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Da Antropofagia à Tropicália

Carlos Zilio

Da Antropofagia à Tropicália, publicado em 1982, resultou do seminário O nacional

e o popular na cultura brasileira, organizado por Adauto Novaes na Funarte em

1981. Este artigo se somou às primeiras iniciativas após a morte de Hélio Oiticica

em 1980 buscando apoiar a divulgação de sua obra, que sabíamos capaz de de-

monstrar uma relação original e contundente com o contemporâneo. Foi, também,

um desdobramento da minha indagação sobre o nacionalismo na arte brasileira

após a análise do Modernismo em meu livro A querela do Brasil.

Cultura brasileira; projeto nacional-popular; nacional vs internacional; Hélio Oiticica.

Para Mário Pedrosa

“no Brasil há fios soltos num campo de possibilidades: por que não explorá-los”

Hélio Oiticica

Hélio OiticicaÉden, em Whitechapelexperience, Londres, 1969Foto: Hélio Oiticica

B24, Bólide Área 1, 1967, emWhitechapel experience,Londres, 1969

Fonte: Acervo Projeto HO, Rio de

Janeiro

O surgimento e desenvolvimento da ideiade nação ao longo dos séculos 14, 15 e 16foi acompanhado por uma nova concepçãode arte, o Renascimento. Estas novas for-mulações, tanto políticas quanto culturais,revelam, em última análise, uma posiçãoepistemológica baseada na identidade entrelogos e razão. Esta será a base ideológica daburguesia no seu processo de ascensão.

A razão foi o instrumento capaz de formu-lar, por exemplo, uma organização políticaque reunisse, num mesmo espaço geográfi-co — base de um mercado — e numa mes-ma comunidade, grupos sociais independen-tes e, em geral, com língua, religião e costu-mes distintos. Quanto à arte, o homem pas-sa a crer na existência de uma realidade comleis próprias – a natureza – distinta das reali-dades divina e humana. Passa a crer tam-bém na sua capacidade de representar estemundo utilizando-se de alguns princípios ra-cionais, como os artifícios da perspectiva edo claro-escuro.

Esta harmonia entre a base material e o cam-po simbólico seria, durante o século 19, co-locada em xeque. As transformaçõesprovocadas pela Revolução Industrial e osdiversos conflitos sociais que eclodem portoda a Europa evidenciam contradições quevão atingir a arte numa sequência de movi-mentos que se oporão ao sistema plásticodominante. A sucessão destes movimentos,desde o Romantismo ao Impressionismo,culminará com a ruptura proposta pelo sis-tema pictórico de Cézanne. Aí se localiza ocorte com o espaço renascentista. Cézanneincide sobre o seu alicerce básico, isto é, oseu compromisso com a representatividade.

Neste momento a arte moderna cria umadesarticulação na construção da ideologiaburguesa erguida sobre o sujeito cartesiano.De um ponto de vista mais imediato, o com-promisso direto que havia entre o conceitode nação e o de arte se desfaz. A possibili-dade de utilização da arte como glorificaçãode uma realidade nacional (histórica, políti-

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ca, geográfica) deixa de ter sentido. A artemoderna tenderá a internacionalizar-se.Surgida no universo da cultura francesa apartir do Impressionismo, entrou em conta-to com culturas estranhas à tradição ociden-tal, como a japonesa. No início do século20, a aproximação com a arte da Oceania eda África será decisiva para o desenvolvimen-to da arte moderna.

É verdade que existem experiências compretensões nacionais, como o Expressio-nismo “alemão” e o Futurismo “italiano”. Tra-ta-se, porém, muito mais de afirmações naci-onais de caráter superficial, do que propria-mente de afirmações de culturas nacionais.O que ainda estava em jogo eram envol-vimentos patrióticos num quadro político depré-guerra, diante da hegemonia francesa nasartes. Quanto aos movimentos modernos,ao invés de cultura nacional o mais apropria-do seria pensarmos em termos de culturaeuropeia, no sentido de uma relação dialéticaentre particularizações de uma mesma cul-tura. Sem dúvida, Paris, como no dizer deBenjamin, era a capital do século 19. Mas àmedida que o desenrolar da arte modernairá produzir seus movimentos maisdeterminantes (Dadaísmo, Surrealismo e arteconstrutiva), a arte terá uma dimensão ca-racteristicamente internacional. No entanto,seria simplista ignorarmos o ressurgimentoda questão de uma identidade cultural nacio-nal, sobretudo nos países americanos. Aí aquestão ganha contornos exclusivos, a quenão é estranho o fato de terem sido forma-dos segundo o modelo de implantação co-lonial. Isto é, da demarcação e ocupação deum território, onde se buscava a uniformiza-ção da língua, religião e costumes. Além dis-so, o processo de independência nacionaltraz em si sua faceta ideológica de afirmaçãode uma nova identidade. Este projeto é mar-cado por tensões, uma vez que implica ne-gação e afirmação da cultura colonizadora.Negação, na medida em que busca suas par-

ticularidades, ou seja, a convivência dentrodaquele contexto particular com diversasculturas indígenas e, em alguns países, ne-gras. Afirmação, enquanto consciência de queesta relação cultural é baseada e permeadapela cultura do colonizador.

Basta tomarmos a arte norte-americana paraverificarmos que o surgimento deste senti-mento de afirmação de uma identidade iráacompanhar todo o seu desenrolar. Nos Es-tados Unidos, esta perspectiva remonta aWalt Whitman e teria sido proposta no pre-fácio de Leaves of Grass (1855).1 Nele estáexposto o projeto de uma cultura democrá-tica na qual ficariam eliminadas as diferençasentre o feio e o belo, valor e mediocridade(coincidências com Pollock não são meroacaso). Segundo Whitman, para se ter a ex-periência da América moderna bastaria ape-lar antes de tudo para o modo de expressãoo mais sincero. “Os Estados Unidos são nasua essência o mais grandioso poema.”

A busca brasileira de uma arte nacional

No Brasil, ao contrário do que seria de sesupor, a independência política não produz,nas artes plásticas, qualquer tendência na-cionalista. Mesmo o Romantismo pouco ecovai ter, limitando-se eventualmente à temáticaindianista. A repercussão da Missão ArtísticaFrancesa norteava o universo plástico emtorno do Academismo. Esta era a tendênciaoficial na Europa, dando ao poder a garantiade dominação ideológica. Esta garantia eracompletada pela marginalização dos movi-mentos precursores da arte moderna. Paraos nosso artistas, impregnados pelo espíritodo Academismo, que se queria universal, aafirmação nacional passava pelo domínio dossegredos da academia. Esta seria, para eles,a única maneira de se colocarem entre asnações “cultas” e “civilizadas”.

É curioso verificar que foi necessária a via-gem ao Brasil do pintor austríaco Georg

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Grimm, para que alguns dos nossos artistasconsigam se liberar da paleta esquemáticada academia e passem a perceber a cor tro-pical. Tornou-se preciso a vinda de um eu-ropeu para mostrar que olhar a natureza nãoera sinônimo de selvageria. Neste mesmosentido seria importante lembrar a contri-buição de Almeida Junior, o primeiro artistabrasileiro que incorporou à temática do seutrabalho a paisagem e o homem brasileiros.Não é à toa que os modernistas o conside-ram seu antecessor.

Mas, rigorosamente, foi o movimento mo-dernista o primeiro momento em que umgrupo de intelectuais e artistas planejou acriação de uma arte brasileira. Isto implicavanão se limitar apenas ao nível da temática,mas atingir os elementos pictóricos, elabo-rando uma imagem cujo ineditismo fosseresultado da sua identidade com a culturabrasileira.

O Modernismo elimina o complexo deinferioridade da arte brasileira, transfor-mando-o em virtude. Movimento em duasetapas intimamente associadas: colocar aarte brasileira em dia com a cultura oci-dental e fazê-la voltar-se para a apreen-são do Brasil. Paradoxalmente, a arte mo-derna “internacionalista” deflagra e encami-nha a cultura brasileira à sua autoindagação.Evidentemente, esta posição seria impossí-vel para o Academismo, preso ao formulá-rio das regras. A arte moderna, liberando acriatividade, incorporando culturas diferen-tes da ocidental e utilizando a temática comoum simples pretexto, permitiu que os artis-tas brasileiros se voltassem para os aspectosculturais que lhes eram próprios.

Além deste desrecalque operado em rela-ção às culturas negras e indígenas, o Moder-nismo conscientiza e procura trabalhar a ten-são entre a produção de arte no Brasil e asua ligação com a produção europeia. Tra-

tava-se de superar o estado de reverênciaabsoluta mantido pelos acadêmicos, compre-endendo a relação com a Europa de umamaneira dinâmica e, sobretudo, contra-aculturativa. O movimento antropofágicodará a fórmula numa busca de síntese entreo “nacional” e o “internacional”, propondo adevoração do pai totêmico europeu, assimi-lando suas virtudes e tomando o seu lugar.Uma arte brasileira para exportação, cujoproduto mais representativo nesta primeirafase será a obra de Tarsila do Amaral.

A segunda fase do modernismo: origem da

tradição nacional-popular

De 1930 até 1945, o Modernismo sofre al-gumas adaptações. Não bastava mais umaarte que fosse brasileira e moderna. Ela ha-via de ser também social, vale dizer, vincula-da aos problemas do povo brasileiro e des-tinada a ele. Em termos estilísticos, a ima-gem da segunda fase do Modernismo temum tratamento mais realista, e passa a privi-legiar uma temática voltada para retratar opovo em situações de trabalho, nas suas fes-tas e na sua miséria.

Esta posição acompanha uma politizaçãocrescente no interior do Modernismo. Elaserá no Brasil a repercussão de um proje-to cultural de esquerda que se espalha portodo o mundo, embora com conotaçõese interpretações nacionais. No centro des-te projeto há uma visão de arte como re-flexo da realidade e como instrumento deconscientização política. Ele tomará feiçõesque variam desde o chamado Realismo So-cialista, passando pela arte social norte-ame-ricana e os muralistas mexicanos. Entre nós,Portinari será o seu principal representante.

É preciso ter em mente que ao se imporentre nossos artistas, a arte social não mar-cará uma ruptura, mas se adaptará e se en-quadrará dentro das tradições do movimentode 22. Ela carregará a preocupação com uma

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arte nacional que expressasse uma síntesedo simbólico brasileiro. É o que AntonioCandido denomina a “vocação populista” doModernismo, esta busca de um arquétipodo imaginário nacional.

Comparada à arte mural mexicana, a artesocial brasileira será menos uma denúnciapolítica direta e mais constatativa. Além dis-so, não lançará mão de influências da artepopular. Será ainda mais harmônica e equili-brada que a dos mexicanos, que apelavamdeliberadamente a uma estética do feio.

Esta foi a perspectiva cultural adotada pelaesquerda brasileira, como única forma de arterevolucionária. Apesar da repercussão quea arte social teve nas artes plásticas, ela foi,na realidade, mais um acontecimento teóri-co. Não foi um resultado capaz de se tradu-zir num conjunto importante formado pelaobra de vários artistas.

A exceção seria Portinari. No seu quadroCafé, de 1935, ele já mostrava característi-cas tipicamente muralistas no tratamento datemática e do espaço. A partir daí e da pro-jeção que alcança no Brasil após umapremiação internacional com este trabalho,ele será constantemente solicitado pelo go-verno a executar painéis. A sua obra irá de-senvolver-se ganhando uma unanimidade deelogios raramente vista na arte brasileira.Portinari consegue a proeza estilística de, semser um artista oficial e sem abandonar osprincípios de uma arte social, reunir em tor-no de si a esquerda e o poder. As origensdeste fenômeno teriam de ser analisadas apartir das suas fontes estilísticas. Elas englo-bam desde influências do quattrocento itali-ano, passando ainda pela arte mural mexica-na, Picasso e, evidentemente, o aprendizadoda Escola Nacional de Belas Artes. O estilode Portinari compreenderá uma assimilaçãodestas diversas fontes, com predominânciamomentânea de uma sobre a outra.

A formalização, porém, que ele empresta aeste conjunto de influências vai se enqua-drar perfeitamente no nível de possibilida-des de aceitação visual da cultura brasileirada época, ou seja, uma arte que sendo mo-derna não era “ininteligível”. Ao mesmo tem-po, atingia o registro perfeito das necessida-des históricas desta cultura. Permitia em tor-no de si a retórica de um discurso políticocapaz de englobar tanto a plataforma de-nunciadora de esquerda, quanto as preocu-pações “sociais” e modernizantes dopopulismo da ditadura getulista.

Os pontos frágeis da obra de Portinari coin-cidem com os da arte mural mexicana, semas virtudes desta, e do projeto nacional-po-pular em geral. Paternalistas ao didatizar osproblemas do povo e ao mesmo tempodependentes do mecenato do Estado paraexecução de obras públicas, sofrem por partedo Estado um processo de recuperação desuas obras como patrimônio nacional, o queesvaziou qualquer conflito social que pudes-sem portar. Contradição estilística, ou seja,tentativa de conciliação entre oRenascimento e a arte moderna. Tentativa,sem sucesso, de solucionar a contradiçãoentre a linguagem da arte e um código maisassimilável pela grande massa.2

Esta posição da esquerda e do Partido Co-munista terá a seu serviço um dispositivoorganizado e constante de divulgação. Alémdisso, é preciso considerar que rigorosamen-te será o único projeto cultural capaz de for-mular uma visão global para a cultura brasi-leira, inclusive da sua inserção social, ao con-trário daquelas elaboradas pelo Estado, in-completas e ineficazes, pois movidas ao sa-bor de administrações nem sempre coeren-tes entre si.

Não se pode pretender que naquela época,e até mesmo hoje em dia, tenha existido anecessidade de elaboração de um projeto

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cultural para a manutenção da ideologia do-minante no Brasil. Seria atribuir ao país umnível de sofisticação social que ainda nãopossui. Isto não significa que o poder se hajaomitido. Tudo indica que o projeto da es-querda, pelas suas imprecisões, tenha sidocapaz de preencher o espaço cultural semantagonismos com a ideologia dominante.Neste sentido, basta lembrar a manipulaçãoa que se prestam suas categorias básicas –povo e nação – devido à ambiguidade deque são portadores.

Contestação e poder

A análise do universo psiquiátrico do século19 desenvolvida por Marcel Gauchet eGladys Swain3 nos fornece alguns subsídiospara compreender melhor esta relação en-tre uma concepção cultural contestadora eo poder. Não se trata aqui de uma analogiagrosseira, mas de compreender que o asiloe o Estado moderno possuem umagenealogia idêntica e são baseados em ideiasou em representações comuns.

Após Pinel, deve ser curado o louco isoladoe incomunicável, definido pela sua singulari-dade. O que está em questão neste “pro-gresso” da medicina mental é uma nova filo-sofia do sujeito e um abalo dos pontos derelação entre o indivíduo e o poder. Os au-tores relacionam esta pretensão de curar olouco, através de sua integração na vida e nadisciplina coletiva do asilo, à exigência maisgeral das sociedades modernas de obter decada um dos cidadãos um consentimentointerior ao poder do Estado. Ora, esta curaconsiste, portanto, em lhe restituir a com-preensão desta lei que ele ignora. Assim, oalienista em relação aos loucos e o Estadoem relação aos cidadãos se encontram namesma situação, quer dizer, pensam no lu-gar do indivíduo. A filosofia das luzes permi-tiu a possibilidade desta relação ao divulgaruma visão do homem determinado pelo seu

ser empírico, formado por suas sensações emaleável ao seu ambiente. Antes mesmo quea esquerda moderna utilizasse o slogan “mu-dar o homem” e que a direita tivesse a pre-tensão de o reduzir a uma obediência me-cânica, o século 17 aproveitou esta concep-ção para pensar o social a partir do individu-al, ou seja, ligar o individual ao social.

Ideia tanto mais indispensável uma vez queeste social, a partir da Revolução Francesanão é mais enraizado ou legitimado por umarealidade transcendente: a Revolução é mes-mo o momento a partir do qual lhe é ne-cessário se autoinstituir, a partir tão somen-te de si mesmo, sem recurso a Deus. Opoder deve, simplesmente, para existir, pre-encher esta condição exorbitante de sertransparente ao social, seu duplo, sua ima-gem unificada, sua instância “histórica”, en-fim sua verdade e sua razão. O asilo, onde olouco deve reencontrar a razão, quer dizer,seus semelhantes, pela virtude curativa dainstituição, é o microcosmo não apenas doEstado totalitário, mas do próprio Estadomoderno.

Ele partilha seu ato fundador, pelo qual oEstado submete os indivíduos a sua razãopara constituir uma sociedade que ele possaencarnar legitimamente. O Estado moder-no, que se pode chamar também de “de-mocrático”, repousando sobre indivíduoscom direitos iguais, representa não mais umaexclusão do louco, mas sua reintegração, ousua integração, especial e provisoriamente,no coletivo humano.

Antes o louco era aceito na sociedade, masa título de não humano, de radicalmenteoutro, como matéria de espetáculos, espé-cime particular, reservado à curiosidade e aoriso. O fechamento dos loucos em institui-ções particulares, ainda que especializadas,significa o fim desta alteridade. Organiza-separa ele uma situação de exterioridade à

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sociedade, mas este externo, fechado e nãoexpulso, é submetido, como todo o social, àautoridade instituinte do Estado. Deste modo,os seus fora da norma são num só movimen-to excluídos e incorporados. A sua supressãoda sociedade é resultado de um sentimentode que eles deveriam ser iguais aos outroshomens. Daí a supor que eles poderiam setornar de novo iguais é o passo que o asilodo princípio do século 19 ultrapassa.

A proposição fundamental de Gauchet eSwain é uma definição do “moderno” peladinâmica igualitária. Compreenda-se aqui oconceito de igualdade no seu sentido maisgeral, o qual define o indivíduo das socieda-des democráticas como possuidor dos mes-mos direitos originais que todos os seus se-melhantes. É esta dinâmica sufocante queengloba os loucos numa onda integradora eque, aliás, não cessa de estender seus bene-fícios contestados a todos os excluídos “his-tóricos” da igualdade: as mulheres, as crian-ças, as minorias étnicas etc.

Daí a complexidade de que se reveste a re-lação entre o poder e as políticas culturaisque se atribuem função contestadora. Ape-sar da posição de antagonismo à ideologiadominante que o projeto nacional e popu-lar se propôs no Brasil, ele cumpre muitomais uma função reveladora de uma situa-ção ideológica, que propriamente de con-testação. Isto porque, de fato, ele é o proje-to cultural hegemônico. E o seu estatuto deoposição se insere num sistema no qual opoder, ao contrário da aparente omissão, selegitima. Isto ocorre na medida em que opoder “se inclina” diante deste projeto e, noentanto, é ele quem governa.

Evidentemente que estas relações entre oasilo e o Estado moderno, válidas para associedades historicamente sedimentadas,como as europeias, devem ser relativizadasno que se refere ao Brasil. Ao contrário dos

mecanismos que a maioria dos Estados polí-ticos europeus se vê obrigada a utilizar para aluta ideológica no campo cultural, no Brasil,devido à pouca importância desta luta comoinstrumento de dominação social, as políticasainda ocorrem improvisadamente. Apesardisto, a concepção apresentada sobre os fun-damentos do Estado moderno seria umapossibilidade de explicar o fato de o projetonacional e popular, tendo atravessado dife-rentes formas de governo, ter sido capaz dese manter como proposta dominante. Che-gou mesmo a impregnar amplamente as ini-ciativas governamentais, como no Plano Na-cional de Cultura elaborado em 1975.4

Enquanto um Estado que se quer moderno,o brasileiro não poderia ter outra ideologiaque não fosse “igualitária”: o “povo”, comoconjunto de todos os cidadãos, e o “nacio-nal”, a nação como Estado soberano.

A brasilidade enquanto positividade

O percurso da redescoberta do Brasil pas-sará, como foi visto, por uma aproximaçãocom a arte moderna e principalmente coma Escola de Paris. Ao se dirigirem para aFrança, na sua busca da modernidade, osartistas brasileiros irão ter de superar emalguns meses a desinformação sobre algu-mas décadas da história da arte. Praticandona sua maioria algo próximo ao art-nouveau

ou um tímido Impressionismo, eles tinham,por exemplo, de Cézanne e do Cubismo,uma vaga ideia.5 Esta defasagem os levaria ater em Paris, como modelos, aqueles artis-tas mais consagrados, e pioneiros da artemoderna, que a esta altura viviam um perío-do de institucionalização conhecido como“retorno à ordem”. Já se faziam sentir osefeitos do processo de recuperação domercado sobre a arte moderna. O talentoindividual dos brasileiros marcará a maiorou menor visão crítica que cada um terádo fenômeno.

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Naturalmente vinculados a estes modelos,os modernistas não terão condições paracompreender em profundidade o sentidodaqueles movimentos mais radicais que sur-giam. Tanto a negatividade introduzida peloDadaísmo e pelo Surrealismo na crítica aosistema de arte, como as possibilidades aber-tas pela arte construtiva ao introduzir umcódigo icônico abstrato, serão estranhas aouniverso estético do Modernismo brasileiro.

Até então, a arte brasileira foi resultante dastensões produzidas entre a existência de ummodelo europeu e, digamos, o “chão cultu-ral” brasileiro, compreendido aqui como aconfiguração da cultura brasileira num de-terminado momento histórico e, mais parti-cularmente, da produção de arte realizadapor artistas que vivenciaram, parcial ou to-talmente, um conjunto de fatores própriosà existência da arte na sociedade brasileira.Isto os modernistas entendem e incorpo-ram programaticamente. No entanto, apositividade do modelo formal europeu edo projeto de elaboração de uma arte bra-sileira formam um quadro propício à crençana elaboração de um mecanismo teóricocapaz de solucionar esta tensão, através deuma síntese confortável.

Esta vontade estará por trás do universomodernista e irá solucionar uma questão his-tórica que, na realidade, ultrapassava o de-sejo de um grupo de intelectuais. É o aqui eagora de Oswald de “Tupi or not tupi”. Ape-sar de movimentos como o Verde-amarelismo e o Anta não terem obtido re-percussão nas artes plásticas e das diferen-ças profundas de concepção que eles pos-suíam com o Pau-brasil, a Antropofagia emesmo a fase social, todos eles se identifi-cam por quererem, num passe de mágicateórico, fundar a arte brasileira. De fato, oque as obras mais significativas do Moder-nismo irão mostrar é que elas permanece-ram dentro de um sistema de tensões. Este

sistema que resultava em algumas soluçõesformais diferentes daquelas existentes dosmodelos europeus, mas que não chegavama configurar um estilo brasileiro.

A positividade construtiva

Após 1945, o Modernismo passará a ser ques-tionado por formulações emergentes, basea-das numa linguagem abstrata. Esta tendênciatomará uma maior importância após o im-pacto da I Bienal de São Paulo, em 1951, quepremiará a obra de Max Bill. Este artista, aliás,já havia exposto no Brasil no ano anterior.Durante a década de 1950, o abstracionismogeométrico se desenvolverá no Brasil atravésde dois movimentos conhecidos porConcretismo e Neoconcretismo. Eles repre-sentaram o ingresso da arte brasileira numadas correntes mais importantes da arte mo-derna: a arte construtiva.

Os movimentos mais representativos da artemoderna (Dadaísmo, Surrealismo e arte cons-trutiva) buscam uma solução para a crise queno século 19 é aberta quando a arte é relegadaa cumprir um papel de fruição. A estamarginalização social, eles responderam pro-pondo uma nova inserção da arte na socie-dade. Dos três, a arte construtiva irá demar-car-se por uma clara positividade. Apesar dosdiferentes tratamentos que ela recebe, comocom o da Bauhaus, do De Stijl e doConstrutivismo Soviético, a arte construtivapossuirá princípios gerais bem delineados.

O Dadaísmo e o Surrealismo procuram, agu-çando as contradições internas à arte, ques-tionar a própria ordem social. A arte cons-trutiva acredita no desenvolvimento progres-sivo da sociedade tecnológica dentro de umaharmonia em que arte e vida se confun-diriam. Para ela, a luta cultural se passavanum processo retilíneo de superações de es-quemas formais passados, num aperfeiçoa-mento constante em direção a um fim lógi-co e previsível. Não há espaço nesta con-cepção à contradição e à luta ideológica.

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A proposta da arte construtiva se assentabasicamente sobre a possibilidade de se com-preender racionalmente os processos emeios que formavam e determinavam a pro-dução de arte. Neste sentido, ela foi de to-dos os movimentos modernos o que maisse deteve sobre o estudo da linguagem dearte enquanto um processo de significação.

Ela opera, portanto, uma mudança dentro dahistória da arte: a de retirá-la do seuenvolvimento mítico. Esta sua postura se ori-entava na direção de criar um sistema formalcapaz de intervir, através de protótipos, naprodução industrial e, em última análise, ser-vir de modelo à própria construção social.

Sua permanência na tradição racionalista é,porém, ambígua, na medida em que ela ado-ta um dispositivo formal que rompe radi-calmente com o espaço renascentista. Bas-taria citar a importância da obra deMondrian, que não pode ser reduzida aoslimites mais estreitos do movimento, ou,ainda, as novas possibilidades que foramabertas pela arte construtiva, ao nível ex-perimental do trabalho com a linguagem.

Filiado a esta tradição, o Concretismo brasi-leiro representará uma tomada de posiçãodiante do descompasso existente entre a so-ciedade brasileira da década de 1950 e a pro-posta modernista. O Concretismo leva a artebrasileira a ingressar no campo daqueles mo-vimentos que mais radicalizaram as possibili-dades abertas pela arte moderna. É este seupioneirismo que, no entanto, será tambémresponsável pelo seu caráter ortodoxo.6

Tal dogmatismo poderia ser traduzido pelamanutenção do seu repertório em torno deuma instrumentalização dos esquemas gestal-tistas, apesar de uma certa tendência aestetizá-los, a exemplo de Max Bill. Mas, osimperativos matemáticos adotados no pro-cesso de elaboração da obra acabam por

fazer predominar um sistema formal seriadoe mecânico. Para os concretistas, enquantoprodutores especializados da forma (e nãomais artistas), tratava-se de saber manipulá-la inventivamente, de modo a produzir umanova organização formal, através de proces-sos semióticos que atuariam sobre o espec-tador. Estes processos o preparariam parauma outra ordem visual. Os modelos cria-dos deveriam, inclusive, conter em si a pos-sibilidade da sua reprodução, quer pela in-dustrialização, quer pelos mass-media. O seudestino seria ocupar o ambiente social, in-fluindo na sua modificação, visando a seucontínuo aperfeiçoamento.

A positividade concretista manifesta-se tam-bém em sua concepção de arte brasileira.Filiados a um método de produção de cará-ter universal que expressava o progresso nocampo da arte, o desejo dos concretistasdirigia-se no sentido de superar o subdesen-volvimento, baseando-se no modelo de artedas sociedades desenvolvidas. Poderia seraqui feita uma aproximação com a acade-mia, pois, de certo modo, em seu reducio-nismo cientificista, o Concretismo seria umaespécie de academia moderna. Ao retoma-rem Oswald de Andrade e a Antropofagia epensarem um barroco industrial, eles nãoalteram o seu desejo. Apenas acrescentamao modelo original uma cor local. Um invó-lucro para exportação.

A negatividade neoconcreta

Para situar a relação entre a arte contempo-rânea brasileira e as questões de uma artenacional, isto é, expressão das particularida-des de uma cultura, e ainda da arte nacional-popular, um dos projetos de uma arte nacio-nal, buscaremos localizá-la na obra de HélioOiticica. Ao assim procedermos não seránosso objetivo desenvolver uma análise glo-bal da sua obra, mas verificar a maneira pelaqual enfocou esta questão. Para abordar a

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fase da sua obra em que esta preocupaçãose manifestou, seria necessário que partísse-mos da sua fase neoconcreta. Nela iremosencontrar as origens de todo o processoposterior.

Surgido de polêmicas internas ao Con-cretismo, o Neoconcretismo continuará nomesmo campo da arte construtiva. Perma-necem as características principais, como aleitura evolucionista da história da arte, a fi-delidade à linguagem geométrica abstrata ea proposta de inserção social. Mas se oNeoconcretismo prossegue com estapositividade, a sua especificidade se dá natensão interna que cria no interior deste sis-tema e na negatividade que produzirá. “Estaé a verdade neoconcreta: a de ter sido ovértice da consciência construtiva brasileira,produtor de formulações talvez mais sofisti-cadas nesse sentido e, simultaneamente, oagente da sua crise, abrindo caminho para asua superação no processo de arte local.”7

Examinemos algumas diferenças fundamen-tais entre o Concretismo e o Neoconcre-tismo e as suas repercussões na obra deOiticica. No que se refere às bases teóricas,há um deslocamento: da semiótica de Peircee da teoria da informação de NorbertWiener, passa-se para a filosofia maisespeculativa de Merleau-Ponty e SuzanneLanger. Enquanto o Concretismo, ligado àortodoxia construtiva, seria uma espécie depositivismo da arte, o Neoconcretismo, vin-culado ao idealismo fenomenológico, vê ohomem como ser no mundo, retomandouma concentração da totalidade que restauraa expressividade como legítima na arte.

Colocar a questão da expressividade no cen-tro de um projeto construtivo era uma he-resia com inúmeras repercussões. Destas, amais imediata era a descrença que tinhamda relação entre arte e produção. Para osneoconcretos esta ligação equivalia a retirar

da arte a sua especificidade, diluindo-a atra-vés de uma ótica funcionalista, como aces-sório técnico da produção. Este seu descom-promisso, quer com a instrumentalizaçãopolítica (nacional-popular) ou com qualquerprojeto de estetização do ambiente atravésda produção (Concretismo), abriu uma ou-tra alternativa para a arte brasileira.

O trabalho neoconcreto se irradia no espaçobuscando o espectador. Esta relação provémda própria gênese da obra estruturada sobrea sensibilização da geometria ou também pelasua dramatização, isto é, pelo envolvimentodo público numa relação existencial. Esta par-ticipação ativa do espectador se passa no tem-po, compreendido como duração, que de-marcaria o tempo neoconcreto do concreto.“O tempo concreto é operacional, uma di-mensão objetiva. O tempo neoconcreto éfenomenológico, recuperação do vivido,repotencialização do vivido.”8

Este envolvimento existencial do espectadorcom a obra se abre para um tipo de relaçãoque Oiticica denominou “vivências”. Esta re-lação leva à negação do sujeito como puraracionalidade. Nestes trabalhos, a tensão in-terna ao Neoconcretismo rompe com a tra-dição construtiva. Nada mais natural que al-guns dos seus componentes se aproximas-sem, nesta altura, do Dadaísmo, o movimen-to historicamente demarcado por suanegatividade.

Neste processo, os neoconcretos são inclu-sive levados a abolir as tradicionais categori-as de belas-artes, uma vez que seus traba-lhos tomavam um desenvolvimento estra-nho a elas. Evidentemente, esta negatividadesurgida no interior de um projeto construti-vo daria ao Neoconcretismo a sua singulari-dade. Para os críticos estrangeiros, ele seriauma espécie de exotismo construtivo. MasFerreira Gullar, teórico do movimento, es-taria mais próximo da verdade ao defini-lo

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como “uma contribuição brasileira”. ONeoconcretismo demonstrava não só ainviabilidade da existência no Brasil de umprojeto construtivo dogmático, como tam-bém as naturais transformações que qual-quer modelo externo sofre ao entrar emcontato com o “chão cultural” brasileiro. Elemostrava ainda que a arte moderna local,apesar de todas as suas vulnerabilidades, jáse encontrava suficientemente madura paraproduzir um movimento capaz de alterar oseu permanente registro histórico positivo.

Mas os neoconcretos, como os concretistas,irão pagar por suas ousadias com o esqueci-mento. Combatido pelo projeto hegemôniconacional-popular, ou pelos saudosistas da pri-meira fase modernista, ele tenderá, após oescândalo das primeiras refregas, a ser colo-cado de lado até recentemente. Assim comonos momentos mais importantes da primeirafase modernista, isolada nos salões paulistas,o Neoconcretismo foi o resultado de um gru-po cuja situação social os possibilitavaindepender da arte como sobrevivência. Lon-ge de qualquer solicitação de mercado – ain-da inexistente –, eles se locomoveram numambiente solidário e isolado como de um la-boratório. Sem o pragmatismo reformista doConcretismo, eles ainda tinham em comumcom os modernistas da primeira fase o tomanarquista e utópico.

A abordagem da obra de Hélio Oiticica,mesmo que restrita a sua relação com aquestão da arte nacional e da proposta naci-onal-popular, coloca de imediato alguns pro-blemas. Não pode ser analisada apenas noâmbito de sua produção plástica. Torna-senecessário compreendê-la no seu conjunto,sem divisões entre teoria e prática. Tambémé importante negar qualquer atitude“museológica” em relação a um trabalho cujaatualidade e interferência cultural ainda es-tão longe de se esgotar, apesar da morte doseu autor. Seu trabalho está baseado num

cálculo de intervenção que procura atingir,além do nível estético, o político e o ético.Trata-se de uma obra de fina e aguda pene-tração no universo cultural, com a direçãoprecisa de buscar suas contradições funda-mentais e aguçá-las.

Os seus programas teóricos permeiam a suaobra pela palavra, procurando sinalizar o seupercurso social. Eles localizam o registro exa-to em que devem permanecer, por inter-médio de uma reflexão sobre seus princípi-os. Buscam, também, situá-los, em especial,dentro de suas referências com a culturabrasileira. Vistos dentro desta totalidade, osseus programas teóricos questionam o sis-tema de arte, na hierarquia que estabele-cem do crítico em relação ao artista, e ne-gam a adjetivação do artista como “ingênuo”e “inspirado”.

Parangolé e Penetráveis

O pós-neoconcretismo no Brasil é o mo-mento do contemporâneo ou, como no di-zer de Mário Pedrosa, é o pós-moderno.Esta mudança de referências compreende,grosso modo, pensar o significado da artemoderna, com um afastamento crítico quecapte as suas limitações históricas. Em ter-mos objetivos, esta mudança, a partir dosanos 60, assume no trabalho de Oiticicauma formulação capaz de se pensarem jun-tas duas tendências historicamente opos-tas: a arte construtiva e o Dadaísmo. Estesdois movimentos sempre mantiveram en-tre si a rivalidade de ambos pretenderem-se portadores da verdade moderna. Para omanifesto neoconcreto, por exemplo, oDadaísmo e o Surrealismo eram movimen-tos românticos e irracionalistas. É certo quealguns artistas modernos, como Arp eSchwitters, buscaram a convivência destesmovimentos. Tratava-se, no entanto, deexperiência isolada e incapaz da sistemati-zação que a arte contemporânea consegui-

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rá. O momento ainda não era suficientemen-te maduro.

As origens mais determinantes da obra deOiticica estão em Malevitch e Duchamp. Oprimeiro será, junto com Tatlin e Mondrian,a referência constante da influência constru-tiva. O segundo gerará a negatividade ne-cessária à elaboração de uma visão críticado ingênuo reformismo construtivo. A pre-sença de Duchamp na transformação da lin-guagem neoconcreta é nítida nos trabalhosdenominados “apropriações”, que Oiticicadefinia como “um ‘objeto’ ou um ‘conjuntode objetos’ formados de partes ou não, edele tomo posse como algo que possui paramim um significado qualquer, isto é, trans-formo-o em obra”.9 Esta atitude, nos seustermos gerais, não difere em nada dos ready-made de Duchamp. A particularidade das“apropriações” surge no tipo de objeto es-colhido, capaz de compreender a participa-ção do espectador, e também na sua preo-cupação em situá-lo em relação ao ambien-te social (“o museu é o mundo”). Estas se-rão algumas das bases do seu trabalho apóso Neoconcretismo e que Oiticica denomi-nará de antiarte.

“Antiarte – compreensão e razão e de serdo artista, não mais um criador para a con-templação, mas como um motivador para acriação – a criação, como tal, se completapela participação dinâmica do ‘espectador’,agora considerado ‘participador’. Antiarteseria uma complementação da necessidadecoletiva de uma atividade criadora latente,que seria motivada, de um determinadomodo, pelo artista: ficam portanto invalida-das as posições metafísica, intelectualista eesteticista – não há proposição de um ‘ele-var o espectador a um nível de criação’, auma ‘metarrealidade’, ou de impor-lhe uma‘ideia’ ou um ‘padrão estético’ correspon-dentes àqueles conceitos de arte, mas dedar-lhe uma simples oportunidade de parti-

cipação para que ele ‘ache’ aí algo que quei-ra realizar – é pois uma ‘realização criativa’ oque propõe o artista, realização esta isentade premissas morais, intelectuais ou estéti-cas – a antiarte está isenta disto – é umasimples posição do homem nele mesmo enas suas possibilidades criativas vitais. O ‘nãoachar’ é também uma participação importan-te, pois define a oportunidade de ‘escolha’daquele a que se propõe a participação – aobra do artista, no que possuiria de fixa, sótoma sentido e se completa ante a atitude decada participador – este é que lhe emprestao significado correspondente – algo é previs-to pelo artista, mas as significações empresta-das são possibilidades suscitadas pela obra,não previstas, incluindo a não participação nassuas inúmeras possibilidades também.”

Em outro trecho ele expõe algumas das suasideias de apropriações: “... inclusive preten-do estender este sentido de ‘apropriação’às coisas do mundo com que deparo nasruas, terrenos baldios, campos, o mundoambiente, enfim – coisas que não seriamtransportáveis, mas para as quais eu chama-ria o público à participação – seria isto umgolpe fatal no conceito de museu, galeria dearte etc., e ao próprio conceito de ‘exposi-ção’ – ou nós o modificamos ou continua-mos na mesma. Museu é o mundo; a expe-riência cotidiana...” “Tenho em programa,para já, ‘apropriações ambientais’, ou seja,lugares ou obras transformáveis nas ruas,como por exemplo: a obra-obra (apropria-ção de um conserto público nas ruas do Rio).Há aqui uma disponibilidade enorme paraquem chega; ninguém se constrange dianteda ‘arte’ – a antiarte é a verdadeira ligaçãodefinitiva entre manifestação criativa e cole-tividade –, há como que uma exploração dealgo desconhecido: acham-se ‘coisas’ que seveem todos os dias, mas que jamais pensá-vamos procurar. E a procura de si mesmona coisa – uma espécie de comunhão como ambiente.”10

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Curiosa a trajetória de Oiticica. Das suasorigens na arte construtiva, entrando emcontato com o Dadaísmo, acaba por formu-lar uma síntese que em termos políticos oaproximaria do Construtivismo soviético. Talcomo neste movimento, o único da arteconstrutiva que possuía uma visão políticada arte, Oiticica elabora uma concepçãoantimetafísica da arte e considera o artistacomo um propositor. Ou seja, uma arte co-letiva que se manifestasse por uma reuniãode singularidades e não de individualidades.

A arte ambiental seria a que conseguissemelhor interpretar sua nova proposta, queele explicava assim: “Ambiental é para mima reunião do indivisível de todas as modali-dades em posse do artista ao criar – as jáconhecidas: cor, palavra, luz, ação, constru-ção etc. e as que a cada momento surgemna ânsia inventiva do mesmo ou do próprioparticipador ao tomar contato com a obra(...) (...) a posição ‘socioambiental’ é a parti-da para todas as modificações sociais e polí-ticas, ou ao menos o fermento para tal.”11

Entre os seus trabalhos efetuados na déca-da de 1960 e que caracterizariam toda asua produção posterior, estão os Bólides.

(“Os bólides eram caixas e vidros. Umascaixas como se fossem a materialização dopigmento. Era a cor pigmentária e tinha sem-pre textura. Eram coisas manipuláveis, emque você podia mexer. Eu chamava Estru-turas de Inspeção porque pode-se olhar pordentro e por fora. E tinha uns vidros quesão coisas que têm pigmentos puros...”).12

Mas para o nosso objeto de análise, os tra-balhos mais significativos a serem estuda-dos seriam o Parangolé e os Penetráveis.

Em ambos surgirá pela primeira vez na artecontemporânea brasileira uma preocupaçãocom o nacional.

Afora as repercussões indiretas que o efer-vescente clima político e cultural dos anos

60 possa ter ocasionado sobre sua obra, omais determinante estava na própria gênesedo seu trabalho. A tendência de uma obrabaseada na abertura para o ambiental o en-caminha a uma relação direta com o social.Quer dizer, ao propor elementos capazesde motivar a participação do público, ele sevoltava para uma realidade particular.

O Parangolé era uma manifestação que ti-nha por base “capas” especialmente conce-bidas, uma espécie de fantasia abstrata,envergada pelo(s) participante(s). As origensainda estão nos “relevos espaciais”neoconcretos, na unidade formada entreestrutura e cor, operando uma fusão daestrutura e da cor com o espaço e o tempo.Mas aí a relação com o espectador, emboraintensa, é ainda externa. No Parangolé, ocorpo do espectador-participante passa ainserir-se na estrutura. A “vivência” da obraque se dava ao nível subjetivo agora se in-corpora, uma vez que a relação entre obrae espectador se torna orgânica.

Além disso, o Parangolé tem um sentido dearte total, ao lançar mão de todos os recur-

Hélio OiticicaDa adversidade vivemos,Nildo da Mangueira vesteP16 Parangolé Capa 12,1967Fonte: Acervo Projeto HO, Rio de

Janeiro

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sos plásticos que agiam separadamente: cor,estruturas, sentido poético, dança, palavra efotografia. Outra característica importante éa “apropriação” que faz de manifestaçõescoletivas que contivessem em si componen-tes capazes de se enquadrarem no sentidodo projeto. É o caso da escola de samba edo futebol. Nestes eventos, o artista inter-vém problematizando-os através de um có-digo próprio à arte e, consequentemente,alterando o tipo de relação natural, colocan-do os participantes diante de uma perplexi-dade criatividade.

Em ambos há uma incursão sobre os mitospopulares. O objetivo é desarticular a estru-tura daqueles eventos, a fim de provocar umatensão interna que produza um questio-namento dos seus participantes. A crençade Oiticica é a de que a relação travada coma arte é de libertação, ou melhor, como nasua constante citação de uma formulação deMário Pedrosa, “a arte como um exercíciode liberdade”.

Partindo também dos “relevos espaciais”, istoé, da relação entre estrutura e cor, ele de-senvolverá um trabalho que chama dePenetráveis. A descrição de Ferreira Gullarsitua bem a proposta: “Oiticica, levado a pro-curar uma integração maior da cor na reali-dade efetiva do espaço, ou seja, integrá-lana experiência espontânea das pessoas, rom-peu com a contemplação com a relação fixado observador e da obra. Nasceram osPenetráveis, que são estruturas de cor, emfeitio de labirinto, onde o espectador pene-tra através de vários corredores onde ascores se sucedem segundo um ritmo cro-mático previsto.”13

Tropicália, ou Olha este coqueiro que

dá coco

Em 1967, na exposição coletiva Nova Obje-tividade Brasileira, realizada no MAM do Rio,

Oiticica apresenta um penetrável particular-mente importante, não só no que se referiaao desdobramento desta sua experiência,como ainda na relação entre linguagem con-temporânea e cultura brasileira. Ele, mais tar-de, numa entrevista, descreveria Tropicália:

“Era um penetrável que você entrava den-tro, fora era tudo isso, tinha poemas da mi-nha cunhada Roberta feitos em tijolos... Eramumas palavras escritas em tijolos e tinha umaespécie de jardim que tinha arara, pareciauma espécie de chácara e aí você entravadentro desse labirinto, que era um quadra-do pequeno, não era grande, mas dava aimpressão que era maior quando você en-trava dentro, porque tinha uma área quevocê tocava em elementos sensoriais quetinham cheiro, tinha capim-cheiroso, tinhaumas palhas que você mexia nelas, depoisvocê entrava numa parte escura e o chãoera de areia, quer dizer, você pisava maisestável e tinha que passar por dentro (...),como se fosse cortinas dessas de cabaré oude banho. Acho que não usam para banhoporque a água passa por elas, usam para ca-baré assim, farripas de plástico colorido. En-tão você passava dentro dele no escuro eisso dava uma instabilidade, ao mesmo tem-po pisar em coisas... tinha muita gente lá noMuseu de Arte Moderna, quando isso foifeito, nem entrava até dentro, dava gritos,voltava no meio, tinha uma coisa mágica queacho que nunca mais vai haver, quer dizer,naquela época eu até hoje, inclusive eu te-nho que me reportar à época para enten-der porque que isso acontecia e no fim ti-nha uma cadeira, a pessoa se sentava e tinhauma televisão permanentemente ligada emfrente à cadeira. Você sentava e a imagemda televisão que você vê todo o dia tinha,tomava um outro caráter, assim até míticoetc. e tal, e de fora, engraçado que você ouviao som da televisão, mas você não conseguiaidentificar bem com a televisão; apesar devocê saber imediatamente que era televisão,

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você não identificava...”14 Ou em outra en-trevista numa descrição mais sucinta e quecomplementa a anterior, realizada poucoantes de sua morte: “Tropicália é uma espé-cie de labirinto fechado, sem saída. Quandovocê entra, não tem nenhum teto e os es-paços nos quais o espectador circula estãocheios de elementos táteis. Conforme vocêpenetra mais além, começa a ouvir sons quevêm de fora, e de dentro também. E maistarde se revelam como sendo sons de umaparelho de televisão que está colocado noextremo fim dele. A estrutura fixa geomé-trica lembra casas japonesas mondrianescas,as imagens táteis, o senso do tato, como pi-sar no chão, pois tem areia dentro de sacos,pedrinhas e tapete. Eu queria neste pene-trável fazer um exercício de imagens em to-das as suas formas.”15

O cálculo implícito neste trabalho é provo-car a explosão do óbvio. Isto é, a rupturacom as tentativas de atualização do realis-mo da ideologia nacional e popular. Comona música de Ary Barroso, ele realça o ób-vio: o coqueiro que dá coco mas, agora, como objetivo de desconstruir o empírico. Ex-plorar a pregnância da imagem e apelar paratodos os sentidos. Propor o salto do con-creto para o abstrato, da aparência para umareflexão sobre aquilo que se oculta e deter-mina esta aparência.

A pertinência da proposta situa-se no tipode agenciamento que faz dos elementos docotidiano e do simbolismo patriótico. O nú-cleo do trabalho é a televisão, imagem im-portante na formação do olhar contempo-râneo. Mesmo situada no centro do labirin-to, ela invade, como nas cidades, todo o es-paço. Ao redor, em escala de modelo, di-versas representações de cultura brasileira.Seus odores de cultos e tradições, suas ima-gens “típicas”, como a arara, envolvidos porplantas e pedrinhas dos jardins-florestas-tro-picais. Há uma lógica construtiva estruturando

todos estes elementos. Mas naquele ambien-te “exótico”, a sua racionalidade é traspassa-da por um riso irônico e contra-aculturativoque desconcerta completamente a tentativado seu transplante.

Como na Pop-art, o banal, o consumido, odia a dia pretensamente visto são repostosem imagens de modo a motivar a reflexãosobre a massificação do olhar. Mas se as se-melhanças com a Pop não podem deixar desurgir, é importante assinalar que Tropicália

demonstra uma relativa – uma vez que nãochega a configurar um processo geral – ma-turidade da arte brasileira. Não existem in-dícios de qualquer influência direta da Pop-art sobre este trabalho, e as semelhanças nocaso são realmente coincidências.

Isto tem uma grande importância na medidaem que há uma quebra na relação constan-te entre o modelo externo e a produção dearte no Brasil. As semelhanças dizem respei-to à existência de, num certo grau, haverquestões comuns às sociedades norte-ame-ricana e brasileira. Ao nível da imagem, istose refletiria na repercussão dos mass-media

em ambas as sociedades e no diálogo quetanto a Pop quanto Tropicália manteriamcom o Dadaísmo. Na arte brasileira, isto sig-nifica o aparecimento de uma obra que seconstitui basicamente de uma experiênciainterna ao sistema de arte local. No entan-to, entre a Pop e Tropicália, apesar das suasdiferenças, há um invisível fio que tece a tra-ma da linguagem plástica, além de fronteirasgeográficas. História das formas, sentimentodo presente, contemporaneidade.

Uma das consequências mais interessantesda Tropicália foi o processo de recuperaçãoque sofreu. A este respeito, Oiticica assina-lava que “o próprio termo Tropicália era paradefinitivamente colocar de maneira óbvia oproblema da imagem... Todas estas coisas deimagem óbvia de tropicalidade, que tinham

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arara, plantas, areia, não eram para ser to-madas como uma escola, como uma coisapara ser feita depois, tudo que passou a serabacaxi e Carmem Miranda e não sei o quepassou a ser símbolo do tropicalismo, exa-tamente o oposto do que eu queria.Tropicália era exatamente para acabar comisso; por isso é que ela era até certo pontodadá, neodadá; sob este ponto de vista era aimagem óbvia, era o óbvio ululante... Foi exa-tamente o oposto que foi feito, todo mundopassou a pintar palmeiras e a fazer cenáriosde palmeiras e botar araras em tudo...”.16

A operação de recuperação (esta abordagemrestringe-se às artes plásticas, sem validadepara a música popular, que teria outras impli-cações) resultou numa modernização da ima-gem nacional-popular. Atendo-se ao aspectoanedótico existente em Tropicália, a corren-te nacional-popular pôde permanecer den-tro da sua intenção de “retratar a realidadebrasileira”, ao mesmo tempo que “atualizava”a imagem com uma formalização que se davaatravés de artifícios próprios à ilustração e àprogramação visual. Esta foi uma das soluçõescapazes de fazê-la ganhar uma aparência con-temporânea, necessária à sua manutençãocomo ideologia cultural dominante.

A posição ética e política

Nos primeiros anos da década de 1960,quando o Neoconcretismo rompe os limi-tes do projeto construtivo, o Brasil vive umperíodo politicamente agitado. A tendêncianacional-popular ganha um prestígio aindamaior, chegando mesmo a repercutir entreos concretistas e os neoconcretos, que seveem compelidos a um posicionamento di-ante da “arte engajada”. É nesta época, porexemplo, que Ferreira Gullar irá renegar suaobra neoconcreta para se juntar ao CPC daUNE (Centro Popular de Cultura da UniãoNacional dos Estudantes).

Hélio Oiticica, que já vinha trabalhando nadireção de uma arte ambiental, dará a estauma proposição mais política. Oiticica esta-belece com Gullar um diálogo no qualreinterpreta, segundo um ponto de vista in-teiramente coerente com o processo de suaobra, as posições de “arte engajada” deFerreira Gullar. O que permitirá a Oiticica amanutenção de uma proposta pessoal nestasua relação com a esquerda foi o seuanarquismo sempre infenso a qualquer dou-trina estabelecida. Aliás, na história da arte,as ideologias minoritárias, muitas vezes con-sideradas com desprezo tanto pela ideolo-gia oficial quanto pelas contestadoras, cum-prem um papel importante. Bastaria lembraro misticismo de Malevitch e a teosofia deMondrian, como maneiras de escapar à re-dução mecânica que sofria a arte construtiva.

Ao se pensar a relação da obra de Oiticicacom a política é importante se ter em men-te o quadro mais amplo da cultura brasileirae da situação política internacional. Apesarde derrotada em 1964, a esquerda brasileiradetinha a iniciativa cultural. No plano exter-no, vivia-se uma conjuntura em que predo-minava uma dinâmica revolucionária. Haviaa crença na construção de um novo homeme de uma nova sociedade. A guerra no Su-deste Asiático demonstrava a capacidade deum país pobre enfrentar a máquina de guer-ra imperialista. Na China, a Revolução Cul-tural parecia provar a possibilidade de omarxismo se revigorar internamente; naAmérica Latina, a Revolução Cubana abrianovas perspectivas e a figura de Che Guevarasintetizava todas as esperanças. Enfim, tudolevava a crer que a utopia era realizável.

No Rio de Janeiro, as artes plásticas, após odesmembramento do grupo neoconcreto,só iriam mobilizar-se novamente em tornode 1965. O centro das atividades era o MAMdo Rio, onde as exposições Opinião 65,

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Opinião 66 e Nova Objetividade Brasileiraem 1967 inauguravam as primeiras mostrascontemporâneas. Alguns dos ex-neoconcretosincorporam-se a estas exposições, marcandoum período de grande atividade que se pro-longaria até o AI-5 em 1968. Após este bre-ve momento, a arte contemporânea brasilei-ra permaneceu até 1975 num período de“submersão”. A criação não cessou, mas ocircuito de arte foi, progressivamente, fechan-do-se à sua exibição.

No catálogo de Nova Objetividade, Oiticica,autor do texto de apresentação, afirmava:“Há atualmente no Brasil a necessidade datomada de posição em relação a problemaspolíticos, sociais e éticos, necessidade essaque se acentua a cada dia e pede uma for-mulação urgente, sendo o ponto crucial daprópria abordagem dos problemas do cam-po criativo.” Em seguida, ele desenvolve al-gumas ideias a este respeito, tendo comoreferência as posições de Ferreira Gullar: “Apolêmica suscitada aí tornou-se como queindispensável àqueles que em qualquer cam-po criativo estão procurando criar uma basesólida para uma cultura tipicamente brasilei-ra, com características e personalidades pró-prias. Sem dúvida, a obra e as idéias deFerreira Gullar, no campo poético e teórico,são as que mais criaram neste período, nes-se sentido. Tomam hoje uma importânciadecisiva e aparecem como um estímulo paraos que vêem no protesto e na completareformulação político-social uma necessida-de fundamental na nossa atualidade cultural.O que Gullar chama de participação é nofundo essa necessidade de uma participaçãototal do poeta, do artista, do intelectual emgeral, nos acontecimentos e nos problemasdo mundo, conseqüentemente influindo emodificando-os; um não virar as costas parao mundo e restringir-se a problemas estéti-cos, mas a necessidade de abordar essemundo com uma vontade e um pensamen-

to realmente transformadores, nos planosético-político-social. O ponto crucial dessasidéias, segundo o próprio Gullar: não com-pete ao artista tratar de modificações nocampo estético como se fora este uma se-gunda natureza, um objeto em si, mas simde procurar, pela participação total, ergueros alicerces de uma totalidade cultural, ope-rando transformações profundas na consci-ência do homem, que de espectador passi-vo dos acontecimentos passaria a agir sobreeles usando os meios que lhe coubessem: arevolta, o protesto, o trabalho construtivopara atingir essa transformação, etc.”

E prossegue: “A proposição de Gullar quemais nos interessa é também a principal queo move: quer ele que não baste à consciên-cia do artista como homem atuante somen-te o poder criador e a inteligência, mas queo mesmo seja um ser social, criador não sóde obras, mas modificador também de cons-ciências (no sentido amplo, coletivo), quecolabore ele nessa evolução transformadora,longa e penosa, mas que algum dia terá atin-gido o seu fim – que o artista ‘participe’ en-fim de sua época, de seu povo.”17

Evidentemente a leitura feita por Oiticica dasteorias de Gullar, embora mantivesse umarelação com seus objetivos amplos, se dife-renciava tanto na prática quanto progra-maticamente. O projeto de Oiticica não sesujeitava a nenhuma disciplina ou a injunçõespolíticas próprias ao aparelho cultural da es-querda. Isto fica claro quando ele declaravaem outro texto sobre questões políticas:“Antes de mais nada, devo logo esclarecerque tal posição só poderá ser aqui uma po-sição totalmente anárquica, tal o grau de li-berdade implícito nela. Tudo o que há deopressivo, social e individualmente, está emoposição a ela – todas as formas fixas e de-cadentes de governo, ou estruturas sociaisvigentes, entram aqui em conflito –, a posi-ção ‘social-ambiental’ é a partida para todas

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as modificações sociais e políticas, ou aomenos o fermento para tal – é incompatívelcom ela qualquer lei que não seja determi-nada por uma necessidade interior definida,leis que se refazem constantemente –, é aretomada da confiança dos indivíduos nassuas instituições e anseios mais caros.”18

As posições políticas de Oiticica mostramque a sua obra sofreu um deslocamento pró-prio que não é acompanhado pelos demaisex-neoconcretos. Sem abandonar a coerên-cia de um compromisso com a especificidadeda arte, passa a buscar outros referenciaispara o seu trabalho. Dos neoconcretos eleserá o único a se situar diante da questão deuma linguagem de arte brasileira. Será tam-bém o único a pensar uma dimensão políti-ca para a sua obra, evidentemente à exce-ção de Ferreira Gullar. Mas enquanto Oiticicasitua todos estes problemas dentro de umacoerência com seu trabalho anterior, Gullarrenega a sua obra neoconcreta, estabelecen-do uma separação entre a “alienação” destafase e a sua nova postura militante.

Do ponto de vista ético, o projeto de Oiticicase baseia em sua posição libertária, incapazde ser contida nas táticas da esquerda. Con-tudo, a libertação do homem possui paraele o caráter político da desalienação e estádiretamente vinculada à luta de classes e àsua superação pelo conflito. “Não sou pelapaz; acho-a inútil e fria – como pode haverpaz, ou se pretender a ela, enquanto houversenhor e escravo!” Ao mesmo tempo ele sócompreende a revolução baseada no res-peito às singularidades e ainda numa uniãode todos os explorados, mesmo os margi-nais. “A liberdade moral não é uma novamoral, mas uma espécie de antimoral, base-ada na experiência de cada um: é perigosa etraz a quem a pratica infortúnios, mas jamaistrai a quem a pratica: simplesmente, dá a cadaum o seu próprio encargo, a sua responsa-bilidade individual; está acima do bem e do

mal etc. Deste modo, estão como quejustificadas todas as revoltas individuais con-tra valores e padrões estabelecidos: desdeas mais socialmente organizadas (revoluções,por exemplo) até as mais viscerais e indivi-duais (a do marginal, como é chamado aqueleque se revolta, rouba e mata).”19

A posição política de Oiticica neste perío-do, sem buscar qualquer relação direta, pa-rece corresponder no plano cultural, grosso

modo, às propostas guerrilheiras que surgi-ram no Brasil nessa mesma época. Ambas,ao menos, têm em comum a mesma nega-ção das posições reformistas do PartidoComunista, e na sua concepção idealista ena sua generosidade vivem a utopia. AfirmaOiticica: “O princípio decisivo seria o seguin-te: a vitalidade, individual e coletiva, será osoerguimento de algo sólido e real, apesardo subdesenvolvimento e o caos – dessecaos vietnamesco é que nascerá o futuro,não do conformismo e do otarismo. Só der-rubando furiosamente poderemos ergueralgo válido e palpável; a nossa realidade.”

O CPC e a diarreia

O CPC (ao lado do MCP de Pernambuco)é de certo modo a atualização de uma posi-ção de arte social que vinha solidificando-sedesde a década de 1930. Colocar o CPCem discussão objetiva propor uma compa-ração com as posições sobre cultura brasi-leira elaboradas por Oiticica. Não se tratade formar um juízo de valor desta iniciativa,sem dúvida marcada pela vontade sincerade se colocar ao lado das lutas populares.Mas de colocar em questão o sentido políti-co da sua proposição cultural.

Há uma unanimidade entre os ex-integran-tes do CPC quanto a sua relação com a arte.Todos concordavam com a estetização dapolítica. Carlos Estevam Martins, um dos seuslíderes, declara a este respeito: “As pessoas

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faziam parte do CPC porque eram artistasou porque queriam fazer uma carreira artís-tica e entraram na aventura do CPC porqueachavam que era possível ser artista e, aomesmo tempo, fazer arte para o povo. Aspessoas que não tinham pretensões artísti-cas, como era o meu caso, perceberam ra-pidamente que isto era um barco furado.Quer dizer, ou se fazia pedagogia política,usando a arte para produzir conscientizaçãopolítica, ou então nada feito, voltava-se parao teatro de elite, a música, a literatura, o ci-nema de elite. Esta tensão percorreu toda ahistória do CPC e teve momentos muitodramáticos (...) Não havia exigências em ter-mos de criação estética, e a filosofia domi-nante no CPC era essa: a forma não interes-sava enquanto expressão do artista. O queinteressava era o conteúdo e a forma en-quanto comunicação com o público, com onosso público.”20

Já Ferreira Gullar fala sobre o mesmo assun-to, com uma visão crítica de certos aspec-tos: “O CPC considerava necessário que aobra de arte passasse a tratar dos proble-mas brasileiros, da realidade brasileira e comuma linguagem acessível a um público o maisamplo possível. Havia o exagero em subes-timar a qualidade artística. Desde que se es-tivesse colocando questões e problemas danossa realidade e que ideologicamente esti-vesse correto, a qualidade artística seria se-cundária. Havia uma tendência a ver na qua-lidade artística um resíduo de atitude elitista,esteticista. Mas isso é compreensível porquenaquela época era uma audácia fazer aquilo,romper com o teatro comercial, romper comas posições convencionais, que era o comumna intelectualidade e, mesmo, na inte-lectualidade de esquerda. Era uma audáciamuito grande e havia um preço muito gran-de a pagar por isso.”

Mais adiante, Ferreira Gullar refere-se ao iní-cio de autocrítica que começou a surgir no

interior do CPC, mas que não passou deum esboço, devido ao seu fechamento. “Jáno fim do CPC, as discussões nossas erambasicamente de autocrítica sobre o nosso, ea gente, inclusive, colocava o problema dopadrão de qualidade. Essa era a expressãoque a gente usava: ‘É preciso levantar o pa-drão de qualidade do nosso trabalho.’ Evi-dentemente que essa crítica veio de todaessa experiência que eu narrei pra vocês: deque havíamos sacrificado a qualidade do tra-balho e tínhamos atingido o público que agente esperava, ou seja, a gente sacrificoueste trabalho em função dele e não conse-guiu ou conseguiu muito pouco, o que nosfez compreender que não era por aí. Queera necessário enriquecer a expressão, darqualidade a ela, sem abrir mão dos nossospropósitos, da nossa intenção de atingir umpúblico mais amplo, de deselitizar a expres-são artística brasileira.”21

Outra constatação interessante da atividadedo CPC é que, tendo sido estruturado vi-sando a atingir principalmente operários ecamponeses, a sua prática obteve repercus-são apenas junto ao público universitário.Segundo Carlos Estevam, “apesar de termosfeito algumas incursões interessantes juntoaos trabalhadores, o CPC acabou mesmoconquistando o setor estudantil”. Outro fatocurioso é notar que a preocupação com umalinguagem brasileira irá surgir no CPC comouma decorrência do seu pragmatismo polí-tico. Ou seja, utilizavam a linguagem popu-lar, não por considerar que fosse a da artenacional (o nacionalismo estava, sobretudo,na temática), mas como uma necessidadede comunicação.

Carlos Estevam narra a crítica que fez aogrupo quando uma das suas atuações no lar-go do Machado, no Rio, foi esvaziada porum sanfoneiro que se apresentava no outrolado da praça: “Não é possível, isto é umfracasso total e completo, eu vou sair com

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os sanfoneiros e vocês ficam aqui, vocês pre-tendem se comunicar com a massa e estãolevando uma linguagem que não está pas-sando. Foi daí que surgiu esta concepção doCPC de que deveríamos usar as formas po-pulares e rechear estas formas com o me-lhor conteúdo ideológico possível.”22

Torna-se claro que o sucesso conseguidoentre a classe média mais politizada era umaresultante direta do fato de os membros doCPC estarem transmitindo “mensagens” paraum público que já as conhecia. A empatia eraimediata, uma vez que as suas peças, geral-mente bem-humoradas, cumpriam apenas umpapel de animação social. No entanto, com oseu público de eleição, o fenômeno era in-verso. Tratava-se de uma incursão de intelec-tuais, num meio sobre o qual a sua informa-ção era mínima, e se baseava unicamente nacrença teórica de que estavam se comuni-cando com seus naturais interlocutores.

O que ocorria era a transmissão paternalistade conceitos políticos, num código incapazde atingir o seu destinatário. Acreditando-se porta-voz de uma verdade histórica, oCPC não atentou para a motivação real dopúblico, nem tampouco para as diferençasde código existentes numa sociedade de clas-ses. Não é de estranhar, portanto, que nofinal seus membros fossem levados a perce-ber que a questão não pertencia ao terrenoda cultura artística, mas pura e simplesmen-te à escolarização.

Apesar de algumas nuances, o CPC man-tém, em linhas gerais, os princípios da posi-ção nacional-popular: arte para o povo,temática social, linguagem popular. Histori-camente, a mobilização de intelectuais e ar-tistas em torno de ascensos políticos popu-lares é um fenômeno comum. Esta solidari-edade vem geralmente marcada por confli-tos pessoais e culturais. Num sentido maisgeral, assume a figura do “antielitismo” ao

identificar a “cultura erudita” como um todo,sem contradições internas e a serviço da clas-se dominante. Poderia dizer-se, seguindo estalógica, que para a proposta nacional-popu-lar o problema da elitização da cultura é estaprópria cultura. Daí a simplificação decor-rente ao pretender solucionar questões docampo cultural através de categorias própri-as à política.

Não seria exagero afirmar que a atividadedo CPC não ultrapassou os limites da trans-missão de uma visão política. Na realidade,apesar de alguma penetração que conseguiuentre estudantes, o CPC fez pouca políticae nenhuma arte. Mesmo a sua intenção final“de um padrão de qualidade” não eliminouo equívoco fundamental: a arte como meroinstrumento de uma linha política.

De maneira geral, o programa teórico deOiticica possui vários pontos de contatoaparente com o CPC. Eles se aproximam,por exemplo, na desmistificação da arte eda figura do artista (arte diluindo-se na vida,obras sem autores individuais). Mas ao exa-minarmos mais detidamente seus pressupos-tos e, sobretudo, suas produções, evidenci-am-se as diferenças.

Tomemos, a título de comparação, oParangolé. De início, é uma obra que locali-za o simbólico como o seu campo de atua-ção. A partir daí, Oiticica, utilizando-se deum repertório da sua cultura de classe – nosentido explícito da chamada “cultura erudi-ta” –, desenvolve um objeto plástico no qualo corpo (a relação com) é parte integrante.O Parangolé se desenvolve a partir de ele-mentos vestindo estas “capas”. Eles têm porponto de união uma manifestação da cultu-ra popular como, por exemplo, o samba. Deimediato, estamos diante de componentesculturais provindos de diferentes classes so-ciais. Mas esta relação jamais será de harmo-nia, pois a sua inserção social é planejada de

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modo a aguçar tensões. A relação é de es-tranheza, já que o sambista utiliza uma “fan-tasia” especial, num lugar preciso, comomuseu, galeria de arte, ou num evento pú-blico artístico. Quer dizer, se no carnaval umsambista ao vestir uma fantasia se investedo seu personagem, aqui ele passa a atuarnum universo de tensões, uma vez que elese incorpora numa obra de arte.

A situação se inverte, mas sem alterar o seumecanismo básico de provocar o confron-to, quando o Parangolé é representado pornão populares em locais populares. Ou seja,o projeto se desenvolve a partir do entendi-mento que se dá numa sociedade de clas-ses. Ele age buscando, pela utilização de umrepertório fora do seu contexto, provocar atensão entre universos simbólicos diferen-tes. Nisto está implícita uma relativizaçãocultural: o “samba” conquista o sacrossanto“museu”, e o “museu” “desce” à quadra desamba. Isto tudo acontece num clima de fes-ta, sem mensagens, operando ludicamentea abertura para a fantasia e outras “vivências”possíveis, mas até então ignoradas. Vale di-zer, num movimento de libertação.

A adoção da arte popular e da temática bra-sileira pela esquerda se justificava como sen-do a preservação dos valores nacionais, ame-açados pela invasão cultural norte-america-na. Em consequência, a arte nacional popu-lar opta por uma espécie de mimetismo dopopular, no sentido de querer se expressarcomo ele. A aproximação com a culturapopular passa a ter um caráter de reverên-cia, uma vez que esta cultura permitiria apurificação do contágio com o externo.

Esta posição não apenas elege a culturapopular a única realmente brasileira, comoergue em torno dela muralhas protecionis-tas para que não se contamine; valoriza nãoo que esta cultura veio a ser, na dialética docontato com outras culturas, mas aquilo que

um dia o seu idealismo presumiu que ela foi.Caberia aqui lembrarmos uma observaçãode Marilena Chauí referindo-se às caracte-rísticas da diferença temporal, em que afir-ma: “No seu fazer-se a singularidade se pro-duz como outra, tornando inviável, porexemplo, tomar o passado como podendoser reconstituído tal como foi porque umelemento dessa reconstituição do passadoé o próprio trabalho de reconstrução quenão estava lá, quando o passado era presen-te.”23

A respeito da posição nacional-popular,Oiticica, no seu texto Brasil-Diarréia, faz umacrítica precisa: “A pressa em criar (dar umaposição) num contexto universal a esta lin-guagem-Brasil é a vontade de situar um pro-blema que se alienaria, fosse ele ‘local’ (pro-blemas locais não significam nada se se frag-mentam quando expostos a uma problemá-tica universal; são irrelevantes se situadossomente em relação a interesses locais, oque não quer dizer que os exclua, pelo con-trário) – urgência dessa ‘colocação de valo-res’ num contexto universal é o que devepreocupar realmente àqueles que procuramuma ‘saída’ para o problema brasileiro. É ummodo de formular e reformular os própriosproblemas locais, desaliená-los e levá-los aconseqüências eficazes. Por acaso fugir aoconsumo é ter uma posição objetiva? Claroque não. É alienar-se, ou melhor, procuraruma solução ideal, extra – mais certo é semdúvida, consumir o consumo como partedesta linguagem. Derrubar as defesas que nosimpedem de ver ‘como é o Brasil no mun-do, ou como ele é realmente’ – dizem:‘Estamos sendo ‘invadidos’ por uma ‘culturaestrangeira’ (cultura, ou por ‘hábitos estra-nhos, música estranha etc.’)’, como se issofosse um pecado ou uma culpa – o fenôme-no é borrado por um julgamento ridículo,moralista-culposo: ‘não devemos abrir aspernas à cópula mundial’ – somos ‘puros’ –esse pensamento, de todo inócuo, é o mais

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paternalista e reacionário atualmente aqui.Uma desculpa para parar, para defender-se– olhar-se demais para trás – tem-se ‘saudo-sismos’ às pampas – todos agem um poucocomo viúvas portuguesas: sempre de luto,carpindo. CHEGA DE LUTO NO BRASIL.”24

Ou ainda, sobre a mesma questão numaentrevista mais recente. “Essa obsessãopopulista no Brasil, quando a pessoa estáassim se lançando no ar, já pronta para le-vantar voo, aí bem (...). Cai e não se quebra,se caísse e se quebrasse, mas não. Cai assimnuma espécie de pântano de merda, vocêentende?... Aí tem pessoas que programamo dia inteiro para procurar as raízes, o que éo que se deve arrancar, é uma coisa perigo-síssima. É uma coisa incestuosa você procu-rar as raízes, é a mesma coisa que procuraro útero outra vez. Pra que procurar o úterooutra vez? Quando já basta ter nascido, játer saído do útero, pra que ainda querervoltar ao útero.”25

A visão de Oiticica revela a compreensãoda cultura brasileira dentro de uma globa-lidade. Daí a abertura do seu trabalho a dife-rentes tradições culturais. Demonstra aindaa compreensão política de como operam oscentros de poder existentes no interior dacultura universal. Estes, graças a poderososaparelhos culturais montados em torno denúcleos universitários e de um sistema dearte solidamente estruturado, mantêm odomínio do saber e uma relação de supre-macia cultural. O que Oiticica propõe é asuperação da dependência não pelo fecha-mento em si, mas pelo confronto crítico comestas culturas.

Os enfoques de Gullar e de Oiticica sobre a

arte brasileira

A proposta tradicional da arte nacional-po-pular, presente ainda hoje, receberá por partede Ferreira Gullar, a partir de 1963, um tra-

tamento mais complexo. Embora a posiçãode Gullar esteja em permanente processode elaboração, ela se move dentro de umanítida coerência que pode ser analisada des-de os seus primeiros textos “engajados”,passando pelo seu livro Vanguarda e subde-

senvolvimento, até suas últimas declarações.

Considerando-se a proximidade entre Gullare Oiticica, seria importante realizar uma aná-lise que estabelecesse as diferenças entreeles. Para Gullar, como na posição mais tra-dicional, cultura popular e nacionalismo seidentificam. Ele cria esta identidade a partirde uma definição mais ampla de cultura po-pular: “Se por cultura popular se entende,inclusive, o trabalho de desalienação das ati-vidades culturais em relação às suas váriasmanifestações, logicamente se põe em ques-tão uma série de valores e princípios que seapresentam investidos de validez universal.”Seguindo esta premissa, ele coloca em ques-tão a inserção social do artista e da sua pro-dução: “A desalienação das atividades cultu-rais conduz o escritor e o artista a se de-frontarem com os problemas reais de suaprópria situação social e lança uma luz novasobre as questões de seu trabalho.”26

A seguir, Gullar revela as origens da aliena-ção e seus instrumentos: “A redução dosproblemas sociais à justa expressão leva àconclusão de que parte considerável dessesproblemas tem sua causa em interesses es-tranhos ao país, na dominação imperialista.Como o poder de influência sobre os ór-gãos de divulgação é quase total e comoesses órgãos atuam de modo decisivo emtodos os setores da vida nacional – inclusiveno veto ou promoção de valores culturais –a luta do escritor e do artista engajados nacultura popular se traça, de saída, contra oimperialismo.”

Gullar altera a abordagem tradicional donacional-popular, situando-o agora em tor-

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no da indústria cultural. Todavia, as premis-sas básicas permanecem as mesmas: o im-perialismo como fenômeno externo à “na-ção” e o transplante de uma categoria políti-ca para o campo cultural. Ao alterar, porém,o enfoque usual e ressaltar a indústria cultu-ral, isto é, uma instância do campo cultural,ele se afasta um pouco da posição nacio-nal-popular tradicional. Afirma que a con-cepção nacionalista que possui “não é nempoderia ser o compromisso ingênuo compreconceitos de nação, nacionalidade,tradicionalismos ou qualquer outra forma dechauvinismo.”27

Em consequência, Gullar reconhece a cultu-ra investida de valores universais, e de umacirculação internacional, o que o leva a pro-curar os seus prós e contras. “Não há comonegar que vivemos uma época de crescenteinternacionalização. Os meios de transportee comunicação anularam as distâncias e asbarreiras entre as nações. Os livros circulamsimultaneamente em quase todos os paísesna língua original ou em traduções. As ex-posições internacionais de arte tendem aimpor um estilo único a todos os países. Osmesmos filmes circulam, num breve espaçode tempo, por cinemas espalhados por qua-se todas as cidades do mundo. Diante detais fatos, seria simples demência pretenderforjar um isolacionismo cultural, qualquer quefosse o pretexto.” E continua: “Mas estaintercomunicação não é apenas inevitável: elaé necessária e benéfica, na maioria dos seusaspectos. Ela permite, no campo da ciênciae da técnica, a aquisição de conhecimentose a atualização dos países menos desenvol-vidos. Possibilita maior aproximação entreos povos distantes, revelando-os uns aosoutros, tanto através da informação científi-ca, como da narração literária e da expres-são poética, teatral, cinematográfica.” Emseguida, porém, adverte: “Tal influência ésempre positiva quando se exerce sobre

culturas com a consistência necessária paraabsorver dela o que é útil, fecundo e rejeitaro resto. Mas, nos países em formação as in-fluências externas tendem, muitas vezes, aagir como fator de perturbação do proces-so formativo, introduzindo desvios e discre-pâncias, que só se dão devido à fragilidadedo movimento cultural implantado.”

Referindo-se às artes plásticas, Gullar afir-ma que “neste setor, por exemplo, isso temsido fenômeno freqüente entre nós. O mo-vimento pictórico surgido em 1922 se de-senvolveu com alguma tranqüilidade atéo fim da guerra, quando o isolamentoinvoluntário do país acabou: a influência deMax Bill chamou os jovens para a arte con-creta que, antes de dar seus frutos, já erasubstituída pelo “tachismo”, que já começa,por sua vez, a ser deslocado por um certoneofigurativismo... Se essas mudanças tives-sem sido determinadas por necessidadessurgidas do trabalho dos artistas brasileiros,nada de mais. Sucede, porém, que todas es-sas mudanças são impostas de fora, pelastransformações operadas em Paris ou NovaYork. Resultado: torna-se impossível aosnossos artistas, submetidos a tais injunçõesdo mercado de arte, aprofundarem qualquerexperiência”.

E prossegue: “Isso só será possível quandose compreender a necessidade de enfrentarcriticamente o que vem de fora, para aceitá-lo ou refutá-lo. Não se trata, pois, de pre-tender ‘uma pintura nacional’; trata-se de,simplesmente, criar condições para a pintu-ra, qualquer que seja, uma vez que ela sósurgirá do aprofundamento e da continuida-de da experiência. O caminho para isso évoltar-se para o que já foi feito entre nós,ou para o que, lá fora, melhor afina com anecessidade cultural interna, e apoiar-se natemática que o país oferece. É preciso agirconscientemente.”28

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Oiticica, no entanto, situa a questão de umaarte brasileira a partir de uma análise do ca-ráter da formação cultural brasileira. Ele com-preende este caráter não apenas no seu sen-tido mais restrito de cultura e contexto so-cial, como também dentro de um campomais amplo englobando o ético-político-so-cial. Deste campo nascem as necessidadescriativas e mais particularmente nos “hábi-tos” inerentes e próprios da sociedade bra-sileira, que ele assim resume: “cinismo, hipo-crisia, ignorância”. Estes se concentram noque ele chama de “convi-conivências”, ouseja, “todos se ‘punem’, aspiram a uma pu-reza ‘abstrata’, estão culpados e esperam ocastigo – desejam-no”. E conclui: “que sedanem”.

Mas como, então, produzir em meio a

esta “falta de caráter”?

Oiticica propõe: “A questão brasileira é tercaráter, isto é, entender e assumir todo essefenômeno, que nada deva excluir dessa ‘pos-ta em questão’: a multivalência dos elemen-tos ‘culturais’ imediatos, desde os mais su-perficiais aos mais profundos (ambos essen-ciais); reconhecer que para se superar umacondição provinciana estagnatória, esses ter-mos devem ser colocados universalmente,isto é, devem propor questões essenciais aofenômeno construtivo do Brasil como umtodo, no mundo, em tudo o que isso possasignificar e envolver.”

Não há na concepção de Oiticica, comoparece sugerir a proposta de Gullar, lugarpara pruridos. Segundo Oiticica, como vimos,fugir ao consumo não é uma posição objeti-va, “é alienar-se”. O mais certo seria “consu-mir o consumo”. Reconhecer o “caráter” dacultura brasileira é ter bem claro que a “for-mação brasileira, reconheça-se, é de uma faltade caráter incrível: diarréica; quem quiserconstruir (ninguém mais do que eu “ama oBrasil”!) tem que ver isso e dissecar as tripasdessa diarréia – mergulhar na merda”.

Produzir arte no Brasil implicaria ter presen-te a falta de um sistema de arte estruturado,a presença das influências as mais diversas,modismos, eventos culturais significativos,modelos externos, diversidades culturais re-gionais etc. etc. Não há o que temer, há simque se reconhecer esta realidade e agir emmeio a todas estas contradições. Sobretu-do, ter em mente que a cultura brasileira étudo isto colocado em confronto permanen-te com o universal.

A particularidade da cultura brasileira seria,então, sua condição diarreica. Não existemfórmulas para se superar esta condição, nãose pode querer formar um processo atravésde uma receita de processo. A proposiçãode Oiticica não cabe em esquemas, mas noreconhecimento “que da adversidade vive-mos” e que a superação se dará em meio aambivalências. “É preciso entender que umaposição crítica implica inevitáveis ambi-valências; estar apto a julgar, julgar-se, optar,criar é estar aberto às ambivalências, já quevalores absolutos tendem a castrar quaisquerdessas liberdades; direi mesmo: pensar emtermos absolutos é cair em erro constante-mente; – envelhecer fatalmente; conduzir-se a uma posição conservadora (conformis-mos; paternalismos; etc.); o que não significaque não se deva optar com firmeza: a difi-culdade de uma opção forte é sempre a deassumir as ambivalências e destrinchar pe-daço por pedaço cada problema. Assumirambivalências não significa aceitar confor-misticamente todo este estado de coisas; aocontrário, aspira-se então colocá-lo em ques-tão. Eis a questão.”29

Colocar a questão em questão, isto é, vê-laprodutivamente é, para Oiticica, em meioao constante conflito, produzir o novo: “OBrasil é um país sem memória, quer dizer,um país condenado ao novo”, dizia Oiticica

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ampliando a frase de Mario de Andrade. Ora,se o que caracteriza uma obra de arte é jus-tamente o fato de ela produzir o novo,realizá-la no Brasil, isto é, atentar para as suasparticularidades, significa reconhecer o seucaráter diarreico (subdesenvolvido) e superá-lo. “Assim toda a condição desse subdesen-volvimento (sub-sub), mas não como uma‘conservação desse subdesenvolvimento’ esim como uma... ‘consciência para vencer asuperparanóia, repressão, impotência’.”

Na “diarreia”, a velha positividade que mar-cava toda concepção da arte brasileira sefinda. O Modernismo vinha marcado pelootimismo, e a síntese confortável da An-tropofagia resultou mais numa ferramentaeficiente para os primeiros passos, do queno modelo definitivo que se pretendia. Osconcretistas viviam um outro tipo de otimis-mo: o progresso tecnológico e o aperfeiço-amento social. Os neoconcretos introduzema negatividade ao proporem uma relaçãoentre obra e espectador que negava o sujei-to como pura racionalidade. A questão deuma arte brasileira é deslocada de um mo-delo para uma situação concreta, determi-nada pela inserção da obra numa cultura par-ticular. A “diarreia” radicaliza esta relação. Elaé a negatividade contemporânea que com-preende a arte brasileira como uma tensãopermanente criada por inúmeras variáveis.

Ao contrário da proposta de Oiticica, aber-ta e ambivalente, a de Gullar parece sinalizarcom ressalvas estilísticas o seu programa. Ementrevista recente, ele afirmava, referindo-se à questão de a arte figurativa e a abstra-ção não estarem “valorizando, mas apenasapresentando dois tipos de expressão.Ambas são pressionadas pela história quevivem. Um busca através de formas abstra-tas criar uma experiência em que pratica-mente se encontre uma pureza de percep-ção, descontaminada de todo aquele mun-do que o atormenta, que o massacra. Quer

criar uma outra realidade, quer te dar umaexperiência despojada desse sofrimento,dessa problemática que constitui a própriavida dele. O outro mergulha nisso, não abremão dessa experiência e procura transfigurá-la. Ele diz: aqui nesse quarto de merda, ondeeu passo fome, onde eu sofro, existe umabeleza, uma experiência humana que euquero transmitir. Enquanto que o outro nes-se mesmo quarto diria ‘não quero saber dis-so’ e faz um quadro abstrato. Todos doistêm expressão de arte. Para mim, uma ex-pressão de arte que convoque uma cargahistórica humana e de referência à vida coti-diana, mesmo transfigurada, pode até nãoser melhor do ponto de vista estético. Pramim, é evidente que a carga de experiênciaque está num quadro desses (que referendaexplicitamente o cotidiano) é potencialmentemaior do que a que está no outro porque aintenção do outro é realmente despojada.”30

A declaração de Gullar parece querer situara questão da linguagem na arte, no âmbitode uma velha oposição entre figurativo eabstrato. Este debate, que teve importânciana história da arte brasileira em torno de1945, hoje em dia tende a se configurarcomo vício de geração. Mesmo restrito à artemoderna, a utilização de um código icônicoabstrato ou figurativo já era um tanto aca-dêmica, visto que a arte moderna relativizoubastante este problema. O que realmenteestava colocado em questão pela arte mo-derna era a representatividade como funda-mento da arte.

Em relação à arte contemporânea, esta ques-tão do abstrato ou do figurativo inexiste.Afinal, nada mais abstrato que, por exem-plo, a Pop-art. Ou se quisermos utilizar umoutro exemplo já citado, uma das caracte-rísticas contemporâneas da Tropicália erajustamente retirar o significado da figuraçãoda redução denotativa que tinha a arte bra-sileira. Nela, a figuração é levada à sua máxi-

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ma intensidade com o sentido de se anular,assumindo a dimensão abstrata da reflexão,no caso, em torno do universo simbólicobrasileiro. De certo modo, Tropicália é a“vivência” da “diarreia”.

Embora Gullar, numa passagem de Vanguar-

da e subdesenvolvimento, declarasse que “aocontrário do que têm afirmado alguns, umaarte voltada para a realidade nacional, longede conduzir ao conformismo estético, é ocaminho certo para o enriquecimento daexperiência artística e a criação de novasformas e meios expressivos, desde que seentenda como ‘realidade nacional’ essa com-plexa tessitura de realidades singulares eparticulares, contradições, conflitos e interações,que as enlaçam, e não uma esquemática abs-tração ‘político-sociológica’”, ele parece secontradizer. Porque o tipo de defesa quefaz da arte figurativa, ainda que mais flexívelque o reducionismo da arte popular pro-posta pela posição mais tradicional da es-querda, defende, como esta, uma linguagemque propicie a retórica do discurso social,isto é, capaz de ilustrar a “realidade brasilei-ra”. Daí a relação seletiva e não de tensãoque estabelece com o universal.

Em outro trecho, referindo-se à relação en-tre a linguagem e o social e à adequaçãoque deve haver entre ambos, Gullar afirma:“Isso não quer dizer que o poeta deva ab-dicar de pesquisar a linguagem e de buscarformas novas de expressão, mas que essabusca deve ser feita visando às necessida-des reais da poesia dentro do contexto his-tórico-social em que vivemos.”31 Aqui po-demos detectar uma diferença básica en-tre a formulação de Ferreira Gullar e a deHélio Oiticica.

Na proposta “diarreica” de Oiticica, o novosurge, digamos, “inconscientemente”, umavez que decorrente de tensões entremultivariáveis. Isto não significa, contudo,

que seja alienado, na medida em que umadas variáveis é a própria atuação do artista,procurando inserir radicalmente sua obra,na luta ideológica. Para Gullar, o novo sur-ge “racionalmente”, isto é, condicionado aser a imagem de uma interpretação do real.Ou seja, em Oiticica é a forma que tomasentido, enquanto em Gullar o sentido éque toma a forma.

Não é estranho que o CPC, por exemplo,tenha desenvolvido a maior parte da sua ati-vidade através do teatro, alguma coisa no ci-nema e literatura, mas quase nada nas artesplásticas. Este fato não pode ser atribuídoapenas a uma possível menor comunica-bilidade das artes plásticas. Na verdade, haviauma incompatibilidade estrutural entre o es-tágio atingido pelas artes plásticas brasileirase as proposições do CPC. Se até 1945, a per-manência de um espaço pictórico calcado noconvencionalismo da Escola de Paris permitiaa existência de uma arte narrativa, o mesmonão ocorria em 1962. A arte construtiva ha-via alterado as referências da arte brasileira,afastando-a de qualquer compromisso coma representação.

Verifica-se, contudo, em Gullar uma dimen-são, por assim dizer, poética, que, em parte,o fazia transcender suas posições. Seu apoiodiscreto às manifestações Opinião 65 e 66 eà Nova Objetividade, bem como à obra deOiticica, são exemplos. Além disso, sua pre-ocupação política ajudou a alertar Oiticicapara a inserção social da arte.

Vanguardismo

Mesmo que o objetivo da nossa análise daobra de Oiticica vise à questão da arte bra-sileira, seria esclarecedor estudarmos a acu-sação que geralmente lhe é feita de“vanguardista”. Para os que defendem a artenacional-popular, vanguardista é toda obraque não se vincule à “realidade brasileira” e

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que não contenha uma linguagem destinadaao “povo” brasileiro. Um trabalho vanguar-dista, segundo esta ótica, possui uma lingua-gem hermética, o que denotaria seu caráterelitista, além de ser comprometido com umavisão cosmopolita. Em torno destes princí-pios, varia, com maior ou menor sofistica-ção, a posição nacional-popular.

As distinções que tentamos mostrar entreas concepções de Oiticica e as originadas dapintura social modernista, ou as elaboradaspor Ferreira Gullar, procuraram demonstraros equívocos da arte nacional-popular. Pa-radoxalmente, como vimos, a chamada artepopular é a projeção que uma elite culturalfaz do popular. Ademais, a sua propostarestritiva subestima as profundas interaçõesdialéticas entre o nacional e o internacional,uma vez que contém uma visão preconce-bida do particular da nossa cultura. Todosestes procedimentos, tidos comocontestadores, armam um dispositivo ideo-lógico condizente com a ideologia dominan-te, já que são capazes de formar uma ima-gem unitária de uma sociedade dividida porformação histórica.

O exame de uma possível postura vanguar-dista na obra de Oiticica só pode ser feito,com rigor, se ela for retirada do terreno deacusações demagógicas e colocada na suarelação com a história da arte. Devido àposição de Oiticica no Neoconcretismo, omovimento mais radical da arte modernabrasileira, e por ter ele participado da suasuperação, sua obra é colocada num mo-mento máximo de tensões entre o velho eo novo. Isto determinará no seu trabalho apermanência, embora de maneira lateral, dealgumas concepções ainda modernas.

Ao analisarmos agora o vanguardismo, nãonos orientaremos pelos preceitos da artenacional-popular. Trata-se aqui de criticar avisão das vanguardas modernas, que consi-

deravam a história das formas como um pro-cesso progressivo de contínuos aperfeiçoa-mentos. A análise de Bataille, por exemplo,situa os preconceitos desta concepção, aomostrar que a ideia cronológica de temponão podia conter a dimensão das pinturasde Lascaux.

A ideia de vanguarda em arte está direta-mente ligada a um momento de ruptura quemarca o surgimento da arte moderna. Umafase em que a arte busca uma nova postura,presa que estava entre as transformaçõestécnicas trazidas pela Revolução Industrial eas oriundas do desejo de revolução social.As vanguardas modernas, mesmo propon-do diferentes percursos para a sua inserçãosocial tinham, no entanto, em comum, umasérie de princípios.

Todas elas possuíam uma visão retilínea dodesenvolvimento da arte, e todas, conseque-ntemente, se autoavaliavam como o finallógico deste processo. Quase todas estavamligadas a uma posição política, como oExpressionismo e o Futurismo e, basicamenteo Dadaísmo, a arte construtiva e o Surrea-lismo, suas manifestações mais importantes.Elas não propunham apenas uma nova arte,mas também uma nova política, uma novamoral e um novo homem. Daí a identifica-ção que faziam entre as vanguardas artísti-cas e políticas.

Todavia, a unidade mais característica entreas vanguardas artísticas se dá através de umconsciente desejo de esquecimento.32 Todaselas negam o passado e pretendem fazertábula rasa dele. Há implicitamente o projetode inaugurar um novo zero na história da arte,por meio de um recalque da memória, umaespécie de academia do esquecimento. Re-cusam o passado e se referem ao futuro. Sãoas “antenas da raça”, porque veem em si umaespécie de predestinação natural de um pro-cesso lógico de desenvolvimento. Para elas,

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“o presente tornou-se antecipação ao invésde ser memória”.

Revendo-se esta experiência da arte moder-na, em meio a um mundo que viveu duasguerras mundiais, deportações, eliminaçõescoletivas, revoluções, expansões coloniais edescolonizações, a acumulação da mercado-ria e a explosão nuclear, não se pode ouvira sua principal palavra de ordem – queimaros museus – sem sentir algo de nazista. Nãose trata, logicamente, de dar um caráter re-acionário às vanguardas modernas, mas decompreender a complexidade do momen-to histórico e das interpretações que ocor-reram tanto no campo da cultura, quantono da política.

Uma história detalhada deste fenômeno ain-da está para ser feita. Uma história capaz dereunir os principais textos políticos da épo-ca com os manifestos artísticos. Talvez aípossamos compreender melhor por que, porexemplo, Marinetti, já ligado ao fascismodesde 1919, era ainda tido por Gramscicomo um revolucionário, tendo sido convi-dado a participar do Proletkult de 1922. Oupor que artistas como El Lissitzky, em plenoRealismo Socialista do período estalinista,ainda permanecia fazendo cartazes à glóriado Partido. Em meio àquele delírio de uto-pia, envolvidos no fluxo do “Novo”, termi-naram por se submeter, negando qualquertranscendência ao sujeito.

Necessariamente esta análise, baseada so-bretudo nos manifestos, deve serrelativizada quando se trata de consideraralgumas obras. Nestas, ao invés do projetomanifesto de tábula rasa, ocorremrememorações secretas. Mas são seguida-mente, como afirma Philippe Muray, “difí-ceis, ambíguas, algumas vezes envergonha-das, ressurreições de alquimia ou deesoterismo, justificando a resposta deBataille a quem se pedia para participar de

reuniões surrealistas: ‘Tem chatos idealis-tas em excesso’...”.33

Ora, a arte contemporânea, no seudistanciamento crítico com as vanguardasmodernas, lê este procedimento como tipi-camente vanguardista e característico daque-le momento histórico. Ela assimilou, porexemplo, a decepção das vanguardas mo-dernas diante da relação entre o desejo quetiveram de revolução social e o seu desen-canto pelo fato de ela não ocorrer. E quan-do ocorreu, foi de uma maneira não deseja-da, investindo até mesmo contra elas.

Além disso, a arte contemporânea compre-endeu que, em última análise, o objetivo dasvanguardas modernas de se diluir no socialrepresentou uma maneira de negar aespecificidade da arte. Seja pela concepçãofuncionalista de tê-la como protótipo indus-trial (Bauhaus e produtivistas), seja pela suainstrumentalização política (ConstrutivismoSoviético), ou ainda, por sua simples nega-ção (Dadaísmo). Assim, quando na UniãoSoviética o Realismo Socialista triunfou, istose deveu, de certo modo, à preparaçãoinvoluntária realizada pelos construtivistas.

A arte moderna acreditava que a transfor-mação da linguagem influiria decisivamentena transformação da sociedade. A arte con-temporânea pôde analisar a experiênciamoderna e verificar o processo de recupe-ração que sofreu pelo mercado de arte. Aarte contemporânea compreende as limita-ções da arte e sabe que, de certa forma, elaestá inevitavelmente dentro do sistema. Masisto não significa que esteja de maneira pas-siva. Restringindo seu campo de atuação aosimbólico e ao sistema de arte, isto é, à lutaideológica travada nestas duas instâncias, elaa compreende como explicitação na sua áreada luta social mais ampla e atua de modo aaguçar suas contradições.

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O relacionamento da obra de Oiticica como vanguardismo se daria pela presença daideologia moderna na gênese da sua obra. Aestratégia do seu trabalho visava à diluiçãoda arte na vida, pela sensibilização do social.Isto se daria pela promoção de atividadesartísticas coletivas em que o artista desapa-receria como criador privilegiado, tornando-se um simples organizador dos eventos. Aperspectiva implícita é a revolução social atra-vés da transformação do indivíduo, que selibertaria na atividade criativa. Estamos dian-te de uma posição política típica das van-guardas modernas e bem próxima da dosconstrutivistas soviéticos. Este ativismocorrespondia também ao ambiente “militan-te” que predominava na cultura brasileira nadécada de 1960.

O vanguardismo ressurge também na suaconcepção da pintura como meio de ex-pressão contemporâneo. É curioso notarque a arte contemporânea brasileira ten-derá a reforçar esta posição, e nisto talvezpossamos detectar uma das repercussõesdo Neoconcretismo. Esta negação é curio-sa, quando na arte contemporânea norte-americana a produção internacional maissignificativa, desde suas origens com Pollocke Newman, a Jasper Johns e Robert Ryman,para citar alguns, demonstra a permanên-cia da pintura.

Oiticica afirmava em Brasil-Diarréia que a dis-cussão em torno de suportes era em si mes-ma um modo de desviar a questão da con-vivência entre os suportes tradicionais e asinstituições garantidoras do conceito de “ar-tes plásticas”, como salões e bienais. A suaproposição é correta na medida em que ossalões – modo de circulação da produçãosuperado na Europa no século 19 – e asbienais, de maneira geral, foram utilizadoscomo instrumentos de recuperação. Mas éincompleta, uma vez que as bienais serviramhistoricamente para a internacionalização do

mercado e para a absorção das novas lin-guagens e suportes que surgiam. A instânciafundamental na relação entre obra e públi-co é a permeação ideológica realizada pelomercado. Quanto aos suportes, pode-se di-zer que atualmente, pelo menos nos merca-dos desenvolvidos, são apropriados indistin-tamente.

A arte moderna acreditava que a revoluçãoda linguagem e uma tática precisa na circula-ção da obra impediriam o seu confinamentono sistema de arte, ligando-a diretamente àsociedade. Esta megalomania foi desmentidapelo poder de adaptação do sistema de artee, particularmente, do mercado. Duchamppercebeu esta evidência. Inicialmente, inves-tiu com a fúria da sua ironia (episódio domictório no Salão Independente) contra ocircuito de arte. A surpresa era favorável aele e a investida teve êxito. Mas ao deixartodo o conjunto de sua obra num museu –este templo supremo de ideologia do siste-ma – mostrou lucidez ao compreender oslimites da sua atitude. Assim deixou reunidasua obra de modo a provocar uma tensãopermanente no interior deste sistema. Istonão significa a inexistência de circulações al-ternativas. Elas, porém, são limitadas, por-que mesmo indiretamente é o sistema cons-tituído que lhes faz possuir uma referênciaidentificadora.

Ainda serão suas origens modernas que es-tarão determinando a recusa da pintura porOiticica. Aliás, a discussão da sua negação dapintura só tem sentido porque funcionacomo sinal de uma atitude vanguardista. Logoapós o início do Neoconcretismo, ele pro-duziu os relevos espaciais, trabalhos direta-mente influenciados pelos contrarrelevos deTatlin e que na ótica do Construtivismo re-presentavam a última instância do Cubismo.Quer dizer, Oiticica teve como quase pon-to de partida uma experiência oriunda deuma outra que se considerava a superação

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definitiva da pintura. No entanto, não se podeatribuir-lhe a mesma visão retilínea do pro-cesso de arte que tinham os construtivistas.

Ele executou um sistema só cabível na artecontemporânea, isto é, uma interação entreo Construtivismo e Duchamp, que permitiaque afirmasse: “Sou contra qualquer insinua-ção de um ‘processo linear’; a meu ver osprocessos são globais...”. Mas há uma com-preensão parcial, ainda com reminiscênciasmodernas, da sua visão de global. Oiticicairá, por exemplo, retirar a negação da pintu-ra também destas duas fontes: Constru-tivismo como o fim da pintura, associado aDuchamp, que apaga o quadro como me-mória do mundo, mas se torna uma espéciede prisioneiro do objeto.

As vanguardas modernas no seu sectarismotinham uma postura autoritária, calcada emconceitos tidos como absolutos. Ora, o queo trabalho de um Johns, por exemplo, pare-ce indicar é a relativização dos conceitos. Istopode ser constatado quando ele conseguereunir diversas influências, inclusive Duchamp,numa obra desenvolvida sobre diversos su-portes em que predomina a pintura.

O vanguardismo de Oiticica estava ainda vin-culado à negação da memória. Quando elediz que o Brasil é um país sem memória, écontraditório. A afirmação é correta se com-preendida no seu sentido mais imediato, istoé, o Brasil é um país de história recente, oque pode permitir uma maior disponibilida-de para a experiência e para o novo. Mas éincorreta se compreendida apenas nesteregistro, e Oiticica tinha parcialmente cons-ciência disto. Ao afirmar que uma das faltasde “caráter” da cultura brasileira era a suaignorância e ao colocar os “valores” particu-lares da cultura brasileira num contexto uni-versal, isto é, em relação com a história dacultura, ele está indiretamente afirmando queo novo não nasce de geração espontânea,

mas da rearticulação da memória em fun-ção da experiência presente.

Esta relação conflituada com a memória pro-vinha também das suas origens neoconcretas.A experiência construtiva brasileira, pela pri-meira vez na história da nossa arte, elaborouuma leitura sistemática da história das formas.Foi a primeira manifestação de uma memóriana arte brasileira. Uma memória, no entanto,seletiva e curta, mas que de qualquer modoconseguiu formalizar um percurso.

A obra de Oiticica, como participante de umperíodo de ruptura, é demarcada por conterem si a contradição entre dois períodos. Elarealiza a fusão de dois movimentos opostosda arte moderna, mas permanece em parteligada a conceitos próprios às suas caracterís-ticas modernas. Vê a falta de memória brasi-leira como algo positivo, mas participa da cons-trução de uma memória. Esta tensão entredois momentos da história da arte percorre-ria a maior parte de sua trajetória. Nas suasúltimas entrevistas, Oiticica, embora em linhasgerais mantivesse as mesmas posições, algu-mas vezes sugere revisões, contudo sem che-gar a fornecer dados suficientes que permitis-sem uma nova avaliação crítica.

Esta nossa análise desse aspecto da obrade Oiticica obedeceu ao propósito deretirá-la das acusações de vanguardista fei-tas pela posição nacional-popular. Por ou-tro lado, ao levantar a questão do van-guardismo em seu trabalho, entendemosestar poupando sua obra do terreno míticodo intocável, no qual a morte recente deOiticica propiciava que ela ficasse. E, assim,situá-la polemicamente em seu justo local:o da inquietação investigadora.

Marginalismo

Na exposição coletiva Opinião 66, HélioOiticica apresentou um ambiente baseadono jogo de bilhar. Este ambiente era basica-

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mente determinado pela relação de cores.O verde da mesa, uma parede vermelha,outra preta e as camisas dos jogadores. Aação era determinada pelas próprias regrasdo jogo. Sobre este trabalho ele assim es-creveu: “O bilhar: que mistério vital, que se-gredo se oculta na sua plasticidade, na suaatração aos que a ele se dedicam? Nesta obrafica patente o que considero antiarte: a ha-bilidade de cada jogador é o que interessano jogo em si, mas na totalidade é a açãoreal do jogo que interessa: desde que estatermine, temporariamente ou de vez, cessaa ‘obra’ em sua ação – não há pois o propó-sito esteticista de ‘apreciar’ o jogo na suabeleza, mas apenas realizá-lo...”. E prossegue:“Todos, inclusive eu, descobrem o jogo: ouseja, o elemento ‘prazer’ do jogo. Isto, sim, éimportante: a obra é prazer, e como tal sópode ser livre (joga-se quando se quer ouse sabem as regras do jogo etc.). A partici-pação não é da ‘vida real’, como se podepensar, mas uma participação livre no pra-zer, que é aqui realizada pela proposta deum jogo, talvez o mais interessante e clássi-co que exista (dos de ‘salão’).”34

O texto de Oiticica situa este seu trabalhocomo uma metáfora da arte. Ou seja, a cria-ção como uma atividade lúdica, que apesarde ter de obedecer a algumas regras, atuanuma relação que se abre para o imprevisívele para o acaso e que é permanentementeoutra. Uma relação com materiais que nestamanipulação se articulam de maneirasignificante. Mas não é uma ação fechadaporque compreende o participante, o públi-co, que à sua maneira rearticula os mesmoselementos propostos, descobrindo outraspossibilidades, recriando significados. Tudoisto percorrido pela pulsão que determinacada lance como um lance de prazer.

O que está por trás deste jogo vital e deli-rante, nesta sua obsessão de uma partidaincessante, se não a própria paixão humana?

Oiticica conta que a origem do seu ambien-te Bilhar se deu a partir de uma observaçãofeita por Mário Pedrosa sobre a semelhançaque existia entre a tela Café Noturno deVan Gogh e as suas primeiras manifestaçõesambientais, compostas por núcleos e bólides.Sobre este quadro, Van Gogh disse em car-ta que “procurou expressar com o verme-lho e o verde as terríveis paixões humanas”.A acuidade de Mário Pedrosa mais uma vezse faz sentir ao perceber o Van Gogh que seocultava no Oiticica recém-saído de umaexperiência construtivista.

Van Gogh é uma espécie de “mártir” da his-tória da arte moderna. Ele representa amarginalização a que a arte moderna érelegada pela ideologia dominante no século19. Todos os artistas que pretenderam ques-tionar a harmonia do universo simbólico dasociedade industrial foram colocados à mar-gem. Quer pelo “degredo social”, normalmen-te sob forma de pobreza, ou até mesmo,como no caso de Van Gogh, pelo suicídio.

O que identifica, de certo modo, a posi-ção de Oiticica com Van Gogh foi a sua

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intransigência com qualquer forma de con-ciliação com a ideologia dominante. O seutrabalho se desenvolve fora dos esquemasestabelecidos da arte moderna brasileira. Elequestionava as concepções defendidas porestes aparelhos culturais numa intensidadeque era impossível de ser por eles absorvi-da. No Brasil das décadas de 1950 e 1960, emesmo ainda hoje, a “tática” – se é que istochega a constituir uma tática – reservada paraeste tipo de obra é o esquecimento e a in-diferença. A “diarreia” do sistema de artelocal o torna incapaz até de formular suaprópria história, fazendo com que movimen-tos como o Neoconcretismo acabem semconseguir constituir um processo. São obrasque permanecem dispersas, ficando para asgerações futuras o trabalho de tentar reu-nir os seus vestígios.

Um aspecto interessante da obra de Oiticicapode ser constatado num trabalho intituladoHomenagem a Cara de Cavalo, que trata damorte violenta daquele que foi consideradoem sua época o inimigo público no 1 do Riode Janeiro. A identidade de Oiticica com omarginal, que chegava à amizade pessoal, era

uma reação romântica à sua própriamarginalidade. Afinal, de alguma maneira,ambos compartilhavam o mesmo espaço.Nesta sua postura não havia a glorificaçãodo chamado bandido. Ele entendia que ainjustiça maior é a de uma sociedade estru-turalmente injusta e impiedosa com seuscontestadores, sejam eles artistas, militantespolíticos ou bandidos. A respeito desta apro-ximação com marginais, Oiticica afirmava:“Não quero aqui isentá-lo de erros, não que-ro dizer que tudo seja contingência; de cer-ta forma ele foi o construtor do seu fim, oprincipal responsável pelos seus atos. O quequero mostrar, e foi o que originou minhahomenagem, é a maneira pela qual essa so-ciedade castrou toda possibilidade da suasobrevivência, como se fora ele uma lepra,um mal incurável, símbolo daquele que devemorrer violentamente, com requinte cani-balesco. Há como que um gozo social nisto,mesmo nos que se dizem chocados ou sen-tem ‘pena’...”35

Para as concepções dominantes na arte bra-sileira, Oiticica ocupava um terreno mal de-finido que não podia ser reduzido a qual-quer modelo consagrado. Estava longe dopitoresco das tendências neomodernistas enacionalistas-populistas em suas várias ver-sões, como o alegórico-tropical, surrealismonordestino, construtivismo afro-brasileiro,realismo marginal carioca etc., etc. Não po-dia ser contido nem pelo mercado, ainda li-gado ao universo modernista, nem pela cul-tura dita contestadora, uma vez que seu tra-balho não se limitava ao discurso capaz desatisfazer o estreito maniqueísmo político. Sórestava mesmo aplicar-lhe alguns rótulos,como vanguardista e elitista, e situá-lo àmargem da “Verdadeira Cultura”, aquela ca-paz de trazer o sucesso.

Oiticica revela, numa das suas últimas entre-vistas, plena consciência disto: “Quero aquidizer q tenho felizmente essa indiferença a

Hélio OiticicaB33 Bólide Caixa 18,1965-66 Homenagem aCara de CavaloFonte: Acervo Projeto HO, Rio

de Janeiro

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meu favor: toda essa gente implicada em‘programas culturais’ nada significam para oq tem mesmo algum significado grande eduradouro: tudo o q faço e virei a fazer nada

tem a ver com qualquer tipo de programacultural!: nada!: pelo contrário e a tentativamais concreta de demolir e tornar impossí-vel qualquer significação real a tudo o q sejademagogia cultural ou programa para taldemagogia: todo esse corta barato q querdizer o q ‘tem q fazer o artista’ ou de como‘deva proceder’ ou q ‘caminho tomar’: nãohá ‘caminho’ ou ‘direção’ para a criação: nãohá ‘obrigações’ para o artista: quem pensapoder fazer o q quer ao mesmo tempo qassume compromissos q nada têm a vercom a atividade q têm cometem um errofatal: e como conseqüência deste erro tor-nam-se demagogos e um poço de equívo-cos”... “Ninguém menos alienado do queeu: ninguém também menos otário: otáriossão os que se mantêm indiferentes ao q écriativo e à INVENÇÃO.”36

Se retomarmos nossa ideia inicial da relaçãoentre o Estado moderno e a contestação,conseguiremos situar mais precisamente oespaço ocupado pela obra de Oiticica. Elanão cumpre a função de uma oposição comoa concepção nacional-popular o faz. Nega-da pelo poder e pela oposição, não havialugar para ela no sistema de arte brasileiro,dado o seu nível de transgressão, a não ser àmargem. Ou seja, o seu trabalho não estavafora do sistema de arte (como talvez elesupusesse), mas também não podia ser sub-metido à vida de “asilo”. Era um “louco” cujaobra, mesmo localizada lateralmente, traziauma tensão intolerável para a harmonia dosistema de arte.

A obra de Hélio Oiticica ocupa, assim, umaposição singular na arte brasileira. Ela não sóparticipa, junto com outras, da criação do es-paço contemporâneo no Brasil, mas formulaainda uma nova relação desta produção com

a questão da arte brasileira. Isto a coloca naprópria trama do tecido cultural brasileiro,com a mesma pertinência dos seus momen-tos mais importantes, como no esforço cria-tivo e cultural da primeira fase modernista.

Ao mesmo tempo, sua posição desvendoua fragilidade das concepções dominantes dearte brasileira, colocando à mostra um me-canismo ideologizado e apenas superficial-mente operante. Uma posição também in-transigente com um mercado primitivo, comseus padrões estéticos conformistas, sua crí-tica e instituições de apoio. Contra a“diarreia” geral, a indagação e a invenção numcompromisso permanente com o novo e oexercício da liberdade.

Carlos Zilio foi também o idealizador do Curso de Es-pecialização em História da Arte e da Arquitetura noBrasil, da PUC-Rio, e editor da revista Gávea. Artista,participou de diversas exposições nacionais e internaci-onais e teve livro sobre sua produção organizado porPaulo Venancio Filho e publicado pela Editora CosacNaify (2006).

Este texto foi originalmente publicado no li-vro O nacional e o popular na cultura brasi-

leira (São Paulo: Brasiliense, 1982), de CarlosZilio, João Luiz Lafetá e Lígia ChiappiniMoraes Leite.

Notas

1 Esta posição é defendida por Susan Sontag, La photographie,

trad. do americano de Gerard-Henri Durand e GuyDurand, Paris, Seuil, 1979.

2 Cf. Carlos Zilio, A querela do Brasil, Rio de Janeiro,Funarte, 1982.

3 Cf. Marcel Gauchet e Gladys Swain, L’institution asilaire et

Ia Révolution Démocratique, Paris, Bibliothèque desSciences Humaines, 1980.

4 O Plano (ou Política) Nacional de Cultura elaborado em1975 pelo Conselho Nacional de Cultura, durante agestão de Ney Braga no MEC, é a formulação mais aca-bada de um programa cultural feito pelo governo brasi-

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leiro. Este plano faz parte de um projeto de formulaçãode políticas específicas para as três áreas de atuação doMEC, somando-se à Política Nacional de Integração deEducação e à Política Nacional de Educação Física eDesportos. Uma análise crítica deste plano pode serencontrada no artigo de Renato da Silveira, in Arte em

Revista, ano 2, n. 3, São Paulo, março de 1980, pp. 7-9.

5 A única exceção era Anita Malfatti, que na sua exposiçãode 1917 em São Paulo já demonstrava pleno conheci-mento da arte moderna.

6 A nossa análise sobre o Concretismo e o Neoconcretismoé baseada no ensaio de Ronaldo Brito, “Neoconcretismo:vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro”, pu-blicado em parte com o título “Neoconcretismo”, inMalasartes n. 3, Rio, abril/maio/junho 1976, pp. 9-13, ecom o título “As ideologias construtivas no ambientecultural brasileiro”, in Projeto construtivo brasileiro na

arte (1950-1962) (sup. coord. geral e pesquisa Aracy A.Amaral), Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna; SãoPaulo, Pinacoteca do Estado, 1977, pp. 303-317.

7 Ronaldo Brito, op. cit.

8 Ibidem.

9 Hélio Oiticica, “Parangolé: da antiarte às apropriações

ambientais de Oiticica” – (Posição e Programa – Julho1966), in GAM, julho/1966.

10 Ibidem (Programa Ambiental), p. 28.

11 Ibidem, idem, p. 28.

12 Jorge Guinle Filho, “A última entrevista de Hélio Oiticica”,in Interview, abril 1980, p. 82.

13 Ferreira Gullar, “Os Penetráveis de Oiticica”, in Jornal do

Brasil – Artes Visuais, Rio, 7.12.1960; transcrito in Projeto

construtivo brasileiro na arte (1950-1962), op. cit., p. 266.

14 Hélio Oiticica, entrevista à Funarte, 1977.

15 Jorge Guinle Filho, op. cit.

16 Hélio Oiticica, entrevista à Funarte, 1977.

17 Hélio Oiticica, “Esquema geral da nova objetividade”, inCatálogo Nova Objetividade Brasileira, Rio de Janeiro,Museu de Arte Moderna, 1967.

18 Hélio Oiticica, “Parangolé: da antiarte às apropriaçõesambientais de Oiticica” – (Programa Ambiental), op.cit., p. 28.

19 Ibidem (Posição Ética), p. 28.

20 Carlos Estevam Martins, “História do CPC”, in Arte emRevista n. 3, março 1980, p. 81.

21 Ferreira Gullar, depoimento à Funarte, 2o

semestre 1980.

22 Carlos Estevam Martins, op. cit., p. 81.

23 Marilena Chauí, Conceitos de história e obra, PrimeiroSeminário promovido pelo NEP/Funarte dentro do pro-jeto de pesquisa para a discussão das noções de nacio-nal e popular na cultura, 12.4.1980, p. 5.

24 Hélio Oiticica, “Brasil-Diarréia”, in Arte Brasileira Hoje (co-ordenação geral de Ferreira Gullar), Rio, Paz e Terra,1973, pp. 148-149.

25 Hélio Oiticica, entrevista à Funarte, 1977.

26 Ferreira Gullar, Cultura posta em questão, Rio, EditoraUNE, 1963; reed. Civilização Brasileira, 1965; publ. emparte in Arte em Revista n. 3, março 1980, p. 85.

27 Ibidem, p. 86.

28 Ibidem, idem.

29 Hélio Oiticica, “Brasil-Diarréia”, op. cit., p. 150.

30 Ferreira Gullar, entrevista à Funarte, 1980.

31 Ferreira Gullar, Vanguarda e subdesenvolvimento – Ensai-

os sobre Arte, Rio, Civilização Brasileira, 2a

ed., p. 99.

32 Cf. Philippe Muray, “L’avant-garde rend mais ne se meurtpas”, in Art Press n. 40, Paris, set. 1980, p. 22.

33 [Não há nota 33 no original.]

34 Hélio Oiticica, “Parangolés: da antiarte às apropria-

ções ambientais de Oiticica” (A participação nojogo), op. cit., p. 30.

35 Citado por Frederico Morais, “O último romântico de umavanguarda radical”, in O Globo, Rio, 25.3.1980, p. 38.

36 Carlos Alberto M. Pereira e Heloísa Buarque de Holanda,“Depoimento de Hélio Oiticica”, in Patrulhas ideológi-

cas, São Paulo, Brasiliense, 1980.

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