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2010.1/2 [CADERNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO] http://www.mackenzie.br/dhtm/seer/index.php/cpgau ISSN 1809-4120 252 ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS ARTES: SUA CRIAÇÃO E SEUS ARQUITETOS HOIRISCH, Marisa; Arquiteta; Universidade Federal do Rio de Janeiro; Rio de Janeiro; Brasil; [email protected] RIBEIRO, Rosina Trevisan M.; Arquiteta; Universidade Federal do Rio de Janeiro; Rio de Janeiro; Brasil; [email protected]

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ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS ARTES: SUA CRIAÇÃO E SEUS

ARQUITETOS

HOIRISCH, Marisa; Arquiteta; Universidade Federal do Rio de Janeiro; Rio de Janeiro;

Brasil; [email protected]

RIBEIRO, Rosina Trevisan M.; Arquiteta; Universidade Federal do Rio de Janeiro; Rio de

Janeiro; Brasil; [email protected]

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RESUMO

Este artigo pesquisa a criação da Academia Imperial de Belas Artes na cidade do Rio de

Janeiro, que teve na notória figura do laureado arquiteto francês Grandjean de Montigny o

primeiro professor oficial de arquitetura do Brasil. Aborda a difusão do neoclassicismo na

cidade do Rio de Janeiro, a partir da atuação do próprio Montigny e de seus discípulos.

Apresenta alguns exemplares dessa arquitetura civil oficial, concebida para transformar a

paisagem carioca. Por sua monumentalidade, esses monumentos arquitetônicos

destacavam-se do cenário urbano imperial. Quando dispostos junto à Baía de Guanabara,

tinham como objetivo comunicar ao mundo que o Brasil estava se transformando num país

civilizado.

Palavras-chave: Academia Imperial de Belas Artes; Grandjean de Montigny; arquitetura

neoclássica.

ABSTRACT

This article is about foundation of the Imperial Academy of Fine Arts at the city of Rio de

Janeiro and the acknowledged architect Grandjean de Montigny, who pioneered Brazilian

official architecture teaching. It surveys neoclassicism spreading in the city of Rio de

Janeiro, based on Montigny and his disciples’ projects. The paper displays government

architecture samples, conceived to transform the city landscape. These architectural

monuments stood out in the imperial urban scenery due to its majestic appearance. Its

construction overlooking Guanabara Bay aimed at expressing to the world that Brazil was

about to become a civilized country.

Keywords: Imperial Academy of Fine Arts; Grandjean de Montigny; neoclassic architecture.

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RESUMEN

Este artículo investiga la fundación de la Academia Imperial de Bellas Artes en la ciudad de

Rio de Janeiro, que tuvo en la destacada figura del consagrado arquitecto francés

Grandjean de Montigny, el primer maestro oficial de arquitectura de Brasil. A partir del

trabajo de Montigny y de sus discipulos, esta investigación aborda la difusión del

neoclassicismo en la ciudad de Rio de Janeiro. Este trabajo presenta algunos ejemplos de

la arquitectura civil oficial, creada para transformar el paisaje “carioca”. Por su

grandiosidad, estos monumentos arquitectónicos se destacaban en la escena urbana

imperial. Estos se situaban junto a la Baía de Guanabara comunicando al mundo que Brasil

empezaba a ser un pais civilizado.

Palavra-clave: Academia Imperial de Bellas Artes, Grandjean de arquitectura neoclassica.

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ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS ARTES: SUA CRIAÇÃO E SEUS

ARQUITETOS

1. A CRIAÇÃO DA ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS ARTES

A criação da Academia Imperial de Belas Artes nos remete a 1808, quando o príncipe

regente Dom João VI foi compelido a se refugiar com a família real portuguesa no Rio de

Janeiro. Cerca de 15 mil imigrantes europeus tiveram que ser acomodados com sacrifício e

tumulto: o Palácio dos Vice-Reis foi transformado em Paço Real e residência do príncipe

regente; a rainha e suas damas ocuparam o Convento do Carmo; aos serviçais coube a Casa

da Câmara e Cadeia. Os fidalgos que não foram dispostos no Paço passaram a viver em

casas de moradores, às vezes cedidas à força.

O contato da população local com uma sociedade mais civilizada despertou o Brasil de uma

letargia secular: a colônia era caracterizada pela censura, pela falta de escolas e pela

interdição de contatos com outros países. Havia uma maioria esmagadora de analfabetos e

escravos e, evidentemente, nenhuma escola de arte. Ademais, as poucas cidades grandes

localizavam-se na costa e cresciam com certa lentidão.

“Toda a parte velha do Rio, principalmente, desagradou enormemente aos fidalgos recém-

chegados, tão acostumados à lindeza da Lisboa recém-construída”. A avaliação de Lemos

(1979, p. 106) se refere à reconstrução da capital portuguesa, devastada pelo terremoto.

A transferência do monarca europeu gerou profundas transformações políticas, sociais e

econômicas. A presença de um rei, o aumento do número de navios no porto e as

cerimônias grandiosas da corte introduziram na cidade novos hábitos e urbanidades. Com

isso, o Rio ganhou uma posição peculiar na história.

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A arquitetura, mais que simples expressão das novidades, foi agente de transformações. O Rio precisou se modernizar na medida do possível e as principais iniciativas oficiais nesse sentido foram urbanas ou arquitetônicas (ROCHA-PEIXOTO, 2000a, p. 29).

D. João VI decidiu, então, criar um instituto teórico-prático de aprendizagem artística e

técnico-profissional, contratando na Europa pessoas habilitadas e capazes de ensinar aos

brasileiros “todas as manifestações artísticas e, principalmente, as recentes técnicas e

decorrentes aperfeiçoamentos de mão-de-obra” (LEMOS, 1979, p. 108). A intenção de se

reunir na sede do reino um grupo de artistas e artífices para fundar uma escola de

ciências, artes e ofícios foi do conde da Barca, possivelmente pela arquitetura existente e

pelo aspecto geral da cidade do Rio de Janeiro. Afinal, quando a corte aqui chegou,

deparou com lotes estreitos e casas coladas umas às outras, imprimindo às ruas um ritmo

uniforme.

É bem verdade que, até então, as construções da colônia eram praticadas por pedreiros,

canteiros, carpinteiros, marceneiros, cinzeladores, estucadores, escultores, pintores,

realizadores de ornatos e ferreiros, mas o esforço empreendido por esses artífices findou

por se desperdiçar, pois não tinham o amparo de um organismo oficial a conduzir uma

escola de ensino especializada, orientando-os rumo a um aperfeiçoamento crescente.

Entre esses construtores, figuravam os mestres Valentim da Fonseca e Silva e Marcelino

Rodrigues de Araujo1.

Para Morales de los Rios (1941, p. 219), os únicos verdadeiros profissionais da arquitetura

que aqui atuavam quando a corte lusa aportou no Brasil eram os talentosos arquitetos

portugueses Manuel da Costa e José da Costa e Silva, este último o arquiteto geral de todas

as obras reais. Juntamente com o mestre-geral Reinaldo José da Silva, compunham a Casa

das Obras, que controlava as construções com a Intendência de Polícia.

O grupo de artistas e artífices franceses de inquestionável valor, historicamente conhecido

como Missão Artística Francesa, aportou no Brasil em março de 1816, chefiado por Joaquim

Lebreton (1760-1819), professor e antigo secretário da Académie des Beaux-Arts do Institut

1 Canteiro e construtor da Candelária, segundo Morales de los Rios Filho (1941, p. 217).

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de France2. Com a restauração da monarquia francesa por Luiz XVIII, Lebreton e outros

artistas de valor, outrora protegidos por Napoleão, amargaram o desprestígio em sua

própria terra. Seu desejo de partir era

compreensível; uns aderiram ao grupo na expectativa de que seus talentos fossem

apreciados num país estranho; outros, por questões financeiras. O ensino de arquitetura

ficou a cargo do laureado Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny (1776-1850) (Figura

1).

Figura 1: Grandjean de Montigny, por Augusto Müller, c 1843. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Grandjean_de_Montigny

Quando aqui chegou, o primeiro professor oficial de arquitetura no Brasil era notório em

seu país. De origem nobre, esse autor de livros valiosos, editados em Paris, havia cursado a

École des Beaux Arts, onde teve como mestres Delannoy, Percier e Fontaine, trazendo em

2 A Academia de Belas Artes era filiada ao Instituto de França, criado em 1795, no regime republicano. Fundada

pela fusão da Academia de Pintura e Escultura, de Música e Arquitetura. Com a independência da administração da Academia, passou a chamar-se École des Beaux-Arts, regida por novo regulamento.

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suas credenciais o Prix de Rome de 1799. O tradicional prêmio, um concurso instituído pela

Academia Francesa, homenageava a cada ano o aluno mais proeminente de cada

especialidade: pintura, escultura, arquitetura, entre outras. O vencedor recebia diplomas

e medalhas e era honrado com estudos complementares na Academia Francesa em Roma, a

Villa Medici. Ao ser eleito por um gabaritado júri, Montigny atraiu a atenção da

imprensa internacional, teve as portas abertas à celebridade e reuniu ampla experiência

com as formas artísticas italianas. Segundo Garric (2009, informação verbal)3, Grandjean

poderia ter influenciado a arquitetura francesa se tivesse permanecido em seu país, em

vez de migrar para o Brasil. Relevantes estudos sobre a arquitetura toscana4, contendo

plantas e fachadas desenhadas por ele e Famin, foram publicados entre 1806 e 1815 em

Paris. Contudo, pelo seu engajamento com o império francês, Montigny não podia lá

permanecer depois da queda de Napoleão em 1815. Na visão de Rocha-Peixoto (2000b, p.

320), a Missão Francesa “foi como uma concessão de asilo político aos artistas

napoleônicos, antipatizados com o regime da restauração”.

Tão logo aqui se instalou, Grandjean foi encarregado do projeto do prédio da Escola Real

de Ciências Artes e Ofícios. Apesar de ter sido criada em Carta Régia em 1816, a

construção da sede só se iniciou em 1817, mas as aulas ainda não haviam começado

quando a denominação foi mudada para Academia Real de Desenho, Pintura, Escultura e

Arquitetura Civil. Ainda foi renomeada Academia das Artes e em 1826, já após a

independência de Portugal, Academia Imperial de Belas Artes.

Na prática, portanto, apesar de a Escola ter sido criada em 1816, só em novembro de 1826

o prédio foi concluído. Nesse período, o papel dos ofícios, da indústria e da ciência foi

diminuído sensivelmente. Os novos decretos que determinaram essas mudanças quase nada

previam em relação ao ensino técnico, e quando a inauguração real da Academia foi

decretada finalmente em 1826, houve a instalação solene do corpo acadêmico e da

3 Anotações do curso “Grandjean de Montigny e o gosto neoclássico”, proferido pelo Prof. Dr. Jean-Philippe Garric, arquiteto e consultor científico do Institut Nationale d’Histoire de l’Art, França, de 29 de abril a 7 de maio de 2009, na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.

4 Estes estudos constam do livro intitulado Architecture toscane, ou Palais, maisons et autres édifices de la Toscane (MONTIGNY; FAMIN, 1815).

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abertura das salas de estudo da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA). Contudo, o plano

de estudos elaborado pouco refletia as intenções de dez anos antes.

Transcorreram-se mais de dez anos até a inauguração do ensino acadêmico de arquitetura

no Brasil. A demora também se deveu a entraves com os quais depararam os missionários

franceses na burocracia do governo no Brasil, além de hostilidades no meio artístico e

intelectual local. Os artistas portugueses vindos com a corte, e mesmo depois, se

mantiveram refratários ao domínio acadêmico

francês. Na rejeição lusa aos franceses desponta o pintor Henrique José da Silva, que foi

diretor da Academia após a morte de Lebreton em 1819. Esse lisboeta não poupou esforços

contra os artistas da França, obstruindo-lhes a atuação até falecer em 1834.

Na avaliação de Rocha-Peixoto (2000b, p. 320), “a opção pelo modelo francês de

neoclassicismo representou a consolidação da inclinação internacionalizante e civilizatória

em oposição à cultura [...] local comunitária, regionalizada e isolacionista” que vigorava

em nosso país. Quando se resolveu criar o ensino artístico no Brasil, escolheu-se o

neoclássico, “visto como capaz de modificar profundamente as entranhas do problema

civilizador, a partir dos seus fazedores”.

Vem daí, talvez, a preferência que se acabou impondo por uma academia de ensino superior, ao invés de ensino técnico do tipo liceu e somos então capazes de compreender as disputas e querelas entre lusos e franceses no interior da academia nascente (ROCHA-PEIXOTO, 2000b, p. 320, grifo do autor).

O que se pode afirmar é que, quando a Academia passou a funcionar,

[...] o ensino dito superior há de ter vencido o técnico-artesanal exatamente por vincular-se à França, no que se revela, talvez, a convicção de que, para escapar à órbita de Lisboa, fosse conveniente entrar na zona de dependência de Paris. No caso específico da arquitetura é semelhante a situação. Ocorre que já então a École Nationale Supérieure des Beaux-Arts de Paris desfrutava de um enorme prestígio internacional através do qual pôde exercer um poder de censura estético sobre toda a produção ocidental de arquitetura [...] (ROCHA-PEIXOTO, 2000b, p. 322, grifos do autor).

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A Figura 2 exibe a fachada e planta de Grandjean de Montigny para o edifício da AIBA no

Rio de Janeiro. De acordo com Rocha-Peixoto (2000b, p. 327), esse modelo com corpo

central elevado e alas laterais ritmadas com vãos simples de arco pleno segue o tipo da

primeira Praça do Comércio e constitui um tipo que se empregou com frequência no

neoclassicismo brasileiro.

Figura 2: Academia Imperial de Belas Artes, por Grandjean de Montigny. Fonte: Litografia de Debret s/data (apud ROCHA-PEIXOTO, 2000b, p. 326).

2. GRANDJEAN E O NEOCLASSICISMO

Em nosso país, Grandjean de Montigny esteve à frente de um movimento arquitetônico

renovador, que alterou a fisionomia tradicionalmente lusa da cidade do Rio de Janeiro.

Muitos autores o definem como pioneiro da arquitetura neoclássica no Brasil. Referindo-se

a ele e à Missão, Mindlin (apud ROCHA-PEIXOTO, 2000b, p. 61) observa que a arquitetura

brasileira foi dividida em duas: de um lado, ficam as construções de origem portuguesa; e,

de outro, as de influência francesa.

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No dizer de Darcy Ribeiro (apud ROCHA-PEIXOTO, 2000b, p. 45), “o neoclassicismo veio

com a Missão Francesa e interrompeu a fértil produção barroca que, se não fosse a abrupta

introdução de uma arte européia, teria ainda dado frutos por muito tempo”.

De acordo com Santos (1981, p. 52), “o neoclassicismo já se entrevia na reconstrução

pombalina de Lisboa, depois do terremoto de 1755 [...]”. Cabe lembrar que, quando a

Academia Imperial de Belas Artes foi fundada no Brasil, alguns exemplares do classicismo

já haviam sido aqui erigidos.

Diz-se que um período artístico é clássico quando suas características formais são regidas por cânones, isto é, quando deixam de variar drasticamente de exemplar para exemplar. E são justo esses cânones invariantes o objeto de estudo e transmissão nas classes das escolas (ROCHA-PEIXOTO, 2000b, p. 48).

Esse estilo teve seus antecedentes em nosso país na segunda metade do século XVIII

[...] nas obras de A.G. Landi, no Pará; de F. J. Roscio, na Candelária, na Câmara e Cadeia de Ouro Preto; na obra de Sá e Faria e em exemplares da obra do Brigadeiro Alpoim, numa série de casas de fazenda em torno do Rio de Janeiro [...] (ROCHA-PEIXOTO, 2000b, p. 64).

Também contribuíram para a produção de edificações neoclássicas os já citados arquitetos

portugueses Manuel da Costa e José da Costa e Silva, que aqui chegaram em 1808.

Por outro lado, foi o neoclássico trazido pela Missão Francesa e, consequentemente implantado pela Academia que se estabeleceu como paradigma da modernidade brasileira oitocentista, dado seu maior apuro e compromisso estilístico com os padrões europeus e pelo compromisso oficial de se estabelecer uma nova imagem à sede do Império (MALTA in PEREIRA, 1996, p. 215).

Montigny permaneceu até o final de sua vida no Brasil, realizando inúmeros projetos.

Alguns foram erguidos apenas para servir às festas da aclamação real de Dom João VI. Não

é demais lembrar que quando a família real portuguesa aportou no Rio de Janeiro em 1808,

o Brasil era colônia; em 1815, foi proclamado “Reino”, formando o Reino Unido com

Portugal e Algarve. Na visão de Souza (in PEREIRA, 1996, p. 53), a aclamação real foi o

momento artístico mais importante nos seis anos que, juntamente com os missionários

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franceses, o soberano viveu no Rio de Janeiro, até regressar a Portugal em 1821. Esses

artistas foram os primeiros a servir a família real portuguesa na capital do Reino do Brasil.

Conforme a autora, assim como Napoleão valeu-se do vocabulário artístico legado pelos

imperadores romanos para exaltar seu poder real, as formas e temas neoclássicos foram

aplicados no domínio do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, como uma propaganda

monarquista.

Para Marques dos Santos (1979, p. 18), a realidade encontrada pela Missão Francesa no

Brasil de D. João fez que suas obras e projetos se destacassem na “paisagem

aparentemente desordenada do espaço colonial”. Contrastavam os eventos arquitetônicos

de Grandjean, “principalmente os monumentos efêmeros – construídos para as grandes

ocasiões em madeira, como imensos cenários a tentar ocultar a realidade legada pela

Colônia” (MARQUES DOS SANTOS, 1979, p. 18).

Apesar dessa arquitetura efêmera parecer coadunar-se com as improvisações de tudo mais no Rio de Janeiro para transformar urgente a cidade numa capital, este tipo de arquitetura festiva provisória não foi uma invenção brasileira, mas ao contrário foi tão importada da França quanto a arquitetura perene da missão. [...] Durante o período revolucionário [francês] construiu-se uma quantidade de arquitetura efêmera para ambientar as festas cívicas e celebrações patrióticas (ROCHA-PEIXOTO, 2000b, p. 133).

No Rio de Janeiro foram erguidos no Largo do Paço: um templo consagrado a Minerva,

evocando o legado artístico grego, um arco do triunfo inspirado na arquitetura romana e

um obelisco, que remete ao Egito.

Além desses, poucos foram edificados e um número ainda menor permanece de pé.

Conhecido atualmente como Solar de Montigny e erguido antes de 1831, foi a casa que

Grandjean construiu para sua residência no bairro carioca da Gávea (Figura 3).

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Figura 3: Grandjean de Montigny, casa do arquiteto. Fonte: Rocha-Peixoto (2000b, p. 247).

Segundo Rocha-Peixoto (2000b, p. 244), a solução de colunas toscanas de alvenaria caiada

de branco sustentando a cobertura de amplos espaços avarandados nas fachadas foi

repetida em diversos estabelecimentos rurais do Estado do Rio de Janeiro no século XVIII.

Além da varanda, o autor destaca o emprego de telhas capa/canal entre os fatores que

contribuem para o conforto ambiental da casa. No dizer de Santos (1981, p. 57), eram

telhas originais de delicado formato, imitando as toscanas, e devem ter sido fabricadas

pelo próprio arquiteto na olaria junto à sua casa. Tal opção acabou por se revelar

adequada, já “que as [telhas] do Brasil, daquele tempo, eram muito largas e compridas,

fora de escala para os prédios de pequenas dimensões”.

Outro projeto de Montigny é a antiga Praça do Comércio do Rio de Janeiro localizada no

centro da cidade e atual Casa França-Brasil. A Figura 4 mostra um registro em aquarela de

seu interior e a Figura 5 exibe o corte realizado por Grandjean.

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Figura 4: Vista interior da Praça do Comércio, aquarela de Montigny, 1820. Fonte: Rocha-Peixoto (2000b, p. 118).

Figura 5: Corte da primeira Praça do Comércio do Rio de Janeiro, Grandjean de Montigny,1820. Fonte: apud Rocha-Peixoto (2000b).

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Além dessas, lamentavelmente só parte de uma obra sua foi preservada (Figura 6): o

pórtico de seu citado projeto para a antiga Academia de Belas Artes, disposto hoje na Aleia

Barbosa Rodrigues, Jardim Botânico, quando o prédio foi demolido nos anos 1930.

Figura 6: Portada da antiga Academia Imperial de Belas Artes de Montigny. Fonte: Valladares (1987, p. 85).

Em seus projetos do Rio de Janeiro, Grandjean difundia uma arquitetura que mesclava seu

aprendizado na Beaux-Arts com o da Academia Francesa de Belas Artes em Roma.

Conforme Malta (in PEREIRA, 1996, p. 215), a ideia monocrômica de Winckelmann, a

influência de Palladio e as tradições do neoclássico francês foram os princípios por ele

introduzidos.

O partido estético adotado pela Academia, os vínculos com o classicismo e a experiência artística e cultural de seus integrantes estarão diretamente imbricados com o problema da construção da civilização no Brasil da primeira metade do século XIX, onde a institucionalização do Estado autônomo compreendia, na contrapartida da afirmação política, uma espécie de missão civilizatória (MARQUES DOS SANTOS in PEREIRA, 1996, p. 45).

O neoclassicismo no Brasil foi, nas palavras de Rocha-Peixoto (2000b, p. 261), “um

instrumento de reforma social”. A implantação dessa arquitetura em nosso país devia

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adequar-se aos hábitos cortesãos, facilitando a renovação dos comportamentos sociais,

conferindo aos moradores o conforto condizente às suas posições na corte.

Mas a arquitetura neoclássica foi também um veículo comunicador. Através de sua rigorosa disciplina; da nobreza austera e pomposa de sua aparência exterior as construções modernas deviam permitir aos cariocas a leitura do programa civilizador da monarquia (ROCHA-PEIXOTO, 2000a, p. 30).

Alguns autores referem a independência de Portugal, em 1822, como um dos motivos que

fizeram o Brasil romper com a tradição arquitetônica lusitana. Com a Academia Imperial

de Belas Artes, nossa arquitetura adotou uma linguagem internacional norteada pela

Beaux-Arts de Paris. Assim, construções populares passaram a contrastar com obras civis

plenas de significados, erguidas em moldes neoclássicos. A adoção de platibandas e outros

elementos construtivos das ordens greco-romanas contrastavam fortemente com a grande

unidade arquitetônica vigente.

A academia introduziu no Brasil uma linguagem internacional e moderna para a arquitetura, instituiu a crítica e possibilitou a multiplicação dos profissionais de cultura universitária capazes de dar resposta arquitetônica aos novos anseios do Brasil independente (ROCHA-PEIXOTO, 2000a, p. 31).

3. DISCÍPULOS DE GRANDJEAN DE MONTIGNY

Matriculado na Academia Imperial de Belas Artes um ano após sua abertura, o gaúcho

Manuel de Araújo Porto-alegre (1806-1879) foi aluno de Jean-Baptiste Debret e de

Grandjean de Montigny de 1827 a 1831. Seguiu com o primeiro à França para estudos de

pintura e arquitetura, retornando em 1837 ao Brasil para lecionar na Academia, de onde se

demitiu em 1851. Como diretor da AIBA em 1854, renovou seu ensino e estatuto, na

reforma conhecida por Pedreira5.

De acordo com Rocha-Peixoto (2004, p. 22), a obra de Porto-alegre iniciou-se nos anos

1840, no começo do reinado de D. Pedro II. Realizou obras de reforma interna no Paço da

5 Reforma Pedreira foi assim designada, em homenagem ao ministro que a assinou, José Pedreira do Couto

Ferraz.

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Cidade e uma intervenção para unificação arquitetônica e estilística no Paço de São

Cristóvão, além da Varanda da Coroação e de um Arco do Triunfo, obras efêmeras para as

festividades da coroação. Foi responsável nos anos 1850 pelo projeto da antiga sede do

Banco do Brasil e da Alfândega, ambos demolidos no século XX. Seu projeto arquitetônico

de um edifício para a Escola de Medicina não saiu do papel.

Nascido no Rio de Janeiro, José Maria Jacintho Rebello (1821-1871) se formou em

matemática e engenharia na Escola Militar. Matriculou-se na AIBA em 1835, cursando

desenho, pintura de paisagem e arquitetura com Grandjean, tendo sido honrado com

medalhas de ouro. Realizou com Domingos Monteiro e Joaquim Cândido Guillobel (1787-

1859) o Hospital-geral da Santa Casa da Misericórdia entre 1840 e 1852 e o Hospício de

Pedro II de 1842 a 1852. Guillobel era engenheiro militar graduado em Lisboa. Segundo

Galvão (1954, p. 13), como professor de matemáticas aplicadas da AIBA, emitiu o parecer

do projeto do novo zimbório da Candelária, realizado por Justino de Alcântara.

Com Guillobel, realizou o Palácio Imperial de Petrópolis. Foi de autoria de Rebello o

pórtico do antigo Matadouro Municipal da Praça da Bandeira, duas residências para o conde

de Itamaraty e o Paço Isabel. Rebello “tem uma obra construída que o revela como um dos

arquitetos de maior sensibilidade do seu tempo” (ROCHA-PEIXOTO, 2004, p. 20).

Dentre os alunos de Montigny, Rebello e Guillobel reuniam o aprendizado artístico da aula

de arquitetura civil da AIBA com a formação técnica de engenheiros militares da Escola

Militar.

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Figura 7: Santa Casa de Misericórdia, Victor Frond, c 1858. Fonte: http://www.almacarioca.com.br/hist09.htm.

Figura 8: Hospício de Pedro II, pintura de Victor Frond, 1859. Fonte: Ferrez (2000).

Os dois prédios se parecem, ostentando grandes fachadas caiadas de branco, com um

pórtico no centro, formando uma espécie de templo de gnaisse bege, com dupla colunata,

arrematado por frontão triangular, de onde a escadaria principal em pedra conduz ao

vestíbulo. A distribuição de ambos em alas em torno de pátios internos com grandes

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galerias permite a entrada de farta luz e ventilação naturais, recomendadas à salubridade

hospitalar.

Erguidos entre 1840 e 1852, por iniciativa do provedor da Santa Casa, José Clemente

Pereira, com patrocínio imperial, são os “dois exemplares mais nobres, grandiosamente

simples, eloquentes e discretos da arquitetura fluminense” (ROCHA-PEIXOTO, 2004, f.

227). Construídos em estilo neoclássico, ambos destacam-se das edificações vizinhas por

suas qualidades arquitetônicas, dimensões palacianas e esmero construtivo.

No dizer de Sousa (2001, p. 75-76), a produção dos modelos preconizados pela AIBA e a

participação dos profissionais por ela graduados restringiu-se ao Rio de Janeiro. Com

exceção do Teatro Apolo, no Recife, cujo projeto coube em 1839 a Joaquim Lopes Cabral,

as edificações dos egressos da Academia executadas fora do Rio eram raras.

Aparentemente, esses tendiam a ficar no Rio de Janeiro, por acreditarem que o ambiente

endinheirado e sofisticado da capital nacional estimulasse suas atividades e fosse

compatível com o refinamento artístico que eles haviam atingido.

4. CONCLUSÃO

Quando o Brasil se tornou a nova sede do governo português, era fundamental dotá-lo de

uma capital adequada aos padrões europeus.

Uma das medidas de D. João incluiu a contratação de um grupo de artistas e artífices

franceses que aportou no nosso país em 1816 para criar uma escola de ciências, artes e

ofícios. Por motivo de atrasos e impasses, as aulas só foram inauguradas dez anos depois,

não mais como de ensino técnico, mas como Academia Imperial de Belas Artes.

A opção pela escola de ensino superior artístico era uma tentativa civilizadora, que seguia

os modelos da Beaux-Arts francesa e rompia com a arquitetura lusa no Brasil

independente. Optava-se pelo modelo francês de ensino artístico, para civilizar o país e

contribuir com seu desenvolvimento industrial.

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A criação da AIBA no Brasil foi uma iniciativa pioneira que se antecipou à metrópole: a

Academia de Belas Artes de Portugal só foi criada em 1836, dez anos depois da inauguração

da nossa.

O ensino de arquitetura foi ministrado oficialmente de 1826 a 1850 por Grandjean de

Montigny, que havia sido aluno de Percier e Fontaine e esteve à frente de um movimento

inovador difundindo a arquitetura neoclássica no Rio de Janeiro.

Grandjean de Montigny e seus discípulos foram responsáveis por obras de vulto na cidade

do Rio de Janeiro. É de sua autoria o pórtico remanescente da AIBA, a antiga Praça do

Comércio do Rio de Janeiro, atual Casa França-Brasil, localizada no centro da cidade e

também o Solar de Montigny, erigido na Gávea para ser a residência do mestre. Seus

discípulos Rebello e Guillobel projetaram e construíram com Domingos Monteiro dois

paradigmáticos monumentos neoclássicos: o Palácio Universitário, antigo Hospício de Pedro

II, situado na Praia Vermelha e a Santa Casa de Misericórdia, no Centro.

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