(1460 Filojur 2014 2) 12. Perelman Direito

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Filosofia do Direito - Texto Perelman PUC GOIAS

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Cham Perelman tica e Direito. So Paulo: Martins Fontes, 2011.

30. A propsito da ideia de um sistema de direito

A ideia de um sistema de direito, anlogo a um sistema de lgica ou de matemtica, to oposta ideia de um direito consuetudinrio ou de um direito emanante de uma autoridade soberana que s pode ser concebida como uma ideia tardia, pressupondo um longo trabalho terico prvio. A histria nos ensina que nas sociedades primitivas, regidas pelo costume e pela religio, bem difcil distinguir o direito da moral e da religio. Quando as regras e as instituies estabelecidas no impedem o nascimento de controvrsias e de conflitos, quando se quer impedir que estes no se resolvam pela violncia, recorre-se a uma autoridade reconhecida seja essa autoridade de origem poltica ou religiosa , a fim de dirimir os litgios e de restabelecer a paz social. Nesta primeira etapa, o que caracteriza o direito a existncia de uma autoridade judiciria, que sana as insuficincias das regras consuetudinrias e trata de impor uma soluo aceitvel aos conflitos que se arriscam a degenerar. Para prevenir que nasam novos conflitos a propsito de caso da mesma espcie e para evitar a arbitrariedade, importante que a deciso do juiz forme um precedente ao qual todos se amoldaro no futuro, e que se torne conhecida a regra mediante a qual ele decidiu. Da nasce certa concepo da justia, como regularidade, como uniformidade, como o tratamento igual de casos essencialmente semelhantes. essa igualdade perante a lei que garante a imparcialidade dos juzes e assegura a manuteno da ordem social. bvio que, para impor-se, a regra de deciso dever ter uma fora de convico suficiente, que no seja considerada nem inqua nem desarrazoada pelo meio ao qual ela deve aplicar-se. A presso social, acompanhada de eventuais sanes, impor a regra de direito aos membros do grupo. Assim que, pouco a pouco, em consequncia das decises que se impem e constituem precedentes, se elaborar, em cada comunidade, um direito distinto das usanas, dos costumes e das prticas religiosas. Cada vez que uma situao imprevista der origem a um novo problema, que apresentar o risco de suscitar um novo conflito, recorrer-se- a autoridades administrativas ou judicirias para resolver o novo litgio. Na medida do possvel, a regra de deciso se reportar a uma regra existente, que ser ampliada por meio de analogia e cujo alcance ser limitado pela introduo de uma ou outra distino. Quando o nmero de decises autorizadas e de regras subjacentes constituir um conjunto considervel, formar-se- pouco a pouco uma classe de especialistas, cujo papel ser reunir essas regras, adapt-las s situaes novas e complet-las em caso de necessidade. Apenas mais tarde que se pensar em instituir uma autoridade legislativa especializada, essencialmente de natureza poltica, mas que poder intervir, se for o caso, nas matrias civis e penais. Nessa concepo de um direito, que nasce e se desenvolve gradualmente, por ocasio de conflitos que advm espontaneamente, ainda no se pode pensar no direito como num sistema. A ideia de um sistema de direito, capaz de responder de antemo a todas as questes que poderiam surgir, s pode nascer aps uma longa evoluo histrica, durante a qual se resolveu grande nmero de problemas e se elaboraram procedimentos e tcnicas de soluo.

Por que um sistema de direito no pode ser assimilado a um sistema esttico, tal como um sistema formalizado de lgica ou de matemtica? Para compreender isso, cumpre dar-se conta de que um sistema formalizado elaborado de modo que se lhe elimine toda ambiguidade e toda controvrsia. Com esse intuito, constri-se uma lngua artificial de que se enumerar, de modo exaustivo, todos os signos primitivos. Indicar-se-, igualmente, a maneira de combin-los para formar expresses corretas. Cada um desses signos, e cada expresso correta formada a partir deles, ser unvoco. Apenas com essa condio que se poder afirmar a validade universal do princpio de identidade; se x igual a x (em lgebra), e p igual a p (em lgica), porque se decidiu de antemo que a mesma varivel, que se apresenta duas vezes numa mesma expresso, sempre deve ser substituda pelo mesmo valor. Dentre as expresses corretamente formadas, trataremos algumas como axiomas, ou seja, proposies primitivas, que consideramos verdadeiras sem as demonstrar. Formularemos igualmente regras de deduo que permitiro demonstrar, a partir dos axiomas, teoremas, assim como novos teoremas a partir dos axiomas e dos teoremas j demonstrados. A condio indispensvel ao funcionamento de tal sistema a coerncia, o fato de no se afirmar, dentro do sistema, uma proposio e sua negao. Com efeito, sem o respeito ao princpio de no-contradio, impossvel construir um sistema formal utilizvel: se, entre os axiomas ou os teoremas do sistema se encontrassem uma proposio e sua negao, nada garantiria a verdade dos axiomas ou dos teoremas demonstrados, pois uma das proposies demonstradas, ou afirmadas verdadeiras, se mostraria falsa. Em contrapartida, o sistema construdo poderia no ser completo: poderia conter proposies irresolveis, das quais no se poderia demonstrar, dentro do sistema, nem a verdade nem a falsidade. Uma proposio assim considerada independente do sistema; pode-se acrescent-la ao sistema ou acrescentar sua negao, sem que o sistema fique incoerente (cf. as geometrias no-euclidianas). Um sistema formalizado, construdo de uma forma to rgida que impe a univocidade dos signos, que limita as capacidades de expresso e de demonstrao do sistema, isolado do resto do universo, e no est em interao com elementos que lhe so exteriores. Veremos que a ausncia dessas condies que distingue nitidamente um sistema jurdico de um sistema formal. Se verdade que o direito visa ao estabelecimento de uma ordem estvel, que garantiria a segurana jurdica, a uniformidade (a igualdade perante a lei) e a previsibilidade, ele nunca pode ser isolado do contexto social no qual se supe que atue. Com efeito, mesmo que se reconhea o papel especfico do direito, a busca da segurana jurdica, a busca de um consenso social no lhe permite desprezar os valores que ele compartilha com a moral e a poltica, a saber: a justia e o bem comum ou o interesse geral. Por outro lado, e na medida em que aplicvel a pessoas que tambm so regidas por outros sistemas, tais como um direito estrangeiro ou um direito religioso, ele no poder desprezar-lhes a incidncia. Enfim, o carter rgido, portanto esttico, do sistema no poderia resistir indefinidamente s mudanas, de ordem tcnica e cultural, ocorridas na sociedade. Com efeito, se o direito encarado sob seu aspecto teleolgico, ou seja, como um meio visando a um fim que deve ser realizado no seio de uma sociedade em mutao, ele no pode ser indiferente s consequncias de sua aplicao. Para adaptar-se a seu papel de meio, o direito dever flexibilizar-se, introduzir em sua estrutura e em sua formulao elementos de indeterminao.

O que caracteriza um sistema assim que nele toda deciso jurdica, trate-se de promulgar uma regra ou de tomar uma deciso judiciria ou administrativa, emana de um poder habilitado para tomar essa deciso. Por essa habilitao, um rgo considerado competente para tomar a deciso. Remontando pouco a pouco, o conjunto do sistema depender, no final das contas, de uma norma fundamental que converte, em fonte originria do sistema, decises emanantes de autoridades polticas ou religiosas, tais como os pais fundadores da cidade, que estaro na origem da primeira constituio. O carter dinmico do sistema se manifesta pelo poder, de maior ou menor amplitude, conferido aos rgos habilitados a tomar decises jurdicas. Esse poder mais amplo no chefe de um Parlamento soberano que no controlado por nenhuma instncia superior. Mas ainda continua considervel, para Kelsen, no chefe de instncias judicirias que no se limitam a ser apenas a boca que pronuncia as palavras da lei. Apenas a concepo retrica permite compreender o papel da fico no direito. Assim que, para chegar a uma soluo que lhe parece mais equitativa, o juiz, porm o mais das vezes o jri, recorrer fico, graas qual, sem modificar a regra e sem a substituir por outra, chegar ao resultado desejado no caso particular submetido sua apreciao. Ainda que o juiz seja obrigado a aplicar a lei, ele dispe, no obstante, de um conjunto de tcnicas prprias do raciocnio jurdico que lhe permitem, o mais das vezes, adaptar as regras ao resultado buscado. A interveno do juiz possibilita introduzir no sistema jurdico consideraes relativas oportunidade, justia e ao interesse geral que parecem, numa perspectiva positivista, alheias ao direito. O recurso a noes vagas, tais como a fora maior, o estado de necessidade, a ordem pblica nacional ou internacional, permitiro aos juzes limitar o alcance das regras reconhecidas a fim de chegar a uma soluo mais satisfatria. Note-se que essas tcnicas de flexibilizao e de adaptao do sistema jurdico aos valores dominantes na sociedade se encontram, sob outras formas, em sistemas diferentes daquele do direito europeu continental. No sistema da common law inglesa, o poder monrquico que introduzir, por intermdio da chancery, cortes de equidade para paliar a rigidez de um sistema de direito fundamentado no respeito aos precedentes judicirios (stare decisis).

Na prtica, um direito s eficaz se usufrui um consenso suficiente do meio a que aplicvel. Aqueles que so encarregados de dizer o direito em cada caso particular tero de estender ou de restringir o alcance das regras de modo que se evitem solues desarrazoadas, chocantes para os usurios, seja porque injustas demais, seja porque mal adaptadas situao. Para obviar s consequncias indesejveis, cumprir encontrar solues que parecem opostas letra da lei e introduzem um fator de insegurana jurdica. por essa razo que normalmente s se lanar mo disso no caso e nos ramos do direito em que a preocupao com a segurana jurdica perde a prioridade para consideraes de outra natureza. Todos os recursos do raciocnio jurdico serviro de amparo para justificar tais desvios. No esqueamos que, mngua de um consenso suficiente, no s as regras jurdicas, mas tambm as autoridades que as estabelecem ou as modificam, as interpretam e as aplicam, correm o risco de ser contestadas. As tcnicas de flexibilizao das regras, inventadas pelos juristas, visam a tomar suportveis as disposies jurdicas que, sem elas, se arriscam a provocar reaes violentas contra as autoridades responsveis. Alis, para atender a preocupaes de mesma espcie que, em muitos sistemas jurdicos modernos, em caso de violao das regras de direito penal, os promotores so juzes da oportunidade das instauraes de processo. Assim que, em vrios pases da Europa ocidental, onde a opinio pblica estava muito dividida quanto instaurao de processo por aborto em meio hospitalar, enquanto a legislao que punia severamente o aborto no era ab-rogada, alguns promotores muitas vezes julgaram oportuno no abrir ou suspender processos. V-se, por essas observaes, que as preocupaes acerca da aceitabilidade das consequncias diferenciam nitidamente um sistema jurdico de um sistema formal. Da resulta que, apesar do parecer de certos positivistas, preocupaes ideolgicas, de ordem moral religiosa ou poltica, no podem ser alheias ao direito, pois exercem grande influncia sobre a efetividade do sistema e sobre a maneira pela qual as regras de direito so interpretadas e aplicadas.

38. Raciocnio jurdico e lgica jurdica

A existncia de um raciocnio especificamente jurdico no contestado por nenhum daqueles que estudam o direito, mas muitos lgicos contestam a existncia de uma lgica jurdica, Com efeito, pretendem eles, se a lgica se identifica com a lgica formal, que elabora e analisa as regras de uma deduo formalizada e cuja matria pode ser fornecida por qualquer disciplina que seja , no h mais razo para falar de lgica jurdica (quando os termos de um silogismo, por exemplo, so extrados do direito) do que se falaria de lgica qumica ou biolgica, quando os termos so extrados da qumica ou da biologia. verdade que os enunciados jurdicos contm amide noes tais como: permitido, proibido, obrigatrio, que foram formalizadas e analisadas por um novo ramo da lgica formal, chamado lgica dentica, recentemente elaborado por incentivo do lgico e filsofo finlands G. H. Von Wright. Cumpre constatar, a esse respeito, que a lgica dentica nada tem de especificamente jurdico, pois as anlises e formalizaes que nos apresenta, e que nos esclarecem sobre certos usos possveis dos operadores denticos, se aplicam a todos os enunciados que comportam elementos prescritivos, e no somente aos enunciados jurdicos. A noo de lgica jurdica no me parece poder ser utilizada num sentido especfico inegvel, a no ser que se reconhea, ao lado de uma lgica formal, que elabora a teoria da prova demonstrativa, a existncia de uma lgica no-formal, dedicada ao estudo da argumentao, ou seja, do conjunto dos raciocnios que vm apoiar ou combater uma tese, que permitem criticar e justificar uma deciso. A lgica jurdica examinaria as argumentaes especficas ao direito, tais como foram alis ensinadas, durante sculos, com o nome de Tpico jurdico. Os desenvolvimentos da lgica formal moderna, que se situam numa tradio cientificista, primeiro cartesiana (que confere uma importncia essencial s intuies evidentes), depois leibniziana (que se vincula sobretudo ao estudo de clculos formalizados), fizeram afastar da lgica todos os meios de prova alheios prova demonstrativa, ou seja, coerciva. A lgica moderna se limita, assim, ao estudo das provas que ele qualificava de analticas, omitindo todas aquelas que ele qualificava de dialticas, e que so as que vm apoiar uma opinio ou que se opem a ela. Estas ltimas, que se relacionam com a argumentao, so, de fato, fortes ou fracas, mas jamais coercivas e, por isso mesmo, jamais impessoais. Com efeito, perante uma prova formalmente correta, conforme s regras de inferncia, se a verdade das premissas no contestada, tem-se de se inclinar diante da concluso. Em contrapartida, a prova argumentativa nunca exclui a argumentao em sentido oposto. Uma prova, que parece convincente a um, pode no persuadir um outro. Diante dessas divergncias, , portanto, indispensvel designar juzes competentes para conhecer e dirimir os litgios e cujas decises tero autoridade. Se se trata de resolver um problema de aritmtica, ningum pensaria em designar o matemtico qualificado para fornecer a resposta autorizada, pois quase no se imagina desacordo a propsito disso. Foi inspirando-se no modelo matemtico que Descartes pde escrever em suas Regulae: Todas as vezes que dois homens enunciam sobre a mesma coisa um juzo contrrio, certo que um dos dois se engana. H mais, nenhum deles possui a verdade; pois se ele tivesse uma viso clara e ntida dela, poderia exp-la ao adversrio de tal modo que acabaria por forar-lhe a convico. Mas nenhum jurista est seguro, da mesma forma, da evidncia de suas teses e, muito amide, em matria jurdica, as posies ficam irredutivelmente opostas. que as teses jurdicas so fundamentadas no em provas demonstrativas, mas em argumentos cuja fora e pertinncia podem ser diversamente apreciadas. Para dirimir os conflitos, o recurso a uma autoridade competente se mostra, pois, indispensvel. No se compreenderia de modo algum essa situao se o raciocnio jurdico pudesse ser reduzido inteiramente a um raciocnio do tipo demonstrativo. De fato, aquilo a que se chama uma demonstrao, em direito, no mais do que uma argumentao, e a lgica jurdica comporta o estudo de esquemas argumentativos no-formais, prprios do contexto jurdico. Enquanto a demonstrao impessoal e poderia mesmo ser controlvel mecanicamente, toda argumentao se dirige a um auditrio que ela se empenha em persuadir ou em convencer, cuja adeso, s teses defendidas pelo orador, ela deve ganhar. essencial conhecer esse auditrio, saber quais so as teses que, se supe, ele aceitaria, e que poderiam servir de premissas para a argumentao que a pessoa se prope desenvolver. Cumpre, alis, que tais teses sejam aceitas com uma intensidade suficiente e que suportem, sem desgaste, o peso da argumentao. Se no for esse o caso, elas correm o risco de ser abandonadas pelo ouvinte e toda a argumentao que lhes vinculada desabaria como um quadro preso a um prego mal fincado na parede. Quando se trata de um auditrio livre para aderir s teses de sua escolha, o orador deve, quer se informar das convices desse auditrio, quer as presumir. Mas, como se supe que todos aqueles que participam de um raciocnio jurdico raciocinam no seio de um determinado sistema de direito, eles esto ligados, por assim dizer, pelas teses aceitas nesse sistema. Os oradores que se dirigem ao juiz podem basear-se em todas as regras de fundo e de processo tiradas do sistema, e que o juiz no pode recusar sem se tomar culpado de uma violao da lei. Alis, consoante essas regras que o prprio juiz dever motivar sua sentena, de forma a obter o assentimento de seus pares, de seus superiores e da opinio dos juristas, sobre o fato de que prol atou uma sentena conforme ao direito. Mas sabemos que, ao lado de regras de direito que ningum cogita em contestar, nem em interpretar sua maneira, todo sistema de direito comporta bastantes elementos de incerteza, d ao juiz bastante liberdade e depende tanto da convico ntima do juiz, no que tange ao estabelecimento dos fatos, que a personalidade do juiz sempre cumpre um papel, s vezes limitado, mas s vezes decisivo, no desenrolar do processo e em seu desfecho. Como , no final das contas, ao juiz que o raciocnio jurdico dever convencer, como esse raciocnio no uma demonstrao impessoal, mas sua eficcia depende do efeito que produz no auditrio, importante precaver-se contra a parcialidade dos magistrados. No convm que estes sejam escolhidos consoante a atitude presumida para com as partes envolvidas ou para com o problema em discusso. por essa razo que se zela por que se saiba de antemo qual juiz ter de dirimir os processos de um determinado gnero, e que se procura proibir, num regime democrtico, o recurso a jurisdies de exceo. Quando os juzes so designados posteriormente, como num jri criminal, cada parte tem o direito de recusar as pessoas que lhe pareceriam mal dispostas para com a causa que defende. Em todo litgio de ordem jurdica, cabe considerar, no que diz respeito ao raciocnio, e independentemente das questes de procedimento, trs aspectos, que so: a prova dos fatos, a sua qualificao e as consequncias legais da decorrentes, levando-se em conta o sistema de direito em vigor. A prova dos fatos s vezes livre, s vezes regulamentada. Mas cumpre evitar, a esse respeito, uma grave confuso. Quando dizemos que a prova dos fatos livre, isto quer dizer simplesmente que o juiz pode formar livremente uma convico a propsito deles, e ainda assim lhe defeso fazer caso de informaes que poderia ter obtido fora da audincia e que no teriam sido submetidas a um exame contraditrio. Mas a prova nunca inteiramente livre para as partes. Assim que a prova de certos fatos inadmissvel. O juiz pode recusar-se a admitir a prova dos fatos irrelevantes, cuja materialidade em nada influencia o desfecho do processo, assim como dos fatos cuja prova no permitida, por exemplo daqueles que uma difamao aventa, e isto com o intuito de proteger a reputao das pessoas privadas. inadmissvel, igualmente, a prova dos fatos aos quais se ope uma presuno legal irrefragvel, tal como a autoridade da coisa julgada... O juiz tampouco admitir a prova de certos fatos cobertos pela prescrio. Estes poucos exemplos mostram como a considerao de um interesse social superior pode opor-se ao estabelecimento da verdade objetiva. Cabe provar apenas os fatos relevantes, cuja prova admissvel e que no so notrios, nem incontestes, nem presumidos. Toda a tcnica judiciria da prova dos fatos s compreendida a partir da noo de presuno. Os fatos presumidos no tm de ser provados. Assim que, em nosso direito, o ru presumido inocente at prova do contrrio, e ao acusador que compete o nus dessa prova. Assim tambm, cabe ao demandante, que deseja modificar um estado de coisas existente, provar que esse estado contrrio ao direito. O demandado pode contentar-se em negar. Apenas quando ele alega algo em sua defesa que tm o nus de provar o que avana. Observe-se que essa distribuio do nus da prova, que parece normal e equitativa quando se trata de relaes civis entre particulares, supostamente mais ou menos iguais, no o quando se trata de relaes entre um particular e uma administrao pblica, que em geral a nica detentora dos documento probatrios. por isso que, em direito administrativo, o juiz pode ordenar administrao que apresente toda a documentao referente ao processo, ainda que esta deva, assim, trazer ela prpria as provas que se voltaro contra ela. Quando a prova dos fatos dita livre, e tende unicamente estabelecer a convico do juiz, o raciocnio, que deve amoldar-se s condies que acabamos de assinalar, nada ter de especificamente jurdico. Mas, quando se tratar de qualificar os fatos assim estabelecidos, ou seja, quando for preciso subsumi-los sob uma categoria legal, para poder tirar deles as consequncias previstas pela lei, o juiz ter um poder de apreciao, pois a qualificao muito raramente determinada apenas das propriedades objetivas daquilo que se quer qualificar: com frequncia, o juiz, para justificar sua qualificao, se inspira na inteno do legislador e na apreciao das consequncias legais que decorreriam de sua deciso. Se um regulamento prev que a venda de drogas proibida sem prescrio mdica, a deciso judiciria s qualificar de droga um produto farmacutico em considerao de uma apreciao das consequncias da venda livre desse produto. s vezes, mesmo, para obter um resultado desejado, o juiz ser obrigado a recorrer a uma fico, ou seja, a uma qualificao contrria aos fatos, mas que a nica tcnica de que dispe para chegar ao resultado sem modificar os termos da lei. Foi de uma fico assim que se serviu, em Roma, o pretor peregrino, para estender aos estrangeiros a aplicao da lei civil, primitivamente limitada aos cidados romanos. Assim que pode ocorrer, nos processos criminais, que o jri, desejando a absolvio do ru, responda negativamente, e contrariamente evidncia, ao quesito: o ru culpado de haver causado voluntariamente a morte de tal pessoa? por ocasio de problemas de qualificao que se manifesta, com mais clareza, a interferncia do fato e do direito, to caracterstica do raciocnio jurdico. Se o fato de seguir, em passeata, uma bandeira vermelha, no dia 12 de maio, punvel aos olhos da lei, as condies do delito estaro preenchidas se o cortejo seguiu, naquele dia, uma bandeira cor-de-rosa ou lils apresentada na audincia? V-se imediatamente que a qualificao depender no s de uma descrio no-controversa dos fatos, mas tambm do modo como o juiz interpretar a lei. Vale repetir, a esse respeito, que os problemas especficos de lgica jurdica no surgem quando se trata de deduzir as consequncias que resultam logicamente de um conjunto de premissas, mas quando se trata de estabelecer essas prprias premissas, dando s normas jurdicas seu alcance exato. Tais problemas so tradicionalmente considerados como relativos interpretao da lei. Poder-se-ia, evidentemente, pretender que os problemas de interpretao so alheios lgica, e ter-se- certamente razo se se identificar a lgica com a lgica formal. Mas, se a lgica jurdica deve estudar o que h de especfico no raciocnio jurdico, no pode ela ater-se ao estudo dos aspectos formais do raciocnio, pois seu papel essencial analisar a argumentao tal como se desenvolve num contexto jurdico. Tomemos as argumentaes clssicas da lgica jurdica, tais como os argumentos a pari, a fortiori, ab absurdo, ab inutili sensu, a maiori ad minus, etc. Todos dizem respeito interpretao da lei, e em virtude de um ou outro desses argumentos que o juiz poder justificar sua interpretao. Observe-se que, como esses argumentos nunca so a tal ponto coercivos que no lhes possa ser oposta uma argumentao em sentido contrrio, a deciso do juiz indispensvel para terminar o debate. Essa deciso ser motivada por meio de um raciocnio que dever mostrar mediante quais procedimentos, vinculados lgica jurdica, a sentena se reporta ao sistema de direito pelo qual o juiz deve pautar-se. Essa motivao fornecer a um s tempo as razes que pareceram prevalecer, assim como a refutao das objees opostas tese defendida pelo juiz. Observe-se, outrossim, que o exame dos problemas levantados pelas antinomias jurdicas e pelas lacunas da lei mostra que um sistema jurdico moderno no um sistema fechado, que o juiz pode recorrer, para motivar suas decises, a princpios gerais que no esto explicitamente enunciados em nenhum texto legal, que pode recorrer tambm a raciocnios teleolgicos, a raciocnios por analogia, mesmo dando muita importncia aos precedentes judicirios e mesmo sabendo que sua prpria sentena pode constituir um precedente para todos os casos futuros de mesma espcie. esse conjunto de particularidades, e o fato de que as decises de justia so publicadas e se integram num sistema, que permite consider-las um modelo de raciocnio prtico, que ser analisado com proveito por todos aqueles que procuram compreender a racionalidade de uma deciso no mbito de um sistema. O raciocnio judicirio e a lgica jurdica que o analisa fornecem tambm preciosos modelos para uma melhor compreenso do papel da razo na ao.

39. Que a lgica jurdica?

Parece paradoxal que se deva formular, ainda hoje, a questo de saber o que a lgica jurdica, quando o direito uma das mais antigas disciplinas humanas e a lgica se tornou, no sculo XX, uma das disciplinas mais desenvolvidas da filosofia contempornea. Mas basta comparar entre si algumas obras recentes que tratam da questo e tiveram todas elas sucesso, no sem mritos, para constatar que o problema existe e mesmo muito controverso.

Comecemos por salientar quo inslita seria a utilizao da expresso lgica jurdica. Ser que algum teve a ideia de falar de lgica qumica ou biolgica quando se utiliza a lgica em qumica ou em biologia? Por que falar de lgica jurdica a propsito do uso da lgica formal em direito? Ser que a estrutura do silogismo ou do princpio de transposio varia porque os termos ou as proposies que substituem as variveis so extrados do direito, da qumica ou da biologia?Como a reduo atual da lgica teoria da demonstrao formal no reconhece outra lgica alm da formal, foi mesmo preciso, para utilizar a expresso lgica jurdica, dar-lhe um sentido compatvel com essa concepo da lgica, mas que, preciso diz-lo, nada tem em comum com o sentido usual. Contudo, para fazer que se admita essa novidade, foi preciso esforar-se para mostrar que os modos de raciocnio, que se referem no estrutura das premissas e das concluses, mas sua matria, tais como os raciocnios por analogia, a pari, a fortiori, a contrario, a maiore ad minus, a minori ad maius, ad absurdum, podem ser utilmente analisados graas lgica formal.

De fato, o que h de especfico na lgica jurdica que ela no uma lgica da demonstrao formal, mas uma lgica da argumentao, que utiliza no provas analticas, que so coercivas, mas provas dialticas no sentido aristotlico dessa distino que visam a convencer ou, pelo menos, a persuadir o auditrio (o juiz nessa ocorrncia), de modo que o leve a dirimir com sua deciso uma controvrsia jurdica. As decises de justia, com seus motivos e seu dispositivo, fornecem, por excelncia, os textos cuja anlise permitir evidenciar as argumentaes prprias da lgica jurdica. Basta um instante de ateno para constatar que no se trata de um raciocnio terico, em que, a partir de premissas verdadeiras, se chega, por meio de leis lgicas, a uma concluso igualmente verdadeira, mas de uma deciso que o juiz justifica, pelos motivos indicados, sem desprezar as razes que lhe permitem descartar as objees que as partes opem ao seu dispositivo. Para pr em evidncia os elementos prprios da lgica jurdica, no nos demoraremos muito nos elementos de prova que determinaro a convico do juiz no que tange ao estabelecimento dos fatos. Em princpio, o juiz procede como toda pessoa que se esfora para estabelecer uma verdade histrica; o que o distingue do historiador que regras precisas podem impor a uma das partes o nus da prova, bem como limitar, de diversas maneiras, a admissibilidade da prova.

Falaremos de lgica jurdica a propsito das tcnicas que possibilitam qualificar os fatos, subsumi-los sob normas jurdicas, tirar deles as consequncias jurdicas. O juiz recorre lgica jurdica quando se trata de escolher a lei aplicvel, sobretudo quando a escolha da regra levanta um problema de direito, porque vrias regras competem entre si ou porque cabe preencher as lacunas da lei, quando cabe interpret-la, precisar-lhe o campo de aplicao. O mais antigo dos lugares especficos da lgica jurdica ope a letra ao esprito da lei. V-se imediatamente que no se trata, em absoluto, nesse caso, de lgica formal, pois que esse lugar se refere ao sentido que se deve conferir a uma das premissas do raciocnio jurdico. Alis, questo deve-se interpretar a lei segundo a letra ou segundo o esprito? no pode ser fornecida nenhuma resposta universalmente vlida. Tomemos alguns exemplos, Se o roubo cometido noite passvel de uma pena com circunstncia agravante, deve-se admitir que cabe aplicar essa circunstncia agravante a um roubo cometido meia-noite num cassino feericamente iluminado? Responder-se- sim ou no conforme se aplicar a letra ou o esprito da lei. Se o fato de seguir, em passeata, uma bandeira vermelha no dia 10 de maio punvel; em virtude de um artigo do Cdigo Penal, cumprir punir quem desfilou, em 1 de maio, atrs de uma bandeira cor-de-rosa ou lils? Todos os problemas de qualificao, trate-se de direito continental ou de direito anglo-saxo, implicam o recurso regra de justia, que ordena tratar da mesma forma casos essencialmente semelhantes. Mas, quando casos so essencialmente semelhantes? Para emitir um juzo nessa matria, recorrer-se- aos tpicos jurdicos que permitem justificar as decises judicirias. Raciocinar-se- a pari, a fortiori, a contrario, invocando os termos da lei, sua finalidade, a inteno do legislador, o bem comum, sero introduzidas noes tais como a equidade, a ordem pblica interna ou internacional; sero elaboradas teorias tais como as do abuso do direito, da fraude da lei, para justificar a deciso tomada. Se admitido que o estado e a capacidade das pessoas so regidos por seu direito nacional, que fazer quando certas prescries da legislao estrangeira se opem ordem pblica interna? Em que medida cabe descartar a lei estrangeira? Um marroquino poder se casar, na Blgica, com uma segunda mulher, quando no se divorciou da primeira e sua legislao autoriza a poligamia? certo que no, porque a bigamia um delito e um oficial belga do registro civil no pode participar do seu estabelecimento. Mas, se um marroquino chega Blgica acompanhado de suas duas esposas, deve-se process-lo por bigamia? A mais antiga de suas esposas poder exigir a anulao do segundo casamento por motivo de bigamia? certo que no, embora a bigamia constitua normalmente um delito punvel. Suponhamos que o marroquino fique desempregado e tenha direito indenizao de desemprego. Poder reclamar uma indenizao para suas duas esposas e para todos os filhos oriundos desses dois casamentos? para responder a questes dessa espcie que se recorrer lgica jurdica, a todos os argumentos que ela nos permitir elaborar, que tero maior ou menor fora, mas jamais fornecero um raciocnio formalmente correto, cuja concluso se imporia de um modo coercivo a partir de premissas incontestes. A lgica jurdica nos fornece argumentos de ordem geral ou particular, utilizveis nas controvrsias jurdicas. A tradio retrica e a dos Tpicos os qualifica de lugares-comuns e de lugares especficos, conforme seu alcance e seu campo de aplicao. Vrios princpios gerais do direito enunciam tais lugares, cuja aplicao s vezes limitada a certos ramos do direito, mas que s vezes tm aplicao em grande nmero de sistemas jurdicos. Assim que o argumento por analogia ser admitido com mais facilidade em direito civil do que em direito penal, e, em direito penal, encontrar menos oposio quando intervir em favor do ru do que contra ele. O papel e a aplicabilidade de certos tipos de raciocnios podem depender da tradio ou do meio, que admitem ou descartam certos tipos de raciocnios, restringem ou ampliam seu campo de aplicao. mormente por ocasio de antinomias e de lacunas, de conflitos entre regras jurdicas e de incompatibilidades entre regras de soluo de antinomias, que se recorrer lgica jurdica. Por vezes a soluo que prevalecer resultar da apreciao das consequncias, em termos de justia ou de bem comum, da escolha de uma ou de outra tcnica de raciocnio. Assim, poder acontecer que a deciso no resulte da primazia conferida a esta regra sobre aquela, mas que a apreciao das consequncias incite a conceder a preferncia a tal regra sobre tal outra. Observe-se, alis, que vrias teorias e construes jurdicas s foram elaboradas com o intuito de descartar a aplicao das regras jurdicas nos casos em que esta resultaria em consequncias inadmissveis. As falsas antinomias resultam da criao jurisprudencial de uma antinomia, quando a apreciao de uma regra redunda em consequncias que colidem com um princpio de equidade. As falsas lacunas provm da interpretao limitativa de uma regra quando sua interpretao literal levaria a uma deciso cujas consequncias so julgadas social ou moralmente inadmissveis. Foi pensando em tais situaes que se pde defender a tese do existencialismo jurdico, segundo o qual as decises no so tomadas em funo de regras gerais, sendo o exame de cada caso concreto, com todas as suas particularidades, o que permite evidenciar as regras aplicveis. Mas h, por certo, algum exagero nesta ltima posio, pois essencial, para qualquer ordem jurdica, que nela situaes essencialmente semelhantes sejam tratadas da mesma forma. Quando se tratar de determinar em que medida uma situao essencialmente semelhante a precedentes reconhecidos que se dever recorrer aos tpicos jurdicos, ou seja, a todas as consideraes que se levam em conta habitualmente na interpretao e na aplicao do direito. Trata-se de razes, cujas pertinncia e importncia no foram desprezadas por juzes anteriores para determinar a escolha e o campo de aplicao das regras jurdicas, e que no se podem descartar sem fornecer razes, que parecem mais importantes, para justificar uma reforma da jurisprudncia. Encontramos, em todos esses raciocnios, os traos caractersticos no da demonstrao formal, impessoal, e cujo desenvolvimento independente da matria tratada, mas da argumentao que se desenvolve consoante o auditrio, seus posicionamentos e suas reaes. A argumentao das partes tem como efeito fornecer ao juiz as razes que lhe motivaro a deciso, razes que ele considerar as melhores tanto para ele como para os juzes de apelao e de cassao que eventualmente teriam de apreciar sua deciso, e s quais tero de submeter-se as partes e a opinio pblica, que poderia exigir, eventualmente, uma modificao da legislao. A lgica jurdica uma lgica que permite levar a seu termo uma controvrsia, em que os argumentos so confrontados, em que, em cada etapa, o pr e o contra no so postos em p de igualdade, pois as presunes intervm em favor da tese ou da anttese, incumbindo o nus da prova a quem se prope derrubar essa presuno. Esse vaivm de argumentos e de contra-argumentos terminar com a deciso do juiz, que decidir quais argumentos devem prevalecer. A sentena assim emitida, com sua ratio decidendi, far jurisprudncia e se inserir na ordem jurdica que contribui para elaborar. Bastar, no futuro, para justificar uma deciso, referir-se aos precedentes, devendo aqueles que lutam por uma reforma de jurisprudncia fornecer as razes que deveriam, em sua opinio, prevalecer sobre aquelas que foram admitidas anteriormente. esse vaivm de argumentos, que implicam posicionamentos, juzos de valor, o que estes tm de relevante ou de irrelevante em dada situao, o alcance de sua generalizao e de sua insero num sistema jurdico, que caracteriza o raciocnio jurdico. A lgica jurdica se apartar da anlise dos debates judicirios, da classificao, da explicao, da esquematizao deles. O resultado desse esforo no ser uma teoria da demonstrao formal, da qual s se teria de seguir as regras operatrias para chegar a uma concluso corretamente deduzi da, mas uma teoria da argumentao e da controvrsia em que a fora e a relevncia dos motivos sero apreciadas por um juiz, formado por uma determinada tradio, e para cuja elaborao ele contribui com suas sentenas e a motivao delas.

31. O razovel e o desarrazoado em direito A ideia de razo sempre teve, em direito, um papel relevante. Ela est, como se sabe, na base da afirmao de um direito natural, eterno e imutvel, expresso da razo, oposto s leis positivas, expresso da vontade arbitrria da autoridade legislativa. Assim que Domat, em seu Tratado (Les lois civiles dans leur ordre naturel, 1680-1694), define as regras do direito natural como aquelas que o prprio Deus estabeleceu, e que ele ensina aos homens pela luz da razo. So as leis que tm uma justia imutvel, que a mesma sempre e em toda parte: estejam elas escritas, ou no, nenhuma autoridade humana as pode abolir, nem mud-las em nada (livro preliminar, t. I, seo III). Domat atm-se a resumir, sua moda, a clebre passagem do De republica de Ccero:

H uma lei verdadeira, reta razo, conforme natureza, presente em todos, imutvel, eterna; ela chama o homem ao bem com seus mandamentos e o desvia do mal com suas proibies. Quer ordene, quer proba, ela no se dirige em vo aos homens de bem, mas no exerce ao alguma sobre o maldoso. No permitido infirm-la por outras leis, nem derrogar-lhe os preceitos; impossvel ab-rog-la por inteiro, nem o Senado, nem o povo podem liberar-nos dela. Ela no ser diferente nem em Roma nem em Atenas, e no ser, no futuro, diferente do que hoje, mas uma nica lei, eterna e inaltervel, reger a um s tempo todos os povos em todos os tempos; como um nico senhor o chefe, ele que o autor da lei, que a promulgou e a sanciona, aquele que no lhe obedece se pune a si prprio renegando sua natureza humana e se reserva o maior castigo (LIII, cap. XXII).

A esse direito natural, de origem divina, mas comum a cada homem, enquanto ser dotado de razo, os tericos modernos opuseram uma concepo mais modesta da razo, a que subjacente hiptese da racionalidade do legislador. Essa hiptese metodolgica, que serve de fundamento para a interpretao da lei, pressupe que o legislador conhea a lngua que utiliza, assim como o sistema em que se insere sua obra, cuja coerncia ele procura salvaguardar, que nada faz de intil, que adapte os meios aos fins visados, que raciocine num mbito de preferncias admitidas, o que permite aplicar ao texto da lei os argumentos a pari, a fortiori e a contrario. Mas no se pressupe que ele subscreva a certo nmero de regras de direito universais e imutveis. As noes de razovel e de desarrazoado, em contrapartida, no foram muito utilizadas nas teorias do Direito, parte na obra do jurista espanhol, estabelecido no Mxico, Lus Recasns Siches, que desenvolveu, faz vinte anos, uma lgica do razovel. Parece-me, contudo, que, na prtica do direito, no raciocnio jurdico, essas noes intervm com muito maior frequncia do que as de racional e de irracional, que fornecem um mbito no qual se exerce toda atividade jurdica, que o desarrazoado no pode ser admitido em direito, o que toma ftil qualquer tentativa de reduzir o direito a um formalismo e a um positivismo jurdico. Toda vez que um direito ou um poder qualquer, mesmo discricionrio, concedido a uma autoridade ou a uma pessoa de direito privado, esse direito ou esse poder ser censurado se for exercido de uma forma desarrazoada. Esse uso inadmissvel do direito ser qualificado tecnicamente de formas variadas, como abuso de direito, como excesso ou desvio de poderes, como iniquidade ou m f, como aplicao ridcula ou inadequada de disposies legais, como contrrio aos princpios gerais do direito comum a todos os povos civilizados. Pouco importam as categorias jurdicas invocadas. O que essencial e que, num Estado de direito, quando um poder legtimo ou um direito qualquer submetido ao controle judicirio, ele poder ser censurado se for exercido de forma desarrazoada, portanto inaceitvel.

A cada vez que o juiz deve decidir se houve falta, negligncia, imprudncia, quando cabe precisar um padro (agir como bom pai de famlia), determinar as consequncias prejudiciais de um ato faltoso, encontra-se regularmente nos acrdos o recurso ideia daquilo que ou no razovel. Assim tambm, os fatos esto estabelecidos quando no se pode ter, a esse respeito, nenhuma dvida razovel. Um texto de lei claro quando, aplicadas a uma dada situao, todas as interpretaes razoveis que dele se poderiam dar no ensejam nenhuma controvrsia. Cumpre observar, a esse respeito, que o razovel no remete a uma soluo nica, e sim implica uma pluralidade de solues possveis; porm, h um limite para essa tolerncia, e o desarrazoado que no aceitvel. A vaguido de certos termos, que figuram num texto legal ou regulamentar, d latitude ao intrprete, mas, a no ser que se considerem certas expresses, tais como interesse comum, urgncia ou equidade como expresses vazias, h limites para o poder de apreciao. Vemos assim que, em toda matria, o inaceitvel, o desarrazoado constitui um limite para qualquer formalismo em matria de direito. por essa razo que a teoria pura do direito de H. Kelsen no d explicao suficiente do funcionamento efetivo do direito, na medida em que se empenha em separar o Direito do meio em que ele funciona e as relaes sociais desse meio. Com efeito, a ideia do desarrazoado, vaga mas indispensvel, no pode ser precisada independentemente do meio e do que este considera inaceitvel. Enquanto, em direito, as ideias de razo e de racionalidade foram vinculadas, de um lado, a um modelo divino, do outro lgica e tcnica eficaz, as do razovel e de seu oposto, o desarrazoado, so ligadas s reaes do meio social e evoluo destas. Enquanto as noes de razo e de racionalidade se reportam a critrios bem conhecidos da tradio filosfica, tais como as ideias de verdade, de coerncia e de eficcia, o razovel e o desarrazoado so ligados a uma margem de apreciao admissvel e ao que, indo alm dos limites permitidos, parece socialmente inaceitvel. Todo direito, todo poder legalmente protegido concedido com vistas a certa finalidade: o detentor desse direito tem um poder de apreciao quanto ao modo como o exerce. Mas nenhum direito pode ser exercido de uma forma desarrazoada, pois o que desarrazoado no de direito. O limite assim traado parece-me especificar melhor o funcionamento das instituies jurdicas do que a ideia de justia ou de equidade ligada a certa igualdade ou a certa proporcionalidade, pois, vimo-lo por vrios exemplos, o desarrazoado pode resultar do ridculo ou do inadequado, e no somente do inquo ou do inequitativo. Introduzindo a categoria do razovel numa reflexo filosfica sobre o direito, julgamos esclarecer utilmente toda a filosofia prtica, por tanto tempo dominada pelas ideias de razo e de racionalidade.

31. O razovel e o desarrazoado em direito A ideia de razo sempre teve, em direito, um papel relevante. Ela est, como se sabe, na base da afirmao de um direito natural, eterno e imutvel, expresso da razo, oposto s leis positivas, expresso da vontade arbitrria da autoridade legislativa. Assim que Domat, em seu Tratado (Les lois civiles dans leur ordre naturel, 1680-1694), define as regras do direito natural como aquelas que o prprio Deus estabeleceu, e que ele ensina aos homens pela luz da razo. So as leis que tm uma justia imutvel, que a mesma sempre e em toda parte: estejam elas escritas, ou no, nenhuma autoridade humana as pode abolir, nem mud-las em nada (livro preliminar, t. I, seo III). Domat atm-se a resumir, sua moda, a clebre passagem do De republica de Ccero:

H uma lei verdadeira, reta razo, conforme natureza, presente em todos, imutvel, eterna; ela chama o homem ao bem com seus mandamentos e o desvia do mal com suas proibies. Quer ordene, quer proba, ela no se dirige em vo aos homens de bem, mas no exerce ao alguma sobre o maldoso. No permitido infirm-la por outras leis, nem derrogar-lhe os preceitos; impossvel ab-rog-la por inteiro, nem o Senado, nem o povo podem liberar-nos dela. Ela no ser diferente nem em Roma nem em Atenas, e no ser, no futuro, diferente do que hoje, mas uma nica lei, eterna e inaltervel, reger a um s tempo todos os povos em todos os tempos; como um nico senhor o chefe, ele que o autor da lei, que a promulgou e a sanciona, aquele que no lhe obedece se pune a si prprio renegando sua natureza humana e se reserva o maior castigo (LIII, cap. XXII).

A esse direito natural, de origem divina, mas comum a cada homem, enquanto ser dotado de razo, os tericos modernos opuseram uma concepo mais modesta da razo, a que subjacente hiptese da racionalidade do legislador. Essa hiptese metodolgica, que serve de fundamento para a interpretao da lei, pressupe que o legislador conhea a lngua que utiliza, assim como o sistema em que se insere sua obra, cuja coerncia ele procura salvaguardar, que nada faz de intil, que adapte os meios aos fins visados, que raciocine num mbito de preferncias admitidas, o que permite aplicar ao texto da lei os argumentos a pari, a fortiori e a contrario. Mas no se pressupe que ele subscreva a certo nmero de regras de direito universais e imutveis. As noes de razovel e de desarrazoado, em contrapartida, no foram muito utilizadas nas teorias do Direito, parte na obra do jurista espanhol, estabelecido no Mxico, Lus Recasns Siches, que desenvolveu, faz vinte anos, uma lgica do razovel. Parece-me, contudo, que, na prtica do direito, no raciocnio jurdico, essas noes intervm com muito maior frequncia do que as de racional e de irracional, que fornecem um mbito no qual se exerce toda atividade jurdica, que o desarrazoado no pode ser admitido em direito, o que tornaa ftil qualquer tentativa de reduzir o direito a um formalismo e a um positivismo jurdico. Toda vez que um direito ou um poder qualquer, mesmo discricionrio, concedido a uma autoridade ou a uma pessoa de direito privado, esse direito ou esse poder ser censurado se for exercido de uma forma desarrazoada. Esse uso inadmissvel do direito ser qualificado tecnicamente de formas variadas, como abuso de direito, como excesso ou desvio de poderes, como iniquidade ou m f, como aplicao ridcula ou inadequada de disposies legais, como contrrio aos princpios gerais do direito comum a todos os povos civilizados. Pouco importam as categorias jurdicas invocadas. O que essencial e que, num Estado de direito, quando um poder legtimo ou um direito qualquer submetido ao controle judicirio, ele poder ser censurado se for exercido de forma desarrazoada, portanto inaceitvel.

A cada vez que o juiz deve