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MÚSICA E EDUCAÇÃO INFANTIL

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MÚSICA E EDUCAÇÃO INFANTIL

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BEATrIz ILArI ANgELITA BrOOCk (OrgS.)

P A P I R U S E D I T O R A

MÚSICA E EDUCAÇÃO INFANTIL

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Música e educação infantil/Beatriz Ilari, Angelita Broock (orgs.) – Campinas, SP: Papirus, 2013.

Vários autores.Bibliografia.ISBN 978-85-308-1033-7

1. Educação de crianças 2. Música – Estudo e ensino I. Ilari, Beatriz. II. Broock, Angelita.

13-04576 CDD-780.71

Índice para catálogo sistemático:1. Música: Educação infantil 780.71

Capa: DPG EditoraFoto de capa: Rennato Testa

Coordenação: Ana Carolina FreitasCopidesque: Maria Lúcia Maier

Diagramação: DPG EditoraRevisão: Ademar Lopes Jr.,

Bruna Fernanda Abreu e Isabel Petronilha Costa

DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA: © M.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. – Papirus Editora R. Dr. Gabriel Penteado, 253 – CEP 13041-305 – Vila João Jorge Fone/fax: (19) 3272-4500 – Campinas – São Paulo – Brasil E-mail: [email protected] – www.papirus.com.br

Proibida a reprodução total ou parcial da obra de acordo com a lei 9.610/98. Editora afiliada à Associação Brasileira dos Direitos Reprográficos (ABDR).

Exceto no caso de citações, a grafia deste livro está atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa adotado no Brasil a partir de 2009.

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SUMÁrIO

APrESENTAÇÃO ......................................................................................... 7

1. “UMA BOrBOLETA NAS TECLAS DO PIANO”: SIgNIFICADO E DESENVOLVIMENTO MUSICAIS ........................ 11Cecília Cavalieri França

2. VArIAÇÕES SOBrE TEMAS DE DESENVOLVIMENTO MUSICAL E CrIAÇÃO ArTíSTICA PArA A INFâNCIA ................. 37Helena Rodrigues, Nuno Arrais e Paulo Maria Rodrigues

3. HABILIDADES MUSICAIS E CONSCIÊNCIA FONOLÓgICA: rEFLETINDO SOBrE O DESENVOLVIMENTO INFANTIL ............ 69Caroline Brendel Pacheco

4. SINAIS MUSICAIS: O COrPO COMO A PrIMEIrA rEPrESENTAÇÃO DA LÓgICA MUSICAL PELA CrIANÇA .......... 99Ricardo Dourado Freire e Sandra Ferraz de Castillo Dourado Freire

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5. SIgNIFICAÇÕES QUE POSSIBILITAM A COMPrEENSÃO MUSICAL ............................................................... 123Leda de Albuquerque Maffioletti

6. CrIANÇAS NA UNIVErSIDADE? ..................................................... 147Angelita Maria Vander Broock

7. PLANEJAMENTO NA MUSICALIzAÇÃO INFANTIL ..................... 167Vivian Agnolo Madalozzo e Tiago Madalozzo

8. APrENDEr NA CASA ........................................................................ 191Paulo Maria Rodrigues e Helena Rodrigues

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APrESENTAÇÃO

Uma família com cinco crianças, todas com menos de sete anos, se acomoda nas poltronas de um ônibus interestadual. Pai, mãe e avó negociam e organizam as crianças nas poltronas, inclusive o “quem senta com quem” do início da viagem. Vozes e risadas preenchem o ambiente inóspito do ônibus, agora em movimento. A paisagem da janela, por vezes monótona e repetida, dá origem a comentários animados e risadas empáticos: “Olhe aquele homem de chapéu!”, “Mamãe, tem pamonha ali”, “Veja, mano, que vaca magrinha!”.O ônibus segue. Outras paisagens, não tão diferentes assim, passam…Uma borracharia. Um atacadista. Uma favela. Cachorros correndo. Dentro do ônibus, bolachas, laranjas e garrafas de suco quente passam de mão em mão. As crianças trocam de lugar, numa constante luta contra o tédio. A viagem é longa.De repente, alguém se lembra de cantar. De longe, ouve-se o canto tímido de duas meninas. Outra menina une-se ao grupo e em seguida, um divertido jogo de mãos acontece. A menina menor às vezes erra um gesto ou verso, o que a irmã mais velha não deixa passar, fazendo correções. Entre os passageiros, há os incomodados e os indiferentes, porém um grupo maior se rende ao jogo animado, acompanhando e cantarolando os versos, que mudam constantemente. O tempo passa e o ponto de chegada se aproxima.

Cenas como esta são comuns no dia a dia das crianças. A música está presente na vida delas de inúmeras maneiras – do bebê que move o corpo ao som de uma canção conhecida, da criança pequena que inventa

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uma canção ao embalar o urso de pelúcia à outra que dança, imitando os gestos de sua banda de axé favorita. Outras crianças participam de programas de educação musical formal, sendo expostas, de maneira mais direta, às formalidades e regras da música. Essas crianças demonstram que não estão apenas aprendendo a música – formal ou informalmente –, mas que estão desenvolvendo habilidades musicais e extramusicais por meio das experiências. Assim, ao pensarmos na música na educação infantil, imediatamente pensamos em desenvolvimento musical.

Este livro nasceu da necessidade de reunirmos, em um único volume, textos baseados na teoria e na prática relativas às experiências musicais das crianças pequenas. É importante notar que adotamos aqui a definição de crianças pequenas1 como sendo aquelas que estão entre o período pré-natal e os oito anos de idade, conforme sugerido pela Organização Mundial de Saúde, pela Associação Norte-Americana para a Educação das Crianças Pequenas, pela Comissão de Educação Musical Infantil da Sociedade Internacional de Educação Musical, entre outras. Utilizamos essa definição e não aquela empregada pela legislação brasileira porque ela se alinha com as principais teorias do desenvolvimento musical encontradas na literatura mundial. Imaginamos que tal definição daria aos autores maior liberdade em seus textos, posto que em alguns programas de ensino de música, os grupos etários são organizados com base em outros critérios que não a idade de escolarização obrigatória.

Partindo dessa definição básica, convidamos especialistas em educação musical infantil, do Brasil e de Portugal, para contribuírem com um capítulo.

Não surpreendemente, todos os capítulos estão relacionados, direta ou indiretamente, à ideia de desenvolvimento musical, ou às mudanças ligadas aos comportamentos, às atitudes, aos significados e aos valores associados ao fazer musical, no decorrer do tempo. Alguns autores entendem o desenvolvimento musical como um processo atrelado a

1. Crianças pequenas: Early childhood. Disponível na internet: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs332/en/index.html, acesso em 12/9/12.

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grupos e faixas etárias específicas, aos passo que outros o concebem de maneira menos rígida. Além disso, o desenvolvimento musical é discutido aqui com base em metodologias e pressupostos teóricos distintos, o que só faz enriquecer ainda mais a obra.

Todos os capítulos combinam teoria e prática em educação musical infantil. No entanto, em alguns deles é possível notar uma ênfase maior na teoria. Por exemplo, Cecilia Cavalieri França, fundamenta-se em trabalhos anteriores do educador musical inglês keith Swanwick e em textos da filosofia para discutir como as criancas pequenas se desenvolvem musicalmente. Caroline Brendel Pacheco, por sua vez, traz à baila o debate acerca das relações entre as habilidades musicais (rítmicas e melódicas) e a consciência fonológica em crianças de quatro a cinco anos, usando como referencial teórico diversos estudos recentes da psicolinguística e da psicologia da música. Helena rodrigues, Nuno Arrais e Paulo Maria rodrigues discutem o desenvolvimento musical e a criação artística para a infância, tomando por base os trabalhos de Edwin gordon, Colwyn Trevarthen e Ian Cross. O capítulo é ilustrado com exemplos extraídos do belíssimo projeto português intitulado BebêBabá. Já Leda Maffioletti discorre sobre a questão das significações musicais e a compreensão musical, usando como base os escritos do musicólogo inglês Ian Cross.

Outros capítulos do livro tendem a dar mais peso à questão da prática, porém sempre sustentada por um rico arcabouço teórico. ricardo e Sandra Freire discutem a constituição dos sinais musicais pelas crianças, propondo a ideia do “corpossolfa”. O capítulo de Angelita Broock aborda a questão dos programas de extensão universitária em educação musical infantil e sua importância para a formação de professores. Na sequência, Vivian Agnolo Madalozzo e Tiago Madalozzo compartilham suas experiências com o planejamento de aulas e desenvolvimento de currículos para a educação musical infantil. Por fim, Paulo Rodrigues e Helena rodrigues apresentam uma descrição detalhada dos programas de educação musical para crianças pequenas da Casa da Música, em Lisboa, Portugal.

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Em conjunto, esses textos dão a ideia dos desenvolvimentos recentes na área da educação musical infantil, sugerindo novas possibilidades. Esperamos que este livro inspire novos desenvolvimentos na área, na teoria e na prática. Convidamos todos para participarem conosco deste grande jogo de mãos que é o estudo da educação musical infantil!

A todos, uma boa leitura.Beatriz Ilari e Angelita Broock

Los Angeles e Salvador, abril de 2013.

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1 “UMA BOrBOLETA NAS TECLAS DO PIANO”:

SIgNIFICADO E DESENVOLVIMENTO MUSICAIS

Cecília Cavalieri França

São 8 horas da manhã; 25 crianças do 3o ano de uma escola regular saem pulando assim que ligo o som. Não há como evitar. Durante os 30 segundos de duração da música, elas agitam os braços e batem os pés vigorosamente. zanzam pela sala esbarrando umas nas outras, às gargalhadas. A percepção, a prontidão do afeto e a disponibilidade corporal atuam em conjunto, impelindo as crianças a se fazerem saltitantes e espevitadas – como a música. “De novo!”, pedem em coro.

A peça “Vermelho” é uma vinheta que começa com um glissando do registro grave ao agudo do piano, gerando expectativa quanto ao que virá. Entram acordes repetidos no registro médio-agudo, sempre staccato, em compasso 5/8, muito rápido. Os baixos vão subindo em direção ao agudo, conduzindo a harmonia com os acordes da mão direita: C – F – C – F – C – F – g – C. Essa frase se repete várias vezes e, na última repetição, o andamento recua. Um glissando descendente espelha o início da música, encerrando-a.

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A próxima faixa, “Amarelo”, é uma miniatura, mais amena e delicada. Começa com appoggiaturas que se alternam docemente. Surgem braços voando alongados e passos curtos que se desfazem em piruetas e rodopios – como a música. Estabelece-se o baixo (lá), e as appoggiaturas se abrem em uma melodia em padrão escalar descendente que se repete três vezes. Esse padrão aparece então com o baixo em ré e a melodia ligeiramente modificada para acomodar a harmonia. Tudo é repetido uma oitava abaixo. Uma escala ascendente conduz de novo ao padrão inicial, no agudo, e termina com as appoggiaturas descendo até o extremo grave. Passa como uma nuvem, lembrando móbiles ou caleidoscópios. E alguns gritam: “De novo!”.

“Azul índigo”, a terceira peça, é bem diferente: muito lenta, intimista e hesitante. O tempo se dilata. Sobre um ostinato no grave do piano, dois motivos se alternam: um mais agudo, em ritmo pontuado, e um no registro médio, com ornamentos e notas repetidas. Assim se mantém o piano e sobre ele surge um solo de clarineta, amplo e solene. A princípio desconfiadas, as crianças vão se tornando como a música. Os movimentos se ampliam. Cavalheiros, astronautas ou equilibristas ajoelham-se, expandem-se, preparam saltos imaginários, esboçam passos solenes. Por um minuto e meio, não riem nem reclamam que a música seja lenta ou chata. Ficam meio que hipnotizados.

Com pena de quebrar o silêncio e com cuidado para manter a energia delicada que se instalara, peço às crianças que se assentem calmamente, trazendo papel e lápis. Pergunto-lhes: “O que vocês perceberam nessa música? Como a descreveriam para alguém que nunca a escutou?”. O corpo que acabara de dançar, deslocando-se no espaço, deverá agora movimentar-se em pensamento e transferir suas impressões para o papel. Ao saírem para o pátio, observo, entre escorregadores e balanços, rodopios e saltos, olhares distantes e risos pródigos.

Tais cenas da vida real se emprestam ao olhar do pesquisador: atividades corriqueiras, realizadas segundo alguns cuidados metodológicos, convertem-se em fonte de observação, análise e reflexão. As respostas das crianças, seus desenhos e relatos, constituem expressões de sua vida

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interior, produtos legítimos de sua experiência musical. Tê-los em mãos é como abrir o melhor presente, acolher algo precioso.

Significado

E assim se faz a música que habita nossa mente: sons individuais combinados são percebidos como gestos, motivos e melodias que incorporam nuances de expressividade. Brotam impressões, sensações, emoções. O caráter expressivo é determinado pelas escolhas dentre um amplo cardápio sonoro e pelas maneiras como estas são encadeadas. graus conjuntos tocados lentamente em legato no registro médio produzem uma sensação espacial e psicológica muito diferente de, por exemplo, saltos irregulares e imprevisíveis executados rapidamente no agudo e em staccato.

Imbuídos de significados, sons tornam-se música. Motivos, gestos, temas, melodias, passagens e movimentos inteiros assumem sentidos, sugerem ideias, provocam associações, evocam memórias. Como escrevia Hanslick (1957, pp. 87-88), arabescos e caleidoscópios de sons, formas plásticas e ondas de movimento soam graciosos ou desengonçados, delicados ou enérgicos, doces ou agressivos. Vivências e memórias de hesitação, monotonia, contraste, continuidade ou grandiosidade operam como plano de fundo e espelham padrões análogos percebidos nas músicas: frases curtas ou fragmentadas; gestos longos, expansivos; frases hesitantes, retraídas; temas assertivos e eloquentes.

Esses gestos, temas, frases, passagens e movimentos sucedem-se no tempo e se encadeiam a outros, delineando padrões de força, movimento e proporção, categorias apontadas por Hanslick (1957, pp. 37-38). Podem projetar impressões de monotonia, pela reiteração contínua, ou de ansiedade, pela constante quebra da expectativa. Num jogo de contrastes, repetições, variações e desenvolvimentos, articula-se a estrutura que se desenrola no tempo, desafiando-o.

Em resumo: materiais sonoros são combinados e produzem caráter expressivo; gestos expressivos são organizados em estruturas, formas

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musicais que revelam a vitalidade da música, seu valor como discurso simbólico (Swanwick 1994). Tais dimensões se acumulam por meio de transformações metafóricas (Swanwick 1999), cuja percepção é vital para a compreensão simbólica da música (Figura 1).

Figura 1: Dimensões do discurso musical

Fonte: Baseado em Swanwick (1994 e 1999) e em Swanwick e Taylor (1982).

Ainda que obras musicais não denotem elementos ou emoções específicos, nossas vivências e memórias de delicadeza, agressividade, vigor, hesitação, monotonia, contraste ou continuidade ateiam brasas à imaginação. Eventos plásticos de peso, espaço, movimento e tensão relativos, contidos em uma obra, relacionam-se a eventos vividos e guardados em nossa memória (Swanwick 1992, pp. 36-37).

Crescendo e decrescendo, acelerando e retardando, tensão e resolução, movimento e repouso, hesitação e determinação, preparação e completude, excitação e monotonia, expectativa e mudança súbita, entre outras, são propriedades dinâmicas vivenciadas a todo momento em nossa experiência cotidiana (Langer 1957, pp. 227-228). A música produz uma transmutação simbólica desse fluxo interno, numa tradução

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que nunca é fixa. Basta uma mínima semelhança entre os sons e as nossas experiências para que a imaginação ganhe asas (Langer 1957, pp. 68-71). Nossa fantasia delineia os mais diversos significados, associações que não são lógicas, mas psicológicas.

Se, quando a criança ouve música, a bailarina se põe a dançar, o menino a correr, a borboleta a voar, isso é atributo pessoal e intransferível da sua vida interior que se manifesta. É o encontro de estruturas sonoras relacionadas entre si e, ao mesmo tempo, com seu repertório simbólico particular.

Desenvolvimento

Venho me debruçando por quase duas décadas sobre a produção musical das crianças, tendo como referencial a Teoria Espiral de Desenvolvimento Musical proposta por Swanwick (1988, 1994; originalmente em Swanwick e Tillman 1986). A teoria descreve o desenvolvimento da compreensão musical em estágios progressivos correspondentes a elementos do discurso musical: materiais sonoros, caráter expressivo, forma e valor. Esses elementos, cumulativos pela própria natureza da música, revelam-se cumulativos também no desenvolvimento musical.

Encontramos na literatura um conjunto consistente de dados coletados em vários contextos e em diversas faixas etárias (França e Barbosa 2009; Swanwick 2008; Lehmann, Sloboda e Woody 2007; Carneiro 2006; runfola e Swanwick 2002; França e Swanwick 2002; França Silva 1998; Stavrides 1995; Hentschke 1993, entre outros).

Mas não são as estatísticas que me convencem do percurso do desenvolvimento musical visualizado por Swanwick, e, sim, o que meus olhos veem e o que meus ouvidos escutam. Com a sensação da concretude de quem toca uma escultura, tenho observado o desenvolvimento musical se desenrolar nas vozes e práticas de alguns milhares de crianças e jovens.

Tenho acompanhado também, dia a dia, semana a semana, ano a ano, meus próprios filhos galgando cada aquisição psicológico-musical,

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escalando descobertas como exploradores persistentes, e afirmando marcos do seu amadurecimento como bandeiras fincadas na lua. Hoje, enquanto escrevo, Fernanda brinca ao piano, improvisando especulativos. José Lucas ouve, canta e dança seu rock favorito, que já não é o mesmo de ontem e, provavelmente, será substituído amanhã.

Anos antes, seus balbucios musicais ainda se esboçavam enquanto seus ouvidos captavam cada sonoridade, musical ou não. registravam vozes associadas ao conforto, à saciedade, ao aconchego. Associavam o canto materno à suprema felicidade. Chocalhos, palhacinhos e móbiles musicais tornavam-se companheiros de explorações motoras e sensoriais. Meses desse “treinamento” levariam ao controle do gesto que produziria nuances de intensidade e variações de duração em qualquer objeto que se emprestasse à sua seriíssima pesquisa. Tal controle fazia “durar os espetáculos interessantes”, como observado por Piaget (1982, pp. 152-154).

No início da década de 1980, quando June Tillman estava cursando seu doutorado na Universidade de Londres, não era comum falar de “ensino de música” para crianças menores de três anos. Sua pesquisa, orientada por Swanwick (Swanwick e Tillman 1986), versava sobre criatividade. June coletou 745 composições orais (sem notação) de crianças de três a 11 anos e meio de idade, seus alunos na escola regular. Mas sua extensa revisão de literatura não a ajudava a compreender como se desenvolvia o pensamento musical dessas crianças.

Estudioso de Piaget, Swanwick acreditava que o desenvolvimento musical fosse análogo ao desenvolvimento cognitivo global da criança. Contribuições de outros autores também ajudaram a iluminar o cenário. Moog (1976) observou que a atenção sensorial inicial ao som e ao ritmo desabrochava em uma capacidade progressiva de reproduzir e controlar os sons, movimentar-se com a música e inventar canções. Bunting (1977) definiu diferentes modos de resposta à experiência musical, os quais chamou de neurológico, acústico, mecânico, ilustrativo, social, vernacular, especulativo e simbólico. Embora não tenha proposto uma hierarquia de desenvolvimento desses modos, sua categorização influenciou diretamente a nomeação dos níveis do Modelo Espiral. Ross

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(1984) propôs categorias amplas de desenvolvimento estético; em música, elas corresponderiam ao engajamento com materiais sonoros (de zero a dois anos) em direção a um progressivo domínio de estruturas sonoras e da representação expressiva (de três a sete anos), à preocupação com as convenções musicais (de oito a 13 anos) e ao senso de significado da música como forma simbólica (a partir dos 14 anos).

Com esses referenciais em mente, June e keith começaram a ouvir repetidamente as composições, procurando padrões que revelassem a senha para adentrar os mecanismos da criação. Um dia, estando de férias, Swanwick teve o insight: “It’s a spiral!”! O Modelo Espiral não foi previsto, não foi teorizado nem inventado: antes, foi descoberto, desvelado. Estava diante dos olhos (ouvidos), mas era preciso chegar muito perto das crianças, olhar (ouvir) com muito cuidado o que os meninos e meninas revelavam por meio das suas criações através do tempo. Foi o que os pesquisadores fizeram.

O mapa foi se delineando. Os dados foram submetidos a análises qualitativas e quantitativas até que padrões analíticos começaram a emergir. As composições foram agrupadas conforme esses padrões, que sugeriam uma sequência de mudanças qualitativas de compreensão musical, uma progressiva consciência das camadas do discurso musical, materiais sonoros, caráter expressivo, forma e valor. À medida que a criança se desenvolvia, começava a notar elementos que antes não lhe eram relevantes, mergulhando em novas camadas do discurso musical.

Essas quatro camadas se desdobram em oito níveis conforme uma inter-relação entre tendências assimilativas e acomodativas, entre intuição e análise. Alternadamente, tendências intuitivas, impulsos internos de exploração e tendências analíticas decorrentes do mundo exterior cooperam, conduzindo a criança a um patamar cada vez mais complexo de compreensão musical.

refazendo o percurso do desenvolvimento: o impulso musical é autogerado, dada a disposição inata à música. A brincadeira e a exploração sonoras, de naturezas sensoriais, logo são impulsionadas pelas trocas com o ambiente (1o nível: sensorial). Com o manuseio persistente de fontes

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sonoras e a maturação sensório-motora, surge a capacidade de dominar o gesto e de controlar o som, possibilitando a repetição voluntária (2o nível: manipulativo). Quando a estimulação musical ocorre paralelamente ao período sensório-motor (zero a dois anos), a passagem do nível sensorial ao manipulativo pode ser observada já neste momento, em virtude do aparecimento da intencionalidade (França e Carneiro 2006).

“Com os sons sob controle, a expressão musical se torna possível” (Swanwick 1994, p. 88), a princípio, de maneira intuitiva e espontânea (3o nível: pessoal). Em seguida, o impulso expressivo se apropria dos modelos e convenções oferecidos pelo ambiente (4o nível: vernacular). Os mecanismos adaptativos da criança são modelados pelos estímulos, pelos objetos, pelos instrumentos e pelas convenções musicais aos quais ela é exposta. O ambiente, que já havia determinado os materiais sonoro-musicais com os quais ela iria lidar, agora determina definitivamente o que é convencional. Os modelos oferecidos à criança desde o seu nascimento – antes dele, inclusive – serão imitados e integrados a seu repertório expressivo.

Com padrões convencionais assimilados, a criança dá vazão novamente à sua motivação interna de experimentar, de especular intuitivamente sobre forma musical, incorporando surpresas de maneira pessoal e exploratória (5o nível: especulativo). À medida que amadurece, começa a ajustar seu desejo de especular em direção a estilos e idiomas musicais (6o nível: idiomático). Estes são novamente oferecidos pelo ambiente e podem variar enormemente não só entre as sociedades, mas dentro delas também. Então, o valor simbólico da música é reconhecido: primeiro pelo seu significado pessoal para o indivíduo (7o nível: simbólico), depois para a coletividade (8o nível: sistemático).

O desenvolvimento musical, que guarda uma relação estreita com a maturação cognitiva, é tonalizado por padrões culturalmente específicos. Influências sociais explicam as diferenças na maneira como o pensamento musical é expresso: cada ambiente musical enfatiza certas características em detrimento de outras. Uma rede de relações vai determinar que tipo de música será valorizado. Assim, diferenças significativas aparecem entre diferentes sociedades e grupos, não obstante o modelo globalizado

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rock/soul/pop/funk. Isso conduz à produção de sistemas conceituais e de representação específicos, conduzindo a linguagem musical por caminhos diversos.

Em observações nas escolas regulares, tenho assistido, ao vivo e em cores, a unicidade da criança se manifestar, ainda que dentro dos padrões de resposta esperados para cada faixa etária. O individual – a expressão única – e o universal – a força propulsora do desenvolvimento – operam em dinâmico equilíbrio.

Convergências entre os olhares filosófico, psicológico e pedagógico

Acredito na importância de buscar convergências entre os pilares filosófico, psicológico e pedagógico na educação musical. O diálogo, tão necessário entre esses referenciais, pode contribuir efetivamente para aproximar teoria e prática educacional. É imprescindível que as decisões pedagógicas se alinhem com o percurso do desenvolvimento musical, otimizando-o com intervenções de ensino adequadas e sensíveis. Fazem parte desse processo a construção e a constante revisão de uma matriz curricular de referência para as séries iniciais do ensino fundamental (França 2006). A matriz explicita conteúdos e habilidades esperados do aluno ao final de cada segmento escolar, e que vão sendo construídos gradativamente.

Neste artigo, debruço-me sobre a apreciação musical. No que tange ao desenvolvimento, ela representa um importante indicador da maturidade musical dos indivíduos (França e Barbosa 2009; Barbosa 2009; Carneiro 2006; França 2005; Del Ben 1996-1997; Hentschke 1993 e outros). A apreciação fomenta o desenvolvimento tanto quanto pode facilitar a sua manifestação. Sua relevância musical é inquestionável, pois ela é capaz de oportunizar aos alunos uma vivência acessível e extremamente rica. A abrangência do repertório disponível para escuta confere a essa modalidade uma vantagem com relação às demais: é fato que os alunos podem experimentar uma gama de estilos e um número de

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obras muito maior e de complexidade técnica muito superior ao que eles seriam capazes de vivenciar por meio da performance e da composição. Na apreciação, é possível experimentar uma gama interminável de músicas em toda a sua inteireza e fluidez, em sua multiplicidade de elaborações expressivas e estruturais.

Por isso a escolha do repertório é crucial, pois as próprias peças podem instigar caminhos de escuta, provocar confrontos com o desconhecido, promover descobertas e impulsionar o desenvolvimento. Inversamente, as oportunidades de escuta serão subaproveitadas se oferecerem um repertório limitado, tendencioso ou excessivamente simples, de natureza vernacular, isto é, previsível, convencional, estereotipado. É equivocado pensar que se deve oferecer uma dieta musical “manipulativa” a alunos que aparentem estar no nível manipulativo ou esperar que vençam o vernacular para oferecer-lhes um repertório especulativo. Desde as primeiras vivências, é fundamental experimentar música em toda a sua riqueza, seu fluxo, suas surpresas e sensações. Diferentes culturas, gostos, épocas e estilos são excelentes fontes de ideias e significados musicais. Cada criança sorverá a escuta a seu modo, conforme seu amadurecimento cognitivo e musical lhe permitirem.

Este estudo concentra-se nos anos iniciais da educação básica, equivalentes aos anos finais da educação infantil (zero a oito anos, segundo definição internacional da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco). Essa faixa etária se configura como o ápice do interesse pelo caráter expressivo, compatível com os níveis pessoal e vernacular. Alguns estudos têm encontrado indícios desses níveis precocemente, enquanto outros têm localizado os níveis especulativo e idiomático já nessa faixa etária (Swanwick 1994; França Silva 1998; Fonseca 2005; Carneiro 2006). Essas variações podem ser decorrentes de um conjunto de fatores: a natureza e a intensidade dos estímulos do ambiente, a predisposição da criança e o repertório vivenciado por ela. Peças com o caráter expressivo muito acentuado podem evocar respostas nessa direção, assim como um insistente rondó pode instigar a percepção da forma.

Os procedimentos metodológicos de coleta e análise dos dados também podem afetar os resultados. Um dos nossos estudos revelou que

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o direcionamento dado pelo professor interfere no resultado da apreciação musical, oportunizando uma descoberta assistida e conduzindo os alunos a um nível de compreensão musical mais avançado (Barbosa 2009; França e Barbosa 2009). Quando questionados especificamente sobre a estrutura das peças ouvidas, crianças de sete a dez anos de idade revelaram compreensão (ainda que intuitiva) da forma musical. Esses achados são consistentes com o conceito de zona de Desenvolvimento Proximal (zDP), de Lev Vygotsky (1984), constructo que representa a distância entre o nível de desenvolvimento apresentado pela criança de maneira independente e o nível de desenvolvimento potencial observado quando ela conta com a orientação de outra pessoa mais capaz. Se, por um lado, a educação musical deve permitir que o impulso autogerado para a exploração intuitiva seja liberado, por outro, deve também promover uma experiência musical rica e estimulante, para que a criança tenha a oportunidade de atingir níveis mais profundos de experiência musical.

O objetivo da atividade de apreciação musical deste estudo, relatada no início deste artigo, era provocar o confronto entre caracterizações expressivas extremas. Ela foi realizada com 105 alunos do 3º ano do ensino fundamental de duas escolas, ambas de Belo Horizonte. A primeira pertence à rede pública e não conta com música no currículo, embora projetos musicais ocorram esporadicamente. A segunda trata de uma escola particular na qual a música se tornou disciplina curricular há quatro anos.

A análise das respostas das crianças das duas escolas (pública, sem aula de música, e particular, com música no currículo) tomadas em conjunto, apresentou os seguintes números (x2 = 197,3; p<0,001):

• nível sensorial: 4%; • nível manipulativo: 17%; • nível pessoal: 75%; • não foram encontrados produtos no nível vernacular; • nível especulativo: 4%.