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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA JADERSON GONÇALVES NOBRE SERENIDADE EM HEIDEGGER: UM DIÁLOGO ENTRE A TÉCNICA E A ARTE Fortaleza CE 2015

136. A serenidade em Heidegger: Um diálogo entre a técnica e arte

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR

    CENTRO DE HUMANIDADES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    MESTRADO ACADMICO EM FILOSOFIA

    JADERSON GONALVES NOBRE

    SERENIDADE EM HEIDEGGER: UM DILOGO ENTRE A

    TCNICA E A ARTE

    Fortaleza CE

    2015

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    JADERSON GONALVES NOBRE

    SERENIDADE EM HEIDEGGER: UM DILOGO ENTRE A

    TCNICA E A ARTE

    Dissertao apresentada ao Curso de

    Mestrado Acadmico em Filosofia do

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia da

    Universidade Estadual do Cear, como

    requisito parcial obteno do ttulo de

    Mestre em Filosofia.

    rea de Concentrao: tica e Esttica

    Orientador: Prof. Dr. Eduardo Triandopolis.

    Fortaleza CE

    2015

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    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao

    Universidade Estadual do Cear

    Sistemas de Biblioteca

    M488d Nobre, Jaderson Gonalves.

    Serenidade em Heidegger: Um dilogo entre a tcnica e a arte [recurso eletrnico] / Jaderson Gonalves Nobre. 2015.

    1 CD-ROM: 4 pol.

    CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadmico com 98 folhas, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm).

    Dissertao (mestrado acadmico) Universidade Estadual do Cear, Centro de Humanidades, Mestrado Acadmico em Filosofia, Fortaleza, 2015.

    rea de Concentrao: tica e Esttica.

    Orientao: Prof. Dr. Eduardo Triandopolis.

    1. Serenidade. 2. Mistrio. 3. Tcnica. 4. Arte. 5. Verdade. I. Ttulo.

    CDD: 370.9144

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  • 6

    A minha irm Jessica, pela

    sinceridade com que leva a vida.

    Quando algum nos admira como

    se tivssemos um guardio que a

    cada passo nos relembra, nos res-

    guarda em nosso caminho.

    A minha mulher Irlana, que com seu

    sorriso alegre me faz acreditar que

    sim possvel.

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    AGRADECIMENTO

    Agradeo antes de tudo a minha famlia, que esteve, est e com certeza

    estar, presente em todos os momentos, alegres e tristes de minha vida. Que

    ao me dizer que eu poderia ir muito longe, me fez perceber que o meu caminho

    no sentido de ir cada vez mais para perto. Amo vocs.

    A minha mulher, Irlana, que, alm da presena do dia-a-dia, acreditou e amou,

    junto comigo, no que aqui venho a dizer. Alm de me proporcionar uma nova

    famlia.

    Aos meus amigos que por caminharem juntos, sempre me alimentaram de um

    bom nimo para seguir lutando pelo que acredito.

    Ao meu orientador, Prof. Eduardo Triandopolis, que por me deixar caminhar

    com minhas pernas, com meu esprito, possibilitou que brotasse aquilo que

    realmente estava em meu mago.

    banca examinadora, Professora Cristiane Marinho, Professora Tereza

    Callado, que ao lerem e comentarem o meu trabalho compuseram comigo a

    essncia do di-logo.

    Agradeo tambm, em especial, a todos os que um dia vierem a ler esta

    pesquisa. Que ela lhes animem, tanto quanto me animou ao escrev-la.

    natureza, com seus bichinhos e plantas, em uma harmonia to profunda e

    contagiante que me revelou a essncia mais originria do que a vida. O estar

    em comunho com o que nos cerca e nos compe.

  • 8

    Todas as obras dos poetas mimticos, se me afiguram ser a destruio da

    inteligncia dos ouvintes, de quantos no tiverem o antdoto e o conhecimento

    de sua verdadeira natureza.

    (Plato, Repblica).

    A arte como o nico antdoto superior contra toda e qualquer vontade de

    negao da vida

    (Nietzsche, Vontade de poder.)

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    RESUMO

    Em que sentido a Serenidade, como um di-logo entre o pensamento que

    calcula e o pensamento que medita um di-logo entre a tcnica e a poesia em

    conjunto com a abertura ao mistrio, fonte originrio de todos os vigentes, se

    apresentam como uma possibilidade, um caminho de enfrentamento ao perigo

    adveniente da crise resultante da dominao global da tcnica nos mbitos

    mais essenciais da vida? Esse enfrentamento parece se dar no mbito da

    linguagem e do pensar, enquanto a morada do ser. O homem como o guardio

    dessa morada do ser aquele que se abrindo ao mistrio do a ser destinado

    pode, arriscando-se ao saltar no abismo do que no vige, permitir, ou melhor,

    ser permitido, nessa outra possibilidade. Aguardando, correspondendo ao seu

    destino, o homem pode ser a medrana do que salva. Para tal pesquisa

    colocam-se aqui em di-logo trs ensaios heideggerianos: A questo da

    tcnica, A origem da obra de arte e Serenidade. Buscamos uma relao destes

    ensaios com outros ensaios centrais de Heidegger, assim como, sua relao

    com os filsofos que lhe foram fundamentais para que ele chegasse onde

    chegou. Portanto, buscamos pensar as questes presentes a partir de suas

    origens, enquanto questes ticas, estticas e metafsicas. Alm de re-colocar

    questes fundamentais filosofia como a questo do ser, da verdade e da

    linguagem. Trata-se aqui de um debate contemporneo com a tradio que

    busca res-guardar algo originrio que caiu no esquecimento.

    PALAVRAS-CHAVE: Serenidade. Mistrio. Tcnica. Arte. Verdade.

  • 10

    ABSTRACT

    Think in what sense the Serenity, as a con-versation between thinking that

    calculates and thought that meditates a con-versation between technique and

    poetry together with openness to the mystery, source originating in all existing,

    present as a possibility, one danger facing path arising the resulting crisis of

    global technical domination over all the most essential areas of human. A

    confrontation, so that occurs in the context of language and thinking, while the

    same, namely, the abode of being. Man as the guardian of this home of being is

    one that opening up the mystery of themselves for can, risking to jump into the

    abyss than not prevails, allow, or rather, be allowed, that another possibility.

    Waiting, corresponding to its destination, the man may be the possibility than

    saved. For such research put into day-logo Heideggerians three tests: The

    question of technique, The origin of the artwork and Serenity. Seeking a list of

    these tests with the central test Heidegger, as well as their relationship with the

    philosophers that this was essential for this came near unto arrived. So it's a

    research that seeks to think the issues present from its origins. Debating issues

    Ethics, Aesthetics and Metaphysics. In addition to re-raising fundamental

    questions of philosophy and of being, of truth and language. A contemporary

    debate in confrontation with the tradition and re-save something original search

    that fell by the wayside.

    KEYWORDS: SERENITY, MYSTERY, TECHNICAL, ART, TRUTH.

  • 11

    SUMRIO

    1 INTRODUO: O silencioso chamado: O caminho que urge........................ 11

    2 O PERIGO QUE AMEAA: UM OLHAR ESSNCIA DA TCNICA................ 14

    2.1 DA PERGUNTA PELA TCNICA PERGUNTA PELA ESSNCIA: SOBRE A

    QUESTO DO SER...............................................................................................

    14

    2.2 A LIVRE RELAO COM A TCNICA: DA CORRETUDE VERDADE............. 21

    2.3 TCNICA GREGA E MODERNA: DA POESIS EXPLORAO....................... 26

    2.4 DIS-PONIBILIDADE E COM-POSIO: ACERCA DO DESVELAMENTO

    EXPLORADOR DA TCNICA MODERNA............................................................

    31

    3 POETAS EM TEMPOS INDIGENTES: ACERCA DA ESSNCIA DA

    ARTE......................................................................................................................

    38

    3.1 ONDE MORA O PERIGO CRESCE O QUE SALVA: DA PERGUNTA PELA

    TCNICA PERGUNTA PELA ARTE..................................................................

    38

    3.2 O ORIGINRIO DA OBRA DE ARTE: O PR-EM-OBRA DA VERDADE............ 44

    3.3 PENSAMENTO POTICO: UM DIZER SILENCIOSO........................................... 54

    3.4 POETAS EM TEMPOS INDIGENTES: UM SALTO NA VEREDA......................... 63

    4 O CAMINHAR SERENO: UM AGUARDAR NA PROXIMIDADE DO MISTRIO. 71

    4.1 DA DESTRUIO SUPERAO DA METAFSICA: ACERCA DA

    IDENTIDADE E DIFERENA................................................................................

    71

    4.2 SERENIDADE: O DIZER SIM E NO TCNICA................................................ 76

    4.3 DA ABERTURA OU MISTRIO: O DEMORAR-SE NO ENTRE........................... 80

    4.4 DA ABERTURA AO AGUARDAR: O CAMINHAR SERENO NA VEREDA........... 85

    5 CONSIDERAES FINAIS A-CERCA DO ENTENDIMENTO HUMANO: O

    SALTO NA VEREDA.............................................................................................

    91

    REFERNCIAS...................................................................................................... 94

  • 12

    1 INTRODUO

    O silencioso chamado: O caminho que urge

    A presente pesquisa tem como proposta pensar a problemtica apontada

    por Heidegger no mbito da dominao da tcnica, no presente momento da

    humanidade. Adentrando esta problemtica buscaremos ir ao fundo das

    questes para demonstrarmos quo dominado encontra-se o homem, e assim,

    pensar em que sentido possvel reconhecer essa crise e qual o meio que

    devemos proceder para efetivar esse reconhecimento. Ao fazermos uma

    imerso nos textos de Heidegger buscaremos, a partir do que foi por ele

    pensado, enfrentar essas questes. Destacaram-se para esta pesquisa trs

    conferncias em especial: A questo da tcnica (1953); A origem da obra de

    arte (1936) e Serenidade (1955).

    Neste primeiro ensaio Heidegger pensa a crise de seu tempo como uma

    crise que tem por base o modo como se encara a tcnica, o saber, a linguagem

    e o ser. Esse modo de pensar e dizer vem se desenvolvendo, a partir do seu

    olhar nos primrdios da Filosofia at o perodo clssico com Plato e

    Aristteles.

    Esse saber encontra-se naquilo que ele chama de seu estgio de

    acabamento onde a tcnica passa a reger e a dominar, quase que

    completamente, todos os mbitos do humano, ameaando-o em sua essncia.

    Assim, ao sermos remetidos a uma leitura mais aprofundada deste ensaio nos

    confrontamos com os escritos de outros filsofos como Plato, Aristteles e

    tambm, Toms de Aquino, Descartes, Kant, Hegel e Nietzsche. Contudo, em

    cada um destes pensadores, teremos um olhar voltado s questes

    heideggerianas que aqui buscamos pensar.

    Pensada a problemtica e identificado o caminho que se mostrou como

    alternativa dominao da tcnica sobre o homem, passaremos ao segundo

    momento de nossa pesquisa. Um debate acerca de um ensaio, anterior na

    ordem do tempo ao ensaio da tcnica, mas na nossa pesquisa

    metodologicamente discutido em um momento posterior.

  • 13

    A origem da obra de arte o resultado de trs conferncias que se puseram

    a tratar da questo da arte e de sua essncia. Na busca pela essncia da arte

    enfrentaremos, com Heidegger, alm da sempre presente questo do ser e da

    verdade, questes estticas e outras acerca do estatuto do que venha a ser a

    Esttica como um campo do saber filosfico. Nessa busca de um retorno ao

    que seja o originrio na arte, teremos em vista o que h na essncia da arte

    que possa vir a se apresentar como aquela possibilidade de confronto crise

    identificada no primeiro ensaio, portanto, algumas questes concernentes a

    esse ensaio que, diante o nosso olhar, no esto propriamente ligadas ao que

    aqui se busca, no sero tratadas com a profundidade com a qual trataremos

    as que propriamente se colocam em nosso caminho. Outros ensaios

    heideggerianos acerca da arte, do potico, da linguagem, assim como do

    pensamento de Nietzsche sobre a arte, faro parte deste segundo momento de

    nossa pesquisa, contudo, novamente como no primeiro ensaio, a estes nos

    reportaremos, na medida em que isso se mostrar apropriado ao curso do nosso

    caminhar.

    Tendo sido feita a leitura destes dois ensaios iniciais, onde o primeiro

    apresenta a problemtica e o segundo nos mostra uma outra possibilidade de

    confronto, adentraremos o ensaio que nos permitir pensar que tipo de

    confronto ocorre entre a tcnica e a arte pensada por Heidegger.

    Com o ensaio Serenidade, ensaio norteador deste trilhar como um todo,

    pensaremos em questes como inverso, retorno, di-logo, sntese, identidade

    e diferena, porm, para que estas questes no nos sejam apresentadas de

    fora, o que nos transporia a um mbito completamente diferente do que aqui se

    intenta adentrar, percorreremos lentamente, cuidadosamente e

    insistentemente, passo a passo, ou seja, no interior das questes, at que

    estas se apresentem a ns no que elas so.

    Para tanto, como caracterstico na leitura dos escritos heideggerianos,

    duas questes que lhes so centrais e que o acompanham por todo o seu

    pensar, devem ser devidamente tratadas, para que, assim, esse caminhar

    parta, desde os primeiros passos, de dentro de sua filosofia. So estas, as

    questes da verdade e do ser. Estas questes sero tratadas a partir de uma

    trilogia pensada pelo prprio autor como inter-ligadas, onde uma no pode,

    devidamente, ser pensada sem a outra. Essa trilogia composta assim pelas

  • 14

    conferncias: O que metafsica (1929); A essncia da verdade (1930) e A

    questo do fundamento (1929).

    Assim percorrido o caminho desta pesquisa, buscaremos, com o devido

    cuidado e responsabilidade para com o leitor, apresentar o resultado de um

    profundo esforo de pesquisa sobre o essencial ao homem, sua situao

    presente e sobre uma possibilidade de enfrentamento de alguns dos problemas

    que se apresentam como os mais ameaadores e perigosos para sua

    existncia.

    A serenidade como uma revoluo radical nossa meta neste trabalho,

    pois busca as razes de onde se radica uma vasta gama de problemticas.

    Uma disposio que s se mostrar livre de diversos preconceitos que a ela

    possam ser atribudos aps essa leitura interior. Aqui, como interior tem-se a

    necessidade de um ultrapassar da razo no sentido de uma escuta ao corao

    e ao caminho proposto. S por esse olhar interior, a serenidade se mostrar

    no como uma mera passividade que se ausenta daquilo que no presente

    momento histrico urge, mas, se mostrar como aquela ao mais radical de

    confronto crise a qual vem passando toda a humanidade.

    , portanto, com o maior vigor da seriedade e responsabilidade que

    devemos ter sobre o nosso presente momento e lugar que se faz aqui esse

    convite leitura das palavras que se seguem. Palavras que pretendem ser uma

    conversa entre o que, a partir deste caminhar junto, poderemos chamar de

    amigos.

  • 15

    2 O PERIGO QUE AMEAA: UM OLHAR ESSNCIA DA TCNICA

    Neste captulo sero tratadas as questes acerca da tcnica e de sua

    essncia, com isso, ser possvel refletir o sentido da crise apontada por

    Heidegger sociedade atual. Diante do sentido desta crise, ser buscada,

    junto ao filsofo, uma indicao de um caminho de fuga, de confronto, de

    superao. Para tal investigao, se dar de incio uma breve introduo ao

    pensar heideggeriano concernente ao ser e verdade, pontos centrais em toda

    sua obra filosfica. Em seguida abordaremos os questionamentos presentes no

    ensaio A questo da tcnica (1953), relacionados com o caminho que aqui

    buscamos traar.

    2.1 Da pergunta pela tcnica pergunta pela essncia: A questo do ser

    A pergunta pela tcnica ser desenvolvida no sentido de indicar uma

    situao crtica da humanidade atual e do modo como esse homem se

    relaciona com o ambiente que o cerca. Uma situao que, segundo o filsofo

    Martin Heidegger (1889-1976), tem na concepo tcnica; lgico-cientfica e

    metafsico-filosfica, o centro da problemtica, contudo, no se trata aqui de

    negar ou afirmar cegamente a tcnica, mas de desenvolver um questionamento

    que abra nossa presena para uma livre relao com esta, pois, s em uma

    relao livre pode-se saber o que verdadeiramente a tcnica, pode-se

    A infncia da palavra j vem com o primitivismo

    das origens.

    Nossas palavras se juntavam uma na outra por

    amor e no por sintaxe.

    Manoel de Barros, Menino do mato.

    ... pois evidente que h muito sabeis o que

    propriamente quereis designar quando empregais a expresso ente. Outrora, tambm ns

    julgvamos saber, agora, porm, camos em aporia.

    Plato, O sofista.

    Ningum de ns, na verdade, tinha fora de fonte.

    Ningum era incio de nada.

    Manoel de Barros, Poemas rupestres.

  • 16

    experienciar sua essncia. Para esta caminhada, Heidegger iniciaria com a

    pergunta: Qual a essncia da tcnica?

    No podemos considerar Heidegger um filsofo sistemtico, pelo contrrio,

    seus questionamentos se entrelaam em todo o conjunto de sua obra. Pode-se

    ler as questes do ser e da verdade, estas que lhes so fundamentais, em

    seus diversos escritos e conferncias, e assim que se d com a tcnica.

    Diversos so os escritos onde podemos ler algo relacionado com a questo,

    porm, no ensaio A questo da tcnica, que se encontra em uma coletnea

    de textos intitulada pelo prprio autor de Ensaios e conferncias, que podemos

    encontrar este tema com um maior vigor de desenvolvimento. Da, tomarmos

    esse ensaio como base central para esta investigao, mas sempre buscando

    relacion-lo com outros textos e autores.

    Qual a essncia da tcnica? Heidegger nos indica duas respostas dadas

    pela tradio, respostas estas que se concatenam em uma. Diz: i) A tcnica

    um meio para um fim; ii) A tcnica uma atividade do homem. Estas

    determinaes correntes da tcnica, Heidegger chama de determinao

    instrumental e antropolgica da tcnica 1, mas, para que atividade do homem

    a tcnica um instrumento e meio? Como se desenvolveu o interesse por seu

    domnio? Surgiu para suprir nossas necessidades bsicas, para que o homem

    pudesse dominar e se assegurar das incertezas advindas das diversidades do

    ambiente que o circunda, bastando, para isso, que o homem domine a tcnica

    com todo seu empenho. nesse sentido que diz Heidegger:

    A concepo instrumental da tcnica guia todo esforo para colocar o

    homem num relacionamento direto com a tcnica. Tudo depende de se manipular a tcnica, enquanto meio e instrumento, da maneira devida. Pretende-se, como se costuma dizer, manusear com esprito

    a tcnica. Pretende-se dominar a tcnica. Este querer dominar torna-se tanto mais urgente quanto mais a tcnica ameaa escapar ao

    controle do homem. 2

    O instrumento que lhe levaria a segurana pelo domnio da natureza,

    ameaa-lhe fugir ao controle. essa ameaa que desperta no filsofo a

    necessidade de uma real investigao de sua essncia, portanto,

    recoloquemos a questo com um maior cuidado, evitando apresentar

    1 HEIDEGGER, Martin. A questo da tcnica [1959]. In: Ensaios e conferncias. Trad. br. Emmanuel Carneiro Leo.

    Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. P.12. 2 Idem.

  • 17

    apressadamente as respostas dadas pela tradio sobre sua essncia. Vamos

    demorar com maior cuidado na pergunta em si, escutando o que a pergunta

    mesma nos encaminha. Qual a essncia... da tcnica? Ao perguntar assim soa

    outro questionamento: o que isto... a tcnica? Esta forma de questionamento,

    que se coloca deste modo - o que isto? - a forma de questionar da prpria

    Filosofia. Este modo de questionamento j se encontra presente em Plato e

    Aristteles. o modo grego de questionar o vigente. Assim, diz Heidegger:

    Com a questo agora posta avanamos para a proximidade do

    grego. aquela forma de questionar desenvolvida por Scrates, Plato e Aristteles. Estes perguntavam, por exemplo: Que isto o

    belo? Que isto o conhecimento? Que isto a natureza? Que isto o movimento?

    3

    E do mesmo modo podemos fazer a pergunta: O que isto o ente?

    Heidegger indica que neste questionamento encontra-se a questo diretriz de

    toda histria da Filosofia/Metafsica ocidental, esta que se assemelha com a

    histria do esquecimento do ser. Comeamos com a pergunta pela essncia da

    tcnica e agora nos encontramos diante da pergunta pelo ente e de sua

    diferena diante da pergunta pelo ser. Comeamos em um ponto para agora

    chegarmos a sua origem. Aqui, torna-se necessrio um esclarecimento sobre o

    que seja o comeo e sua diferena fundamental com o que seja a origem

    (Ursprung), ou melhor, com o que seja o originrio, o principial. O comeo no

    ainda o princpio, a origem, ou dizendo ainda de forma mais condizente com

    o pensar heideggeriano, o comeo no ainda o originrio. Em seu escrito

    Hinos de Hlderlin [1935/1935], Heidegger distingue bem essa diferena entre

    comeo e princpio. Diz:

    Princpio no o mesmo que comeo. (...) O comeo aquilo com que algo se inicia, o princpio aquilo de onde isso vem. (...) O comeo cedo deixado para trs, desaparecendo na continuao

    dos acontecimentos. O princpio, a origem, pelo contrrio, evidencia-se primeiramente entre os acontecimentos e s no fim destes est

    plenamente presente. (...) Ns humanos nunca podemos principiar com o princpio, disso s um deus capaz pelo contrrio temos

    de comear, isto , partir de um incio que s conduz origem ou a indica.

    4

    Aqui, temos algumas palavras essenciais para o pensar inovador de

    Heidegger, Ur-sprung/Ursprungliche e An-fang/Anfngliche. Ur-

    3 HEIDEGGER, Martin. O que isto a Filosofia? In: Conferncia e escritos filosficos. Trad. br. Ernildo Stein. So

    Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. P.30. 4 HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hlderlin [1934/35]. Trad. pt. Lumir Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 1979. pp. 11-12.

  • 18

    sprung/Ursprungliche pode ser traduzido, na forma de substantivo e na forma

    de adjetivo substantivado, por origem e originrio. O mesmo se d com An-

    fang/Anfngliche que nos surge como princpio e como principial. Nestas

    tradues5 somos remetidos a um ponto de partida, a um solo, a um comeo.

    de encontro a esse sentido de ponto de partida que o pensar de Heidegger se

    d. No seu ensaio A origem da obra de arte, os termos, Ursprung e Anfang, se

    apresentam com todo seu vigor como palavras essenciais no sentido de

    originrio e principial: A palavra origem (Ursprung) no sentido de originrio

    (Ursprungliche) significa fazer eclodir algo, trazer algo ao ser num salto

    fundador, a partir da provenincia da essncia6. Em outro momento diz: O

    autntico princpio (Anfang) nunca tem o carter de comeo do primitivo,

    sempre como um salto-prvio7.

    Para adentrarmos um pouco mais na questo ser feita uma breve

    introduo questo do ser e sua relao essencial com o ente. Aqui temos

    como destino de nossa investigao uma questo diferente: a da pergunta pela

    crise da sociedade atual, denominada por Heidegger de sociedade da era

    atmica, e de sua tentativa de indicao de um caminho de confronto. Assim,

    esclareceremos em que sentido entendemos nas palavras, originrio e

    principial, uma referncia ao sentido do ser, em contraposio ao sentido de

    origem e comeo, e sua proximidade ao ente.

    O ente tudo que est presente: o carro, a cadeira, a rvore, so os

    animais, os homens, tambm deus, a tcnica e a arte, ou seja, qualquer

    coisa. So as meras coisas, as coisas de uso e tambm as coisas supremas,

    que enquanto coisas esto sendo. Ente (Seiende), , o particpio neutro

    grego, o que para nossa lngua portuguesa podemos dizer como o gerndio, do

    , o infinitivo presente do verbo ser. Portanto, poderamos traduzir o

    por sendo. Assim, ficaria o ser em contraposio ao sendo. A pergunta inicial

    da filosofia se deu, como dissemos anteriormente, no modo: O que isto o

    ente? O que no momento de esplendor, no momento originrio, perguntava

    pelo ser, pelo , tornou-se a pergunta pelo ente, pelo . Assim, que

    5 Nas notas de traduo do ensaio A origem da obra de arte, Idalina Azevedo desenvolve, com fortes argumentos, o

    sentido da traduo. 6 HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte [1935/36]. Trad. br. Idalina Azevedo e Manuel Antnio de Castro. So

    Paulo:Edies 70, 2010. p. 199. 7 Idem, p.195.

  • 19

    Aristteles, o grande sistematizador, desenvolve sua argumentao acerca da

    cincia primeira. Pois, se o ente em cada caso especfico o objeto de uma

    determinada cincia: a natureza da Fsica, o homem da Psiquiatria, o

    acontecimento da Historiografia, a linguagem da Filologia. O ente, aquilo que

    est sendo em cada coisa em geral, o objeto da filosofia, ou como chama

    Aristteles, da (filosofia primeira), da

    (cincia primeira). Seu objeto o ente e nada mais.

    Porm, o princpio, a provenincia de cada ente deste em particular ou

    mesmo do ente enquanto tal, no possvel de ser questionada ou justificada

    em suas prprias cincias. Diz Heidegger em um ensaio com o ttulo Cincia e

    pensamento do sentido [1953], escrito na forma de uma preparao ao ensaio

    A questo da tcnica apresentado alguns meses depois:

    A natureza, o homem, o acontecer histrico, a linguagem, para as

    respectivas cincias, o incontornvel j vigente nas suas objetividades. Dele cada uma delas depende, mas a representao

    nenhuma delas poder abra-lo em sua plenitude essencial. (...) O incontornvel assim caracterizado rege e reina na essncia de toda

    cincia8.

    Sendo a Filosofia, , a cincia do ente enquanto ente, nela

    esse incontornvel se apresenta ainda mais incontornvel. Seria, em certo

    sentido, esse incontornvel, essa provenincia originria do ente, que

    poderamos chamar de ser. No sendo, porm, nada do que est a, mas fonte

    principial de tudo que advm. Esse ser, no sendo coisa alguma, no sendo...,

    no pode ser objeto de investigao da Filosofia. Da, Heidegger nos dizer que

    a morada do ser na linguagem do pensador e do poeta9, ficando ao filsofo o

    ente e nada mais. Pois, se o ser no nenhum destes sendo, no ente

    algum, se no-ente, se assim o pensar nos permite expressarmos, seria

    ento cometer uma infrao regra primeira e fundamental do pensar lgico,

    sobre o qual impossvel errar, a saber, o princpio da contradio. Este

    princpio, que segundo Aristteles o que rege todo o pensar filosfico, no

    permite falar do no-ente sem torn-lo ente, j que o falar filosfico aquele

    8 HEIDEGGER, Martin. Cincia e pensamento do sentido [1953]. In: Ensaios e conferncias.

    Trad. br. Emmanuel Carneiro Leo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. pp. 54-55. 9 HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. In: Marcas do caminho. Trad. br. Ernildo

    Stein e Enio Paulo Giachini. Petrpolis: Editora Vozes, 2008. p. 326.

  • 20

    que diz o que isto o ente. Assim, Aristteles se expressa sobre o princpio

    da contradio e sua relao com a Filosofia:

    Quem possui o conhecimento dos seres enquanto seres devem poder dizer quais so os princpios mais seguros de todos os seres. Este

    o filsofo. E o princpio mais seguro de todos aquele sobre o qual impossvel errar. (...) impossvel que a mesma coisa, ao mesmo tempo, pertena e no pertena a uma mesma coisa, segundo o

    mesmo aspecto. (...) Essa noo ltima, por sua natureza, constitui o princpio de todos os outros axiomas

    10.

    esse incontornvel, aportico, essa vereda, que Parmnides chamou de o

    terceiro caminho, ou o no-caminho, , (caminho no qual no se v o

    caminho de retorno por onde se veio), do qual nos probe seguir em seu poema

    Sobre a natureza. Proibindo, por meio das palavras da Deusa ,

    Alethea, o jovem justo de seguir, ficando ao errante, poeta e pensador, o risco

    de dizer o sentido do ser, risco no qual Heidegger se pe a enveredar. Nota-se

    isso, j em sua primeira grande obra, Ser e tempo [1927], onde na primeira

    pgina, ao citar uma passagem do Sofista de Plato, diz:

    ... Pois evidente que de h muito sabeis o que propriamente

    quereis dizer quando empregais a expresso ente. Outrora, tambm ns julgvamos saber, agora porm, camos em aporia. Ser que

    hoje temos uma resposta para a pergunta sobre o que queremos dizer com a palavra ente? de forma alguma. Assim cabe colocar

    novamente a questo sobre o sentido do ser. Ser que hoje estamos em aporia por no compreendermos a expresso ser? De forma alguma. Assim, trata-se de redespertar uma compreenso para o

    sentido desta questo11

    .

    Ser que encontramos nas cincias, seja ela uma cincia especfica, ou

    seja, ela a cincia primeira, esse carter aportico? Ou, justamente deste

    aportico, incontornvel que a cincia busca fugir? Se perguntar pela essncia

    de uma coisa perguntar por sua fonte originria, pelo que , pelo

    incontornvel que se pe como fonte principial, ento por meio da tcnica, da

    cincia, no chegaremos a experienciar, ou ao menos nos aproximar do que

    seja essa essncia. Diz Heidegger:

    10

    ARISTTELES. Metafsica. Trad. br. Marcelo Perine da edio Italiana de Giovanni Reale.

    So Paulo: Edies Loyola, 2005. pp. 143-145. 11

    HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo [1927]. Trad. br. Macia de S Cavalcante Schuback.

    Petrpolis: Vozes, 2008. p. 34.

  • 21

    A essncia da tcnica no , de forma alguma, nada de tcnico. Por isso nunca faremos a experincia de nosso relacionamento com a

    essncia da tcnica enquanto concebermos e lidarmos apenas com o que tcnico, enquanto a ele nos moldarmos ou dele nos afastarmos. (...) De acordo com uma antiga lio, a essncia de

    alguma coisa aquilo que ela . Questionar a tcnica significa, portanto, perguntar o que ela

    12.

    S um caminho no tcnico-lgico-cientfico pode nos enviar a uma

    experincia originria com a essncia da tcnica. Esse caminho um caminho

    do pensamento, pois se nos mantivermos no mbito da tcnica, como

    poderamos ainda querer questionar algo a respeito dela, e possuir uma

    definio correta? Essa definio h muito tempo nos diz que a tcnica um

    meio e uma atividade do homem. Ela nos diz que a tcnica um instrumento

    do homem para atingir os seus fins.

    Quem ousaria negar que ela correta? (...) Com certeza. O correto

    constata sempre algo exato e acertado naquilo que se d e est em frente (dele). Para ser correta, a constatao do certo e exato no precisa descobrir a essncia do que se d e apresenta. Ora, somente

    onde se der esse descobridor da essncia, acontece o verdadeiro em sua propriedade. Assim, o simplesmente correto ainda no o

    verdadeiro. E somente este nos leva a uma atitude livre com aqui que, a partir da sua prpria essncia, nos concerne

    13.

    Pe-se em nosso caminho a questo da verdade. com esta explanao

    que passaremos ao prximo passo do caminho que, aqui, estamos a trilhar.

    Ainda de forma introdutria, o prximo passo ser pensar a questo da

    verdade e sua contraposio ao que seja o correto, ao que seja a adequao.

    Portanto, contrapor o sentido de verdade para Heidegger, como ,

    alethia e des-velamento, aos conceitos de , omoiosis (corretude) e

    adequatio (adequao) entender um processo de sucessivas transformaes

    np decorrer da tradio filosfica no que se entende por verdade, do seu

    nascimento originrio aos dias atuais.

    2.2 A livre relao com a tcnica: Sobre a corretude e a verdade

    12

    A questo da tcnica, p. 11. 13

    Idem, pp. 11-12.

  • 22

    Estamos buscando desenvolver um questionamento que nos transponha

    para uma livre relao com a tcnica. Tal relao s se d verdadeiramente

    diante de sua essncia, diante do que seria a tcnica. A tradio nos diz que a

    tcnica um meio e uma atividade do homem, definio que Heidegger chama

    de concepo instrumental da tcnica. Quem negaria a sua corretude? Porm,

    diante do at aqui exposto, algumas interrogaes se fazem necessrias: o

    correto j o verdadeiro? O que corretude e qual o seu mbito? A verdade foi

    desde sempre pensada como corretude? Como a verdade foi pensada em seu

    momento originrio? Qual a relao entre verdade, corretude e tcnica?

    Precisamos percorrer cada um desses passos, como num caminhar, na busca

    de desenvolver algo no sentido desse livre relacionar-se com a tcnica que

    aqui buscamos.

    O correto j o verdadeiro? Heidegger constantemente nos leva a um

    questionamento do habitual e recorrente, e nesse habitual, nossa concepo

    de verdade se apresenta como a mera corretude. A verdade no pensamento

    calculista se apresenta como exatido, contudo, o correto no atinge a

    profundidade do verdadeiro. Permanece na superficialidade do presente e

    habitual, mas, em que sentido o filsofo diferencia corretude de verdade? Onde

    cada um destes sentidos atua? O pensar heideggeriano acerca do ser e do

    ente ser relacionado ao que foi apresentado pelas seguintes palavras de

    Heidegger: O correto constata sempre algo de exato e acertado naquilo que se

    d e est em frente (dele)14

    .

    O correto se relaciona com aquilo que se d e est em frente dele. Seu

    mbito o do vigente dado, posto. Seu mbito o do ente. Acertado e exato

    seu relacionamento com o ente, com o j desvelado, contudo, nada sabe sobre

    o ser. No desvela sua essncia, mas movimenta-se no j desvelado, no posto,

    dado, ordinrio e habitual, sendo que, somente onde se der esse descobrir da

    essncia acontece o verdadeiro em sua propriedade15

    . Enquanto o correto diz

    sobre o posto, o verdadeiro abre-o ao seu aparecer. O verdadeiro deixa viger, o

    que destinado do ser ao ente, do ainda no vigente ao vigente. nesse

    descobrir que se mostra o relacionar-se com o ser. Abrindo uma clareira, ou,

    como clareira que se permite o vir vigncia algo do ser, que se d um

    14

    Ibidem. 15

    A questo da tcnica, p.13.

  • 23

    acontecer do ser. Ento, se o correto tem o seu mbito no ente, a verdade

    encontra-se em relao com o ser. Sendo somente esta verdade capaz de

    permitir a livre relao com o essencial, com o ser. Mas de onde Heidegger

    apreende essa distino entre verdade e corretude que aqui foi apenas posta,

    mas no foi trilhada? Onde encontra o pensador solo para este caminhar?

    Onde inicia o seu caminhar acerca da verdade, da abertura? Para essa

    pergunta nos remetemos s suas palavras:

    Este aberto foi concebido pelo pensamento ocidental desde o seu incio, como , o desvelado. Se traduzimos a palavra por desvelamento, em lugar de verdade, essa traduo no

    somente mais literal, mas ela compreende a indicao de pensar mais originariamente a noo corrente de verdade como

    conformidade do enunciado16

    .

    Somos ento encaminhados pelas fendas de nossa investigao, aos

    gregos e seu modo de pensar. O que os gregos entendiam por ,

    desvelamento? A questo da verdade para Heidegger, juntamente com a

    questo do ser, torna-se o cerne do seu pensar. Assim, to fundamental como

    a questo do ser a questo da verdade em seu pensar como um todo.

    necessrio que mantenhamos ambas, como um s pensar, caminhando juntas.

    Um ensaio fundamental, no que concerne a discusso sobre a verdade, o

    ensaio A essncia da verdade [1930]. Este, em conjunto com o O que

    metafsica? [1929] so considerados os textos da virada (Kehre) do

    pensamento heideggeriano. O prprio filsofo chama este momento de viragem

    de seu pensar17

    . Onde o ser passa a ser buscado diretamente, por meio de seu

    acontecer potico-apropriante (Ereignis). Diferentemente de sua busca anterior,

    a partir do ente privilegiado homem, a partir do Da-sein, em ambas as fases de

    seu filosofar, se assim realmente se pode dizer, a essncia da verdade como

    , des-velamento, se pe como uma questo central.

    Verdade se disse primeiramente, no mundo grego, como ,

    desvelamento. Heidegger inaugura, ou recupera em seu sentido originrio, uma

    leitura a essa palavra essencial. Essa palavra verdade to sublime e, ao

    mesmo tempo, to gasta e embotada designa o que constitui o verdadeiro

    16

    HEIDEGGER, Martin. A essncia da verdade [1930]. In: Marcas do caminho. Trad. br. Ernildo Stein e Enio Paulo Giachini. Petrpolis: Editora Vozes, 2008. p. 200. 17

    Cf. Cartas sobre o humanismo. pp. 339-341.

  • 24

    enquanto verdadeiro (fazer, pro-duzir, deixar vir clareira)18

    . Na palavra

    o pensador escuta, para muito alm da mera corretude, adequao,

    certeza, objetividade, realidade. Nela ressoa o originrio, ressoa o

    desvelamento que abre. Uma abertura que deixa advir o destinado do mistrio

    do oculto. composta pelo privativo, mais o radical , que

    podemos traduzir por velado, oculto, esquecido. Da a traduo heideggeriana

    de i por des-velamento, des-ocultao, des-esquecimento. Aquilo que

    deixa o fechado do velamento vir ao vigor do vigente como o des-velado, que

    passa do no-dado ao dado, ao doado, dizendo, portanto, algo completamente

    distinto de exatido, corretude ou adequao. Verdade dizia sobre um

    acontecimento essencial do ser.

    Onde este sentido mais originrio de verdade se perdeu? Foi deixado de

    lado e com isso esquecido? Onde se deu to grande desvio de pensamento?

    Heidegger identifica o incio desta mudana do sentido de verdade e, junto com

    ela, a mudana de sentido do ser, com os gregos, em sua fase tardia, que se

    inicia aps a plenitude daquele pensar originrio que se deu com Anaximandro,

    Pitgoras, Herclito e Parmnides. Esse perodo tardio que, como Nietzsche19

    ,

    Heidegger identifica como o perodo de decadncia do pensar grego e incio da

    decadncia do pensar ocidental. Esse o perodo dos grandes filsofos,

    Scrates, Plato e Aristteles. A mudana no sentido da verdade, assim como,

    a histria do esquecimento do ser pelo ente, tem seu incio j em Plato,

    sofrendo novamente uma mudana de paradigma com Aristteles, nos escritos

    de lgica e de metafsica, e com os latinos, em suas tradues e interpretaes

    da filosofia grega, aquilo que de forma latente ainda pensava o sentido anterior

    de verdade e ser, transformado em outro pensar, e assim, esquecido. Assim

    o que era fundamental ao pensamento grego, a questo do ser e da verdade

    decai na questo do ente e da adequao. Vejamos essa passagem do Ser e

    Tempo, onde Heidegger nos diz sobre esse decair do filosofar grego:

    Embora nosso tempo se arrogue o progresso de afirmar novamente a

    metafsica, a questo aqui evocada caiu no esquecimento. (...) A questo referida no , na verdade, uma questo qualquer. Foi ela que deu flego s pesquisas de Plato e Aristteles para depois

    18

    A essncia da verdade, pp. 190-191. 19

    Cf. NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na poca trgica dos gregos. In: Coleo os pensadores vol. XXXII Obras incompletas. Trad. br. Rodrigo Torres Filho. So Paulo: Abril

    Cultural, 1974. pp. 37-51.

  • 25

    emudecer como questo temtica de uma real investigao. (...) o que outrora se arrancou, num supremo esforo de pensamento, ainda

    que de modo fragmentado e tateante aos fenmenos, encontra-se, de h muito, trivializado

    20.

    Vejamos como Heidegger l essa histria do esquecimento e das

    seguidas mudanas de sentido da questo da verdade. Heidegger, em seu

    polmico ensaio A teoria platnica da verdade [1931/1932, 1940], prope que o

    desvio de sentido j se deu com Plato ao introduzir a noo de , de

    um olhar reto. Para no adentrar em uma discusso mais aprofundada acerca

    do ensaio citado e do polmico posicionamento heideggeriano sobre o pensar

    platnico da verdade, ressaltaremos aqui, apenas aquilo que o autor indica

    como o incio da transformao da essncia da verdade. Leiamos uma

    passagem deste ensaio:

    Se no geral, em toda e qualquer postura frente ao ente, est em questo o da , a visualizao do aspecto, ento todo

    esforo deve concentrar-se antes de tudo em procurar possibilitar uma tal visualizao. Para isso, necessrio um olhar reto. (...) em

    consequncia dessa adequao do notar como um , d-se uma , uma concordncia do conhecimento com a coisa mesma. Assim, da primazia da e do frente a i d-se

    uma transformao da essncia da verdade. Verdade torna-se , retido do notar e enunciar

    21.

    Apresenta-se a, o primeiro passo da transformao da essncia da

    verdade uma transformao, que para ns, parece ocorrer de forma to sucinta

    que torna difcil a compreenso do polmico texto de Heidegger.

    que em Plato e Aristteles ainda se deu como passagem, segundo

    Heidegger, ali, onde o pensamento grego ainda era vigoroso, mesmo que j

    tornado sistemtico, escolar, foi abandonado e, por conseguinte, esquecido

    pela tradio. Segundo Heidegger, a leitura latina do pensar grego diluiu o vigor

    desse filosofar. Na traduo de i para veritas como uma adequatio, d-

    se o passo decisivo do que vinha mudando de sentido. Nessa mudana de

    sentido podemos perceber os passos da transformao do conceito de

    verdade. Da verdade do ser (ontolgica), a verdade do ente (ntica) e, por fim,

    20

    Ser e Tempo, p. 37. 21

    HEIDEGGER, Martin. A teoria platnica da verdade. In: Marcas do caminho. Trad. br. Ernildo

    Stein e Enio Paulo Giachini. Petrpolis: Editora Vozes, 2008. p. 242.

  • 26

    a verdade da proposio (proposicional). Cada vez de forma mais decadente,

    mais superficial. Cada vez menos originria, a verdade vai se transformando no

    exato, no correto.

    Assim, na Escolstica podemos ver fortemente os ecos determinantes

    da filosofia aristotlica. De um pensar lgico e argumentativo, palavras e

    expresses usadas por Aristteles referentes questo da verdade no

    apresentam mais o vigor do mundo grego e seu pensar, no pulsa mais o

    modo grego de pr-se no mundo. O mundo grego se desvaneceu. S restaram

    tradues e reflexos do que outrora se pensou.

    Assim, pelo exposto, podemos vislumbrar o desvio, ou mesmo o envio,

    do sentido originrio de verdade entendida como i, des-velamento,

    passando pela , o olhar reto, , a semelhana e a adequatio,

    entendida como base da filosofia escolstica por adequao da coisa a

    proposio, tornando-se assim, simplesmente em veritas, verdade, ao

    entendimento atual de adequao.

    Onde nos perdemos? Questionamos a tcnica e agora encontramo-nos

    diante da verdade e suas variadas determinaes e sentidos. O que tem a ver

    a essncia da tcnica com a essncia da verdade? A resposta que Heidegger

    nos d : Tudo. A essncia da tcnica e da verdade tem tudo a ver. Tcnica

    em grego se dizia , o mesmo termo era usado tambm para a arte.

    Tcnica e arte eram modos de deixar viger o ainda no vigente. Deixa-viger

    aqueles que, diferente dos entes da , no possuam o eclodir em si

    mesmos. E como um deixar viger, ambos estariam intrinsecamente

    relacionados com a verdade, pensados como i, desvelamento. Ambas

    so pro-duo e como podemos ler na passagem citada por Heidegger, do

    dilogo Banquete de Plato: Todo deixar-viger o que passa e procede do no

    vigente para a vigncia , pro-duo22

    . A tcnica pro-duo e,

    enquanto pro-duo, , poesis desvelamento. Pensando assim, a

    tcnica no se resume a um simples meio, sua essncia est para alm disso.

    Ela um modo de verdade, de desvelamento. Mas, ser que esse modo de

    pensar a tcnica vlido tambm para a tcnica moderna? Ou ela pertence

    apenas ao mbito do pensamento grego? Ser que a tcnica das usinas,

    22

    A questo da tcnica, p. 16.

  • 27

    indstrias, da fsica moderna tambm pro-duo, ? Heidegger levanta

    essa indagao da seguinte forma:

    Tcnica uma forma de desencobrimento. A tcnica vige e vigora no mbito onde se d descobrimento e ds-encobrimento, onde

    acontece i, verdade. Contra essa determinao do mbito da essncia da tcnica pode-se objetar e dizer que ela vale para o

    pensamento grego e, no melhor dos casos, pode servir para a tcnica artesanal, mas no alcana a tcnica moderna caracterizada pela mquina e aparelhagens. E justamente esta e somente esta que

    constitui o sufoco que nos leva a questionar a tcnica23

    .

    diante esta indagao que somos levados ao caminho do pensar a

    tcnica grega em confronto com a tcnica moderna. Portanto, como pensar a

    grega e sua relao com a e sua transformao na tcnica

    moderna? a tcnica moderna tambm um modo de i, desvelamento?

    Caso seja, do tipo poitico, no sentido de uma pro-duo que deixa-viger? Ou

    o que lhe caracteriza, o que lhe domina outro tipo de desvelamento? So

    esses traos que sero investigados nos passos seguintes.

    2.3 Tcnica grega e moderna: Da poesis explorao

    Em que sentido podemos pensar, com Heidegger, sua indicao de que o

    que preocupa exatamente o sentido de pro-duo enquanto , no

    poder mais ser aplicado tcnica moderna? Que sentido tem essa pro-duo

    para os gregos? Se no mais a poesis que determina a tcnica moderna, o

    que ? Por que esta outra determinao, a saber, a explorao e o

    armazenamento ameaam tanto o homem atual? Sero estas indagaes, e as

    que surgirem no caminho, nas quais nos deteremos, com o cuidado

    necessrio, para que, passo por passo, trilhemos o caminho no qual

    adentramos.

    Se pensarmos em um antigo moinho de vento grego e em uma usina

    hidroeltrica moderna, podemos dizer que ambos so um meio de produo de

    energia. Se pensarmos no agricultor ao lavrar sua terra ou em uma indstria de

    23

    Idem, p.18.

  • 28

    agronegcio, podemos novamente dizer que ambas tm como finalidade a

    produo de alimentos. O que os diferenciam? No so ambos meio e

    finalidade de produo? Sim e no. Os dois extraem algo da terra, porm, o

    primeiro em cada um dos casos, com cuidado, deixa que a terra lhe doe o que

    lhe necessrio manuteno de sua vida, enquanto que no segundo, de

    forma abrupta, retira da terra, como de um reservatrio, mais do que o

    necessrio, com o fim de estocar e armazenar, e depois disso, fazer um

    negcio. O primeiro recebe uma doao como presente, ao seu presente. O

    segundo arranca matria-prima, que ficar disponvel, para um uso posterior. A

    relao, esta proximidade que o antigo tem com a Terra, aquela que ele chama

    de Me, Terra de amplo seio, de todos, sede irresvalvel sempre24

    , ,

    multinutriz, como nos conta, nos canta Hesodo, transforma-se, para o

    segundo, em uma relao de explorao, forando a terra a fornecer matria-

    prima, no mais como uma vaca que pro-duz leite para alimentar a cria. Mas

    como uma vaca leiteira que, em uma indstria, forada, recebendo

    hormnios, produo de muitos litros de leite por dia, que sero tratados,

    transformados, encaixotados, armazenados para estarem disponveis venda.

    Leiamos as palavras de Heidegger:

    O subsolo passa a se desencobrir, como reservatrio de carvo, o cho, como jazidas de minrio. Era diferente o campo que o campons outrora lavrava, quando lavrar ainda significava cuidar e

    tratar. O trabalho campons no provocava e desafiava o solo agrcola. (...) A terra se desencobre, nesse caso, depsito de carvo

    e o solo, jazida de minerais25

    .

    drstica a mudana no relacionar-se com a natureza entre os antigos e

    os modernos. A pro-duo grega outra completamente diferente dessa

    explorao moderna, mas para percebermos esta drstica mudana iremos

    nos deter ainda mais no que seja essa pro-duo, que entre os gregos tinham

    esse sentido de . Aps esta investigao estaremos em melhores

    condies de adentrar ainda mais na tcnica moderna, em busca de sua

    essncia, pois, s em uma verdadeira relao com essa essncia, poderemos

    buscar um caminho de enfrentamento a essa situao crtica, da qual o homem

    24

    HESODO. Teogonia: a origem dos deuses. Trad. br. Jaa Torrano. So Paulo: Editora Ilumiuras, 1995. p. 91. 25

    A questo da tcnica, p. 19.

  • 29

    atual se encontra imerso, submerso. Tudo agora depende de se pensar a pro-

    duo e o pro-duzir em toda sua amplitude e, ao mesmo tempo, no sentido dos

    gregos26

    .

    Como na passagem citada do Banquete de Plato, pro-duo, no sentido

    de , todo deixar-viger. O que leva da no-vigncia a vigncia, todo o

    pr no sentido de um deixar emergir. A prpria , nesse sentido, uma

    , uma pro-duo. Ela at a mxima , aquela que se d a partir

    de si mesma. Aqueles que no se pro-duzem por si mesmos so os ,

    os artefatos, os entes criados, produzidos pela arte, pela . Estes se

    contrapem, e nesse sentido se aproximam, dos seres da natureza, da ,

    daqueles que se pem por si mesmos, dos . Enquanto os primeiros

    tm sua fora de ecloso em outro, , os seres da natureza possuem o

    eclodir em si mesmos, . Contudo, ambos, enquanto um vir vigncia,

    so . Os artefatos, que no possuem o eclodir em si, dependem dos

    , dos arquitetos, no no sentido atual de arquiteto, mas como

    aqueles que tm a como . E, assim, diz Heidegger:

    Nos artefatos, portanto a de sua mobilidade e, assim, de seu repouso, de estar pronto e estar terminado, no est neles mesmos,

    mas em um outro, no , naquele que dispe da enquanto . Com isso teria sido feito a distino frente aos

    , que se chamam desse modo precisamente porque no tem a de sua mobilidade em um outro ente, mas no ente que ele prprios so (e enquanto so esse ente)

    27.

    Leiamos uma passagem da Fsica de Aristteles, do livro , 1, analisada

    na citao anterior, com a qual Heidegger ir confrontar seu conceito de

    ao conceito aristotlico e grego de um modo mais geral:

    Algumas coisas so por natureza, outras por outras causas. Por natureza, os animais e suas partes, as plantas e os corpos simples como a terra, o fogo, o ar e a gua pois dizemos que estas e outras

    coisas semelhantes so por natureza. Todas estas coisas parecem diferenciar-se das coisas que no esto constitudas por natureza,

    porque cada uma delas tem em si mesmo um princpio de movimento e de repouso, seja com respeito ao lugar, ao aumento, ou

    diminuio, ou alterao. Pelo contrrio, uma cama, uma roupa ou qualquer outra coisa de gnero semelhante, como as significamos em

    26

    Idem, p.16. 27

    HEIDEGGER, Martin. A essncia e o conceito de em Aristteles Fsica , 1 [1939]. In: Marcas do caminho. Trad. br. Ernildo Stein e Enio Paulo Giachini. Petrpolis: Editora Vozes,

    2008. p. 264.

  • 30

    cada caso, por seu nome e enquanto isso so produtos da arte (), no tem em si mesmas nenhuma tendncia natural

    mudana28

    .

    Estes entes que no tm o eclodir em si, necessitam de outro ente para

    chegar vigncia, contudo, este vir vigncia no advm pela atividade

    manual do artista, mas por meio de seu saber. Arte e tcnica so ditas pelos

    gregos com a mesma palavra, . No por ambas terem em comum o fazer,

    a atividade manual, mas por ambas terem em comum o pro-duzir no sentido de

    , como um deixar vir vigncia em seu aspecto. Como um

    conhecimento, algo relacionado verdade. aparece em Aristteles e

    Plato ao lado de , epistme. Enquanto a o saber que se

    relaciona com os , aqueles que emergem por si, os entes naturais, a

    o saber a respeito dos , dos que no advm por si mesmos,

    os artefatos. Assim, diz Aristteles em sua obra acerca da tica, em um

    momento de uma meditao especial, ao tratar dos diversos tipos de

    conhecimento:

    So cinco as disposies em virtude das quais a alma alcana a

    verdade (i) por meio da afirmao ou da negao: a arte a cincia, o discernimento a sabedoria filosfica e a inteligncia; (...) O

    objeto do conhecimento cientfico, portanto, existe necessariamente. Ele consequentemente eterno, pois todas as coisas cuja existncia absolutamente necessria so eternos. (...) Toda arte se relaciona

    com a criao, e dedicar-se a uma arte estudar uma maneira de fazer uma coisa que pode existir ou no, e cuja origem est em quem

    faz, e no na coisa feita; de fato, a arte no trata de coisas que existem ou passam a existir necessariamente, nem de coisas que

    existem ou passam a existir de conformidade com a natureza (estas coisas tm origens nelas mesmas). J que h diferena entre fazer e agir, a arte deve relacionar-se com a criao, e no com a ao

    29.

    Com base no exposto, Heidegger nos diz ser a tcnica, no pensamento

    grego, um saber, um modo de desvelar, uma verdade, criao em oposio a

    um fazer manual. Um saber que permite, cuida e protege. Protege o enviado, o

    destinado pelo ser, do ocultamento ao des-ocultamento. Destinado ao cuidado

    e guarda, na linguagem, do pensador, do artista. Bem diferente a tcnica

    moderna, onde o a-guardar foi substitudo pela pressa do arrancar, onde o criar

    28

    ARISTTELES. Fsica. Traduo prpria feita da traduo espanhola de Guillermor R. de

    Echandia. Madrid: Editorial Gredos, S.A., 1995. p. 45. 29

    ARISTTELES. tica a Nicmacos. Trad. Br. Mrio de Gama Kury. Braslia: Editora UNB,

    1992. pp. 115-116.

  • 31

    foi substitudo pelo en-formar, onde a co-pertena de identidade e diferena em

    uma harmonia originria, foi substitudo pela mesmidade, pela uni-formizao

    industrial, pelo negcio. Aquele saber que na plenitude do mundo grego, do

    pensamento originrio, era a aproximao do homem natureza, decaiu em

    um afastamento sugador, explorador. O mistrio do aguardar foi apagado pela

    exatido do calcular. O filho que naquela manh de sol brincava livremente

    com sua me natureza, tornou-se, na noite do mundo, o senhor da terra,

    escravizado por seu prprio trabalho e conceitos. Esses senhores tornaram-

    se cada vez mais escravos de seus instrumentos. Indigentes, cada vez mais

    imersos na cotidianidade dos entes, explorando, armazenando e negociando,

    como diz Heidegger:

    justamente esse homem assim ameaado que se alardeia na figura de senhor da terra. Cresce a aparncia de que tudo que nos vm ao

    encontro s existe medida que um feito do homem. Esta aparncia faz prosperar uma derradeira iluso, segundo a qual, em

    toda parte, o homem s se encontra consigo mesmo. (...) Entretanto, hoje em dia, na verdade, o homem j no se encontra em parte

    alguma, consigo mesmo, isto , com a sua essncia30

    .

    esse desvelamento explorador que de forma alguma um deixar-que-

    advenha, que nada tem de . essa explorao que assusta. Pois, qual

    o sentido desse explorar e armazenar sem fim? pensando no sentido de

    suprir o necessrio? No, essa explorao e armazenamento tm a finalidade

    do estar disponvel. essa dis-ponibilidade (Bestand) que preocupa. Nela o

    prprio fruto, ou melhor, dizendo, acerca da modernidade, a prpria coisa, o

    prprio objeto esvai-se. Em toda parte, se dispe a estar a postos e, assim,

    estar a fim de tornar-se e vir a ser dis-ponvel para ulterior dis-posio31

    . Cada

    coisa passa a ser um dis-ponvel, que estando ali armazenado, espera por uma

    negociao que o trans-ponha daqui para ali.

    Uma nova meditao se pe em nosso caminhar. Que desencobrimento

    se apropria do que surge e aparece no pr da explorao32

    ? Como podemos

    pensar mais propriamente sobre esta disponibilidade? Qual a essncia da

    tcnica moderna que leva o homem a um desvelar explorador onde tudo se

    30

    A questo da tcnica, pp. 29-30. 31

    Idem, p.20. 32

    Ibidem.

  • 32

    apresenta como mera disponibilidade? De onde provm essa essncia da

    tcnica moderna? D-se por conta da negligncia do homem, ou mera

    fatalidade do perodo, ou ainda outra a situao? Sobre estes

    questionamentos nos deteremos nos prximos passos.

    2.4 Dis-ponibilidade e Com-posio: Acerca do desvelamento explorador

    da tcnica moderna

    A disponibilidade (Bestand) se pe em nosso caminho. Essa palavra

    assume aqui um sentido muito mais essencial do que mera proviso: a palavra

    disponibilidade se faz agora o nome de uma categoria, designa o modo em

    que vige e vigora tudo o que o descobrimento explorador atingiu33

    . Chegamos

    com este passo, ao ponto alto, aquele que surge diante do profundo do que

    agora buscamos proximidade, desse nosso percurso. Estamos para

    experienciar o originrio que advm das profundezas da essncia da tcnica

    moderna. Esse extra-ordinrio que permite que nos elevemos quela relao

    livre entre nossa presena (Dasein) e a essncia da tcnica, portanto, nesse

    caminho in-habitual, nos faz recuar lentamente alguns passos, como quem se

    prepara para pegar o impulso necessrio ao salto-mortal no abismo (Abgrund).

    Retornemos ento alguns passos.

    Como pensarmos essa disponibilidade, que nos passos anteriores vimos

    como o preocupante acerca da tcnica moderna? O que rege, como apelo,

    essa disponibilidade? Ela regida por uma inadimplncia do homem, por fruto

    da ganncia de sua vontade, ou ela regida por algo mais originrio? Se a

    tcnica moderna no se resume a um mero fazer do homem, (...) temos de

    encarar, em sua propriedade, o desafio que pe o homem a dispor do real,

    como dis-ponibilidade34

    . Heidegger, como quem lana o olhar ao outro lado do

    abismo, sobre o qual se prepara para saltar, chama a esse apelo de

    explorao que rene o homem a dis-por do que se des-encobre como dis-

    ponibilidade35

    de Ge-stell, com-posio. Sobre o uso inusitado dessa palavra,

    33

    Ibidem. 34

    Idem, pp.22-23. 35

    Idem, p.23.

  • 33

    sobre seu sentido e lugar nesse percurso, nos deteremos mais frente. Aqui o

    indicamos, apenas como um caminho a ser percorrido.

    Questionamos a tcnica ao nos depararmos com o perigo desta escapar ao

    nosso domnio. Criamos teorias e conceitos com o fim de assegurar domnio.

    Construmos escolas com o intuito de dominar o saber e agora vemos as

    criaes fazendo um papel oposto ao intuito pensado em uma cadeia de

    eventos onde o ser foi perdendo lugar ao domnio do ente.

    A usina hidroeltrica instalada no Reno, como nos fala o filsofo, no est

    mais a como o velho moinho de vento. Ela est ali, ou podemos at dizer o

    contrrio, o rio est ali instalado na usina, a fim de se explorar a fora de

    movimento das correntes de suas guas, a dispor energia. Esta energia ser

    armazenada, para em seguida, estar disposio de uma indstria, que usar

    este disponvel para gerar instrumentos de trabalho ao homem, que tambm

    estar ali disposio para algum servio, para ser meio, de alguma finalidade.

    Se que podemos ainda chamar isso de finalidade, essa cadeia de disposio,

    onde cada qual destes constituintes, no tem sentido algum pelo que . Usina,

    rio, indstria, homem, negcio, natureza, o tempo, esto todos a apenas como

    disposio. Caiu, com isso, tudo na indiferena, na mesmidade da

    disponibilidade. Vejamos uma passagem em Heidegger acerca do que

    dissemos:

    A energia escondida na natureza extrada, o extrado v-se transformado, o transformado, estocado, o estocado, distribudo, o distribudo, reprocessado. Extrair, transformar, estocar, distribuir,

    reprocessar so todos modos de desencobrimento. Todavia, este desencobrimento no se d simplesmente. Tampouco perde-se no

    indeterminado. (...) por toda parte, assegura-se o controle. Pois o controle e segurana constituem at marcas fundamentais do descobrimento explorador

    36.

    O prprio homem encontra-se preso, sem-sada nessa cadeia de

    disponibilidade. Ele encontra-se conectado a essa amarrao, a esse

    esqueleto, a essa teia, nessa com-posio que a tudo abarca. nesse sentido

    de amarrao, palavra que em alemo se diz por Gestell, que Heidegger usa o

    termo essencial com-posio. Em Ge-Stell, o Ge tem o sentido de fora

    originria de reunio e Stell com o sentido de pr, de colocar junto, de lugar.

    36

    Idem, p.20.

  • 34

    Assim, por meio de uma escuta cuidadosa, Ge-Stell pensado como com-

    posio, fora originria que rene em um ponto, em um lugar. Como no termo

    sntese, onde sin tem o sentido de reunio e tese com o sentido de posio,

    posto junto a, sn-tese ento o incio da histria do desenvolvimento dessa

    essncia da tcnica moderna. Sn-tese esta cadeia de amarrao que rene

    todo o disposto em uma cadeia sem-escape. Sn-tese Ge-stell, com-

    posio. Bestand e Gestell, como disponibilidade e composio usados para

    indicar o extra-ordinrio do pensar heideggeriano, podem, ao leitor menos

    atento parecer um abuso de linguagem, porm, sempre como extravagncia

    que se pe o pensar em profundidade. Extravagante como o salto mortal.

    Assim, Heidegger defende o uso destes termos dizendo o seguinte:

    Ser possvel extravagncia maior ainda? Certamente que no! S que esta extravagncia um antigo costume do pensamento. E os

    grandes pensadores tornaram-se extravagantes precisamente quando tm de pensar o mais elevado. (...) o fato de Plato usar a

    palavra , para dizer a essncia de tudo e de cada coisa. Pois, na linguagem de todo dia, diz a viso que uma coisa visvel nos

    apresenta percepo sensvel...37

    Contudo, perguntamos: esta Ge-stell, com-posio, que teve seu

    nascimento no pensar grego como sn-tese, este pr-junto-em-relao-a, se

    deu por negligncia do pensar, do homem? Deu-se por um descuido, um des-

    vio? fruto da liberdade do homem, de seu arbtrio? Heidegger nos diz que

    no. A com-posio, enquanto um modo essencial de des-velamento, no um

    des-vio, mas sim um envio do ser, um destino do desencobrimento pelo ser,

    portanto, um acontecimento-histrico. Ento, ao contrrio do que havamos

    questionado, a com-posio como destino no advm da liberdade do homem,

    mas de um escravo da fatalidade do destino, de um escravo de seu tempo?

    Tambm no, o que se d algo diverso. Sendo fruto do destino, a

    composio, acontece pela liberdade. Parece que nos encontramos em uma

    confuso, em um emaranhado onde palavras contraditrias se imbricam. Esta

    confuso se instaura se pensarmos destino e liberdade como entende a

    tradio. O que Heidegger pensa com essas palavras? Algo bem diferente da

    37

    Idem, p.23.

  • 35

    fatalidade e do arbtrio. Destino pensado como um pr a caminho, um envio

    da silenciosa fonte originria. Em suas palavras:

    Pr a caminho significa: destinar. Por isso, denominamos de destino a fora de reunio encaminhadora que pe o homem a caminho de

    um desencobrimento. pelo destino que se determina a essncia de toda histria. A histria no um mero elemento da historiografia

    nem somente o exerccio da atividade humana. A ao humana s histrica quando enviada por um destino

    38.

    No caso da liberdade, Heidegger no a pensa como vontade, como

    arbtrio, ou como uma liberdade de movimento, mas sim, como um deixar-ser.

    Como um permitir, uma escuta onde o ente se des-vela pelo envio do ser. Este

    deixar-ser se d como um entregar-se ao ente... ente. Como um acolhimento

    do e pelo ente, como cuidado e proteo. Entretanto este deixar-ser poderia

    ser pensado no sentido negativo de desviar a ateno de algo, ou de uma

    renncia , onde se exprime uma indiferena ou uma omisso, mas, como foi

    dito, este deixar-ser tem um sentido contrrio ao de omisso, sendo at a

    mxima ateno e presena diante o vigente, como escuta e abrigo, esta

    liberdade acontece em seu parentesco com a verdade pensada como i.

    Pois, ao que se desvela que deixa-ser o ente que se . O que pelo mistrio,

    como mistrio enviado ao desvelamento abrigado mesmo ao se esconder

    por este deixar-ser da liberdade. Verdade, mistrio e liberdade se emaranham

    em sua co-pertena ao acontecer potico-apropriante do ser (Ereignis).

    Mistrio aqui pensado como este que libera. O encoberto que sempre se

    encobre e cobre, o fechado que abriga o eclodir.

    Este entregar-se ao carter de desvelado do ente, como nos diz

    Heidegger, no um perder-se nele, mas um recuo diante do ente, afim que

    este se manifeste naquilo que e como 39

    . Pensando deste modo que

    podemos ver a copertena entre destino e liberdade, onde estes no vo de

    encontro um ao outro, mas pelo contrrio, vo ao encontro um do outro. O que

    o destino envia, a liberdade permite. O que doado pelo mistrio, protegido

    no des-velo pelo livre deixar-ser. Leiamos o que diz Heidegger acerca desta

    relao entre destino e liberdade:

    38

    Idem, p.27. 39

    A essncia da verdade, p.201.

  • 36

    O destino do desencobrimento sempre rege o homem em todo o seu ser, mas nunca a fatalidade de uma coao. Pois o homem s se

    torna livre num envio, fazendo-se ouvinte e no escravo do destino. A essncia da liberdade no pertence originariamente vontade e nem to pouco se reduz causalidade do querer humano.

    A liberdade rege o aberto, no sentido do aclarado, isto , do des-encoberto. (...) A liberdade o reino do destino que pe o

    desencobrimento em seu prprio caminho40

    .

    Assim, respondemos ao questionamento sobre o acontecimento

    histrico da tcnica como com-posio, se ele fruto de uma inadvertncia ou

    se ele uma fatalidade de nossa poca. No sendo nem um nem outro, mas o

    fruto de um envio proveniente do mistrio do ser. Ao pensarmos assim, nos

    mantemos no espao livre com a essncia da tcnica, ao qual buscamos estar

    nesse percurso de nosso trilhar o pensamento heideggeriano. Abre-se com

    este pensar caminhos novos de enfrentamento situao de crise, que se

    apresenta sobre o modo da tcnica. Nesse extra-ordinrio, onde se abre para a

    essncia da tcnica, somos tomados por um apelo de libertao. Diz

    Heidegger:

    A essncia da tcnica moderna repousa na com-posio. A com-

    posio pertence ao destino do descobrimento. Estas afirmaes dizem algo muito diferente do que a frase tantas vezes repetida: a

    tcnica a fatalidade de nossa poca, onde fatalidade significa o inevitvel de um processo inexorvel e incontornvel. (...) quando

    pensamos, porm, a essncia da tcnica, fazemos a experincia da com-posio, como destino de um desencobrimento. Assim j nos mantemos no espao livre do destino. Este no nos tranca numa

    coao obtusa, que nos foraria uma entrega cega tcnica, ou o que d no mesmo, a arremeter desesperadamente contra a tcnica e

    conden-la, como obra do diabo. Ao contrrio, abrindo-nos para a essncia da tcnica, encontramo-nos, de repente, tomados por um apelo de libertao

    41.

    nesse passo que se encontra o perigo. Pois, se a liberdade

    entendida como um deixar-ser o que nos destinado, o homem histrico

    tambm pode, deixando que o ente seja, no deix-lo-ser naquilo que ele e

    assim como . O ente ento encobre-se e dissimulado42

    . Este no-deixar-ser

    naquilo que , se apresenta, no homem moderno, como esse pensamento que

    calcula, nesta com-posio dominante que tudo explora e torna disponvel.

    Neste sistema operativo e calculvel, que pe em fuga toda outra forma de

    40

    A questo da tcnica, pp. 27-28. 41

    Idem, p. 28. 42

    A essncia da verdade, p. 203.

  • 37

    pensar. aqui que mora o perigo. Nesse esforo de dominar com esprito a

    tcnica, nessa produo exploradora esquece-se o mistrio, e com isso, tem-se

    a fuga da possibilidade de um desvelar mais originrio. O pensamento

    meditativo, potico, a pro-duo como ameaada de ser encoberta

    por completo. O predomnio da com-posio arrasta consigo a possibilidade

    ameaadora de se poder vetar ao homem voltar-se para um desencobrimento

    mais originrio e fazer assim a experincia de uma verdade mais inaugural43

    .

    O grande perigo no se encontra, portanto, no perigo das armas, na

    superficialidade dos novos meios de comunicao virtuais, na intoxicao por

    remdios, nos transgnicos, agrotxicos ou qualquer outro elemento tcnico.

    Seu perigo extremo est na fuga desta outra possibilidade, no completo

    domnio da com-posio sobre a essncia do pensar do homem.

    Entretanto, dificilmente abandona o que mora na proximidade do

    originrio, o lugar. Com essas palavras do poema A peregrinao de Hlderlin,

    palavras finais do ensaio A origem da obra de arte, feita a passagem do

    perigo ao que salva. CITAO!!! A essncia mais essencial res-guardada

    pela fora originria do mistrio. O domnio da composio no poder

    deturpar todo o brilho da verdade44

    . Ao se afastar de sua morada essencial, o

    homem tomado por um apelo de retorno. O pensamento lgico, calculador

    pe o homem, cada vez mais, diante aos entes em sua mera cotidianidade.

    Decai, assim, na mesmidade do apenas dado. O homem histrico tomado por

    um tdio profundo, que manifesta o ente em sua totalidade, onde tudo se

    apresenta como indiferena. Outro humor, ento arrebata o homem, a

    angstia. Nesta, o ente se pe em fuga, o nada se manifesta, como um apelo

    da morada essencial, a experienciao do nada abre o pensar a outra

    possibilidade. Para outro modo de ser, se abre como fonte. Abre como questo

    e mistrio para um pensar que no seja mais um mero com-pr, mas um pr,

    potico inaugural. Permitindo pela escuta cuidadosa, que venha vigncia,

    como doao deste nada originrio. Esta questo sobre o nada, e os humores

    de tdio e angstia ser tratada mais adiante com um maior aprofundamento.

    Aqui, trata-se apenas de pensar o apelo silencioso.

    43

    A questo da tcnica, pp.30-31. 44

    Idem, p.31.

  • 38

    Pensar a essncia da tcnica escutar a voz, o canto do destino, que

    advm da fonte principial, colocar-se na histria de maneira autntica. Esta

    escuta pe Heidegger a se deter na voz do poeta. Hlderlin, poeta dos poetas

    doa, em seu dizer, muitas palavras que abrem o seu pensar. Diante deste

    poeta o filsofo-pensador se detm em muitos momentos, com muito cuidado.

    Assim diz o poeta: Ora, onde mora o perigo/ l que tambm cresce/ o que

    salva. , portanto, no domnio da com-posio, como essncia da tcnica

    moderna, que se mostra a outra possibilidade de um desocultar mais originrio.

    Mas qual o sentido deste salvar? Que outra possibilidade de pensar se

    presenteia nesse extra-ordinrio que se deu no confronto com o pensar

    tcnico? esse outro pensar a salvao da ameaa, da crise? Esses so os

    questionamentos derradeiros desta fase de nossa investigao. So sobre

    estas questes que nos deteremos agora, como passo preparatrio para uma

    nova questo, ou seja, a questo do confronto.

  • 39

    3 POETAS EM TEMPOS INDIGENTES: ACERCA DA ESSNCIA DA ARTE

    Neste captulo pensaremos a questo da arte buscando avizinh-la do

    originrio (Ursprung) e da essncia (Wesen), no sentido de encontrar a outra

    possibilidade capaz de um confronto crise apontada pelo des-velar

    explorador da tcnica moderna. Deixaremos que a essncia da arte se

    apresente ao pensar. Nossa busca , portanto, a de saber se na arte guarda-se

    a medrana daquilo que pode nos salvar deste tempo de indigncia, desta

    noite do mundo. Para tal busca, faremos um momento que nos servir de

    passagem da questo anterior da tcnica para a questo da arte que agora se

    iniciar. Aps esse momento de passagem, adentraremos a questo da arte e

    buscaremos pensar como a sua essncia se apresentou ao filsofo. Daqui,

    seremos levados a pensar em conjunto a essncia da arte e a questo da crise

    atual do entendimento tcnico.

    3.1 Onde mora o perigo, cresce o que salva: Da pergunta pela Tcnica

    pergunta pela Arte

    Chegamos num ponto crucial de nossa investigao, passo derradeiro

    acerca da pergunta pela tcnica, no , contudo, conclusivo, apenas um

    preparo para um olhar em outro sentido. O ttulo deste ponto j nos indica para

    onde vamos seguir. Passaremos da questo da tcnica questo da arte.

    Porm, preciso ainda alguns passos para que essa mudana no se d de

    forma brusca. Em que sentido se dar essa mudana? Alm desta indicao

    A cincia pode classificar e nomear os rgos

    de um sabi Mas no pode medir seus encantos.

    A cincia no pode calcular quantos cavalos de fora existem nos encantos de um sabi.

    Quem acumula muita informao perde o

    condo de adivinhar: divinare. Os sabis divinam.

    Manoel de Barros, Livro sobre nada.

    Do fundo abismo nascem as altas montanhas

    Mrcia de S.

    O escuro me ilumina. Manoel de Barros.

  • 40

    de mudana de olhar, o ttulo tambm nos diz outra coisa: Onde mora o perigo

    l tambm que cresce o que salva. Nessas palavras de Hlderlin, Heidegger

    nos indica o fio condutor desta mudana. Contudo, precisamos esclarecer o

    que se entende aqui por salvar. Como relacionar este salvar, que agora se ps

    no caminho, com a pergunta inicial acerca da essncia da tcnica? Como a

    arte se relaciona com a tcnica diante da pergunta pela essncia? Iremos nos

    deter nestes questionamentos nos passos seguintes.

    Havamos dito que a essncia da tcnica moderna se apresentou, aps

    nosso questionar, como com-posio. O desvelar explorador, que arrancou da

    terra tudo como mera dis-ponibilidade regido por essa com-posio. Na

    dominao deste explorar com-positor, o perigo que ameaa o de se trancar

    ao homem a possibilidade de um outro desvelar, mais originrio, a saber, o

    desvelar potico. Este, que enquanto , deixa que o ente seja, a cada

    vez, o ente que . Sendo regida assim pela liberdade como um deixar-ser, essa

    , deixa-pr. Esta ameaa, contudo, no se deu por conta de uma

    negligncia do homem, nem por um capricho ou por uma veleidade. Ela fruto

    de um destino, de uma doao. Sendo destino, advm de um acontecer

    histrico do ser. S ao se perceber este sentido da essncia da tcnica

    moderna, o homem pode receber essa doao aos cuidados e proteo de sua

    guarda na linguagem. Sua guarda se d aos que escutam o apelo da silenciosa

    fonte originria. Pensar sua essncia escutar esse apelo. S onde se d esse

    pensar cuidadoso e esse poetar permissor que se pode dizer, com vigor,

    essas palavras do poeta: onde mora o perigo, l tambm que cresce o que

    salva. Portanto, no nos apressemos em dar respostas. Tentemos, com maior

    esforo, nos manter nessa festa do pensar frente abertura do mistrio, frente

    vereda. O que Heidegger pensa, em con-sonncia com o poeta por salvar?

    ele um salvar a tempo, de uma destruio iminente, ou nos diz outra coisa a

    voz do poeta? Continuemos no nosso lento caminhar.

    Pensando com Hlderlin, Heidegger nos diz:

    O que significa salvar? Geralmente, achamos que significa apenas retirar, a tempo, da destruio o que se acha ameaado em continuar

  • 41

    a ser o que vinha sendo. Ora, salvar diz muito mais. Salvar diz: chegar essncia, a fim de faz-la aparecer em seu prprio brilho

    45.

    Chegar essncia o sentido do salvar. Na ameaa cresce o que salva,

    pois nessa ameaa que o apelo por um retorno ao lar se pe fortemente, de

    forma mais decisiva. Pensemos a essncia, no de modo tradicional como

    essentia, como aquilo que diz o que uma coisa , como quid. Essncia deve

    ser pensada como colocamos de incio, logo nos primeiros passos do percurso.

    Pensemos a essncia como o originrio, como fonte doadora, principial. No

    como incio, daquilo que logo que se pe a caminhar deixado para trs, mas

    como principial que dura e vigora a cada passo, que mesmo no afastar-se o

    que sustem e envia. Da qual no permitido um abandono, ou um no ouvir

    seu apelo. assim que Heidegger nos diz:

    do verbo wesen, viger, que provm o substantivo vigncia. Wesen,

    essncia, em sentido verbal de vigncia, o mesmo que whren, durar (...) Goethe chegou a usar no lugar de fortwhren, perdurar, a palavra misteriosa fortgewhren, continuar a conceder. Sua escuta

    ouve, nessa palavra, uma harmonia implcita de continuidade entre

    whren, durar, e gewhren, conceder46

    .

    Como um carvalho, que diante do perigo ao crescer, fortifica suas razes

    nas profundezas da Terra, crescer significa abrir-se amplitude do cu e, ao

    mesmo tempo, estar arraigado na obscuridade da Terra47

    , pois so as razes

    que salvam. Estas, como fontes doadoras de alimento, recebem da Me Terra,

    multinutriz, a fora de salvaguardar o caminho, a fora de sustentao e de

    contra-posio ao perigo da crise que ameaa. Em silncio e em seu tempo

    se apresenta outra possibilidade. Juntamente com as palavras do poeta, outras

    palavras so ditas: ...mas poeticamente que o homem habita esta Terra.

    Como podemos sustentar as palavras do poeta se exatamente o perigo do

    pensar lgico, calculador, cientfico, que ameaa o homem? Se o agir desse

    homem reflete o seu pensar, ou sua fuga de pensar, logo cientificamente que

    este constri suas casas, que este trabalha e que se coloca no mundo. Se o

    que lhe rege a com-posio, o explorar e a dis-posio. Heidegger diz:

    45

    A questo da tcnica, p.31. 46

    Idem, p. 33. 47

    HEIDEGGER, Martin. O caminho do campo. In: La prensa. Traduo pessoal a partir da

    traduo espanhola de Sobine Langenheim e Abel Posse. 1976. p. 2.

  • 42

    A composio um modo destinado de desencobrimento, a saber, o des-cobrimento da explorao e do desafio. Um e outro modo

    destinado o desencobrimento da pro-duo, da . Esses modos no so, porm, espcies que, justapostas, fossem subsumidas no conceito de desencobrimento. O desencobrimento o

    destino que, cada vez, de cofre e inexplicavelmente para o pensamento, se parte, ora num des-encobrir-se pro-dutor ora num

    des-encobri-se ex-plorador e, assim se reparte ao homem48

    .

    o mistrio que rege essa proximidade e esse repartir. Estar atento a

    este mistrio o grande passo no sentido da superao da ameaa. o passo

    capaz de impulsionar o salto mortal no abismo. este mistrio que concede.

    Sem ele no a arvore que se sustente, que dure e para viger preciso durar.

    Somente dura aquilo que foi concedido. Dura o que se concede e doa com

    fora inaugural, a partir das origens49

    . Em um ensaio acerca da essncia da

    poesia (Hlderlin e a essncia da poesia), Heidegger se detm em algumas

    palavras de Hlderlin, dentre elas a seguinte: Mas o que dura, instauram os

    poetas. O que dura instaurado pelos poetas. Ao falar do tcnico e de sua

    essncia, constantemente surge o potico. Como podemos nos perder nesses

    dois modos de pensar to distintos? Ou ser que a rota de duas estrelas que

    passam ao longe uma da outra, guarda em si uma vizinhana essencial?

    Escutemos estas palavras de Heidegger antes de continuarmos nosso

    caminhar:

    Outrora, no apenas a tcnica trazia o nome de .

    Outrora, chamava-se tambm de o desencobrimento que levava a verdade a fulgurar em seu prprio brilho. Outrora, chamava-se tambm de a pro-duo da verdade na

    beleza. designava tambm a das belas-artes50

    .

    Ser que na arte poderemos encontrar o caminho do que salva? Se o

    perigo que ameaa diz respeito ao modo de des-velar do real, ou seja, diz

    respeito a verdade, pode a arte, estando em sua essncia relacionada com o

    belo, dizer algo sobre esta? Ou, o que se d o contrrio, a essncia da arte

    est mais prxima da verdade, como i, do que do belo? A essncia da

    arte seria esta: o pr-se em obra da verdade do sendo, mas at agora a arte s

    48

    A questo da tcnica, p. 32. 49

    Idem, p. 34. 50

    Idem, p. 36.

  • 43

    tinha a ver com o belo e a beleza e no com a verdade51

    . o potico que leva

    a verdade ao esplendor superlativo. (...) O potico atravessa, com seu vigor,

    toda arte, todo desencobrimento que vige na beleza52

    . A arte se apresenta

    aqui relacionada com a verdade. Aqui, o que est sendo dito, se d na forma

    de indicao de uma mudana no sentido do caminho.

    Ser ento que a arte a possibilidade que silenciosamente cresce na

    Terra para a salvao da ameaa que se consuma na crise aqui indicada?

    Deixemos Heidegger nos perguntar o mesmo:

    Ser que as belas-artes so convocadas ao des-encobrir potico? Ser que o desencobrimento h de reivindic-las mais

    originariamente para que fomentem, por sua parte, o crescimento do que salva, para que despertem e instaurem em nova forma, a viso e

    a confiana no que se concede e outorga? Ningum poder saber se est reservada arte a suprema

    possibilidade de sua essncia no meio do perigo extremo53

    .

    Se no podemos saber se na arte que se reserva a possibilidade do

    que salva, deveremos ainda nos encaminhar nessa arriscada aventura, que a

    da busca por sua essncia? Encaminhar na direo do que digno de ser

    questionado no uma aventura, mas um retorno ao lar. Ainda no

    pensamos o sentido quando estamos apenas na conscincia. Pensar o sentido

    muito mais. a serenidade em face do que digno de ser questionado54

    .

    Como os pensadores e poetas, serenamente, nos arriscaremos nessa vereda.

    Nos arriscaremos no sentido de termos em vista que, no fim dessa nova

    caminhada possamos nos deparar diante uma aporia. Buscamos a essncia da

    tcnica para abrir nossa presena a um livre relacionamento com sua essncia.

    Esta se apresenta como um modo de des-velamento, o explorador que pe

    tudo como dis-posio a uma com-posio. Essa busca nos levou, por fim,

    questo da arte. Diz Heidegger:

    No sendo nada de tcnico a essncia da tcnica, a considerao essencial do sentido da tcnica e a discusso decisiva com ela tm de dar-se no espao que, de um lado, seja consanguneo da essncia

    da tcnica e, de outro lado, lhe seja fundamentalmente estranho.

    51

    A origem da obra de arte, p. 87. 52

    A questo da tcnica, p. 37. 53

    Ibidem. 54

    Cincia e pensamento do sentido, p. 58.

  • 44

    A arte nos proporciona um espao assim. Mas somente se a considerao do sentido da arte no se fechar constelao da

    verdade, que ns estamos a questionar55

    .

    Nossas consideraes acerca da tcnica apontaram para a ,

    poesis, como um modo de des-velar, de verdade, como a essncia da tcnica

    grega e para a Ge-stell, com-posio, tambm como um modo de verdade,

    como a essncia da tcnica moderna. Ambas seriam modos de verdade, de

    des-velamento. Assim, a essncia da tcnica se apresentou como verdade.

    Porm, a razo de que em um dado momento se apresenta como des-

    velamento e em outro se apresenta de um outro modo, para ns, permanece

    um mistrio. O mistrio se instaurou. Esse mesmo, que oculto em sua

    essncia, clareou ns a possibilidade de um outro caminho. O outro, como

    diferena se apresentou, como inaugural, diante a identidade, a habitual do

    mesmo. A arte tem em seu nascimento a aproximao com a tcnica, -lhe

    consangunea. Hlderlin, pensando com Herclito, escreve em seu Hiprion: A

    palavra grandiosa, de Herclito, s poderia ser encontrada

    por um grego, pois essa a essncia da beleza e antes de encontr-la no

    havia filosofia alguma56

    , pois para ele a beleza o ser e para Herclito o ser

    esse , o uno em si mesmo diverso. Herclito e Hlderlin

    so, enquanto pensador e poeta, constantemente considerados por Heidegger.

    O potico aqui relacionado para alm do belo, diz acerca do ser e da

    verdade, o de Plato que sai a brilhar de forma superlativa.

    Constantemente somos levados a pensar a arte em considerao com a

    verdade.

    Investigaremos a arte na busca da sua essncia considerando

    continuamente a questo da verdade. Contudo, como foi dito, a questo da

    verdade e a questo do ser, no pensamento heideggeriano, andam de mos

    dadas. Assim, como se deu nesse percurso, a seguir re-colocaremos a questo

    do ser e da verdade. S assim seremos capazes de dizer algo a respeito da

    arte; se tem ela a medrana do que salva; se ela nos indica ainda outra

    possibilidade, outro caminho ou se, por fim, devemos abandonar

    definitivamente essa busca de um pensar em confronto crise.

    55

    A essncia da tcnica, p. 37. 56

    HLDERLIN, Friedrich. Hiprion, ou, o eremita na Grcia. Trad. br. Mrcia de S Cavalcante.

    Rio de Janeiro: Vozes, 1993. p. 99.

  • 45

    3.2 O originrio da obra de arte: O pr-em-obra da verdade

    Nos passos anteriores, vimos como Heidegger passou da questo da

    tcnica, entendida em sua essncia como um des-encobrimento, questo da

    arte, tambm como um saber que des-encobre. Em sua origem grega ambos

    eram pensados pela palavra . Tcne foi pensada, desde Homero, como

    um saber. Arte e saber pertenciam a um mesmo mbito. Um saber que permitia

    ao ser, ao divino, o seu advento ao que era por si prprio. Arte era um saber,

    um modo de verdade, -, porm, mesmo ao pensar grego, esta