética ao ser trabalhado pelo poeta. Desse modo, a tendênciahistoricista é fundamental para a composição do cenário dapoesia afro-brasileira, pois estabelece ângulos alternativos e

[...]quantas dores de escravotecem o macacão operário?

com quantos chicotesse fez o milionário?

quantos 20 de novembroo 13 de maio matou?

áfricas noites viajadas em naviose correntes,imprimem porões de amargo salno meu rosto,construindo paredesde antigas datas e ferrugens,selando em elos e cadeias,o mofo de velhos rótulos deixadosno puir dos olhos.

flash

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significativos para a interpretação dos fatos históricos. Aconsciência que o homem tem das contradições de sua históriapode levá-lo a criar e a entender melhor suas realizaçõesestéticas. A denúncia e a crítica dos temas-tabu da sociedadebrasileira explicitam o lado dinâmico e renovador da tendênciahistoricista. Para o novo homem afrodescendente ela vislumbrauma nova realidade, como resultado da leitura do passado.Entretanto, no interior da tendência historicista se ocultam asarmadilhas que surpreendem o poeta e o induzem a usarrecursos fixadores de preconceitos. Por exemplo, a modalidadede discurso da poesia engajada não é senão uma variante, emtempo e espaço, das fórmulas conhecidas do Realismo e doNaturalismo europeu do século XIX. Na tendência historicista ainovação apresentada no plano do conteúdo é surpreendidapela reiteração destas fórmulas que já no período dos estilosmencionados deixavam entrever fissuras e contradições. Adenúncia da violência contra o negro atinge o objetivo demostrar a realidade até então escondida mas, simultaneamente,fixa nos moldes do Naturalismo a situação de patologia socialque identifica o negro sempre como a vítima a ser imolada.

A tendência de invenção da poesia afro-brasileiracontemporânea não representa uma simples oposição ounegação da tendência historicista. As duas tendências dialogamentre si e uma fornece elementos para compreendermos aimportância da outra no conjunto da literatura brasileira. Atendência de invenção tem como um de seus aspectos singulareso entendimento da literatura como uma realização da (na)linguagem. À primeira vista isso poderia significar o abandonodos fatos sociais, o afastamento da realidade e a conseqüentefalta de compromisso com a defesa dos direitos dos afro-brasileiros. Mas, segundo a tendência de invenção, a linguagemestá profundamente enraizada na realidade, é fruto da açãosocial do homem. Através da linguagem o homem estabelece esustenta teias de comunicação, revela a si mesmo e o outro,articula argumentos para entender e dinamizar sua existência.Enfim, é na linguagem e pela linguagem que a história adquiresentido para o ser social. Não há consolidação de mudanças nahistória se não acontece também a criação ou a transformação dalinguagem.

A tendência de invenção aborda, à sua maneira, os fatos

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históricos e busca para eles uma formulação de linguagem que sealimenta do solo cultural afro-brasileiro. Nos apoiamos nasreflexões de Leda Maria Martins, no livro A cena em sombras(1995, p. 65), para demonstrar que a tendência de invenção searticula a partir de uma “concepção metafórica e mágica dalinguagem, por meio da qual a palavra desliza por váriossignificados, recusando ancorar-se em qualquer valor absoluto eemblemático”. Essa linguagem escapa aos emblemas realistas enaturalistas que definem e limitam as funções da literatura. Alinguagem da tendência de invenção encontra sua melhorexplicação metafórica na figura de Exu, entidade múltipla dopanteão religioso iorubá. Exu mora no começo e no fim de tudo,simultaneamente; é a imagem e a diferença de si mesmo. Odinamismo da mudança reforça a existência de Exu em tempos elugares diversificados. Nas cerimônias do Candomblé, Exu éprimeiro invocado para inaugurar as celebrações. Exu é doce eácido, divertido e perigoso, criador e devorador, causaentendimento e desentendimento. Exu existe na diversidade queo torna único. O mundo dos orixás e dos homens precisa de Exupara compreender os opostos e para gerar a atração entre eles.

Assim é a linguagem da tendência de invenção, umverbo-Exu. Ela é inauguradora de um determinado modo defazer poesia; é múltipla para afirmar e negar a si mesma. É aremota linguagem dos antigos que surge nova aosdescendentes; é a linguagem que revela enigmas e tambémdesorienta os sentidos. É a linguagem da história vista não comodocumento imobilizado, mas como evento em que secombinam as forças da permanência e da mudança. Alinguagem da tendência de invenção é de natureza metafórica,pois a constituição da metáfora parte da associação decaracteres ou de fatos conhecidos para criar novas instâncias designificação. Explicada de outra maneira, a linguagem datendência de invenção tem suas raízes na realidade, mas o poetapode ampliar-lhe as sugestões de significado a partir dosrecursos combinatórios da metáfora. No texto poético, o poetafaz a linguagem retornar ao convívio dos leitores, mostrando-acom a face multiplicada.

A tendência de invenção possibilita uma poesia desugestões que supera o didatismo e – sem negar as referênciashistórico-sociais – instiga poetas e leitores a constituírem outras

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representações, além daquelas que começam a florescer nopoema. Por isso, estamos diante de uma poesia perturbadora,que desorienta os sentidos de quem procura nela osestereótipos da cultura e do homem afro-brasileiros e quemobiliza o sentimento de quem deseja ver o mundo pelas lentesda identidade e da diferença. As obras dos poetas EstevãoMaya-Maya e Oliveira Silveira serão as nossas referências paracomentarmos a tendência de invenção. Maya-Maya nasceu emPano Grosso, estado do Maranhão, no ano de 1943. Além depoeta é cantor, compositor, musicólogo e diretor de teatro. Seuslivros de poemas são

(1980 – publicado em parceria com o poetaVilmar Alves, do Maranhão) e

e(1982). O poeta e professor Oliveira Ferreira da Silveira nasceuem Rosário do Sul, estado do Rio Grande do Sul, em 1941. Suaobra poética inclui os livros: (1962),

(1968), (1970),(1974), (1976),

(1977), (1981),(1987), (1994) e

(1995 – em parceria com o artistaplástico Pedro Homero).

A coletânea de poemase ,

escrita por Estevão Maya-Maya, constitui uma das maisinstigantes criações da poesia afro-brasileira contemporânea. Oautor reorganiza eventos cotidianos, passagens da história e daliteratura para compor uma obra de alcance crítico semdesprezar as cintilações líricas. A linguagem desempenha papelessencial, permitindo que Maya-Maya realize o diálogo entre astendências historicista e de invenção. A obra é constituída porduas partes longas ( ... e

...) às quais se soma um texto na parte intitulada “Poemadesgarrado”. O texto desta parte chama-se “Musical”, foi escritono ano de 1976 e apresenta características bem diferentes dospoemas da parte “Os segredos de seu Bita...”, escritos entre1980 e 1981.

No Maya-Mayanarra a visita que o poeta negro do Simbolismo brasileiro faz à

Cantiga pra gente da casa, chegada emcima da hora

Regresso triunfal de Cruz eSouza Os segredos de “seu” Bita dá-nó-em-pingo-d'água

Germinou Poemasregionais Banzo saudade negra Décima dopeão negro Praça da palavra Pêlo escuro:poemas afro-gaúchos Roteiro dos tantãsPoema sobre Palmares Anotações à margemOrixás: pinturas e poesias

Regresso triunfal de Cruz eSouza Os segredos de “seu” Bita dá-nó-em-pingo-d'água

Regresso triunfal Os segredos de seuBita

Regresso triunfal de Cruz e Souza

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sua casa. A originalidade do extenso poema começa por esseretorno de Cruz e Souza (1861-1898): o vate simbolista regressaem espírito, invocado pela memória de Maya-Maya e cercadopela atmosfera ritual dos cultos religiosos afro-brasileiros. Aatitude de engajamento social do poeta maranhensetransparece em sua vontade de realçar a importância dos afro-brasileiros; isto é feito através das qualidades que ele atribui aCruz e Souza, colocando-o acima de todos os poetas doSimbolismo. Essa atitude ufanista – bem evidenciada pela idéiado “retorno triunfal” – tem por objetivo reinterpretar oshistóricos a partir do ponto de vista dos afro-brasileiros; as forçasafetivas interferem no julgamento da realidade e tornam-sedecisivas no processo de afirmação da relevância do homemnegro. O poema de Maya-Maya traz a paixão de seu criadorassociada à tentativa de produzir um texto de análise crítica dosacontecimentos.

Maya-Maya recebe a visita de Cruz e Souza eestabelece com ele o que, a princípio, parece ser uma conversahabitual. No entanto, quem fala é o poeta contemporâneo. Avida e a obra do poeta simbolista vão sugerindo pretextos paraque Maya-Maya desenvolva suas reflexões a respeito doracismo, da literatura e da busca de identidade dos afro-brasileiros. O discurso do poeta contemporâneo se revela àmedida que o visitante percorre os espaços da casa: Cruz eSouza entra pela porta da rua (porta principal), passa para a sala,vai até a varanda, senta-se à mesa para o almoço, passeia peloquintal, volta à sala, senta-se na calçada à frente da casa, janta,retorna à sala, vai ao quarto, passeia de canoa com Maya-Maya,descansa, prepara os objetos de viagem e se despede na porta darua. O périplo dos dois poetas nomeia os espaços da casa enomeia no texto as expectativas dos afro-brasileiros, criandolaços entre poesia e biografia, poesia e história. Esses laçosreaparecem na segunda parte do livro, que apresenta a biografiado menino chamado pelo poeta de "seu" Bita. O termo seu é aforma modificada do substantivo senhor que significa, entreoutras coisas, aquele que tem autoridade sobre si mesmo, sobrecertas pessoas ou fatos. A forma seu é muito utilizada nalinguagem coloquial; ao lado de outras expressões coloquiais elanos indica a relação da obra de Maya-Maya com o universo dascamadas populares.

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A autoridade de "seu" Bita está na capacidade de viver ainfância com as liberdades dessa fase da vida. O menino Bita émestre em travessuras, destacando-se também pela sagacidadee curiosidade, sobretudo no que se refere ao mundo dos outrose à sedução dos jogos amorosos. As subdivisões desta parte (”Ossegredos de seu Bita..., Das eróticas, Dos quebra-paus eFeitiçaria e assombração”) mostram os vários períodos daexistência de "seu" Bita: da infância (tempo da inocência, dastraquinagens e das brincadeiras), passando pela juventude(tempo das aventuras, dos namoros e das festas) até atingir amaturidade (tempo da responsabilidade e do conhecimento dosagrado) o poeta Estevão Maya-Maya desenha um dos perfisque revela o homem afro-brasileiro vivendo o passado e opresente em sua terra natal. A tendência de invenção semanifesta na poesia de Estevão Maya-Maya exatamente porqueo poeta conhece o pluralismo da cultura afro-brasileira. Por isso,sem rejeitar os recursos da tendência historicista, amplia o seualcance ao consolidar a linguagem como suporte do textopoético. O poeta comenta e reescreve a história e, acima detudo, realiza uma obra poética na qual os afro-brasileirospercebem a si mesmos com suas identidades e suas fraturas.

A linguagem metafórica da tendência de invençãodireciona os afro-brasileiros para o domínio do espaço do texto.Nesse espaço se entrecruzam os fatos históricos e asexperiências estéticas, desafiando o leitor a se colocar emdiferentes ângulos para contemplar os significados da cultura eda literatura afro-brasileiras. Estevão Maya-Maya utiliza alinguagem metafórica apoiando-se na tradição da oralidade: ospoemas têm forma semelhante à literatura de cordel (ou “quasecordel”, como diz o poeta), com o objetivo de atingir umpúblico mais abrangente de leitores e de ouvintes. Com osrecursos da linguagem metafórica e da oralidade Maya-Mayaamplia as significações dos fatos históricos: Cruz e Souza passa ater uma significação simbólica, sua experiência ultrapassa oslimites da individualidade para representar a trajetória coletivado homem que sonha, ama e luta contra a violência racial. Poroutro lado, Cruz e Souza é a imagem-símbolo do poeta quebusca o aperfeiçoamento de sua obra, do artista que não secontenta com o imediatismo da comunicação.

Pela visão da tendência historicista Cruz e Souza é o

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personagem de um momento histórico-social; pela visão datendência de invenção Cruz e Souza é isto e também umsímbolo que pode ser lido a partir de diversos ângulos. Por causadessa dimensão simbólica Cruz e Souza se torna múltiplo epermite que seus leitores também assumam múltiplaspersonalidades. Isso explica porque Maya-Maya recebe Cruz eSouza de irmão para irmão (1- destacando os laços étnicos queos aproximam), de poeta para poeta (2- explicitando aadmiração do poeta contemporâneo pelo poeta do passado)e de crítico para poeta (3- mostrando a análise literária que opoeta de hoje faz da obra de seu antecessor):

A leitura das dimensões histórica e simbólica de Cruz eSouza é aplicada por Estevão Maya-Maya ao tema da evocaçãodas origens. A África histórica evocada pelo poeta tem a funçãode mostrar aos grupos dominantes que os afro-brasileirossentem orgulho de seu passado; por isso, o poeta reconta osfatos para tornar visível uma África de progresso e cultura que aviolência dos dominadores escondeu:

1- Falando da nossa origem(continente primeiro)apesar da terra de negrosmuitas coisas brancasrealçam as belezasque enchem os olhosdeleitando todo sernuma sensação curiosae agradável de existir,caminho para a paz.

2- Entra, grande poeta,poeta monumental,aqui é nossa morada

(...) Nesta ocasião especial(é privilégio ser visitado pelos imortais)

3- O poeta escreveu o “Missal”sem ser religioso.Os “Faróis” iluminam as “Evocações”para chegar nos “Últimos Sonetos”na “Dor Negra” do Emparedado.

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Dentre os ilustres visitantes,aportou na negra Núbiao ainda aprendiz Homero,viajante das terras gregas.

Vai amadurecendo Homerode cabeça aberta,nas terras do Nilo,para na Grécia ensinar

Mudando de conversa,falei da África,mas não falei na Núbiaque um dia te inspirouno lírico simbolizando.

.

A África histórica (recordada de maneira nostálgica etelúrica) adquire outra dimensão quando é expressada atravésda linguagem metafórica. O continente negro se desprende dasamarras do tempo e o poeta não precisa olhar extasiado paraele, citando seus prodígios e riquezas. A África agora é ofundamento da linguagem, é o símbolo de fertilidade queinspira a comunicação e organiza a memória:

A linguagem metafórica que fala de África fala tambémdo processo de construção do texto poético. O poeta procuraalgo mais que as imagens nostálgicas da origem, na medida emque deseja conhecer e utilizar a linguagem que funda todas asorigens e dinamiza a existência do homem. A Áfricacompreendida como linguagem transforma a poesia de Maya-Maya numa poesia que analisa a si mesma, ou seja, numa obrametalingüística. É por conta da metalinguagem que o poetaapresenta uma leitura nova para signos já divulgados como opoeta negro Cruz e Souza e a África das origens. É também ametalinguagem que abre a poesia de Maya-Maya para o amplodiálogo com poetas de todos os tempos e etnias: o clássicoHomero, o moderno europeu Mallarmé, o romântico brasileiroCastro Alves e os contemporâneos brasileiros Cuti, ArnaldoXavier, Sousa Lopes, Aristides Klafke – “uns (...) negros-negros/outros mais descascados...”, mas todos saídos “dum ventreafro”. O diálogo poético com os vários autores representa o

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contato com várias tradições (ou diferenças, se assimpreferirmos), resultando no agravamento de conflitos ou noreconhecimento de afinidades.

Os poemas da parte “Os segredos de seu Bita Dá-nó-em-pingo-d'água” reforçam a tendência de invençãodescortinada por Maya-Maya. O poeta encontra nos eventoslíricos e satíricos da cultura afro-brasileira as matrizes paradesenvolver sua linguagem metafórica. O poeta maranhensenão se detém a falar da “contribuição do negro para a nossaliteratura”. Maya-Maya realiza uma obra poética em que oselementos da cultura afro-brasileira são apresentados com suascaracterísticas próprias de diálogo. As modalidades delinguagem dos cânticos religiosos e de trabalho, as imagensrituais, as palavras brasileiras, os ritmos musicais, as narrativasreais e imaginárias, enfim, o repertório histórico e existencial dosafro-brasileiros constitui constitui o material que o poetadescreve recriando através da linguagem metafórica. Atendência de invenção é exemplificada em todos os poemas daparte “Os segredos de seu Bita Dá-nó-em-pingo-d'água”. Parailustrar essa técnica, vejamos o poema intitulado “No quarto deNha Ismendja”:

A linguagem metafórica do poema abre janelas para apercepção de seus múltiplos significados. Os conhecedores dosrituais afro-brasileiros encontrarão chaves imediatas parainterpretar o texto, mas os leigos poderão interpretá-lo seguindorotas diferentes sugeridas pela emoção, pela razão, ou pela fusãodas duas. O poeta evoca várias realidades, como se organizasse

– Vem cá, “seu” Bita,põe teus olhos mágicosnestas tiras de algodão.– Sopra com tuas narinasesta cuia de pimenta-de-cheiro.Assim chamou “Nha” Ismendjamestra em feitiçaria.Depois olhando contentepro algodão e pras pimentas falou:Minhas cobrinhas,meus marimbondos,andem por aí, mas não piquem ninguém.Fechou a porta do quarto.

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uma espiral de representações. É difícil não pensarmos naatmosfera surrealista que emana do poema e nos captura. Mas,com certeza, não é o Surrealismo de Bréton e seuscontemporâneos. A poesia de Maya-Maya provém do complexocultural afro-brasileiro e exprime a visão de mundo emmultiplicidade que o identifica. No jogo entre a tradição e amodernidade, entre a tendência historicista e a tendência deinvenção é que se inscreve a poesia de Estevão Maya-Maya. Emsua obra a identidade dos afro-brasileiros não é uma caixafechada, antes se apresenta como um lance de linguagem comvárias possibilidades de realização. E esta linguagem o poetaaprende com seus antepassados, com seus companheiros degeração, com as pessoas de seu povo e com ele mesmo. À suamaneira o poeta maranhense está construindo um discurso afro-brasileiro, instrumento necessário para quem deseja combater amiséria, a violência e o racismo praticados contra osafrodescendentes.

A obra poética de Oliveira Silveira possui vários pontosde contato com as obras de Cuti, Adão Ventura e Estevão Maya-Maya, principalmente na tendência historicista. Porém, umavisita mais atenta à poesia do autor do Rio Grande do Sul revelanuances que realçam a particularidade de sua produção. Osreflexos da tendência historicista levam Oliveira Silveira a utilizara literatura como instrumento de denúncia das injustiças sociais.Assim como na poesia de Cuti, vemos o poeta do sul escrevendopara incomodar os opressores (cobrando-lhes a dívida pelamiséria imposta aos afro-brasileiros) e os oprimidos(despertando-lhes a consciência para a necessidade demudarem sua realidade social), tal como demonstra o poema“Resgate “ (década 60):

A proposta de releitura da história através da literaturafaz com que Oliveira Silveira retorne ao tema de Palmares. Asreleituras deste tema têm sido feitas em textos ora curtos, ora

Tua dívida foi-se armazenandosob tua pele branca.Agora vim cobrá-laa peso de ouroe com juros de mora– quero teu couro!

VERBO DE MINAS: l e t r a s

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longos, destacando-se sempre a preocupação dos autores em“contar uma história que os opressores quiseram ocultar”. Daí aatmosfera épica que prevalece nos textos curtos ou longos(celebrando os atos heróicos de Zumbi), ao lado do discursopolítico que convoca os afro-brasileiros para lutarem contra aviolência. No longo Poema sobre Palmares Oliveira Silveiradeixa evidente sua intenção de reler os acontecimentoshistóricos e compõe, paralelamente, um quadro telúrico doquilombo. Junto com as informações históricas, o poeta indicaas relações entre os habitantes do quilombo e a natureza,transformando-os em símbolos de coragem e solidariedade. Areleitura dos fatos históricos traz à tona um herói dos oprimidos– Zumbi – e descortina um modelo de sociedade alternativa – oquilombo dos Palmares. A partir do reforço do heróicoletivizado e da instauração de um lugar de liberdade, o poetarenega os estereótipos que fixaram a imagem do negro abatido,chicoteado no tronco, supliciado em praça pública oucarregando as cadeirinhas das sinhás. A releitura da históriarevela a contra-imagem do negro submisso: de Palmares vêm asimagens do afro-brasileiro que foi “roubado (...) do cativeiropara a liberdade/ do senhor para si mesmo”.

A relação entre tradição e modernidade é o fatorideológico que desencadeia a tendência de invenção na obra deSilveira. O poeta domina informações sobre as heranças que osafricanos dos grupos banto e iorubá trouxeram para o Brasil. Apartir dessas informações, Oliveira Silveira evita a tentação dereconstituir fielmente estas tradições, principalmente porqueele as recolhe após um processo de reelaboração em terrasbrasileiras. O poeta trabalha então com o pluralismo culturalafro-brasileiro: a tradição lhe ensina os jogos de combinação erejeição que fazem a dinâmica das culturas; a modernidade lhepermite a liberdade de experimentação de linguagens para falardas heranças dos ancestrais. O conteúdo diversificado e aliberdade de experimentação identificam Oliveira Silveira comoum poeta que transforma a linguagem em suporte para o textopoético. Não basta que o texto transmita uma informaçãoetnográfica ou histórica; é fundamental que o texto possamanter sua densidade para além dessas informações objetivas.No momento em que o texto adquire relativa autonomia é quese reconhece a força da tendência de invenção: o poema então

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se revela como obra de arte.A tendência de invenção leva o poeta a descobrir

recursos de renovação da tradição inseridos nela mesma. Oseventos que se guardavam nas brumas do tempo sãoreencontrados pelos olhos da modernidade e o resultado disso éque a cultura afro-brasileira surge recriada no texto poético: nãoestamos diante do documento histórico ou da descriçãoetnográfica, mas diante de algo que é para nós conhecido esimultaneamente novo. A linguagem de caráter metafóricooferece suporte ao texto, permitindo à nossa sensibilidadeaproximar-se dele através de ângulos que revelam múltiplossignificados. A poesia de invenção devolve ao poeta a liberdadede transitar através dos eventos culturais do grupo exercitandosua alquimia pessoal. Quando lemos o livro de Oliveira Silveiraintitulado Orixás: pinturas e poesias, experimentamos assensações de conforto (porque os orixás procedem da cultura àqual pertencemos) e de estranhamento (porque os orixás deSilveira não são exatamente aqueles que aprendemos aconhecer). É evidente que são os orixás de nossos ancestrais,mas é também evidente que a linguagem do poeta osmultiplicou em significados que jamais havíamos observado.

Através da tendência de invenção Oliveira Silveiraredescobre a função fundadora da linguagem metafórica. Se opoeta pretendia recordar as tradições de seus antepassados,conseguiu mais do que isso, pois recordou-as criativamente. Deum lado, confirmou a presença dos orixás no cenário da culturabrasileira e, por outro lado, com a linguagem metafóricainaugurou o seu próprio cosmo poético. Quem ler este cosmocom olhos de etnógrafo ou historiador encontrará motivos paraanalisar a resistência da cultura afro-brasileira. Mas, quem tiveros olhos de leitor com nova sensibilidade encontrará motivosque confirmam o direito inalienável de todos os homens àliberdade de uso da imaginação. O poeta sabe que precisa dessaliberdade para falar de liberdade a seu povo. Por isso, o livro éiniciado com o poema dedicado a Exu Bará, dono dos caminhose símbolo do movimento. Além das informações quecaracterizam os orixás, a tendência de invenção deixa para oleitor o exercício de combinar os significados das palavras e dosversos; cada leitura pode ser a vivência de uma iluminação, talcomo insinua o poema “No caminho da Casa de Nação”:

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Vinham pelos caminhos,ruas e encruzilhadasabertos por Baráante a oferenda do galo, do milhoou do cabrito quatro-pé.

Vinham pelos caminhosatendendo ao chamado de um tamborque bate dentro de seus próprios peitos:tuc-tuc-tuc.

Vinham pelos caminhos– pele magnética -atraídos ao imã ancestral.

Vinham– caules decepados –nutrir-se nas raízes.

Punhos pretos negrosarmam armadilhas,trançam utensílios,arremessam flecha.Ou vão à prática de outrasestratégias e táticas.Assim Odé caça

e é também pra Otim.Caça o que carece.

Os caminhantes do poema estão se dirigindo para“nutrir-se nas raízes” de Bará, justamente a raiz damultiplicidade. Os planos retos e cruzados (que são ruas epodem ser tantos outros espaços) não fecham as possibilidadesde deslocamento. Assim também são as sugestões de significadodo texto: o etnógrafo e o historiador verão nele os sinais dos ritosna Casa-de-nação (ou terreiro de Candomblé) e o leitor de novasensibilidade verá as retas de significados que vão ao infinito e asencruzilhadas que misturam as diferenças para criar formasinovadoras. O poeta e o leitor da tendência de invençãoprecisam ser ágeis, aprendendo os artifícios da caça à linguageme aos seus significados. Isto é sugerido no poema “Provisão”dirigido a Odé, o orixá caçador:

Caça e abastece.

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A tendência de invenção, tal como a historicista,também nos mostra uma face contraditória e ameaça o poetacom certos riscos. A contradição da tendência de invenção nãoestá propriamente nas obras, mas nos procedimentos dospoetas que a praticam. Essa tendência propõe uma poesiacaracterizada pela liberdade (que leva o poeta a transcender oregistro objetivo dos fatos históricos) e aposta na expectativa deautores e leitores (que desejam um texto poético grávido designificações). No entanto, nas obras aqui consideradas, nasquais detectamos a tendência de invenção, os poetas seanteciparam em explicar os seus objetivos, historicamentedefinidos. Para isso, utilizaram notas pessoais ou notas semassinatura do autor. Ao escrever “Algumas notas” sobre o livro

e, Estevão Maya-Maya declara:

“De imediato o leitor identificará que se trata de uma criaçãoliterária de um autor negro. (...) Espero que este trabalhocontribua, além de uma manifestação literária, como uminstrumento de reforço à luta pela dignidade das maioriasminorizadas, notadamente a comunidade negra (...)”. Na últimacapa de : , de Oliveira Silveira,imprimiu-se um texto que expõe os vários objetivos da obra,dentre os quais destacamos o seguinte: “Se Zumbi e a maiorparte dos Palmarinos eram vinculados à vertente Angola-conguense (ou angola-congo-zairense), bantos portanto, éespecialmente significativo que recebam uma homenagem deextração jêje-nagô (aí subentendidas inúmeras outrasdesignações ou correntes religiosas ligadas aos orixás)”.

As explicações sobre os textos de Maya-Maya e deOliveira Silveira configuram a contradição dessa tendênciapoética que apela para a liberdade de interpretações. Logo deinício o leitor é fechado no círculo do significado politicamenteengajado. Já demonstramos a importância desse engajamento(mesmo porque a tendência de invenção procede de umarealidade social repleta de conflitos) mas, no caso, das obrascitadas ele coloca sob vigilância as expectativas de exploraçãodos significados que estejam fora dos limites estritamentepolíticos. Temos, com isso, a poesia de liberdade aprisionadapela linearidade da literatura pedagógica e transformada em

Regresso Triunfal de Cruz e Souza Os segredos de “seu”Bita Dá-nó-em-pingo-d'água

Orixás pinturas e poesias

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instrumento para atingir fins previamente estabelecidos. Ocaráter subversivo da tendência de invenção reside napossibilidade de rearticular a linguagem e de redescobrir aspotencialidades da imaginação. Explicar as funções políticasdessa tendência é submetê-la aos fatores que realçam aliteratura como documento e a inibem como exercício daliberdade. É necessário considerar que a explicação dos autoressobre suas obras é uma decorrência da marginalização impostaaos afro-brasileiros. Menosprezar o pluralismo da cultura afro-brasileira constitui uma estratégia dos grupos dominantes paraexcluir ou minimizar a participação dos afro-brasileiros nasociedade. As informações sobre a diversidade étnica do paíssão insuficientemente abordadas nas instituições de ensino e aspesquisas no setor das ciências sociais só aos poucos vêmdenunciando a violência do racismo à moda brasileira. Estes eoutros dados fazem da cultura afro-brasileira um patrimônioainda desconhecido para muitos brasileiros afrodescendentesou não; talvez, por isso, Maya-Maya e Oliveira Silveiraentendam que ainda é necessário explicar o universo sócio-cultural que fundamenta a poesia escrita por eles a partir datendência de invenção.

Com isso, um dos riscos da tendência de invençãoconsiste em situar os rituais da cultura afro-brasileira como únicafonte motivadora para interpretar a obra poética. Vemosdispersar-se a interferência pessoal e criadora do poeta, a obrabeira as margens do registro etnográfico e, antes de ser vistacomo poesia, é vista como obra de investigação ou documentoque descreve um grupo, sua língua, religião e manifestações davida social. Por conta disso, o poeta e o leitor são constrangidospelo olhar que observa os fatos considerados exóticos edesperdiçam a oportunidade de vislumbrarem novas redes designificados que a criação poética pode extrair dos eventosculturais. Outro risco da tendência de invenção decorre da fugaao registro etnográfico, quando o poeta investe de maneiraunilateral no experimentalismo. A obra poética, nesse caso, seresume a um esteticismo impermeável. Os signos da culturaafro-brasileira se dissolvem ao ponto de não serem percebidosno jogo formal que então se estabelece. Essa face da tendênciade invenção, se escapa ao risco da documentação etnográfica,assume o risco do experimentalismo por si mesmo e da

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esterilidade comunicativa – traços que se opõem àdisponibilidade dialógica da cultura afro-brasileira.

Estes comentários sobre a poesia brasileiracontemporânea não representam uma viagem completa. Oterritório poético por nós escolhido é extenso; apenascaminhamos por algumas estações, pois o viajante ainda nãoaparelhou a contento a sua bagagem para realizar viagens maisaprofundadas nesse território. No entanto, evitamos a tentaçãode registrar superficialmente as paisagens. Sentimos que há maisdensidade por entre as palavras que se multiplicam em textos eideologias: são palavras-documento e palavras-invenção, umasfotografando os fatos, outras filmando a dinâmica de váriasrealidades. Nossos poetas têm seguido diferentes mapas paradesvendarem as fontes da cultura afro-brasileira. Para alguns,elas parecem um bloco imutável, para outros, elas estão ativas,estimulando a inteligência e o espírito criador. Longe deestabelecer padrões de gosto e de escritura, procuramos refletirsobre o trabalho poético, considerando a relação deinterdependência entre a autonomia da criação poética e o seudiálogo com o mundo.

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CADERNOS negros. São Paulo: Editora dos Autores, 1988. v.11.

A razão da chama: antologiade poetas negros brasileiros.

A cena em sombras.

Regresso triunfal de Cruz e Souza e ossegredos de “seu” Bita Dá-nó-em-pingo-d'água.

Textos e tribos:

Poemas da carapinha.

Batuque de tocaia

Flash crioulo sobre o sangue e o sonho

Praça da palavra

Pêlo escuro: poemas afro-gaúchos

Roteiro dos tantãs

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VENTURA, Adão. . Belo Horizonte: Editora Lê,1992.

Poema sobre Palmares.

Anotações à margem

Orixás

Obra completa

Abrir-se uma abutre ou mesmo depois dededuzir dele o azul

As musculaturas do Arco do Triunfo.

Jequitinhonha

A cor da pele

Textura afro

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