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12
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL DAS RELAÇÕES POLÍTICAS
JOSETTE BAPTISTA
CONSOLIDAÇÃO E COTIDIANO DE UMA INSTITUIÇÃO DO IMPÉ RIO:
A POLÍCIA MILITAR DO ESPÍRITO SANTO
(1835/1889)
VITÓRIA 2009
13
JOSETTE BAPTISTA
CONSOLIDAÇÃO E COTIDIANO DE UMA INSTITUIÇÃO DO IMPÉ RIO:
A POLÍCIA MILITAR DO ESPÍRITO SANTO
(1835/1889)
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História
Social das Relações Políticas do Centro
de Ciências Humanas e Naturais da
Universidade Federal do Espírito Santo,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em História, sob
orientação do Professor Doutor Geraldo
Antonio Soares.
VITÓRIA 2009
14
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Baptista, Josette, 1962- B222c Consolidação e cotidiano de uma instituição do Império : a
Polícia Militar do Espírito Santo (1835/1889) / Josette Baptista. – 2009.
125 f. : il. Orientador: Geraldo Antônio Soares. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito
Santo, Centro de Ciências Humanas e Sociais. 1. Polícia. 2. Polícia militar. 3. Estado. I. Soares, Geraldo
Antônio. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e Sociais. III. Título.
CDU: 93/99
15
JOSETTE BAPTISTA
CONSOLIDAÇÃO E COTIDIANO DE UMA INSTITUIÇÃO DO IMPÉ RIO:
A POLÍCIA MILITAR DO ESPÍRITO SANTO
(1835/1889)
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História
Social das Relações Políticas do Centro de Ciências Humanas e Naturais da
Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em História, sob orientação do Professor Doutor Geraldo Antônio
Soares.
Aprovada em _____ de _____________de 2009.
COMISSÃO EXAMINADORA
______________________________________________
Profº Drº Geraldo Antonio Soares Universidade Federal do Espírito Santo Orientador
_____________________________________________
Profª Drª Adriana Pereira Campos Universidade Federal do Espírito Santo
_____________________________________________
Profº Drº Ivan de Andrade Vellasco Universidade Federal de São João Del Rey
____________________________________________
Profª Drª Márcia Barros Ferreira Rodrigues Universidade Federal do Espírito Santo Suplente
16
“A polícia é uma instituição necessária
à ordem e à vida de uma cidade. [...]
Não se deve dizer mal da polícia. Ela
pode não ser boa, pode não ter
sagacidade, nem habilidade, nem
método, nem pessoal; mas, com tudo
isso, ou sem tudo isso, é instituição
necessária. Os tempos vão suprindo
as lacunas, emendando os defeitos.
Para falar de nós, já começamos a
perder a idéia de uma polícia eleitoral
ou de um canapé destinado a alguém
que passa de um cargo a outro e
descansa um mês para tomar fôlego.”
Machado de Assis
A Gazeta de Notícias
Rio de Janeiro
20 de dezembro de 1896.
17
AGRADECIMENTOS
A trajetória para a realização desta dissertação foi longa. Começou no segundo
semestre de 2003, quando cursei a primeira disciplina do Mestrado em História
como aluna especial. Buscava conhecimentos que me auxiliassem na elaboração do
projeto de pesquisa para ingresso como aluna regular. Conclui a graduação em
História em 1991, porém, minhas atividades profissionais na Polícia Militar acabaram
direcionaram meus estudos para a área da educação policial. Durante muitos anos
trabalhei na Diretoria de Ensino da instituição. Na busca de maiores fundamentos,
em 2004 cursei ainda como aluna especial a disciplina História, Cotidiano e Poder,
ministrada pelos professores Drª Adriana Pereira Campos e Drº Geraldo Antonio
Soares. Tal disciplina foi fundamental em termos teóricos e metodológicos para a
confecção do meu projeto de pesquisa. Assim, sem tirar o brilhantismo dos demais
professores do mestrado agradeço imensamente aos dois, que me abriram novos
horizontes com suas abordagens sobre o cotidiano do Espírito Santo no século XIX,
possibilitando-me precisar o objeto de estudo da minha pesquisa.
Em 2007 finalmente ingressei como aluna regular no mestrado e tive a honra de ser
orientada pelo professor Drº Geraldo Antonio Soares. Exigente na medida certa,
disposto sempre a me guiar na construção do conhecimento necessária a realização
da minha dissertação, me ajudou a apreciar e entender o documento histórico dentro
da sua época e do seu contexto. Foi um exercício trabalhoso, porém prazeroso. A
ele, a quem posso chamar verdadeiramente de mestre, dedico com muito carinho
meu sincero e especial agradecimento.
Meus estudos tiveram sempre que ser conciliados com meu trabalho, assim não
posso deixar de agradecer aos meus comandantes Cel PM José Carlos Alves
Carneiro, Cel PM Júlio Cesar Costa, e nos dois últimos anos, Ten Cel PM Isson Feu
Pereira Pinto Filho, que souberam entender a importância do mestrado para mim,
possibilitando-me algum tempo para a realização desta dissertação. Também
agradeço ao meu amigo Tenente Silvagner, com quem sempre trocava idéias sobre
os meus estudos e se preocupava em me fazer algumas indicações.
A minha família - filho, marido, pais, irmãos e sobrinha - sentido da minha vida,
agradeço pela compreensão da ausência em algumas ocasiões.
18
RESUMO
Descreve a trajetória da Polícia Militar no Espírito Santo desde a sua criação em
1835 até a queda do Império, usando como fontes os Relatórios da Presidência da
Província, leis e decretos do Império e da Província, e mais dois documentos
produzidos pela própria polícia: os Livros de Registros de Assentamentos de Praças
e Oficiais e os Mapas Diários. Apresenta o embate constante entre os Presidentes
da Província e os membros da Assembléia a respeito da necessidade da polícia
para aquela sociedade, em que os primeiros apontavam sempre a necessidade de
aumento de efetivo, enquanto os segundos tendiam para a sua diminuição, e até
para a sua extinção, como ocorreu em 1844. Aponta ainda o cotidiano institucional
da polícia a partir da formatação do perfil das pessoas que se tornaram policiais
naqueles tempos do Império. Tal perfil foi retratado por meio de tabelas e gráficos
que nos permitiram apresentar análise detalhada a respeito da filiação, naturalidade,
idade, cor, estado civil, ofício anterior, tempo de permanência, forma de ingresso,
motivo do licenciamento, promoção, disciplina, bem como o que faziam diariamente
as pessoas no desempenho do ofício policial. Conclui que a policia foi instituição que
surgiu no contexto de construção do próprio Estado, e assim, contribuiu para a sua
configuração no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Estado. Polícia. Província do Espírito Santo. Século XIX.
19
ABSTRACT
Describes the trajectory of the Military Police in the State of Espírito Santo since its
creation in 1835 until the fall of the Empire, using as sources the reports of the
President of Province, laws and decrees of the Empire and Province, and more two
documents produced by the police: the Book´s Records of Settlements of the police
officers and the Daily Maps. Displays the constant clash between the Presidents of
the Province and members of the Assembly regarding the need of the police to that
society, in which the former always pointed to the need of increasing the number of
police officers, while the latter tended to their decline, and even extinction as
occurred in 1844. Also indicates the institutional routine of police from the format of
the profile of people who become police officers in those days of the Empire. This
profile had been portrayed through charts and graphs that enable us to provide
detailed analysis about the affiliation, place of birth, age, color, marital status,
previous office, time of remaining, form of entry, reason for licensing, promotion,
discipline, and what did the police officers in the daily performance of their offices.
Concludes that the police was a institution that arose in the context of the building of
the own State, and thus contributed to its configuration in Brazil.
KEYWORDS: State. Police. Province of Espírito Santo. Nineteenth century.
20
LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS
TABELAS
Tabela 1 - Organização da Guarda Municipal em fevereiro de 1875 .......................63
Tabela 2 - Filiação - período 1835-1844....................................................................85
Tabela 3 - Filiação - período 1868-1889....................................................................85
Tabela 4 - Naturalidade - período 1835-1844............................................................87 Tabela 5 - Origem dos policiais naturais do ES - período 1835-1844........................87 Tabela 6 - Naturalidade - período 1868-1889............................................................88 Tabela 7 – Idade - período 1835-1844.......................................................................89 Tabela 8 - Idade - período 1868-1889........................................................................90 Tabela 9 - População do Espírito Santo em 1872 .................................................... 92 Tabela 10 - Cor - período 1835-1844.........................................................................93 Tabela 11 - Cor - período 1868-1889........................................................................93 Tabela 12 - Estado Civil - período 1835-1844...........................................................94 Tabela 13 - Estado Civil - período 1868-1889 ..........................................................94 Tabela 14 – Ofício Anterior - período 1835-1844......................................................97 Tabela 15 – Ofício Anterior - período 1868-1889 .....................................................98 Tabela 16 - Forma de ingresso - período 1835-1844 ..............................................100 Tabela 17 - Forma de ingresso - período 1868-1889 ..............................................100 Tabela 18 - Reengajamento - período 1835-1844 .................................................101 Tabela 19 – Número de policiais assentados - período 1835-1844 .......................102 Tabela 20 – Número de policiais licenciados - período 1835-1844 .......................102 Tabela 21 - Número de policiais assentados - período 1868-1889 .........................104
21
Tabela 22 – Número de policiais licenciados - período 1868-1889.............. 105 Tabela 23 – Tempo de permanência na polícia - período 1835-1844...... ..............108 Tabela 24 – Tempo de permanência na polícia - período 1868-1889 ...................108 Tabela 25 - Evolução dos vencimentos ..................................................................110 Tabela 26 – Motivos do licenciamento - período 1835-1844 ..................................113 Tabela 27 – Motivos do licenciamento - período 1868-1889 .................................114 Tabela 28 – Baixa em hospital - período 1835-1844 .............................................120 GRÁFICOS Gráfico 1 – Promoção – período 1835-1844 ...........................................................109
Gráfico 2 – Promoção – período 1868 -1889 ..........................................................109
22
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Assentamento funcional de policial-Vitória-Séc XIX ......... .....................17
Figura 2 – Livro de registro do trabalho diário da polícia .........................................18
Figura 3 – Vista geral de Vitória – 1860 ...................................................................25
Figura 4 – Os refrescos do Largo do Palácio ..........................................................36 Figura 5 – Negociantes de Tabaco ..........................................................................36 Figura 6 – Finalidade legal da polícia em 1838.........................................................68 Figura 7 – Registro da extinção da polícia em 1844.................................................72 Figura 8 – Distribuição do efetivo em 1840 ............................................................. 78 Figura 9 – Distribuição do efetivo em 1842...............................................................79 Figura 10 - Registro funcional de policial do século XIX..........................................84
23
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................12
1. POLÍCIA, ESTADO E PODER .......................................................................23
1.1 UMA REFLEXÃO SOBRE O PAPEL SOCIAL DA POLÍCIA ........................23
1.2 A POLÍCIA E O ESTADO IMPERIAL............................................................38
2. GÊNESE E CONSOLIDAÇÃO INSTITUCIONAL ..........................................46
2.1 OS DILEMAS DA CONSOLIDAÇÃO ............................................................46
2.2 PRECISA-SE DE POLÍCIA! MAS, PARA QUÊ POLÍCIA?...........................68
3. QUE POLÍCIA ERA ESSA? COTIDIANO INSTITUCIONAL DE UMA
POLÍCIA DO IMPÉRIO ......................................................................................82
3.1 O PERFIL SOCIAL DE UMA POLÍCIA PROVINCIAL ..................................83
3.2 O RECRUTAMENTO, O TEMPO DE PERMANÊNCIA E OS MOTIVOS
DOS DESLIGAMENTOS................................................................................... 99
3.3 A DISCIPLINA ............................................................................................115
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 118
FONTES E REFERÊNCIAS .............................................................................122
24
INTRODUÇÃO
Em primeiro lugar se faz necessário deixar bem claro o sentido do termo polícia na
presente dissertação. Foi perceptível na pesquisa bibliográfica sobre o sistema de
justiça criminal1, no qual se inserem as instituições policiais, certa generalização no
emprego de tal palavra como se ela abarcasse as duas polícias formatadas no
Império. Uma destinada a ser usada como recurso de força do Executivo provincial e
outra destinada as atividades administrativas e judiciárias do Estado2. A primeira,
atualmente é denominada em todo o país como Polícia Militar, porém, no Espírito
Santo, nos tempos do Império, recebeu as designações de Guarda de Polícia
Provincial, quando de sua criação em 1835, e de Companhia de Polícia no ano de
18563. A outra hoje é configurada como Polícia Civil, mas no Império pode ser
reconhecida nas figuras dos Chefes de Polícia, Delegados e Subdelegados, que até
1871 possuíam também atribuições judiciais, pois tinham competência para julgar
certos crimes4.
1 Conforme Silva (2008, p. 19), atualmente o sistema de justiça criminal, em sentido amplo, refere-se
ao conjunto dos órgãos de controle social: Juízo Criminal, Ministério Público, Defensoria Pública,
advogados criminais, penitenciárias, polícias e legislação penal. 2 O Artigo 1º do Regulamento nº 120 de 31 de janeiro de 1842 que regulamentou as partes policiais e
judiciais contidas na Lei nº 261 de 3 de dezembro de 1841(1ª reforma do Código de Processo
Criminal no Império) lista as autoridades encarregadas do exercício das atribuições das polícias
administrativa e judiciária: ministro e Secretário de Estado da Justiça, Presidentes das Províncias,
Chefes de Polícia, Delegados, Subdelegados, Juízes Municipais, Juízes de Paz, Inspetores de
Quarteirões e Câmaras Municipais. Por sua vez nos Artigos 2º e 3º podem ser encontradas,
respectivamente, as competências das duas esferas policiais. 3 Durante o Império não havia padronização do nome da polícia nas Províncias. A padronização do
nome Polícia Militar ocorreu somente a partir de 1946, não tendo nenhum significado de
subordinação ao governo federal. 4 Uma abordagem mais aprofundada nesse sentido pode ser encontrada em ALMEIDA, Paulo
Vinícius de. A criação do Inquérito Policial : Estado e polícia no Espírito Santo. Dissertação de
Mestrado: UFES, 2008.
25
Também não foi incomum a percepção de que forças de 1ª linha (Exército) e da
Guarda Nacional, ambas sob o controle legal e orçamentário do governo central,
foram por vezes apresentadas como se fossem forças policiais. O uso daquelas
forças no patrulhamento das cidades e no atendimento das demandas dos chefes do
Executivo, Juízes, Chefes de Polícia e Delegados diante da ausência ou
insuficiência de força policial profissional, permanente e remunerada, tal qual se
conhece hoje, e que no Brasil foi forjada nos tempos do Império, não lhes conferia o
status de polícia.
O pressuposto do presente trabalho parte da exata contextualização do processo
que fez surgir as organizações policiais tais quais as conhecemos atualmente. O
exercício de atividade fiscalizatória por grupos não treinados, devidamente
caracterizados e remunerados especialmente para tal, não configura a existência da
polícia em uma sociedade. Assim, compactuamos com o entendimento de que
O surgimento das forças policiais modernas no Ocidente foi um fenômeno
do século XIX. Até então, normalmente, as funções policiais eram
exercidas de maneira assistemática por grupos de cidadãos convocados,
por voluntários ou por pessoas comissionadas pelos governos, as quais
exerciam funções de natureza fiscalizatória ou mesmo vinculadas à
arrecadação de tributos. Até o século XIX, em síntese, a história da
‘polícia’ não poderá ser contada em termos institucionais porque a
organização típica de policiamento ainda não existia como regra, de forma
autônoma (ROLIM, 2006, p. 24).
Conforme também aponta Monet (2002, p. 23) o significado atual da palavra polícia
configurou-se na Europa durante o século XIX através de dois processos específicos
de especialização. Um foi conseqüência da incapacidade dos governos das diversas
capitais européias de lidarem com as sucessivas ondas de “motins, insurreições e
revoluções” através da utilização dos seus exércitos. Assim, foram sendo
formatadas “organizações policiais maciças, cujos agentes são cada vez mais
organizados, equipados e treinados para controlar as multidões”. Tal processo
traduziu-se na especialização policial. O outro diz respeito ao fenômeno de
26
racionalização do direito criminal e da expansão do aparelho judiciário ocorrido
também no século XIX, que nos foi apresentado por Foucault (1987) em sua obra
Vigiar e Punir. Este processo configurou-se na especialização judiciária ao qual se
juntaram as instituições policiais na função de auxiliares da justiça. Assim,
[...] daí em diante, a palavra “polícia” remete diretamente àquele ramo da
organização administrativa encarregado de reprimir as infrações às leis e
aos regulamentos e de impedir movimentos coletivos que agitam com
freqüência cada vez maior o próprio coração de cidades em plena expansão
(MONET, 2002, p. 23).
As atividades das instituições que se configuraram como Polícia Militar e Polícia
Civil se encaixam nesse entendimento, o mesmo não se dando com as forças de 1ª
Linha e da Guarda Nacional no Brasil imperial. Também é pertinente lembrar que os
primeiros legisladores que contribuíram para a conformação das instituições do
nascente Estado brasileiro não eram homens iletrados, nem tampouco alienados
das teorias e aplicações práticas sobre as questões que envolviam a justiça e a
polícia na Europa. Faziam parte da elite que administrava o Estado imperial, e
conforme José Murilo de Carvalho (2003) aponta, tinham trajetórias de formação
intelectual e acadêmica nas Universidades da Europa. Na certa não desconheciam,
por exemplo, Cesare Becarria, autor de Dos Delitos e das Penas, obra da segunda
metade do século XVIII que integrou o movimento iluminista no campo jurídico. Nas
palavras do Presidente de Província Eduardo Pindahyba de Mattos, num trecho do
relatório endereçado a Assembléia Provincial em 1864 pode-se muito bem identificar
tal conhecimento:
A prevenção dos crimes é a mais importante e imperi osa obrigação da
autoridade; porem as melhores disposição, e a mais pronunciada cedição
à causa pública, malogrão-se ante a impossibilidade de desempenhar
aquella obrigação.
27
Sem agentes que cumprão os seos mandatos, sem os meios de se
fazerem respeitar e obedecer, não podem as autoridades exercer a acção
benefica, para que foram constituídas. (grifo nosso)
O objeto de estudo específico desta pesquisa é a Polícia Militar, como o seu próprio
título indica. Mais por uma economia de palavras, o termo polícia quando utilizado se
refere sempre a esta instituição que no Império teve duas designações como já
apontado. Também houve a preocupação, diante dos dois nomes, em não confundir
o leitor, considerando que a apresentação das informações não ocorreu de forma
rigidamente cronológica.
A criação de uma instituição impõe a necessidade de alguns pontos de sustentação.
Para a polícia, nos tempos do Império, o mínimo, com certeza, dizia respeito ao
arcabouço legal que justificasse suas ações, as pessoas para executarem o trabalho
que lhe era pertinente, e o orçamento financeiro que lhe possibilitasse ter
funcionalidade. Mas a viabilização desses elementos indispensáveis dependia da
vontade política daqueles que detinham em suas mãos o poder decisório sobre a
montagem das instituições que deveriam proporcionar a governabilidade ao
nascente Estado nos tempos do Império.
O interesse da presente pesquisa está especialmente concentrado no conjunto de
pessoas que se tornaram policiais naqueles tempos. A bibliografia sobre a Polícia
Militar do Espírito Santo é quase inexistente, sendo mais conhecida a obra “História
da Polícia Militar do Espírito Santo –1835-1985”, de autoria de Sônia Maria Demoner
(1985)5. Nesta obra a autora fez uma descrição de personagens e leis que criaram e
sustentaram tal instituição, mas não destrinchou os meandros da composição de
pessoas que se tornaram policiais naqueles tempos. Apenas recentemente, no
5 Tal obra é resultado de um concurso de monografia promovido pela Polícia Militar em 1983, como
parte das comemorações dos festejos de 150 anos da instituição que ocorreu em 1985.
28
decurso desta pesquisa, foram editadas mais duas obras sobre a Polícia Militar do
Estado do Espírito Santo6.
Também há de ser admitida a falta de fôlego para uma consulta exaustiva nas fontes
disponíveis que são de grande volume. Assim, não se entrará, por exemplo, nos
pormenores do orçamento financeiro da Província capixaba, embora seja questão
interessante a ser verificada com profundidade a exemplo do que fez José Murilo de
Carvalho (2003, p. 263), que ao identificar no orçamento os limites do governo
imperial acenou com muita propriedade: “Excelente indicador da distribuição de
poder em um sistema político são as contas do governo”. De forma bastante
repetitiva foi apontada nos relatórios dos Presidentes da Província a justificativa de
carência de recursos orçamentários não somente para a manutenção da polícia,
mas também para fazer permanecer em seus quadros os policiais que se
esquivavam de tal trabalho, comprometendo-lhe a própria existência. A questão aqui
seria tão somente a escassez de recurso? O tempo para um aprofundamento nesse
tipo de fonte é curto, mas as fontes pesquisadas nos apontam indícios de que
efetivamente a questão principal não residia neste ponto, como se abordará ao
longo desta dissertação.
A opção por enfocar o conjunto de pessoas que compuseram a Polícia Militar
naqueles tempos do Império apóia-se ainda no entendimento de que as pessoas
constituem-se no que de mais importante uma instituição possa ter. São justamente
as pessoas que lhe dão vida, possibilitando-a sobreviver como instituição. A Polícia
Militar do Espírito Santo já ultrapassou os 170 anos, sua história é a história das
pessoas que por ela passaram ao longo desses anos.
Veio completar tal interesse a disponibilidade das fontes que tornou possível tal
abordagem na presente dissertação. As informações sobre os policiais estão
detalhadamente descritas em fontes riquíssimas ainda pouco exploradas. Trata-se
6 As obras são: A participação da PMES nos conflitos limítrofes entre os Estados do Espírito Santo e
Minas Gerais na Região do Contestado e Evolução Histórica do Primeiro Batalhão de Policia Militar
do Estado do Espírito Santo, ambas de autoria de Gelson Loiola, Coronel da reserva, editadas
respectivamente pelo IHGES em 2008 e pela GSA – Gráfica e Editora em 2009.
29
dos Livros de Registros de Assentamentos7 de Praças e Oficiais, exemplificado na
figura 1, e disponíveis no Fundo de Polícia do Arquivo Público do Estado do Espírito
Santo (APEES). Em tais fontes estão descritos detalhes sobre as vidas individuais
de cada policial, identificado nominalmente e por um número que, para nossa
surpresa, tinha correspondência em outra fonte que também foi objeto de análise –
os Mapas Diários, exemplificado na figura 2. O encontro de tais fontes e o seu
cruzamento, com a possibilidade de identificação das pessoas através do nome e do
número, nos remeteu aos ensinamentos de Ginzburg (1989) a respeito do método
onomástico por ele descrito numa referência a importância do estudo de dados
seriais também para a micro-história.
Figura 1: Assentamento funcional de policial – Vitória - Século XIX Fonte: Fundo de Polícia do APEES
7 Assentamento é um termo utilizado para o registro das informações pessoais e profissionais do
policial.
30
Figura 2: Livro de registro do trabalho diário da polícia – Século XIX Fonte: Fundo de Polícia do APEES
Mas antes da apresentação dos dados sobre as pessoas que se tornaram policiais
será preciso conhecer e compreender a trajetória da polícia naqueles tempos do
Império, até ficar consolidada como instituição realmente necessária ao Estado
brasileiro, e de forma particularizada à Província do Espírito Santo. Para tanto, foram
usados essencialmente os relatórios da Presidência da Província, no geral dirigidos
a Assembléia Legislativa, que detalhadamente descreviam as atividades do governo.
Tais fontes constituem-se em importantes documentos para a compreensão do
período Imperial, portanto, não podem ser desconsideradas, e por isso foram
analisadas detidamente. Com certeza os relatórios refletem falas comprometidas
com o governo central e traduzem o pensamento da elite política. E ainda, no caso
específico do Espírito Santo havia, como bem aponta Adriana Campos (2007, p.
215-216), havia um componente a mais – a desconfiança dos deputados provinciais,
representantes da elite local, em relação aos Presidentes da Província. Eram
31
“homens egressos de outras regiões com o objetivo apenas de cumprir uma escala
na ascensão política dos quadros internos do Império”, o que nos indica realmente a
necessidade de uma leitura crítica de seus conteúdos. Mas, mesmo diante de tais
questões, não se tem dúvidas de que, para os olhos atentos de um investigador
disposto a cruzá-los com outros documentos, os relatórios constituem-se realmente
numa verdadeira porta de acesso ao passado imperial.
Uma questão central trabalhada nesta dissertação está justamente fundamentada na
oposição entre os membros da Assembléia e os Presidentes da Província em
relação a consolidação da polícia aqui em foco nos anos do Império. A primeira vista
poderíamos afirmar que a posição antagônica dos parlamentares provinciais em
relação a polícia poderia estar sustentada nos discursos dos próprios Presidentes
que relatavam sempre a tranqüilidade e a índole pacífica do povo capixaba, e ainda
nas insignificantes estatísticas criminais, apontadas por Adriana Campos (2007, p.
216). Mas a hipótese com a qual se trabalha é a de que no início de sua existência
o papel e as responsabilidades da polícia não estavam ligados essencialmente a
repressão criminal, e assim, não se justifica uma oposição nessas bases. Os chefes
do Executivo efetivamente viram na polícia uma instituição importante para a
execução de tarefas que extrapolavam o apoio às demais instituições do sistema de
justiça criminal também em formação naqueles tempos, e, portanto, para a
legitimidade de seus governos. Mas esses, como representantes do poder central,
encontraram nos deputados, representantes do poder local, fortes opositores à sua
potencialidade de força através de uma polícia provincial.
Tal hipótese encontra sustentação na seguinte explicação sobre o lugar ocupado
pela polícia em uma sociedade:
A polícia, enfim, é uma instituição singular em razão da posição central que
ela ocupa no funcionamento político de uma coletividade. A legitimidade de
um governo não depende, em todo lugar, de sua capacidade de manter a
ordem entre as populações e nos territórios juridicamente submetidos à sua
autoridade? Sempre que a ordem e a segurança deixam de ser garantidas,
não existe, ou deixa de existir Estado [...]. Em suma, um elo imediato
associa polícia e soberania do Estado sobre seu território: a existência de
32
uma polícia pública é o sinal indiscutível da presença de um Estado
soberano e de sua capacidade de fazer prevalecer sua Razão sobre as
razões de seus súditos. (MONET, 2002, p. 16)
Atualmente um dos debates em torno da polícia, e que com certeza deve estar na
pauta daqueles que definem os rumos da Segurança Pública no Brasil, diz respeito
justamente a concepção que se tem sobre o papel da polícia. Disto deveriam
depender as ações concretas de gestão neste campo de atuação do Estado. Gestão
que se torna perceptível para a sociedade, em primeiro plano, a partir da atuação
dos policiais que diuturnamente realizam o policiamento ostensivo em nossas
cidades, designados, majoritariamente na estrutura da Polícia Militar, como
Soldados, Cabos e Sargentos.
O trabalho da polícia extrapola em muito as ações de prevenção ao crime e a prisão
de criminosos, muito embora sejam tarefas de grande importância. Pensamos que
esta é uma concepção que realmente deve ser considerada, pois historicamente foi
ela quem constitutivamente esteve na gênese da Polícia Militar do Estado do
Espírito Santo e possibilitou sua consolidação ao longo do Império.
Também não se poderia deixar de apontar alguns aspectos pertinentes aos
pressupostos teóricos e metodológicos que nortearam a proposta da pesquisa
pretendida – a micro-história. Tais pressupostos tendem justamente a valorizar o
campo de ação das pessoas. Numa abordagem da teoria de Barth8, Rosental (1998,
p.156) esclarece que a unidade de observação privilegiada na análise do mundo
social é a interação entre as pessoas, chamada de “transações” que são
consideradas como “situações nas quais os indivíduos são forçados a tomar
decisões”. São tais transações que desvendam as incertezas das relações sociais,
pois o resultado da ação social é fruto da relação entre as pessoas. Rosental ensina
ainda que na abordagem barthiana, marcada pela incoerência dos sistemas de
8 Fredrik Barth, antropólogo norueguês que muito influenciou os historiadores italianos ligados a
micro-história.
33
normas e pelo caráter não automático de seus efeitos, um comportamento dado é
apenas a resposta particular que uma pessoa arrumou para uma situação.
No contexto de renovação da história a partir dos precursores da Escola dos
Annales, o sujeito da história só pode ser o homem, e o ponto de partida para a sua
construção o presente. Trata-se de ressaltar a história de homens comuns e de
como as repetições banais de suas existências dão lugar a uma determinada forma
de pensar e agir, definida como mentalidade. Geraldo Antonio Soares (1999) indica
então que para falar do cotidiano “o historiador deve sempre procurar o concreto”,
não podendo, para tanto, prescindir dos documentos, mesmo com todos os
problemas que os cercam.
Os policiais daqueles tempos iniciais de construção do Estado brasileiro, e assim da
nascente instituição policial no Espírito Santo, têm muito a nos dizer a partir das
condições de recrutamento as quais se submeteram, das suas escolhas de
permanecer ou não na polícia, das formas encontradas para a não permanência,
das indisciplinas cometidas, de suas origens sociais, idade, ofício anterior e
movimentações a serviço por toda a Província.
A presente dissertação - CONSOLIDAÇÃO E COTIDIANO DE UMA INSTITUIÇÃO
DO IMPÉRIO: A POLÍCIA MILITAR DO ESPÍRITO SANTO (1835/1889) - visa
analisar na especificidade dos anos de formatação do Estado brasileiro, a
construção da matriz da instituição policial no Espírito Santo, desvendando em que
sentido e dimensão a organização política e social do período estudado contribuiu
para a formatação dessa matriz, e, portanto, deu o tom as suas práticas. Também
tem por objetivo identificar o perfil policial naqueles tempos, através das informações
sobre o conjunto de pessoas que se tornaram policiais.
Os limites do recorte cronológico correspondem, respectivamente, ao ano de criação
da Polícia Militar no Espírito Santo (1835) e a queda do Império (1889). A longa
delimitação encontra-se justificativa na lacuna de tempo apresentada pelas fontes
documentais. Foram encontrados registros correspondentes aos anos de 1835 à
1844, e de 1868 à 1889, que nos possibilitou apontar algumas diferenças no perfil
dos policiais. Tais diferenças refletem as próprias mudanças ocorridas na sociedade
34
ao longo do século XIX. Considera-se ser este um período ímpar para tal estudo
uma vez que se trata dos anos de construção do Estado brasileiro, e assim, nele se
pode encontrar a gênese de algumas de suas instituições, como a polícia. Também
correspondem aos anos de crise da escravidão que culminará em sua abolição
apenas um ano antes da queda do governo imperial, possibilitando contribuir com a
desmistificação de que era papel principal da polícia lidar com os escravos. A polícia
da qual se trata na presente pesquisa decididamente tinha outras atividades
principais como se indicará.
No primeiro capítulo - POLÍCIA, ESTADO E PODER - serão colocadas questões
relativas ao papel social da polícia. Serão também apontadas especificidades sobre
o modelo policial legalmente instituído pelo governo imperial, particularmente no que
concerne a Polícia Militar.
No segundo capítulo - GÊNESE E CONSOLIDAÇÃO INSTITUCIONAL - serão
apontados os dilemas da consolidação da polícia diante das posições conflitantes
dos representantes dos poderes Executivo e Legislativo da Província sobre sua
necessidade no contexto local da época. Será demonstrado como os Presidentes
reproduziram ao longo de todo o período um mesmo discurso repetitivo sobre a
necessidade do aumento de efetivo da polícia para demover os membros da
Assembléia da intenção de diminuir o seu efetivo ou mesmo extingui-la. Nesse
sentido serão apresentadas as perspectivas do significado do papel da polícia
naquela época para que se possa compreender tal posição dos Presidentes da
Província.
No terceiro capítulo - QUE POLÍCIA ERA ESSA? O COTIDIANO INSTITUCIONAL
DE UMA POLÍCIA DO IMPÉRIO - serão tratadas as especificidades da instituição no
que dizia respeito ao perfil social das pessoas que se tornaram policiais naqueles
tempos, tais como filiação, naturalidade, idade, cor, estado civil, ofício anterior, bem
como questões institucionais, tais como tempo de permanência, forma de ingresso,
motivo do licenciamento, reengajamento9, promoção, disciplina.
9 Reengajamento significa renovação do tempo inicial obrigatório de permanência na polícia.
35
Para finalizar esta introdução citamos as palavras de Monet a respeito da polícia,
que nos faz ter a dimensão exata da importância de tal tema:
Visível e, no entanto, desconhecida, familiar e, todavia, estranha, protetora,
e apesar de tudo, inquietante: a polícia inspira nos cidadãos das
democracias modernas sentimentos ambíguos, resumidos nessas três
oposições. Mas, antes de mais nada, o que é a polícia? (MONET, 2002,
p.15, grifo nosso).
36
CAPÍTULO 1
POLÍCIA, ESTADO E PODER
1.2 UMA REFLEXÃO SOBRE O PAPEL SOCIAL DA POLÍCIA
A polícia é uma instituição moderna10. Seu surgimento, no modelo tal qual
atualmente é conhecido, está intimamente ligado à expansão do Estado Moderno,
especialmente a partir do século XIX em países da Europa ocidental, e por extensão
naqueles países a ela historicamente ligados, como é o caso do Brasil. A partir
desse momento histórico o Estado assume a autoridade através de suas
instituições, até então exercida na esfera pessoal. A polícia é uma delas. Através da
polícia o Estado passa então não só a proteger o patrimônio, antes tarefa dos
próprios proprietários, mas também de certa forma a controlar o comportamento
público11.
A formação da polícia insere-se dentro da noção de governabilidade nas
sociedades modernas. O conceito de governabilidade aqui usado é de Foucault,
apesar das críticas que se possa fazer a tal autor, especialmente no que diz respeito
a sua obra Vigiar e Punir. Segundo Burke (2002, p. 210) alguns críticos consideram
sua abordagem em tal obra insensível às variações locais, isto é, tendenciosa a
fazer generalizações sobre toda a Europa a partir da realidade francesa. Bem
sabemos que a capital da Província do Espírito Santo, como se pode perceber na
10 Estamos aqui concordando com Bretas (1997, p. 39) que critica frontalmente as posições daqueles
que intitula como “historiadores policiais”. Tais historiadores costumam remontar até a antiguidade
para situar o surgimento da polícia. Tal posição reflete realmente uma tendência de “naturalizar” o
papel da polícia tal qual é conhecido. 11 Uma análise aprofundada do surgimento do mecanismo de controle e direção do Estado sobre o
comportamento das pessoas através da polícia pode ser vista na obra Polícia no Rio de Janeiro :
Repressão e resistência numa cidade do século XIX de Thomas H. Holloway.
37
figura 3, com suas ruelas e becos, e uma população incipiente, nem de longe pode
ser comparada a uma Paris do século XIX, mas isto não inviabiliza a utilização de
seus conceitos em uma realidade diferenciada. Para Foucault (1997, p. 81) a
governabilidade traduz-se como “atividade de direção dos indivíduos ao longo de
suas vidas, colocando-os sob a autoridade de um guia responsável por aquilo que
fazem e lhes acontece”.
Figura 3: Vista geral da cidade de Vitória em 1860
Fonte: TATAGIBA, José. Vitória cidade presépio. Vitória: Multiplicidade, 2008.
Sob este enfoque a polícia apresenta-se então como um dos instrumentos que
contribuem para proporcionar ao Estado sua capacidade de governar. É onde se
encerra o seu poder de coerção, ficando entendido assim, conforme muito bem diz
Santos (1997, p.157), que “[...] o governo só é possível se for conhecida a força do
Estado, sua capacidade e os meios de aumentá-la [...]”.
38
Para que possa proporcionar a governabilidade necessária ao Estado, a polícia tem
como papel fundamental a manutenção da ordem social, através do qual expressa
também o grau de autoridade do Estado. Assim, não há como se falar em polícia
sem refletir a visão que se tem do Estado12.
Tomando como pressuposto a teoria contratualista, a polícia é uma instituição que
deve servir ao Estado, onde a lei, que passou a ter um papel relevante deve ser o
motor e a vontade do pacto social estabelecido na associação da humanidade,
conforme salientou Rousseau:
São necessárias, pois, convenções e leis para unir os direitos aos deveres e
reconduzir a justiça a seu objeto. No estado de natureza, onde tudo é
comum, nada devo a quem nada prometi e não reconheço a outrem o que
me é inútil. Não é assim no estado civil, em que todos os direitos são
fixados pela lei. (ROUSSEAU, 2002, p. 57)
Se o pacto estabelecido visa o bem comum e a felicidade dos cidadãos, as
instituições criadas para dar sustentação ao governo devem ter como ponto de
partida o limite da lei para as suas ações. A polícia, tendo o papel fundamental de
manter a ordem social, e expressando o grau de autoridade atribuído ao governo
através do uso da força para o cumprimento do pacto, deve fazê-lo sempre através
do exercício do monopólio legítimo da violência e do consenso social.
A intensificação do policiamento uniformizado e armado na corte brasileira a partir
de 1831, segundo Holloway (1997, p. 22, 23), ocorreu na mesma época da Europa
12 Um clássico exemplo desta afirmação diz respeito às reiteradas abordagens sobre as diferenças
entre as polícias francesa e inglesa por ocasião de suas instituições no século XIX. Uma dessas
abordagens pode ser encontrada, por exemplo, em Bretas (1997, p. 39): “A polícia francesa foi
supostamente o modelo para uma polícia autoritária, preocupada com a segurança das instituições
do estado, e sujeita a um rígido controle central. O modelo inglês, corporificado na figura do Bobby,
sugere uma polícia sob maior controle dos cidadãos, preocupada principalmente com a segurança
individual”.
39
ocidental, e foi até anterior ao mesmo fato nos Estados Unidos. Porém, uma
diferença fundamental marca a interpretação histórica do papel da polícia nos
espaços urbanos do Brasil e das sociedades norte-americana e européia. Segundo
tal autor naqueles países o alvorecer das instituições policiais teria sido marcado
pelo consenso e legitimidade a respeito da presença da polícia nas relações sociais
estabelecidas, o que não teria ocorrido no processo histórico das relações da polícia
com a sociedade brasileira.
Nesta mesma linha, Lima (2003, p. 245-249), porém, numa perspectiva
antropológica, compara os modelos de tradição do espaço público entre as culturas
anglo-americana e brasileira. Para ele nos Estados Unidos, o modelo é de
paralelepípedo, onde a “base corresponde ao topo” e onde “todos são iguais, mas
diferentes, desde o início, e sua trajetória particular não implica impedimento para a
realização das metas alheias, que se dá em linhas de ascensão paralelas e não
convergentes”. A explicitação dos conflitos não é algo indesejado, mas aceito como
parte das relações entre as pessoas. O sistema de justiça criminal neste modelo tem
a função de “controlar os comportamentos desviantes”.
Por outro lado, na sociedade brasileira, o modelo é o de pirâmide, onde o topo é
menor que a base. Neste modelo o espaço público é de apropriação particularizada
do Estado, responsável em princípio pela construção das regras e cuidados para o
seu cumprimento. Muito interessante é que neste modelo o Estado “não se
representa como mero administrador de espaços coletivamente apropriados, mas
como feitor zeloso de sua utilização”. Dentro desta perspectiva os conflitos não são
aceitos como pertencentes às relações sociais estabelecidas, o que se contrapõe
com a própria dinâmica do espaço público, um espaço em que a desordem permeia
sua existência, caso contrário não haveria necessidade de leis, nem tampouco de
polícia.
Em relação à polícia, Lima diz que esta é a instituição que nos dois modelos na
prática tem a incumbência de fazer cumprir as leis para a utilização do espaço
público. No modelo americano a legitimidade da ação policial está amparada na
força do consenso construído coletivamente a respeito do papel da polícia,
proporcionando-lhe, portanto, certa autonomia. Assim, a polícia,
40
No seu limite, é a instituição mais apta a identificar focos potenciais de
conflito, sugerindo, eventualmente, além das estratégias de repressão mais
adequadas à manutenção da ordem, formas de expansão de direitos e de
legitimidade de cidadania para grupos emergentes que insistem em causar
rupturas na ordem a ser mantida até serem seus interesses por elas
incorporados. (LIMA, 2003, p. 248)
No entanto, no segundo modelo, no da pirâmide, onde se encaixa a sociedade
brasileira, com estrutura social extremamente desigual, e, portanto, com a idéia de
que os conflitos ocorridos nos espaços públicos são sempre uma ameaça a ordem
social, o papel da polícia passa a ter um diferencial. Assim,
Sua legitimidade estará associada a sua interpretação do que deseja o
Estado para a sociedade, não ao que a sociedade deseja para si mesma.
[...] A função da polícia se caracteriza, assim, por ser eminentemente
interpretativa partindo não só dos fatos, mas, principalmente, da decifração
do lugar de cada uma das partes em conflito na estrutura social para
proceder à correta aplicação das regras de tratamento desigual aos
estruturalmente desiguais. [...] O Estado - e a polícia – definem-se, assim
como instituições não só separadas, mas externas ao conjunto de cidadãos
que precisam não apenas controlar, mas, fundamentalmente, manter em
seu devido lugar, reprimir. (LIMA, 2003, p. 249)
As posições acima tendem a enxergar a polícia como uma instituição que tem o
papel de reproduzir as desigualdades, e, portanto, como um instrumento da classe
dominante para a manutenção de seu poder através do Estado. Este é certamente
um padrão universalizante no caso brasileiro. Mas como consideramos que a
complexidade das relações entre as pessoas entre si, e entre elas e o Estado, não
cabe apenas num grande modelo universalizante, não podemos deixar de
considerar que em tais relações havia espaços para outras construções individuais e
coletivas. Vellasco (2004, p. 218, 219) define as sociedades como “sistemas de
coerção e troca”, onde qualquer forma de autoridade está submetida a princípios de
41
reciprocidade. Na sua interpretação, a negociação é um componente que permeia
de forma geral a ordem social.
Considerando uma visão de totalidade sobre os séculos de escravidão no Brasil, por
exemplo, tenderíamos a considerá-la apenas a partir dos conflitos entre as pessoas
entre si, e entre as instituições e pessoas, como fator determinante na análise.
Alguns historiadores13 já têm desmontado esta visão e mostrado que ao longo de
anos de escravidão os cativos foram construindo alternativas de vida no contexto de
suas existências, dentro e fora da condição de escravizados, e assim nos ensinando
que na história individual das pessoas podem ser encontradas questões intrigantes
sobre suas opções de resistência às tentativas de controle sobre suas vidas.
Situando a questão na esfera policial, a partir de uma interpretação macro, não
parece impossível que a força policial criada no contexto do recorte temporal, que
compreende a ordem escravista, possa ter modelado lentamente a metodologia do
seu trabalho, com grande recurso ao uso arbitrário da violência sobre as pessoas.
Esta tem sido uma das vias de interpretação nos estudos sobre violência e polícia
exposta em seminários, artigos e livros em diferentes partes do país. Apontamos
como exemplo a seguinte posição de Santos (1997, p. 162):
13 Como exemplos podem ser citados: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade . São Paulo: Ed. Cia
das Letras, 1990. GRINBERG, Keila. Liberata: A lei da ambigüidade. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1994. PENA, Eduardo Spiller. Pagens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a lei
de 1871. Campinas: Editora UNICAMP, 2002. SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes .
EDUSC, 2001. SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor : esperanças e recordações na formação da
família escrava - Brasil Sudeste, século 19. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. SOARES, Geraldo
Antonio. Escravos denunciando seu senhor à polícia : Vitória – 1872. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico do Espírito Santo, Vitória, nº 52, setembro1999, p.165-179._____. Luta pela liberdade
e defesa da propriedade : registro de filhos de escravos em Vitória logo após a Lei do Ventre Livre.
Perspectiva Econômica, Vitória, ano 1, volume1, número 0, janeiro de 2000, p. 153-
174.____.Quando os escravos fugiam. Província do Espírito Sa nto, últimas décadas da
escravidão . Estudos Iberos-Americanos, Porto Alegre, PUCRS, v. XXIX, nº 1, junho 2003, p. 53-72.
42
A transição da formação social escravista para a formação social de
relações capitalistas de trabalho redefiniu sem eliminar a utilização da
coerção física violenta nas relações entre os aparatos repressivos e a
população urbana e rural brasileira [...].
Também, não se descarta que a polícia sob certos aspectos possa ser usada como
aparelho de controle do Estado ou da classe ou grupo dominante que o dirige. No
passado recente, durante os anos de ditadura militar, essa foi sim uma realidade da
instituição.
Mas não é esta a questão fundamental na presente pesquisa. A pretensão não é
reforçar, nem tampouco desmontar estas visões, mas sim, procurar enfocar outra
perspectiva em que estão presentes também as negociações formuladas no
contexto do estabelecimento da ordem social em que estão inseridos o Estado e o
conjunto de suas instituições. Assim, consideramos importante o seguinte ponto de
vista sobre a representação do significado do Estado. Segundo ele, para a teoria dos
sistemas
[...] a relação entre o conjunto das instituições políticas e o sistema social no
seu todo é representada como uma relação demanda-resposta (input-
output). A função das instituições políticas é a de dar respostas às
demandas provenientes do ambiente social ou, segundo uma terminologia
corrente, de converter as demandas em respostas (BOBBIO, 1987, p.
60).
Assim, definitivamente, conforme aponta o autor, “o Estado como sistema político é,
com respeito ao sistema social, um subsistema.” Nessa lógica a abordagem
pertinente só pode ser aquela que privilegia a riqueza das relações entre as
pessoas. As redes de relações entre pessoas sejam quais forem as suas condições
de vida, comportam construções coletivas de família, de amizade e de trabalho que
43
muitas vezes perpassam as relações de poder e autoridades existentes na
sociedade, uma vez que,
O conceito relacional de poder estabelece que por “poder” se deve
entender uma relação entre dois sujeitos, dos quais o primeiro obtém do
segundo um comportamento que, em caso contrário, não ocorreria
(BOBBIO, 1987, p. 78).
Uma análise histórica a partir de tal abordagem nos leva à aplicação da redução da
escala de observação, buscando enxergar no contexto geral das condições sociais e
políticas da sociedade brasileira nos anos de consolidação do Estado imperial, que
corresponde aos anos de aprofundamento de crise do escravismo, as ações
cotidianas que marcaram as vidas de algumas pessoas que se tornaram policiais.
Refletir sobre aspectos que marcaram o cotidiano da vida das pessoas em busca de
seus direitos, na condição de livres, libertos ou escravos, ao longo do século XIX,
época de consolidação do liberalismo e do próprio Estado brasileiro, implica na
tentativa de pensar o sentido das instituições, e neste caso, da polícia, considerando
um modelo teórico não determinista. Ao apresentar sua crítica a Fernand Braudel,
Burke (2002, p. 211-213) diz que apesar da grande contribuição daquele autor para
a teoria da mudança social, “ele entendia os indivíduos como prisioneiros do destino,
tratando suas tentativas de influenciar no curso dos acontecimentos, em última
análise, como vãs”. Definitivamente, também não pensamos que pessoas, escravas
ou livres, pobres ou ricas, são prisioneiras de seu destino. Em nossas fontes
encontramos o caso de um policial que foi desligado da polícia sob a justificativa de
ser filho único de pais idosos. Na certa se fez valer dos seus direitos.
O pressuposto é de que nesse contexto, a polícia, uma das instituições de
sustentação do Estado, criada para a manutenção da ordem, foi consolidando seu
papel social a partir das relações estabelecidas com as pessoas, livres ou escravas,
44
no cotidiano de suas existências. Assim sendo, o olhar a ser lançado sobre tal
instituição, cujo nascimento é contemporâneo à própria formação do Estado, não
pode ser essencialmente pelo viés da repressão, dimensão realmente contida no
trabalho policial, mas não a única.
Para se avançar nas reflexões, importantes são as considerações de Rolim (2006, p.
21-23) ao ponderar que embora a polícia e o seu trabalho, ou seja, as atividades de
policiamento, se constituam como “fenômenos aparentemente nítidos nas
sociedades modernas”, dúvidas e imprecisões logo aflorarão a partir de uma análise
mais apurada desses fenômenos. Para esse autor, como ele mesmo diz, “a primeira
questão relevante é a de saber quais são, de fato, as funções e responsabilidades
da polícia”. Aponta que a manutenção da ordem e a garantia da segurança pública
são tarefas genéricas que não traduzem com precisão qual o papel da polícia. Para
ele torna-se necessário definir exatamente o que se quer da polícia: “que operem
como um braço armado do sistema de justiça criminal”, dando prioridade a prisão de
criminosos, ou que atuem com o foco nas “estratégias de redução da criminalidade”?
A prisão de criminosos está entre as múltiplas tarefas da polícia, ela não é a única,
nem tampouco a mais importante. Isto é claro, dentro de uma perspectiva de análise
multidisciplinar, e não apenas jurídica, como por muito tempo prevaleceu entre os
autores que abordavam secundariamente o tema polícia em suas obras e os
agentes responsáveis pela formação dos policiais 14.
Podemos dizer que enxergar a polícia apenas como braço armado do sistema
criminal se insere numa visão tradicional de seu papel. Sob o foco desta visão a
atuação é reativa, pois o policial atua invariavelmente após um chamado, ou seja, a
partir da ocorrência do crime. Também está inserido nessa visão o papel guerreiro
14 Num passado recente a visão essencialmente jurídica do papel da polícia era expressa claramente
nos currículos dos cursos de formação policial. Como exemplo, citamos o Curso de Formação de
Oficiais realizado na Polícia Militar de Minas Gerais entre os anos de 1987 e 1989, do qual fez parte
esta mestranda. De um total de 3.220 horas aulas, 660 horas foram destinadas a 09 disciplinas das
ciências jurídicas, enquanto apenas 160 horas foram destinadas a 02 disciplinas da área das ciências
humanas (genericamente designadas como Sociologia e Psicologia), que por sinal eram ministradas
sem nenhuma aplicabilidade prática ao ofício policial. O restante da carga horária era destinado às
disciplinas profissionalizantes para o exercício do ofício policial.
45
da polícia, que deve estar sempre “combatendo” o crime e não o mantendo dentro
de um patamar aceitável para a sociedade. Nesse sentido muito bem se enfatiza:
Temos que nos desfazer dessa noção de guerra da polícia e aumentar a
noção de presença, diminuindo o nível de conflito. Ela não é uma polícia
intensivamente repressora, não está ali numa luta, mas sim mantendo a
paz urbana. É o retorno de concepções muito antigas que foram s e
perdendo , uma polícia de uma sociedade pacífica. Hoje a polícia se
apresenta como agente guerreiro de uma sociedade conflagrada. E em
parte é. Há todo um processo de reocupação, de reconquista do espaço
urbano. Há regiões na cidade onde a polícia não entra e tem que entrar,
entrar e não sair mais. É preciso constituir a idéia de que as populações
mais carentes têm direito à polícia. Polícia é um direito, não uma
imposição . Temos que trabalhar com isso. (BRETAS, 2009, grifo nosso).
O papel da polícia numa sociedade pressupõe o exercício de tarefas que muitas
vezes não se expressam numa destinação constitucional genérica como a
“preservação da ordem pública” conforme define o § 5º do artigo 144 da Constituição
Federal. Rolim (2006, p. 23) ressalta que na verdade “[...] longe de lidarem apenas
com questões relacionadas à criminalidade, os policiais tratam cotidianamente de
dezenas de outros problemas”, e assim os lista de forma precisa:
[...] acompanham manifestações públicas; protegem testemunhas e
custodiam pessoas nos tribunais; atendem solicitações dos mais variados
serviços; buscam crianças desaparecidas; localizam objetos perdidos;
transportam pessoas doentes aos hospitais e, muitas vezes fazem partos
de emergência; guardam prédios; protegem reservas ambientais e policiam
as rodovias; intervêm em brigas de casais; socorrem pessoas feridas;
salvam animais; ressuscitam afogados; controlam multidões em estádios
de futebol; auxiliam portadores de deficiência; amparam pessoas
alcoolizadas ou sob o efeito de outras drogas etc” (ROLIM, 2006, p. 23). 15
15 Preferimos não citar algumas tarefas listadas pelo autor por serem de competência da Polícia Civil,
uma vez que, conforme já indicado na introdução, estamos tratando especificamente da Polícia
Militar.
46
Além do enfrentamento às condutas tipificadas como crimes, essas tarefas
desempenhadas pela polícia fazem dela, como bem afirma Rolim (2006, p. 23), um
“fenômeno de múltiplas funções e responsabilidades”, e, portanto, lhe abrem
perspectivas para um papel em que estão incluídos aspectos relativos à negociação
e ao diálogo na manutenção da ordem social. Afinal como diz Geraldo Antonio
Soares (2004, p. 61) o conflito “é uma forma de pulsação social”. Ele apresenta-se
como “uma forma reveladora de ritmo ou de dinâmica social e política, constituindo-
se assim objeto por excelência da história, na medida em que esta trata da
mudança”. Nesta perspectiva o policial deve ser sempre um mediador de conflito,
uma vez que a própria existência social da humanidade é constituída de relações
que nem sempre são harmoniosas.
Outras agências estatais de assistência também podem dar conta de algumas
tarefas exercidas pela polícia, como por exemplo, o serviço de ambulância para
socorro de doentes. Onde estaria então o diferencial? Exatamente na possibilidade
sempre presente do uso da força pela polícia, mesmo quando não o faz, conforme
muito bem explicado abaixo:
Devemos enfatizar, entretanto, que a concepção da centralidade da
capacidade do uso da força no papel da polícia não pode levar à conclusão
de que as rotinas ordinárias da ocupação policial são constituídas pelo
exercício real dessa capacidade. É muito provável, embora nos faltem
informações a respeito, que o uso da coerção física e da repressão sejam
raras para os policiais como um todo. O que importa é que o procedimento
policial é definido pela característica de não se poder opor-se a ele durante
seu curso normal e, se acontecer tal oposição, a força poderá ser usada.
Isso é o que a existência da polícia disponibiliza para a sociedade. Desse
modo, a questão: “O que os policiais devem fazer?” é quase
completamente idêntica à questão: “Que tipos de situações exigem
corretivos que são coercitivos e não negociáveis?” (BITTNER apud ROLIM,
2006, p. 27).
47
Diante de todas as fontes pesquisadas entendemos que está bem consolidada a
idéia de que o surgimento das polícias não esteve intrinsecamente relacionado ao
papel exclusivo de enfrentamento ao crime. “Em Boston, a polícia cuidou da saúde
pública até 1853 e, em Nova York, da limpeza pública até 1881” (ROLIM, 2006,
p.29). No Brasil, na capital do Império, a polícia fazia guarda nas fontes públicas e
nos teatros na década de 1830 (HOLLOWAY, 1997, p. 101-142).
No início do século XIX alguns artistas europeus, especialmente Debret e Rugendas,
retrataram diversas cenas do cotidiano da capital do Império. Através de algumas
pranchas podemos visualizar cenas em que policiais interagem com a população,
incluindo os escravos. Na figura 4, por exemplo, um integrante da patrulha, ao que
parece da Guarda Real de Polícia, bebe água transportada por um escravo,
enquanto um outro, numa posição de vigilância, observa os que passam pela rua. Já
na figura 5, um guarda policial, encarregado de conduzir um grupo de escravos que
fazia o abastecimento de água das fortalezas, dialoga displicentemente com uma
negra que carrega o filho, enquanto outros consomem seu tabaco. Bem se sabe que
é preciso cuidado para fazer uso interpretativo das imagens visuais e escritas que os
europeus fizeram do Brasil imperial, mas isto não lhes tira o seu valor. Certamente
elas “apontam para a pluralidade das atividades desenvolvidas pela polícia no Rio
de Janeiro” (COTTA, 2009.
48
Figura 4– Os refrescos do Largo do Palácio Fonte:http:/museuvirtualpintoresdorioarteblog.com.br
Figura 5– Negociantes de Tabaco Fonte:http:/museuvirtualpintoresdorioarteblog.com.br
49
No Espírito Santo a regra não foi diferente. Os livros “Mappas Diários” descrevem o
cotidiano do trabalho da polícia na capital da Província capixaba. Tal fonte informa
que era tarefa dos policiais acompanhar o “arrematante do dízimo” 16, bem como
fiscalizar o funcionamento dos lampiões usados na iluminação das ruas da cidade.
A visão repressiva muito consolidada atualmente sobre o papel da polícia é fruto do
século XX. Está certamente associada genericamente ao conjunto de profundas
mudanças que marcaram aquele século, e, especificamente, conforme Rolim (2006,
p. 29), ao avanço da tecnologia. Ainda segundo tal autor, “nas origens do
policiamento moderno havia uma significativa identidade entre os policiais e as
pessoas que seriam beneficiadas pelo seu trabalho”, porém, o surgimento de três
recursos tecnológicos teria desconstituído essa identidade: “o carro de patrulha, o
telefone e o rádio de intercomunicação”. Gradativamente as patrulhas motorizadas
foram substituindo as patrulhas a pé e os postos policiais, o telefone por sua vez
substituiu a necessidade de contato pessoal para acionamento da polícia, e os
rádios permitiram que os policiais fossem acionados por um comando institucional
centralizado em qualquer lugar em que estivessem.
Mas, o fato é que, no século XIX, além de cuidar da cidade, coube a polícia o
trabalho “miúdo”, necessário na interferência de conflitos menores, como resultado
das inter-relações cotidianas das pessoas na sociedade. Nos registros deixados
pelos policias, os detalhes sobre o cumprimento de seu trabalho eram narrados com
citação dos nomes dos moradores como referência.
16 Do que se depreende das fontes trata-se de agente responsável pela cobrança de impostos.
50
1.2 A POLÍCIA E O ESTADO IMPERIAL
Nosso posicionamento de que não há como se falar em polícia sem refletir a visão
que se tem do Estado, nos remete ao projeto pós-independência de construção do
Estado brasileiro.
É pacífico entre alguns historiadores do período imperial, e apontamos José Murilo
de Carvalho (2003) como representativo desse conjunto, que dois aspectos no
campo político marcaram a construção do Estado brasileiro em contraposição aos
demais países de colonização espanhola na América: a unidade política e o sistema
político estável que prevaleceram no Brasil logo após a independência. Segundo
este autor tal projeto de Estado foi uma opção, entre outras possíveis à época. Foi a
escolha da elite política que dirigia o Estado, que pôde fazê-la e mantê-la em virtude
da homogeneidade ideológica e de treinamento que a caracterizavam.
Por sua vez, Antônio Carlos Amador Gil (2002) nos apresenta outros projetos
alternativos de construção do Estado brasileiro, como os representados pelo
pensamento político de Frei Caneca e Cipriano Barata, cujas características
divergiam do projeto que se tornou hegemônico por serem mais restritos e não
apresentarem um caráter centralizador. Tal abordagem é interessante na medida em
que nos possibilita compreender que embora o projeto das elites do sudeste tenha
se tornado hegemônico, concretamente outras possibilidades foram não somente
idealizadas e veiculadas, mas que também foram experimentadas, embora sem
sucesso.
Aqui nos aparece uma indagação. Se o projeto centralizador foi o que prevaleceu, e
para tal, as instituições foram criadas para que o Estado tivesse sustentação, por
que não foi criada apenas uma única força policial no Brasil para garantir a
segurança e a ordem pública?
A Guarda Nacional pode ser considerada por alguns como uma tentativa nesse
sentido. Porém, como já se apontou na introdução dessa dissertação, não
consideramos a Guarda Nacional uma força pública tipicamente policial. Em pleno
período Regencial, sob a égide de Feijó a Guarda Nacional, conforme aponta José
51
Murilo de Carvalho (1996, p. 8-9), foi copiada da Guarda Nacional Francesa dos
tempos da revolução em 1789, com o objetivo inicial de “servir de proteção contra a
anarquia que tomava conta do Exército e contra as revoltas populares que
pipocavam em várias províncias” e seu real sentido político era a “cooptação dos
proprietários pelo governo central”.
Mas o fato é que realmente a Guarda passou a patrulhar as ruas e estradas em
substituição ou complementação às forças tradicionais, traduzidas nos corpos de
milícias, nas ordenanças, nas guardas municipais e no Exército, especialmente na
capital do Império e nas capitais das Províncias de maior proeminência no cenário
nacional. Porém, o seu caráter híbrido, como força representativa do poder público e
do poder privado local dos grandes proprietários, muito bem apontado por Uricoecha
(1978), fazia da Guarda Nacional uma instituição de força sui géneris: era preciso ter
posses mínimas anuais para integrá-la: 200.000 réis nas maiores cidades do Império
e 100.000 reis nas demais, os guardas deviam comprar seus uniformes, os postos
do oficialato eram vendidos pelo governo e o serviço de guarda não era remunerado.
Interessante é que
Como a seleção dos conscritos e as dispensas por razões profissionais ou
pessoais eram decididas por juntas locais presididas pelos juízes de paz,
eram grandes as chances de isentarem-se os ricos e poderosos, ou seus
filhos e protegidos, da obrigação de sentar praça. Em vez de duplicar ou
simplesmente reforçar a estrutura de autoridade existente, o serviço da
guarda visava a estender a responsabilidade da defesa da propriedade e
da ordem social aos membros da sociedade que tinham interesse na
manutenção do status quo. Na prática, muitos dos que mais tinham a
defender encontrava maneiras de evitar o serviço ativo. No Rio, esse ônus
recaiu de forma desproporcional sobre pequenos comerciantes, artesãos,
empregados de escritório e demais membros da pequena burguesia, que
eram economicamente privilegiados no contexto da sociedade, mas não
tinham influência, diretamente ou por meio de algum pistolão, para obter a
dispensa. (HOLLOWAY, 1997, p. 89)
52
Ainda segundo Holloway (1997, p. 90) o suposto papel da Guarda Nacional “como
parte importante do aparato de repressão disponível para o policiamento do Rio”
teria sido superestimado. Para ele seu papel foi efetivamente limitado, sendo uma
demonstração clara, por exemplo, a criação de instituições que “assumiram a sua
função policial”.
No Espírito Santo a leitura dos relatórios provinciais indica que o uso da Guarda
para atividades típicas de polícia não era incentivado pelo governo imperial. Houve
de fato normatização restritiva para tal uso e recomendação para a criação de
guardas municipais com o argumento de que melhor serviriam ao serviço de
policiamento, já que o trabalho seria remunerado. Também foi perceptível na leitura
desses documentos que o ônus maior do recrutamento para a Guarda teria recaído
sobre os lavradores, o que se justifica pelas suas características agrárias. O mesmo
deve ter ocorrido em Províncias de menor influência política no cenário nacional e
com características semelhantes às do Espírito Santo.
O fato é que conforme aponta Monet (2002, p. 83-84) em várias partes do mundo
uma só polícia age sobre o território nacional; como exemplo cita o Sri Lanka,
Cingapura, Israel, Japão, Polônia, Hungria, Dinamarca, Grécia, Irlanda, Suécia,
Noruega, Finlândia e Islândia. Segundo tal autor vários fatores podem contribuir para
tal opção: pequena extensão territorial, população mais reduzida, menor índice de
criminalidade, processo de fusão de várias polícias municipais com uma polícia de
Estado de reduzido efetivo. No entanto, nenhum desses fatores pode ser
considerado isoladamente, nem tampouco como regra geral. Em Luxemburgo, por
exemplo, país que, além de apresentar um pequeno território, possui apenas
300.000 habitantes, há duas polícias, uma civil e outra militar. No caso do Brasil
[...] as forças policiais foram organizadas a nível estadual, não como força
nacional, como a francesa, ou local, como a inglesa. O Rio de Janeiro,
sendo a capital, era uma exceção, com sua força local sob o controle do
governo central. A função de polícia dividiu-se, sem obedecer a um
planejamento definido, em duas forças paralelas: a polícia civil e a
polícia militar. A polícia civil originou-se da administração local, com
53
pequenas funções judiciárias, ao passo que a polícia militar nasceu do
papel militar de patrulhamento uniformizado de rua (BRETAS, 1997, p. 40,
grifo nosso).
Provavelmente a grande extensão territorial do Brasil tenha contribuído para esta
formatação. Realmente ele é um fato. Mas por si só não é suficiente para explicar a
opção por tal modelo. Com bastante clareza Bretas (1997, p. 41) explica que “o
policiamento de colônias apresentou problemas bastante específicos para os
colonizadores [...] e o caso do Brasil emerge de um contexto muito particular”,
relacionado inicialmente com a chegada da corte portuguesa.
Em maio de 1808 foi criada a Intendência Geral de Polícia, embrião da Polícia Civil,
e um ano depois, em maio de 1809, a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, de
onde se originou a Polícia Militar. Segundo Cotta (2006, p. 40-41) a Intendência
possuía “caráter iminentemente administrativo”, tendo através do famoso intendente
Paulo Fernandes Viana, atuado na urbanização e saneamento da capital do Império,
realizando aterramento de pântanos, calçamento de ruas, construção de pontes,
aquedutos e fontes públicas, e ampliando a iluminação com lampiões a óleo de
baleia. Por sua vez a Guarda era “uma força policial de tempo integral, organizada
militarmente e com amplos poderes para manter a ordem e perseguir criminosos”, a
semelhança da que existia em Lisboa. Nesse contexto foi utilizada como força de
intervenção da Intendência de Polícia.
A independência em 1822 não mudou prontamente o quadro das instituições
policiais existentes. O nascente Estado brasileiro na montagem de suas leis e
instituições contemplou o assunto polícia somente dez anos depois. A Constituição
Imperial em nenhum dos seus 179 artigos fez referência a criação da polícia nas
Províncias. Na estrutura da primeira carta constitucional se pode perceber que a
grande preocupação daqueles momentos pós-independência era com a organização
política do Império. Embora contenha um título sobre a Administração e Economia
das Províncias, os assuntos foram condensados em apenas oito artigos.
54
Somente em 12 de agosto de 1834, por ocasião da alteração da Constituição, pela
lei nº 16 conhecida como “Ato Adicional”, se deu inicio às disposições legais sobre a
polícia nas Províncias. A abordagem sobre tal assunto ainda não foi específica,
estando contida nos artigos que trataram das competências das Assembléias
Provinciais, que deveriam, entre outras atribuições, legislar sobre a policia municipal
e fixar a força policial17. Logo em seguida pela lei nº 40 de 3 de outubro de 1834
ficou definido que competia aos Presidentes das Províncias “dispôr da força a bem
da segurança e tranquillidade da Província18.
Assim, em relação a recente instituição da polícia nas Províncias pelo governo
imperial a norma era que a Assembléia fixava seu efetivo e o Presidente decidia
sobre seu emprego, modelo que vigora até os dias atuais. Estava autorizada ainda a
instituição da polícia municipal pela Assembléia.
Segundo Bretas (1977, p. 42), as tentativas de centralização do governo de D. Pedro
I foram fortemente rechaçadas pelas elites locais, ocasionando constantes choques.
O Código Criminal de 1830 nesse contexto insere-se como uma tentativa do
imperador de institucionalizar o seu poder. Porém, forçado a abdicar em 1831, a
estruturação do sistema judiciário foi realizada na verdade pelas elites dominantes
do período regencial. Por sua vez, aponta o autor, o Código de Processo Criminal de
1832, estatuto legal importantíssimo como representante do pensamento político
daquele período, “procurou fortalecer os poderes locais, concentrando autoridade
nas mãos dos juízes de paz eleitos”. No entanto, em 1841, com a reforma do Código
17 Lei imperial nº 16 de 1º de agosto de 1834. “Art 10 Compete às mesmas Assembléias legislar: § 4º
Sobre a policia e economia municipal, precedendo propostas das Câmaras. Art 11 Também compete
às Assembléias Legislativas Provinciais: § 2º Fixar, sobre informação do Presidente da Província, a
Força policial respectiva”. 18 A Lei Imperial nº 40 de 3 de outubro de 1834, deu Regimento aos Presidentes de Províncias e
extinguiu o Conselho da Presidência. “Art. 5º Ao Presidente, além das atribuições marcadas na Lei da
Reforma Constitucional, e nas demais Leis em vigor, compete: § 4º Dispôr da força a bem da
segurança e tranqüilidade da Provincia. Sómente porém nos casos extraordinários, e indispensaveis,
fará remover as Guardas Nacionais para fora dos seus Municipios, nem consentirá que os exercicios,
mostras, ou paradas se fação fora das Parochias respectivas: excepto se forem contiguas, ou tão
proximas umas às outras, que pouco incommodo cause a reunião dos Guardas dellas.”
55
de Processo Criminal, construída numa conjuntura política diferente, de forte
tendência centralizadora, se buscou “reduzir os poderes dos juízes eleitos,
substituindo-os por uma estrutura nomeada pelo poder central de juízes profissionais
e funcionários policiais, ‘gozando de consideráveis prerrogativas judiciais’”. Bretas
afirma ainda que as prerrogativas judiciais conferidas à esfera policial foram
conseqüências da incapacidade do Estado, considerando a sua vastidão territorial e
o reduzido número de faculdades de direito, de produzir uma classe profissional
capaz de atuar no serviço público para operar a justiça criminal em todo o Império.
Tal situação pode ser visualizada no âmbito da Província do Espírito Santo através
da tabela de Mapas das Sentenças-Crimes da Comarca de Victoria entre 1865 e
1875, apresentada por Almeida (2007, p. 79). Sua análise demonstra que os Chefes
de Polícia, os Delegados e os Subdelegados foram responsáveis por 31,88% do
total de sentenças proferidas no período. O que certamente devia se repetir em todo
o Império, ressalvadas as devidas proporções. A perda dessa atribuição ocorreu
apenas em 1871 com a lei nº 2.033, que reformulou o Judiciário, e que acarretou
mudanças também na Polícia Civil.
No caso específico do Espírito Santo, principalmente naqueles tempos iniciais de
experiência administrativa autônoma, a necessidade da organização do Estado e da
configuração das esferas de poder era uma realidade premente. E a instituição da
polícia estava dentro deste contexto.
Ao descrever as trajetórias e os projetos políticos dos parlamentares capixabas na
primeira legislatura da Assembléia Provincial (1835-1837), Goularte (2008, 36-37)
apontou questões interessantes para a presente abordagem. Segundo ele “a
construção das instituições e de um ‘sistema político’ estabilizado não foi tarefa fácil
no Espírito Santo”. Como exemplo cita o amotinamento de soldados, oriundos da
Corte para se juntarem ao batalhão do Exército, contra o próprio comandante e
demais oficiais na Província. Os soldados amotinados percorreram as ruas atirando
nas casas e atacando o juiz de paz que viria a ser deputado provincial. O autor
aponta que houve um verdadeiro aprendizado compartilhado em outras instâncias
de poder local, como por exemplo, as câmaras de vereadores, que teria possibilitado
56
aos parlamentares, membros da elite local, se posicionar de forma particular e coesa
frente às questões pós-independência.
Nesse sentido o “capital político” construído possibilitou a permanência no poder
político provincial de alguns membros dessa primeira legislatura até a metade do
século XIX. Enquanto em diversas Províncias as elites locais tomaram o caminho
dos levantes armados para a resolução de seus impasses, as do Espírito Santo
utilizaram “outro canal para expressar suas demandas políticas, constituindo-se esse
canal a articulação da elite local por meio da Assembléia Legislativa [...]”
(GOULARTE, 2008, p. 54). Mas o fato é que as tarefas administrativas eram, e
ainda hoje são, da execução direta do Executivo. Naqueles tempos, portanto,
cabiam ao Presidente da Província, verdadeiros forasteiros. Mas de fato, como a
Assembléia constitui-se no espaço político dos líderes locais que desencadearam a
organização política da Província, os deputados atuavam intervindo “na distribuição
dos funcionários, disposição dos documentos e organização das repartições do
governo” (GOULARTE, 2008, p. 67).
Conforme aponta Goularte (2008, p.69), na primeira legislatura da Assembléia a
grande maioria das leis versava sobre a “reorganização da máquina pública
provincial”. A criação da polícia em 06 de abril de 1835, poucos meses depois da
instauração da Assembléia em 30 de janeiro do mesmo ano, foi uma das primeiras
ações dos parlamentares na Província capixaba em cumprimento às disposições
contidas em legislação imperial, que além de autorização para sua criação,
estabelecia competências exatas para a Presidência e a Assembléia. Como já se
viu, ao primeiro agente político cabia agir quanto ao emprego da polícia, e ao
segundo quanto ao estabelecimento de seu efetivo.
De forma muito interessante, Goularte (2008) mapeou a origem política anterior e o
comportamento político de onze dos vinte parlamentares da primeira legislatura.
Indicou que no Espírito Santo houve uma predominância de deputados de origem
militar, que sabiam muito bem da situação das forças de segurança mantidas pelo
governo central na Província. Assim se entende porque em 12 de fevereiro de 1835
57
o deputado Manoel da Siqueira, militar, tenha apresentado projeto para criação da
Guarda de Polícia.
Pode-se afirmar com precisão que a polícia foi assunto recorrente nos debates
políticos desde os tempos iniciais da configuração do processo de montagem do
Estado. Ela constituiu-se num aparato de força controlado pelo chefe do Executivo
quanto ao seu uso, mas amarrado à Assembléia que legislava sobre o tamanho de
tal força, o que na verdade poderia torná-la potencialmente utilizável ou não. Como
se verá mais detalhadamente no capítulo 2, os Presidentes da Província do Espírito
Santo realmente enfrentaram dificuldades para fazer uso da polícia, e em parte,
essa dificuldade estava relacionada ao estabelecimento do número do efetivo da
polícia pela Assembléia. O que demonstra efetivamente que embora não tenha
ocorrido na Província revolta armada em razão das tentativas de diminuição de
poder das elites locais, isto não significou uma apatia em relação ao que acontecia
no país. Os parlamentares, representantes legítimos das elites capixabas, souberam
muito bem, e de forma sutil, posicionarem-se frente às questões políticas de sua
época.
58
CAPÍTULO 2
GÊNESE E CONSOLIDAÇÃO INSTITUCIONAL
2.1 OS DILEMAS DA CONSOLIDAÇÃO
A Guarda de Polícia Provincial foi criada em 06 de abril de 1835 pela lei nº 9 no
governo do Presidente Manoel José Pires da Silva Pontes. Tratava basicamente do
efetivo previsto, num total de 115 policiais19, do vencimento, que decididamente não
devia ser tão atrativo pelas dificuldades de completar o efetivo, e ainda da forma de
ingresso e tempo de permanência, que seria de três anos para os voluntários e de
cinco para os recrutados. Autorizava ainda o Presidente da Província a ir
dissolvendo o Corpo de Permanentes20 na medida em que fosse recrutando para a
Guarda de Polícia.
Em 1º de julho do mesmo ano, já sob a administração de outro Presidente, Joaquim
José de Oliveira, tal lei foi regulamentada. O Regulamento continha algumas poucas
instruções para a organização e funcionamento, mas também nada definia quanto a
destinação da força pública recém criada. A destinação legal foi dada apenas pela
lei Provincial nº 23 de 27 de novembro de 1838 que assim definia: “O fim legal da
Guarda Policial é manter o socego e segurança interna da Província”.
Menos de um ano após sua criação, em 23 de fevereiro de 1836, pela lei nº 5, a
polícia teve seu efetivo reduzido para 71 policiais, o que para o Presidente Silva
Coito, segundo relatório de 1838, “trouxe grande quebra ao serviço publico”. Nele
relata que era competência da polícia “vigiar e pôr em prática todas as medidas para
19 Eram três oficiais subalternos, um 1º sargento, dois 2º Sargentos, um Furriel, seis Cabos, dois
Cornetas e cem Soldados. 20 O Corpo de Permanentes era a força existente antes da criação das Assembléias Provinciais que
receberam autorização do governo imperial para legislar sobre polícia a partir do Ato Adicional de
1834.
59
prevenir a perpetração dos crimes, evitar que a tranqüilidade e segurança publica
soffrão alguma alteração”.
O efetivo da polícia era definido pela Assembléia Legislativa que ao longo do
período Imperial o fez oscilar consideravelmente. Em 1839 foi elevado para 91, em
1840 passou para 98, em 1842 novamente foi diminuído para 71, e no ano de 1843
para 41 praças, até que no final de 1844 a polícia foi extinta.
Para Sônia Maria Demoner (1985, p. 49) a “necessidade de contenção de despesas”
na Província foi o motivo para a extinção da polícia. Certamente tal motivo deve ter
contribuído para o debate político, mas do que se depreende dos relatórios da
Presidência, não se trata apenas de dificuldades financeiras do Estdo. Estava em
jogo um embate entre os Presidentes e os membros da Assembléia no que se
referia a prioridade de gastos, conforme se pode ver no relatório do Vice-Presidente
de Província José Francisco de Andrade e Almeida Monjardim em 23 de maio de
1844. Nele apontava os motivos da não execução da lei provincial nº 4 de 24 de
julho de 1843 que tratava da previsão de concurso para professores na Província:
[...] 1º, porque não ha aqui pessoas habilitadas para as cadeiras que
devem compor o licêo; 2º, porque não parece acertado augmentar a cifra
na despeza quando a da receita vai ter considerável diminuição, pois o
suprimento de 16:000$000 que a caixa geral faz á provincial tem de ser
reduzido á metade no anno financeiro do 1º de julho de 1844 ao ultimo de
junho de 1845; [...] Accresce que o corpo policial não está reduzido ao
numero de praças marcado na lei provincial n. 2 de 21 de julho do anno
findo, pelos motivos já expendidos, e creio que a lei provincial acima
referida teve em vista a reducção da despeza com aq uelle corpo
quando criou o lycêo . Fora minha opinião que se suspendesse a
execução desta lei, até que as circumstancias financeiras da província
sejão mais satisfatórias. (grifo nosso)
O fato é que a Presidência não só descumpriu uma lei que determinava a
contratação de professores, mas o fez em detrimento do cumprimento da outra lei
60
que havia determinado a diminuição do efetivo da polícia. Para tanto foram
apresentados apenas os mesmos motivos contraditórios usados em quase todos os
relatórios:
A província goza de inalterável tranqüilidade, graças á Divina Providencia e
ao caráter pacifico dos seus habitantes. Não direi outro tanto a respeito da
segurança individual, porque desgraçadamente ella tem sido muitas vezes
offendida, e está de continuo exposta ao punhal do assassino, o qual
zomba da justiça, confiado na falta de meios que ella tem para se fazer
temer e respeitar [..].
Resumidamente, a descrição dá conta de que a Província era tranqüila, os
habitantes pacíficos, mas a polícia necessária para a garantia da segurança
individual.
Como se vê, a diminuição do efetivo da polícia pela Assembléia se deu em virtude
das despesas com a criação do Liceu. E aqui fica claro que para a Presidência,
entre a opção de destinação de recurso financeiro para a contratação de professores
e para a manutenção do efetivo policial, a primeira opção é que deveria esperar por
melhoras nas condições financeiras da Província.
Mas, o fato é que este não era o entendimento dos membros da Assembléia, e
assim a posição da Presidência não prevaleceu, e em novembro de 1844 a Guarda
de Polícia foi extinta como já apontado. O que parece ter tido a corroboração do
próximo Vice-Presidente, Joaquim Marcellino da Silva Lima, que um ano depois, em
27 de maio e 1845, assim se manifestou a respeito da Guarda:
Os assassinos que por tantas vezes enlutarão esta província quase que
hão desapparecido, e é de admirar que esta época de socego date da
extinção da guarda policial, que, por sua indisciplina, talvez longe de
perseguir os malvados, lhes prestasse apoio e proteção.
61
Esta posição sobre a utilidade, melhor dizendo, inutilidade da Guarda foi na verdade
uma exceção. Em todos os demais relatórios à Assembléia Legislativa os
Presidentes ou seus Vices sempre se manifestaram favoravelmente a tal força
pública, reclamando no geral a falta de efetivo.
Veja-se que logo no ano seguinte o próprio Vice-Presidente Joaquim Marcellino da
Silva Lima havia mudado sua posição ao se dirigir a Assembléia em 23 de maio de
1846:
[...] parece de necessidade que a Província mantenha alguma Força
Policial logo que as circunstancias de seus Cofres, permittão, porquanto
além de ser isto um dever, é manifesto que retirando-se a Companhia
Provisória como póde acontecer de um momento para outro, não serão
aquelles Pedestres bastantes para todo o serviço, á que terão de ser
destinados, máxime se uma parte d’elles houver de guarnecer a nova
Estrada de Minas, e o Rio Doce, sabido que em parte nenhuma se acha
organisada a Guarda Nacional, como parece indispensável.
Na ausência de uma força pública provincial a segurança de toda a Província ficou a
cargo da Companhia Fixa de Caçadores de Linha e da Companhia de Pedestre.
Ambas eram forças do governo central, sob as ordens do Ministério da Guerra cujos
efetivos previstos em lei não correspondiam as necessidades do serviço de
segurança, nem eram completados pelas dificuldades de recrutamento. Ao apontar
o problema, o mesmo Vice-Presidente acima relata que “... raros são os voluntarios
que se offerecem, e mui difficil a captura de recrutas em numero sufficiente para
serem repartidos pelas duas Companhias de Caçadores, e de Pedestres” (grifo
nosso). Pelos reiterados relatos da Presidência, e mais tarde, também dos Chefes
de Polícia, sobre as dificuldades relativas ao recrutamento para o serviço militar e
policial, pode-se dizer que a palavra captura corresponde fielmente ao que ocorria.
62
Conforme a legislação que regulava a Companhia de Pedestre21 esta destinava-se
a guarnecer as estradas, especialmente as de acesso a Minas, bem como a que
levava ao Rio Doce. Em 1857 com efetivo fixado em 82 praças possuía apenas 55
em seus quadros. Porém, tal problema de escassez de efetivo não era novidade;
dez anos antes, o então Presidente Luiz Pedreira do Couito Ferraz já relatara:
A companhia de pedestre, [...], ainda nem possue o numero de praças
preciso para guarnecer a estrada de S. Pedro d’Alcantara [...]
O medo de que estão possuídos, de se lhes poder dar outro destino, e, de
uma vez alistados terem de sahir para fora da província, impede até os
homens casados e com família, de se appresentarem, atemorisados ainda
por factos passados, e nos quaes desgraçadamente, se faltou á boa fé.
Como na citada estrada foram criados cinco quartéis, exigindo, portanto, maior
efetivo, mesmo com a solução do problema do recrutamento insuficiente não haveria
condições de tal força arcar com a guarnição da Capital, que dirá do restante da
Província. Assim o mesmo Presidente reclamou a criação de “alguma força policial,
embora de poucas praças”, lembrando para isto da exigência contida no “ato
adicional” .
A Companhia Fixa de Caçadores22 era destinada a guarnição da Capital, e em 1857
seu efetivo completo era de 99 praças, porém possuía apenas 76 em seus quadros.
Os anos iniciais do Segundo Reinado, em especial os que correspondem ao período
regencial, foram caracterizados pela instabilidade política que fez inclusive eclodir
revoltas em várias Províncias. Assim, tal força deveria estar estacionada
prontamente para guarnecer a sede do governo provincial, resguardando-a de
possibilidades de quebra da tranqüilidade pública. Tratava-se também de força com
que não se poderia contar sempre como disse em 1º de março de 1848 o Presidente
21 Era regulada pela lei nº 341 de 6 de março de 1845, decreto de 30 de setembro de 1845, e leis de
23 de agosto de 1851 e de 19 de setembro de 1853. 22 Criada com o nome de Companhia de Caçadores de Montanha pela lei nº 85 de 26 de setembro de
1839, em 1843 sua designação mudou para Companhia Provisória de Linha. Em 9 de outubro de
1847 por força de aviso do Ministério da Guerra passou a ser chamar Companhia Fixa de Caçadores.
63
Luiz Pedreira do Coutto Ferraz: “De um instante para outro pôde ter diverso destino,
e ficaremos então em lide com embaraços, que fácil não há de ser, por certo, de
prompto cortar”. Falava ele da possibilidade de deslocamento da tropa para outros
pontos do país, como acontecera várias vezes.
No ano de 1860, por força de decreto imperial, as Companhias Fixa e de Pedestre
foram suprimidas e criado um único Corpo de Guarnição de 1ª Linha com 170
praças, dividido em duas companhias. Tal força, como suas antecessoras, tinha
como incumbência fazer “o serviço militar da guarnição, o dos destacamentos em
diversos pontos da província, e grande parte dos serviços de polícia por causa da
insufficiencia da força policial”. Mas em 1865 o Corpo de Guarnição seguiu para a
Corte em virtude de questões internacionais no sul do Império.
Com o término da guerra a situação militar nas diversas Províncias podia voltar a
normalidade. Assim, por força do decreto imperial nº 4.772 de 12 de agosto de 1870
foi determinada a organização de uma Companhia de Infantaria de Linha que
substituiria o Corpo de Guarnição. Tal determinação somente foi levada a efeito em
junho de 1871 pelo Presidente Francisco Ferreira Corrêa, que justificou tal atraso
alegando dificuldades no recrutamento, que eram reais. Para se ter uma idéia da
dimensão do problema nas mãos da Presidência, no ano de 1873 havia um claro de
12 militares, e somente no ano seguinte o efetivo chegou ao seu estado completo de
82 militares, quando então a Presidência solicitou ao Ministro dos Negócios da
Guerra autorização para elevá-lo a 100, pelo menos. Em 1875 a Corte envia um
reforço provisório de 02 Alferes e 35 praças.
Além das citadas forças, havia ainda a Guarda Nacional, que na Província do
Espírito Santo, diante da demora na regulamentação pela Assembléia, não foi
prontamente organizada como definido pela legislação imperial que a instituiu, e
assim, “com ela não se podia contar”, reclamavam em coro os Presidentes de
Província.
Somente em novembro de 1849, em decorrência de aviso do Ministério da Justiça a
Guarda Nacional foi finalmente regulamentada, e assim dividida em três legiões, a
do Sul, Centro e Norte. A primeira legião compreendia as vilas de Guarapary,
64
Benevente e Itapemirim, formada por dois Batalhões de infantaria. A segunda, a
Capital da Província, a vila do Espírito Santo, as freguesias de Viana, Cariacica,
Carapina, e o distrito de Mangarahy, formada por dois Batalhões de infantaria e um
corpo de artilharia. A terceira legião englobava as vilas da Serra, Nova Almeida,
Santa Cruz, Barra de São Matheus, a cidade de São Matheus, e o distrito de
Queimados, formada por dois Batalhões de infantaria23.
Mas ao que parece a regulamentação da Guarda Nacional na Província também
não correspondeu a sua pronta organização. Em relatório de 1852 encontramos
registros de demora nos trabalhos da qualificação e do não cumprimento de sua
total organização, iniciada apenas nas vilas de Itapemirim, Benevente e Guarapary
correspondentes ao comando do sul. No ano de 1854 aparece relato de organização
também no comando do centro, faltando ainda, portanto, o do norte.
Também era clara a consciência de que a Guarda Nacional não era força adequada
para emprego nas atividades que se entendiam ser da alçada da polícia. No relatório
de 1861 o Presidente José Fernandes da Costa Pereira Junior assim aponta as
vicissitudes sobre a utilização da Guarda Nacional em tais serviços:
E nem se conte com a guarda nacional para todos os serviços de policia.
Ha muita differença entre o homem que consagrado à vida aventurosa das
armas, ordinariamente solitário na vida, abraça por vocação e com soldo a
profissão e os vaivens da milícia e o individuo que arrancado por ordem
repentina e as vezes com surpreza, aos trabalhos pacíficos da lavoura
onde outra industria, ás doçuras do lar domestico, ás suaves alegrias da
vida de família, tem de prestar com constrangimento hum serviço
inteiramente alheio aos seus hábitos, profissão e tendências.
Mas, o fato é que os Presidentes, mesmo diante da falta de total organização da
Guarda Nacional e da sua inadequação ao serviço policial, não deixaram de lançar
23 Posteriormente Benevente veio a se chamar Anchieta, Espírito Santo corresponde a Vila Velha e
Barra de São Matheus a Conceição da Barra.
65
mão de tal força quando assim julgou-se necessário. Em 1862 o mesmo Presidente
acima citado, ao abordar sobre a insuficiência da tropa de 1ª Linha e da Companhia
de Polícia para a manutenção da ordem e tranqüilidade pública, assim indaga e
responde: “Qual o remédio em semelhante conjunctura? Só o do destacamento da
Guarda Nacional”. E assim o fez, destacando 45 guardas nacionais na Capital,
embora soubesse não ser esta a solução mais correta. O Governo Imperial,
inclusive, para conter tal uso indevido nas Províncias, havia declarado por aviso
circular que os pagamentos das praças destacadas apenas seriam feitos quando o
destacamento de tal tropa fosse autorizado pelo Ministério da Justiça. O objetivo de
tal medida seria não só a redução das despesas, mas também a proteção das
lavouras. É bom lembrar que em 1865 o Corpo de Guarnição havia seguido para a
Corte. Durante sua ausência foi usada força destacada da Guarda Nacional para a
tarefa de guarnição da capital da província.
Em 1871 a Guarda Nacional ainda realizava o serviço de guarnição da capital,
apesar da irregularidade de tal empenho. Isto causava resistência aos guardas, bem
como despesas aos cofres da Província com o custo financeiro dos destacamentos
não autorizados pelo Ministério da Justiça.
Em virtude de aviso do governo imperial de 31 de dezembro de 1873 a Guarda
Nacional foi dispensada do serviço ordinário e todos os seus destacamentos na
Província foram dissolvidos. Como substituto a esta força pública o Governo Imperial
lembrava a criação de Guardas Municipais, sob a denominação de Pedestres, que já
havia autorizado. Considerava “que com maior razão se podem classificar de força
policial do que corpos organisados com apparato e disciplina militar à similhança do
exercito”. Autorizava ainda para auxiliar na despesa com tal segmento de força
policial o uso do imposto pessoal e dos emolumentos e selo das patentes da Guarda
Nacional.
Na tentativa de suprir as lacunas deixadas pela força pública na Província - ausência
ou escassez da polícia, diminutas forças de 1ª linha e lentidão da organização e
conseqüências negativas do uso indevido da Guarda Nacional - por força da lei
Provincial nº 8 de 29 de julho de 1845 foi criada uma Companhia de Guerrilha, com
o fim de ser empregada em diligências, captura de escravos e criminosos.
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Nos relatórios, as argumentações usadas pela Presidência sobre as Guerrilhas,
estavam sempre associadas a questão escrava, o que aponta para a verdade de
que o seu fim era essencialmente a captura de escravos fugidos. Assim sendo, logo
um arranjo foi articulado. O Chefe de Polícia ficou autorizado a nomear os
comandantes para as Guerrilhas, que deveriam ser auxiliados pelas autoridades
locais. Por sua vez, as despesas com vencimentos deveriam ser custeadas pelos
proprietários. Sobre este arranjo assim se manifesta no relatório de 1845 o Vice-
Presidente Joaquim Marcellino da Silva Lima
[...] Intervindo d’est’arte a Presidência com sua authoridade e
recomendações, executão-se as diligencias com as formalidades devidas,
sem que sobre a Fazenda Provincial recaia dispêndio algum, entretanto
que o interesse particular dos Senhores de escravos, e das Praças da
Guerrilha contribue também efficazmente para que ellas sejão coroadas de
feliz successo, como há bem pouco tempo se observou, sendo arrazado
um antigo quilombo, e presos quase todos os escravos que o occupavão.
Mas, a verdade é que não houve o sucesso esperado e, assim, o mesmo Vice
Presidente assim se manifesta em 1846 sobre a atuação de uma Guerrilha: ”mas a
esta tem obstado a falta de dinheiro disponível nos Cofres Provinciaes para
satisfação das despezas que a mesma Lei authorisa”. Ainda segundo ele, num
“pequeno ensaio da execução da dita Lei”, organizou “provisoriamente uma
Guerrilha de desoito Praças, que começou no Districto de Cariacica suas operações
[...]”. Porém, tal força foi logo dispensada por falta de pagamento dos vencimentos
das praças.
Diante da lacuna deixada pela extinção da polícia, o Presidente Luiz Pedreira de
Coutto Ferraz em 1848 reclama a modificação da lei de criação da Guerrilha
Permanente, no sentido da Presidência ser autorizada a engajar um comandante
para a mesma com vencimentos seguros e fixos. O objetivo era que estivesse
prontamente a disposição do chefe do Executivo, já que apontava a necessidade de
sua residência na Capital, quando não estivesse em diligências pelas matas. Este
pedido foi atendido pela Assembléia, e assim pela lei nº. 8 de 4 de maio de 1848 foi
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criada uma Guerrilha para a Capital com a previsão de um comandante e de vinte
praças que deveriam ser engajadas voluntariamente. Porém, em 1849 a Presidência
reclama da pouca quantia destinada para o seu emprego, o que demonstra que os
parlamentares provinciais embora cedessem a um ou outro apelo em relação a
efetivo de força para a segurança, isto não tinha uma correspondência automática
no que dizia respeito ao orçamento. Depois, em 1852, pela lei nº 19 de 28 de julho,
também foi criada uma Guerrilha específica para atuar em São Matheus.
Quase dez anos depois, em 1861, ainda se lançava mão das Guerrilhas como força
de segurança complementar. Por força de lei foi criada mais uma Companhia de
Guerrilha com efetivo de um comandante e 20 engajados, mas pelo que se consta
pouca utilidade teve, pois o número de escravos apreendidos não correspondia as
despesas feitas com a mesma; despesas estas, diga-se, divididas entre os cofres
públicos e os proprietários.
Em 1885 ainda foi criada uma derradeira Companhia de Guerrilha composta de 1
comandante e 10 praças. O que motivou tal ato segundo consta no relatório do
Chefe de Polícia datado de 28 de setembro de 1875 à Presidência teriam sido as
[...] reiteradas exigências feitas por diversas auctoridades policiaes, e
reclamações da imprensa d’esta capital, sobre a existência de grande
número de escravos fugidos que transitavão pelas estradas do município
de Vianna, Araçatiba, Manoeiro, até as matas do Jacarandá, assim como
pelas estradas de Mangarahy, ameaçando os moradores daquellas
paragens [...]
Mas, como das demais vezes os resultados do uso de tal força não foi satisfatório, e
assim, os seus trabalhos foram suspensos em 23 de setembro do mesmo ano por
ato do próprio Chefe de Polícia autorizado pela Resolução Presidencial que a
instituíra.
O fato é que os reclames pelas Guerrilhas, tanto em termos de efetivo quanto de
orçamento, vinham sempre acompanhados de exposições sobre “o grande mal” que
“formigão na província” – os quilombos. Mas, a Assembléia bem sabia o que fazia, já
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que tal questão, se realmente existiu na dimensão apontada nos relatórios, era muito
mais do interesse particular dos proprietários do que do Estado. Os proprietários
poderiam muito bem custear as despesas com tal serviço, como já apontado.
A extinção da policia em 1844 não significou o seu fim. Os insistentes apelos dos
sucessivos Presidentes da Província, mesmo que lentamente, foram encontrando
eco entre os membros da Assembléia. Sua reorganização foi gradual e lentamente
sendo iniciada em 1848, quando a Assembléia autorizou pela lei nº 9 de 04 de maio,
o engajamento de treze praças de polícia, destinando-as exclusivamente ao
policiamento da Capital. Como acontecia antes de 1844, este efetivo foi
constantemente alterado, oscilando a critério de decisão da Assembléia, mas
sempre diante dos incansáveis apelos dos Presidentes em seu favor. Em 1849 este
número foi aumentado para 20 e em 1850 para 30 praças.
Como se pode perceber havia um grande embate entre os Presidentes da Província
e os membros da Assembléia Legislativa no que dizia respeito a necessidade de
uma força pública tipicamente provincial destinada a segurança. No relatório de 24
de maio de 1852 o Presidente José Bonifácio Nascentes d’Azambuja, numa tentativa
de não ver o efetivo das praças de polícia diminuído havia escrito:
Si attendendo ás circunstancias da Província não vos peço o augmento da
companhia de policia, espero que não a reduzaes á menor numero, como
na sessão do anno passado se pretendeu, e eu então suppunha possível,
mas que hoje penso diversamente pelo maior conhecimento que tenho
adquirido das precisões publicas, as quaes devem ser bem conhecidas dos
representantes da província.
O certo é que saiu vencido. A Assembléia não cedeu aos seus apelos, e neste
mesmo ano de 1852 foi diminuído para 21 o número de praças policiais.
Seus sucessores continuaram insistindo e apelando sempre para o aumento do
efetivo de tal força. Eram freqüentes também as solicitações de autorização para a
designação de um Oficial no posto de Alferes para comandante das praças que,
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segundo consta, se demonstravam indisciplinadas, deixando até de cumprir ordens
da Presidência em relação as patrulhas que deveriam fazer na capital. Não havendo
pronto atendimento, em 1853 o Presidente subordinou o diminuto efetivo policial ao
comandante da Companhia de Caçadores, que diante da necessidade também era
empenhada no policiamento, mesmo não sendo esta sua destinação.
A insistência era tanta que em 1854 o Presidente Sebastião Machado Nunes relata
que com o fim de empregar a Companhia de Pedestres exclusivamente na
guarnição das estradas, que segundo ele encontravam-se em total abandono, incluiu
no orçamento de despesa da Província “uma companhia de policiaes, composta de
60 praças, numero ainda insufficiente para fazer todo o serviço de policia em toda a
província”. Ao que certamente não lhe foi dado ouvidos. A Assembléia nem aprovou
tal proposta de orçamento, nem a companhia foi criada.
Mas isto definitivamente não significou o fim dos apelos. Em 23 de maio de 1856, o
Presidente Jose Mauricio Fernandes Pereira de Barros por ocasião da abertura da
Assembléia também argumentava sobre a insuficiência de efetivo das Companhias
de Caçadores e de Pedestres, segundo ele, ocasionada por falta de vocação dos
habitantes da Província que os fazia fugir do recrutamento, e que como
conseqüência eram tais forças desviadas de suas destinações legais de guarnecer a
Capital e os quartéis das estradas de acesso a Minas Gerais respectivamente, para
serem empenhadas nos serviços de destacamentos e outros que eram precisos.
Aproveita para reforçar a tese da necessidade de uma Companhia de Polícia com no
mínimo 30 praças, mas que, um número menor não seria problema se seus
vencimentos fossem aumentados na tentativa de incentivar o recrutamento e a
permanência na polícia. Não estava errado uma vez que embora o efetivo em vigor
fosse de 21 praças somente existiam 11 em exercício.
Diante de tantos apelos, em 8 de julho de 1856, pela lei nº 4 a Assembléia
efetivamente reorganizou a antiga Guarda de Polícia, estabelecendo-lhe um corpo
permanente com efetivo de 30 praças e um comandante próprio, sob a denominação
de Companhia de Polícia. O artigo 2º da citada lei possibilitava a Presidência dar
nova regulamentação a Companhia de Polícia, o que somente foi efetivado três anos
depois, com a Resolução nº 82 de 7 de maio de 1859. .
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O movimento de oscilação constante no número de efetivo da polícia não cessou,
mas juntou-se ao coro dos Presidentes em sua defesa no sentido de aumento, tanto
de efetivo quanto de orçamento, os apelos e justificativas dos Chefes de Polícia, que
atendendo requisições da Presidência passaram a encaminhar relatórios detalhados
sobre as questões relacionadas à ordem e segurança pública.
Em 1857 o efetivo foi aumentado para 40 praças, porém em 1858 caiu para 30
praças. Em 1859 o efetivo foi elevado para 36 praças e em 1860 foi mantido neste
mesmo número. Porém, em 1861 foi aumentado para 41 praças, mas mesmo assim,
em relatório encaminhado ao Presidente da Província neste mesmo ano, o Chefe
de Polícia diz ser “força insufficiente para acompanhar com alguma vantagem á
todos os effeitos que correm pela polícia”. Poucos anos depois, em 1864, a
Presidência da Província faz pedido à Assembléia para que tal efetivo fosse ao
menos mantido, do que se pode concluir que os ânimos parlamentares eram para
que fosse diminuído. E o que se depreende é de que a custo de muita insistência e
justificativas não o foi, pois apenas em julho de 1867 a Companhia de Polícia teve
seu efetivo aumentado, numa nova conjuntura de crise externa que repercutiu em
todas as Províncias do Império – a guerra com o Paraguai.
Com a guerra, a Força Pública da Província passou a ser composta apenas da
Companhia de Polícia e da Guarda Nacional. O Corpo de Guarnição, força de 1ª
Linha com previsão legal de 173 homens, como já visto, mas que não só prestava
serviços nos destacamentos fora da capital, mas também fazia guarda em
estabelecimentos públicos, fora enviada à Corte para depois seguir rumo as
fronteiras do sul, palco da guerra. Em 23 de maio de 1867 o Presidente Carlos de
Cerqueira Pinto relata à Assembléia a situação relativa à segurança da Província,
que considerava crítica em função do diminuto efetivo da polícia e da problemática
que envolvia a Guarda Nacional, e pede aumento de efetivo para a polícia. “Assim
talvez se possa diminuir os destacamentos da guarda nacional, cujo serviço pesa
sómente sobre os lavradores, artistas e commerciantes”, dizia ele, ao que foi
prontamente atendido. Em menos de dois meses, no dia 10 de julho do mesmo ano,
o efetivo da polícia foi aumentado para 60 praças e 1 Oficial comandante.
71
Esse contexto da segurança se agrava no ano seguinte quando novamente o corpo
policial é desmantelado. Em virtude de requisição do governo imperial praticamente
toda a Companhia de Polícia seguiu para a Corte a fim de reforçar o Exército na
guerra com o Paraguai. Ficaram apenas 6 ou 7 praças servindo de ordenanças as
autoridades da Província, o que leva o Chefe de Polícia a solicitar a reorganização
da Companhia de Polícia, pois o claro em relação ao efetivo previsto era de 43
policiais.
Curiosamente, logo em seguida, a Assembléia recua mais uma vez e, depois de já
ter diminuído o efetivo previsto para 44 policiais, novamente extingue a Companhia
de Polícia, o que não é acatado pelo Presidente Luiz Antonio Fernandes Pinheiro,
conforme se pode ver em seu relatório à mesma Assembléia, datado de 8 de junho
de 1869 :
Apesar de ter em meu relatório apresentado á assembléia provincial na
última sessão, declarado julgar insufficiente o numero de praças que
compunham essa força, foi ella extinta pela mesma assembléia.
Considerando porém os inconvenientes, que trazia in evitavelmente
essa extincção impolitica e contraria á boa adminis tração, recusei
sanccionar essa lei, que além de tudo é anticonstit ucional, e remetti-a
ao Governo Imperial, cuja decisão ainda não foi com unicada á esta
presidência.
Actualmente conta essa companhia trinta praças em serviço effectivo. (grifo
nosso)
Interessante também é a posição do Presidente Antonio Dias Paes Leme, que
substituíra o acima citado em setembro de 1869, e um ano depois, ao passar a
Presidência, assim se explica a seu substituto:
Agora ainda sobre a policia vou justificar um ato meu. A assembléia
provincial determinou em 1868 extinguir o corpo policial por seu
authographo, que por inconstitucional não podia ser, nem foi sanccionado
pela presidência e sendo a questão levada ao poder competente para
72
decidir, ainda está pendente; entretanto o orçamento d’esse mesmo anno
que igualmente não foi sanccionado, por não convir aos interesses da
província, foi novamente remetido a assembléia provincial, approvado e
devolvido á presidência. Eu sanccionei-o por força do art. 15 do Acto
Addcional, que indubitavelmente implica sancção obr igatória; e nem
seria de prudente alvitre collocar-me, logo no prin cipio de minha
administração, em luta aberta com uma assembléia ad versa, que me
negasse todos os meios do governo . Porém no referido orçamento
conseqüente com a resolução de extinção não se contemplava verba para
as despesas do corpo policial, entretanto este não estava extincto, porque
a questão pendia ainda do Poder competente, e os soldos vencidos
precisavam ser pagos. Ordenei portanto a despesa, arbítrio que julgo
justificado e no caso de ser approvado pela assembléia provincial. (grifo
nosso) 24
Há nos trechos dos relatos dos dois Presidentes observações importantes para a
compreensão da trajetória da polícia aqui em foco. O Presidente Luiz Antonio
Fernandes Pinheiro, que passara do cargo de Juiz de Direito da Comarca dos Reis
Magos25 para o da Presidência em setembro de 1868, nele permanecera por um
ano, e por duas vezes frontalmente entrou em choque com a Assembléia Legislativa
Provincial, não somente recusando-se a sancionar uma lei que extinguia a polícia,
mas também se recusando a sancionar a lei de orçamento, considerando que não
contemplava recursos orçamentários destinados a gastos com tal força pública.
24 Art. 15 da Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834 (Ato Adicional): “Se o Presidente julgar que deve
negar a sancção, por entender que a Lei ou Resolução não convém aos interesses da Província, o
fará por esta formula – Volte à Assembléia Legislativa Provincial – expondo debaixo de sua
assignatura as razões em que se fundou. Neste caso será o Projecto submettido á nova discusão; e
se for adoptado tal qual, ou modificado no sentido das razões pelo Presidente allegadas por dois
terços dos votos dos membros da Assembléia, será reenviado ao Presidente da Província, que o
sancionará. Se não for adoptado, não poderá ser novamente proposto na mesma sessão”. 25 Nos anos finais da década de 1860 a Justiça na Província do Espírito Santo estava organizada em
04 Comarcas: da Capital, dos Reis Magos, de São Matheus e de Itapemirim. Cada Comarca era
composta por 1 juiz de direito, 1 juiz municipal e 1 promotor público. As Comarcas dos Reis Magos e
de Itapemirim estavam subdividas em 1 Termo sob a responsabilidade de um outro juiz municipal.
73
Não era a primeira vez que um Presidente de Província se colocara frontalmente
contra a Assembléia em relação ao assunto polícia. Como já se viu, em 1843 um
Presidente deixou de executar lei de criação de liceu por considerar que interferiria
nas despesas com a polícia. Neste caso, a questão foi mais longe, indo parar na
Corte. O fato é que a despeito da grande rotatividade do cargo da Presidência, cuja
designação era feita pelo Imperador, com pessoas geralmente de fora da Província,
três meses após a apresentação de seu relatório à Assembléia em 8 de junho de
1869, o Presidente Luiz Antonio Fernandes Pinheiro fora substituído, com a questão
ainda pendente.
Seu sucessor, Antônio Dias Paes Leme, apesar de ter sancionado a lei do
Orçamento Provincial no ano de 1870 sem previsão de recursos para a polícia,
porque segundo ele, não só assim determinava o Ato Adicional de 1834, mas
porque, principalmente, assim se entende, não queria se colocar numa situação de
antagonismo com a Assembléia logo no início da sua administração, ordenou
despesas não previstas para a polícia, já que a lei provincial de extinção não havia
sido cumprida. E nem o foi em anos posteriores. Não se sabe se por mudança de
posição da Assembléia ou por decisão do governo imperial a quem a pendenga fora
submetida, uma vez que não se tocou mais em tal assunto nos relatórios
subseqüentes até 09 de julho de 1887. Mas o fato é que a partir da primeira metade
da década de 1870 a Companhia de Polícia começou a tomar novo fôlego com o
aumento gradativo de seu efetivo, inclusive do número de Oficiais para administrá-la.
Assim é que em seu relatório de passagem de cargo o Presidente Antônio Dias
Paes Leme disse que gostaria de ter dado novo regulamento a polícia, mas diante
do número diminuto, da falta de local apropriado para instalação, falta de rancho, em
suma, de condições indispensáveis à disciplina, resolvera esperar que a Assembléia
lhe aumentasse o efetivo como convinha. O efetivo da polícia passou então para 62
policiais, incluindo o comandante, mas, pelo que se depreende ainda não era
suficiente. Em 9 de outubro de 1871 outro relatório da Presidência, já sob nova
administração, aponta a necessidade de aumento para 98 policiais, argumentando
que as despesas com os guardas nacionais eram maiores do que se concedido o
aumento para a polícia, o que não foi atendido. Em outubro de 1872, mesmo com
um claro de dezenove policiais, sendo um de Alferes, a Presidência narra à
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Assembléia necessidade de aumento de efetivo para 103 policiais. Esta cedeu;
porém, ainda em novembro do mesmo ano, definiu a quantidade que julgou
conveniente, 83 policiais.
As dificuldades para o recrutamento continuavam; em 1873 o claro era de 32 e em
1874 de 39 policiais. Diante de tal situação no relatório dirigido à Assembléia em 1º
de setembro deste último ano o Vice-Presidente Manoel Ribeiro Coitinho
Mascarenhas assim se manifesta:
Em face d’esta defficiencia de força e das innúmeras difficuldades a
vencer-se no alistamento de praças, há só duas medidas a tomar-se, dois
princípios a seguir-se: ou a dissolução da Companhia de Policia, ou a
creação da Polícia Municipal .
Julgo preferível o segundo meio; e neste caso deverá ser reduzido a 50 o
numero de praças da Companhia, que só policiará a Capital, e não será
distrahiada para destacamentos, salvo força maior, tendo cada município
sua guarda policial composta de 10 praças e um inferior, sob as ordens
immediatas do respectivo Delegado de Policia, encarregados de fazer os
devidos alistamentos mediante as vantagens concedidas por lei aos da
Companhia de Policia.
Esta medida não será innovação: outras províncias a tem adoptado.
Sua proposta de criação da Polícia Municipal não era coisa nova nem na Província
do Espírito Santo. O Presidente Luiz Eugenio Horta Barbosa já a tinha feito constar
em seu relatório de passagem da administração justamente ao Vice-Presidente
acima, sem, contudo propor a dissolução da Companhia de Polícia. Mas do que se
pode depreender, tal proposta soa mais como um jogo de palavras e de pressão do
que uma real intenção. Tanto é que a Assembléia não dissolveu a Companhia de
Polícia, mas pela Resolução Provincial nº 27 de 14 de novembro de 1874 criou a
Guarda Municipal.
Na verdade a destinação da Guarda Municipal seria a de ocupar os destacamentos
policiais existentes nas localidades do interior, geralmente implantados em virtude
das insistentes solicitações das autoridades locais. Tais destacamentos eram feitos
75
pelas diversas forças existentes na Província, mas especialmente pela Companhia
de Polícia, sobre quem a Presidência tinha o poder de definir sobre sua utilização.
Como se pode ver na Tabela 1 não houve destinação de guardas municipais para a
capital da Província; considera-se, portanto que o objetivo era nela concentrar os
policiais da Companhia de Polícia. Coube ao Chefe de Polícia a distribuição e a
nomeação dos comandantes dos guardas municipais retirados entre os engajados.
Aos Delegados nos Termos e aos Subdelegados nos Distritos cabia proceder às
inspeções.
Tabela 1 – Organização da Guarda Municipal em fevereiro de 1875
Municípios
Sargentos
Furriéis
Cabos
Guardas
Total
Cidade de S. Matheus 1 5 6
Barra de S. Matheus 1 5 6
Linhares 1 4 5
Santa Cruz 1 4 5
Nova Almeida 1 4 5
Serra 1 5 6
Vianna 1 10 11
Espírito Santo 1 4 5
Guaraparim 1 4 5
Benevente 1 5 6
Itapemerim 1 5 6
Cachoeiro de Itapemirim 1 5 6
Somma 4 2 6 60 72
Fonte: Relatório do Chefe de Polícia anexo ao Relat ório do Presidente de Província em 02 de agosto de 1875
Como se pode ver seu efetivo total era superior ao da Companhia de Polícia. Mas
segundo o que faz constar o Presidente Domingos Monteiro Peixoto em seu relatório
datado de 18 de setembro de 1875, “longe de satisfazer ao fim de sua criação, a
guarda municipal tem unicamente servido para onerar os cofres”, caracterizando-se
como “uma força composta de indivíduos escolhidos, as mais das vezes, sob o
influxo da proteção”, agravado pela falta de um comando adequado que lhe
76
disciplinasse. Sugere então sua substituição por mais uma Companhia de Polícia,
ao que não lhe foi dado ouvido.
Mas o certo é que a força municipal teve vida curta. Extinta pela lei Provincial nº 28
de 19 de novembro de 1875, com recomendação de que os guardas que assim o
desejassem poderiam ser aproveitados na Companhia de Polícia, foi gradativamente
sendo desativada até dezembro de 1876. A demora na extinção completa se deu
como conseqüência da escassez de efetivo da Companhia de Polícia que deveria
novamente ocupar os destacamentos nas diversas localidades da Província.
No mesmo ano da extinção da Guarda Municipal, em 1875, o efetivo previsto para a
Companhia de Polícia foi aumentado para 103 policiais, mas, havia um claro de 52
policiais para completar tal efetivo, o que reflete a grande dificuldade em relação ao
recrutamento para compor a polícia. Em dezembro o efetivo previsto foi novamente
aumentado, sendo de 105 policiais, porém, o claro em 1877 ainda era significativo,
sendo da ordem de 43 policiais. No entanto no ano de 1878 a situação mudou,
estando seu efetivo previsto quase completo, faltando-lhe apenas 6 praças.
Mais uma vez a Companhia tem seu efetivo diminuído. Em abril de 1879 a
Assembléia fixou o numero de 94 policiais, e no início do ano de 1881 faltavam-lhe 4
praças para estar completa. No entanto, em 1881 volta a ter o efetivo previsto de
103 policiais e em fevereiro de 1882 faltavam-lhe 11 soldados para estar completa.
Pela lei nº 18 de 15 de maio de 1882 o efetivo foi mais uma vez aumentado, agora
para 115, faltando-lhe 16 praças para estar completo.
Pela primeira vez, após 47 anos, a polícia voltava a ter o mesmo efetivo previsto por
ocasião de sua criação em 1835 – 115 policiais. Mas, mesmo assim, tal número não
atendia as expectativas da Presidência que em relatório datado de 3 de março de
1883 dizia: “o estado effectivo desta Companhia não satisfaz as exigências do
serviço”. E considere-se que para estar completa faltavam–lhe apenas 8 policiais
naquele ano.
Vale ressaltar que em nenhum momento de sua história até então a polícia tinha
chegado a tal número, seja por força de lei, seja pela insuficiência no recrutamento.
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Talvez a Presidência estivesse tentando evitar que a força policial fosse novamente
diminuída pela Assembléia. É o que se pode inferir de seu relato: “Embora haja ou
pareça haver excesso de dispendio com a manutenção da força publica, é
imprescendivel, nas actuaes circunstancias da Província pelo menos não diminuir as
despesas que são feitas com a força publica”. E estava certo. A lei nº 15 de 4 de
maio de 1883, diminui-lhe o efetivo fixando-o em 106 policiais. No entanto em
outubro de 1884 já havia sido aumentada para 117 policiais, mas faltavam-lhe 38
praças para estar completa.
As dificuldades relativas ao recrutamento e a baixa permanência dos policiais
voltaram a comprometer a policia. Em outubro de 1885 faltavam-lhe 52 praças, o
que correspondia a 44,4% do efetivo total! Pouquíssimo tempo depois, pela lei nº 4
de 30 de novembro deste mesmo ano, teve seu efetivo diminuído e fixado em 85
policiais, e sobre tal situação assim se posicionou o Presidente Antonio Joaquim
Rodrigues em relatório à Assembléia datado de 5 de outubro de 1886:
É incontestável que esta força não póde satisfazer as necessidades do
serviço, visto o augmento de população que tem tido a província; e é muito
de esperar que continue a ter, principalmente nas comarcas de Itapemirim,
Iriritiba e Santa Cruz. Convém, pois, elevar a força pelo menos à 80 praças,
ainda mesmo que se cortem outras despezas ou se revejão os impostos
de modo a augmentar a receita da província.26 (grifo nosso)
O que fica patente é o permanente embate entre os Presidentes de Províncias e os
membros da Assembléia Legislativa sobre a questão da polícia ao longo do período
Imperial, bem como os avanços e recuos dos últimos em sua posição visivelmente
contrária a respeito da necessidade de tal força pública na Província do Espírito
Santo. Tanto é que em relatório de 9 de julho de 1888, já no fechar das portas do
governo imperial, a fala da Presidência traduzia as mesmas narrativas sobre a
polícia encontradas desde os primeiros anos do Império: 26 Sua proposta de aumento para 80 praças equivale a um aumento real de 10 soldados,
considerando que no efetivo em vigor de 85 policiais estão previstos 70 soldados, sendo os 15
restantes oficiais e graduados. Assim a força passaria a um efetivo total previsto de 95 policiais.
78
Não é preciso esforço para mostrar-vos que é insufficiente a nossa força
policial.
Todos os meus antecessores teèm insistido com os melhores argumentos
pelo augmento do corpo de policia, sem resultado algum, pois tem sido
melhor argumento o dos vossos votos: qual o de falta de recursos
financeiros para serem convenientemente attendidos os variados serviços
da província.
Com certeza a falta de recursos era o argumento usado neste jogo entre a
Presidência e a Assembléia, mas como já se apontou, o que pesava mesmo era a
visão sobre quais setores deveriam ter prioridade na aplicação dos recursos
financeiros, traduzindo assim as visões antagônicas entre aqueles que
representavam os interesses locais e aquele que deveria resguardar os interesses
do governo central.
Do que se expôs, ficou patente que em relação aos escravos a polícia realmente
não fazia nenhuma falta. Na sua ausência, o Estado regulamentou, e os
proprietários arcaram com os custos financeiros das Guerrilhas usadas
principalmente para este fim. Tal arranjo aqui demonstrado apenas corrobora a tese
de Adriana Campos (2003), de que decididamente os senhores eram bastante
competentes para colocar em prática seus poderes privados em relação as suas
propriedades de escravos. A polícia não tinha como função precípua a captura de
escravos porque a sociedade escravista tinha suas formas particulares de tratar a
questão. A manutenção das Guerrilhas foi apenas uma delas.
Também foi possível constatar ao longo dos anos nos relatórios de Presidentes e
Vice-Presidentes um discurso persistente e até cansativo sobre a “índole pacífica
dos habitantes” ou sobre “a paz, a ordem e o socego público” como características
constitutivas dos habitantes da Província do Espírito Santo. Mas, mesmo assim,
foram unânimes em repetir como num coro orquestrado, a necessidade da polícia
naqueles tempos do Império, ressaltando sempre os seus bons trabalhos.
79
Se numa sociedade escravista a polícia não era necessária para manter sob jugo os
escravos. Se o povo era pacífico e vivia em completa ordem, para que então serviria
a polícia?
80
2.2 PRECISA-SE DE POLÍCIA! MAS, PARA QUE POLÍCIA?
Em um dos livros que registraram os assentamentos dos policiais entre os anos de
1840 e 1844 está escrito o seguinte como instrução para o serviço da Guarda
Policial: O fim legal da Guarda Policial é manter o socego e segurança interna da
Província27, como se pode visualizar na figura 7.
Figura 7: Finalidade legal da polícia em 1838 Fonte: Livro de Assentamento de Praças - Fundo de Polícia do APEES
27Artigo 1º da lei Provincial nº 23 de 27 de novembro de 1838. Em tal artigo está expresso também
que a Guarda Policial não poderia ser empregada em outro serviço.
81
Para que se possa compreender o que isto significava aos olhos das pessoas que
naqueles tempos do Império tiveram em suas mãos a decisão sobre o que hoje é
chamada de política pública de segurança mais uma vez se faz necessária uma
análise apurada dos relatórios presidenciais, no geral dirigidos à Assembléia
Legislativa.
Foi possível constatar que a visão de quase toda a totalidade dos Presidentes sobre
a segurança da Província dividia-se em dois enfoques: Tranqüilidade Pública e
Segurança Individual e de Propriedade, mesmo que não estivessem estruturalmente
separados ou destacados nos textos dos relatórios.
No enfoque da Tranqüilidade Pública estavam incluídas as manifestações
relacionadas a não ocorrência de revoltas que traduziam oposição às políticas do
governo central. As revoltas regenciais deixaram claro exemplo de que para a
consolidação do Estado Imperial brasileiro a tarefa de pacificação seria
fundamental. Ela, inclusive, norteará a política de conciliação política dos quase 50
anos do governo de D. Pedro II. Também pesava o fato de que os Presidentes de
Província eram escolhidos e nomeados pelo governo central, o que os deixava
extremamente comprometidos com a tarefa da pacificação. Portanto, logo no início
dos relatórios estava descrita a situação da tranqüilidade pública, que pode ser lida
literalmente como tranqüilidade política da Província.
Assim é que, por exemplo, em 08 de setembro de 1838, pouco mais de 3 anos após
a criação da Guarda de Polícia, o Presidente João Lopes da Silva Coito28, no tópico
demarcado como Tranqüilidade Pública, se manifesta:
28 Há relatórios do Presidente João Lopes da Silva Coito entre os anos de 1838 e 1840. Foi possível
constatar que a estrutura de texto usada por ele, com divisão dos assuntos em tópicos separados, foi
copiada pelos seus sucessores.
82
O Governo Provincial, por ocasião da sedição da Capital da Bahia, tomou a
medida preventiva de remeter armamento e algum cartuxame para a
Commarca de S. Matheus, que, como mais próxima do ponto sublevado,
corria risco, e por isso reclamava a segurança pública que se tomassem
algumas providências tendentes a evitar que os funestos accontecimentos
d’aquella cidade se estendessem e viessem a pertubar a tranqüilidade
d’esta Província. Felizmentes, emquanto ali dominou a façcão
anarchica, suas doutrinas não acharão écho n’esta P rovíncia, que
continuou a gozar de hum perfeito socego, até o tri umpho das armas
da legalidade pôr termo aos males e desgraças que p esavão sobre
aquella rica e interessante cidade. A influencia, que sobre o estado
político do Brasil exercêo a pacificação da Capital da Bahia, he tão notória
e de tanta magnitude, que eu julgo não dever dispensar-me da grata
obrigação de me felicitar convosco, lamentando porêm que a victoria
custasse o sangue que foi forçoso derramar. Praza o Céo que não vejamos
repedidas scenas tão luctuosas!29 (grifo nosso)
Veja-se que a despeito da importância do fato colocado - a proximidade de São
Matheus com a Província vizinha sublevada - não há referência ao envio de nenhum
efetivo policial no relatório apresentado à Assembléia, ao contrário do que era
comum ser relatado quando havia movimentação de praças para reforço em
localidades fora da capital.
Por sua vez, em 21 de outubro de 1885 o Presidente de Província Antonio Joaquim
Rodrigues assim se manifesta em relação a tranqüilidade da Província:
É com justa satisfação que vos annuncio que a tranquillidade publica
nenhuma alteração soffreu, devendo-se este resultado aos sentimentos de
ordem da nossa população e ao respeito que ella consagra às instituições
políticas que fazem o orgulho e a felicidade do nosso paiz.
29 Pela época a sublevação referida trata-se da Sabinada, revolta ocorrida na Bahia nos anos de 1837
e 1838, que traduziu os anseios separatistas da elite e classe média local frente a política de
desprestígio do governo central em relação àquela Província. Chegou a proclamar a República
Baiense, porém fracassou e foi reprimida violentamente.
83
Portanto, como se pode constatar, mesmo tendo transcorrido 47 anos entre um
documento e outro, o enfoque é o mesmo – relato da imperturbável tranqüilidade
pública da Província em relação aos acontecimentos políticos de oposição ao
governo central.
Agrupadas no enfoque da Segurança Individual e de Propriedade encontram-se as
questões referentes às perturbações da ordem no campo das sociabilidades e do
respeito as leis locais. Em alguns relatórios o título podia ser também “Força
Pública”. Neste enfoque estão narrados fatos sobre as contendas entre as pessoas
que habitavam ou passavam pela Província, os crimes cometidos, a vigilância do
serviço de iluminação, a necessidade de acompanhamento policial para a cobrança
de impostos, e ainda, e em muito menor escala, as fugas e a formação de quilombos
pelos escravos. Sobre tais assuntos cotidianos internos sempre aparecem as
manifestações dos Presidentes de Província a respeito da policia e da problemática
que a envolvia, como a escassez de recursos financeiros para sustentá-la e a
dificuldade quanto a permanência dos policiais que ingressavam.
Assim como em relação a tranqüilidade pública, de modo geral eram constantes as
manifestações positivas relativas a segurança individual e de propriedade,
apontando sempre o caráter pacífico e ordeiro do povo capixaba. Vez ou outra,
muito esporadicamente, os Presidentes, como em 1844, se manifestaram
negativamente em relação a segurança individual e de propriedade apontando
algumas estatísticas criminais. Mas, lembremo-nos que 1844 havia sido justamente
o ano em que a polícia fora extinta pela Assembléia. Foi perceptível na leitura dos
relatórios que os Presidentes procuravam apontar aspectos negativos sobre a
segurança quando pressentiam que a tendência da Assembléia era de diminuir o
efetivo da polícia. Entende-se que este foi o caso, pois muito mais do que simples
diminuição de efetivo a decisão dos parlamentares provinciais, em novembro do
mesmo ano, foi de extinguir a polícia, o que também foi registrado em livro da
polícia, conforme figura 8.
84
Figura 8: Registro do comandante sobre a extinção da polícia Fonte: Livro de Assentamento de Praças - Fundo de Polícia do APEES
No geral os posicionamentos dos Presidentes seguiam o padrão do relato do
Presidente Sebastião Machado Nunes, feito em 25 de maio de 1855 por ocasião da
abertura da sessão ordinária da Assembléia Legislativa:
A província continua escoimada d’esses factos criminosos, premeditados e
revestidos de circumustancias extraordinárias que attestão contra a
moralidade da população e denuncião a falta de segurança individual.
Os poucos crimes commettidos na provincia durante o anno proximo findo
forão occasionados por conflictos de momento, não havendo algum que,
por seo carater especial de gravidade, mereça ser aqui relatado.
85
Por que então os Presidentes de Províncias eram tão insistentes em reclamar a
escassez ou mesmo a falta de uma força pública tipicamente provincial por ocasião
de suas falas às Assembléias Legislativas, como na seqüência do relato acima?
“Escassos são, entretanto os meios de que a policia dispõe n’esta provincia, [ ...]”.
Este não foi um posicionamento ocasional ou pontual, ele foi recorrente nos
relatórios de diferentes Presidentes desde a criação da polícia em 1835 até o final
do período Imperial, como já se apontou, restando aqui explicar as suas motivações
que foram várias.
A escassez do conjunto de tropas das forças mantidas pelo governo central - a
Guarda Nacional e as forças de 1ª linha era uma realidade. Os Presidentes de
Províncias foram unânimes e repetitivos em denunciar as dificuldades de
recrutamento para elas. Ambas tinham destinações especificas que não eram de
patrulhamento e auxílio à justiça, muito embora nem sempre isto fosse respeitado. A
Guarda Nacional como força paramilitar foi instituída em 1831 com o claro objetivo
de servir como mecanismo de força do governo imperial em função da instabilidade
política promovida especialmente pelas revoltas regenciais. Por sua vez as forças de
1ª linha, legalmente deveriam ser destinadas ao serviço militar de guarnição das
estradas e da capital.
O Presidente José Bonifácio Nascentes d’Azambuja em 24 de maio de 1852, por
exemplo, relata o medo da população masculina em ser recrutada, uma vez que
poderiam haver deslocamentos para lugares distantes no Império. Sempre que
necessário as tropas de 1ª Linha eram retiradas e enviadas para outras Províncias
com problemas de sublevação internas ou guerras com outras nações, como bem
explica tal Presidente:
Em bastantes embaraços me tenho achado para accudir às precisões do
serviço com uma força tão limitada, e maiores forão ainda aquelles com
que lutei no principio de minha administração, pelo que foi necessário
lançar mão das guardas nacionaes, que pouco ou nenhum serviço ainda
hoje podem prestar por não estar, e nem nunca ter sido organizada, como
sabeis, e requisitar ao Governo Imperial algum auxilio de força do exercito,
86
que me foi prestado, mas por pouco tempo em consequencia dos
acontecimentos do Sul onde estava empenhada toda a força disponivel.30
Também não podiam dispor delas como bem entendiam uma vez que custeadas
pelo governo central, sua destinação também era por ele regulada. Pela lei Imperial
nº 10 de 3 de outubro de 1834 em seu Art. 5º, § 4º apenas nas situações
extraordinárias e indispensáveis poderiam os Presidentes remover os Guardas
Nacionais para fora dos seus municípios.
Há de se considerar também a própria organização do Estado que se configurava a
medida que o governo imperial ia se fortalecendo, apesar das ambigüidades que o
sustentaram, como bem apontou José Murilo de Carvalho (2003). A verdade é que
realmente os chefes do Executivo provincial ficavam de mãos e pés atados quando
o assunto era a necessidade de força para fazer valer os poderes do Estado.
A despeito da possibilidade de sob o ponto de vista da estatística criminal31 os
membros da Assembléia pudessem não considerar a polícia uma instituição
necessária, o fato é que, principalmente naqueles tempos iniciais de experiência
administrativa autônoma, é compreensível que aqueles, políticos locais, vissem com
um olhar atravessado a concentração de força armada nas mãos dos Presidentes,
geralmente forasteiros que ocupavam o cargo por curto período, e assim, agissem
constantemente no sentido de diminuir a polícia provincial. Ao que parece havia um
jogo político expresso pelo poder. 30 Infere-se que “os acontecimentos do sul” a que é feita referência se trata das Guerras Platinas em
que o Império brasileiro participou 31 É preciso cuidado com a análise quantitativa das estatísticas criminais da época. Em relação aos
números atuais realmente as estatísticas do século XIX apresentam números ínfimos, principalmente
no caso do Espírito Santo como aponta Campos (2007). A necessidade da polícia em uma
sociedade não deve ser vista apenas sob o enfoque quantitativo da ocorrência ou não do crime, mas
também do nível de sensação de segurança que as pessoas apresentam e das tarefas que são
destinadas a tal instituição. Não se tem conhecimento sobre um estudo nesse sentido relativo ao
recorte temporal da presente pesquisa. No capítulo 8 de sua obra A Síndrome da Rainha Vermelha,
Marcos Rolim apresenta considerações e alertas muito interessantes a respeito das Estatísticas
Criminais.
87
Exemplo disto está na fala do Presidente de Província José Joaquim Machado
Oliveira dirigida á Assembléia em 1º de abril de 1841, na tentativa de convencer os
parlamentares de que seus reclames em favor da policia eram bem intencionados:
Deveis, Senhores, convencer-vos que o meu único fito, na melhor
organização da Companhia, he a manutenção da ordem, socego público na
Capital, e onde quer que sejão ameaçados, com o já o tenho feito, e não
por motivos de apparato, ou da própria segurança, porque tenho por
principio indefectível, que nada ha mais que atenue a existência moral de
hum Funcionário publico, que a rodear-se da força bruta.
Vê-se que o Presidente tinha a real compreensão do poder que o controle sobre o
aparato policial lhe conferia e do temor que tal situação incutia nos parlamentares da
Assembléia, por isso procurou deixar bem claro quais eram suas intenções em
solicitar melhorias para a polícia.
A partir de 1854 encontramos constantes manifestações de diferentes Chefes de
Polícia sobre a necessidade da existência de praças policiais como condição para a
realização do trabalho dos delegados, como se vê abaixo:
[...] nenhum cidadão se prestará bem, apezar dos seus melhores desejos,
a desempenhar patrioticamente o cargo de Delegado ou de Subdelegado
sem ter uma praça às suas ordens, de que disponha para repressão dos
crimes e prisão dos delinqüentes.
Cumpre pois obviar a todos estes incovenientes, que actualmente se dão e
que motivão as exonerações pedidas daquelles cargos, instancias por
ellas, e por ultimo o abandono dos cargos com acephalia de taes
authoridades.
Tais manifestações deviam ser antigas e encontraram eco nos membros
Assembléia, pois a lei nº 9 de 24 de julho de 1854 definiu que a subordinação das
88
praças policiais deveria ser exclusivamente às respectivas autoridades (Chefe de
Polícia na capital, delegados e subdelegados no interior).
Ao que tudo indica a lei não foi cumprida, tanto é que em 23 de Maio de 1856 o
Presidente Jose Mauricio Fernandes Pereira de Barros por ocasião da abertura da
Assembléia reclamava das intenções dos deputados em tentar tirar-lhe das mãos a
subordinação da polícia através de lei que considerava inconstitucional. O referido
Presidente argumentou que tal disposição era “inexeqüível” e “offensiva das leis
gerais em vigor”, face o art. 11, § 2º do Ato Adicional de 1834 e o art. 5º, § 4º, da lei
nº 40 de 3 de outubro de 183432. Tais legislações imperiais já foram apresentadas, e,
respectivamente, definiam a Assembléia como competente para fixar o efetivo da
polícia e a Presidência para decidir sobre seu emprego. O certo é que a citada lei
que tentou tirar do controle da Presidência o comando da força policial não foi
levada a termo. O Chefe do Executivo não abria mão do controle direto sobre tal
força pública. Mas isto não é coisa do passado. Ainda hoje o Chefe do Executivo é o
Comandante maior da Polícia Militar. Tem direito a honras militares e é de sua
prerrogativa a nomeação do Comandante Geral.
Observa-se aqui claramente mais uma vez a disputa de competência entre os
poderes Executivo e Legislativo da Província no que se refere a uma força pública
armada – a polícia. A despeito das necessidades reais dos delegados, os deputados
com certeza sabiam que a lei sancionada era inconstitucional.
Outro argumento reside no fato de que diante do modelo de organização de Estado
instituído pelo governo Imperial no que dizia respeito a polícia, efetivamente o cargo
de Presidente de Província implicava em atender demandas que lhes eram enviadas
pelas diferentes autoridades públicas, em especial da Justiça e da Polícia Judiciária,
hoje identificada como Polícia Civil. A pressão era grande e em 1848 o Presidente
Luiz Pedreira do Couto Ferraz nessa direção assim aponta:
32 Na verdade o texto do Relatório identifica equivocadamente esta legislação como sendo um
decreto de 3 de outubro de 1834. Optou-se em indicar a legislação correta para não confundir o leitor.
89
Continúo a lutar com as difficuldades provenientes da falta de uma força de
confiança, convenientemente disciplinada, e que auxilie a açção da justiça
na repressão de quaesquer attentados, e na captura dos criminosos.
Em 1850, outro governante, o Presidente Filippe José Pereira Leal também assim se
manifesta:
Todos os dias recebo reclamações das authoridade locaes, solicitando
destacamentos , e vejo-me em posição afflictiva, quando tenho de resolver
á cerca de taes reclamações, porque achando-as justas, não posso com
tudo satisfazel-as á vista da falta de força disponível, falta, que acoroçoa
muitos abusos, que por ahi existem enraizados, e são sobre modo nocivos
á prosperidade da província, e á segurança de seus habitantes, e para
acabal-as sobra vontade á presidência. Hei por vezes levado ao
conhecimento do governo este estado pouco satisfatório, e a necessidade
de augmentar-se a forças de linha aqui existente, ainda agora aguardo o
resultado desas participações.33 (grifo nosso)
A utilização da polícia como força destacada está registrada em livros designados
como Mapas Diários, o que atesta a fala dos Presidentes nesse sentido. Em
setembro de 1840, por exemplo, existiam seis praças policiais destacadas em São
Matheus, e quatorze na Vila de Itapemirim, conforme se vê na figura 9.
33 Destacamentos constituem-se em pequenos efetivos militares que se separam de uma unidade
para prestarem serviços fora de sua sede. A Polícia Militar hoje é dividida em Batalhões, que por sua
vez são subdivididos em Companhias, que podem ainda ter efetivo destacado em algum município ou
localidade.
90
Figura 9: Distribuição do efetivo em 1840 Fonte: Livro de Mappas Diários - Fundo de Polícia do APEES Os registros diários indicam muitas coisas interessantes. Uma delas é como a polícia
foi consolidando sua existência a partir de sua expansão na Província por meio dos
destacamentos. Vê-se que na figura 10 que em 1942 a polícia já cobria um número
maior de localidades, incluindo São Matheus, Itapemirim, Benevente, Vila Velha e
outra que não se consegue identificar.
91
Figura 10: Distribuição do efetivo em 1842 Fonte: Livro de Mappas Diários - Fundo de Polícia do APEES
.
Naqueles tempos a polícia judiciária no Espírito Santo não possuía estrutura de
pessoal para as atividades de investigação, e, principalmente de captura. Este era
um fato concreto. Requisitava os serviços das praças policiais. Parece que a
situação não devia ser muito diferente em outras Províncias, já que em 1850 havia
apenas “32 pedestres, ou patrulheiros civis, subordinados à Secretaria da Polícia na
capital”, conforme Holloway (1997, p. 159). Certamente as demandas da capital
eram bem maiores do que as das capitais das Províncias, e tal efetivo insuficiente, o
que deveria levar à requisição da força policial militar no Rio de Janeiro. No Espírito
Santo a freqüente utilização da polícia aqui tratada pelo Chefe de Polícia na capital e
delegados e subdelegados no interior a caracterizam como uma força de
intervenção.
92
A movimentação de forasteiros na Capital e nas principais cidades portuárias como
era o caso de São Matheus era considerável, o que certamente interferia na vida
cotidiana das cidades. Consta nas estatísticas dos Chefes de Polícia a ocorrência de
crimes, até de homicídio, praticados por marinheiros que aportavam na Província,
além das transgressões relativas ao convívio social, como embriaguez, brigas,
adultério e algazarra.
Não se pode esquecer também que naqueles tempos as festas religiosas
configuravam-se como oportunidade de lazer e convivência social; eram grandes
acontecimentos nas cidades. Como todo evento onde se aglomera grande número
de pessoas, tais festas estavam permeadas de acontecimentos que exigiam
intervenções para a resolução das contendas entre as pessoas, o que em alguns
casos implicava a ação da polícia.
Há que se considerar também a posição fronteiriça da Província do Espírito Santo
com a capital do Império e com as Províncias da Bahia e Minas Gerais. Nesse
sentido se pode então compreender o desabafo de um Presidente em 1881:
Não é preciso que me extenda em considerações a respeito da
necessidade de policia para que haja ordem na sociedade e garantia dos
direitos individuais, nem que procure provar a impossibilidade de existir
policia sem força, e a excellencia do serviço da milícia ou de um corpo
militarisado sobre o da Guarda Nacional.
E também do Chefe de Polícia no mesmo ano, segundo ele apenas repetindo o que
já haviam dito seus antecessores:
Em uma província que conta sete termos com vinte dous districtos em uma
extensão de mais de setenta leguas de costa sobre uma largura de mais de
trinta, por onde se espalha uma população de cincoenta mil almas não
pode ser policiada pela diminutissima força que nella há.
93
Na capital da Província do Espírito Santo, além de tudo o exposto, conforme consta
nos Mapas Diários, a polícia no cotidiano da capital realizava rondas em patrulhas,
especialmente durante a noite, fiscalizava a iluminação pública, acompanhava o
cobrador de impostos que era designado como “arrematante do dízimo”, fazia a
guarda da cadeia e dos prédios públicos, servia de ordenança aos Presidentes da
Província, ao Comandante da Polícia, nos períodos em que existiu tal cargo, e a
Juízes, costurava o fardamento usado, participava da capturas de criminosos, e em
algumas ocasiões, também da captura de escravos fugidos, e fazia diligências a
pedido dos delegados ou dos Chefes de Polícia.
Assim, definitivamente se pode dizer que aos olhos da administração da Província,
cujos encargos eram de competência do Executivo, a polícia era necessária. A
ordem escravista comportava também homens e mulheres livres, comuns ou não
sob o enfoque do poder político e econômico, que foram em grande medida o alvo
de atuação da nascente polícia que hoje se configura como a Polícia Militar.
94
CAPÍTULO 3
QUE POLÍCIA ERA ESSA? O COTIDIANO POLICIAL EM UMA PROVÍNCIA DO IMPÉRIO
Um dos requisitos indispensáveis para a existência e sobrevivência de qualquer
instituição é o conjunto de pessoas para fazer cumprir a missão que possa justificar
sua criação. Nos tempos do Império esta era uma premissa cem por cento
verdadeira, considerando a não existência dos recursos tecnológicos disponíveis
atualmente e que em alguns casos podem em parte substituir o trabalho humano.
As dificuldades para se recrutar policiais, e ainda mais, fazê-los permanecer em tal
ofício, não foi tarefa fácil para os seus Comandantes, Chefes de Polícia e
Presidentes de Províncias, que como se viu, tanto reclamaram e persistiram sobre a
necessidade da polícia.
Diante de um quadro de verdadeira repugnância ao serviço militar, assim
considerado também o ofício policial naqueles tempos, o que foi narrado em
praticamente quase todos os relatórios dos Presidentes e Chefes de Polícia,
algumas perguntas não se calam. Quem eram essas pessoas que a despeito de
todas as dificuldades e adversidades que deveriam cercar o exercício de tal ofício se
tornaram policiais? Quais eram as suas origens sociais, de onde vinham, quantos
anos tinham, como entraram para a polícia, quantos anos permaneceram. Quais
eram os seus comportamentos no exercício do ofício policial?
As respostas para estas perguntas foram encontradas nos Livros de Registros de
Assentamentos de Praças e Oficiais disponíveis no Fundo de Polícia do Arquivo
Público do Estado do Espírito Santo. Tais fontes foram meticulosamente
manuseadas e a partir delas se pode quantificar e montar tabelas e gráficos
demonstrativos das informações que possibilitaram a análise que aqui está sendo
apresentada sobre tais pessoas e o exercício de seu ofício como policiais.
95
Infelizmente foi encontrada lacuna temporal na fonte citada. Ela corresponde ao
período entre o final de 1844 e o ano de 1868 Diante da constatação de algumas
diferenças interessantes que posteriormente serão apresentadas, optou-se em
dividir os dados em duas fases conforme foram encontrados. A primeira trata dos
anos iniciais da instituição da polícia em 1835 e vai até o ano de 1844, quando foi
extinta. A segunda refere-se aos registros entre os anos de 1868 e 1889, período de
maior consolidação da força policial, e por isso de maior disponibilidade de fontes
que registraram a vida funcional das pessoas que a compunham. Através dos
relatórios de Presidentes da Província do Espírito Santo concluiu-se que os anos de
ausência de fontes correspondem exatamente aos anos mais conturbados da
instituição durante o Império. Neles foram mais constantes as divergências entre a
Presidência e a Assembléia sobre a necessidade da existência da instituição policial,
que como é sabido trata-se da Polícia Militar. O pressuposto é de que tal situação
deve ter contribuído para o não registro das informações, caso o motivo não tenha
sido o extravio, o que não é incomum ocorrer. Mas do que se depreende nos relatos
da Presidência nem sempre o zelo para com os registros era freqüente, fazendo
com que a partir da década de 1870 vez por outra fossem constituídas comissões
para averiguação das escriturações da polícia.
3.1. O PERFIL DE UMA POLÍCIA DO IMPÉRIO
João Ferreira, filho de Antônio Ferreira, de cor parda, natural de Vitória, solteiro, sem
profissão declarada, em 1837, então com 20 anos, ingressou na polícia ao que
parece de forma obrigatória, pois consta em seus assentamentos a palavra
“recrutado”, e que serviu por 5 anos, tempo obrigatório de seu engajamento, sem
nenhuma punição. Ficou internado em hospital por 2 vezes. Em 1840 foi transferido
para Itapemirim, em 1841 para São Mateus e em 1842 para Guarapari. Esta era
uma pessoa comum que se tornou um policial comum na primeira metade do século
XIX, no alvorecer institucional da Polícia Militar. São as vidas de pessoas como João
Ferreira que aqui serão retratadas. Cada uma delas, com suas histórias individuais,
ajudaram a consolidar e compor o perfil policial de seu tempo.
96
Para a composição do perfil do conjunto dos policiais foram agrupados os itens
filiação, naturalidade, idade, cor, estado civil e ofício anterior, registrados no século
XIX conforme figura 11.
Figura 11: Registros Funcionais de Policiais do Século XIX Fonte: Livro de Mappas Diários - Fundo de Polícia do APEES
Pode-se constatar nas tabelas 2 e 3 que era de praxe se registrar apenas a filiação
paterna, porém quando o pai era escravo seu nome não era registrado e se fazia
constar “era escravo”. O número de pais escravos foi mais significativo na primeira
fase e tal categoria já é um indicativo de que a origem social dos policiais que
compuseram a polícia em seus anos de consolidação compreendia as pessoas das
camadas mais baixas da sociedade.
97
O percentual de país incógnitos foi considerável nas duas fases da polícia. Tal
informação nos remete à possibilidade de alguns serem filhos de escravas com
homens brancos que não tinham seus nomes nos registros, já que se está tratando
de uma sociedade escravista. Também pode se tratar de filhos de mães solteiras.
Quanto a freqüência de “filho de outro” não foi encontrado esclarecimento, porém a
possibilidade é de que se trate de filhos tidos fora do casamento.
Tabela 2 - Filiação dos policiais que assentaram praça no período 1835-1844 Fonte: Livros de Assentamento de Praças - APEES
Tabela 3 - Filiação dos policiais que assentaram praça no período 1868-1889
Filiação Freqüência %
Pais Incógnitos
121
24,3
Pai Escravo
2
0,4
Nome do Pai
335
67,4
Filho de Outro
4
0,8
Não Consta
35
7,0
Total
497
100,0
Fonte: Livros de Assentamento de Praças - APEES
Filiação Freqüência %
Pais Incógnitos
48
34,3
Pai Escravo
6
4,3
Nome do Pai
80
57,1
Filho de Outro
5
3,6
Não Consta
1
0,7
Total
140
100,0
98
Quanto a naturalidade dos policiais pode-se ver nas tabelas 4 e 6 que há diferença
significativa nas duas fases da polícia. Até 1844 foi constatado que a maior parte
dos policiais era natural da própria Província do Espírito Santo num percentual de
94,4%. O restante era originário apenas de outras duas Províncias, da Bahia e do
Rio de Janeiro. Já na segunda fase, o percentual de policiais da própria Província
baixou para 60,2%, havendo grande diversificação na naturalização. Isto demonstra
o crescente processo de mobilidade das pessoas, especialmente, a partir da
segunda do século XIX, como apontado por Mattos (1998). Dos 39,8% policiais
oriundos de outras Províncias, a maior parte era do Nordeste, exatamente 23,1%,
com grande destaque para a Província do Ceará. Isto se explica pela grande seca
dos anos de 1877 a 1880 naquela região. Segundo Almada (1984, p. 185) a seca
“devastou a vida e a propriedade do Nordeste [e] fez aportar ao Espírito Santo
retirantes da Paraíba, Rio Grande Norte e, especialmente, do Ceará”, Alguns outros
policiais eram originários da Espanha, Portugal e Itália, o que demonstra que era
permitido o ingresso de estrangeiros, o que não era de se estranhar diante das
deficiências do recrutamento que marcaram a instituição durante o Império.
Dentro da própria Província do Espírito Santo só foi possível identificar as
localidades na primeira fase. Conforme se vê na tabela 5, a grande maioria, 70,4%,
era natural da capital da Província. Isto se explica pelo fato de que nesse período o
recrutamento era centralizado na capital, onde a princípio deveriam estar lotados os
policiais, que quando destacados deveriam ir para qualquer localidade da Província.
Constam inclusive reclamações nos relatórios de Presidentes de que tal situação
trazia dificuldades para se completar o efetivo previsto em lei, uma vez que os
policiais preferiam trabalhar em suas localidades de origem.
99
Tabela 4 - Naturalidade dos policiais que assentaram praça no período 1835-1844
Províncias Freqüência %
Espírito Santo 132 94,3
Bahia 4 2,8
Rio de Janeiro 3 2,1
Ilegível 1 0,7
Total 140 100,0
Fonte: Livros de Assentamento de Praça - APEES
Tabela 5 - Localidade de origem dos policiais naturais da Província do Espírito Santo que assentaram praça no período 1835-1844
Fonte: Livros de Assentamento de Praças - APEES
Localidades Freqüência %
Linhares
3
2,3
São Mateus
4
3,0
Victória
93
70,4
Serra
14
10,7
Espírito. Santo (Vila Velha)
6
4,5
Nova Almeida
3
2,3
Guarapary
4
3,0
Itapemirim
2
1,5
Não Consta
03
2,3
Total
132
100,0
100
Tabela 6 - Naturalidade dos policiais que assentaram praça no período 1868-1889
Províncias Freqüência %
Espírito Santo
299
60,2
Rio de Janeiro
13
2,6
Minas Gerais
39
7,8
São Paulo
2
0,4
Rio Grande do Sul
3
0,6
Bahia
21
4,2
Ceará
79
15,9
Rio Grande do Norte
1
0,2
Pernambuco
5
1,0
Maranhão
1
0,2
Paraíba
1
0,2
Sergipe
4
0,8
Piauí
1
0,2
Paraíba do Norte
1
0,2
Alagoas
1
0,2
Espanha
2
0,4
Portugal
1
0,2
Itália
1
0,2
Não Consta
22
4,4
Total
497
100,0
Fonte: Livros de Assentamento de Praças - APEES
Em relação a idade o pressuposto é de que o seu registro corresponde ao do ano
do assentamento, como acontece ainda hoje. Pode-se ver nas tabelas 7 que na
primeira fase a faixa etária dos policiais concentrava-se entre 18 e 25 anos,
compreendendo 91,4% do efetivo total, e não houve recrutamento de pessoas
menores de 18 anos. Já na segunda fase, conforme tabela 8, 74,4% dos policiais
ingressaram entre os 18 e 29 anos. Tal dado não é se de se estranhar uma vez que
como acontece ainda hoje o ofício policial requer higidez física, o que ocorre mais na
juventude.
101
O destaque fica por conta do recrutamento de jovens entre 14 e17 anos na segunda
fase, num total de 8,4%. Certamente tal fato se explica pelas dificuldades no
recrutamento e pela necessidade de reorganização da polícia que marcou os anos
desta fase. Quanto aos policiais com mais idade sustenta-se que se tratava de
policiais que já exerciam ofícios de interesse da administração diante das
deficiências institucionais. O Art. 18 do Regulamento de 1º de julho de 1835, por
exemplo, autorizava o comandante a dispensar do serviço de patrulhamento
soldados alfaiates e capoteiros para serem empregados na confecção de
fardamento.
Tabela 7 – Idade dos policiais que assentaram praça no período 1835-1844
Idade Freqüência %
18 – 21
102
72,8
22 – 25
26
18,6
26 – 29
06
4,3
30 – 33
02
1,4
34 – 37
02
1,4
38 – 42
02
1,4
Total
140
100,0
Fonte: Livros de Assentamento de Praças - APEES
102
Tabela 8 - Idade dos policiais que assentaram praça no período 1868-1889
Idade Freqüência %
14 – 17
42
8,4
18 – 21
173
34,8
22 – 25
129
25,9
26 – 29
68
13,7
30 – 33
28
5,6
34 – 37
11
2,2
38 – 42
10
2,0
43 – 46
00
00
47 – 50
00
00
51 – 54
01
00
Não Consta
34
6,8
Total
497
100,0
Fonte: Livros de Assentamento de Praças - APEES Os dados do recenseamento de 1872 podem nos ajudar a explicar algumas
questões levantadas no perfil dos policiais. Uma delas diz respeito a cor. Havia na
Província do Espírito Santo 82.137 habitantes. Conforme se pode ver na tabela 9, os
responsáveis pelo recenseamento categorizaram a população em relação a raça34,
considerando-as brancas, pardas, pretas e caboclas. Como no recorte temporal da
presente pesquisa a escravidão era uma realidade significativa, a população foi
também discriminada em livres que correspondiam a 72,4% e em escravos que
representavam 27,6% da população geral. Os pardos e pretos constituíam 60,9%
da população, sendo que desses, 33,3% eram livres, ou seja, percentual muito
próximo ao da população branca que era de 32,4%.
Vê-se que conforme as tabelas 10 e 11 este quadro se reproduzia na polícia. Entre
os anos de 1835 e 1844 o percentual de policiais brancos, 25,7%, foi
34 A palavra raça está sendo usada apenas em função do critério usado e expresso no
recenseamento de 1872. Não entraremos no mérito da acalorada discussão em torno de seu
significado.
103
consideravelmente maior do que os 9,1% do período entre 1868 e 1889. A
diminuição do percentual de brancos aponta para o processo de miscigenação
ocorrido na sociedade brasileira, mas também para o fato de que uma parcela
considerável de pretos encontrava-se na condição de escravos, como se vê na
tabela 9. Provavelmente na primeira metade do século XIX isto tenha sido mais
característico, por isto não encontramos o registro de pretos entre 1835 e 1844.
Digno de destaque é o alto índice do não registro da cor dos policiais no segundo
período - 40,6%, conforme se vê na tabela 11. Na certa este fato também traduz o
crescente processo de miscigenação que caracterizou fortemente a sociedade
brasileira. Porém as observações de Mattos (1998) em sua obra de título muito
sugestivo – Das cores do silêncio – podem nos ajudar a melhor entender esse alto
índice de não registro da cor. Ao pesquisar processos criminais no século XIX em
algumas localidades do Sudeste detectou que
Até meados do século, toda e qualquer pessoa, arrolada como testemunha
nos processos cíveis ou criminais considerados, definia-se entre outras
coisas por sua ‘cor’. A cor negra aparecia virtualmente como sinônimo de
escravo ou liberto (preto forro), bem como os pardos apareciam geralmente
duplamente qualificados como pardos cativos, forros ou livres. Apenas
quando qualificava forros e escravos, o termo ‘pardo’ reduzia-se ao sentido
mulato ou mestiço que, freqüentemente, lhe é atribuído. Para os homens
livres, ele tomava uma acepção muito mais geral de ‘não branco’. Ser
classificado como ‘branco’ era, portanto, por si só, indicador da condição de
liberdade (MATTOS, 1998, p. 96).
Mas, conforme ainda aponta Mattos (1998, p. 94-99) as transformações ocorridas na
segunda metade do século XIX que se traduziram, dentre outras, no crescimento
populacional de “negros e mestiços livres” alterou o padrão cultural anterior. Para se
ter a dimensão da questão ressalta o percentual de 43% de pessoas negras e
mestiças em todo o império indicado no recenseamento de 1872. A autora também
aponta o processo de compartilhamento de atividades econômicas, tais como
lavradores, carpinteiros, jornaleiros, entre brancos e negros/mestiços livres e mesmo
104
escravos. Segundo a autora houve uma perda do sentido da “identidade sócio-
profissional dos homens livres, construída a partir da expressão ‘viver de’ em
oposição aos escravos que ‘serviam’ a alguém”. A cor foi progressivamente
perdendo importância, ou melhor, a cor ‘branca’ se viu esvaziada de significado
como “designador isolado de status”. Nesse contexto houve uma verdadeira
generalização do “sumiço do registro de cor” nas fontes estudadas pela autora. No
Espírito Santo o percentual de pardos era de 33,3%, maior do que os 32,4% de
brancos, conforme se vê na tabela 9. Assim se pode efetivamente compreender os
40,6% de não registro da cor dos policiais no período entre 1868 e 1889.
Definitivamente pode-se afirmar que o ofício policial na Província do Espírito Santo
era destinado aos homens jovens e livres, majoritariamente não brancos,
pertencentes às camadas econômica e socialmente menos privilegiadas. Tal fato
não era específico da província capixaba. Holloway (1997, p. 162) descreve que na
polícia do Rio de Janeiro, então Capital do Império, entre os anos de 1842 e 1865
“os praças continuaram a ser recrutados das camadas inferiores da população livre
[...]”.
Tabela 9 – Distribuição da população da Província do Espírito Santo por cor em 1872
Cor Freqüência de livres
%
Freqüência de escravos
%
Freqüência
total
%
Branca
26.582
32,4
----
----
26.582
32,4
Parda
20.529
25,0
6.852
8,4
27.381
33,3
Preta
6.838
8,3
15.807
19,2
22.645
27,6
Cabocla
5.529
6,7
----
----
5.529
6,7
Total
59.478
72,4
22.659
27,6
82.137
100,0
Fonte: Recenseamento de 1872
105
Tabela 10 - Cor dos policiais que assentaram praça no período 1835-1844
Fonte: Livros de Assentamento de Praças - APEES
Tabela 11 - Cor dos policiais que assentaram praça no período 1868-1889
Cor Freqüência %
Branca
45
9,1
Parda
164
33,0
Parda Escura
5
1,0
Parda Clara
2
0,4
Quase Preta
1
0,2
Preta
32
6,4 Acaboclado
19
3,8
Morena
4
0,8
Fula
23
4,6
Não Consta
202
40,6
Total
497
100,0
Fonte: Livros de Assentamento de Praças - APEES
Cor Freqüência %
Branca
36
25,7
Parda
96
68,6
Parda Escura
4
2,9
Parda Claro
1
0,7
Parda e Bexigoso
3
2,1
Total
140
100,0
106
A grande maioria dos policiais era solteira como se comprova nas tabelas 12 e 13.
Na segunda fase o percentual de casado e viúvo aumentou, o que pode ser
justificado pelo também aumento do ingresso de policiais com mais de 25 anos. O
percentual de policiais com tal idade saltou de 8,5% na primeira fase para 23,5% na
segunda, conforme tabelas 7 e 8.
Tabela 12 - Estado Civil dos policiais que assentaram praça no período 1835-1844
Estado Civil Frequência %
Solteiro
135
96,4
Casado
4
2,9
Viúvo
1
0,7
Total
140
100,0
Fonte: Livros de Assentamento de Praças - APEES
Tabela 13 - Estado Civil dos policiais que assentaram praça no período 1868-1889
Estado Civil Freqüência %
Solteiro
387
77,9
Casado
67
13,5
Viúvo
11
2,2
Não Consta
32
6,4
Total
497
100,0
Fonte: Livros de Assentamento de Praças - APEES
Na categoria ofício anterior é encontrada outra grande diferença entre os dados das
duas fases da polícia provincial. Como se vê na tabela 14, referente a primeira fase,
o rol de ofícios não é extenso, sendo o maior percentual o de alfaiate com 17,1%.
107
Não se tem dúvida de que tal dado não é aleatório. Havia necessidade de tais
profissionais para se confeccionar o fardamento, conforme já apontado,
principalmente nos anos iniciais da polícia.
Chama a atenção ainda nesta primeira fase o grande percentual de ausência de
registro dos ofícios anteriores dos policiais que foi de 63,6%. Tal dado contrasta com
o da segunda fase, que conforme a tabela 15 foi de apenas 7,2%, muito embora se
tenha separadamente o registro de mais 7,2% de nenhum ofício. Sustenta-se que
uma das explicações para tal redução é de que como também já se demonstrou nas
tabelas 7 e 8, a faixa etária dos policiais da primeira fase era menor do que a dos
policiais da segunda, sendo natural, portanto, que os mais jovens ainda não
tivessem ofício a declarar. Outra possibilidade de explicação pode estar na ausência
do registro de lavrador. Acredita-se que por algum motivo, que não foi ainda possível
desvendar, deixou-se de registrar a profissão de lavrador. Muito embora a tabela 5
aponte o percentual de 70,4% de policiais naturais da cidade de Victoria, esta não
tinha um padrão urbano que justificasse a ausência de lavradores. A Província do
Espírito Santo, na primeira metade do século XIX, tinha na agricultura sua principal
atividade econômica.
Outro destaque fica por conta do grande percentual, 59,2%, de pessoas que teriam
abandonado o ofício de lavrador para se tornarem policiais na segunda fase,
conforme tabela 15. Isto muito nos intriga, já que segundo Gabriel Bittencourt (2006)
a segunda metade do século XIX foi especialmente próspera para a agricultura da
Província. O que teria impulsionado as pessoas a deixarem de ser lavradores para
se tornarem policiais? Como já se viu a seca no Nordeste trouxe vários cearenses
para a Província; certamente a grande maioria era constituída de lavradores que não
foram na sua totalidade absorvidos no trabalho agrícola. Alguns, como já havia
constatado Almada (1984, p. 185) “assentaram praça no Exército, na Polícia, ou
Companhia de Menores”. Mas a migração nordestina não é suficiente para justificar
um percentual tão significativo, quase 60%, de lavradores que se tornaram policiais.
Nem tampouco a escassez de mercado de trabalho para os trabalhadores livres, que
se pode inferir da argumentação de Almada (1984, p. 185) ao sustentar que os
fazendeiros da Província do Espírito Santo somente sentiram “necessidade real de
trabalho livre” após 1885, ou seja, às portas da abolição. Os lavradores que se
108
tornaram policiais eram na sua maioria pobres e não brancos. Muito embora neste
período o recrutamento por lei devesse ser apenas voluntário, alguns, muito
provavelmente, foram literalmente obrigados a entrar para a polícia pelo
recrutamento forçado, seja quando era isto permitido legalmente ou não, outros
foram impelidos a escolher o ofício de policial pelas necessidades materiais de suas
existências, mas estes certamente o fizeram por opção de vida, pois deveriam existir
outras possibilidades para enfrentar os dilemas de seu tempo.
Mas para melhor entendermos a questão do número de policiais que haviam sido
lavradores, nos cabe mais uma vez recorrer ao recenseamento de 1872 que
apontava uma população geral do império na ordem de 9.930.478 habitantes. Na
classificação por profissão consta que desses, 3.037.446 eram lavradores, portanto,
um percentual de 30,6%. Em contrapartida, do total de 82.137 habitantes da
Província do Espírito Santo, 31.671 foram identificados como lavradores, ou seja,
38,5%. Há certa correspondência quanto aos percentuais. Achamos que numa
sociedade agrária como era ainda o Brasil no século XIX, não nos parece estranho o
alto número do ofício de lavradores indicados em diferentes fontes, por mais que
possa ter havido uma generalização na identificação profissional das pessoas como
lavradores.
109
Tabela 14 – Ofício anterior dos policiais que assentaram praça no período 1835-1844
Ofício Anterior
Freqüência
%
Alfaiate
24
17,1
Carpinteiro
9
6,4
Ferreiro
4
2,9
Ourives
4
2,9
Pedreiro
1
0,7
Sapateiro
4
2,9
Tecelão
2
1,4
Latoeiro
1
0,7
Marceneiro
2
1,4
Não Consta
89
63,6
Total
140
100,0
Fonte: Livros de Assentamento de Praças - APEES
110
Tabela 15 – Ofício anterior dos policiais que assentaram praça no período 1868-1889
Fonte: Livros de Assentamento de Praças - APEES
Ofício Anterior
Freqüência
%
Lavrador
294
59,2
Alfaiate
13
2,6
Carpinteiro
11
2,2
Ferreiro
1
0,2
Pedreiro
12
2,4
Sapateiro
3
0,6
Marceneiro
1
0,2
Lapidário
1
0,2
Tropeiro
5
1,0
Marinheiro
3
0,6
Padeiro
9
1,8
Agencias
21
4,2
Marítimo
12
2,4
Funileiro
6
1,2
Caixeiro
3
0,6
Pescador
6
1,2
Maquinista
1
0,2
Fogueteiro
2
0,4
Cigarreiro
3
0,6
Caseiro
1
0,2
Tipógrafo
2
0,4
Militar
2
0,4
Jornaleiro
2
0,4
Charuteiro
1
0,2
Carapina
1
0,2
Músico
1
0,2
Ferrador
1
0,2
Cozinheiro
4
0,8
Serrador
1
0,2
Serralheiro
1
0,2
Ex Praça do Exercito
1
0,2
Nenhum
36
7,2
Não Consta
36
7,2
Total
497
100,0
111
3.2 O RECRUTAMENTO, O TEMPO DE PERMANÊNCIA E OS MOTIVOS DO
LICENCIAMENTO
Em 06 de abril de 1835 a Polícia Militar foi criada pela lei Provincial nº 9 com o nome
de Guarda de Polícia. Tal lei trazia em seu Art. 5º a forma de ingresso na nascente
instituição:
Os que assentarem praça voluntariamente servirão três annos, findos os
quaes lhes serão entregues suas escusas35 pelo Governo da Província; e
os recrutados servirão completamente cinco annos.
E assim foi feito. Conforme a tabela 16, do total de policiais que ingressou na polícia
entre 1835 e 1844, 67,9% o fizeram de forma voluntária, e 32,1% de forma
recrutada. Não se tem dúvida de que a forma recrutada traduzia o recrutamento
obrigatório, que ficou proibido em anos posteriores, pois como se pode ver na tabela
17, relativa a segunda fase, correspondente aos anos entre 1868 e 1889, passou-se
a não mais constar a forma de ingresso. Tal fato vem corroborar o que deixou
registrado em relatório no ano de 1873 o Presidente Luiz Eugênio Horta Barbosa:
[...] Há nos filhos da Província, verdadeira repugnância ao serviço militar, a
que não se prestam senão compelidos pelo recrutamento. E, como á
Policia não é isto permitido , obtem-se com dificuldade, voluntários que
muitas vezes, por incapaz moral e fisicamente, ou não são aceitos, ou são
logo eliminados [...] (grifo nosso)
Outro indicativo do recrutamento obrigatório era o fato de alguns policiais terem sido
punidos por deixarem recruta fugir durante a escolta até a capital. Consta nos Mapas
Diários da polícia a movimentação de recrutas das localidades do interior da
Província para a capital.
35 Nesse contexto significa dispensa do serviço da polícia
112
Pressupõe-se que ser policial não era desde o início uma opção de trabalho atrativa
para muitos. Aliás, como se viu no capítulo anterior, os Presidentes de Províncias
não se cansaram de narrar em seus relatórios as dificuldades para se completar,
não somente o efetivo da polícia, mas também o das demais instituições militares.
Assim, a lei sabiamente definia um tempo mínimo obrigatório de três anos para os
voluntários e de cinco anos para os recrutados. Findo estes tempos os policiais
poderiam requerer o reengajamento, que conforme a tabela 18 não era feito pela
grande maioria dos policiais, 78,6%, até o ano de 1844. Mas alguns o fizeram, até
mais de uma vez, o que demonstra que para uma parcela o ofício policial era uma
possibilidade viável de trabalho, principalmente para aqueles que conseguiram obter
promoção.
Tabela 16 - Forma de ingresso na policia (assentamento) período 1835-1844
Forma Nº de Policiais %
Voluntário
95
67,9
Recrutado
45
32,1
Total
140
100,0
Fonte: Livro de Assentamento de Praças - APEES
Tabela 17 - Forma de ingresso na policia (assentamento) período 1868-1889
Forma Nº de Policiais %
Voluntário
4
0,8
Não Consta
493
99,2
Total
497
100,0
Fonte: Livro de Assentamento de Praças - APEES
113
Tabela 18 - Quantitativo de reengajamento por policial no período 1835-1844
Fonte: Livro de Assentamento de Praças - APEES
No período entre 1835 e 1843 ingressaram ao todo na polícia 140 (cento e quarenta)
policiais. A lei de criação em 1835 autorizava o ingresso de 115 policiais, porém
apenas 11 ingressaram em tal ano. Conforme se vê na tabela 19 foi somente a partir
de 1839 que a instituição tomou maior fôlego em relação ao efetivo. Como se sabe a
polícia foi extinta no final de 1844, exatamente no mês de novembro, e o prenúncio
desta decisão foi o não assentamento de policiais nos meses anteriores.
Como se pode ver na tabela 20, no ano da extinção foram licenciados 25% dos
policiais, tendo sido verificado que um dos principais motivos foi a deserção. Os
29,3% dos policiais em cujos registros não se fez constar o licenciamento devem
corresponder àqueles que permaneceram na instituição até os seus últimos dias no
ano de 1844. Os primeiros licenciamentos dos policiais se deram no ano de 1840.
Considerando que em 1835 ingressaram 11 policiais, e que em 1840 foram
licenciados apenas 7, conclui-se que os primeiros policiais ingressaram pela forma
recrutada com tempo de serviço obrigatório de 5 anos, e ainda que alguns optaram
pela permanência na instituição através do reengajamento. Veja-se na tabela 17 que
21,5% dos policiais solicitaram reengajamento.
Nº de solicitação Nº de Policiais %
00
110
78,6
01
25
17,9
02
1
0,7
03
4
2,9
Total
140
100,0
114
Tabela 19 – Número de policiais assentados no período 1835-1844
Anos Nº de Policiais %
1835
11
7,9
1836
2
1,4
1837
11
7,9
1838
8
5,7
1839
15
10,7
1840
36
25,7
1841
25
17,9
1842
15
10,7
1843
17
12,1
Total
140
100,0
Fonte: Livro de Assentamento de Praças - APEES
Tabela 20 – Número de policiais licenciados no período 1835-1844
Anos Nº de Policiais %
1840
7
5,0
1841
17
12,1
1842
20
14,3
1843
20
14,3
1844
35
25,0
Não Consta
41
29,3
Total
140
100,0
Fonte: Livro de Assentamento de Praças - APEES
No período compreendido entre os anos de 1868 e 1889, ou seja, em 21 anos,
ingressaram na instituição 497 policiais. Na tabela 21 pode-se constatar que a partir
da segunda metade da década de 1870 o número de policiais assentados aumentou
115
o que corrobora as informações contidas nos relatórios de Presidentes de Províncias
que situam tal década como marco na organização da polícia, quando foram
inclusive incluídos mais Oficiais, além do Comandante, para cuidarem da
administração. Lembre-se que em 1853 as praças de polícia, sem Oficial para
comandá-las, foram subordinadas ao Comandante da Companhia de Caçadores.
Como se conclui da tabela 22, dos 497 policiais que ingressaram entre os anos de
1868 à 1889, 86,1% saíram da polícia até o ano de 1892. Considera-se que os
outros 13,9% que não tiveram tais informações registradas em seus assentamentos
saíram em anos posteriores.
Observe-se que há certa correspondência entre o licenciamento e o ingresso na
polícia. Em 1878, por exemplo, ano em que os números foram mais significativos,
saíram da polícia 56 policiais, mas em contrapartida ingressaram outros 58 policiais.
Tal dado retrata o esforço dos Comandantes na tarefa de recrutamento. Mesmo
sendo permitido apenas o recrutamento voluntário os comandantes da polícia
deviam burlar tal norma, ou, no mínimo, fechar os olhos a muitas irregularidades
cometidas no ato de recrutamento para fazer jus ao cargo cuja nomeação era feita
pelo Presidente da Província.
116
Tabela 21 - Número de policiais assentados no período 1868-1889
Anos Nº de Policiais %
1868
1
0,2
1869
1
0,2
1870
2
0,4
1871
4
0,8
1872
7
1,4
1873
6
1,2
1874
16
3,2
1875
23
4,6
1876
31
6,2
1877
15
3,0
1878
58
11,7
1879
25
5,0
1880
38
7,6
1881
38
7,6
1882
47
9,5
1883
37
7,4
1884
19
3,8
1885
13
2,6
1886
30 6,0
1887
16
3,2
1888
29
5,8
1889
33
6,6
Não Consta
8
1,6
Total
497
100,0
Fonte: Livro de Assentamento de Praças - APEES
117
Tabela 22 – Número de policiais licenciados no período 1868-1889
Anos Nº de Policiais %
1874
6
1,2
1875
28
5,6
1876
34
6,8
1877
19
3,8
1878
56
11,3
1879
5
1,0
1880
16
3,2
1881
26
5,2
1882
23
4,6
1883
42
8,5
1884
37
7,4
1885
11
2,2
1886
23
4,6
1887
14
2,8
1888
20
4,0
1889
31
6,2
1890
27
5,4
1891
9
1,8
1892
1
0,2
Não Consta
69
13,9
Total
497
100,0
Fonte: Livro de Assentamento de Praças - APEES
O tempo de permanência dos policiais na instituição nos anos iniciais, entre 1835 e
1844, oscilou entre menos de 1 ano e 9 anos, o que nos leva a um tempo médio de
3 anos e 3 meses. Mas como se constata na tabela 23, alguns realmente optavam
pela permanência; 12,1% foram policiais por mais de 5 anos, tempo mínimo para
aqueles recrutados compulsoriamente, índice maior do que os 7,9% que serviram
por menos de 1 ano.
118
Conforme a tabela 24 o tempo de permanência dos 497 policiais que ingressaram a
partir de 1868 também oscilou entre menos de 1 ano e 9 anos, no entanto, o tempo
médio de permanência diminuiu, sendo de apenas 1 ano e 6 meses. Também o
percentual de policiais que permaneceram por mais de 5 anos caiu de 12,1% para
8,4%. Veja-se que ao contrário o percentual de policiais que serviram por menos de
1 ano subiu de 7,9% para 35%, um aumento considerável.
Pelos gráficos 1 e 2 pode-se inferir que um dos motivos que levavam os policiais a
permanecer por mais tempo na polícia seria a ascensão através da promoção.
Verificou-se que nas duas fases o percentual de policiais que foram promovidos
ficou em torno de 21%.
Ser promovido representava também aumento nos vencimentos conforme se vê na
tabela 25. A base de referência dos vencimentos dos Oficiais era mensal, enquanto
que a das praças era diária. Em 1842 o vencimento do Capitão era de 45$000
(quarenta e cinco mil réis) e sua gratificação de 15$000 réis (quinze mil réis),
enquanto que do Tenente era de 40$000 (quarenta mil réis)36. Nem sempre houve
autorização legal para a inclusão de Oficiais na polícia. Nas ocasiões em que a
legislação da Província durante o Império permitia a sua inclusão, o fizeram nos
postos de Capitão, Tenente e Alferes. Os vencimentos do comandante eram sempre
acrescidos de gratificação de comando. Já em 1858 o vencimento do Oficial
comandante era de 50$000 (cinqüenta mil réis).
Em contrapartida os vencimentos dos Soldados em 1842 eram de respectivamente
$360 (trezentos e sessenta réis) diários, o que representavam 10$800 (dez mil e
oitocentos réis) mensais, e em 1858 de $800 (oitocentos réis) diários, num total de
24$000 (vinte e quatro mil réis) mensais. Veja-se que em relação aos vencimentos a
política foi de valorização do Soldado, cujos efetivos eram bem mais significativos.
Não se tem dúvidas de que traduzia um esforço de fazer aumentar tanto o
recrutamento, quanto o tempo de permanência na instituição. Inicialmente as praças
deveriam receber também uma quantia destinada a aquisição do fardamento, depois
passaram a receber as próprias peças da farda, muitas vezes confeccionadas pelos
36 Lei Provincial Nº 2 de 12 de outubro de 1842
119
próprios policiais que anteriormente haviam sido alfaiates. Holloway (1997, p. 162-
163) informa que no Rio de Janeiro em 1850 o vencimento do Soldado era de $640
(seiscentos e quarenta réis) por dia. Segundo tal autor o aumento foi concedido pelo
Ministro da Justiça Eusébio de Queiróz com o argumento de que ‘qualquer
trabalhador comum ganha igual ou melhor salário e não está sujeito ao rigor da
disciplina militar’. Na Província do Espírito Santo, apesar das grandes diferenças em
relação à capital do Império, especialmente no campo da economia, a situação não
deve ter sido muito diferente, face os constantes claros de efetivo na policia, e os
esforços feitos para completá-lo aos longos dos anos imperiais. Esperava-se que as
melhorias salariais atraíssem mais pessoas e as mantivessem por mais tempo na
polícia, mas elas por si só não foram suficientes.
O rigor da disciplina, como bem disse o Ministro, as especificidades do trabalho que
exigia tropa disponível para atendimento das necessidades da manutenção da
ordem, e muitas vezes a longa distância de suas localidades de origem devem ter
pesado muito. A lei nº 23 de 11 de novembro de 1838 em seu Art. 9º nos dá uma
idéia da situação:
Os officiaes inferiores, e guardas serão obrigados a pernoitar no
quartel, que lhes for destinado pelo governo, os officiaes assistirão o
mais perto, que for possivel do Quartelamento
A mesma lei definia que os doentes perdiam o soldo e que a desobediência seria
punida com prisão de 1 a 3 meses, sendo os reincidentes trancafiados em solitária
por 8 dias em cada mês do cumprimento da pena, além de várias outras
regulamentações em relação a disciplina.
120
Tabela 23 – Tempo de permanência na polícia no período 1835-1844
Tempo/Ano Nº de Policiais %
-1
11
7,9 1
15
10,7
2
11
7,9
3
21
15,0
4
13
9,3
5
10
7,1
6
8
5,7
7
2
1,4
8
1
0,7
9
6
4,3
Não Identificado
42
30,0
Total
140
100,0
Fonte: Livro de Assentamento de Praças - APEES
Tabela 24 – Tempo de permanência na polícia no período 1868-1889
Tempo/Ano Nº de Policiais %
-1
174
35,0
1
89
17,9
2
48
9,7
3
52
10,5
4
21
4,2
5
10
2,0
6
18
3,6
7
9
1,8
8
3
0,6
9
2
0,4
Não Identificado
71
14,3
Total
497
100,0
Fonte: Livro de Assentamento de Praças - APEES
121
77,9%
,7%
21,4%
Não foi Promovido
Não Consta
Promovido
GRÁFICO 1 – PROMOÇÃO PERÍODO 1835-1844
77,5%
1,2%
21,3%
Não foi Promovido
Não Consta
Promovido
GRÁFICO 2 – PROMOÇÃO PERÍODO 1868-1889
122
Tabela 25 - Evolução dos vencimentos das praças policiais (valores por dia)
Praças 1835
1842
1856
1858
1861
1º Sargento
$500
$540
$800
1$000
1$120
2º Sargento
$440
$480
$800
Não consta
Não consta
Furriel
$400
$440
$700
$900
$900
Cabos
$300
$400
$640
$840
$840
Cornetas
$360
$400
$640
$840
$840
Soldados
$320
$360
$360
$800
$800
Fontes: Legislações provinciais37 - APEES
Mas, quais seriam os motivos concretos que levavam as pessoas a saírem da
polícia? Na primeira fase, entre os anos de 1835 e 1844, a relação de motivos não
foi muita extensa, conforme tabela 26. Prevaleceram os seguintes: Deserção
(18,6%), Fim do Tempo de Praça (16,4%), Doença (12,1%), Indisciplina (10%). Tais
motivos somados totalizaram 57,1%, devendo ser considerado o fato de que não foi
identificado o motivo de 33,6% policiais, uma vez que como já ficou demonstrado,
quando a polícia foi extinta em 1844 muitos ainda faziam parte dela.
Em contrapartida, na segunda fase, conforme tabela 27, a relação de motivos
cresceu, ficando o destaque para Incapacidade Física (23,7%), Fim do Tempo de
Praça (16,3%), Indisciplina (14,5%), Deserção (8,9%) e Falecimento (6,2%). Tais
motivos correspondem a 69,6% do total identificado.
Conclui-se que efetivamente os policiais saiam da instituição naqueles tempos do
Império, primeiro, por vontade própria, ou seja, por simplesmente não mais
quererem continuar servindo na polícia, traduzida no não requerimento do
reengajamento ao completarem o tempo mínimo ao qual se comprometeram no ato
do ingresso, e na deserção quando não viam alternativa para saírem legalmente. Em 37 Leis nº 9 de 06 de abril de 1835, nº 2 de 13 de outubro de 1842, nº 289 de 8 de julho de 1856 e
Decretos nº 342 de 26 de julho de 1858, e nº 401 de 24 de julho de 1861
123
seguida, por indisciplina, cujas condutas serão apontadas mais adiante. E finalmente
por incapacidade física, traduzida nos motivos doença e falecimento. Veja-se na
tabela 28 que dos 140 policiais que ingressaram no período 1835-1844, 36,4% deles
foram hospitalizados, alguns por mais de uma vez.
Um motivo do licenciamento nos chama atenção em especial na tabela 27. Não pela
quantidade, mas pela sua singularidade. Foi registrado que 3 policiais saíram da
polícia porque eram escravos. Um deles era Antônio Pedro Gonçalves encontrado
no Livro de Assentamento de Praças com registro de nº 34, filho de Manoel
Gonçalves, natural de Minas Gerais, nascido no ano de 1852, solteiro, alfaiate.
Assentou praça em 4 de janeiro de 1875 e tinha, portanto, 23 anos. Permaneceu
muito pouco na polícia, apenas 7 meses; foi licenciado em 11 de agosto de 1875.
Interessante é que em outra fonte, Geraldo Antonio Soares (2003, p. 53-58) já havia
desvendado o motivo e as circunstâncias de seu licenciamento. Antônio Pedro
Gonçalves foi denunciado por seu suposto dono, que ao final conseguiu mesmo
provar às autoridades que realmente tratava-se de um escravo fugido. Afinal em
nossas fontes ficou constatado que ele foi licenciado por este motivo.
Mas o interessante não termina por aqui. Pelo que relata Geraldo Antonio Soares,
não seria do desconhecimento do comandante da polícia e de outras pessoas a
situação de cativo de Antônio Pedro Gonçalves, demonstrando mais uma vez que
diante das dificuldades relativas ao recrutamento para se completar o efetivo
previsto em lei para a polícia e ainda do baixíssimo tempo médio de permanência
dos policiais, fazia-se vistas grossas a muitas situações irregulares como o
recrutamento forçado. Pode-se dizer que quando surgia uma oportunidade as
autoridades literalmente empurravam as pessoas em condições de vida instável, que
poderia ser um escravo, um recém ex-escravo ou um nordestino fugindo da seca,
para compor os quadros da polícia. Em algumas situações, como a de Antônio, não
deve ter sido de todo ruim. Ele foi descoberto, mas outros podem ter passado
despercebidos. Que lugar melhor poderia existir para um escravo fugido se passar
por homem livre?
124
Outro motivo que merece destaque é a deserção, tanto pela significativa estatística
apresentada nas tabelas 26 e 27, quanto pela informação de Almeida (2008, p. 84-
86) envolvendo questões relativas ao recrutamento.
Narra ele que em 1873 o comandante da Companhia de Polícia, Capitão José
Ribeiro da Silva Laranja foi denunciado por “cometer violência e arbitrariedades
contra moradores da Pedra Mulata – Villa de Vianna – com a finalidade de recrutar.”
Arrombou as portas da residência de uma família e prendeu um jovem que logo foi
solto. Apesar da alegação de perseguição política, pois se tratava de período
eleitoral, houve pronúncia de crime pelo juiz de direito por crime previsto no Código
Criminal, do qual o comandante interpôs recurso de apelação, o que lhe foi negado
pelo Tribunal da Relação da Corte. No ano seguinte o dito comandante foi
assassinado, ao que parece por motivos ligados a sua tarefa de recrutador que
estaria sendo utilizada nas disputas eleitorais para prejudicar opositores políticos,
mas que na verdade em nada altera o que nos interessa. O fato é que realmente
foram encontrados vestígios de recrutamento forçado em fontes diferenciadas, como
em documentos da própria polícia, nos Mapas Diários onde há anotações de
patrulhas designadas para prender recrutas fugidos, e nos Livros de Assentamentos
de Praças onde constam punições por terem deixado recruta fugir.
Ao estudar os Autos Criminais entre os anos de 1865 e 1875 o próprio Almeida
(2008, p. 87-88) encontrou o uso de Habeas Corpus como instrumento legal para
invalidar prisões por recrutamento. Embora nem sempre tal instrumento fosse
acatado pelo juiz, o que importa é o seu uso contra o recrutamento forçado e muitas
vezes arbitrário praticado pelas autoridades para compor os quadros das forças
militares e policial da Província. Do que se depreende do relato do autor havia
critérios legais para o recrutamento, como ter idade entre 18 e 35 anos, não ser filho
único de lavrador, e não ter trabalho certo. Mas os recrutadores designados pelo
Presidente da Província não os respeitavam, o que levava as pessoas a recorrerem
à justiça e a fazer dela um espaço de negociação com o Estado imperial.
125
Tabela 26 – Motivos do licenciamento dos policiais no período 1835-1844
Motivos Freqüência %
Fim do tempo de praça
23
16,4
Falecimento
5
3,6
Doença
17
12,1
Deserção
26
18,6
Indisciplina
14
10,0
Pediu Baixa
1
0,7
Dispensa do Serviço
5
3,6
Transferência
1
0,7
Servir pais velhos
1
0,7
Não Identificado
47
33,6
Total
140
100,0
Fonte: Livro de Assentamento de Praças - APEES
126
Tabela 27 – Motivos do licenciamento dos policiais no período 1868-1889
Fonte: Livro de Assentamento de Praças - APEES
Motivos Nº de Policiais %
Fim do tempo de Praça
81
16,3
Falecimento
31
6,2
Doença
2
0,4
Deserção
44
8,9
Indisciplina
72
14,5
Pediu Baixa
4
0,8
Dispensa do Serviço
6
1,2
Transferência
10
2,0
Demissão
1
0,2
Ser Escravo
3
0,6
Ingressar no Exército
9
1,8
Incapacidade física
118
23,7
Ordem da Presidência
10
2,0
Reformado
2
0,4
Menoridade
3
0,6
Idade avançada
2
0,4
Assentamento sem efeito
3
0,6
Equidade
2
0,4
Filho único
1 0,2
Entregue a Justiça
1 0,2
Não consta
92 18,5
Total
497 100,0
127
Tabela 28 – Baixa em hospital período 1835-1844
Nº de Baixa em Hospital Nº de Policiais %
00
89
63,6
01
26
18,6
02
10
7,1
03
4
2,9
04
8
5,7
05
2
1,4
06
1
0,7
Total
140
100,0
Fonte: Livro de Assentamento de Praças - APEES
3.3 A DISCIPLINA
No período inicial da polícia, entre os anos de 1835 e 1844, 55,7% dos 140 policiais
que ingressaram não tiveram em seus assentamentos nenhum registro de
indisciplina. Entre os demais que cometeram indisciplina alguns o fizeram por mais
de uma vez. Tais condutas eram bem diversificadas, algumas se enquadram na
esfera administrativa da própria polícia, outras dizem respeito as relações sociais e
ao respeito as leis coletivas. Mas nos dão conta do fato de que em qualquer tempo,
as pessoas encarregadas pelo Estado de manter a ordem, são em algumas
situações as mesmas que a desrespeitam.
Neste período foram identificadas como condutas irregulares, que como se viu, para
alguns policiais se tornaram o motivo de seu licenciamento da polícia, o seguinte:
embriaguez no comando de patrulha; saltar muralha do quartel à noite; brigar e
desrespeitar o comandante; deixar evadir criminoso; insubordinação; fazer prisão
injusta na Capital; faltar ao serviço; deixar recruta fugir; perturbar o sossego público;
cometer espancamento; estar de guarda por ocasião de roubo da tesouraria;
desertar, alguns por mais de uma vez, mesmo aqueles que já haviam se
128
apresentado voluntariamente; e fugir no cumprimento de pena de prisão por
deserção.
As punições para tais condutas era a prisão comum, que poderia ser por ordem do
Presidente da Província, do comandante da polícia (quando existia na instituição),
do Juiz (seja de Paz ou comum) e do Chefe de Polícia; a prisão na Fortaleza da
Barra; a prisão por meses; o rebaixamento de posto; e a não recomposição ao
serviço (reengajamento).
As condutas positivas não eram registradas, apenas constou-se no assentamento de
alguns policiais a sua ótima conduta, sem nenhum detalhe.
No período entre 1868 e 1889, dos 497 policiais que ingressaram na policia o
percentual de policiais que não tiveram registro de indisciplina em seus
assentamentos diminuiu para 47,3%.
Os que foram punidos cometeram as seguintes indisciplinas: provocar desordem
com paisanos; espancar e ferir um camarada; desrespeitar ou insubordinar-se com
superior; abrir caixa e ofício endereçados a um Alferes; extraviar documentos;
material ou equipamento (ordem escrita, arma, capote); enviar ao Comandante um
telegrama inconveniente à disciplina; deixar preso sob sua guarda ou escolta fugir;
ter mau comportamento; jogar no trabalho; pernoitar fora do quartel; faltar ao toque
de formatura; ausentar-se sem licença; desertar, também as vezes por mais de uma
vez; permitir que preso dormisse com uma mulher; simular doença após licença;
permitir roubo de armas; não retornar após licença; apropriar-se de um cinturão e de
um sabre-baioneta; dormir na patrulha; cometer rapto; ser revolucionário38; jogar em
três diferentes ocasiões; deixar de fazer os toques de alvorada; deixar de dar
instruções de corneta ao aprendiz; relaxar na guarda do hospital; demorar em
viagem de Linhares a Vitória sem justificativa; por excesso de licenças; deixar de
cumprimentar o ajudante da presidência; estar em pagode com prostitutas no horário
38 Provavelmente algum policial que estava envolvido com atividades políticas consideradas
contrárias a ordem estabelecida. É bom lembrar da proximidade de São Matheus com a Bahia que se
sublevou contra o governo regencial.
129
de serviço; conduzir mal um cadáver; dormir na sentinela; provocar a mulher de um
preso; desrespeitar um Delegado de Polícia; praticar violência; roubar dinheiro; ter
se portado mal; embriagar-se; desrespeitar famílias após ter se embriagado; e
propalar mal de superior.
A punição mais usual era a prisão que podia ser simples, variando de 1 à 30 dias,
que poderia também ser acompanhada de alguns dias de solitária, de perda parcial
ou integral de soldo por determinado período, de trabalho, de multa pecuniária, de
rebaixamento de posto. No caso da deserção, podia durar de 2 à 6 meses. Mas
havia também a transferência, a alta forçada, o rebaixamento de posto permanente
ou por um determinado período, e ainda os castigos: d’armas, correr marche-marche
ou marcha por 5 dias.
Foram detectados alguns poucos registros positivos tais como ter sido naturalizado
brasileiro em reconhecimento pelos trabalhos, cumprir bem seus deveres em
diligências fora da Capital e ter se apresentado asseado.
Pelos percentuais de não registro de indisciplina em seus assentamentos, 55,7% na
primeira fase e 47,3% na segunda, conclui-se que os policiais daqueles tempos do
império tiveram dificuldades em se ajustar aos rigores impostos ao exercício do
ofício policial. Certamente as autoridades e comandantes, além das dificuldades
encontradas em relação ao recrutamento, também tiveram que se desdobrar para
manter sob controle a nascente categoria profissional que consideravam essencial
ao funcionamento do Estado como se demonstrou ao longo desta dissertação.
130
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O modelo policial brasileiro tal qual o conhecemos hoje tem suas origens no início do
século XIX, quando as polícias estaduais foram sendo formatadas a semelhança do
modelo português. O ano de 1808 marca muitas mudanças na antiga colônia que
logo foi elevada a categoria de Reino Unido a Portugal. A família real portuguesa
que aqui se instalou e fez do Rio de Janeiro a sede do governo português demandou
estruturação e criação de serviços e instituições. Afinal estava acostumada aos
moldes de uma cidade européia. É pertinente destacar que
No início do século XIX, o conceito de polícia relacionava-se à cultura, ao
aperfeiçoamento e melhoria na civilização da nação, no governo e
administração da república (da coisa pública). Também estava ligada ao
tratamento decente, ao decoro, à urbanidade dos cidadãos (daqueles que
moram na cidade) no falar, nas boas maneiras, na cortesia, no polimento;
tinha em vista as comodidades: a limpeza, a iluminação e abastecimento
(de água e alimentos). Por fim, destacavam-se as atividades relacionadas à
segurança e à vigilância. (COTTA, 2006, p. 42)
Assim é que no que tange a segurança e justiça, uma das primeiras providências na
capital, ainda em 1808, foi a criação da Intendência Real de Polícia, que além do
exercício de funções judiciais, como se sabe, atuou nas tarefas administrativas de
organização da cidade. O segundo passo para a formatação do modelo brasileiro foi
a criação da Guarda Real de Polícia no ano seguinte, corpo militarizado, criado
como força de intervenção da Intendência para fazer valer a ordem na cidade
através do patrulhamento uniformizado. É consenso entre aqueles que pesquisaram
sobre a história das polícias brasileira que de tais instituições se originaram
respectivamente a Polícia Civil e a Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Um segundo momento marcante é encontrado sob os auspícios do governo
regencial quando por força do Ato Adicional de 1834 foi autorizada a criação da
131
polícia nas Províncias. O modelo da Guarda Real foi replicado e instituições
militarizadas destinadas ao patrulhamento foram criadas nas diferentes Províncias,
ressalvadas as especificidades locais em que as questões relativas a configuração
política de formatação do Estado imperial estavam inseridas.
No caso específico da Província do Espírito Santo demonstrou-se através da
descrição passo a passo das oscilações no efetivo da polícia desde a sua criação
em 1835 até o final do Império, ou seja, durante 53 anos, como foi duro o embate
político estabelecido entre os representantes do Executivo e do Legislativo
provincial. Os Presidentes foram unânimes em reclamar sobre a escassez de efetivo
policial ou mesmo da não existência da polícia. Os deputados por sua vez relutavam
em atender aos reclames de aumento de efetivo, chegando ao extremo de extinguir
a polícia. Certamente o que motivava esses parlamentares não era a certeza
absoluta de que a polícia era desnecessária baseada nas “precárias estatísticas
criminais” e nos relatos repetitivos dos Presidentes sobre a índole pacífica dos
habitantes da Província. Como apontou Goularte (2008) o tema segurança era
efetivamente uma das preocupações dos membros da primeira legislatura da
Assembléia. O entendimento é de que na correlação de forças entre um
representante do governo central, através da figura do Presidente, e os membros da
elite local, representados pelos deputados, estabeleceu-se uma forma original de
oposição ao projeto centralizador que prevaleceu na construção da identidade
política do Brasil. Os deputados souberam usar, e muito bem, aquilo que lhes
competia: legislar sobre o efetivo. Aos Presidentes, como se indicou ao longo desta
dissertação, coube definir sobre a utilização da polícia. Mas como fazê-lo com uma
força destituída de policiais? Este foi realmente um dilema para os chefes do
Executivo provincial que recebiam pedidos de efetivo de força policial oriundos de
diferentes autoridades de todos os cantos da Província. Mas foi desta correlação de
forças que a polícia constitui-se como instituição e assim atravessou do Império para
a República.
De tudo o exposto pode-se afirmar que, naqueles tempos do Império, aos olhos da
administração da Província, cujos encargos eram de competência do Executivo, a
polícia era efetivamente necessária. A montagem do nascente Estado exigia a
132
realização de tarefas que ainda estariam sendo alvo de definições quanto aos seus
executores, considerando que outras agências estatais estariam concomitantemente
sendo instituídas.
Mas, quem foram aqueles policiais? Seu perfil pode ser traçado a partir dos
assentamentos escriturados na época e felizmente preservados para que
pudéssemos conhecê-los. Os policiais daqueles tempos do Império, no alvorecer
das instituições nacionais, e neste caso particularmente da Polícia Militar do Espírito
Santo, eram oriundos das camadas inferiores da sociedade. A maioria era negra e
parda. Uma parcela considerável era filha de pais incógnitos, provavelmente de
mãe escrava com pai branco ou de mãe solteira. Alguns eram filhos de escravos,
outros poucos eram eles mesmos escravos. Mesmo à época em que o recrutamento
forçado passou a não ser mais permitido muitos policiais devem ter ingressado na
polícia sem vontade própria. Dentre estes, alguns aceitaram a imposição e
cumpriram seu tempo sem maiores problemas para os comandantes como, por
exemplo, um dos policiais que foi apresentado no capítulo 3. Outros deviam
expressar suas insatisfações através das condutas irregulares, ou simplesmente
abandonando a polícia de forma ilegal, isto é, sem cumprir o tempo mínimo de
assentamento, o que se configurava como deserção. Mas uma parcela, menor é
claro, mas nem por isso menos significativa, deve ter visto na polícia uma nova
possibilidade de vida, mesmo que posteriormente tenha dado a ela outro destino.
E o que faziam no cotidiano de seus dias como policiais? O trabalho realizado foi
registrado nos Mapas Diários onde consta que os policiais patrulhavam as ruas da
cidade, quando certamente deviam tanto socorrer pessoas e amparar idosos e
crianças, quanto prender os que infligiam a lei. Mas, também fiscalizavam a
iluminação pública, acompanhavam o cobrador de impostos, faziam guarda na
cadeia e nos prédios públicos, serviam de ordenança às autoridades (Presidentes,
Delegados, Juízes, Deputados), costuravam as fardas, capturavam criminosos e
escravos fugidos, faziam diligências requisitadas em geral pelos delegados, já que
não possuíam pessoal para o trabalho investigativo, eram destacados para
localidades distantes da capital.
133
Enfim, como muito apropriadamente diz Cotta (2009) em ensaio onde trata da polícia
da capital do Império na primeira metade do século XIX, “a polícia era plural”.
Podemos dizer com precisão que assim era também na Província do Espírito Santo.
E mais, era no passado e é ainda no presente. Essa é uma característica que,
independente de localização geográfica e das tentativas de mudança de rumo,
definitivamente perpassa toda a sua trajetória histórica. Apesar do importante papel
que lhe coube no sistema criminal, a polícia ostensiva, hoje chamada de Polícia
Militar, caracterizou-se realmente desde sua gênese constitutiva como um
“fenômeno de múltiplas funções e responsabilidades” (ROLIM, 2006, p. 23) como já
apontado na introdução.
134
FONTES
ARQUIVO PÚBLICO ESTADUAL DO ESPÍRITO SANTO. Mapas Diários da Guarda
de Polícia. Fundo de Polícia.
_______. Livros de Assentamentos de Praças e Oficiais. Fundo de Polícia.
_______. Relatórios de Presidentes da Província do Espírito Santo. Fundo de
Governadoria.
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