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Cosmococa – Programa in Progress: heterotopia de guerra Beatriz Scigliano Carneiro * Caleidocosmos lixo (luxo) do acaso cosmos haroldo de campos C osmococa – Programa in progress, de Hélio Oiticica e Neville de Almeida, inclui nove blocos-experimentos, ou bloco de experiências – in Cosmococa, elabo- rados de 13 de março de 1973 a 13 de março de 1974, e identificados pela abreviatura cc, seguida de um número, marcando a seqüência cronológica da sua invenção. Cada bloco se compõe de uma série de slides – fotografados no ato da brincadeira de espalhar carreiras de cocaína nas capas de discos, livros e outras superfícies –, de uma trilha sonora, de textos, de uma proposta de atuação do público em um am- biente determinado e de um conjunto de fotos e pôsteres – reprodução dos slides – para se- rem comercializados separadamente. Para cada bloco-experimento há uma ficha com especificações técnicas básicas, recomenda- ções para projetar os slides, para a trilha sonora, para o set da performance e para atividades dos participantes. Foram previstas caixas destina- * Beatriz Scigliano Carneiro é bacharel, mes- tre, doutora e pós-doutora em Ciências So- ciais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, puc-sp . Em 2004, publicou o livro Relâmpagos com Claror: Hélio Oiticica e Lygia Clark, vida como arte, pela editora Imaginário, com auxílio da Fapesp. Foi pro- fessora pesquisadora do Projeto Prodoc/ Ca- pes do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da puc-sp . Participa do Nu-Sol, Núcleo de Sociabilidade Libertária, vinculado ao citado programa.

Beatriz Carneiro - Fios Soltos

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Cosmococa Programa in Progress: heterotopia de guerraBeatriz Scigliano Carneiro*Caleidocosmoslixo (luxo) do acasocosmos haroldo de camposCosmococa Programa in progress, de Hlio Oiticica e Neville de Almeida, inclui nove blocos-experimentos,oublocodeexperincias inCosmococa,elabo-rados de 13 de maro de 1973 a 13 de maro de 1974, e identicados pelaabreviaturacc,seguidadeumnmero,marcandoaseqncia cronolgicadasuainveno.Cadablocosecompedeumasriede slides fotografadosnoatodabrincadeiradeespalharcarreirasde cocana nas capas de discos, livros e outras superfcies , de uma trilha sonora, de textos, de uma proposta de atuao do pblico em um am-biente determinado e de um conjunto de fotos epsteres reproduodosslides parase-rem comercializados separadamente. Para cada bloco-experimento h uma cha com especicaes tcnicas bsicas, recomenda-es para projetar os slides, para a trilha sonora, para o set da performance e para atividades dos participantes.Foramprevistascaixasdestina-*BeatrizSciglianoCarneirobacharel,mes-tre, doutora e ps-doutora em Cincias So-ciaispelaPontifciaUniversidadeCatlica deSoPaulo,puc-sp.Em2004,publicouo livro Relmpagos com Claror: Hlio Oiticica eLygiaClark,vidacomoarte,pelaeditora Imaginrio, com auxlio da Fapesp. Foi pro-fessora pesquisadora do Projeto Prodoc/ Ca-pes do Programa de Estudos Ps-Graduados emCinciasSociaisdapuc-sp.Participado Nu-Sol, Ncleo de Sociabilidade Libertria, vinculado ao citado programa.188 BEATRIZ SCIGLIANO CARNEIROdasaocomrcio,contendoasreproduesdosslidesedatrilhasonora de cada bloco, afora textos e instrues para a montagem. A durao da apresentao dos slides gira em torno de vinte minutos. Depois tudo co-mea outra vez. Nas exibies privadas devero ser feitas adaptaes ao espao local, seja apartamento, seja jardim, e sugerem verdadeiras festas.cc1Trashiscapes,cc2Onobject,cc3Maileryn,cc4Nocagions, cc5 Hendrix-War so os blocos realizados junto com Neville. Na se-qncia veio cc6 Cokes head soup, de 25 de setembro de 1973, pro-posta com Thomas Valentim, parodiando o ttulo do lbum dos Rolling Stones, Goats Head Soup. Este bloco no contou com desenhos feitos comcoke-tracks,mascomimagensdoreexotranslcidodecocana espalhada na capa do vinil, gerando o que Hlio Oiticica denominou cocamist devido semelhana com nvoa. O bloco cc7 seria elaborado com Guy Brett, crtico de arte ingls, amigo de Hlio, mas no saiu do esboo. Depois, veio cc8 Mr.D or D of Dado, com a colaborao do es-critor Silviano Santiago. Nesta no h cocana, mas sim um jogo de luz e reexos no espelho. Por m, para comemorar um ano de Cosmococa, a proposta de 13 de maro de 1974: cc9 Cocaoculta Ren Gone come-ou a ser empreendida junto com Carlos Vergara, mas no foi comple-tada. Homenageava o amigo Ren de Souza Mattos, morador do morro de So Carlos, morto em fevereiro daquele ano. Este programa forma uma sesso de um plano de trabalho maior de Oiticica, que ganharia a forma de um livro, intitulado Newyorkaises, reunindo textos e imagens de experincias e proposies diversas con-cebidas no seu abrigo do norte, como Hlio apelidou Nova York. O subttuloinprogressmostraqueoprogramanosesituacomoobra fechada e contamina textos e outros trabalhos, ampliando-se para alm dosblocos.Todoprojetoqueeufaogradativamentevaientrando numacoisaqueeuchamodeprograma,narealidadesoprogramas no programados, eu chamo Programa in progress, na realidade tudo se transforma em um programa a longo prazo1.Cosmococaprograma,enoumprojeto,poisaglutinapropo-siesexperimentveis.Projetoassocia-seavisesutpicasdecons-189 COSMOCOCA PROGRAMA IN PROGRESS: HETEROTOPIA DE GUERRAtruodeumfuturo.Programasnoidealizamaeseobrasparao futuro,masanunciamumaexperimentao,realizadaprogressiva-mente. Remetem a roteiros para experincias e so descritos por Gilles Deleuze quando presentes em escritores de lngua alem: J no h o innito relatrio das interpretaes [Deleuze refere-se aqui litera-tura francesa], mas processos acabados de experimentao, protocolos de experincia. Kleist e Kafka passavam seu tempo fazendo programas de vida: os programas no so manifestos e, menos ainda fantasias, mas meios de orientao para conduzir uma expe-rimentao que ultrapassa nossas capacidades de prever2.Coca CsmicaOsdoisinventoresdeCosmococaconheceram-seem1968,quando Neville, aps ter seu primeiro longa-metragem, Jardins de Guerra, mu-tiladopelacensura,promoveuumasessofechadaparacineastase amigos. Hlio impressionou-se especialmente pelo uso dos psteres na estrutura do lme e se apresentou para conversar. Anos depois, pro-puseram fazer um lme, no entanto, desencontros diversos acabaram por deixar Neville sozinho com a realizao de Mangue-Bangue, apesar da inteno de trabalharem em dupla j nesse lme. Reencontraram-se em Nova York, em 1973, na ocasio em que Mangue-Bangue foi exibido no moma. Sobre este lme escreveu Hlio: Mangue-banguenodocumentonaturalistavida-como-ela-oubuscado poeta artista nos puteiros da vida: sim a perfeita medida de frestas-fragmentos l-mes-somdeelementosconcretos[]nonarraomontagemcortedeplanostakes deslocados m do conceito de cinema verit j que o cinema verdade e no represen-tao da verdade [] o q a verdade, anyway?3. A narrao no cinema e a busca naturalista de reproduzir eventos comveracidadeincomodavamaambos.No interessava a representao do tempo pela ima-gem-movimentoquereproduziriaapassagem 1I.Cardoso;R.F.Lucchetti,Ivampirismo:o cinema em pnico, p. 76.2G. Deleuze; C. Parnet, Dilogos, p. 61.3Mangue-bangue,ProgramaHlioOiticica, 190 BEATRIZ SCIGLIANO CARNEIROsucessiva dos momentos ao mostrar um antes e depois de uma linha evolutiva na qual se desenrolava uma narrao. Aps muita conversa, se ativeram ao que de fato queriam, realizar uma experincia de no-narrao, de no-discurso, contrariando a expectativa de contar uma histria, de fazer cinema. Eu e Neville quase q mo a mo desviamos do projeto de mais um lme para o primeiro cc1: em babylonests nos conns do loft 4: quanta leveza e q fora certa emanam deste simples shift: no ater-se ao q se acha q deva ser e q no se quer fazer: nem querer audiovisual de rano professoral4.Cosmococa fora inicialmente o ttulo de uma idia de Neville de Almeida para realizar um projeto cinematogrco. Neville havia pen-sado, em outro momento, em fazer um lme s com slides, com base na constatao de que cinema anal constitudo de motion pictures5 .Aprojeodeslides,comosefosseumapelculaquadroaquadro, revelaria este segredo da magia do cinema e o arbitrrio da construo da percepo do tempo. No encontro com Hlio em Nova York, a idia atualizou-seemquasi-cinemaemumtrabalhoquenoespetculo, no narrativa nem um enredo contado quadro a quadro. eu jamais teria a necessidade de inventar esse tipo de experincia no fossem as longas conversas e caminhadas pela linguagem limite criada por man-gue-bangue de neville, arma Oiticica6. Neville desenhou as carreiras de coca sobre as imagens escolhidas para estes cinco blocos e Hlio as fotografou montando a srie de slides. EstesdesenhoscomcocanaforamnomeadosdeMancoquilagem, Maquilagem + Manco Capac, o mtico heri civilizador dos incas que trouxeafolhadecocaparaseupovo.Seseusamtintasfedorentas e tudo que merda nas obras de arte (plsticas) por que no a prima [apelidocarinhosodacocanadadoporHlio]tobranca,bri-lho e to afim aos narizes gerais?7. Coube tambm a Neville a edio do som e a trilha sonora. Juntos elaboraram o set de cada bloco, destinado ao pblico para a fruio do deslizar dos slides. O que seria cenograa de uma tomada de cena de cinema transformou-se no que Hlio deno-minava ambiente e hoje seria uma instalao. 191 COSMOCOCA PROGRAMA IN PROGRESS: HETEROTOPIA DE GUERRAEstes blocos-experincias signicaram, segundo Hlio, um avan-o estrutural na obra de neville e a aventura incrvel no meu af de inventar de no me contentar com a linguagem cinema e de me inquietar com a relao (principalmente visual) espectador-espetculo (mantida pelo cinema - desintegrada pela tv) e a no ventilao de tais discusses8. Inventaram um trabalho que tambm desaa a passivi-dade da platia cinematogrca ao convid-la a realizar aes dentro desta caixa de imagens, expresso de Neville de Almeida. A coca csmica: trilhas de p conjugam-se umas com as outras, interligando elementos dos diversos blocos, fazendo mundo. A pa-lavrakosmoseraumtermoespeccodaprticajurdicadaGrcia antiga com o sentido da reta ordem da cidade-Estado. Com o lsofo Anaximandro de Mileto (609/610 a.C.-547 a.C.), a noo de cosmos se projetou na natureza e adquiriu o signicado mais prximo do que co-nhecemos hoje9. O cosmos grego apareceu como uma rigorosa constru-o geomtrica de elementos fsicos, palpveis, tal qual a construo da vida na polis. Noentanto,aosertraduzidaparaolatim,kosmossetornou Universo, se tornou mundo como totalidade, um princpio geral, uni-versal,eassimseafastoudassensatasparticularidadesquesempre foram sua referncia. Pois cosmos um termo esttico, com a acepo de adequao (tting order). Em outro grupo de signicado, cosmos tambm se refere a ornamento, a decorao, a enfeitesfemininos,cosmtica,acentuandoo sentido sensorial e sensual da palavra10. nevilleaoinventarcosmococa:nome-mundo: props no um ponto de vista mas um programa de inveno-mundo11. A coca fun-cionoucomocosmticaemdesenhosgrcos sobresuperfciesdecapasdelivrosediscos, jornais e psteres, a mancoquilagem atravessan-do os blocos. A maquilagem com o p renado da folha de Erythoxylon coca saturou cada gesto organizado por Lisette Lagnado. Ita Cultu-ral/ Projeto HO, 0477/73.4Bloco-ExperinciasinCosmococa Pro-gramainprogress,ProgramaHlioOiticica, op.cit., 301/74.5Depoimento de Neville de Almeida autora em 11 de junho de 2003.6Bloco-Experincias in Cosmococa Progra-ma in progress, op. cit.7Idem.8Idem.9W.Jaeger,Paidia:aformaodohomem grego, p. 202.10J.Hillmam,FromUniversetoCosmos,in Cosmo, Life, Religion: beyond humanism, p. 287-288.11Bloco-Experincias in Cosmococa Progra-ma in progress, op. cit.192 BEATRIZ SCIGLIANO CARNEIROat se tornar imperceptvel, cocaoculta, na seqncia dos blocos. O sen-tidocsmicodacocasejoganestaslinhasqueultrapassamamatria branca da ddiva de Manco Capac aos nobres incaicos, mas no deixam de atualizar seus elementos ancestrais ao deslizar pelas imagens e sons. Linhas de coca, que se alargam em manchas brancas, que se a-nam pela ao da lmina, que se ocultam, que desfazem os rostos, que delineiammscarassobresuperfcies,linhasquedevemmundo: conjugando, continuando com outras linhas, outras peas que se faz ummundo,quepoderiarecobriroprimeiro,comoemtransparn-cia12. Aqui se encontra o procedimento dos poetas pintores chineses, apontado como csmico, pois estes no imitam nem calculam propor-esestruturais,masretmaslinhaseosmovimentosessenciaisda natureza.Assimsefazemmundos,quandoaslinhasencontramsuas vizinhanas e zonas de indiscernibilidade13. Cosmococaapresentaelementoscontguosesimultneos,coma intenodeembaralharcomjoyasordensdomundo(comporta-mentos e condicionamentos), nos termos de Hlio14, Cosmos carrega o sentido de ordem do mundo. O Programa Cosmococa: programa anti-cosmos,invenodecosmosoutros,combateordemdomundoao captar foras que atualizam o porvir.Estas proposies caram guardadas por vinte anos, no apenas pelo uso da cocana como pigmento e fonte de prazer ele e Neville foram usurios sem culpas , mas pelo conjunto da inveno que em-baralha as fronteiras dos campos das artes, os limites entre pblico e privado, com muito humor. joke-embaralhar: rir da seriedade dos conceitos:dosassuntosgraves:spelojokepodem-sescramble(e portanto inaugurar situaes inveno) roles-mundo15.A primeira montagem pblica foi realizada em Roterd, Holanda, em1992,naretrospectivaitinerantedeHlioOiticica.NoBrasil,foi montadocc5Hendrix-Warem1994,naGaleriaSoPaulo,nacapi-talpaulista. Em1998,oblococc3noCentroHlioOiticica,Riode Janeiro. Em 2003, o bloco cc6 Cokes head soup foi instalado no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro como parte da exposio 193 COSMOCOCA PROGRAMA IN PROGRESS: HETEROTOPIA DE GUERRAMovimentosImprovveis:oefeitocinemanaartecontempornea. Nestemesmoano,foramapresentadosnaPinacotecadeSoPaulo, quatro blocos dos cinco realizados com Neville e, em uma galeria, as fotosdestinadasvenda.Oqueisto?Trintaanosdeespera!Por incrvelqueparea,estademora,exclamavaNevilledeAlmeida naocasiodestasmostras.Doisanosdepois,oscincoblocosrealiza-doscomNevilleforamexibidosnoCentroHlioOiticica,noRiode Janeiro. Em 2006, cc4 Nocagions foi montado na Galeria Nara Roesler em So Paulo. Aqui sero analisados com mais detalhes os cinco pri-meiros blocos, pois foram os que pude experimentar.AimportnciadeCosmococa ProgramainProgresstemsido avaliadarecentemente.Algunsblocosccsoapresentadosereapre-sentados em vrios locais do mundo. Dan Cameron, curador do New Museum of Contemporary Art de Nova York, armou que, sem consi-derar este trabalho de Hlio e Neville, a histria da arte recente car inconclusa:Pois se o trabalho de Hlio Oiticica representa um dos ltimos paradigmas im-portantes da arte do sculo xx, e se Cosmococa e as instalaes Quase-cinema carac-terizam a fase culminante de seu desenvolvimento, ento se conclui que a histria da arte denitiva dos ltimos cinqenta anos no foi ainda escrita16.Heterotopia cc1Trashiscapes(paisagensresiduais),oprimeirobloco,inventado em 13 de maro de 1973. O pblico se acomoda em colches e traves-seiroseconvidadoalixaraunha,postura preguiosa de pouco se lixando. No escuro, por um minuto, apenas o som de forr: T bom demais, comea ento a projeo dos slides, ocupando duas paredes inteiras, uma em fren-teaoutra.Fotosdiversasdetrssries:srie 12G. Deleuze; F. Guattari, Mil Plats, v. 4, p. 73.13Idem, ibidem.14Bloco-Experincias in Cosmococa Progra-ma in progress, op. cit.15Idem.16D. Cameron, Through the Glass, Drakly, in C.Basualdo,HlioOiticica:quasi-cinemas, p. 38.194 BEATRIZ SCIGLIANO CARNEIROdo rosto de Buuel, capa do New York Times Magazine de 11 de mar-o de 1973. A srie do pster preto e branco de Luis Fernando, ator amigodeHlio,vestindoParangol30Capa23MWayKe,dasrie Parangol realizada em Nova York. A srie da capa do lbum de Frank Zappa: Weasel Ripped my Flesh (doninhas rasgaram minha carne): um desenho do rosto de um rapaz certinho arranhado por uma doninha queeleseguracomosefosseumamquinadebarbear.Umafotode Neville, ao telefone, com camiseta listrada. Nos slides, aparecem obje-tos diversos: espelho redondo, canudos de dlar, facas, navalhas, cin-zeiros cheios, lata de lme. Linhas brancas traadas sobre as imagens dassries,sobreopster,sobreorostodeBuuel,sobreacapado disco, linhas compostas de nas carreiras de cocana. A trilha sonora contacomtrechosdobaiodeLuisGonzaga,trechosdePfarosde Caruaru, de Stockhausen, de Hendrix, de sons da rua. cc2 Onobject, de 12 de agosto de 1973. Espuma grossa no cho, co-berta com tecido branco; bolas, cubos, cones, cilindros azuis, vermelhos, verdes, amarelos todos de espuma, espalhados pelo ambiente. O convite para danar, pular, brincar com as formas geomtricas. Quatro pare-des com projees. Comea-se enquadrando apenas a face de Yoko Ono na capa do livro Grapefruit: a book of instructions, edio americana de 1972, mancoquilada em desenhos diversos, depois vo aparecendo, slide a slide, o livro de Heidegger, Whats a Thing, vindo do lado esquerdo, seguido por Your Children de Charles Manson, o mandante do assassina-to de Sharon Tate, mulher do cineasta Roman Polanski, e dos hspedes que estavam na casa, crime famoso de 1969, presente ainda na mdia nos anos 70. O livro Your Children, lanado naquele ano de 1973, transcreve integralmenteadeclaraoprocessualdoacusado.Atrilhasonorafoi retirada do lbum duplo Fly de Yoko Ono. Um telefone toca alto. O som, os objetos e a espuma tornam fcil aceitar o convite aos saltos, dana e ao brincar com os outros participantes. Pisa-se com esforo sobre um cho de espuma que desestabiliza e acolhe a queda. cc3 Maileryn, de 16 de agosto de 1973. No cho de areia, de forma irregular como dunas, cobertas de vinil transparente, utuam bexigas em 195 COSMOCOCA PROGRAMA IN PROGRESS: HETEROTOPIA DE GUERRAamarelo e laranja. Os participantes so convidados a deitar e rolar, arras-tar-se e jogar as leves bolas amarelas e laranjas para o alto. Oiticica exige que as pessoas entrem no ambiente sem sapatos, sem instrumentos ou or-namentos que possam cortar o plstico do cho. Quatro paredes e o teto com a face de Marilyn Monroe da capa do livro de Norman Mailer lanado em 1973. As fotos foram tiradas no tempo real da seqncia da publica-o, sendo desembrulhada, e a imagem da atriz mancoquilada. O livro apa-rece primeiramente embalado por papel celofane que vai sendo cortado por uma tesoura, enquanto que a mancoquilagem com cocana vai se alte-rando, ora leve, ora carregada, quase grotesca. Sugere uma narrativa: uma imagem fechada por uma pelcula de celofane transparente que aos pou-cos vai sendo revelada e, simultaneamente, modicada por grossas linhas de p. Na trilha sonora, Yma Sumac, cantora popular peruana famosa nos anos de 1960, especialmente pela voz de timbre nico, capaz de atingir en-tre quatro e cinco oitavas na escala musical, apresenta canes referentes aos rituais incaicos. No uma cantora de folclore latino, ela d um tom de dramaticidade hollywoodiana para estes temas referentes aos incas.cc4Nocagions,de24deagostode1973.Duasparedesocupa-dasporumaseqnciadeslidescomimagensdabrancacapadoli-vro Notations de John Cage, coberta com desenhos feitos com cocana, objetos de consumo da coca: canivetes, canudo de prata da joalheria Tiffanys, alm de uma bagana de canabis semi-queimada. No centro, rodeada por um deck de tbuas de madeira, est uma piscina com um o de lmpadas azuis na borda e no fundo, debaixo da gua, um outro de lmpadas verdes que acendem nos intervalos entre as projees, ao som do carrossel dos slides voltando ao incio. A trilha sonora se inicia com alguns acordes de Beethoven e segue com trechos de peas com piano preparado de Cage. A proposta entrar na piscina, e assistir a projeo das imagens de dentro da gua.cc5 Hendrix-War,de26deagostode1973.Slidesdacapado discoWarHeroes,lanadopostumamenteem1972,comafacede 196 BEATRIZ SCIGLIANO CARNEIROHendrixmancoquiladaemtodasasparedesenoteto.Algunsdese-nhos de cocana sugerem borboletas ocultando e revelando os traos dorosto emoutro plano. Caixas comfsforos queimados aludem ao gesto de pr fogo na guitarra no Festival de Monterey em 1967. Redes espalhadas pela sala aludem ao nordeste do Brasil. Os ps leves sem tocar o cho, utuar. Apesar da trilha sonora ser de Hendrix, a pro-posta relaxar o corpo no casulo-rede. A experincia no aponta para umaregressoaumteroesimparaumencasular-seprovisrioe passar da sensao de peso leveza. When things get heavier, call me helium (quando as coisas carem pesadas demais, me chame de hlio), disse Hendrix em uma entrevista pouco antes de sua morte em setembro de 1970 . Hlio disponibiliza sensaes tteis, auditivas, cinestsicas e vi-suais em determinado momento e em determinado local e prope aes a serem realizadas pelas pessoas. Nessa arte solicitam-se experimenta-es sinestsicas com o corpo, para alm da viso contemplativa, aglu-tinadas em bloco. Os blocos cc aglutinam elementos de diversas procedncias e com apelos sensoriais diversos que acontecem com a presena das pessoas participando e se deixando invadir pela experincia. H uma constante preocupaodeHlioemincorporaraspessoascomoperformersnas obras,paraissosempreapresentaemseusprogramasambientaisal-gum modo de acolher ativamente este espectador dentro dos trabalhos. Havia um espao para as pessoas! Ningum havia pensado em um es-paoparaaspessoasemtermosdeartearmou VitoAcconci,no vdeoHeliofoniadeMarcosBonisson(2003)referindo-seexposio Information, no moma ny, 1970, na qual Hlio apresentou os Ninhos.Emumaconfernciade1967,emumencontrodearquitetos, Michel Foucault apresentou a comunicao Dos Espaos Outros, publi-cada apenas em 1984, na qual constatou que havia, em culturas e em pocasdiversas,espaosespeccossituadosdentrodosespaosso-ciais cotidianos com funes diferentes destes e muitas vezes opostas. Denominou-os heterotopias. 197 COSMOCOCA PROGRAMA IN PROGRESS: HETEROTOPIA DE GUERRAHeterotopiaconsisteemumconceitoprocedentedascincias biolgicas e mdicas, indicando rgos ou tecidos que ocupam outros espaos que no aqueles que lhes seriam destinados. Foucault empre-gara esse termo inicialmente em questes ligadas linguagem. No li-vro As Palavras e as Coisas (1966) citou um texto de Jorge Luis Borges sobre uma categorizao de animais de uma enciclopdia chinesa, na qualosanimaisseclassicariamem:a)pertencentesaoimperador, b)embalsamados,c)domesticados,d)leites,e)sereias,f)fabulosos, g) ces em liberdade, h) includos na presente classicao 17. Essa distribuio lhe causou riso e a seguir o mal-estar de uma suspeita de que existe uma desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande nmero de ordens pos-sveisnadimenso,semleinem geometria, do heterclito; e importa entenderesta palavra no sentido mais prximo da etimologia: as coisas apresentam-se nessa srie deitadas,colocadas,dispostasemstiosatalpontodiferentesquesetornaim-possvel encontrar para elas um lugar acolhedor, denir sob uma e outras, um lugar que seja comum a todas.[] As heterotopias inquietam, sem dvida, porque minam secretamentealinguagem,porqueimpedemdenomearistoeaquilo,porqueque-bram os nomes comuns ou os emaranham, porque de antemo arrunam a sintaxe e no apenas a que constri as frases mas tambm a que, embora menos manifesta, faz manter em conjunto (ao lado e em frente umas das outras) as palavras e as coisas. por isso que as utopias permitem as fbulas e os discursos, elas situam-se na prpria linha da linguagem; [] as heterotopias (como as que encontram to freqentemente em Borges) dessecam o assunto, detm as palavras sobre si mesmas, contestam, des-de sua raiz, toda a possibilidade de gramtica; desfazem os mitos e tornam estril o lirismo das frases18. A seguir, esta noo foi deslocada da referncia linguagem para um uso voltado anlise do espao. Foucault se interessou pela descri-o de lugares com a propriedade de se relacionar com todos os outros espaos de um modo que neutralizariam, suspenderiam ou inverteriam o conjunto de relaes reetido ou designado por eles. Tais lugares fo-ram classicados em dois tipos: as utopias lo-cais sem lugar real, projetados para um futuro 17M. Foucault, As Palavras e as Coisas, p. 5.18Idem, p. 5-6.198 BEATRIZ SCIGLIANO CARNEIROou associados a um passado, sempre em referncia a um presente que se quer negar, e as heterotopias locais reais experimentveis, manten-do porm uma congurao isolada, nos quais a vida social pode apare-cer contestada, invertida ou reduzida a apenas alguns de seus aspectos. Espaos vividos no so vazios que poderiam ser ocupados por coisas epessoasestanquesemsimesmas,masumconjuntoderelaesque deniriam localizaes irredutveis umas s outras. Nessas heterotopias se reuniriam resqucios de vrios outros espaos e tempos, formando um conjunto que se deslocaria do cotidiano, permi-tindo experincias paralelas diversas. Foucault reiterou que o tempo era uma obsesso do sculo xix e que nossa poca atual ser talvez a poca do espao. Estamos na poca do simultneo, estamos na poca da justa-posio, na poca do perto e do longe, do lado a lado, do disperso19. As heterotopias so capazes de receber funes diferentes das que desempenhavamnosprimrdiosdesuaconstituioemdecorrnciade mudanas culturais diversas. Tambm se caracterizam por algum tipo de sistema de entrada e sada, devido a um certo fechamento em relao a um espao maior. Outra caracterstica se refere aptido em justapor em um nico lugar real vrios espaos, vrios locais que so incompatveis neles mesmos20. Servem aqui como exemplos o teatro, o cinema e a mais antiga heterotopia caracterizada por locais contraditrios justapostos: o jardim. Aheterotopiasecontrapeaoespaocotidiano,estpresente, no projeta nenhuma fbula. As heterotopias incomodam, pois desa-am as representaes e a imagem do pensamento ao se comporem por justaposies de coisas no usualmente prximas em conjuntos prec-rios. As utopias, por sua vez, deslocam-se do espao real onde se vive e o substituem por uma esperana de futuro de harmonia e felicidade, ou ento de catstrofe. Um projeto situa-se na srie da utopia, um pro-grama na srie da heterotopia.Asheterotopiastmligaocomasheterocronias,resultantes da dcoupage do tempo, marcadas pela ruptura com o tempo tradicio-nal, pelo tempo da festa ou pelo tempo acumulado. Em suma, so rup-turas na vida ordinria, desvos. So contra-espaos, interpenetrados 199 COSMOCOCA PROGRAMA IN PROGRESS: HETEROTOPIA DE GUERRApelosespaosquecontestamousecontrapem.Deumlado,podem consistiremformasevidentesdedominaodelimitadasemespaos reais,comoporexemploprises,camposdeconcentrao criados em nome de um bem-estar da sociedade, da regenerao do criminoso ou de puricao pelo castigo. De outro, podem se referir a situaes de prtica de liberdade, campo aberto para experincias reais em que os corpos experimentam o que podem.Cosmococa programa in progress pertence srie das heteroto-pias de realizaes libertrias. Amplia a noo de heterotopia para fora de uma perspectiva estritamente espacial ao programar uma experin-cia do tempo por meio da vivncia de ritmos. No um tempo utpico de um futuro melhor ou referente ao passado, mas ao tempo do que se desenrola naquele espao, vivenciado no ato de mover-se desacele-rado em redes e cho de espuma, ou lixando unhas, ou danando ou rolandoemareiaplasticada,acompanhandoounomsicaeima-gens. Estas caixas de imagens fazem com que se experimente o tem-po quase como no cinema.OprogramaCosmococaincorporatrajetosportrilhasentreos elementosdoespaoaserempercorridoscomritmodecadaume exigeumaatenoduraodomovimentodeimagensprojetadas. Principalmente faz com que a heterotopia seja analisada como bloco de devir, ou seja, analisada no pela relao entre elementos componentes, mas pelo campo de foras potencializadas pela experimentao.InvenoEunometransformeiemumartistaplstico,eumetransformei em um declanchador de estados de inveno, declarou Hlio Oiticica em depoimento a Ivan Cardoso para a realizao do lme HO de Hlio emjaneirode197921.Declanchar,palavrain-ventadaapartirdofrancsdclencher,como sentidodedestravar,provocar.Dclencheur 19Idem,Desspacesautres,DitsetEcritsIV, p. 752.20Idem, p. 758.21I. Cardoso; R. F. Lucchetti, op. cit., p. 73. 200 BEATRIZ SCIGLIANO CARNEIROtambm signica disparador de mquina fotogrca. Oiticica preferia o termo inveno palavra criao. Criar, segundo Oiticica, obedece a um impulso naturalista de realizar formas originrias, que prescinde da experincia. Por outro lado, inventar decorre da experimentao e deestudo,nosurgeespontaneamente,masresultadenecessidades sentidas, de exigncias postas pelo percurso e vivncia do inventor ou de seu grupo social. Jos Oiticica Filho, o pai de Hlio, foi, alm de en-tomlogo, um inventor. Nos anos de 1940, inventou um equipamento para fotografar insetos. Seu trabalho lhe rendeu prmios como cientis-ta e fotgrafo e uma bolsa Guggenheim em Washington. Na arte, um dos usos da noo de inveno mais divulgados o Ezra Pound. Em Como Ler, escrito em 1928, o poeta americano apresen-ta uma classicao no das obras, mas dos seus produtores, baseada no critrio da inveno. Privilegia a noo de inveno em detrimento de criao inspirado pelo movimento futurista de apologia mquina etecnologia.Osinventoressoaquelesquedesbravaramumnovo processo em arte, uma linguagem nova, os que praticamente fundaram um estilo. Depois do inventor, surge o mestre, a rara categoria de poeta capaz tanto de inventar como tambm de aperfeioar outras invenes a um alto nvel de excelncia. O melhor poeta, de acordo com Pound, qualica-secomoomelhorfabbro(metalrgico,operrio)enome-lhorcriador.Seriaaqueleque,commuitotrabalho,usaalinguagem com o mximo de ecincia, ou seja, carrega a linguagem de alto grau de sentido. Depois deste pice, a qualidade da poesia dentro de uma mesma srie inventiva declina, com mais quatro categorias de poetas: o diluidor; os bons escritores, mas sem qualidades salientes; os bele-tristas e, por m, os lanadores de modas transitrias22.No entanto, Hlio no compartilhava tais classicaes hierarqui-zantes. Para ele interessavam apenas estados de inveno, que nunca poderiamserdiludos,mantendo-sesemprenovos.Almdisso,um artista no deveria ser simplesmente o inventor deste ou daquele tra-balhoisolado,masumdeclanchadordeamplosestadosdeinveno junto aos participadores de propostas artsticas. 201 COSMOCOCA PROGRAMA IN PROGRESS: HETEROTOPIA DE GUERRAOdestaquedadoinvenoencontraouxodeumaretoma-darecentenascinciassociaisdestanooedesuasimplicaes23, que tiveram presena signicativa na sociologia durante a passagem dos sculos xix e xx, com os estudos do francs Gabriel Tarde (1843-1904). A lgica social era considerada por este autor como uma moda-lidade de produo de vnculos, de laos sociais. Vnculos baseados emimitao transmissodecrenaevontadesdeumindivduoa outro,entregrupos,deumgrupoaoutro emodicadospelasin-venes,nodeobjetos,masdepadressociais,comportamentos, estilos de vida. Inveno seria o cruzamento de sries imitativas, or-denadas de modo indito, em resposta a uma questo ou necessidade social,mantendoassimasociedadeemtransformao.Aqualidade de uma inveno se mostra pelo grau de resoluo de um problema ou demanifestaodealgumaexperinciae,tambm, pelonovouxo imitativo que inicia. O conceito de inveno atualizado permite que se analise a vida social, no no seu aspecto conservador de padres e estruturas, mas na busca das foras inovadoras e disruptivas, as quais encetam mudanas. O inventor, ou os inventores, no criam o invento, aglutinam di-versas injunes, inclusive o plgio de algum elemento, e propiciam o encontro de uxos imitativos existentes, tal como numa assemblage, e disparam uxos de conseqncias imprevisveis e inditas. No caso de Cosmococa, o desenho com cocana era uma brincadeira, uma pardia de atitudes de usurios que distribuam carreiras em cima de capas de livro e discos antes de cheir-las e tambm uma aluso irnica a artis-tas preocupados em montar carreiras com seus desenhos: jogo-joy: nasceu de blague de cafungar p na capa do disco zappa Weasel ripped my esh: quem quer a sobrancelha? e a boca?: Sfuuuum!24. Os gestos de mancoquilar aparecem fotografados nos momentos-frame. Gestos que criam rastros como plgio da ima-gem dada, rastros que se cafungam e assim de-saparecem, se ocultam, pois entram no corpo e alteram sua qumica. Neville, em depoimento 22E. Pound, ABC da Literatura, p. 42-43.23Cf. entre outras referncias: http://multitu-des.samizdat.net/24Bloco-Experincias in Cosmococa Progra-ma in progress, op. cit.202 BEATRIZ SCIGLIANO CARNEIROrecente, armou com humor que Cosmococa foi transmutao do v-cio em virtude25.Um uxo imitativo: cheirar p em capas de discos se cruza com outro uxo imitativo, o ato de desenhar e compor elementos para se-rem fotografados, que por sua vez se cruzam com proposta de chamar a participao do espectador, alvo de outras aes de Hlio para lixar unhas,danar,relaxaremredes.Nevilletranspsousodacocana paraoutrocontexto,transmutando-aempigmentosobresuperfcies diversas. A inveno no sai de um vazio, mas da composio de ele-mentosdsparesquepropemoutrossentidosparaascoisasqueali esto se congurando e possibilitam outros vnculos e associaes.hviasdiversaseumaporodecircunstnciasqvieramocasionarqcc1se zesse a 13 de maro de 73 e q digo ser quase-cinema pondo de lado a uniteralidade do cinema-espetculo26. Decorrentedeviasdiversas,vaisurgindooprimeiroblocode experincias,occ1.Osobjetosdeconsumodacocanaaparecemna maioriadosslidesdoscincoprimeirosblocoscc:canivete,notasde dlar enroladas, espelho, pedra gata cortada e polida, canudo de pra-ta.Opdacocanararamenteseapresentaprontoparaserinalado eapreparaofeitamedianteuminstrumentocortantequalquer. Os gros maiores devem ser despegados com suavidade. Linhas retas devem ser desenhadas com este p homogeneizado em uma superfcie lisa e brilhante, de preferncia um espelho, para que o aproveitamento dos pequenos cristais seja completo. O canivete um elemento impor-tante do ritual de aspirao da cocana e aqui usado por Neville de Almeida para desenhar as linhas de p sobre as imagens. Navalha, lixas metlicas para unhas e canivete so objetos cortantes, e talhos no corpo podem trazer letes de sangue na pele. Hlio associou os grumos de cocana jogados sobre as imagens ao sangue. o p, a co-cana, quando jogado uma espcie assim de parece assim, postas de sangue27. H uma atmosfera de sutil violncia ao corpo, decorrente da presena de canivetes e referncias a talhos e cortes na carne nos slides. 203 COSMOCOCA PROGRAMA IN PROGRESS: HETEROTOPIA DE GUERRATrs sries de imagens predominam em cc1: a do pster feito com a imagem do Parangol 30: Capa 23, M Way Ke, de 1972, vestido por Luis Fernando, a do rosto de Buuel que saiu na capa do suplemento semanaldoNewYorkTimes,de11demarode1973edodiscode Frank Zappa, Weasels ripped my esh, de 1970. Todas as imagens con-tm alguma referncia a cortes no corpo.Em relao ao pster de cc1, no h nenhum corte, mas escreve Hlio: obs: nipples: bico do peito, reconhecer que em trashiscapes o bico do peito da foto-poster de Luis Fernando no se liga aos coke-tracks-liamesdemembros,etc masafacaotoca:corte-carciaao mesmo tempo28.O gesto de passar a navalha nos olhos da foto de Buuel para ajei-tar os gros da cocana para as fotos foi pardia de uma das cenas mais conhecidasdocinema umanavalhacortandohorizontalmenteum olho em Un Chien Andalou (1929), lme de Buuel e Salvador Dali. Um Co Andaluz, conta Buuel, nasceu do encontro de dois so-nhos. Chegando casa de Salvador Dali em Figueiras, contei-lhe que sonhara recentemente com uma nuvem na cortando a lua e uma na-valha fendendo um olho.Por sua vez ele me contou que acabara de ver em sonho, na noite anterior, uma mo cheia de formigas. Acrescentou: E se zssemos um lme a partir disso?29.ParaHlio,oslmesdeBuuelcomDalinocarregamexplica-es para as relaes entre as imagens justapostas, nem estticas, nem nadaporqueaexplicaojdadacomoelementoparodiado30.A nuvemnadecocanacortaoolhodeBuuel,foialicolocadapela ponta da navalha, assim aparece uma das imagens de cc1 Trashscapes, pardia da pardia dos sonhos citados. Outraimagemdecortenocorpoapare-cenesteblococc1.AcapadodiscodeThe Mothers of Invention, mostra uma doninha ar-ranhando um rosto, deixando linha de sangue. Noentanto,oprprioarranhadoqueusaa doninha para raspar o rosto, pois ela funciona 25Depoimento de Neville DAlmeida autora em maro de 2003.26Idem.27Heliotapes, para Augusto de Campos. Trans-crio.ProgramaHlioOiticica,op.cit., 505/74.28NTBK 2/73 Apontamentos. Programa Hlio Oiticica, op.cit., 0189/73, p. 64.29L. Buuel, Meu ltimo Suspiro, p. 142.30Time Is on My Side, 16/06/1973. Programa Hlio Oiticica, op.cit., 316/73.204 BEATRIZ SCIGLIANO CARNEIROcomo mquina de barbear. A cocana, ou coke-tracks, recobre o dese-nhoemcc1.Apardiasobreumapardia.Estaimagemdovinilse inspirou em uma capa de revista Mans Life, de setembro de 1956, que anunciavaocontoDoninhasRasgaramMinhaCarne31.Zappacha-mou o artista ilustrador Neon Pak (1940-1993), e mostrou-lhe a revista e perguntou: Aqui est. O que voc pode fazer que seja pior do que isso?. A resposta do ilustrador foi uma pardia das propagandas de aparelhos de barbear eltricos que se tornou a famosa imagem. Umaimagemparodiaaoutra,semquehajaumoriginal. Entretanto, as associaes que propiciam no so fortuitas. Mans Life era uma revista norte-americana de pulp-ction, cujos contos e repor-tagensenalteciamasqualidadesmasculinasemumperodops-II Guerra, em plena Guerra Fria. O homem herico da revista se torna o homem clean-cut (expresso dos jovens contestadores norte-ameri-canos para a gerao que apoiava o chamado establishment), escanho-ado,queescolhedeliberadamentereceberoarranhodeumanimal feroz domesticado como um eletrodomstico. Obviamente no seria necessrio conhecer todas estas procedn-ciasparainventar,asassociaespodemserfeitasporsimilitudese diferenciaes que, neste caso especco citado, brincam com os mo-delosenaltecidospelosconservadores.Estasbrincadeiraspodemser conceituadascomopardias.Apardiaemumsentidoamplo,que prescinde do elemento humorstico, consiste em um elemento central dos procedimentos da arte do sculo xx e dene-se como uma forma de imitao caracterizada como uma inverso irnica, nem sempre s custas do texto parodiado. [] repetio com distncia crtica, que marca a diferena em vez da semelhana32. Estesexemplosapresentamosindciosdealgunsprocedimentos da inveno, do cruzamento de uxos imitativos que se saturam ou al-teram mutuamente seus signicados trazendo outros sentidos. As par-dias carregam seus elementos componentes para outros contextos onde se assimilam a outros elementos, dando continuidade a uxos de imita-es ou desviando-os para outros caminhos. Um sonho de um cineasta 205 COSMOCOCA PROGRAMA IN PROGRESS: HETEROTOPIA DE GUERRApercorre uma linha e nos encontra neste artigo, na ilustrao do olho de uma foto deste mesmo cineasta cortado por uma carreira de cocana. Cosmococa Programa in progress marca-se por pardias e estas concernem liberdade de inventar: 1-tudocomeoucomqvimchamardemancoquilagens[]:invenode Neville: pardia dos concerns dos artistas: a coca q se dispe em trilhas acompanha o pattern design q lhe serve de base: uma espcie de demi-sourrire para o q se conhecia porplgio:amaquilagemseescondenaprpriadisposioqassumecomosefora partedodesenho:faz-nospensarcomsarcasmosduchampianoquolongeepassa-dosestotodososconceitosqcaracterizavamocarterdeautenticidadenasartes plsticas: [] o comportamento o pride de ser e estar solto/leve/livre para optar e inventar tornaram-se imprescindveis a qualquer coisa q possa interessar a quem procure experimentar: a pardia com a ambivalncia do conceito de plgio portanto fundamental e sutilssima33.Ao lado da pardia, o conceito de plgio foi uma das vias diversas que ocasionaram o programa. Plgio assinala uma cpia de um modelo. Sua ambigidade decorre de que o ato de copiar pode ser feito, ou com deslocamento de funo e atravessamento de outras injunes, ganhan-do um sentido prximo da pardia, ou como uma reiterao da impor-tnciadeseroriginalparanscompetitivos,atitudesemnenhuma ligao com inventar descobrir experimentar. Hlio aqui se refere a artistas que copiam deliberadamente o que outro faz e saem alarde-ando como sendo sua criao original, atitude de trapaceiros, daqueles que se apropriam de propriedades xas para refor-las. E, assim, se sarem bem34. Na arte atividade marcada pela inveno constante, mas tambm pelo atravessamento de uxos imitativos de toda ordem uma avaliao da qualidade da produo tem sido tema constante de debate de crticos e artistas. Hlio Oiticica reitera em textos e proposies sua valorizao dos procedimentos inventivos. A diluio perturbava-o enquanto aspec-to do apaziguamento de uma fora que s uma inveno baseada na experincia e na vivncia 31Cf.http://en.wikipedia.org/wiki/Weasels_Ripped_My_Flesh32L. Hutcheon, Uma Teoria da Pardia, p. 17.33Bloco-Experincias in Cosmococa Progra-ma in progress, op. cit.34G. Deleuze; C. Parnet, op. cit., p. 53.206 BEATRIZ SCIGLIANO CARNEIROpoderiamanter.AHlioimportavamelementosquenosediluam, elementos experimentais e vivenciados que sustentariam a obra como coisanova.Esteosentidodeinventar,descobrir,experimentar que aponta para elementos que escapam das capturas, pois decorrem daexperimentaoepropiciamexperinciasreais,comcorposre-ais.Haviaalgoparaalmdeinovaoevirtuosidadedelinguagem nas obras que realmente interessavam, algo para rachar a linguagem. Dinamite?Heterotopia de GuerraRacharaspalavras,racharalinguagemnosinterstciosdasimagens, sons e sensaes em cada bloco-experincia de Cosmococa, Programa in progress. A arte aqui ultrapassa linguagem e se compe com enun-ciadosimperceptveis,nitroglicerinainstveleperigosa.Acoisa-obra,carregandoaspardiaseseusarquivos,oscenrios,astrilhas sonoras, desdobra-se em um lugar, recorta e ocupa um espao. Assim, Cosmococa Programa in progress instaura o encontro entre elemen-tos heterogneos, pessoas de fora, o espao e os membros da institui-oondeosblocossomontados,asdeterminaeseinstruesde Hlio e Neville. Heterotopia de inveno. Para que no se perca a dimenso libertria destes blocos hetero-tpicos, recorre-se aqui noo de mquina de guerra que possibilita decodicar, captar a passagem de algo, mesmo imperceptvel, que des-monta a identidade plena, os cdigos bem postos. Mquina de guerra assinala que h uma exterioridade em relao ao aparelho de Estado, exterioridade que escapa constantemente da interiorizao territorial que o aparelho estatal exige para ser soberano35. Devido capacidade de agenciar linhas de fuga e conect-las ao exterior, a mquina de guerra sofre constantes, e muitas vezes bem-su-cedidos, ataques de captura por parte do Estado. Todavia, no instan-te de ser capturada, a mquina de guerra se metamorfoseia em outra 207 COSMOCOCA PROGRAMA IN PROGRESS: HETEROTOPIA DE GUERRAcoisa, irredutvel, lana longe seus dardos e escapa. H, portanto, um constante movimento de captura e fuga, uma guerra permanente entre vontades, um incessante confronto de foras. Amquinadeguerraserelacionacomumagenciamentoque nuncasefechasobreumaformadeinterioridadeouemumterrit-rio:onomadismo.Humconitonmadexmundosedentrio,no qual o sedentrio seria aquele que procura sempre codicar a vida por meiodeleis,instituies,eonmadepercorreseustrajetosforada Moral, fora dos traados do Estado e de estados de autoridade, ignora a luta pelo reconhecimento por critrios universais ou tidos como tal, ou por um exerccio de poder nos moldes sedentrios. No se trata de umdualismo:ousedentrioounmade,masplanosdiversosquese interceptam. No h ocupao de espaos separados, ambos esto no mesmolugar,squevivendoemnveisdiferentesesemsecomple-mentarem. Interessa aqui o traado real das situaes de tenso.Arte nmade e arte sedentria podem estar sob um mesmo teto, postadasladoaladonummesmomuseuougaleria.Almdisso,um artista, na medida em que escapa da prpria identidade sedentria de domesticador de imagens36 e se articula com uma exterioridade, al-terandoseupercursosobrelinhasdefugadesconhecidas,nestemo-mento,estatravessadopelonomadismo.Atquepontoesteartista vai se manter altura destas descobertas depende da capacidade em construirumamquinadeguerracapazdeagenciarlinhasdefuga liberadoras e guerreiras. Oartistanmadesedeixalevarpelaslinhasdeescapepara foradasidentidadesecategorizaeseinventamodosdeexistncia. Existncias que funcionam como mquina de guerra no apresentam alternativasaosmodelosdesubjetivaoassujeitadadoEstado,mas carregamaforadaexterioridadequedestriaimagemesuasc-pias, o modelo e suas reprodues, toda possibilidade de subordinar o pensamento a um modelo do Verdadeiro, do Justo ou do Direito37. meu sonho q cosmo-coca a cada fragmento se modifica e acaba 35G. Deleuze; F. Guattari, op. cit., v. 5, p. 23.36Idem, p. 45.37Idem, p. 47.208 BEATRIZ SCIGLIANO CARNEIROpor formar como q uma galxia de inveno de manifestaes in-dividuais poderosas38.Nos blocos-experincias de Cosmococa encontra-se um ncleo irredutvel captura pelo Estado e pelo modo de subjetivao necessrio manuteno da ordem universal do mundo e seus modelos. A experincia direta. A fora disruptiva de questionar com o corpo, com a inscrio no corpo, a naturalidade de hbitos, de condicionamentos. A prtica da liberdade, no liberdade idealizada, mas vivenciada em um espao heterotpico, conectada com o cosmos, uma galxia de inveno. Heterotopia de guerra.Post ScritptumO que isto? Trinta anos de espera! Por incrvel que parea, esta de-mora O mundo teve que evoluir para esta obra aparecer39.No foi exatamente uma evoluo do mundo que fez com que Cosmococaaparecesse,masodeslocamentodas tcnicasdepoder da sociedade disciplinar para as estratgias da sociedade de controle. Participao contnua, exibilizao das disciplinas, nfase no apren-dizadoconstantemedianteprogramasestruturados,vigilnciapor meios eletrnicos, circulao veloz de informaes, estas so algumas prticas do controle que, nestes trinta anos, potencializaram os dispo-sitivos de segurana.Cosmococa Programainprogress,comseusblocosetextose experimentaes, envolvendo ou no o outro, carrega em seus inters-tcios uma anlise de foras que, em 1973, ainda estavam batendo na porta. E, ao mesmo tempo, j prope experimentao com as linhas de resistncia a este novo monstro: o controle. O controle fora per-cebido e descrito, ainda nos anos de 1970, por W. Burroughs um dos artistas pensadores incorporado por Oiticica e posteriormente anali-sado por Deleuze no breve artigo Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle, de 199040.Na perspectiva das resistncias e da liberao, em vez de tornar-se paradigma da histria da arte, interessa muito mais que Cosmococa 209 COSMOCOCA PROGRAMA IN PROGRESS: HETEROTOPIA DE GUERRAPrograma in progress mostre seu carter intempestivo, capaz de facul-tartantocontraposiesaocontroleesforasreativasquantoex-perincias efetivas de liberdade. Este carter se refere a mudanas de atitudes e inveno de modos de existncia tambm como arte.REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBUuel, Luis. Meu ltimo Suspiro. Traduzido por Rita Braga. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.BAsualdo, Carlos. Hlio Oiticica: quasi-cinemas. Berlim: Hatje Cantz, 2001.CAmpos, Haroldo de. A Educao dos Cinco Sentidos. So Paulo: Brasiliense, 1985.CArdoso, Ivan; lucchetti, Rubens. Ivampirismo: o cinema em pnico. 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