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166 XXI, Ter Opinião D e acordo com os dados da NASA, o ano de 2010 foi o mais quente desde que exis- tem registos meteorológicos represen- tativos, culminando uma série de anos anormalmente quentes (Figura 1). No último século, a temperatura média global cresceu um pouco menos de 1, de forma algo irregular, com dois períodos de aquecimento relativamente rápido (1910-1945 e 1975-presente) intercala- dos por um período de quase estabili- zação. Modelos climáticos indicam que esta evolução recente do clima global é a primeira fase da resposta do planeta à alteração da composição atmosférica resultante da queima de combustíveis fósseis, mas também da desflorestação e de outras actividades humanas, sendo expectável um aquecimento mais acen- tuado ao longo do século actual, com a possibilidade de criar desequilíbrios irreversíveis em componentes-chave do sistema climático. A dimensão dos riscos colocados pelo aquecimento global, mas também a enorme incerteza que está necessa- riamente associada a previsões desta natureza, tornou a investigação em ci- ências do clima uma actividade priori- tária. Na última década, em resultado dos progressos científicos, mas também da própria evolução observada do clima global, aumentou significativamente a nossa compreensão sobre os processos do clima. Radiação e clima O ambiente físico do planeta Terra, caracterizado por variáveis como a tem- peratura, a humidade e o vento, varia ra- zoavelmente com a localização geográfi- ca, evolui de forma quase periódica com os ciclos dominantes da vida planetária, os ciclos diurno e anual do aquecimen- to solar, e de forma mais complexa em outras escalas de tempo. Em cada local, certas características médias desse am- biente físico são notavelmente estacioná- rias, evoluindo lentamente dentro de in- tervalos limitados. Estas características médias definem o clima local, caracteri- zado não só pelos valores médios a longo prazo – por exemplo, da temperatura –, mas também por outras estatísticas – por exemplo, as amplitudes térmicas diurna A mudança climática: hipóteses científicas e as dúvidas por esclarecer Pedro M. A. Miranda De acordo com os dados da NASA, o ano de 2010 foi o mais quente desde que existem registos meteorológicos representativos, culminando uma série de anos anormalmente quentes. © Jordi Burch TEMAS CIêNCIA XXI, Ter Opinião 167 Figura 1. Temperatura média global 1880-2010, calculada a partir de observações (NASA/GISS). 1880 1900 1920 1940 1960 1980 2000 2010 13,4º 13,6º 13,8º 14,0º 14,2º 14,4º 14,8º

14,8º A mudança climática: 14,4º 14,2º hipóteses ... · tativos, culminando uma série de anos ... calculada a partir de observações ... nante da ordem dos 100.000 anos, o

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166 XXI, Ter Opinião

D e acordo com os dados da NASA, o ano de 2010 foi o mais quente desde que exis-

tem registos meteorológicos represen-tativos, culminando uma série de anos anormalmente quentes (Figura 1). No último século, a temperatura média global cresceu um pouco menos de 1, de forma algo irregular, com dois períodos de aquecimento relativamente rápido (1910-1945 e 1975-presente) intercala-dos por um período de quase estabili-zação. Modelos climáticos indicam que esta evolução recente do clima global é a primeira fase da resposta do planeta à alteração da composição atmosférica resultante da queima de combustíveis fósseis, mas também da desflorestação e de outras actividades humanas, sendo expectável um aquecimento mais acen-tuado ao longo do século actual, com a

possibilidade de criar desequilíbrios irreversíveis em componentes-chave do sistema climático.

A dimensão dos riscos colocados pelo aquecimento global, mas também a enorme incerteza que está necessa-riamente associada a previsões desta natureza, tornou a investigação em ci-ências do clima uma actividade priori-tária. Na última década, em resultado dos progressos científicos, mas também da própria evolução observada do clima global, aumentou significativamente a nossa compreensão sobre os processos do clima.

radiação e climaO ambiente físico do planeta Terra,

caracterizado por variáveis como a tem-peratura, a humidade e o vento, varia ra-zoavelmente com a localização geográfi-ca, evolui de forma quase periódica com os ciclos dominantes da vida planetária, os ciclos diurno e anual do aquecimen-to solar, e de forma mais complexa em outras escalas de tempo. Em cada local, certas características médias desse am-biente físico são notavelmente estacioná-rias, evoluindo lentamente dentro de in-tervalos limitados. Estas características médias definem o clima local, caracteri-zado não só pelos valores médios a longo prazo – por exemplo, da temperatura –, mas também por outras estatísticas – por exemplo, as amplitudes térmicas diurna

A mudança climática:hipóteses científicas e as dúvidas por esclarecer

Pedro M. A. Miranda

De acordo com os dados da NASA, o ano de 2010 foi o mais quente desde que existem registos meteorológicos representativos, culminando uma série de anos

anormalmente quentes.

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temasciência

XXI, Ter Opinião 167

Figura 1. Temperatura média global 1880-2010, calculada a partir de observações (NASA/GISS).

1880 1900 1920 1940 1960 1980 2000 201013,4º

13,6º

13,8º

14,0º

14,2º

14,4º

14,8º

168 XXI, Ter Opinião

e anual. A relativa estacionaridade (e be-nignidade) do clima terrestre é uma das condições para o sucesso da vida, sendo, por outro lado, as transições climáticas forças poderosas do processo darwinista de selecção natural.

A Terra é, como todos os objectos interessantes, um planeta heterogéneo, com continentes e oceanos cobertos por uma atmosfera turbulenta, quimi-camente activa, onde coexistem gases e materiais líquidos e sólidos em sus-pensão (o aerossol atmosférico). Neste sistema, a temperatura varia de ponto para ponto e ao longo do tempo, acom-panhando os fluxos de energia e de massa no interior do planeta e as trocas de energia entre o planeta e o exterior. A dinâmica interna do planeta Terra é, por isso, inerentemente complexa, com destaque para a circulação atmosférica.

Se nos concentrarmos, no entan-to, nos processos de interacção entre a Terra e o exterior, o problema surge--nos como muito mais simples: em boa aproximação a Terra limita-se a receber radiação (solar) e a emitir radiação (ter-restre). A condição de equilíbrio térmico da Terra resulta simplesmente da con-dição de equilíbrio radiativo (radiação absorvida=radiação emitida). Desde fi-nais do século XIX sabemos relacionar esses fluxos de radiação com a tempe-ratura. Em 1900, Max Planck revolu-cionou a Física introduzindo a hipótese quântica, exactamente com o objectivo de estabelecer as propriedades da radia-ção emitida por um corpo ideal, o corpo negro, em função da sua temperatura.

Sendo o fluxo de radiação emitido pela Terra controlado pela sua tempe-ratura, por intermédio da Lei de Planck, a absorção de radiação solar depende da reflectividade do planeta, designada por albedo. A dificuldade está, no entan-to, no facto de a Terra ser heterogénea, apresentando uma distribuição de tem-peratura que depende da latitude, lon-gitude e altitude. Esquecendo, por mo-mentos, essa complexidade, podemos facilmente calcular uma temperatura característica do planeta como um todo, a sua temperatura efectiva, que se mos-tra ser uma função exclusiva de dois parâmetros: a radiação solar incidente (constante solar , S≈1366 Wm-2) e o albe-do médio global (α≈0.3): T_ef=∜(S(1-α)/(4), em que σ é uma constante universal

e o factor 4 é simplesmente a razão en-tre a área da esfera e a área do círculo máximo. A temperatura efectiva da Ter-ra é assim estimada em cerca de 255K (-18°C). Trata-se de uma temperatura muito inferior à temperatura média do ar perto da superfície, próxima dos 288K (15°C), o que mostra a importância da atmosfera, em média muito mais fria do que a superfície, no estabelecimento do equilíbrio radiativo do planeta.

a descoberta do efeito de estufa

A diferença entre a temperatura mé-dia do ar junto da superfície e a tempe-ratura efectiva, 288-255=33°C, é a medi-da mais simples do efeito de estufa. Jean Baptiste Fourier, ministro de Napoleão e autor da teoria da condução do calor, foi o primeiro cientista a atribuir à atmosfe-ra um papel de aquecimento da superfí-cie, em 1824, justificando-o qualitativa-mente como consequência da emissão de radiação infravermelha pelo planeta (chaleur obscure, descoberto por William Herschel em 1800). A demonstração

do efeito de estufa viria a ser realizada mais tarde por John Tyndall por volta de 1860, numa experiência em que ve-rificou a absorção de radiação infraver-melha por diversos gases atmosféricos.

No final do século XIX, em 1896, Svan-te Arrhenius, interessou-se pelo proble-ma do efeito de estufa, motivado pela procura de uma explicação para as osci-lações glaciares. Num cálculo grosseiro, concluiu que uma redução da concen-tração de CO

2 para metade do seu valor (então cerca de 300 ppm, partes por mi-lhão) implicaria uma redução da tempe-ratura da superfície em cerca de 6, valor talvez suficiente para explicar a oscilação glaciar. Por outro lado, Arrhenius, cons-ciente da importância potencial da quei-ma de combustíveis fósseis para a evolu-ção futura da composição da atmosfera, também estimou que uma duplicação do CO

2 se traduziria num aumento da tem-peratura média em cerca de 6, facto que até lhe parecia potencialmente positivo e que estimava só poder ocorrer ao fim de centenas ou mesmo milhares de anos de actividade industrial.

O mundo viria a evoluir muito mais rapidamente do que o previsto por Ar-rhenius, tanto em termos populacionais como em termos da emissão per capita de dióxido de carbono. No entanto, o conhecimento do problema científico do efeito de estufa evoluiu muito len-tamente durante a primeira metade do século XX. As propostas iniciais de Ar-rhenius foram contestadas e teriam sido provavelmente esquecidas, não fora Ar-rhenius um dos mais notáveis cientistas mundiais, prémio Nobel em 1903. Um argumento que parecia relevante, apre-sentado por Angstrom consistia no facto de as bandas de absorção de radiação in-fravermelha por parte do CO

2 se encon-trarem saturadas com as concentrações então existentes, fazendo muito pouca diferença a adição de mais gás. Este argumento estava fundamentalmente errado: mesmo que a banda de absor-ção do CO

2 esteja saturada, absorvendo 100% da radiação nessa zona do espec-tro, o aumento da concentração impli-ca um papel acrescido para os níveis elevados da atmosfera, mais frios, com aumento da temperatura da superfície. Um outro argumento, já discutido por Arrhenius, consistia no papel do vapor de água e das nuvens no efeito de estufa.

temasciência O muito ligeiro

decréscimo da temperatura média global observado entre 1945 e 1975, num período em que a concentração de CO2 cresceu monotonamente, constitui um teste difícil para os modelos. Nenhum processo simples individual parece ser capaz de explicar o arrefecimento nesse período

XXI, Ter Opinião 169

Figura 2. Concentração de CO2 (partes por milhão em volume, a salmão) e anomalia de temperatura (estimado pela razão isotópica 18O/16O)

medidas em bolhas de ar em Vostok (Antárctica, dados NOAA).

observações O problema do efeito de estufa man-

teve-se dormente até meados do sécu-lo XX, sendo usado essencialmente no contexto da discussão de oscilações climáticas passadas. Em 1938, John Callendar apresenta o primeiro estu-do fundamentado em observações do aquecimento global nas primeiras déca-das do século XX, atribuindo-o à inten-sificação do efeito de estufa resultante da industrialização.

Em 1957-58, iniciou-se com o Ano Geofísico Internacional uma alteração qualitativa da nossa observação da Terra. Como parte do esforço interna-cional concertado de constituição de um sistema de monitorização global do planeta, Charles Keeling idealizou um novo sistema de medida da concentra-ção atmosférica de CO

2 e realizou um conjunto de expedições para estabele-cer uma estimativa da sua concentra-ção média global. Num dos locais esco-lhidos como suficientemente remotos para não ser afectados pelo “ruído” das emissões humanas, o observatório de Mauna Loa no Havai, Keeling iniciou um conjunto de medições contínuas que se mantiveram até aos dias de hoje. Ao fim de apenas dois anos de medição, Keeling concluiu que a concentração de CO

2 estava em subida.O CO2 é, depois do vapor de água, o

segundo principal gás de estufa na at-mosfera da Terra. No entanto, enquanto as concentrações de vapor de água na atmosfera são limitadas pelo processo de condensação e precipitação, verifi-

cando-se que a quase totalidade do va-por se concentra na baixa troposfera, as concentrações do CO

2 (e dos outros ga-ses de estufa não condensantes) podem crescer sem limite mesmo na atmosfera média e alta. Em consequência, estes gases assumem um papel na regulação climática global.

De facto, no período recente da histó-ria da Terra temos observações directas da evolução da concentração de CO

2, ob-tidas a partir de análise de bolhas de ar aprisionadas no gelo polar. Essas medi-das podem ser comparadas com estima-tivas da temperatura média da Terra no mesmo período, efectuadas com base na variação da proporção entre dois isóto-pos estáveis do oxigénio, quimicamente idênticos mas com uma ligeira diferença de massa atómica. Estes dados (Figura 2) apresentam uma elevada correlação, sugerindo a existência de uma relação causal entre as duas variáveis. Por ou-tro lado, ambas as séries apresentam

Figura 3. Temperatura média anual 1857-2010 em Lisboa, Instituto Geofísico (Dados IDL).

um comportamento quase periódico, com oscilações entre épocas glaciares e interglaciares, com um período domi-nante da ordem dos 100.000 anos, o que sugere que estas oscilações são con-troladas pelos ciclos de variação dos pa-râmetros orbitais da Terra, descobertos por Milutin Milankovic em 1930.

Os gráficos apresentados na Figura 2 são baseados em observações directas no caso das concentrações de CO

2, e forte-mente corroborados por fontes indepen-dentes no caso na temperatura. O gráfico resultante das medições de Mauna Loa é confirmado por medições em muitos outros locais da Terra, nomeadamente no pólo Sul, o local menos directamente afectado pela actividade humana. A con-centração actual de CO

2, próxima das 390 ppm, está fora da escala da Figura 2, sugerindo que a temperatura média actual está em desequilíbrio com a com-posição atmosférica. A Figura 1 mostra a evolução recente da temperatura média global aos 2 m, calculada a partir de ob-servações. Nesta curva observa-se uma tendência de aquecimento de um pouco menos de 1°C no último século, o que é consistente com uma situação de dese-quilíbrio radiativo devido ao aumento dos gases de estufa.

Tendências de evolução também semelhantes encontram-se em obser-vações em muitos pontos do mundo, nomeadamente em Portugal (Figura 3). Como seria de esperar, a evolução local é mais “ruidosa”, i.e., apresenta maior variabilidade inter-anual mas, no caso de Portugal, apresenta também uma tendência para um aquecimento um pouco mais rápido.

400 350 300 250 200 150 100 50 Hoje

180200240260280300320340

2

0

-2

-4

-6

-8

-10

CO2 (ppmv)

Variação de temperatura

1860 1880 1900 1920 1940 1960 1980 200015

16

17

18

P 168 Temperatura média anual

170 XXI, Ter Opinião

Qual é a sensibilidade do clima terrestre?

Contrariamente ao que foi dito em re-lação às curvas da Figura 2, a evolução recente da temperatura (Figura 1 e, mais a ainda no caso da Figura 3) não correla-ciona bem com a evolução recente da con-centração de CO

2. Esse facto não é surpre-endente, visto que estamos a comparar evoluções em escalas de tempo muito di-ferentes: da ordem dos 100.000 anos no caso das oscilações glaciares, contra cerca de 100 anos de história recente. Uma evo-lução tão rápida da composição atmosfé-rica, com subida da concentração em 35% ao longo de 100 anos é, provavelmente, inédita, e implica um deslocamento do sistema climático para fora do equilíbrio. Por outro lado, a correlação entre a con-centração de CO

2 e a temperatura, im-plícita na Figura 2, poderia sugerir uma

relação linear entre essas duas variáveis, o que não é certamente o caso, mesmo em condições de quase equilíbrio.

A complexidade da relação entre os gases de estufa e a temperatura poderá ser melhor compreendida se se consi-derarem os processos físicos que são iniciados pelo aumento das suas con-centrações. A Figura 4 apresenta esti-mativas do impacto dos acréscimos dos principais gases de estufa desde 1750 justificando um aumento da energia disponível, e dos efeitos opostos cor-respondentes ao aumento paralelo das partículas em suspensão na atmosfera (aerossol) e às modificações da cobertu-ra nebulosa e do uso do solo, principal-mente por meio da desflorestação. Ape-sar do cancelamento parcial entre os vários efeitos, o resultado global estima-do traduziu-se num aumento da ener-gia disponível em cerca de 1.6Wm-2, um efeito que é cerca de 10 vezes superior à variabilidade solar no mesmo período.

O gelo existente na Gronelândia é suficiente para fazer subir o nível do mar em cerca de 7 metros, e o gelo da Antárctica é 10 vezes mais volumoso. Em face destes riscos, as estimativas divulgadas pelo IPCC em 2007, de subida do nível do mar inferior a 1 m em 2100, podem ser consideradas modestas

XXI, Ter Opinião 171

A Figura 4 mostra que apesar de existir bastante confiança na existência de um aumento de energia disponível devido à acção humana, mantém-se uma razoável incerteza sobre a sua di-mensão, devida principalmente ao in-suficiente conhecimento sobre a física das nuvens e do aerossol atmosférico. Por outro lado, a tradução do aumento de energia disponível em variação da temperatura do ar junto da superfície não é trivial. A dificuldade está no facto de a energia adicional se distribuir pela atmosfera, sistema com pouca massa e “fácil” de aquecer ou arrefecer, mas também por uma fracção do oceano, com muito maior capacidade calorífica. Como a participação do oceano no pro-cesso de aquecimento depende da cir-culação, a taxa de aquecimento pode ser muito variável. Uma melhor compreen-são destes processos só é possível com o recurso a modelos de circulação global da atmosfera e oceano.

modelos e cenáriosA previsão meteorológica a curto

prazo evoluiu de forma drástica nas úl-timas décadas, com o desenvolvimento de modelos físicos detalhados da atmos-fera e do solo e sua resolução numéri-ca em supercomputadores. A mesma tecnologia, progressivamente alargada para incluir o oceano, a biosfera (seres vivos) e a criosfera (gelo na superfície), tem vindo a afirmar-se como a princi-pal ferramenta científica no estudo do clima global. Os modelos podem ser de-senvolvidos no sentido de incluir uma representação explícita dos processos considerados mais relevantes e, mais importante, podem ser testados pela sua capacidade de reproduzir o com-portamento observado do planeta.

Uma característica da curva da Figura 1 tem merecido muita discussão: o (muito ligeiro) decréscimo da temperatura mé-dia global observado entre 1945 e 1975,

num período em que a concentração de CO

2 cresceu monotonamente, constitui um teste difícil para os modelos. Ne-nhum processo simples individual pare-ce ser capaz de explicar o arrefecimento nesse período. No entanto, diversos mo-delos climáticos globais, incorporando uma descrição do comportamento dos gases de estufa mas também do aerossol atmosférico, de origem vulcânica e antro-pogénica, são capazes de produzir simu-lações qualitativamente muito semelhan-tes à série observada (Figura 5).

O estabelecimento de um conjunto alargado de modelos climáticos, desen-volvidos independentemente e capazes de passar o teste das observações, si-mulando adequadamente a evolução climática desde 1850 até ao presente, permite-nos explorar as possibilidades de evolução próxima do clima terrestre. É claro que não se trata exactamente de uma previsão, pois a evolução futura depende também de muitos factores ex-ternos ao sistema climático, nomeada-mente da intensidade das emissões fu-turas de gases de estufa. Em vez de uma simulação do clima futuro, precisamos de realizar um conjunto de simulações para cada cenário possível de evolução. A Figura 6 mostra o conjunto de cená-rios estabelecido pelo IPCC em 2007. Todos os cenários prevêem um aumen-to das emissões em relação aos valores observados em 2000, a taxas diferen-tes e com uma estabilização seguida de redução em diferentes momentos. A Figura 7 mostra a evolução da tempera-tura média simulada em várias dezenas de modelos, para cada um dos cenários. Como seria de esperar, os cenários com menores emissões (B1) traduzem-se no menor aquecimento. A dispersão de resultados entre os diferentes modelos mede, de forma algo grosseira, o nível de incerteza dos resultados. Assim, por exemplo, no cenário B1 espera-se um aquecimento global um pouco inferior a 2°C, mas com modelos a prever níveis de aquecimento global entre 1 e 3°C.

Não é possível discutir a mudança climática sem falar de incerteza. Esta é inerente à construção dos cenários de emissões futuras, dependentes da evo-lução demográfica, económica e tecno-lógica. A esta enorme fonte de incerteza soma-se o nosso ainda relativo desco-nhecimento de alguns processos físicos

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Figura 4. Forçamento radiativo à superfície devido à acção humana desde 1750. Dados IPCC (Foster et al. 2007). Linhas horizontais indicam uma estimativa da incerteza associada a cada processo. As duas últimas barras representam uma estimativa do forçamento total devido à acção humana (Total Antropogénico, soma das barras anteriores) e do impacto da variação do output do Sol no mesmo período (Variação Solar).

CO2

P 169 Forçamento radioactivo

CH4

N20

CFCs

O3 (Est)

O3 (Trop)

Aerossol

Nuvens

Uso do Solo

Total Antrop.

Var. Solar

3,0 2,5 2,01,5 1,0 0,5 0 -0,5 -1,0 -1,5Wm-2

172 XXI, Ter Opinião

manente”, com poucos metros de es-pessura, no oceano Árctico. A presença deste gelo é um factor crucial do actual equilíbrio climático, uma vez que ele reflecte radiação solar nas latitudes ele-vadas contribuindo para arrefecer o pla-neta. Não menos importante, as calotes polares constituem um enorme reserva-tório de água, sendo claro que a sua re-dução teria consequências drásticas no nível do mar.

No momento actual, o gelo flutuante do Árctico apresenta grande vulnera-bilidade ao aquecimento, tendo sofri-do uma evolução muito mais rápida do que era esperado há pouco mais de uma década. Em 2007 foi atingido um mínimo histórico da área gelada no final do Verão, com a abertura à nave-gação da mítica passagem do Nordes-te. Em anos sucessivos as observações não apontam no sentido da sua recupe-ração (Figura 8), sendo expectável uma redução drástica do gelo de Verão nas próximas décadas.

A evolução previsível do gelo conti-nental, na Antárctica e na Gronelândia,

Figura 5. Temperatura média global no século XX (Boer et al 2000). A curva Parker/Jones (preto) representa as observações. A curva Control (verde) representa uma simulação sem aumento da concentração de CO

2, as outras curvas são resultado de diferentes modelos.

1900

0,8 ºC

170 Temp. Media global

0,6

0,4

0,2

0

-0,2

1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990

Parker/Jones

GHG+Asol 1

GHG+Asol 3

Control

GHG+Asol 2

Não é possível discutir a mudança climática sem falar de incerteza. Esta é inerente à construção dos cenários de emissões futuras, dependentes da evolução demográfica, económica e tecnológica. A esta enorme fonte de incerteza soma-se o nosso ainda relativo desconhecimento de alguns processos físicos cruciais

cruciais. Dentro destes destacam-se os processos associados à física das nu-vens e do gelo polar.

o papel das nuvensEnquanto a concentração de CO2

na atmosfera é simples, distribuindo--se este em proporções quase constan-tes em toda a homosfera (primeiros 100 km de atmosfera, que contém mais de 99.9999% da massa total), o outro elemento decisivo do equilíbrio climáti-co, a água, apresenta uma distribuição muito heterogénea, podendo apresen-tar-se na fase gasosa ou como nuvens (de gotículas ou cristais de gelo). As nuvens têm um papel decisivo no equi-líbrio climático, afectando quer a inten-sidade do efeito de estufa, quer o albedo planetário. Qualitativamente, sabemos que as nuvens baixas contribuem para o arrefecimento da Terra, enquanto as nuvens altas contribuem para acentuar o efeito de estufa.

A interacção entre as nuvens e o efeito de estufa é um tema de investiga-ção actual. As simulações recentes com modelos climáticos indicam que elas não contribuem para alterar o sinal da resposta planetária, i.e., num mundo com mais CO

2 (e outros gases de estu-fa não condensantes) não se prevê um aumento da nebulosidade baixa que compense a intensificação do efeito de estufa. No entanto, o assunto não está encerrado e a Figura 4 sugere que as nuvens atenuaram o aquecimento glo-bal já realizado.

o problema do gelo polarUm segundo factor de incerteza, este

associado à água sobre a superfície, é a resposta do gelo polar ao aquecimento global. Este gelo encontra-se na forma de calotes polares sobre a Antárctica e a Gronelândia, com uma profundidade que pode atingir alguns quilómetros, e de plataformas de gelo flutuante “per-

temasciência

XXI, Ter Opinião 173

é muito mais incerta. Os modelos climá-ticos actualmente validados não repre-sentam de forma detalhada a evolução destes sistemas criosféricos, não sendo possível pôr de parte a possibilidade de uma evolução rápida, em décadas ou poucas centenas de anos. Os riscos envolvidos numa evolução desse tipo são extremamente elevados, visto que o gelo existente na Gronelândia é sufi-ciente para fazer subir o nível do mar em cerca de sete metros e o gelo da An-tárctica é 10 vezes mais volumoso. Em face destes riscos, as estimativas divul-gadas pelo IPCC em 2007, de subida do nível do mar inferior a 1 metro em 2100, podem ser consideradas modestas.

As preocupações com a estabilidade do gelo na Gronelândia, unanimemen-te considerada como mais vulnerável ao aquecimento global, estiveram por detrás do estabelecimento de um ob-jectivo climático pela União Europeia, aceite por muitos outros parceiros, de limitar o aquecimento global a um va-lor inferior a 2°C, considerado nalguns estudos como o limite superior para a manutenção de uma Gronelândia gela-

da. De acordo com os modelos actual-mente disponíveis, tal objectivo exigiria que a concentração atmosférica de CO

2

não ultrapassasse as 450 ppm (com 280 ppm em 1800, 390 ppm em 2010), valor que neste momento se presenta como praticamente irrealista.

Variabilidade, forçamento e predictabilidade

Existe ainda uma dificuldade mais fundamental da discussão climática, que resulta da complexidade. Apren-demos com os trabalhos de Lorenz, na Meteorologia, e de outros, que os sis-temas complexos tendem a apresentar comportamentos não lineares, carac-terizados por oscilações livres caóti-cas, não previsíveis a longo prazo. Tal comportamento limita, por exemplo, a nossa capacidade de previsão meteoro-lógica útil a pouco mais de uma semana.

Uma análise superficial das conse-quências da não linearidade poderia convencer-nos de que a previsão cli-mática é um objectivo inatingível, e que estaríamos condenados a discutir toda a evolução climática de uma forma algo confusa, como um resultado de oscila-ções próprias de um sistema mal com-preendido. Felizmente, essa conclusão não é correcta. De facto, a Figura 2, mostra que, pelo menos na escala tem-poral dos milhares de anos, existe pre-dictabilidade para o clima médio.

Do ponto de vista matemático, a pre-visão meteorológica e a previsão climáti-ca, são problemas distintos. A primeira é um problema dominado pelas condições iniciais, sabendo-se que as incertezas inevitáveis nessas condições se tradu-zem num crescimento exponencial do erro de previsão. Para a segunda, as con-dições iniciais têm um papel secundário, sendo mais importante a definição das outras “condições fronteira” (radiação incidente, composição atmosférica).

Na simulação climática estamos in-teressados em prever o estado médio do sistema e não sucessões particulares de

Figura 6. Emissões de gases de estufa em diferentes cenários climáticos (B1, A1T, etc). Figura do relatório síntese do IPCC (2007, www.ipcc.ch).

Figura 7. Evolução da temperatura média global no século XXI em diferentes cenários climáticos (B1, A1T, etc). Figura do relatório síntese do IPCC (2007, www.ipcc.ch).

180 Gigatoneladas CO2 - eq/ano

160

140

120

100

80

60

40

20

0

2000 2020 2040 2060 2080 2100

Post-SRES range (80%)

Post-SRES range (max)

Post-SRES range (min)

A1Fl

A1BB2A1T

B1

A2

4,0 ºC

P 171 Global surface warming

3,0

2,0

1,0

0

-1,0

1900 2000 2100

Século XX

Ano 2000Concentrações constantes

A1B

B1

A2

XXI akzidenz.indd 173 11/11/10 13:38

174 XXI, Ter Opinião

estados instantâneos. O estado médio ajusta-se ao forçamento externo (radia-ção, gases de estufa), com um tempo de resposta que pode ser alargado. Resulta deste facto o ser em geral não científico, ou até demagógico, utilizar acontecimentos pontuais particulares, por exemplo uma onda de calor ou um inverno anómalo, como confirmação ou infirmação de uma teoria particular da evolução climática.

A complexidade do sistema climáti-co pode ser “dissecada” com identifica-ção de diferentes processos distintos de feedback (realimentação), um conceito desenvolvido em especial pela engenha-ria no estudo de sistemas de controlo. Processos de feedback negativo são, por exemplo, a base dos termostatos pre-sentes em todos os frigoríficos. Pelo contrário, os processos de feedback po-sitivo são a receita certa para respos-tas catastróficas em muitos sistemas. Consideremos de novo as oscilações glaciares representadas na Figura 4. Tudo indica que essas oscilações são controladas por variações diminutas da radiação solar devidas aos ciclos de Milankovic, fortemente amplificadas por um feedback positivo resultante do aumento da concentração de CO

2 e de outros gases de estufa. Na evolução recente, a concentração de CO2 é o re-sultado directo da actividade humana, actuando a uma taxa muito mais rápida do que as variações naturais registadas.

Ideologia, política e ciênciaCertas áreas de ciência estimulam

inevitavelmente apreciações ideológi-cas e políticas. Em parte, isso resulta da relevância dessas áreas para a vida humana. A mudança climática tem essas características.

De facto, as ideias actualmente do-minantes na comunidade das ciências do clima, aqui expostas, no sentido de acreditar que a alteração da composi-ção atmosférica já em curso se tradu-zirá num reforço do efeito de estufa, com subida da temperatura média do planeta, eram minoritárias até à déca-da de 1980. Os mecanismos básicos já eram bem conhecidos, mas faltavam

Figura 8. Evolução do gelo flutuante no Árctico (2011, National Snow and Ice Data Center, nsidc.org).

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Milhões de km2

Jun Jul Ago Set Out Nov

Desvio padrão2010

2007

20082011

Média 1979 - 2000

temasciência

XXI, Ter Opinião 175

Agradecimentos:O presente texto inclui algum material escrito para um artigo recentemente publicado pelo mesmo autor (Miranda, 2011, “Compreender a Mudança Climática”, Razão activa, Fev. 2011, 47-59).

Leituras sugeridas:O American Institute of Physics disponibiliza informação detalhada, cuidadosamente referenciada, da história das teorias da mudança climática em www.aip.org/history/climate/co2.htmOs documentos do IPCC (Intergovernmental Pannel for Climate Change) estão integralmente disponíveis em www.ipcc.ch. O relatório do Working Group 1 contém uma review, actualizada em 2007, do estado da arte da ciência do clima. O primeiro estudo da mudança climática em Portugal foi publicado pela Gradiva: Santos FD, Miranda PMA (eds.), 2006, Alterações climáticas em Portugal: cenários, impactos e medidas de adpatação (Projecto SIAM II), Gradiva, 506 pp.

Alguns documentos históricos muito interessantes, disponíveis online:Arrhenius, Svante (1896). “On the Influence of Carbonic Acid in the Air Upon the Temperature of the Ground”, Philosophical Magazine 41: 237-76. http://wiki.nsdl.org/index.php/PALE:ClassicArticles/GlobalWarming/Article4 Ekholm, Nils (1901). “On the Variations of the Climate of the Geological and Historical Past and Their Causes”, Quarterly J. Royal Meteorological Society, 27: 1-61. http://wiki.nsdl.org/index.php/PALE:ClassicArticles/GlobalWarming/Article5 Callendar, G.S. (1938). “The Artificial Production of Carbon Dioxide and Its Influence on Climate”, Quarterly J. Royal Meteorological Society, 64: 223-40. http://wiki.nsdl.org/index.php/PALE:ClassicArticles/GlobalWarming/Article6Fourier, Joseph (1824). “Remarques Générales sur les Températures du Globe Terrestre et des Espaces Planétaires.” Annales de Chemie et de Physique, 27: 136-67, Translation by Ebeneser Burgess, “General Remarks on the Temperature of the Earth and Outer Space”, American Journal of Science, 32: 1-20 (1837). http://wiki.nsdl.org/index.php/PALE:ClassicArticles/GlobalWarming/Article1 Tyndall, John (1861). “On the Absorption and Radiation of Heat by Gases and Vapours”, Philosophical Magazine, 4 (22): 169-94, 273-85. http://wiki.nsdl.org/index.php/PALE:ClassicArticles/GlobalWarming/Article3

dois ingredientes essenciais para a acei-tação dessas ideias: modelos climáticos credíveis, capazes de suportar uma con-frontação com os dados experimentais, e observações claras de aquecimento global observado. Estas duas condições foram, pelo menos parcialmente, satis-feitas nas últimas décadas, tornando a proposta avançada por Arrhenius há mais de um século num modelo concep-tual credível para a actual evolução do clima global.

A incerteza, é claro, não deixou de existir. Os modelos climáticos actual-mente existentes estão longe de repre-sentar toda a complexidade do planeta Terra (e sua interacção com o Sol), sendo necessário um grande esforço de inves-tigação no seu desenvolvimento e vali-dação. A relevância económica e social das questões em jogo justifica claramen-te esse esforço. A médio prazo, talvez em 20 ou 30 anos, as observações vão tam-bém encarregar-se de esclarecer muitas das dúvidas actualmente existentes.

Entretanto é preciso ir tomando decisões. O bom senso indica-nos que devemos apoiar decisões graduais, que ampliem a nossa capacidade de adap-tação futura e que tenham justificações múltiplas. Por exemplo apostar na inde-pendência energética (de Portugal, da Europa), baseada em energia renovável, é sempre uma boa decisão, mesmo que a mudança climática seja mais moderada do que os nossos modelos indicam.

O objectivo da ciência é explicar o mundo. Não basta descrever. A explica-ção requer uma teoria verificável, isto é que faça previsões passíveis de compa-ração com resultados experimentais. Os actuais modelos físicos do sistema climá-tico, com todas as suas imperfeições, en-quadram-se, pelo menos genericamente, nessa definição. Pelo contrário, atribuir a evolução climática recente a variabili-dade inexplicada (e portanto não verifi-cável) é muito menos satisfatório.

Os modelos climáticos existentes estão longe de representar toda a complexidade da Terra

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