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SOBRE SILÊNCIOS E RETICÊNCIAS: O QUE CITAR QUER DIZER PERICLES TREVISAN

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BACHELARD

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  • SOBRE SILNCIOS E RETICNCIAS:

    O QUE CITAR QUER DIZER

    PERICLES TREVISAN

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    "Ofereo-me como um exemplo teratolgico sem dvida nico - de um filsofo que per-deu seu mundo."

    B A C H E L A R D , Univers et Ralit.

    "Doravante no ser mais a voz de outrora aquela que, para todos, proclamar a verdade."

    J . T . D E S A N T I , La Philosophie Silencieuse.

  • SOBRE SILNCIOS E RETICNCIAS:

    O QUE CITAR QUER DIZER.

    P E R I C L E S T R E V I S A N

    I

    No seria justo dizer, como recentemente o fez Watkins a respeito do positivismo l g i c o 1 , que o estruturalismo, enfim, foi derrotado. De um modo mais adequado, poderia ser dito que se assiste, hoje, a um refluir que muitos confundem com uma calmaria. Passada a fase mais agitada, a razo polmica cede arquiteto nica, enquanto os crticos se calam, na ausncia sbita do objeto de eleio de suas loas e de seus reproches: a dimenso polmica do embater das ondas estruturalis tas, nico suporte de sua frgil e aparente unidade. Mas, se esse oceano no oferece mais condies para o deslizar cortante das pranchas dos crticos mais avANados, o seu refluir mesmo incita outros, mais comedidos e acadmicos, oferecendo-lhes insuspeitados "tesouros de praia", que em sua mar vazante deixa mostra no terreno cultural que revolvera. Mas um achado de praia, prmio de consolao daqueles que, no mximo, arriscam molhar os ps, quer se o tome em sentido real ou figurado, sempre exatamente isso: um escolho, um fragmento que faz as vezes de uma obra, e como tal s pode satisfazer como exemplar de uma coleo essa sim, sendo to mais gratificante quanto mais extensa for. Por isso, o fragmento sempre visto como um monumento, nunca como um ndice que incite a uma busca, por demais perigosa e arriscada por envolver um mergulho, talvez sem volta, cm guas profundas e sempre revoltas. Condenado por sua prudncia a um terreno de limites estreitos e sob permanente ameaa de invaso, a o catador se torna minu

    (1) WATKINS, J. W. N. Metaphysics and the Advancement of Science - in The British Journal for the Philosophy of Science, 26, 2, 1975, p. 91

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    cioso e implacvel. No pouco tempo de que dispe, entre as tempestades pol-micas, nada que exista em seu terreno escapa curiosidade de seu olhar percuciente: tudo que al aflore est destinado, fatalmente, a tornar-se um exemplar de sua coleo. A seguir, e aps um prvio trabalho de recondicionamento, quando as arestas mais cortantes foram aparadas, pores desconcertantes e um tanto sem sentido eli-minadas, e a areia sem dvida residual devidamente espanada, a coleo e seus exemplares podem ser expostos ao olhar e curiosidade de todos. Ento o catador, subitamente transmutado em um historiador ou arqueologista. poder enfim des-canar de suas t midas e midas incurses. Sua vida e seu trabalho tero adqui-rido sentido e valor. Recuperou nomes e obras, possibilitando-lhes, graas a suas costas curvadas e seus olhos cansados, a eternidade, ainda que esta mais no seja que a permanncia duvidosa proporcionada pelas citaes fragmentrias em prefcios e introdues, de preferncia metodolgicos.

    O processo a que, de um modo caricatural, se aludiu, parece constituir a nica via para a difuso de teorias que um modismo cultural qualquer elege como suas "ilustres precursoras", ou que o resolver-se por vezes inesperado de uma situa-o polmica arranca, por tabela, de sua situao marginal e transforma, por sua vez, em uma nova moda. Exemplo dessa segunda alternativa parece ser a obra de T. S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, publicada em 1962. Afora algumas anlises, que se restrigiram exclusivamente aos crculos acadmicos norte--americanos, a obra no causou nenhum impacto e mal foi notada em pases de lingua no inglsa. A reao ao positivismo lgico que nestes ltimos anos se acentuou e desenvolveu nos pases de lngua inglesa, teve como uma de suas conse-qncias uma espcie de redescoberta do tema da historicidade do conhecimento cientfico, acompanhada de uma recolocao da questo entre "cincia" e "meta-fsica". Neste processo, as teorias de Kuhn desempenharam um papel decisivo, seja por aquilo a que, intrinsecamente, se opunham, seja pelo seu uso polmico. Isto permitiu a sua difuso em outros meios culturais, a qual, sem dvida, em muito foi facilitada pela natureza dos "temas" que abordam, muito mais familiares a , que as "abstrusas" matrias de eleio e insistncia do positivismo lgico.

    Que o "culto" a Kuhn um modismo, fica claro se for analisada a for-ma de apropriao de suas teorias. De um lado, o que se v a aplicao do concei-to de paradigma, no exatamente como um conceito2, mas enquanto um esquema interpretativo3; de outro, nota-se que Kuhn, mesmo nos pases europeus, visto como um inovador por abordar o tema da historicidade do conhecimento cient-fico, exatamente o que de Kuhn, deveria soar o mais familiar possvel aos ouvidos europeus e queles educados segundo seu p a d r o 4

    (2) Ou seja, no se o toma no sentido de o trabalhar (na acepo de Canguilhem), o que sig-nifica que, nele, o que menos interessa sua potncia de deformao, na acepo bache-lardiana.

    (3) Como simples exemplo, cf. POPP, J. A - Paradigms in Educational Inquiry in Educational Theory, 25, 1, 1975, pp. 28/39.

    (4) Como simples exemplo, cf. LEGRAND, M. - Hypothses por une Histoire de Ia Psychanalyse in Dialectica, 29. 2/3, 1975, pp. 189/207

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    Outros nomes e outras obras renascem de modo diverso, como o caso de Bachelard, promovido ordem do dia por diferentes variedades e faces disso que se denomina o estruturalismo. Trazem-no memria volvel do dia, determi-nadas referncias e citaes que aparecem no corpo de uma obra que desfruta da notoriedade passageira das polmicas que se esgotam em si mesmas. A referncia remete a uma obra, as citaes e o meio terico em que se encaixam fornecem as "chaves", o roteiro e o mtodo para a decifrao da obra. Tudo. ento, est pronto para uma leitura, sintomtica de preferncia. Isso significa que os conceitos sero reinterpretados e "traduzidos", que as arestas sero aparadas e a obra refeita, segundo linhas que melhor permitiro separar o ncleo realmente valioso da ganga bruta em que se envolve. Ento o produto estar preparado para o mercado: manu-fatura perfeita, cujo consumo facilitado ao mximo, pois se destina, sobretudo, a satisfao visual e ao suave uso sob a forma de citaes (de resto j prontas, selecionadas e organizadas por assunto)

    Este trabalho constitui uma tentativa de opor. a uma obra assim reconstituda, pelo menos, o recenseamento, o mais completo possvel, dos temas que originalmente aborda e pela arquitetnica de um de seus conceitos o mais funda mental. Por isso, talvez seja por demais carregado o seu tom expositivo e ele con duza, menos a obra que ao seu limiar. Mas, se a partir da , um passo a mais condu zir a prpria obra e no a sua imagem interpretada, cremos que ele estar justificado.

    II

    Em uma anlise da obra bachelardiana, o primeiro problema a ser en frentado refere-se ao tipo de exposio que se adotar para apresent-la. De sua imensa produo terica, pode-se dizer o mesmo que le prprio disse do trabalho de J. Cavaills: "no uma obra que se possa resumir"5.

    Alm disso, aqui s ser abordada sua teoria de cincia. Uma anlise parcial portanto, na medida em que aborda apenas um dos temas da obra de Bachelard, cujo pensamento se desenvolveu segundo duas direes: a epistemologia das cincias contemporneas e a imaginao potica. A oposio de interesses que isso poderia marcar no entanto, na perspectiva bachelardiana apenas aparente: a preocupao com o imaginrio toma sua origem na prpria obra cujo objeto a atividade racionalista. Para Bachelard, jamais se acede definitivamente ao racional, nunca se , definitiva e totalmente racionalista: a verdade no preexistindo ao homem, o homem que produz, penosamente, o verdadeiro, "o conhecimento racional, mais que qualquer outro, se conquista: acede se com dificuldade racionalidade6. Essa "obra humana", alm disso, sempre provisria,

    (5) BACHELARD, G. L'Engagement Rationaliste (org. de G. Canguilhem), J Vrin, 1972, p. 179.

    (6) DAGOGNET, F. Gaston Bachelard. Philosophe de L'imagination - in Revue Internationale de Philosophie, n 51, 1960.

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    e por duas razes: primeiro, porque o conhecimento ante-cientfico tende sempre a retornar, a fazer valer sua fora; em segundo, porque o progresso da racionalidade constante, o seu trao mais caracterstico. Da incompreenso disto vem um dos perigos que a ameaa: ver essa obra como definitiva, encarar a "razo como uma tradio", imobilizando a cincia em um de seus estgios, dogmatizando-a, entra-vando seu desenvolvimento: enfim, constituindo um momento do desenvolvimento da cincia em obstculo ao progresso da cincia. A reflexo sobre a cincia deve pois diramos at mesmo sobretudo voltar-se para o que tende a retardar seu progresso. Com efeito, e como o veremos mais demoradamente depois, o imagi-nrio tende sempre a retornar; o que o conhecimento objetivo desvendou como erro (demonstrou ser erroneo), reage sobre esse conhecimento, ameaando o do-mnio do racional e isto mesmo nas mentes melhor racionalmente formadas: " certo que o homem noturno... deixa sequelas ou heranas no curso do dia" 7 . Desse modo, a anlise da cincia deve ser complementada por uma crtica, via psica-nlise, do imaginrio. Sem dvida, essa exposio sumria, dadas as finalidades desse trabalho, aborda apenas um aspecto da relao apontada acima. Para maior detalhe, remetemos a anlise de Dagognet, atrs referida, a seu livro sobre Bachelard bem como anlise de Gagey 8.

    Um outro problema, representa-o o fato de que toda obra bachelardiana consiste em uma constante retomada de problemas, em uma nunca detida retifi-cao de suas teorias, trabalho esse a que o obrigava o carter dinmico do "fen-meno" que abordava, as cincias fsicas contemporneas. Nada lhe causava mais espanto que a constatao de que como o disse certa vez, visando Meyerson sem lhe dizer o nome um filsofo defende, aos sessenta anos, uma tese que j defendia aos trinta. Assim, comentar alguns textos, por poucos que sejam, significa o mesmo que analisar toda sua obra, o que sem dvida escapa aos limites de um trabalho de reduzida amplitude.

    Se isso no possvel embora o fosse desejvel resta-nos apenas se-guir um caminho, que se aparenta - perigosamente quele to reprovado por Bachelard filosofia: expor o resultado de suas investigaes e de suas reflexes, distanciando-nos em certa medida do movimento de constituio desses resultados, no dando conta, no detalhe, do trabalho de construo de sua teoria. Da mesma forma que a reflexo filosfica, trabalhando sobre resumos, perde de vista seu 'objeto" (a cincia), ou para sermos mais precisos, nem sequer chega a toc-lo,

    corremos algum risco de deturpar o pensamento de Bachelard, expondo seus pontos terminais, e apenas os mais importantes, sem abordar, no detalhe, a anlise dos exemplos precisos, delimitados, que so a nica base sobre a qual se pode estruturar uma epistemologia completa. Cremos poder, at certo ponto, eliminar esse risco deixando bem claro, desde j , que esses resultados so concluses, pontos terminais de um processo que sempre procuraremos ter em vista.

    (7) BACHELARD, G. De Ia Nature du Rationalisme - in Bulletin de Ia Socit Franaise de Philosophie, 44, 2, 1950, p. 47.

    (8) DAGOGNET, F. Gaston Bachelard, sa vie, sa oeuvre, avec une expos de sa philoso-phie, Coll. Philosophes PUF.,1965; Gagey G. Bachelard ou Ia Conversion I'lmaginaire. M. Rivire et Cie, 1969

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    1.

    Supor que, subjacente a toda e qualquer produo terica, implicita em todo escrito que verse sobre qualquer matria, existe e pode ser demonstrada -uma viso do mundo, uma tomada de posio em relao ao mundo e aos proble mas do mundo, enfim (e sem polemizar sobre terminologias) uma Filosofia um procedimento muito comum. Procedimento que universaliza e absolutiza o domnio e a presena da filosofia, constituindo, nos momentos de crise aguda quando os ataques philosophia perennis se amiudam, a arma de defesa por excelncia, pois que serve tambm ao ataque, , pensam os filsofos, demonstrar que a negao da filosofia uma tomada de posio que implica, ela mesma, uma filosofia; portanto implica, afirmando, aquilo mesmo que pretendia negar. Poder-se ia dizer que dessa "crena" que parte Bachelard, ao retomar um dito de W. James: "repete se com freqncia que todo homem cultivado segue fatalmente uma metafsica '9 Parte dela, colocando como seu problema fundamental trazer a um nvel cons ciente esse "pano de fundo" filosfico que serve como quadro de interpretaao do sentido da atividade cientfica, e submet-lo c r t i c a 1 0 . E essa crtica conduzida em duas frentes: contra a filosofia tradicional, monodroma, sistemtica, demons-trando de um lado que todo saber que se vangloria de seu acabamento no capaz de compreender um conhecimento essencialmente 'aberto ', de outro que nenhuma filosofia , por si s , capaz de dar conta da especificidade do conhecimento cientfico, pois procedimento inusitado para um autor que utiliza a saciedade a expresso "filosofia cientfica" subjacente a esse conhecimento existem sempre duas metafsicas. Em outra frente, contra a pretenso "cientificista" que acre dita que o sentido da cincia obtido por acrscimo, ao final da atividade cientfica, que ele sai do prprio conjunto dos resultados obtidos. A Bachelard cabe pois uma dupla tarefa: a crtica do uso que se fez da filosofia na cincia e do UM que a filosofia fez da cincia.

    Em primeiro lugar, necessrio deixar claro que a filosofia ou as filosofias so necessrias para a anlise da cincia, mesmo quando parece, a primeira vista, que se faz apenas uma psicanlise do conhecimento, pois 'toda psicologia solidria de postulados m e t a f s i c o s " 1 1 . um prejuzo muito difundido entre os prprios cientistas que possvel aceitar as "lies" da experincia no trabalho efetivo da cincia, e que s depois chegado o momento da filosofia fazer o balano dos resultados gerais e a coletanea dos fatos importantes. Aqui, esquece-se que "o esprito pode mudar de metafsica no pode prescindir de m e t a f s i c a " 1 2 .

    (9) Le Nouvel Esprit Scientifique, PUF, 11 ed., 1971, p. 5. (10) Na introduo a La Nouvel Esprit Scientifique encontra-se um admirvel exemplo de

    uma leitura crtica da filosofia. (11) BACHELARD La Philosophie du Non - PUF, 1940. p 13. (12) Idem, Ibidem.

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    Se essa questo no preocupou Bachelard 1 3, a relacionada com a inter-pretao filosfica da cincia dominou o pensamento bachelardiano, constituindo-se em tema que retomou incessantemente em todos os seus livros. Se a filosofia

    quer, realmente, constituir uma filosofia da cincia, necessrio que faa da cincia seu objeto". Mais que um truismo, essa afirmao pode ser encarada como uma denncia, e o ponto de partida de uma polmica, polmica que Bachelard manteve durante toda sua v ida 1 4 . A Filosofia no pode encarar a cincia, ou mais exata-mente - para no cedermos ao vocabulrio filosfico - , as cincias como um pre texto para suas reflexes, nem respigar, no corpo dos conhecimentos cientficos, exemplos genricos para ilustrar teses desenvolvidas na solido de um pensamento que supe bastar-se a si p r p r i o 1 5 . A cincia, tal como a reflexo filosfica a enca-ra e analisa, ou seja, como um "objeto" para sempre pronto e oferecido anlise, rigorosamente no existe. Para que a reflexo filosfica aborde algo mais que uma fico que ela prpria constitui, necessrio que, como a cincia (as cincias), ela seja um trabalho16

    E esse trabalho consiste no acompanhamento do processo de consti-tuio da cincia (produo dos conhecimentos cientficos), e do progresso cien-tfico. Quanto ao processo, vale dizer que a cincia, para ser tomada como objeto e no pretexto, deve ser abordada na sua tarefa de produo de conhecimentos; deve-se abord-la pois no detalhe de seus procedimentos, acompanhar seu esforo de constituio de conhecimentos verdadeiros, conhecimentos sempre provis-rios, que sero ultrapassados pelo desenvolvimento subsequente da cincia. Abor-dar a cincia constituda, constituda e j cristalizada nos livros e manuais,

    (13) No, tematicamente; toda obra epistemolgica de Bachelard representa em ato a afirmaco da necessidade de uma anlise filosfica das cincias, pois se verdade que a "cincia cria filosofia' . no menos verdade que a atividade cientfica no segrega, por si s, o seu sentido No e preciso dizer que a afirmao da necessidade de uma "anlise filo sfica" das cincias, em Bachelard, feita em um sentido muito preciso, que procura remos adiante precisar.

    (14) "Essas cincias (as cincias fsicas contemporneas) foram, para Bachelard, o fenmeno e sentimos em seus ltimos livros um acento quase melanclico, por vezes mesmo ligeiramente agressivo, quando lamenta que os filsofos no o seguem no desenvolvimento desse fenmeno" Hyppolite, L'pistmologie de G. Bachelard, in Rvue d'Histoire des Sciences, jan., 1964, p. 2.

    (15) "A ciencia oferece-se (ao filsofo) como uma coletnea particularmente rica de conhecimentos bem feitos" "o filsofo, requer simplesmente cincia exemplos para pro-var a atividade harmoniosa das funes espirituais"., "os exemplos cientficos so sem-pre evocados, nunca desenvolvidos". Bachelard, La Philosophie du Non, loc. cit., p. 3 Isso implica que a reflexo filosfica sobre a cincia se configure como "polmicas externas '. Rigorosamente as razes disso so duas. "A primeira que se mantm na elementaridade, acreditando poder tudo julgar com as lembranas de escola. A segunda razo outro extremo, que se acredita poder julgar da atividade do pensamento cientfico exa-minando apenas seus resultados, suas aplicaes materiais.' (Bachelard, L'Engagement Rationaliste. p. 90).

    (16) "Se a cincia um trabalho, a filosofia no pode mais ser um lazer", Canguilhem, G. Ba-chelard et les Philosophes, in Science, maro-abril, 1963, n 24, p. 24 (reproduzido em Etudes d'Histoire et de Philosophie des Sciences. J. Vrin, 1970, Paris)

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    perder a dimenso mais dinmica da atividade cientfica atual. Se os cientistas de hoje vivem a condio de "estudantes permanentes'1 7, a cincia depositada em manuais uma cincia j morta, porque ultrapassada: desviar-se da atividade coti-diana da cincia curvar-se sobre "a cincia passada, isto , sobre a cincia atrasada exatamente uma gerao.. . sobre essa cincia da gerao antecedente que se exerce mais frequentemente o pensamento f i l o s f i co" 1 8 .

    Passamos, assim, do processo ao progresso c i e n t f i c o 1 9 , o nico indiscutvel, pois se possvel polemizar sobre o progresso moral, o progresso social, etc, no pode existir a mnima dvida razovel que o desenvolvimento do pensa mento cientfico configura um progresso; e o sentido desse progresso , to somen te, a acesso a uma racionalidade cada vez maior: as crticas ao progresso das cincias so polmicas que se fundam "em juzos sobre certas aplicaes da cincia. No se tem trabalho em mostrar que a cincia coloca nas mos dos homens instrumentos de uma tal potncia que tomam cada vez mais dramtico o destino da humanidade. E sem fim, repete-se a histria, a mesma histria, a imagem nica do aprendiz de feiticeiro. A imaginao polmica a mais pobre de todas as imagi naes. Quem no v que se deve julgar filosoficamente da vontade do mal por seu princpio e no por seus meios" 2 0 O progresso cientfico marcado pela des-continuidade. Na histria h muitas "cincias mortas" 2 1, e a "morte" de cada cin-cia marca a emergncia de uma nova cincia, cujas caractersticas so completa mente diferentes das da anterior. Marca uma revoluo cientfica que obriga o cientista a reconstruir sua r a z o 2 2 , e deixar de ser um mestre para tomar-se de novo um estudante, o que, em seus efeitos mais recentes, obriga a pensar contra o crebro: "Doravante, o crebro no mais, em absoluto, o instrumento adequado do pensamento cientfico... preciso pensar contra o c r e b r o " 2 3 Como Q

    (17) Cf. Le Rationalisme Appliqu, PUF, 3 ed., 1966, p. 23. E em outra passagem: "...o racionalista est na escola, quer estar na escola, est sempre na escola. Quando h mestres que no esto mais na escola, ento no trabalham, ento deixaram, precisamente, a atividade da comunidade cientfica; dela so ilustraes, no necessariamente operrios.' De La Nature du Rationalisme, in Bulletin de Ia Socit Franaise de Philosophie, 1950, 44, n? 2, p. 53.

    (18) BACHELARD - Le Rationalisme Appliqu, loc. cit.. p. 23. (19) A teoria do progresso da cincia decorre, como o observa Piaget da concepao bsica de

    Bachelard sobre o conhecimento cientfico (vide Essai sur le Connaisaance Approch J Vrin, 1928, especialmente cap. XV a XVII), ou seja da idia do inacabamento fundamental do conhecimento que, a cada transformao passagem de um menor conhecimento a um conhecimento superior - se torna apenas mais aproximado. Cf. Piaget, Introduction a L'pistemologie Gentique, PUF, 1950, t. II, p. 331.

    (20) BACHELARD - L'Engagement Rationaliste loc. cit., p. 92 (21) BACHELARD Le Rationalisme Appliqu loc. cit., p. 102 (22) "O fsico foi obrigado trs ou quatro vezes nesses vinte anos a reconstruir sua razo e

    intelecutalmente falando, refazer sua vida." Bachelard, Le Nouvel Esprit Scientifique loc. cit., p. 175.

    (23) BACHELARD La Formation de l'Esprit Scientifique - J. Vrin, 3. ed , 1955, p 251

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    disse em outra passagem uma cabea bem feita uma cabea fechada, um produto de escola 2 4. Isto significa que no momento das grandes mutaes , a razo consti-tu da reage contra o questionamento de suas "regras" fundamentais, de seus "prin-cpios ' basilares, transformando-se de instrumento do conhecimento em obstculo ao progresso do conhecimento. Por isso, "uma psicanlise do conhecimento obje-tivo e racional no poderia ser nunca definitiva: no se vence definitivamente o psicologismo... quando se tratar de por em questo regras tidas como fundamen-tais... dever-se- reconhecer o psicologismo tenaz das idias claras. A razo traba-lhar contra si mesma" 2 5. um esforo similar que Bachelard reclama do filsofo: o esforo de acompanhar o desenvolvimento cientfico e flexibilizar seu e s p r i t o 2 6 , rever seus conceitos e noes, estender seus sistemas, ultrapassando - ou abando-nando posies fixadas a priori, realizando assim a prpria essncia da reflexo: compreender o que no tinha compreendido2 7. Assim v-se que as cincias as cincias vivas, pois no h outras reclamam uma filosofia aberta, uma filosofia que no se vanglorie de seu fechamento2 8. E uma filosofia aberta retificao de suas posies, dialetizao de seus conceitos, ao estilhaamento de seus siste-mas, s pode ser, acima e alm dos "sistemas" e das "posies" filosficas "mono-dromos ', um polifilosofismo, a dominante racionalista, o que impede, de imediato, qualquer acusao de ecletismo. Como afirma Bachelard, esse polifilosofismo imprescindvel para a compreenso das noes e conceitos cientficos, pois neles encontramos vrios planos de pensamento2 9, e no apenas uma filosofia, como o bem demonstrou para as nooes de massa e energia 3 0, de reta e de axioma 3 1 . Des-se modo, necessrio uma filosofia dispersa para que uma teoria das cincias seja possvel. Mas o mostrou claramente, os diversos planos filosficos implicados em cada noo e conceito cientficos no se dispem ao acaso, possuem uma ordem, e essa ordem gentica. Dessa ordem, surge a coeso dessa filosofia dispersa: ela tem a coeso 'de sua dialtica... de seu progresso"32. O progresso, aqui, e podemos

    (24) Idem, p. 16. (25) BACHELARD Le Rationalisme Appliqu - loc. cit., p. 15. (26) O filsofo deve entender que "o esprito tem uma estrutura variavel desde o instante em

    que o conhecimento tem uma histria." Bachelard, Le Nouvel Esprit Scientifique loc. cit., p. 173. E ainda "o esprito deve dobrar-se s condies do saber. Deve criar em si uma estrutura correspondente estrutura do saber. Deve mobilizar se em torno das articulaes que correspondem s dialticas do saber", La Philosophie du Non, loc. cit. p 144.

    (27) BACHELARD - Le Nouvel Esprit Scientifique - loc. cit., p. 174. (28) BACHELARD - La Philosophie du Non, loc. cit., p. 5. (29) "...a evoluo filosfica de um conhecimento cientfico particular um movimento que

    atravessa todas as doutrinas (filosficas)..." Idem, p. 19. (30) Idem, p. 19-51. (31) Neste caso, valendo-se das investigaes anteriores de F. Gonseth, Cf. Le Rationalisme

    Appliqu, op. cit.. p. 16-17. (32) BACHELARD - La Philosophie du Non - op. cit., p. 50.

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    ver isso a partir de agora - em cincia o presente sempre que julga o passado33 um progresso orientado, voltado para a realizao de um racionalismo crescente racionalismo clssico, racionalismo completo, racionalismo discursivo. a dominncia do racionalismo que, como j foi apontado, elimina qualquer trao de ecletismo: em um pensamento no qual todo pensamento esteja presente, conforme a frmula brilhante de Bachelard 3 4, um pensamento domina e orienta essa compo-sio, essa "soma" filosfica: racionalismo, verdadeiro mtodo de generalizao prprio da maturidade cientfica, dos estgios atuais da ciencia 3 5. Desse modo, o filsofo no pode permanecer em posies ultrapassadas (do ponto de vista do progresso da cincia), para compreender a cincia. Como o disse em uma formu-lao sinttica e problemtica: a cincia cria filosofia36, interpretando essa afir mao no sentido de que a cincia obriga ao desenvolvimento filosfico tornando

    (33) "o historiador das cincias, para bem julgar o passado, deve conhecer o presente, deve aprender o melhor possvel a cincia da qual se prope escrever a histria. E nisso que a histria das cincias, quer se o queira ou no, tem uma forte ligao com a atualidade da cincia. Na mesma proporo em que o historiador das cincias instruir-se na modernidade da cincia, estabelecer nuanas cada vez mais numerosas, cada vez mais sutis, na historicidade da cincia. A conscincia de modernidade e a conscincia de historicidade so, aqui, rigorosamente proporcionais. A partir das verdades que a cincia atual tornou mais claras e melhor coordenadas, o passado de verdade aparece mais claramente progressivo enquanto passado mesmo..." Bachelard, L'Actualit de l'Histoire des Sciences in L'Engagement Rationaliste, loc. cit., p. 142.

    (34) La Rationalisme Appliqu, loc. cit., p. 19. (35) No h que entender "racionalismo" em seu sentido clssico: o racionalismo a que se

    refere Bachelard um racionalismo aberto, o que quer dizer um racionalismo aplicado, o qual, aplicando-se, compromete-se a revisar seus princpios se a isso obrigar a experi ncia; sobretudo, "o racionalismo no pode... ser reduzido ao psistacismo dos princpios lgicos ao qual o pretendiam condenar seus adversrios". Bachelard, idem, p 45.

    (36) preciso entender, em sua justa medida, essa afirmao. A ateno dada por Bachelard cincia fsica contempornea e a seu impacto sobre o pensamento filosfico, nunca o levou a estender (abusivamente) os seus limites de validade. Se mximo o "sucesso" dessas cincias, nem por isso os mtodos que utiliza, abstrados de suas condies de aplicao, so postulados os mtodos prprios para o progresso de todas as cincias, nem sua linguagem considerada a de todas as demais. A filosofia deve "salvar-se do historicismo e chegar por meio da anlise lgica e concluses to precisas, to sutis e to seguras como os resultados da cincia de nosso tempo". (Reichenbach, La Filo sofia Cientfica, trad. cast., p. 333-334): nada seria mais estranho teoria bachelardiana que esta afirmao (e tudo o que implica). Pois bem: a reflexo sobre os "produtos" do pensamento cientfico que os tome, genericamente, como resultados s pode levar porque disso decorre a incompreenses, a discursos vazios sobre a cincia. Embora se trate de um problema que Bachelard no abordou tematicamente, possvel afirmar, aproveitando-nos das linhas gerais de seu pensamento, que uma tal posio leva tambm, ao estabelecimento de tipos de cincia (a nica pluralidade que o discurso filosfico admite em relao cincia), e instaurao de um tema por excelncia desse discurso: a anlise, das possveis relaes entre "cincias naturais" e "cincias sociais" Relao essa (tal como a relao "cincias empricas", "cincias formais"), cuja nica razo de ser a atribuio (ideolgica), de uma especificidade prvia (que decorre da natureza particular do objeto ou do mtodo empregado), ao conhecimento (cientfico), produzido por essas prticas.

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    parciais o realismo, o empirismo, o formalismo, parciais na medida em que escla-recem apenas um aspecto, uma face do conceito cientfico. preciso que o filsofo se instale no prprio movimento de dialetizao dos conceitos cientficos, pois seria errneo, tambm, pedir que se instalasse, de imediato, em um racionalismo absoluto, pois, como o realismo ingnuo, o racionalismo, sozinho, no convm s cincias, pois nem todas as cincias esto no mesmo nvel de desenvolvimento37, como tambm os conceitos cientficos. Se, em relao ao realismo, preciso hierar-quizar a experincia, em relao ao racionalismo preciso dar um justo valor aos a posteriori, ou para ser breve, necessrio abrir o racionalismo, colocar o eu racio-nal como conscincia de r e t i f i c a o 3 8 , pois que o racionalismo coloca ao mesmo tempo a necessidade de reformas sucessivas dos quadros racionais e a "segmentao em racionalismos regionais"39. E quanto isto for realizado, quando, segundo a formulao de Hyppolite 4 0 , se dispuzer desse saber do saber cientfico, desse dis-curso que o sentido do sentido da cincia, ter-se- realizado o projeto de Bache-lard, pois se poder dizer o contrrio daquilo que sempre lamentou: "...a cincia no tem a filosofia que merece" 4 1. Ou seja, uma filosofia que se organizasse, que estruturasse seus quadros conceituais em funo da especificidade radical do conhe-cimento cientfico.

    A discusso dessa especificidade constitui um dos temas principais de Bachelard. Em constante polmica com os continuistas que admitem, fixando-se preferencialmente nos estgios iniciais da cincia, que "dado que os comeos so lentos, os progressos so c o n t n u o s " 4 2 , nunca deixou de insistir que o conheci-mento cientfico se constitui em ruptura com o conhecimento anterior. Essa noao de ruptura epistemolgica no atua apenas em relao ao conhecimento comum; pelo contrrio existem, cada vez mais amide, a medida que a cincia se dinamiza (e se dinamiza a medida que se torna cada vez mais racional), rupturas no interior do pensamento cientfico, de modo que a cincia de nossos dias mar-cada pela descontinuidade.

    Insistamos nessa noo de ruptura. Para Bachelard, a cincia no emer-ge, como vimos, do saber comum: no sistematizao desse saber, no o pro-duto de um seu desenvolvimento. Sem dvida, a cincia sai lentamente do corpo de

    (37) "...hoje no se pode ser racionalista de um s golpe: preciso trabalhar A filosofia racionalista essencialmente uma filosofia que trabalha, uma filosofia no trabalho... o racionalismo e necessariamente aberto", idem, p. 51.

    (38) BACHELARD -- Le Rationalisme Appliqu loc cit., p 51 (39) BACHELARD De La Nature du Rationalisme - loc. cit.. p. 56 - ver tambm p. 51, Cf

    ainda, Le Rationalisme Appliqu,loc. cit., cap. VII. (40) Lpistmologie de G. Bachelard - loc. cit. (41) BACHELARD Le Matrialisme Rationnel - PUF, 2 a ed., 1963, p. 20. (42) BACHELARD, idem, p. 210.

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    conhecimentos comuns, mas preciso entender o sentido dessa emergencia O co nhecimento racional, para Bachelard, na verdade sempre r e c o m e a 4 3 : seu princ-pio, no uma origem absoluta, mas j uma primeira reorganizaao, que configura uma ruptura. Vemos, pois, que se a cincia se instaura, via um corte epistemol-gico, em relao a um conhecimento anterior (que o prprio corte e o possvel desenvolvimento subsequente dessa cincia revela como ideolgico), e portanto dele radicalmente se distingue, ela no , em seu princpio "indiferente ' a essa formaao ideolgica anterior, o que elemina, por completo, qualquer concepao voluntarista sobre a constituio de uma cincia.

    A cincia, desse modo, sempre uma novidade radical. Assim, o pro blema das origens deslocado: na histria da cincia o passado nunca serve para esclarecer o futuro, pois, rigorosamente, no o contm em germe, como acreditam os continuistas; ela uma histria recorrente; nela, o presente que esclarece o passado4 4, que o julga do ponto de vista da razo evoluda, como j o apontamos anteriormente. Portanto, no poderemos, atravs de uma anlise da ciencia de hoje prever a de amanh; mas, por exemplo, a cincia einsteiniana nos permite a com-preenso de nosso passado c i e n t f i c o 4 5 .

    Que no se veja nisso, como o aponta o prprio Bachelard a afirmaao de uma contingncia das descobertas cientficas. Com efeito, as reorganizaoes do saber, as "snteses globais" so solidrias, dialeticamente, da problematica do tem-po. Somente aqueles que esto apartados do esforo cientfico atual que podem pensar as descobertas cientficas como contingentes, e se surpreenderem com elas. Na verdade, o cientista nunca se surpreende apenas: "se surpreende compreendendo" 4 6.

    E , com a questo da origem, desaparece tambm o duplo problema dos precursores e das influncias. Em primeiro lugar, como apontou Canguilhem na in troduo a seus tudes d'Histoire et de Philosophie des Sciences, "se houvesse pre

    (43) "...se devemos definir o racionalismo, ser preciso defin-lo como um pensamento claramente recomeado, cada dia recomeado", "organiza-se racionalmente apenas o que se reorganiza". De La Nature du Rationalisme, loc. cit., p. 49.

    (44) "A qumica, em seu esforo moderno, se revela com efeito como uma cincia que foi primitivamente mal fundada. A consicncia clara de um estado presente lhe permite descobrir a extraordinria vanidade de sua distante histria". Bachelard, Le Materialisme Rationnel, loc. cit., p. 6.

    (45) "Talvez..., se desejaria me obrigar a dizer, eu que falo agora de uma filosofia do "re": 'Mas, j que se recomea, preciso talvez que nos seja dito como comeamos, como o pensamento comea?' Muito bem., no responderia, porque precisamente essas idias de origem, essas organizaes de origem, no domnio cientfico em que me coloco, so julgadas pelo progresso dos pensamentos racionalistas, pelo progresso do pensamento cientfico; e em conseqncia, no preciso seno um piparote para enviar ao passado o que na verdade do ponto de vista cientfico completamente findo". Bachelard, De La Nature du Rationalisme, loc. cit., p.50.

    (46) BACHELARD Le Matrialisme Rationnel - loc. cit., p. 7.

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    cursores a histria das cincias perderia todo sentido, pois que a prpria cincia seria histrica apenas em aparncia" (p. 8). Em segundo lugar, s possvel invocar influncias (como disse Bachelard, influncias que atravessam continentes e scu-los), quando se est isolado do processo de produo dos conhecimentos cientficos que, nas cincias modernas, penetrado profundamente pela crtica do adquirido e pela autocr t ica das prprias descobertas e constataes. O racionalismo em ao nas cincias de hoje pouco ou nada tem a ver com o racionalismo clssico, que por adio constituiria pea por pea o edifcio do saber 4 7: sobretudo um raciona-lismo ensaiado, mvel, consciente da imperfeio de seus mtodos e do provisrio de suas verdades ou para dizer melhor de seus conhecimentos verdadeiros48, aberto aos resultados da e x p e r i n c i a 4 9 , experincia alis que s ele - apenas suas teorias - permite realizar.

    Eliminadas essas falsas questes de continuidade e das influncias, necessrio esclarecer o significado prprio da ruptura. Para Bachelard no a des-coberta do radicalmente novo que instituiria a ruptura. Como o mostrou, esse tipo de descoberta nada tem a ver com a cincia contempornea, que o produto social de uma atividade social tambm. A descoberta do radicalmente novo o valor mais celebrado e, porque valor, o "anseio" nunca realizado da cincia pe-rempta, da cincia que se queria solitria: tal descoberta era o alvo dos "incom-preendidos", e como o ressaltou Bachelard, distintivo da cincia moderna o fato de o nmero de incompreendidos ser mnimo ou mesmo nulo.

    (47) "Tnhamos organizado um esprito cientfico em bases simples, em bases histricas, esquecendo que a histria cientfica , como toda histria, a narrao das infelicidades da razo, das lutas ilusrias contra iluses. Para avanar foi preciso deixar as experin-cias adquiridas, ir contra as idias reinantes. A partir dessa concepo de um desenvolvimento histrico contnuo, apresentava-se a cultura cientfica individual como essen-cialmente capitalizante: muito jovem, recebia-se quadros gerais e indestrutveis, um patrimnio intelectual a enriquecer. O resto dos estudos era dedicado preencher os quadros, a enriquecer colees e herbrios, a deduzir de tempos em tempos, teoremas anexos. O pluralismo experimental respeitava a unidade dos princpios da razo, A razo ara uma tradio." Bachelard, Le Surrationalisme,. In Inquisitions, n. 1, 1936, reproduzido em L'Engagement Rationaliste. loc. cit. p. 10.

    (48) Assim tendo "retratar o esprito cientfico como um esprito canalizado no dogmatismo de uma verdade indiscutida, fazer a psicologia de uma caricatura fora de moda' Ba-chelard. La Materialisme Rationnel loc. cit., p. 212. "No juzo da maior parte dos filsofos de nosso tempo, o racionalismo uma filosofia pobre. Em particular, para dele fazer a crtica, considera-se amide o racionalismo como uma filosofia murada em certezas elementares. O racionalista seria o filsofo do dois mais dois so quatro. contra essa caricatura do racionalismo que se exerce, mais comumente, a critica filo sfica." L'Engagement Rationaliste, p. 30.

    49) "Os conceitos, os mtodos, tudo funo do domnio da experincia; todo o pensa mento cientfico deve mudar diante de uma experincia nova." Bachelard, Le Nouvel Esprit Scientifique, loc. cit., p. 135

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    A ruptura o produto de uma reorganizao racional do conhecimento, reorganizao que tem sempre um componente de tentativa: "a reorganizao, talvez um remendo mal feito, talvez uma espcie de apropriao mais refinada, mas tambm um ensaio: o racionalismo necessariamente aberto ' 5 0 . Assim, para usar as palavras de Dagognet 5 1, a atividade fundamental do cientista ou mesmo do gnio no a descoberta, mas a melhor sistematizao. A atividade raciona-lista, atuante na cincia, busca sempre aberturas, problemas pois sem uma proble-mtica a "razo. . . no pode respirar"5 2 - sempre recomea, pois deve sempre reor ganizar. Quando se faz isso se racionalista, modesta ou genialmente. Pode-se ser racionalista no ensino, pode-se s-lo tambm como Einstein: investindo criticamente contra as pedras basilares, contra os fundamentos do conhecimento. E ento se gnio, exatamente porque "se reorganiza um imenso setor da constru o nova" 5 3 atravs do questionamento de um s conceito.

    Portanto, a reorganizao conservao do superado na sntese supe radora 5 4 . No se veja aqui a presena de esquema dialticos de carter filosfico nem mesmo traos de sua influncia. Na Philosophie du Non, Bachelard, procurou mostrar, claramente, o quanto seu racionalismo dialtico diferia da dialtica filoso fica de um Hegel e de um Hamelin (cf. sobretudo p. 117). A dialtica de Bachelard, para ressaltar apenas uma de suas caractersticas, complementar: a tese e an ttese no so contraditrias, e assim o racionalismo dialtico feito de sistemas racionais simplesmente justapostos. "A dialtica serve-nos apenas para cercar uma organizao racional por uma organizao sobre-racional muito precisa" 5 5

    Mas, necessrio ainda entender que se a filosofia do "no" no uma emanao de um esprito de contradio, no uma "vontade de negao", o racio-nalismo do "re", ou o racionalismo dialtico, no tambm qualquer coisa de auto-mtico, nem de inspirao lgica. Para por em ao o racionalismo critico, para abrir o racionalismo, fundamental colocar-se em face da problemtica cientfica

    (50) BACHELARD De Ia Nature du Racionalisme - loc. cit , p. 51 (51) Gaston Bachelard, sa via, sa oeuvre..., loc. cit., p. 8 (52) BACHELARD, op. cit., p. 50. (53) BACHELARD. idem, p 51 (54) "...todo o progresso do pensamento cientfico desde h um sculo provem de generali

    zaes dialticas com envolvimento do que se nega", Bachelard, La Philosophie du Non, loc. cit., p. 137.

    (55) Idem, ibidem.

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    do tempo 5 6 . Paradoxalmente, penetra-se nessa problemtica pela segmentao do racionalismo, ou seja, pela especializao. Como o mostrou muito bem em vrias oportunidades, o racionalismo integral um racionalismo vazio, vicioso, que nunca se arrisca pois repete sempre suas convices primeiras. Indo radicalmente contra as opinies filosficas sobre a especializao, Bachelard mostrou que ela, na verda-de, abre o esprito, pois a especializao reclama toda uma cultura geral. Especia-lizando-se surgem os verdadeiros problemas, os problemas pequenos, de detalhe: "no h grandes problemas. Os grandes problemas comeam pequenamente..."57.

    Ademais, a especializao a prpria condio da cincia contempo-rnea, a base do carter social dessa cincia: os cientistas colaboram porque se com-preendem 5 8, e se compreendem pois que se especializaram. E por isso a cincia contempornea, que em todos os seus setores "ultrapassa a memria de um homem, a imaginao de um homem, o poder de compreenso de um homem" 5 9 , possvel. Assim, se no domnio cientfico ainda se aspira a snteses globais ou regionais, a especializao a base dessa sntese. Desse modo, a validade das snteses, bem co-mo das prprias especializaes e diversificaes, de carter social; enfim, na ativi-dade cientfica todo individualismo um anacronismo: no se dar conta dessa especializao e consequente socializao do trabalho cientfico "versar em uma utopia gnoseolgica, a utopia do individualismo do saber" 6 0.

    2.

    Mas, se o conhecimento cientfico, se as cincias no possuem origem, tm um princpio, que marcado por uma ruptura inaugural. Este corte - ao qual caberia reservar o nome de "ruptura", aplicando o de "reorganizao" aos cortes e

    (56) Por isso que preciso que o racionalismo dialtico "seja cultura o que quer dizer que no no segredo do gabinete, na meditao de possibilidades mais ou menos evanescentes de um espirito pessoal que ele se elabora. E preciso que o racionalista se ligue cincia tal que ela , preciso que se instrua da evoluo da ciencia humana, e pre ciso em conseqncia que aceite uma longa preparao para receber a problemtica de seu tempo." Bachelard, De La Nature du Rationalisme, loc. cit. p. 52. Por sua vez, ao contrrio. "Se um filsofo fala do conhecimento, o quer direto, imediato, intuitivo... Se fala da experincia, as coisas vo to depressa, trata-se de sua prpria experiencia, do desenvolvimento tranquilo de um temperamento". Le Problme Philosophique des Mthodes Scientifiques, in Actes du XV Congrs International de Philosophie des Sciences, vol. I, Hermann, Paris, 1951, p. 35/36.

    (57) BACHELARD - De La Nature du Rationalisme - loc. cit., p. 52.

    (58) Leia-se o primeiro pargrafo de Le Rationalisme Appliqu "Enquanto que muito frequentemente, nas polmicas filosficas, o realista e o racionalista no chegam a falar da mesma coisa, tem-se a ntida e reconfortante impresso que no dilogo cientifico, os dois interlocutores falam do mesmo problema. Enquanto que,... os filsofos (trocam) argumentos,... os experimentadores e tericos (trocam) informaes" - p. 1.

    (59) BACHELARD - Le Materialisme Rationnel - loc. cit., p. 2 (60) Idem, ibidem.

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    rupturas intracientficas - apreendido teoricamente atravs do conceito de 'rup-tura epistemolgica". Para analis-lo, toma-se necessrio voltar discusso de con-cepo bachelardiana de histria das cincias, e isso por uma razo fundamental que abordaremos depois.

    Em citaes dispersas e passagens anteriores, fizemos referncia a histo-ria das cincias tal como a concebe Bachelard, as quais devem ser agora ordenadas e completadas. Entretanto, h que notar que o carter disperso dessas observaes no se deve apenas s necessidades da ordem de exposio adotada. No possvel abordar a teoria do conhecimento cientfico bachelardiana, tentar expor sua estrutura interna, sem uma necessria referncia ao carter histrico desse conhecimento (tal como o concebe Bachelard), da mesma forma que uma exposio da teoria da histria das cincias segundo Bachelard no faz sentido sem uma constante refe-rncia a sua teoria do conhecimento cientfico. Dessa forma, nao h muito sentido em se perguntar como a epistemologia bachelardiana toma possvel uma historia recorrente do conhecimento cientfico. Em Bachelard no existe relao deste tipo entre a epistemologia e a teoria da histria das cincias: ambas se implicam e se fundam necessariamente61, de tal forma que no tem muita procedncia a ques-to colocada por Fichant, em sua exposio da teoria bachelardiana de historia das cincias: "O problema levantado o de saber como uma epistemologia da ruptura, uma teoria do efeito de novidade da cincia contempornea, uma filo-sofia da cincia em ato, pode pensar a sua relao com a histria da c i n c i a 6 2

    A histria das cincias, para Bachelard, em sua inestrincvel relao com a teoria do conhecimento cientifico, deve ser uma histria recorrente, uma histria que "parte das certezas do presente e descobre, no passado, as formaes progressivas da verdade" 6 3. Concebida dessa forma, essa histria no pode ser uma histria emprica, no pode se limitar narrao dos fatos tal como no-los transmite a memria cultural da humanidade. Esses fatos no interessam apenas enquanto fatos; necessrio julg-los, e portanto valoriz-los, e faz-lo a partir de um deter minado ponto de referncia: a atualidade da cincia cuja histria se quer narrar 6 4.

    (61) Por economia de citao, destacamos apenas esses dois textos: "Para compreender o sentido da mecnica ondulatria, para colocar o problema em toda sua amplitude e apre-ciar os valores de reorganizao racional da experincia que esto implicados nessa nova doutrina, convm percorrer um longo prembulo histrico." L'Activit Rationaliste de Ia Physique Contemporaine - loc. cit., p. 22. "...o historiador das cincias, para bem julgar o passado, deve conhecer o presente; deve aprender o melhor possvel a cincia da qual se prope escrever a histria", L'Actualit de L'Histoire des Sciences, loc. cit., p. 142.

    (62) Pcheux et Fichant - Sobre a Histria das Cincias - trad. Editorial Estampa, Lisboa. 1971, p. 118.

    (63) L'Activit Rationaliste de La Physique Contemporaine - PUF, 2 ed., 1965, p. 26. (64) "... no se pode apreciar os valores seno conhecendo os valores dominantes, os valores

    que, no pensamento cientfico, se ativam na modernidade." L'Actualit de L'Histoire des Sciences, loc. cit., p. 144.

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    Assim, essa histria julgada distancia-se da histria comumente praticada por todos os historiadores, avessos, pelo menos ao nvel de suas declaraes, a todo j u z o de valor, e aproxima-se mais da estria, da narrao, porm provida de uma finalidade da razo.

    Essa atividade crtica julga, condena e sanciona, donde a existncia de duas histrias: uma a dos conhecimentos ultrapassados, dos pensamentos tor-nados ininteligveis pela racionalidade presente, repositrio das aberraes, dos erros, enfim de tudo aquilo que, para o pensamento cientfico, representou (e pode ainda representar), um obstculo epistemolgico. Outra, a histria sancio-nada, a histria dos conhecimentos sempre atuais, das noes que "so para sem-pre" 6 5 , noes cientficas, a histria que representa como que um inventrio dos "golpes de gnio", expresso utilizada para nomear o que Bachelard chama tambm 'atos epistemolgicos ' , ou seja, as transformaes profundas operadas na proble-

    mtica terica de uma dada cincia, transformaes essas que, embora constittuam "snteses histricas ', tm como conseqncia, como efeito, a produo de "cin-cias sem antepassados", cincias sem anlogos no passado6 6. Dessa forma, a his-tria das cincias, em sua duplicidade, que d conta da dialtica dos obstculos epistemolgicos e dos atos epistemolgicos, desenvolve-se em um tempo prprio totalmente desvinculado da cronologia real. um tempo constitudo, ou melhor reconstitudo, pela epistemologia, um tempo lgico que, segundo um ritmo pr-prio, conhece momentos de deteno e de rpida acelerao.

    Essa formao de uma teoria da historicidade da cincia, em virtude das noes que pe em jogo, como as de histria perempta, histria sancionada, tempo lgico, deu lugar a incompreenses de vrios tipos das quais desejaramos analisar apenas um, no apenas pelo fato de aparecer em autores que, confessadamente ou no, se socorrem de muitos conceitos desenvolvidos por Bachelard, mas, e sobretudo, por defenderem a idia de que, em Bachelard, possvel, e segundo essa crtica at mesmo fatal, a distino entre o discurso histrico, redu-zido ao estatuto de uma "histria do falso reconhecido", e o discurso epistemol-gico, no histrico.

    O texto de qual partimos o de Ficha, j citado. Na sua segunda par-te, a teoria da histria recorrente bachelardiana discutida com alguma profundi-dade. Partindo da distinao entre histria sancionada e histria perempta, o autor considera que, em virtude dessa prpria distino, o que se pode concluir da teoria de Bachelard que "o passado s autenticamente passado da cincia se for conser-vado como passado atual, como indcio no histrico de um "para sempre": um ato epistemolgico sempre atual. No existe portanto histria em sentido estrito, quer dizer, discurso sobre um passado reconhecido como tal, mas apenas obst

    (65) Cf. L'Activit Rationaliste de Ia Physique Contemporaine - loc. cit., p. 26 (66) Idem, p. 24.

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    culos, erros, rasuras e retificaes, o que j no histria da cincia, histria do falso reconhecido6 7. Parece-nos que este texto consagra um equvoco a respeito da teoria do conhecimento cientfico bachelardiano. Distinguir entre historia sancio-nada e histria perempta no significa, cremos, que se considere como passado da cincia apenas seu passado atual. Tal concepo s procedente se tomamos como ponto de referncia uma concepo positivista do conhecimento cientfico, onde realmente uma histria da cincia no possvel. Se partimos, porm, de uma epis-temologia cujo primeiro axioma, conforme a formulao de Canguilhem 6 8, afirma o primado terico do erro 6 9 , ou seja de uma epistemologia na qual o erro jamais considerado acidente, h que entender essas duas histrias como distintas, mas possuindo, cada uma delas, sentido nessa distinao mesma, tendo significado na re-lao que as estabelece como distintas; tanto que essas duas histrias no so escritas paralelamente e de uma vez para sempre: se o que fornece os eixos de valori-zao a cincia atual, a histria das cincias nunca definitiva, nunca est terminada, mas deve sempre ser refeita, nisso acompanhando o dinamismo prprio do conhecimento do qual histria. E isto significa que "preciso, incessantemente formar e reformar a dialtica da histria perempta e da histria sancionada . . " 7 0 .

    Acreditamos, pois, que a histria das cincias essa prpria dialtica (sempre a ser refeita), entre a histria perempta e histria sancionada, e que Bache lard quando fala de importncia "de uma dialtica histrica prpria do pensamento c i e n t f i c o " 7 1 , refere-se exatamente a essa histria e a sua importncia. E que, quando insiste na potncia de distino entre o positivo e o negativo que essa histria permite, est se referindo ao valor pedaggico da histria das cincias tal como a concebe, est demonstrando a necessria unidade entre sua teoria da cincia, da historicidade do conhecimento que ela produz, e de sua teoria da educao c i e n t f i c a 7 2 .

    (67) FICHANT, op. cit., p. 123. (68) CANGUILHEM Sur une pistemologie Concordataire - reproduzido em Le Mtier du

    Sociologue, Mouton, 1968, p. 120. (69) "No poderia haver verdade primeira. No h seno erros primeiros", idem, ibidem. (70) BACHELARD - L'Activit Rationaliste da Ia Physique Contemporaine - loc. cit., p.

    25. (71) Idem, ibidem. (72) Com efeito, como j foi apontado no captulo anterior, a doutrina pedaggica de Bache

    lard funda-se em sua epistemologia. Em ambas, uma das noes fundamentais a de obstculo epistemolgico, que aparece na primeira sob a forma de obstculo pedag-gico. Em ambas, h tambm uma identidade de pontos de partida: se o conhecimento cientfico no possui uma origem assinlavel, se sempre um recomeo, se sempre a "reforma de uma iluso", a educao cientfica, por sua vez. deve sempre iniciar-se por uma "converso intelectual" a primeira tarefa do educador no ensinar, mas criti-car e destruir conhecimentos j adquiridos (Cf. La Formation de l'Esprit Scientifique op. cit., especialmente cap. I): "no s na atividade cientfica viva, mas tambm, no ensino da cincia a verdade s atingida ao fim de uma polmica."

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    A necessria unidade entre essas trs teorias, a epistemolgica, a da his-tria das cincias e a educacional, que pode dar conta do sentido e do verdadeiro alcance do pensamento bachelardiano, e evitar equvocos como o de Fichant, na interpretao de cada um desses "momentos" constitutivos. A histria das cincias no nos leva a essa alternativa: ou o passado o passado atual (portanto um "para sempre" no histrico), ou uma histria que no das cincias, mas apenas do falso reconhecido. Se a histria das cincias tem uma importncia epistemolgica, se uma de suas funes permitir a identificao do que , para o pensamento cientfico vivo, um obstculo, e portanto contribuir para o dinamismo crescente desse pensamento, e se tem uma importncia pedaggica, isto significa que no possvel repart-la em uma histria das verdades e uma histria dos erros. O que constitui obstculo ao desenvolvimento da cultura cientfica no so apenas os erros, os desvios. A psicanlise do conhecimento objetivo desenvolvida por Bache-lard demonstrou claramente que a prpria razo pode obstaculizar o progresso da razo, que a cultura pode vir a se constituir em um entrave ao desenvolvimento da cultura; e que "certos conhecimentos mesmo justos detm, muito cedo, pesqui-sas t e i s " 7 3 . Dessa forma, nao possvel procurar interpretar a histria das cin-cias bachelardianas de um modo positivista: se a cincia constitui, para sempre, um conhecimento acabado, que progride por um agregar-se de novas verdades, ento apenas o erro constitui para ela um obstculo (acidental); se, porm, a cin-cia definida pela sua tenso de reformulao, se definida como um conheci-mento sempre ativo, aberto, no s o erro obstculo, mas tambm os conheci-mentos bem-feitos, e por que bem feitos, supostos definitivos e fechados; para um conhecimento que visa, essencialmente o que possa contradizer o conhecido, o que se apresenta como definitivo o maior obstculo: no exemplo utilizado por Ba-chelard em L'Activit Rationaliste de la Physique Contemporaine, o da mecnica ondulatria, o que aparece como obstculo maior no um erro, mas "pensamentos bem feitos", os pensamentos newtonianos e os pensamentos fresnelianos.

    Em lugar dessa alternativa, cremos que possvel propor uma integra-o, entendendo a histria das cincias como a prpria dialtica entre a histria sancionada e a histria perempta, pois s a partir dessa integrao que a interro-gao bachelardiana: "a que nvel do pensamento cientfico se faz a integrao da histria dos pensamentos na atividade c i e n t f i c a ? " 7 4 , pode ter algum sentido. Distinguir, rigorosamente, entre o positivo e o negativo na histria do pensamento cientfico significa constituir, de um lado, uma histria cientfica tal como "deve-ria ser" 7 5 , onde as idias se apresentam em uma ordem racional tal que "sua enu-merao pode ser comprimida em um lapso de tempo muito curto" 7 6 , e cuja conse-qncia maior nos ensinar a pensar rpido e pensar claro, ou seja, pensar dinami-camente 7 7, e de outro lado, constituir uma histria no dos erros, mas daquilo que

    (73) La Formation de l'Esprit Scientifique - op cit., p. 17. 74) Cf. L'Activit Rationaliste de la Physique Contemporaine, loc. cit., p. 22

    (75) Le Rationalisme Applique - loc. cit., p. 96. (76) Idem. ibidem. (77) Idem. especialmente, pp. 97-101.

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    constitui obstculo ao desenvolvimento da cincia. Mas, para responder aquela questo, e mais do que isto, para entend-la, necessrio recuperar a dialetica entre esse positivo e esse negativo, mostrando, atravs dela, porque a histria tal qual deveria ser, no foi, ou seja, ao mesmo tempo, demonstrar que o desenvolvi-mento do pensamento cientfico se faz, de certa forma, contra esse mesmo pensamento (o que lhe obstculo no lhe exterior), e que essa dinmica objetiva se reproduz tambm subjetivamente, ou seja, que a pedagogia cientfica no pode partir de uma concepo do esprito enquanto um receptculo vazio, mas que deve entender toda instruo como uma transformao, e nunca como uma ini ciao. Vemos, pois, que atravs da instncia pedaggica que a integrao da histria na atividade cientfica se faz, mas h que entender rigorosamente a forma dessa integrao: a histria das cincias no deve funcionar como uma propedu-tica, como uma preparao espiritual para a abordagem da cincia. Se a anlise epistemolgica e a histria cientfica no se distinguem, no ensino mesmo da cincia evoluda que a integrao se faz. A histria das cincias, juntamente com a anlise epistemolgica, que possibilita, pedagogicamente, o acesso cincia contempornea em sua especificidade, eliminando a perspectiva continuista que quer, "do bom-senso... fazer sair lentamente, docemente, os rudimentos do saber c i e n t f i c o " 7 8 ; possibilita, pois, a compreenso da historicidade especfica do pensamento cientfico, que o que d conta, ao mesmo tempo, de sua forma de desenvolvimento; a cincia progride atravs de revolues (reorganizaes do conhecido), que so snteses histricas transformadoras, isto , snteses histo ricas que no so historicamente preparadas. Por isto que a histria das cin cias tem uma funo pedaggica fundamental: serve dinamizao do esprito (no a sua erudio) , mobilizando-o contra os obstculos (sempre renascentes) e demonstrando-lhe que a cincia atual relaciona-se com seu passado pela descontinuidade mesma que a separa dele, e que, para seu futuro, ela nada mais que a condio (necessria) de infinitas possibilidades.

    Por fim, abordemos um outro ponto que nos permitir o esclareci-mento de mais uma caracterstica da teoria da histria das cincias de Bachelard. Como j foi apontado, a histria das cincias no pode ser uma histria emprica, uma coleo de biografias e de doutrinas. Ela deve ser, segundo a formulao de Canguilhem 7 9, "uma histria das filiaes conceituais". A determinao dessas filiaes se faz por recorrncia, pois "a partir das verdades que a cincia atual tornou mais claras e melhor coordenadas, que o passado da verdade aparece mais claramente progressivo enquanto passado mesmo" 8 0, e nesse trabalho dois problemas devem ser abordados e resolvidos. O primeiro deles diz respeito a neces sidade de distinguir, rigorosamente, racionalizao e recorrncia. Ou seja, im-prescindvel, quando desse trabalho de estabelecimento das filiaes conceituais,

    (78) Bachelard, Le Matrialisme Rationnel, loc. cit., p. 212. (79) Canguilhem, L'Histoire des Sciences dans l'Oeuvre Epistemologique de G. Bachelard,

    loc. cit., p. 36. (80) Bachelard, L'Actualit de l'Histoire des Sciences, loc. cit., p. 201.

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    dar o seu justo valor aos pensamentos passados; deve-se procurar no ver neles aqui-lo que no contm (seno para ns) , atentando sempre para o fato que o que hoje sabemos pode nos levar a creditar ao passado mais do que lhe cabe, a procurando, indiscriminadamente, antecipaes, precurssores, pressentimentos81.

    O segundo problema, ligado intimamente ao primeiro, respeita deter-minao do ponto final das sries recorrentes que podem ser estabelecidas. Com efeito, se no estabelecimento das recorrncias o que se visa a constituio do pas-sado da verdade, so as filiaes conceituais, h que encontrar o princpio dessas filiaes, o ponto em que esse passado comea "enquanto passado mesmo", ou seja, enquanto passado da cincia. Esse ponto marca uma descontinuidade, pois assinala o momento em que uma cincia comea em descontinuidade com um co-nhecimento anterior. Identifica-se com o que se chama o momento do corte epis-temolgico. A se pode detetar, em toda sua clareza, a especificidade do pensa-mento bachelardiano: o momento em que uma cincia comea (ou mais exata-mente recomea, pois , atravs da prpria descontinuidade, uma reorganizao de um conhecimento anterior), o momento em que se inicia seu passado8 2. Portan-to, no h um passado na cincia em que ela aparece em estado embrionrio, prepa-ratrio, ou, mais exatamente, no existe seno a histria das cincias sendo absurdo supor a possibilidade de uma pr-histria da cincia. Aqui encontramos um "pas-sado" expulso da cincia, aqui poderia haver uma histria que no fosse uma his-tria das cincias; mas se nos voltssemos para esse trabalho, teramos que reco-nhecer que, em relao cincia no estaramos constituindo uma histria, mas uma arqueologia ou uma genealogia83. Isto que se situa para l do corte episte-molgico j no mantm nenhuma relao com a c i n c i a 8 4 , j no lhe pertence quer a t tulo de antecipao, quer a ttulo de preparao, porque " intil colocar

    (81) Esse delicado trabalho de distino entre uma adequada srie de recorrncias e uma abusiva racionalizao no pode ser orientado por normas metodolgicas codificveis. Como o diz Bachelard no texto de sua conferncia acima citada, " necessrio um verdadeiro tato para manejar as recorrncias possveis" (p. 202). Com isto procura de-monstrar que somente o conhecimento profundo da problemtica atual de uma dada cincia que permite ao historiador o manejo adequado das recorrncias, e no a obedin-cia a um conjunto de normas e regras metodolgicas.

    (82) sobretudo neste ponto que a anlise (e mesmo a exposio) de Fichant nos parece injusta. A cincia alberga em si o seu passado, a sua histria. E o que elimina como se ver na seqncia, o passado que "liquida" no exatamente o seu passado mas o que dele radicalmente se distingue.

    (83) "Uma arqueologia da cincia uma empresa que tem um sentido, uma pr-histria da cincia um absurdo", Canguilhem, Sur une pistemologie Concordataire loc. cit. p. 120. A palavra utilizada por Bachelard paleontologia, Cf. L'Activit Rationaliste de la Physique Contemporaine, p. 25.

    (84) Essa afirmao, em todo seu vigor, vlida sobretudo, em relao aos estgios mais avanados da cincia. Quando se trata de uma cincia jovem ainda em constituio, possvel determinar uma vigorosa atuao desse pensamento ante-cientfico, mas sempre uma atuao enquanto obstculo. Essa efetiva e vigorosa ao um dos elementos que explicam a lentido (relativa) dos progressos cientficos iniciais. Quando se deixa porm esses primeiros estgios, verifica-se que a dinmica do pensamento cientifico acelera-se cada vez mais, que a liquidao do "passado de erros" se faz cada vez mais rapidamente e a ao daqueles obstculos, correlativamente tende para zero

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    um falso problema na origem de um verdadeiro problema..."8 5 Quer dizer, estabe-lecer continuidades onde o que h so vigorosas descontinuidades, desconhecer a caracterstica fundamental do pensamento cientfico, um pensamento que parte em ruptura com o pensamento comum. Isto fazer esquecer que "o pensamento cientfico repousa sobre um passado reformado", insistir em elaborar uma "v h i s t r i a " 8 6 , cujas conseqncias so nocivas para a compreenso da cincia.

    V-se, pois, que a ruptura epistemolgica um conceito fundamental em uma histria das cincias, mas de uma forma muito especfica: pois. h que notar que, anlise histrica concreta, o conceito da ruptura epistemolgica se apresenta dado apenas em suas caractersticas formais, a determinao das rupturas concretas sendo ela prpria um resultado da anlise histrica que se empreende. Ou seja, o estabelecimento dos "pontos" de ruptura no determina o campo onde se executam as recorrncias, mas so estas que permitem a deteo dos pontos de ruptura. O que uma forma muito diversa daquela segundo a qual alguns autores a entendem e estimam sua importncia

    III

    Bachelard, em suas diversas obras 8 7 , procurou demonstrar a especificidade do conhecimento cientfico em relao ao conhecimento comum, bem como procurou mostrar que o conhecimento cientfico caracterizado pela des continuidade, ou seja, que sua evoluo se faz atravs de constantes reorganiza-es do conhecimento. A descontinuidade entre conhecimento comum e conhecimento cientfico o efeito de uma ruptura epistemolgica que, no entanto, no se consuma de uma vez para sempre. Com efeito, a ruptura epistemolgica e, em seu princpio, algo que decorre da configuraao terica dada historicamente ou seja, da problemtica terica dominante.

    Porm, se definimos essa problemtica terica como uma "conjun-tura ideolgica", a ruptura, que marca a descontinuidade entre esse tipo de conhe cimento e o conhecimento cientfico, no se consuma, de uma vez para sempre, no momento histrico mesmo em que ela ocorre. Detetar, historicamente, o momento de uma ruptura, menos apontar o momento em que surge uma cincia, que o ponto a partir do qual uma dada cincia tomou-se possvel. A ruptura s se consuma na medida em que essa possibilidade se atualiza: "As ciencias fsicas e qumicas, em

    (85) BACHELARD Le Matrialisme Rationnel - loc. cit., p 104/105. (86) Idem. p. 103. (87) Cf. espec. os cap. homonimos Conhecimento Comum e Conhecimento Cientfico em

    Le Rationalisme Appliqu e em Le Matrialisme Rationnel.

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    seu desenvolvimento contemporneo, podem ser caracterizadas epistemologicamente como domnios de pensamento que rompem nitidamente, com o conheci-mento vulgar" 8 8.

    Dessa forma, a ruptura epistemolgica no deve ser identificada de ime-diato e apenas com um ponto originrio a partir do qual uma cincia comea. Ou seja, no suficiente procurar detetar esse ponto "de no retorno" para afirmar a existncia concreta de uma cincia; a nosso ver, tal procedimento constitui uma exata inverso do caminho indicado pela proposta bachelardiana: a deteo desse ponto de no-retorno no adquire sentido a no ser que o desenvolvimento poste-rior (no tempo) daquilo que se inicia nesse momento permita coloc-lo como o princpio desse prprio desenvolvimento89. No h sentido em determinar uma ruptura epistemolgica para uma cincia que ainda do reino do possvel: no h que esquecer que a ruptura epistemolgica uma categoria de uma epistemo-logia histrica e que, portanto, s pode ser estruturada, constituda, rigorosamente no quadro de uma anlise histrica do desenvolvimento terico de uma dada cin-c i a 9 0 Desse modo, cremos que preciso acatar com reservas a definio de ruptura epistemolgica como um conceito aplicvel a qualquer domnio cientfico regional, uma vez que sua adequada utilizao requer uma anlise do desenvolvimento his-trico da cincia em questo. N o a utilizao desse conceito que permite demar-car um campo terico (cientf ico), mas sim o desenvolvimento de uma histria epistemolgica que permitir quando possvel delimitar e situar a ruptura. Pare-ce-nos, pois, claro que no que respeita a uma dada cincia particular, a ruptura o momento primeiro da histria dessa cincia, mas que pode ser situado apenas depois que se traa a histria recorrente dessa mesma cincia.

    exatamente nesse aspecto fundamental - que no tocam os auto-res que se valem do conceito de ruptura epistemolgica. Sobre ele recai o silncio, as reticncias fazem sua vez, para que o conceito sirva a novos fins. Esse aspecto - exatamente sua omisso - constitui o ponto nevrlgico das anlises althusse-

    (88) Bachelard, Le Rationalisme Appliqu, op. cit., p. 101, cf. tambm Serres, cit. por Can guilhem, op. cit., p. 38: "Uma cincia chegada a maturidade uma ciencia que consmou, inteiramente, a ruptura entre seu estado arcaco e seu estado atual."

    (89) Assim, preciso no tomar in abstracto a definio de corte epistemolgico avanada por F. Regnault: "o ponto sem regresso' a partir do qual... (a) cincia comea (ci-tado por Pcheux e Balibar, in Pcheux e Fichant, Sobre a Histria das Cincias loc cit., p. 11), pois do contrrio arriscaramos transformar tais conceitos em meros elementos de uma "doutrina da cincia" que se aplicaria, mecanicamente, e qualquer domnio cientfico que delimitassemos com a inteno de demonstrar sua cientificidade.

    (90) A contra prova disto: sendo a ruptura epistemolgica indiscernivelmente, uma categoria histrica e epistemolgica e pois, uma das principais categorias da histria (epis temologica) das cincias, ela impede, segundo Bachelard a aplicao do esquema dessa histria a cincias muito jovens, ou a cincias ainda em formao. Cf. especialmente o artigo: O Problema Filosfico dos Mtodos Cientficos, in L'Engagement Rationaliste bem como. na mesma coletnea, A Atualidade da Histria das Cincias.

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    rianas, nas quais a no referncia a sua maior influncia , ironicamente, a maior jus tia a Bachelard, em virtude da prpria forma de manipulao de suas teorias. Isto porque quando Althusser nos afirma que, da mesma forma que Galileu abriu o "continente da fsica", Marx abriu o da histria, ele procede exatamente ao contr-rio do autor no qual fundamenta a teoria do conhecimento cientfico que utiliza O papel "fundador" desempenhado por Galileu lhe atribudo, exatamente pelo futuro da cincia que "fundou", por recorrncia que vemos em Galileu a pri meira figura de uma dada cincia porque essa cincia teve um futuro que Galileu inaugura seu passado. Ou seja, atravs de nosso presente cientifico que podemos ver, na obra galileana, a emergncia de algo radicalmente novo, o que quer dizer, algo que, pela sua transparncia racional para ns, pela sua inteligibilidade pela cincia atual, fez-nos no mais compreender aquilo que o antecedeu, torna para ns ininteligveis os discursos que o precederam. No que respeita a Marx, as coisas parecem ocorrer ao contrrio na sua prpria obra, a partir de uma anlise ima nente de Marx que a especificidade de seu pensamento se destaca, que ele aparece em ntida ruptura com o "universo de pensamento" que o antecedeu. Ora a ques to se complica na medida em que essa especificidade identificada com uma cien tificidade: o que marca e distingue o pensamento de Marx e o fato de ele ter atravs de suas obras, inaugurado o conhecimento cientfico da histria. Ento, o grave problema, que na verdade Althusser no soluciona, o da definio e da demonstrao dessa cientificidade. Isto s seria possvel se a "cincia da historia possuisse um futuro, mas exatamente esse futuro que Althusser e seu grupo negam existir. Com efeito, no vem nas cincias humanas, em seu estgio atual um con junto de conhecimentos cientficos que fariam corpo com as primeiras produes cientficas nesse campo, devidas a Marx, isto porque existe um elemento que "de sempenha o papel de obstculo ideolgico em relao ao desenvolvimento da cin cia das formaes sociais; trata-se do conjunto mais ou menos teoricamente arti culado das "cincias sociais", que se colocam no lugar do processo que, de direito, teria podido se produzir e que tm, maciamente, reprimido (grifo meu), pode-se dizer, com efeito que a fase (de reproduo metdica) do objeto da cincia das formaes sociais no teve lugar no sentido estritamente cientfico do termo, e isto devido a imensa represso da cientificidade do materialismo histrico que se exerceu sobre ele do 'exterior' sempre, e, demasiado frequentemente, do 'inte-rior'. Assim, pouco a pouco, constitui-se um arsenal terico-prtico de meios tecno-polticos, que se deram por finalidade responder a uma 'demanda" que emana da formao social existente e que visa a lhe adaptar readaptar as relaes sociais reais. O conjunto desses meios tericos e prticos constitui, em seu conjunto uma *matria-prima' ideolgica que pode e deve ser teoricamente transformada91".

    Althusser se v obrigado a recusar no que respeita a Marx no momento mesmo em que o expressamente aceita para as cincias em geral, uma das idias fundamentais da epistemologia em que se baseia: primeiro "a prtica terica para

    (91) Herbert. Th - Remarques pour une Thorie Gnrale des Ideologies - in Cahiers Pour L'Analyse. n 9. p 75. 76

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    si mesma seu prprio critrio, contm em si protocolos definidos de validao da qualidade de seu produto, isto , os critrios da cientificidade dos produtos da pr-tica cientfica. As coisas no se passam de outro modo na prtica real das cincias: uma vez que esto verdadeiramente constitudas e desenvolvidas (grifo meu), no tm nenhuma necessidade da verificao de prticas exteriores para declarar 'verda-deiros', isto , conhecimentos, os conhecimentos que produzem", ...ao menos para as (cincias) mais desenvolvidas (grifo meu), e nas regies de conhecimento, que do-minam de maneira satisfatria, fornecem, elas mesmas, o critrio da validade de seus conhecimentos...'"92; segundo, e sem nenhuma transio: "Devemos dizer o mes-mo da cincia que nos interessa especialmente: o materialismo histrico... no a prtica histrica ulterior que pode dar ao conhecimento que Marx produziu, seus ttulos de conhecimento: o critrio da 'verdade' dos conhecimentos produzidos pela prtica de Marx fornecido em sua prpria prtica terica, isto pelo valor demonstrativo, pelos ttulos de cientificidade das formas que asseguram a produo' desses conhecimentos"93. A contradio nos parece flagrante e dispensa maiores comentrios. Cremos que sua existncia se deve a inteno de aplicar, mecanica-mente, a noo de ruptura que estamos analisando, e o grande problema colocado pelas anlises de Althusser (sem dvida, interessantssimas de muitos pontos de vista), da decorre: como definir, contemporaneamente a sua emergncia, a cien-tificidade de uma determinada prtica terica (recusando ao mesmo tempo o recur-so a critrios empiristas ou pragmatistas) se a teoria dessa cientificidade um pro-duto caracterstico do futuro (possvel) dessa prtica terica nascente? Recusar isto mergulhar a cincia no mais profundo dogmatismo, o da verdade dada para sempre, e restringir a atividade cientfica ao mero comentrio desta verdade.

    Consideramos, pois, que utilizar a categoria de ruptura epistemolgica divorciada de uma anlise histrica implica em transform-la em um simples precei-to epistemolgico que serve, menos para marcar o princpio de uma cincia que para indicar a especificidade do conhecimento cientfico em relao ao conheci-mento comum. Deparamos, em outro autor, com um duplo uso dessa categoria, cujas conseqncias so muito diferentes entre si. Por exemplo, tomemos a ci-taao seguinte: "pelo fato que a fronteira entre o saber comum e a cincia , em sociologia, mais indecisa que alhures, a necessidade da ruptura epistemolgica se impe com uma urgncia particular"9 4. Nesse contexto, a categoria de ruptura utilizada fora do quadro de uma anlise histrica. Faz-se necessrio operar uma ruptura entre o conhecimento comum e o conhecimento cientfico em sociologia pois que a cientificidade do segundo (ou parece ser) efeito dessa ruptura. Entre-tanto, a ruptura apenas postulada: preciso oper-la para que, enfim, a socio-logia torne-se uma cincia (que ainda no ). Dessa forma, aqui, a ruptura apenas um requisito epistemolgico que uma disciplina deve atender para que seja possvel

    (92) Althusser, L. - Lire le Capital - Petit Colle. Maspero nouv. d. 1968 vol. I pp. 71 73 (93) Idem, ibidem. (94) Bourdieu e outros - Le Mtier du Sociologue - loc. cit., p 103.

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    classific-la como "cientfica" Porm, os mesmos autores, na parte de sua obra re ferente aos textos de ilustrao, reunem um conjunto de textos que "ilustram" a ruptura em sociologia. Portanto, ao que tudo indica, esses autores consideram a ruptura pelo menos "em curso", sendo a tarefa atual dos socilogos a consumaao dessa mesma ruptura. Ora, se assim , parece-nos que um problema fundamental escamoteado por Bourdieu e seus colaboradores: no discutida a razo funda mental que lhes permitiria reunir, nessa parte, textos e autores tao dspares quanto Bachelard e Wittgenstein, quanto Weber e Marx. No nos referimos, por suposto, a uma acusao de ecletismo. Nossa objeo , segundo pensamos, mais profunda. o que desejaramos que esses autores nos demonstrassem qual a razo que lhes permite definir um campo terico homogeneo onde se situariam as obras concre-tas dos autores que citam. O que surpreende no livro de Bourdieu a inexistencia de uma discusso bsica, a da prpria disciplina para cuja epistemologia pretendem colaborar. A sociologia, a , tomada como uma cincia dada, como a cincia que por existir de fato nos quadros das organizaes universitarias julgada existir de direito, tambm.

    Disso, decorre que a ruptura , num s movimento localizada (em sua emergncia) e postulada (em seu acabamento), ao mesmo tempo em que uma anlise histrica da cincia de que se trata elidida. Mas, a consequncia negativa disto logo aparece: a substituio de uma teoria da ciencia a uma teoria da ciencia scio lgica (que o efeito especfico de uma utilizao in abstracto de categorias como a da ruptura) invalida o projeto dos autores que ora abordamos. Pois, se no inves tigamos o estatuto epistemolgico dessa disciplina a sociologia no dispomos de uma teoria que nos permita demonstrar sua cientificidade, e assim, no temos condio objetivas para reunir autores to diversos entre si como os anteriormente citados; ca mos , na verdade, em um ecletismo, mas a crtica, frize-se nao e diri gida ao ecletismo como ecletismo: o ecletismo aqui uma conseqncia da inexis tncia de um campo terico homogneo. Somente se Bourdieu nos proporcionasse uma teoria geral da cincia sociolgica e, atravs dessa teoria, nos demonstrasse que, na sociologia, existe um processo acumulativo de conhecimentos (cientficos), sua reunio de textos teria algum sentido. Mas, no a fazendo, ou seja, no desen-volvendo uma anlise histrico-epistemolgica dessa disciplina, o que ocorre que nada nos impede de continuar a focar tais textos como pertencentes antes a dife-rentes "tradies doutrinrias" que a um mesmo "corpo t e r i c o " 9 5 .

    (95) a existncia de um orpo terico homogneo um dos elementos bsicos para a carac-terizao de uma dada disciplina como cientfica (no esquecendo, sem dvida, que essa existncia ela prpria um efeito). Distinguir, rigorosamente "tradio doutrinria" de "corpo terico" fundamental para eliminar certas crticas que so dirigidas a noo de "consenso cientfico". Muitos autores, que explicitamente negam serem empiris tas, combatem essa noo, crendo que possvel decidir da verdade ou da falsidade de uma teoria cientfica, atravs de uma imediata referencia experimental, e que a aceitabilidade dessa teoria pela comunidade cientfica nao depe a favor de sua veraci dade. Esquecem, entretanto, que a referencia experimental nem sempre imediatamente realizvel e, o que mais importante, o consenso cientfico um consenso te-rico.

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    IV

    Jean Pouillon, em Problemas du Structuralisme, dizia que o que a moda tem de mais exasperante que, ao critic-la, de certo modo a aceitamos. Talvez isto valha para o momento mais agudo da difuso polmica da moda. Este passado, a moda continua a exasperar, porm de outro modo: por aquilo atravs do que se perpetua sob a disfarada forma do outro que ela. Agora que tudo - ou quase -passou, em que nem mesmo as "auto-crticas" (ainda que benevolentes), conseguem criar qualquer agitao, a moda persiste, em seus subprodutos, sejam eles um autor, uma obra, ou mesmo, como foi o caso, a organizao das disciplinas de um depar-tamento. A etiqueta que fazia a mercadoria, sem dvida desapareceu; ou antes, re-partiu-se em rtulos que continuam a identificar aqueles subprodutos. Nesse sen-tido p que, talvez, seja compreensvel que nisso tudo se toque, ainda que de passa-gem. Pois, o que se pretende , menos lembrar esses "anos loucos" marcados por adeses muito rpidas e muito definitivas, que colaborar para deslocar, um pouco que seja, a rotulao que hoje marca uma obra que foi sobretudo um constante interrogar-se a si prpria, uma permanente retomada de suas prprias respostas, e um autor 9 6 , que em La Terre et les Rvertes du Repos, assim sintetitou a essn-cia de sua prpria prtica: "tenho a melanclica impresso de ter aprendido, es-crevendo, como deveria ler. Tendo tudo lido, desejaria tudo reler."

    (96) Autor de cuja obra se percebe melhor o prprio sentido nas poucas paginas de Janus Bi-frons, de G. G. Granger (Nueva Corrente. 64, 1974) que nas "leituras sintomticas" de D Lecourt