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CONGRESSO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, São Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v. 1, 2012. | p.1018-1028 DISCÍPULO AMADO E GNOSTICISMO Flávio Schmitt * Resumo: A importância do quarto evangelho para compreensão das origens do cristianismo é incontestável. O pensamento joanino marca um ponto de inflexão na cristologia e na eclesiologia do cristianismo primitivo. O quarto evangelho é diferente dos sinóticos na apresentação de Jesus, e diferente de Atos dos apóstolos e das epístolas pastorais na visão da realidade eclesial. Este diferencial tem levado pesquisadores à elaboração de diferentes hipóteses sobre o cristianismo joanino. A caracterização do movimento vai desde um fenômeno sectário isolado até uma comunidade de perfil gnóstico. A origem da comunidade na Palestina, bem como sua relação com os judeus, com o movimento batista, e a relação com a pessoa que conheceu Jesus durante seu ministério e que se torna o discípulo amado, são fundamentais para compreender a literatura joanina e sua relação com o gnosticismo. Este artigo procura investigar a relação entre o discípulo amado da literatura joanina com o gnosticismo. Faz uso dos recursos exegéticos para a consecução de seus objetivos. Palavras chave: gnosticismo, discípulo amado, literatura joanina. Introdução Ao lançar um olhar sobre os primórdios do cristianismo, de imediato é possível perceber a presença de doutrinas e práticas denominadas de heréticas pela tradição. Entre estas doutrinas está o gnosticismo, mais precisamente o gnosticismo cristão. A existência e o reconhecimento do gnosticismo cristão nos primórdios da tradição cristã necessariamente implica na explicação de sua origem, bem como na dos fatores e elementos que configuram seu modo de ser. A contribuição e relação do gnosticismo com o cristianismo ainda é uma questão em aberto, não obstante as muitas tentativas de colocar um ponto final no assunto. Este texto assume na definição de gnose e gnosticismo os resultados do colóquio de Messina. Por gnose entende-se o conhecimento dos mistérios divinos reservados a uma elite. Por gnosticismo, o sistema elaborado com base na gnose * Flávio Schmitt é doutor em Ciências da Religião pela UMESP, professor da Faculdades EST em São Leopoldo/RS. [email protected].

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  • CONGRESSO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. So Leopoldo: EST, v. 1, 2012. | p.1018-1028

    DISCPULO AMADO E GNOSTICISMO

    Flvio Schmitt*

    Resumo: A importncia do quarto evangelho para compreenso das origens do cristianismo incontestvel. O pensamento joanino marca um ponto de inflexo na cristologia e na eclesiologia do cristianismo primitivo. O quarto evangelho diferente dos sinticos na apresentao de Jesus, e diferente de Atos dos apstolos e das epstolas pastorais na viso da realidade eclesial. Este diferencial tem levado pesquisadores elaborao de diferentes hipteses sobre o cristianismo joanino. A caracterizao do movimento vai desde um fenmeno sectrio isolado at uma comunidade de perfil gnstico. A origem da comunidade na Palestina, bem como sua relao com os judeus, com o movimento batista, e a relao com a pessoa que conheceu Jesus durante seu ministrio e que se torna o discpulo amado, so fundamentais para compreender a literatura joanina e sua relao com o gnosticismo. Este artigo procura investigar a relao entre o discpulo amado da literatura joanina com o gnosticismo. Faz uso dos recursos exegticos para a consecuo de seus objetivos. Palavras chave: gnosticismo, discpulo amado, literatura joanina.

    Introduo

    Ao lanar um olhar sobre os primrdios do cristianismo, de imediato

    possvel perceber a presena de doutrinas e prticas denominadas de herticas pela

    tradio. Entre estas doutrinas est o gnosticismo, mais precisamente o gnosticismo

    cristo.

    A existncia e o reconhecimento do gnosticismo cristo nos primrdios da

    tradio crist necessariamente implica na explicao de sua origem, bem como na

    dos fatores e elementos que configuram seu modo de ser. A contribuio e relao

    do gnosticismo com o cristianismo ainda uma questo em aberto, no obstante as

    muitas tentativas de colocar um ponto final no assunto.

    Este texto assume na definio de gnose e gnosticismo os resultados do

    colquio de Messina. Por gnose entende-se o conhecimento dos mistrios divinos

    reservados a uma elite. Por gnosticismo, o sistema elaborado com base na gnose

    * Flvio Schmitt doutor em Cincias da Religio pela UMESP, professor da Faculdades EST em

    So Leopoldo/RS. [email protected].

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    e que tem como traos essenciais a centelha divina cada no mundo por ocasio do

    nascimento, a conscincia de si e o regresso ao divino com a morte.1

    1. Gnosticismo

    1.1 As primeiras leituras do gnosticismo do conta de uma compreenso onde o

    gnosticismo considerado como um fenmeno cristo, resultado da influncia da

    filosofia grega e da religiosidade helenista.

    Nesta linha de interpretao do gnosticismo podemos situar os Pais da Igreja

    e os principais conflitos enfrentados pelo cristianismo. Hiplito de Roma, Irineu de

    Lyon esto entre os autores cristos que apontam e refutam, enquanto cristos, os

    erros da doutrina gnstica.

    Ao perceber a existncia e presena de seitas que insistem no valor do

    conhecimento como veculo da salvao, condenam tais doutrinas como heresias

    crists. Nesta compreenso no h espao para percepo de um fenmeno pr-

    cristo ou mesmo no cristo.2

    Na explicao das origens do gnosticismo esto argumentos que apontam

    para o mundo grego, especialmente da filosofia grega. Alm de fazer a origem do

    gnosticismo remontar cultura grega, os Pais da Igreja tambm tentam descrever o

    que seria uma histria desta doutrina hertica, essencialmente diablica e

    demonaca.

    Esta perspectiva tambm foi adotada pelos historiadores da Igreja. Na ausncia de

    fontes do prprio gnosticismo, toda interpretao do fenmeno era derivada das

    informaes fornecidas pelos Pais da Igreja.3

    Esta mesma perspectiva tambm foi adotado por alguns estudiosos. Na

    argumentao est a afirmao que para ter uma ideia do gnosticismo era

    necessrio recorrer aos textos e fragmentos de obras gnsticas disponveis.4 Ora, o

    que se tinha disponvel eram os textos cristos, logo estes passaram a ser a

    referncia para os estudos.

    1 SIMON, Marcel; BENOIT, Andr. Judasmo e Cristianismo Antigo: p.287 Colquio de Messina

    reuniu especialistas sobre o assunto em abril de 1966. Nele foi definido o uso cientfico dos termos gnose e gnosticismo.

    2 SIMON; BENOIT, 1987, p.276.

    3 SIMON; BENOIT, 1987, p.278

    4 SIMON; BENOIT, 1987, p.278

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    1.2. Religionsgeschichte Escola da Histria das Religies

    Esta compreenso do gnosticismo marcada pelo selo cristo foi

    completamente transformada pelos estudos da Religionsgeschichte Escola da

    Histria das Religies. Nesta escola, a concepo clssica sobre a origem do

    gnosticismo cede lugar para a compreenso de um fenmeno da histria das

    religies.5

    Nesta perspectiva, o gnosticismo no mais compreendido como uma seita

    hertica do cristianismo primitivo, mas como uma das muitas formas de expresso

    religiosa conhecida na Antiguidade.6

    A tese principal da Histria das Religies sustenta que o gnosticismo um

    movimento religioso no cristo, provavelmente pr-cristo, que a princpio nada tivera a ver com o cristianismo, mas que para ele convergira no comeo de nossa era, dando origem ao gnosticismo cristo.7

    Uma das primeiras tarefas da Religiosngeschichte foi fazer um levantamento

    dos temas fundamentais do gnosticismo. Na comparao de diferentes textos foi

    possvel verificar a existncia de um certo nmero de temas principais e um certo

    nmero de temas secundrios. Alm disso, a Histria das Religies tambm se

    preocupou em precisar a origem dos textos gnsticos.8

    A presena do dualismo e a ideia do salvador que desce ao mundo para

    salvar almas deduzida do estudo da literatura religiosa do Antigo Oriente Prximo.9

    Estudos da religiosidade helenstica e romana, especialmente dos cultos orientais,

    tambm revelaram identificao temtica com a gnose.

    Coube a Reitzenstein trazer ao conhecimento a origem do mito do Salvador

    Salvado. Este tema prprio do gnosticismo afirma que

    O homem primordial contm em si todas as almas individuais, e, no momento em que envia um mensageiro matria, a fim de libertar a alma coletiva, o que se passa, de uma forma ou de

    5 SIMON; BENOIT, 1987, p.279

    6 Entre os principais pesquisadores esto: W. Bousset, R. Reitzenstein, P. Wendland e M.

    Lidzbarski. No mbito da teologia est R. Bultmann. Na filosofia G. Widengren e Hans Jonas. 7 SIMON; BENOIT, 1987, p.279 A Histria das Religies tambm vai afirmar que o gnosticismo

    manteve uma existncia prpria que mais tarde se funde com o maniquesmo. 8 Resumir p.282. Depois de cogitar inicialmente a origem egpcia do gnosticismo, os pesquisadores

    passaram a identificar os temas gnsticos com o Oriente. Nesta orientalizao da origem, a hiptese

    9 Bousset. Apud SIMON; BENOIT, 1987, p.280.

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    outra, a salvao da alma por ela mesma, a vinda do Salvador para realizar sua prpria salvao.10

    Esta mesma linha tambm seguida por Bultmann e seus discpulos que

    concentram seus estudos em distinguir temas gnsticos presentes na literatura do

    Novo Testamento. A partir de estudos realizados no Evangelho de Joo, buscam

    comprovar a relao entre a descrio da pessoa de Jesus e a concepo gnstica

    do mensageiro celeste.11

    1.3. Filosofia

    Outra linha de estudo dos temas da literatura gnstica ser efetuada pela

    linha de interpretao da filosofia existencialista. Nesta pesquisa, mais do que os

    temas da gnose, a ateno passa a estar voltada para a atitude bsica, existencial,

    assumida pelo homem nos diferentes sistemas gnsticos.12

    Por meio do estudo de textos gnsticos, Hans Jonas destaca o que denomina

    de princpio da construo. Para Jonas, a gnose consiste basicamente numa nova

    atitude espiritual. Este novo princpio espiritual parte da compreenso de que Deus

    salva os seres humanos do mundo. Este mundo se estrutura na base de antteses

    como luz/trevas, pneuma/psique, vida/morte. Deus representa a negao do mundo

    e de tudo o que est inserido na ideia de mundo/cosmo.13 Jonas inclusive identifica a

    essncia e originalidade da atitude gnstica nesta negao do mundo. Neste

    aspecto Jonas tambm percebe uma distino com o pensamento grego.14

    Um importante aporte para compreenso dos temas gnsticos vem dos

    estudos sobre o maniquesmo. Graas aos estudos de Puech, o gnosticismo pode

    ser considerado um fenmeno mais delimitado, com uma essncia mais definida e

    uma originalidade mais caracterizada.15

    Os estudos mostram que entre os temas fundamentais do gnosticismo esto:

    1 uma teoria do conhecimento: o conhecimento de si e o conhecimento de Deus, de fato idnticos, implicam a certeza da salvao; 2 um dualismo essencial, que leva depreciao do cosmo;

    10

    SIMON; BENOIT, 1987, p.280. As contribuies de Ratzenstein tornaram fundamental o estudo do Canto da Prola para compreender o fenmeno gnstico.

    11 SIMON; BENOIT, 1987, p.280.

    12 SIMON; BENOIT, 1987, p.281.

    13 SIMON; BENOIT, 1987, p.281.

    14 SIMON; BENOIT, 1987, p.282.

    15 SIMON; BENOIT, 1987, p.282.

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    3 um mito do Salvador-Salvado; 4 um mito da ascenso da alma.16

    Estudos mais recentes sobre as diferentes correntes do judasmo dos

    primrdios do cristianismo tentam relacionar o gnosticismo com crculos judeus e

    no judeus. A chave desta leitura est na perspectiva apocalptica e escatolgica do

    judasmo preocupado com a interveno divina na histria.17

    A primeira questo que todas estas tentativas de compreender o gnosticismo

    colocam metodolgica. At que ponto possvel compreender um fenmeno

    religioso a partir da comparao dos temas presentes em sua literatura ou na

    literatura em que aludida? No obstante as tentativas de compreenso, o resultado

    alcanado ainda parece demasiado limitado para a compreenso de um fenmeno

    to complexo e geograficamente disperso..

    Conclusivo por hora parece ser a afirmao de que definitivamente a gnose

    no um fenmeno cristo. Pelo contrrio, anterior ao cristianismo. O que precisa

    ainda ser aprofundado a origem do que se convencionou chamar de gnosticismo

    cristo, ou seja a relao entre gnosticismo e cristianismo.

    A dificuldade que impede uma definio concisa do fenmeno gnstico reside no fato de ser um dos mais expressivos movimentos sincretistas da antiguidade. Misturam-se nele pensamentos do Ir, do judasmo, das religies dos mistrios, da filosofia, astrologia, das religies tradicionais e nas mais diversas propores, produzindo uma extraordinria variedade de formas.18

    2. Gnosticismo cristo

    Definir o gnosticismo cristo tem sido uma das tarefas mais difceis nos

    ltimos tempos. Por uma lado, fala-se do movimento gnstico e do movimento

    cristo como duas realidades separadas. Por outro lado, fala-se do movimento

    gnstico e sua relao com os primrdios do cristianismo.

    Tanto gnosticismo quanto o cristianismo incipiente tinham respostas para as

    grandes perguntas do ser humano: de onde eu vim ? para onde vou ? Para os

    gnsticos este mundo resultado de uma contradio da prpria divindade. Como

    parte da divindade, o ser humano foi aprisionado e neste mundo est privado da

    16

    SIMON; BENOIT, 1987, p.282. 17

    Tese defendida por R.M.Grant. Tambm J. Danilou sustenta que as doutrinas gnsticas so de origem judaica, ligados apocalptica judaica e depois crist.286.

    18 BRAKEMEIER, Gottfried. Mundo Contemporneo do Novo Testamento. p.211.

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    comunho com Deus. No mundo o ser humano um estranho. Ele no pertence a

    este mundo. Para o gnstico, o importante tomar conscincia desta condio. Com

    base neste diagnstico, o gnstico tem gnose, conhecimento.19

    Contudo, para despertar da dormncia na qual se encontra, o ser humano

    precisa ser chamado pelo Salvador. No gnosticismo cristo esse Salvador Jesus.

    Este chamado de Jesus desperta o ser humano e o torna gnstico, conhecedor de

    sua condio e destino. Por meio do conhecimento o ser humano gnstico passa a

    rejeitar radicalmente sua condio humana e seu envolvimento com as estruturas

    deste mundo.

    Boa parte do que sabemos acerca do gnosticismo cristo oriundo dos Pais

    da Igreja que o condenaram. Nesse sentido, no h como deixar de reconhecer o

    interesse genuinamente cristo na descrio deste gnosticismo.

    Em geral, se identificam traos do gnosticismo na prpria criao do cnon do

    Novo Testamento. Vestgios mais claros do gnosticismo so percebidos na literatura

    joanina e nas demais cartas pastorais. Tambm os adversrios de Paulo em Corinto,

    Filipos e na Galcia so acusados de gnsticos.

    No caso da literatura Joanina, afirmado que o evangelho se ope ao

    gnosticismo. O evangelista firma que o verbo se fez carne (Jo1.14).20 Tambm os

    hereges das cartas joaninas so acusados de fazer uma diferena entre Jesus,

    como humano, e Cristo, como esprito. Cristo estaria apenas revestido de Jesus. A

    encarnao no teria acontecido efetivamente.

    2.1 Joo

    Uma das caractersticas do evangelho de Joo diz respeito ao entrelaamento

    entre o estilo e a teologia. Segundo Brawn,21 a presena potica est limitada fala

    mais solene de Jesus, onde o discurso divino est presente. Por outro lado, o autor

    de Joo emprega metforas. Com as metforas abre possibilidade para mais uma

    interpretao da narrativa.

    Depois do prlogo (1,1-1,18), onde Jesus apresentado como ser divino que

    luz e Filho do unignito de Deus (1.14,18), segue o livro dos sinais (1.19-12.50),

    onde a primeira parte trata do tema da vida (2-4). Segue com o tema da luz que

    19

    SCHOENBORN, Ulrich. Gnosticismo cristo: p.3. 20

    Assim BRAKEMEIER, Gottfried. Mundo Contemporneo do Novo Testamento.p.223 21

    BROWN, 1984, p.460.

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    culmina com a narrativa do bom pastor (5-10). Joo 11-12 tratam da ressurreio de

    Lzaro de de sua repercusso.

    A segunda parte do livro est reservada para o livro da glria (13.1-20.31),

    onde esto inseridos a narrativa da ceia e o ltimo discurso de Jesus (13-17), e o

    relato da paixo e morte (18-19) e as cenas em Jerusalm e o destaque f no

    ressuscitado (20.1-29). O eplogo (21.1-25) conclui o evangelho.22

    Entre os estudiosos do NT do sculo XX tornou-se predominante a convico

    de que o pano de fundo religioso do evangelho de Joo sobretudo o

    gnosticismo.23 Porm, os documentos mais antigos do gnosticismo gentio datam do

    sculo VII ou VIII e esto relacionados com os mandeus.

    Neles encontramos o mesmo dualismo luz-trevas, de cima-de baixo, morte-vida, Deus-mundo. O conceito da verdade tem importncia especial nesses escritos. Descreve o relacionamento com o ser supremo e tambm com as outras pessoas, e pode tambm se tornar o poder de salvao personificado.24

    A discusso acerca da influncia gnstica no evangelho vai da afirmao de

    que um personagem de salvao, como aparece nos escritos gnsticos, no pode

    ser comprovado em pocas pr-crists (C. Colpe), passando pela hiptese de que o

    evangelho de Joo pode ter sido influenciado pelos mandeus (R. Bultmann) e da

    negao desta possibilidade (W. G. Kmmel), at a afirmao de que Joo

    influenciado por um suposto gnosticismo judaico (R. Schnackenburg).25

    Digno de nota nesse contexto so tambm os escritos de Nag-Hammadi. Em 1945 nesse lugar na regio de Chenoboskion no Egito foram encontrados 50 tratados gnsticos em lngua copta. Entre eles estavam o Evangelho de Tom, o evangelho da Verdade (Evangelium Veritatis) e o apcrifo de Joo.26

    22

    BROWN, 1984, p.480ss. 23

    HOERSTER, Gerhard. Introduo e sntese do Novo Testamento. p.44. O autor chama ateno para o fato de que no dispomos de escritos que provem a existncia de um gnosticismo gentio na poca do surgimento do NT.

    24 HOERSTER, 1996, p.45.

    25 HOERSTER, 1996, p.46s.

    26 Segundo HOERSTER ,o evangelho da Verdade importante para a relao com o evangelho de

    Joo, . Ele surgiu por volta de 150 d.C. Nele so discutidas as questes da salvao do homem e da origem do salvador. O homem vem de Deus e est destinado a voltar para Deus. O salvador abre esse caminho para a volta, ao revelar Deus e possibilitar o conhecimento de Deus. A salvao acontece por meio do conhecimento da revelao divina.

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    As muitas tentativas de explicar a relao de Joo com o gnosticismo tambm

    passam pela interpretao da testemunha ocular junto cruz (Jo 19.35). A

    presena de um discpulo annimo a quem Jesus amava (Jo 19.26) no evangelho,

    tem suscitado as mais diferentes explicaes. Este discpulo amado annimo, alm

    de testemunhar , tambm escreveu estas coisas (Jo 21.20,24).

    Na tradio crist primitiva, coube a Irineu (180 d.C.) transmitir a informao

    onde o discpulo amado identificado com Joo, um dos doze, que viveu em

    feso.27 Contudo, h grande resistncia em acolher a ideia de que Joo, testemunha

    do ministrio pblico de Jesus, tenha escrito e que seja o discpulo amado.

    A pesquisa tem cogitado trs hipteses para a identidade do discpulo amado.

    A primeira identifica o discpulo amado com uma figura neotestamentria

    conhecida. Na relao esto Joo, filho de Zebedeu; Lzaro, Joo Marcos e Tom.

    Outra possibilidade identifica o discpulo amado com um smbolo, criado para

    modelar o discpulo perfeito. Uma terceira alternativa levanta a hiptese de que o

    discpulo amado seja uma figura secundria durante o ministrio de Jesus.28

    A imagem joanina de um salvador que veio do alto, de um mundo estranho, que afirmou que nem ele e nem aqueles que o aceitaram eram deste mundo (Jo17.14) e que prometeu voltar para lev-los para as moradas celestes (Jo14.2-3) poderia corresponder imagem gnstica de mundo.29

    Na tradio gnstica existe a figura do prncipe. O livro de Atos de Tom narra

    o que vem sendo denominado de hino da prola, poesia da prola, hino da

    alma ou ainda hino de Judas Tom Apstolo no pas dos indianos30. Este mito

    helenista ou conto popular apresenta a entrada da alma humana na encarnao

    corporal e seu despojamento final do corpo.31

    No mito um jovem prncipe mandado por seus pais para procurar e trazer

    uma preciosa prola que se encontra no fundo do mar e guardada por um drago.

    O (1) rei do (2) Oriente (Prtia) envia (3) o prncipe pela estrada (4) da satrapia de Mesene (Meson) ao (5) Egito, a fim de (6) obter uma prola preciosa. O prncipe (7) intoxicado e embebedado pelos (8) egpcios. Mas (9) despertado por (10) uma mensagem do rei. Ele (11) pega a prola e (12) retorna ao

    27

    BROWN, 1984, p.501. 28

    BROWN, 1984, p. 501. 29

    BROWN, 1984,p. 505. 30

    Todos esses ttulos so criao dos pesquisadores modernos. Esses ttulos no constam nos manuscritos antigos.

    31 LAYTON, Bentley. As escrituras gnsticas. p.433.

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    Oriente, onde veste (13) um manto de gnosis (14) ascende ao palcio do rei, (15) entrando no reino de paz.32

    Antes de partir o prncipe orientado para no ser reconhecido. As vestes

    reais lhe so tiradas. instigado a no esquecer sua ascendncia real. Depois de

    viajar faz sua morada junto ao drago. Ali aguarda o momento certo para pegar a

    prola. Contudo, devido aos alimentos fornecidos pelos habitantes locais, o prncipe

    esquece da sua misso e origem real. Assim permanece at receber a mensagem

    dos pais j desiludidos como filho. A carta levada por uma guia exorta o prncipe a

    despertar do sono e lembrar de sua procedncia, a ver sua escravido e lembrar da

    prola que o levou ao Egito. Ento o prncipe acorda. tomado de grande alegria.

    Tambm se lembra da tarefa da qual havia sido incumbido. Consegue ento

    enfeitiar a o drago, roubar a prola e toma r o caminho de volta para casa. A carta

    o protege dos poderes malignos. Prximo de casa recebe as vestes enviadas pelos

    pais. Ele volta a ser prncipe. Cumpriu sua misso e devolve a prola ao rei dos reis.

    O sentido figurado desta poesia pode ser assim resumido:

    A prola que pertence ao rei representa a alma ou o esprito do ser humano, presa do drago. O prncipe o salvador, enviado pela divindade em busca da prola perdida. Ele se disfara para no ser reconhecido pelos poderes escravizantes. Muda as suas vestes, deixa pra trs o que o identifica como ser divino. Mas ele sofre o mesmo destino da prola. Esquece de onde vem. Neste momento ele um salvador que mesmo necessita de salvao. A mensagem salvadora lhe transmitida pela referida carta. Esta muda a sua situao. No momento em que lembra de sua qualidade de prncipe, ele um salvador que foi salvo. Depois de ter raptado a prola transformado de novo em ser divino que o visivelmente.

    33

    Desse modo, o mito descreve a sorte do ser humano, sua natureza e misso.

    Na tradio crist esta histria foi relacionada com Jesus. Ele o salvador que trs a

    gnose aos seres humanos. O corpo apenas lhe serve de disfarce. Ele se veste de

    humano para camuflar a verdadeira natureza.

    O autor do hino da prola desconhecido. Mesmo sendo um texto de Atos

    de Tom, acredita-se que o mesmo seja uma composio independente e que foi

    incorporado pelo autor por ocasio da elaborao do livro.34

    32

    LAYTON, 2002, p.434. 33

    BRAKEMEIER, 1971 , p.220s. 34

    Atos de Tom provavelmente foi escrito em Edessa, por volta de 200-225 d.C. A lngua original de composio tambm debatida. So cogitados o grego e o siraco, no sendo descartada a possibilidade de uma publicao simultnea nas duas lnguas. LAYTON, 2002, p.435s.

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    A pergunta pela relao entre o discpulo amado de Joo e o gnosticismo

    nunca foi devidamente respondida. Ora, a figura do discpulo amado que aparece no

    evangelho de Joo se assemelha figura do prncipe, contada na tradio gnstica

    no livro de Atos de Tom. As caractersticas do discpulo amado em Joo 21.20 se

    aproximam da descrio do prncipe gnstico. Como elementos identificadores esto

    o anonimato e o desconhecimento. Quando Pedro pergunta: Senhor, e este? De

    quem estava mesmo falando? Quem pergunta Pedro. Logo Pedro que havia

    convivido tanto com Jesus parece desconhecer o discpulo amado.

    A resposta de Jesus ainda mais intrigante: se eu quero que ele permanea

    at que eu venha, que te importa ? (Jo 21.22). Na sequncia a narrativa de Joo

    segue com a informao de que circulou um boato de que o discpulo amado no

    morreria.

    De alguma maneira, o discpulo amado o prncipe que est espreita da

    prola. Nesse sentido, Joo apresenta o discpulo amado como uma forma de

    personificao da sabedoria gnstica.

    Concluso

    O gnosticismo um fenmeno a ser definido. Embora os primeiros estudos

    tenham relacionado o gnosticismo com o cristianismo e numa perspectiva

    apologtica, as pesquisas mais recentes tem procurado situar este fenmeno como

    sendo anterior ao prprio cristianismo. Nesta direo so fundamentais as

    concluses dos estudos comparados das religies. Alm de atribuir ao gnosticismo

    uma certa autonomia existencial, estes estudos tambm mostraram que a

    dimenso religiosa, filosfica e tica do gnosticismo tem razes em antigas tradies

    orientais. Alm disso, as descobertas de Nag Hammadi revelaram textos gnsticos

    que atestam a originalidade do fenmeno.

    Com relao ao Evangelho de Joo difcil dizer o que nele gnstico e qual

    gnosticismo influenciou a comunidade joanina. No caso especfico da figura do

    discpulo amado, pode-se perceber elementos em comum entre o personagem

    principal do hino da prola e as caractersticas do discpulo amado de Joo. Ainda

    assim, uma simples identificao do discpulo amado com o prncipe temerria.

    Pois, nesse caso, a identidade gnstica no estaria no prprio Jesus, mas no

    discpulo amado. Fato que necessariamente desencadearia uma outra discusso.

  • CONGRESSO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 1., 2012, So Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. So Leopoldo: EST, v. 1, 2012. | p.1018-1028

    1028

    Conclusivo, no entanto, o fato de o gnosticismo no ser assim to avesso

    realidades corpreas como a tradio crist legada por Irineu deixa a entender. Aqui

    seria preciso ampliar a discusso para distinguir o que o cristianismo questiona do

    gnosticismo acerca da compreenso de Jesus, daquilo que efetivamente o gnstico

    prope como sentido de vida. A rejeio radical da condio humana e do

    envolvimento com as estruturas deste mundo talvez deva ser vista mais na

    perspectiva da inconformidade da pessoa gnstica com este mundo e a tenso

    gerada pelo fato de estar neste mundo, e precisar dispor dos recursos deste mundo

    para viver, do que propriamente uma negao do mundo.

    Referncias

    BRAKEMEIER, Gottfried. Mundo Contemporneo do Novo Testamento. So Leopoldo: Faculdade de Teologia, 1971. 141 p. BROWN, Raymond Edward. . A Comunidade do Discpulo Amado. So Paulo: Paulinas, 1984. 216 p. BROWN, Raymond Edward. . Introduo ao Novo Testamento. So Paulo: Paulinas, 2004. 1135 p. (Bblia e histriaSrie maior) HOERSTER, Gerhard. Introduo e sntese do Novo Testamento. Curitiba: Editora Evanglica Esperana, 1996. 197 p. LAYTON, Bentley. As escrituras gnsticas. So Paulo: Loyola, 2002. 584 p. San Irineo. Disponvel em: http://www.corazones.org/santos/ireneo.htm. Acessado em 15.07.2012. SCHOENBORN, Ulrich. Gnosticismo cristo: linguagem revolucionria e releitura de texto. So Leopoldo: IEPG, EST, 1995. 36 p. SIMON, Marcel; BENOIT, Andr. Judasmo e Cristianismo Antigo: de Antoco Epifnio a Constantino. So Paulo: Pioneira, 1987. 350 p. (Biblioteca Pioneira de cincias sociais Histrian. 10).