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 Nietzsche: a transvaloração dos valores O pensamento de Nietzsche (1844-1900) se orienta no sentido de recuperar as forças inconscientes, vitais, instintivas subjugadas pela razão durante séculos. Para tanto, critica Sócrates por ter encaminhado pela primeira vez a reflexão moral em dir ão ao controle rac ional da s pai xõe s. Seg und o Nie tz sche, na sce aí o hom em desconfiado de seus instintos, tendo essa tendência culminado com o cristianismo, que acelerou a "domesticação" do homem. Em diversas obras, como Sobre a genealogia da moral, Para além do bem e do mal e Crepúsculo dos ídolos, em estilo apaixonado e mordaz, Nietzsche faz a análise histórica da moral e denuncia a incompatibilidade entre esta e a vida. Em outras  palavras, o homem, sob o domínio da moral, se enfraquece, tornando-se doentio e culpado.  Nietzsche relembra a Grécia homérica, do tempo das epopéias e das tragédias, co ns id er an do -a co mo o mo me nt o em qu e pr ed ominam os ve rdadei ros va lores ari st ocr áti co s, quando a vir tu de res ide na for ça e na pot ên cia , sendo at ributo do guerreiro belo e bom, amado dos deuses.  Nessa perspectiva, o inimigo não é mau: "Em Homero, tanto o grego quanto o troiano são bons. Não passa por mau aquele que nos inflige algum dano, mas aquele que é desprezíve l". Ao fazer a crítica da moral tradicio nal, Nietzsche preconiza a "transvaloração de todos os valores". Denuncia a falsa moral, "decadente", "de rebanho", "de escravos", cu jo s va lo res seri am a bo ndade, a hu mi ldade, a pi ed ad e e o amor ao pr óx imo. Contrapõe a ela a moral "de senhores", uma moral positiva que visa à conservação da vida e dos seus instintos fundamentais. A moral de senhores é positiva, porque baseada no sim à vida, e se configura sob o signo da plenitude, do acréscimo. Por isso se funda na capacidade de criação, de invenção, cujo resultado é a alegria, conseqüência da af ir ma çã o da po nc ia. O home m qu e cons eg ue su pe ra r-s e é o Su pe r-h omem (Ubermensch, expressão alemã que significa "além-do-homem", "sobre-humano", "que transpõe os limites do humano"). À moral aristocrática, moral de senhores, que é sadia e voltada para os instintos da vida, Nietzsch e contrapõe o pensamen to socráticopl atônico (que provoca a ruptura entre o trágico e o racional) e a tradição da religião judaico-cristã. A moral que deriva daí é a moral de escravos, moral decadent e porque baseada na tentati va de subjugação dos instintos pela razão, O homem-fera, animal de rapina, é transformado em animal doméstico ou cordei ro. A moral plebéia estabele ce um sistema de juízos que consid era o bem e o mal valores metafísicos transcendentes, isto é, independentes da situação concreta vivida pelo homem. A moral de escravos nega os valores vitais e resulta na passividade, na procura da paz e do repouso. O homem se torna enfraquecido e diminuído em sua potência. A alegria é transformada em ódio à vida, o ódio dos impotentes. A conduta humana, orie nt ada pelo ideal ascético, to rna-se ma rcad a pe lo re ssenti me nt o e pela consciência. O ressentimento nasce da fraqueza e é nocivo ao fraco. O homem ressentido, inc apa z de esq uec er, é co mo o di spé pt ico: fica "en ven ena do" pe la sua inv eja e impotênci a de vingança . Ao contrário, o homem nobre sabe "digerir" suas experiências, e esquecer é uma das condições de manter-se saudável. A má consciência ou sentimento de culpa é o ressentimento voltado contra si mesmo, daí fazendo nascer a noção de  pecado, que inibe a ação.

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Nietzsche: a transvaloração dos valores

O pensamento de Nietzsche (1844-1900) se orienta no sentido de recuperar asforças inconscientes, vitais, instintivas subjugadas pela razão durante séculos. Paratanto, critica Sócrates por ter encaminhado pela primeira vez a reflexão moral em

direção ao controle racional das paixões. Segundo Nietzsche, nasce aí o homemdesconfiado de seus instintos, tendo essa tendência culminado com o cristianismo, queacelerou a "domesticação" do homem.

Em diversas obras, como Sobre a genealogia da moral, Para além do bem e domal e Crepúsculo dos ídolos, em estilo apaixonado e mordaz, Nietzsche faz a análisehistórica da moral e denuncia a incompatibilidade entre esta e a vida. Em outras

  palavras, o homem, sob o domínio da moral, se enfraquece, tornando-se doentio eculpado.

 Nietzsche relembra a Grécia homérica, do tempo das epopéias e das tragédias,considerando-a como o momento em que predominam os verdadeiros valoresaristocráticos, quando a virtude reside na força e na potência, sendo atributo do

guerreiro belo e bom, amado dos deuses. Nessa perspectiva, o inimigo não é mau: "Em Homero, tanto o grego quanto o

troiano são bons. Não passa por mau aquele que nos inflige algum dano, mas aquele queé desprezível".

Ao fazer a crítica da moral tradicional, Nietzsche preconiza a "transvaloração detodos os valores". Denuncia a falsa moral, "decadente", "de rebanho", "de escravos",cujos valores seriam a bondade, a humildade, a piedade e o amor ao próximo.Contrapõe a ela a moral "de senhores", uma moral positiva que visa à conservação davida e dos seus instintos fundamentais. A moral de senhores é positiva, porque baseadano sim à vida, e se configura sob o signo da plenitude, do acréscimo. Por isso se fundana capacidade de criação, de invenção, cujo resultado é a alegria, conseqüência daafirmação da potência. O homem que consegue superar-se é o Super-homem(Ubermensch, expressão alemã que significa "além-do-homem", "sobre-humano", "quetranspõe os limites do humano").

À moral aristocrática, moral de senhores, que é sadia e voltada para os instintosda vida, Nietzsche contrapõe o pensamento socráticoplatônico (que provoca a rupturaentre o trágico e o racional) e a tradição da religião judaico-cristã. A moral que derivadaí é a moral de escravos, moral decadente porque baseada na tentativa de subjugaçãodos instintos pela razão, O homem-fera, animal de rapina, é transformado em animaldoméstico ou cordeiro. A moral plebéia estabelece um sistema de juízos que considerao bem e o mal valores metafísicos transcendentes, isto é, independentes da situação

concreta vivida pelo homem.A moral de escravos nega os valores vitais e resulta na passividade, na procurada paz e do repouso. O homem se torna enfraquecido e diminuído em sua potência. Aalegria é transformada em ódio à vida, o ódio dos impotentes. A conduta humana,orientada pelo ideal ascético, torna-se marcada pelo ressentimento e pela máconsciência.

O ressentimento nasce da fraqueza e é nocivo ao fraco. O homem ressentido,incapaz de esquecer, é como o dispéptico: fica "envenenado" pela sua inveja eimpotência de vingança. Ao contrário, o homem nobre sabe "digerir" suas experiências,e esquecer é uma das condições de manter-se saudável. A má consciência ou sentimentode culpa é o ressentimento voltado contra si mesmo, daí fazendo nascer a noção de

 pecado, que inibe a ação.

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O ideal ascético nega a alegria da vida e coloca a mortificação como meio paraalcançar a outra vida num mundo superior, do além. Assim, as práticas de altruísmodestroem o amor de si, domesticando os instintos e produzindo gerações de fracos. "É

 por isso que contra o enfraquecimento do homem, contra a transformação de fortes emfracos - tema constante da reflexão nietzschiana - é necessário assumir uma perspectiva

além de bem e mal, isto é, "além da moral". Mas, por outro lado, para além de bem emal não significa para além de bom e mau. A dimensão das forças, dos instintos, davontade de potência, permanece fundamental. "O que é bom? Tudo que intensifica nohomem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência. O que émau? Tudo que provém da fraqueza."

Freud: as ilusões da consciência

As crenças racionalistas do poder que o homem teria de controlar os desejos etornar-se o centro de suas próprias decisões foram seriamente abaladas pela teoria

 psicanalítica desenvolvida por Sigmund Freud (1856-1939).Ao levantar a hipótese do inconsciente, Freud descobre o mundo oculto da vida

das pulsões, dos desejos, da energia primária da sexualidade e agressividade que seencontram na raiz de todos os comportamentos humanos, mesmo daqueles que à

 primeira vista não aparecem como sendo de natureza sexual.Para Freud, o ego, enquanto instância consciente da personalidade, é de tal

forma pressionado por conflitos entre as forças pulsionais (vindas do id) e as regrassociais (introjetadas pelo superego), que nem sempre pode agir equilibradamente. Aoexplicar os mecanismos da repressão, Freud revela que o neurótico não age plenamenteconsciente dos determinantes da sua ação. Ora, se a moral supõe a autonomia, nadamais distante disso do que o comportamento resultante da repressão dos impulsos.

 Não resta dúvida de que o amplo desenvolvimento da psicanálise levou a umanova concepção de moral cada vez mais orientada na direção do homem concreto, comênfase nos valores da vida e da espontaneidade, o que certamente ajudou na superaçãode preconceitos e comportamentos hipócritas, bem como na valorização do corpo e das

 paixões.Se por um lado isso foi saudável, pois a repressão sempre desencadeia formas

doentias de comportamento, por outro dificultou para muitos (embora não-propriamente para Freud e para os psicanalistas) a compreensão clara de que o reconhecimento e ocontrole dos desejos (e não a repressão deles) é indispensável pata o adentramento nomundo adulto e a realização da vida moral.

E nesse sentido que o próprio Freud termina a quarta lição do seu famoso Cincolições de psicanálise com a seguinte observação: "Se quiserem, podem definir otratamento psicanalítico como simples aperfeiçoamento educativo destinado a vencer osresíduos infantis".

Essa educação consiste na aceitação do desejo, na sua recusa consciente, ou noadiamento, além das formas da sublimação.

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