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ANA PAULA RICCI ESCOLHA E SELETIVIDADE EM NIETZSCHE: O TORNAR-SE NOS ÚLTIMOS ESCRITOS Programa de Pós-Graduação em Filosofia Universidade São Judas Tadeu São Paulo – 2007

Ricci, Ana_escolha e Seletividade Em Nietzsche

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nietzsche

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  • ANA PAULA RICCI

    ESCOLHA E SELETIVIDADE EM NIETZSCHE:

    O TORNAR-SE NOS LTIMOS ESCRITOS

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Universidade So Judas Tadeu So Paulo 2007

  • 2

    ANA PAULA RICCI

    ESCOLHA E SELETIVIDADE EM NIETZSCHE:

    O TORNAR-SE NOS LTIMOS ESCRITOS

    Dissertao apresentada como exigncia parcial para obteno do grau de Mestre em Filosofia comisso examinadora da Universidade So Judas, sob a orientao da Prof. Dr. Yolanda Gloria Gamboa Muoz.

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Universidade So Judas Tadeu So Paulo 2007

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    Ricci, Ana Paula Escolha e seletividade em Nietzche: o tornar-se nos ltimos

    escritos /Ana Paula Ricci - So Paulo, 2007.

    XX f. 134 : 30 cm

    Dissertao (Mestrado em Filosofia) Universidade So Judas Tadeu, So Paulo, 2007.

    Orientador: Prof. Dra. Yolanda Gloria Gamboa Munz.

    1. Escolha. 2. Seletividade. 3. Nietzche, Friedrich Wilhelm, 1844 -1900. I. Ttulo

    Ficha catalogrfica: Elizangela L. de Almeida Ribeiro - CRB 8/6878

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    Para

    Geni e Roque

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a CAPES pela bolsa que possibilitou a concluso desse mestrado e a todos os professores que sempre acreditaram no meu trabalho filosfico e com os quais eu sempre pude contar com comentrios, correes e discusses que muito contriburam para a elaborao dessa dissertao: Andr Theodor Fuhrmann, Cloder Rivas Martos, Ernesto Maria Giusti, Floriano Jonas Cesar, Jacira de Freitas, Jorge Rafael Barrientos Renard, Marcio Benchimol, Mario Ariel Gonzalez Porta, Maurcio de Carvalho Ramos, Paulo Jonas de Lima Piva e Plnio Junqueira Smith.

    Meu agradecimento especial ao Prof. Dr. Eduardo Brando, que aceitou participar da banca examinadora dessa dissertao mesmo sem conhecer meu trabalho.

    Ao professor e amigo Alberto Ribeiro de Barros por todas as conversas, por todo apoio, por todo carinho.

    Ao implacvel amigo Lucio Loureno Prado que teceu todas as crticas que somente as melhores e mais corajosas amizades ousariam.

    s sugestes, elogios, discordncias e at mesmo s provocaes filosficas ouvidas do amigo e professor Helio Sales Gentil. Obrigada pela voz atenciosa em todos os momentos.

    Minha eterna gratido minha professora e amiga Yolanda Gloria Gamboa Muoz que se desdobrou para orientar este trabalho, em todos os horrios possveis e impossveis, na Universidade So Judas ou mesmo na sua casa, participando efetivamente de tudo, em todas as horas, em todas as dvidas. Mais do que orientar um trabalho acadmico, ela me ensinou a caminhar pelas sendas das filosofias e a enfrentar os desafios que elas trazem.

    s queridas e sempre atenciosas, prestativas e encorajadoras Simone Sevilha Riva e Mariselma Alencar da Silva.

    Aos meus amigos da UBS Burgo Paulista, da Superviso Tcnica de Sade Ermelino Matarazzo (especialmente Tnia), do CEO Po, do Hospital Psiquitrico Pinel que tantas vezes souberam compreender e perdoar minhas ausncias no trabalho por conta dessa dissertao.

    A tantos amigos que vivem reclamando da minha falta de tempo: Paulo, Nia, Rose, Vincius, Letcia, Hugo, Paula, Douglas, Cilene, Marcelo, Jimmy, Kalil, Silvana, Wilma, Camila, Sidney, Vita, Sheine, rico, Cloder, Sica, Milton, Vanda, Csar, Glauton, Emlia, Carlo, Pan, Caio, Stela, Marcinha, Anglica, Natlia, Wendel e tantos outros que ainda bem que seja assim no caberiam aqui.

    Meu agradecimento imenso ao Dida por me agentar todo esse tempo cumprindo essa tarefa filosfica, sempre com tanto carinho e tanta compreenso.

    Meu amor infinito a Geni, Roque, Dani, Samantha e Gabriel, meus familiares queridos que, mesmo privados por diversas vezes da minha presena, souberam, sempre cheios de carinho e compreenso, apoiar todos os meus passos desde que a filosofia entrou nas nossas vidas...

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    BANCA EXAMINADORA

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    RESUMO

    Em 1888, Nietzsche afirma ser um princpio seletivo. A partir desta auto-

    descrio, o presente trabalho tenciona mapear escolha e seletividade no pensamento

    nietzscheano, especialmente nos escritos do denominado terceiro perodo.

    Neste percurso vislumbramos determinadas problemticas relacionadas: foras,

    ressentimento, gosto, moral do rebanho, legado de Scrates, imprudncia entre outras.

    Assim, procuramos esboar, explicitar e, em determinadas ocasies, analisar possveis

    relaes destas problemticas com escolha e seletividade.

    No que tange filosofia, se dermos assentimento ao perspectivismo

    nietzscheano, escolher e selecionar se transformariam em instrumentos orientadores dos

    filsofos pois, segundo Nietzsche, os discursos destes materializariam a perspectiva que

    elegeram para as interpretaes.

  • 8

    ABSTRACT

    In 1888, Nietzsche says he is a selectivity principle. As of this self-description,

    the present text intends to map choice and selectivity in the Nietzsches thought,

    especially inside the texts of the named third period.

    In this way, we could find another problematics related: forces, resentment,

    taste, the troop ethics, the Socrates legacy, imprudence among others. Thus, we try to

    make explicit, analyze and delineate the possible relationships of this problematic with

    choice and selectivity.

    About philosophy, if we accept to the Nietzsches perspectivism, to chose and to

    select would became in orientate instruments of the philosophers, in accord with

    Nietzsche, because their discourses, would reflect the perspective that they elected for

    their interpretations.

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    SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................................ 10

    CAP. I PRINCPIO SELETIVO............................................................................... 15

    CAP. II PROBLEMTICA DAS FORAS............................................................. 35

    CAP. III LEGADO DE SCRATES E MORAL DO REBANHO........................ 68

    CAP. IV INSTINTO E GOSTO................................................................................. 86

    ADVERTNCIA ....................................................................................................... 108

    APNDICE: ESCOLHA E SELETIVIDADE NOS DISCURSOS DE ZARATUSTRA E NO ETERNO RETORNO?...................................................... 111

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..................................................................... 130

  • 10

    INTRODUO

    Um homem bem logrado faz bem a nossos sentidos: talhado de uma madeira que dura, delicada e bem cheirosa ao mesmo tempo. S encontra sabor naquilo que lhe compatvel; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do compatvel ultrapassada. Adivinha meios de cura contra danos, utiliza acasos ruins em sua vantagem; o que no o derruba, torna-o mais forte. Ele faz instintivamente, de tudo aquilo que v, ouve, vive, uma soma: ele um princpio seletivo, muito ele deixa de lado. Est sempre em sua companhia, quer esteja com livros, homens ou paisagens: honra ao escolher, ao abandonar, ao confiar. Reage a todos os estmulos lentamente, com aquela lentido que uma longa cautela e um orgulho proposital aprimoraram nele examina o estmulo que se aproxima dele, est longe de ir ao seu encontro. No acredita nem em felicidade nem em culpa: fica quite consigo, com outros, sabe esquecer forte o bastante para que tudo tenha de lhe sair da melhor maneira. Pois bem, eu sou o reverso de um dcadent: pois acabo de me descrever.1

    Assim Nietzsche se auto-descreve no Ecce Homo. Ele caracteriza a si mesmo

    como um fazer instintivo, uma soma, um princpio seletivo. Tal descrio, num texto

    onde se dirigiria, com a mais difcil exigncia que jamais lhe fora feita2, a um

    interlocutor, no mnimo, imodesto como a humanidade, nos incitaria a postular o grande

    valor atribudo por Nietzsche ao escolher, ao selecionar. Selecionar que, como

    tentaremos explicitar posteriormente, permearia tambm o mbito da filosofia. Digamos

    de partida que, ao descrever como algum se torna o que (wie man wird, was man ist),

    ele enfatizaria em si mesmo essa capacidade de seleo.

    1 Da ein wohlgeratener Mensch unsern Sinnen wohltut: da er aus einem Holze geschnitzt ist, das hart, zart

    und wohlriechend zugleich ist. Ihm schmeckt nur, was ihm zutrglich ist; sein Gefallen, seine Lust hrt auf, wo daqs Ma des Zutrglichen berschritten wird. Er errt Heilmittel gegen Schdigugen, er ntzt schlimme Zuflle zu seinem Vorteil aus; was ihn nicht umbringt, macht ihn strker. Er sammelt instinktiv aus allem, was er sieht, hrt, erlebt, seine Summe: er ist ein auswhlendes Prinzip, er lt viel durchfallen. Er ist immer in seiner Gesellschaft, ob er mit Bchern, Menschen oder Landschaften verkehrt: er ehrt, indem er whlt, indem er zult, indem er vertraut. Er reagiert auf alle Art Reize langsam, mit jener Langsamkeit, die eine lange Vorsicht und ein gewollter Stolz ihm angezchtet haben er prft den Reiz, der herankommt, er ist fern davon, ihm entgegenzugehn. Er glaubt weder an Unglck noch an Schuld: er wird fertig mit sich, mit anderen, er wei zu vergessen er ist stark genug, da ihm alles zum Besten gereichen mu. Wohlan, ich bin das Gegenstck eines dcadent: denn ich beschrieb eben mich. - NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou to sbio, 2 (Abril Cultural, p. 371 Insel Verlag, p. 43-44) 2 In voraussicht, dass ich ber kurzem mit der schwersten Forderung an die Menschheit herantreten mu, die

    je an sie gestell wurde, scheint es mir uner llich, zu sagen, wer ich bin. - NIETZSCHE. Ecce Homo, Prlogo, 1 (Abril Cultural, p. 365 Insel Verlag, p. 35)

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    Se retomarmos ao perspectivismo3 indicado por este pensador, as escolhas

    realizadas pelos filsofos, tal como os concebe Nietzsche, poderiam ser tomadas como

    determinantes das solues tericas que cada um deles vir a explicitar, mapear.

    Nesse sentido, seria possvel postular que, fossem outras suas escolhas, obteriam outras

    concluses. Tal perspectivismo, exporia a fragilidade, a inconsistncia de postular

    verdades fundamentais sobre o mundo, passveis de serem descobertas e s quais,

    fatalmente, todos concederiam seu assentimento. Nas palavras de Deleuze, ao ideal do

    conhecimento e descoberta do verdadeiro, Nietzsche substitui a interpretao e a

    avaliao.4 Ficaria, assim, explicitada uma ntima relao entre a escolha e aquilo que

    os pensadores vieram a produzir atravs dos sculos. A partir dessa perspectiva

    nietzscheana, aquilo que outrora era tomado como a verdade universal apresentada

    por um determinado filsofo sofreria uma transformao, pois esta suposta verdade

    estaria sujeita quilo que o pensador escolheu em detrimento daquilo que deixou de

    lado. Tais concepes seriam um mero reflexo, uma simples derivao da seleo

    realizada, numa palavras, seriam mais uma perspectiva dentre tantas outras possveis.

    Uma vez extinta a aspirao ao absoluto, ao universal, o filsofo, segundo nova

    concepo nietzscheana, desempenharia, talvez, o papel daquele que meramente sugere

    uma interpretao, daquele que simplesmente oferece um certo tipo de diagnstico, por

    assim dizer. Tal interpretao sugerida, por mais precisa, cuidadosa e detalhada que

    3 Apontamos, em dois momentos, a nfase desse experimentar diversas perspectivas: no primeiro aforismo da

    seo Por que sou to sbio do Ecce Homo e o aforismo nmero 211 de Para Alm de bem e mal: ele prprio [o filsofo], talvez, tem de ter sido crtico e ctico e dogmtico e historiador e alm disso poeta e colecionador e viajante e decifrador de enigmas e moralista e visionrio e esprito livre e quase tudo, para percorrer o circuito de valores e de sentimentos de valor humanos e, com mltiplos olhos e conscincias, poder olhar, da altura para toda distncia, da profundeza para toda altura, do canto para toda amplido. NIETZSCHE. Para Alm de bem e mal. Ns, eruditos, 211 (Abril Cultural, p. 284) 4 DELEUZE, G. Nietzsche, p. 17.

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    pudesse vir a ser, seria somente mais uma dentre outras, posto que seria fruto de uma

    escolha contingente.

    Admitindo tal concepo de escolha e relacionando-a com um aspecto da prpria

    filosofia nietzscheana, por exemplo, com a morte de Deus5, poderamos supor a

    seletividade com um acento ainda maior no que tange ao tornar-se o que se presente

    Ecce Homo, pois, desprovidos deste Deus como uma espcie de justificativa para a

    ao, caberia unicamente a cada indivduo responder por suas escolhas que, em ltima

    instncia, definiriam aquilo no que cada um se tornou.6

    Generalizando, poderamos dizer que nas denominadas trs fases de sua

    produo filosfica, Nietzsche explicitaria a importncia da problemtica da escolha no

    mbito do pensar e do agir humanos, especialmente no que tange filosofia, conforme

    pretendemos indicar.

    Assim, no intuito de problematizar essa escolha e talvez mapear como opera a

    seletividade, nos deparamos com outras concepes nietzscheanas que, conforme

    procuraremos esboar no desenvolvimento desse trabalho, operam e/ou se entrecruzam

    com os objetos de nossa discusso.

    Nesse sentido, o presente trabalho pretende diagnosticar e recolher diversos

    aspectos deste escolher nos escritos de Nietzsche, delineando alguns cruzamentos entre

    escolhas, instintos, foras, gosto e paralelamente, desvelar uma possvel transformao:

    5 Cf. NIETZSCHE. Gaia Cincia, 125 Der tolle Mensch (Guimares Editores, p. 140-141)

    6 Outros autores talvez tenham recolhido tal concepo nietzscheana e tambm valorizado bastante a escolha

    em seus escritos: ao escolher filosofia, no me lancei na literatura; ao escolher Nietzsche, no me acerquei de Sartre; ao escolher o comentrio , no me dediquei interpretao. Minhas escolhas no poderiam ser outras; se pudessem, teriam sido. Mais importante, porm, que apontar a obviedade, registrar essa idia: a escolha no se faz s pelo que contempla mas pelo que recusa. Afinal, decidimos muito menos do que supomos ou imaginamos decidir. Essa uma das minhas convices. A primeira que aqui tenho de assumir. Quo longe nos achamos do fazer filosfico quando imersos em convices! o que nos ensina o senso comum da filosofia. - MARTON, Scarlett. A Irrecusvel Busca do Sentido, p. 23

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    sucesses de escolhas que se tornariam capacidade seletiva no ltimo perodo da

    filosofia de Nietzsche, especialmente no Ecce Homo, a derradeira produo que

    antecede seu colapso.

    Nosso trabalho se compe de quatro captulos e um apndice.

    No primeiro captulo discutimos alguns dos possveis sentidos em que pode estar

    sendo empregada a palavra princpio (Prinzip) na auto-descrio que Nietzsche

    apresenta no Ecce Homo e, com este intuito, tambm oferecemos uma breve anlise das

    noes de unidade, linguagem e corpo no pensamento nietzscheano.

    No segundo captulo esboamos as relaes entre as problemticas das foras e

    do ressentimento e escolha e capacidade de seleo e, para isso, examinamos outros

    aspectos da filosofia de Nietzsche que estariam vinculados a foras e ressentimento tais

    como: vida, realidade, esquecimento, memria, conscincia, imprudncia e grande

    sade.

    No terceiro captulo investigamos as implicaes do legado de Scrates e a

    moral do rebanho na possibilidade de escolher e seletividade da civilizao ocidental,

    uma vez que Nietzsche, nO Crepsculo dos dolos, atribuiria racionalidade socrtica

    nossa condio de civilizao sem escolha e aponta a moral do rebanho, especialmente

    na Genealogia da Moral e Alm de bem e mal, como mera reao (sem possibilidade de

    opo, portanto) diante da moral nobre.

    No ltimo captulo avaliamos como os instintos seriam indispensveis para

    garantir a possibilidade de escolha e como opera o gosto - talvez o instinto mais

    importante para a seletividade - na discriminao implicada no escolher. A partir das

    consideraes acerca do gosto, indicamos uma certa distino entre filosofia e cincia,

  • 14

    cujo surgimento remontaria aos primeiros escritos de Nietzsche, especialmente nA

    Filosofia na poca trgica dos gregos, com a relao etimolgica entre a palavra

    sbio e degustador ou homem do gosto mais apurado. Finalmente neste captulo, o

    Geschmack nietzscheano ainda suscita alguns questionamentos relativos a uma possvel

    seleo de leitores levada a cabo por Nietzsche.

    Por fim, no apndice esboamos anlises de dois aforismos de Assim falou

    Zaratustra Da viso e enigma e Das trs transmutaes - sob a perspectiva da

    seletividade e uma nota observando como a anlise feita por Deleuze do Eterno Retorno

    atribui, tambm a este aspecto da filosofia de Nietzsche, um carter eminentemente

    seletivo.

  • 15

    Preldio

    Ao observador fugaz, no se lhe oferecia nenhum detalhe chamativo. Aquele

    homem de estatura mdia; vestido de maneira muito simples, mas tambm muito cuidadosa,

    com seus traos sossegados e o cabelo castanho penteado para trs com simplicidade,

    facilmente poderia passar despercebido. As finas e extraordinariamente expressivas linhas

    da boca ficavam quase todas recobertas por um grande bigode cado para frente; tinha um sorriso suave, um modo prprio de falar e uma cautelosa e pensativa forma de caminhar,

    inclinando um pouco os ombros para frente; era difcil imaginar aquela figura em meio a

    uma multido tinha o selo do isolamento, da solido. Incomparavelmente belas e

    nobremente formadas, de modo que atraam para si o olhar sem querer, eram em Nietzsche as mos; delas, ele mesmo acreditava que delatavam seu esprito.

    Similar importncia concedia a seus ouvidos, muito pequenos e modelados com

    finura; deles dizia que eram os verdadeiros ouvidos para coisas no ouvidas. Uma linguagem autenticamente delatora falavam tambm seus olhos. Sendo meio cegos, no

    tinham, contudo, nada desse estar espreitando, desse piscar, dessa indesejvel impertinncia que surgem em muito mopes; antes pareciam ser guardies e conservadores de tesouros

    prprios, de segredos mudos que por nenhum olhar no convidado deviam ser tocados. A viso deficiente dava a seus traos um tipo muito especial de encanto, devido a que, em

    lugar de refletir impresses mutantes, externas, reproduziam somente aquilo que

    atravessava por seu interior. Quando se mostrava como era, no encanto de uma conversa a dois que o excitasse, ento, podia aparecer e desaparecer em seus olhos uma comovedora luminosidade: mas quando seu estado de nimo era sombrio, ento, a solido falava neles

    de maneira ttrica, quase ameaadora, como se viera de profundidades inquietantes...

    (Lou Von Salom vero de 1882 Nietzsche grvido de Zaratustra)

  • 16

    PRINCPIO SELETIVO (AUSWHLENDES PRINZIP)

    Como j dissemos, nos escritos nietzscheanos a escolha e a seletividade seriam

    preocupaes recorrentes7. Desde os textos de sua , assim posteriormente denominada,

    primeira fase, ele afirma que um apurado degustar e escolher, um significativo

    discernimento constitui, pois, segundo a conscincia do povo, a arte prpria do

    filsofo8. Mais de uma dcada e meia depois, este pensador descrever a si prprio

    como um princpio seletivo.9

    Um princpio em Nietzsche no poderia ser interpretado como um fundamento,

    posto que este pensador tece inmeras crticas a posies filosficas que procuram um

    alicerce seguro e aceito por todos, quer dizer, um algo universal que legitime suas

    pretensas concluses. Antes, tais princpios seriam denunciados como crenas

    travestidas de fundamentos universais. Assim, encontraramos nas verdades

    filosficas oferecidas pelos metafsicos nada mais que um saber a partir de crenas.10

    As oposies de valores, to amplamente aceitas pela filosofia tradicional, seriam

    produto da f e de convices filosficas profundamente arraigadas.11 Segundo

    Nietzsche, o prprio pensamento filosfico estaria includo entre as atividades

    7 Gostaramos de destacar que, embora geralmente os intrpretes tratem estas duas palavras como sinnimos

    no que tange problemtica aqui discutida, observamos que Nietzsche diferencia estas duas palavras: quando se refere quilo que usualmente traduzido por escolha, lana mo da palavra alem Wahl; quando trata de seletividade, utiliza a palavra Auswhl. Pensamos que tal diferenciao no deveria passar desapercebida, uma vez que se trata de um fillogo. 8 NIETZSCHE. Filosofia na poca trgica dos gregos, 3 (Abril Cultural, p. 33)

    9 NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou to sbio, 2 (Abril Cultural, p. 371 Insel Verlag, p. 43)

    10 Cf. NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 2 (Alianza Ed., p. 23

    Cia. das Letras, p. 10) 11

    NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 2 (Alianza Ed., p. 23 Cia. das Letras, p. 10)

  • 17

    instintivas, de modo que no caberia supor um antagonismo entre o consciente e o

    instintivo.12 Aquilo que a filosofia batiza de conhecimento, tencionando atingir uma

    universalidade inquestionvel, seria instrumento de um instinto diverso do impulso para

    o saber, pressuposto por muitos filsofos. Distinto de um mpeto cognoscitivo, operaria

    um impulso dominador, de modo que no haveria absolutamente nada de impessoal na

    atividade filosfica13. Assim, a filosofia mesma seria um instinto tirnico, seria a mais

    espiritual vontade de potncia, de criar o mundo, de ser causa prima.14 A despeito de

    toda pretenso de imparcialidade apregoada por um pensador, h um ponto no qual a

    convico do filsofo entra em cena15 inevitavelmente. Nem mesmo a lgica estaria

    a salvo de valoraes. Sua aparente imparcialidade absoluta encobriria exigncias

    fisiolgicas orientadas a conservar uma determinada espcie de vida.16 A prpria

    fsica, cuja pretenso fundamental explicar o mundo, no passaria de apenas mais uma

    interpretao possvel do mundo, pois at mesmo os raciocnios da fsica esto

    impregnados pela crena, a saber, a f nos sentidos.17

    Tais perspectivas, incitam um questionamento: no seria, talvez, justamente,

    porque sempre operam na filosofia (ou quaisquer outras produes do intelecto

    12 NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 3 (Alianza Ed., p. 25 Cia.

    das Letras, p. 11) 13

    NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 6 (Alianza Ed., p. 28 Cia. das Letras, p. 14) 14

    NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 9 (Alianza Ed., p. 31 Cia. das Letras, p. 15) 15

    NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 8 (Alianza, Ed., p. 29 Cia. das Letras, p. 14) 16

    NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 3 (Alianza Ed., p. 25 Cia. das Letras, p. 11) 17

    NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 14 (Alianza Ed., p. 37 Cia. das Letras, p. 20)

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    humano) tais interesses pessoais, tais convices, tal vontade de dominar que Nietzsche

    julgue to importante apresentar-se, dizer quem ele no Ecce Homo?

    Ao diagnosticar e admitir esta parcialidade inerente ao filosofar, estaramos

    reconhecendo um caminho outro, diferente daquele supostamente trilhado pelos cones

    da filosofia tradicional. No caberia mais a pretenso de universalidade, a busca de

    conceitos aos quais todos concederiam um assentimento inquestionvel, a procura de

    uma interpretao do mundo que fosse isenta. Diante das ponderaes de um pensador,

    seria lcito perguntar a quais interesses elas favorecem, quais convices fortalecem,

    dito de outro modo, a que moral elas desejam chegar18. Nietzsche denuncia certa

    desonestidade dos filsofos ao se comportarem como se houvessem descoberto e no

    inventado uma verdade, ao agirem como se tivessem alcanado suas opinies

    prprias mediante o desenvolvimento autnomo de uma dialtica fria, pura,

    divinamente imperturbvel.19

    Num escrito de 1873, Nietzsche j esboaria uma idia de procedimento

    filosfico, concebendo filosofia, completamente distinta dessa dialtica fria e pura que

    pretendem os trabalhadores filosficos:

    O que, ento, leva o pensamento filosfico to rapidamente a seu alvo? Acaso

    ele se distingue do pensamento calculador e medidor por seu vo mais veloz atravs de grandes espaos? No, pois seu p alcanado por uma potncia alheia, ilgica, a

    fantasia. Alado por esta, ele salta adiante, de possibilidade em possibilidade, que por

    um momento so tomadas por certezas; aqui e ali, ele mesmo apanha certezas em vo.

    Um pressentimento genial as mostra e ele adivinha de longe que nesse ponto h

    18 Cf. NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 6 (Alianza Ed., p. 27 - Cia.

    das Letras, p. 13) 19

    NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 5 (Alianza Ed., p. 26 Cia. das Letras, p. 12)

  • 19

    certezas demonstrveis. Mas, em particular, a fantasia tem o poder de captar e iluminar

    como um relmpago as semelhanas: mais tarde, a reflexo vem trazer seus critrios e

    padres e procura substituir as semelhanas por igualdades, as contigidades por

    causalidades.20

    Poderamos vislumbrar nesse excerto a presena de elementos ilgicos,

    pressentimento, fantasia e adivinhao no fazer filosfico. Tal carter adivinhador da

    filosofia continuar a ser afirmado por Nietzsche em textos bem posteriores como, por

    exemplo, no Crepsculo dos dolos: mas Scrates adivinhou algo mais.21 Ou no

    trecho citado no incio desse texto retirado do Ecce Homo: adivinha meios de cura.22

    Tambm seria bastante improvvel supor um princpio esttico, imutvel em

    Nietzsche, posto que a prpria palavra tornar-se, utilizada no ttulo do Ecce Homo,

    indicaria algo dinmico. Haveria, implicado neste tornar, um desenvolvimento, a partir

    do qual importaria marcar o como (distinto da procura platnica pelo qu, que indicaria

    a busca de uma essncia). Na seo Por que sou to sbio, temos diversas narrativas

    acerca de seus estados fisiolgicos (suas doenas e recuperaes), de suas vivncias e

    como tais vivncias fizeram dele aquilo que . Nietzsche conta como tais experincias o

    tornaram apto a tecer as inmeras crticas que permeiam seus escritos e como ter

    vivenciado longamente as mais diversas perspectivas aperfeioou e influenciou

    sobremaneira seu pensamento filosfico. Alis, esta vivncia seria parte imprescindvel

    da educao para a filosofia23. Ele experimentado (erfahren)24 em questes de

    20 NIETZSCHE. A filosofia na poca trgica dos gregos, 3 (volume Os Pr-Socrticos - Abril Cultural, p.

    17) 21

    NIETZSCHE. Crepsculo dos dolos, O problema de Scrates, 9 (Alianza Ed., p. 47) 22

    NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou to sbio, 2 (Abril Cultural, p. 371 Insel Verlag, p. 43-44) 23

    Para a educao do verdadeiro filsofo talvez seja indispensvel que ele mesmo tenha estado alguma vez em todos estes nveis nos quais permanecem, nos quais tm que permanecer seus servidores. - NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, 211 (Alianza Ed., p. 166 Cia. das Letras, p. 117)

  • 20

    decadncia. Por isso, seu diagnstico to preciso da dcadence. Nietzsche a conhece de

    fato, a vivenciou25 de trs para a frente (vorwrts und rckwrts) e isto o habilitaria

    para, alm de conhecer a dcadence, perceber suas nuances. Trata-se, portanto, de uma

    situao particular, a dele prprio26, que o tornou mestre (Meister) em problemticas de

    decadncia. Em nenhum momento este caminho nietzscheano imposto ao leitor como

    o nico ou o verdadeiro via para se tornar mestre. At mesmo, porque ele est, no Ecce

    Homo, contando sua vida a si mesmo (Und so erzhle ich mir mein Leben)27 e no

    indicando a maneira ideal de proceder a ningum. Assim, no se trata de algo universal.

    Haveria outros caminhos possveis para chegar a ser mestre. Nesse sentido, poderamos

    dizer que Nietzsche no quer ser o modelo a ser seguido.

    Mais adiante discutiremos acerca da problemtica das foras em Nietzsche. Mas

    neste momento j indicamos a possvel interpretao deste princpio (Prinzip) como um

    vrtice, uma efetivao de foras a partir da qual as escolhas surgiriam. Mesmo assim,

    24 NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou to sbio, 1 (Abril Cultural, p. 370 - Cia. das Letras, p. 24

    Insel Verlag, p. 42) 25

    Para conhecer algo de fato, seria necessrio ter vivido tais situaes e no apenas ter estudado sobre elas, ter tido delas apenas um conhecimento atravs da pequena razo. A pequena razo (aquilo que tradicionalmente chamado de razo humana. Uma faculdade localizada por muitos filsofos clssicos no esprito e no no corpo), seria somente um pequeno instrumento, um diminuto joguete da grande razo (o corpo). A pequena razo apenas diz eu (conhece racionalmente), mas o corpo faz eu (seria vivenciar). H mais razo no teu corpo que em tua melhor sabedoria. - NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra, Dos depreciadores do corpo (Alianza Ed., p. 65). Em outro momento do Ecce Homo Nietzsche tambm se refere importncia daquilo que se experimenta para oferecer um diagnstico preciso daquilo que se analisa: ningum pode ouvir nas coisas [...] mais do que j sabe. Para aquilo a que no se te acesso por vivncia, no se tem ouvido. (Zuletzt kann niemand aus den Dingen [...] mehr heraushren, als er bereits wei.Wofr man vom Erlebnisse her keinen Zugang hat, dafr hat man kein Ohr.) - NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que escrevo to bons livros, 1 (Abril Cultural, p. 375 - Cia. das Letras, p. 53 Insel Verlag, p. 75) 26

    Quando Nietzsche menciona a seriedade com que combateu os sentimentos de vingana e rancor, ao invs de oferecer uma explicao racional ou uma demonstrao de como estes sentimentos so nocivos para justificar a luta contra eles, ele simplesmente coloca em evidncia seu comportamento pessoal frente a tais sentimentos, afirmando que jamais se submeteu a eles. weshalb ich mein persnliches Verhalten, meine Instinkt-Sicherheit in der Prxis hier gerade ans Licht stelle. NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou to sbio, 6 (Cia. das Letras, p. 31 Insel Verlag, p. 50) 27

    NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou to sbio, epgrafe aps o prlogo (Abril Cultural, p.368 - Cia. das Letras, p. 21 Insel Verlag, p. 39)

  • 21

    um vrtice em constante transformao, dinmico, onde vrias efetivaes distintas de

    foras fossem se sobrepondo e se modificando para gerar diferentes escolhas, de modo

    que, o que escolhido num momento, pode ser preterido em outro, devido s

    modificaes das predominncias de fora (ativas ou reativas) no vrtice em questo.

    Vislumbrando estas constantes transformaes nas configuraes de foras, a partir das

    quais proviriam as escolhas motivando aes, lanaremos alguns questionamentos.

    Nossas interrogaes diriam respeito aos possveis procedimentos implicados no

    recolhimento de indcios das tipologias diagnosticados por Nietzsche, que tambm

    sero abordadas mais adiante. Talvez fosse necessria uma srie muito longa de aes,

    de escolhas para poder postular, por exemplo, uma natureza forte28. Considerando que

    o critrio para o diagnstico de tais tipologias fosse o exame atento da espcie de

    escolhas realizadas, poderamos no interior de uma longa srie, ora observar escolhas

    certas (rechten)29, ora escolhas que prejudicassem (nachteiligen) 30 o prprio indivduo

    que escolhe, de modo que, seria necessria a anlise de uma vivncia muito longa,

    demorada31 para somente ento, muito cuidadosamente pretender supor um tipo

    predominantemente forte ou fraco. Lanando mo de uma analogia (mesmo cientes do

    perigo e da suspeita que as analogias despertam), tal procedimento talvez pudesse ser

    comparado quele esboado por Deleuze e Guattari quando tentam dar conta da

    filosofia: talvez s possamos colocar a questo O que a filosofia? tardiamente,

    28 NIETZSCHE. Para a genealogia da Moral, Primeira dissertao, 10 (Cia. das letras, p. 31)

    29 NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou to sbio, 2 (Cia. das Letras, p. 25 Insel Verlag, p. 43)

    30 NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou to sbio, 2 (Cia das Letras, p. 25 Insel Verlag, p. 43)

    31 Talvez por isso Nietzsche insista tanto na questo da morosidade temporal ao descrever suas experincias

    na seo Por que sou to sbio do Ecce Homo.

  • 22

    quando chega a velhice.32 Talvez, do mesmo modo, somente seja lcito postular uma

    natureza forte ou fraca aps muitos e muitos anos de vivncia, de experimentao33.

    Ainda pensando nesse elemento temporal possivelmente envolvido no diagnstico das

    tipologias, supomos que em Para alm de bem e mal haja mais uma indicao de tal

    suposio: no a intensidade, mas a constncia das impresses superiores, que

    produz os homens superiores.34 Tambm no Ecce Homo Nietzsche faria menciona

    amadurecimento (reift). Meno esta que novamente poderia indicar temporalidade,

    pois, seria somente a partir do enterro de seu quadragsimo quarto ano que ele poderia

    olhar para trs (ich sah rckwrts) e ver tantas e to boas coisas de uma s vez.35

    Alm destas consideraes efetuadas com o intuito de desvelar um possvel

    sentido para a palavra princpio (Prinzip) empregada por Nietzsche em sua auto-

    descrio, pensamos tambm ser pertinente o questionamento da utilizao de certa

    noo de unidade no pensamento nietzscheano. Estaria este pensador, que se afastaria

    da noo de essncia, de uma unidade ltima e imutvel do ser trabalhando em seus

    textos do dito terceiro perodo com esta categoria? Haveria algo que pudesse ser

    denominado uma unidade nietzscheana?

    Pensamos que, apesar de, em diversos momentos de seus escritos da maturidade,

    Nietzsche criticar a noo de unidade com afirmaes tais como:sob todo vir-a-ser no

    32 DELEUZE, G e GUATTARI, F. O que a filosofia?, p 9

    33 Essa velhice remeteria a uma vivncia intensiva, uma grande experimentao. Talvez haja a, uma

    questo temporal envolvida, mas no apenas isso. 34

    NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Mximas e interldios, 72 (Cia. das Letras, p. 68) 35

    NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou to sbio, epgrafe aps o prlogo (Abril Cultural, p. 368 - Cia. das Letras, p. 21 Insel Verlag, p. 39)

  • 23

    reina nenhuma grande unidade36, seria possvel considerar que ele opera com esta

    categoria.

    Contudo, diferencialmente dos filsofos denominados preconceituosos37 que

    procurariam encobrir suas convices e preconceitos com a mscara da universalidade,

    denunciados por Nietzsche38, nosso pensador no mascararia sua inveno39 e

    lanaria mo da categoria de unidade como meio para poder direcionar foras. Talvez

    por reconhecer as limitaes da linguagem humana para expressar seus pensamentos40,

    seja impelido a trabalhar com uma certa concepo de unidade para falar de Zaratustra:

    nele todos os opostos se fundem numa nova unidade.41

    Considerando o pluralismo, o perspectivismo e as graduaes (poltica e grande

    poltica42, seriedade e grande seriedade43, sade e grande sade44 etc.) esboadas por

    Nietzsche, parece inconcebvel que ele nos aponte qual pode ser nossa nica doutrina

    36 NIETZSCHE, Fragmentos pstumos: sobre o niilismo e o eterno retorno, 12 (Abril Cultural, pg. 381)

    37 Aps sculos de falta de honestidade entre os filsofos - NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos

    preconceitos dos Filsofos, 5 (Alianza Ed., p. 26) - Nietzsche afirma ser o primeiro homem decente e se v em oposio falsidade de milnios. (Mein Los will, da ich der erste anstndige Mensch sein mu, da ich mich gegen die Verlogenheit von Jahrtausenden im Gegensatz wei...) - NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou um destino, 1 (Insel Verlag, p. 127 Cia. das letras, p. 109) 38

    Cf. NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos 39

    "Nietzsche no condena os filsofos por terem exprimido os seus 'preconceitos': censura-os por haverem montado uma fico suplementar para esconderem, dos outros e de si prprios, que o seu discurso s pode ser o comentrio dos seus 'preconceitos' - entenda-se, de suas avaliaes" (LEBRUN, G. Por que ler Nietzsche hoje? In: Passeios ao Leu, p.40). Sob tal ponto de vista, o principal problema que Nietzsche diagnostica na conduta dos filsofos que o antecederam no o fato destes possurem crenas, valores, preconceitos etc., mas a maneira como tentaram impor a todos sob o nome de Verdade estes valores, crenas e preconceitos. At mesmo o engano no descartado na filosofia nietzscheana, como pretensamente teria sido na tradio filosfica: a falsidade de um juzo no chega a constituir, para ns, uma objeo contra ele [...]. A questo est em saber at que ponto esse juzo favorece a vida, conserva a vida, conserva a espcie, at mesmo, inclusive, seleciona a espcie - NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 4 (Alianza Ed., p. 25 Cia das Letras, p. 11). Neste mesmo aforismo, Nietzsche vai alm disso e admite que a no-verdade (inverdade) condio da prpria vida. 40

    Apenas para citar uma das diversas passagens onde Nietzsche problematiza a linguagem: isso eu repetirei cem vezes: deveramos libertar-nos por fim da seduo das palavras! (NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 16 (Alianza Ed., p.39) 41

    NIETZSCHE, Ecce Homo, Assim falou Zaratustra, 6 (Cia. das Letras, p. 89) 42

    NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que sou um destino, 1 (Cia. das Letras, p. 110) 43

    NIETZSCHE, Gaia Cincia, 382 (Abril Cultural, p. 223) 44

    NIETZSCHE, Gaia Cincia, 382 (Abril Cultural, p. 223)

  • 24

    [ensinamento].45 Nesse sentido, nos parece legtimo esboar uma possvel via

    interpretativa para esta aparente contradio nietzscheana: para poder falar sobre as

    coisas, seria lcito recorrer categoria de unidade, desde que se admita que aquilo de

    que estamos tratando somente como palavra constitui uma unidade46. Assim, ainda que

    para poder discorrer sobre algo nos vejamos forados a unificar pluralidades sob um

    conceito, h que se reconhecer que se trata de uma limitao inerente linguagem.

    Diversamente disso, a tentativa de aplicar este diagnosticado fenmeno lingstico s

    prprias coisas ocasionaria concluses preconceituosas. Desta situao, nem mesmo a

    cincia estaria a salvo, posto que tambm depende da linguagem para se expressar:

    toda a nossa cincia se encontra sob a seduo da linguagem.47

    Ao tratar da linguagem e das coisas operaramos em nveis diferentes. Ao

    buscarmos aplicar a unidade dos conceitos lingsticos s coisas, incorreramos naquilo

    que Nietzsche conceberia como preconceitos filosficos. Como exemplo disso teramos

    Schopenhauer que tomou a palavra vontade como algo nico, como uma faculdade

    humana ignorando, assim, todas as pluralidades (sentir, pensar e afetos) 48 que esto

    envolvidas na vontade. O querer seria algo que apenas como palavra constituiria

    uma unidade. Esse salto ilcito de um nvel para outro, a saber, do nvel da linguagem

    para o nvel da existncia, permitiria aos filsofos falar da vontade como se ela fosse a

    45 NIETZSCHE, Crepsculo dos dolos, Os quatro grandes erros, 8 (Alianza Ed., p. 75 Abril Cultural, p.

    335) 46

    NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos Filsofos, 19 (Cia. das Letras, p. 24) 47

    NIETZSCHE. Para a genealogia da Moral, Primeira dissertao, 13 (Cia. das letras, p. 36) 48

    NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos filsofos, 19 (Alianza Ed., 41-42 - Cia. das letras, p. 24)

  • 25

    coisa mais conhecida do mundo49. Utilizando-nos de uma linguagem atual,

    tenderamos, ao observar o mundo50, isolar os fatos como entidades independentes.

    Porm, o agir humano seria diferente disso: no se trata de uma seqncia de fatos com

    intervalos vazios que separassem um fato de outro, mas de um fluxo constante. Assim,

    a liberdade da vontade no passaria de uma crena (legitimada e cristalizada pela

    linguagem), pois conforme j estaria apontado em 1880 - pressupe que cada ao

    singular isolada e indivisvel.51

    Nietzsche enfatiza em 1873 que todo conceito nasce por igualao do no

    igual52. Desse modo, o conceito de folha, por exemplo, seria uma artimanha do

    intelecto para ignorar as diferenas inconciliveis entre todas as folhas do mundo a fim

    de que estas sejam tratadas como iguais. Este procedimento do intelecto, talvez seja

    muito mais uma questo de sobrevivncia humana do que uma questo absolutamente

    racional e lgica. Neste mesmo escrito, fica explcito que o homem deseja existir em

    sociedade e gregariamente - por necessidade e tdio e, para isso, realizaria um tratado

    de paz que seria o primeiro passo para conseguir um misterioso impulso para a verdade:

    fixado aquilo que doravante deve ser verdade, isto , descoberta uma designao

    uniformemente vlida e obrigatria das coisas, e a legislao da linguagem d tambm

    as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste entre verdade

    e mentira.53 Assim, a fixao de verdade ou mentira atravs da linguagem haveria

    49 NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos filsofos, 19 (Alianza Ed., p. 41 - Cia.

    das Letras, p. 23) 50

    Aqui recolhemos a utilizao desta palavra por Nietzsche em Humano, demasiado humano (1878), 11 (Abril Cultural, p. 92-93) 51

    NIETZSCHE. O andarilho e sua sombra, 11 (Abril Cultural, p. 141) 52

    NIETZSCHE. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, 1 ( Abril Cultural, p. 48) 53

    NIETZSCHE. Sobre verdade e mentira no sentido extra moral, 1 (Abril Cultural, p. 46)

  • 26

    surgido meramente pela necessidade de uma designao que fosse vlida para todos,

    uma vez que o homem desejou existir socialmente. Uma questo prtica, portanto, uma

    questo de sobrevivncia em grupo completamente distinta da descoberta lgico-

    cientfica de verdades que o fossem absolutamente.

    Nietzsche postula, na Gaia Cincia (1881-1882), que animais mais cautelosos,

    mais lentos na subsuno daquilo que lhes ameaasse a vida (alimentos venenosos ou

    predadores, por exemplo) diminuiriam consideravelmente suas chances de

    sobrevivncia se comparados ao homem que em todo semelhante adivinha logo a

    igualdade.54 Ser extremamente prudente no inferir, uma certa tendncia ctica seriam,

    nesse sentido, um grande perigo para a vida. Porm, esta tendncia humana de tratar o

    semelhante como igual, que no teria nada de lgica, pois no h em si nada igual55,

    seria justamente a tendncia que criou todos os fundamentos nos quais se apia a lgica.

    Talvez, no haja absolutamente nada de efetivo que corresponda ao conceito de

    substncia, imprescindvel para a lgica. Para que tal conceito fosse criado, foi

    preciso que por longo tempo o mutvel nas coisas no fosse visto, no fosse sentido.56

    Assim, haveria muito mais questes de sobrevivncia do que questes racionais

    envolvidas nas concluses ditas lgicas.

    No aforismo onze de Humano, demasiado humano temos, j apontadas em

    1878/86, preocupaes que ocupariam um grande nmero de filsofos contemporneos:

    54 NIETZSCHE. Gaia Cincia, 111 (Abril Cultural, p. 201)

    55 NIETZSCHE. Gaia Cincia, 111 (Abril Cultural, p. 201)

    56 NIETZSCHE. Gaia Cincia, 111 (Abril Cultural, p. 201)

  • 27

    A linguagem como pretensa cincia. a significao da linguagem para o desenvolvimento da civilizao est em que, nela, o homem colocou um mundo prprio ao lado

    do outro, um lugar que ele considerou bastante firme para, apoiado nele, deslocar o restante do

    mundo de seus gonzos e tornar-se senhor dele. Na medida em que o homem acreditou, por longos lances de tempo, nos conceitos e nomes das coisas como em aeternae veritates, adquiriu

    aquele orgulho com que se elevou acima do animal: pensava ter efetivamente, na linguagem, o

    conhecimento do mundo. O formador da linguagem no era to modesto de acreditar que dava

    s coisas, justamente, apenas designaes; mas antes, ao que supunha, exprimia com as palavras o supremo saber sobre as coisas.57

    NO andarilho e sua sombra (1880) teramos: h uma mitologia filosfica

    escondida na linguagem, que h todo instante irrompe de novo, por mais cauteloso que

    se seja.58 Nesse sentido, o prprio exprimir em linguagem nossos juzos e a prpria

    avaliao destes, tambm com linguagem, seria muito mais problemtico do que

    poderamos supor. O prprio instrumento, a linguagem, que faz avaliaes dos juzos

    como verdadeiros ou falsos, estaria muitssimo distante de poder fornecer algo

    inquestionvel e verdadeiro. Diante de tais consideraes, poderamos acrescentar

    que, operando diferencialmente, talvez caiba aos filsofos do porvir59 diagnosticar

    essas pluralidades que a linguagem encobre (no acreditando na unidade conceitual que

    nos aponta a linguagem) e problematizar os conceitos aos quais todos concedem seu

    assentimento como no problemticos.

    Na sua denominada segunda fase, Nietzsche examinaria o surgimento das

    palavras como uma mera nomeao de problemas no resolvidos pelos antigos. Dessa

    maneira, lanar mo das palavras no indicaria solues, mas simplesmente a

    57 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, Das coisas primeiras e ltimas, 11 (Abril Cultural, p.

    92-93) 58

    NIETZSCHE, F. O andarilho e sua sombra, 11 (Abril Cultural, p. 141) 59

    NIETZSCHE. Gaia Cincia, 382 (Abril Cultural, p. 223)

  • 28

    nomeao dos problemas: onde os antigos homens colocavam uma palavra,

    acreditavam ter feito uma descoberta. Como era diferente, na verdade! eles haviam

    tocado num problema e, supondo t-lo resolvido, haviam criado um obstculo para a

    soluo. Agora, a cada conhecimento tropeamos em palavras eternizadas, duras como

    pedras, e mais fcil quebrarmos uma perna do que uma palavra.60

    Outra problematizao de Nietzsche acerca da linguagem passa pela crtica ao

    valor que a tradio filosfica atribui conscincia especialmente num aforismo do

    quinto livro da Gaia cincia (texto de 1886) chamado Do gnio da espcie: a

    conscincia em geral s se desenvolveu sob a presso da necessidade de

    comunicao.61 Desse modo, poderamos ter vivido os mais distintos estados de

    esprito e atuado das mais diversas formas sem que tudo isso fosse consciente no

    sentido do tomar-conscincia-de-si (Sich-Bewuszt-Werden). Para poder conviver com

    outros seres humanos, por carecer da ajuda de seus semelhantes, o homem teria

    precisado tornar inteligveis suas necessidades e s ento teve lugar este tomar

    conscincia de si, pois somente o pensamento consciente ocorre em palavras, em signos

    de comunicao. Assim, continua Nietzsche, o desenvolvimento da linguagem e o

    desenvolvimento da conscincia (no da razo, mas somente do tomar-conscincia-de-

    si da razo) vo de mos dadas.62 Desse modo, a conscincia seria um mero fenmeno

    secundrio e no mais o ponto de partida para as consideraes acerca do sujeito. Nesse

    sentido, Nietzsche critica a extrema valorizao do pensamento consciente pela tradio

    - seja a conscincia tomada do ponto de vista do cogito cartesiano ou a conscincia

    60 NIETZSCHE. Aurora, 47 (Cia. das Letras, p. 43)

    61 NIETZSCHE. Gaia Cincia, 354 (Abril Cultural, p. 216)

    62 NIETZSCHE. Gaia Cincia, 354 (Abril Cultural, p. 217)

  • 29

    transcendental proposta por Kant. S se consciente daquilo que precisa ser traduzido

    em linguagem para que a sociedade, o rebanho compreenda e tal traduo acarretaria

    modificaes e danos ao que de fato foi pensado, vivido, sentido. nosso pensamento

    [...] constantemente como que majorizado e retraduzido para a perspectiva do

    rebanho. Nossas aes so, no fundo, todas elas, pessoais de uma maneira

    incomparvel, nicas, ilimitadamente individuais, sem dvida nenhuma; mas to logo

    ns as traduzimos na conscincia, elas no parecem mais s-lo...63 Tornar algo

    consciente para que possa ser comunicado aos semelhantes seria corromper este algo.

    Assim, a linguagem jamais seria uma traduo fiel daquilo que tenta expressar. Embora

    no haja outro meio de transmitir uma experincia de um sujeito para outro, a

    linguagem um instrumento impreciso, corruptor, falsificador: o mundo, de que

    podemos tomar conscincia, apenas um mundo de superfcies e de signos, um mundo

    generalizado, vulgarizado [...] tudo que se torna consciente justamente com isso se

    torna raso, ralo, relativamente estpido, geral, signo, marca de rebanho, que, com todo

    tornar-consciente, est associada uma grande e radical corrupo, falsificao,

    superficializao e generalizao.64 Neste mesmo aforismo Nietzsche ainda afirma que

    a conscincia um perigo e uma doena e denomina a gramtica de metafsica do

    povo.

    H que se salientar que as preocupaes nietzscheanas acerca da linguagem

    podem ser verificadas desde seus primeiros escritos65 at os ltimos66. Trata-se,

    63 NIETZSCHE. Gaia Cincia, 354 (Abril Cultural, p. 217)

    64 NIETZSCHE. Gaia Cincia, 354 (Abril Cultural, p. 217-218)

    65 A expresso daquela profunda intuio filosfica pela dialtica [...] , decerto, por um lado, o nico meio

    de comunicar o contemplado, mas um meio miservel, no fundo uma transposio metafrica, totalmente

  • 30

    portanto, de uma preocupao recorrente que permearia todos os perodos de sua

    produo filosfica. Entretanto, h que se lidar com cautela com as preocupaes

    lingsticas nietzscheanas, pois, conforme Danto: claro que seria uma distoro

    sugerir que Nietzsche antecipou as discusses que tm to grandemente dominado a

    filosofia em anos recentes. Mas, inquestionavelmente, ele um predecessor.67

    Assim, seria possvel pensar essa unidade presente nos escritos do terceiro

    perodo nietzscheano como um construto, um meio inventado para poder tratar de certos

    assuntos que - embora Nietzsche reconhea como plurais - precisariam da mscara da

    unidade para serem abordados. Desse modo, mesmo consciente do perigo de trabalhar

    com a categoria de unidade, Nietzsche escolheria recolher esse meio de operar

    filosfico sem encobrir, contudo, que tal categoria (unidade) apenas um meio68.

    Seria interessante apontar, ainda, que Nietzsche saberia perfeitamente que as

    categorias de fim, unidade e ser69 seriam invenes. Contudo, poderamos

    assinalar sua seleo e operacionalizao da categoria de unidade na denominada

    terceira fase de seus escritos e um deixar de lado70 com relao s outras duas.

    infiel, em uma esfera e lnguas diferentes. NIETZSCHE. A filosofia na poca trgica dos gregos, 3 (Abril Cultural, p. 33) 66

    A razo na linguagem: oh, que velha, enganadora personagem feminina! Temo que no nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramtica... NIETZSCHE. Crepsculo dos dolos, A razo na filosofia, 5 (Abril Cultural, p. 331) 67

    DANTO, A. C. Nietzsche as a Philosopher, p. 84 It would of couse be a distortion to seggest that Nietzsche antecipated the discussions which have so dominated philosophy in recent years. But he is unquestionably a predecessor. 68

    importante lembrar que o meio, o instrumento so muito valorizados no pensamento nietzscheano. Para alcanar um novo fim, seria necessrio antes buscar um novo meio cf. NIETZSCHE. Gaia Cincia, 382 (Abril Cultural, p. 222). Uma das grandes crticas de Nietzsche filosofia socrtica enfatiza seu instrumento implacvel, a saber, a dialtica. cf. NIETZSCHE. Crepsculo dos dolos, O problema de Scrates (Alianza Ed., p. 43 50). 69

    NIETZSCHE, Fragmentos pstumos: sobre o niilismo e o eterno retorno, 12 A (Abril Cultural, p. 381) 70

    Este deixar de lado poderia ser tomado como o reverso da seletividade. Possivelmente, esta seria, j nA filosofia na poca trgica dos gregos a marca distintiva entre cincia e filosofia: a primeira precipita-se sobre tudo o que possvel saber, na cega avidez de querer conhecer a todo preo; o pensar filosfico, ao

  • 31

    Haveria, ainda, uma outra possvel interpretao para aquilo que Nietzsche

    tencionaria tratar como uma unidade, a partir da qual se faz possvel a seleo, a

    escolha, de modo mais amplo, o atuar. Tal unidade, este princpio a partir do qual se

    realiza a seletividade seria a grande razo, o corpo71: o corpo uma grande razo, uma

    pluralidade dotada de um nico sentido.72 No prprio Ecce Homo podemos citar

    algumas passagens onde estaria presente esta valorizao do corpo: Zaratustra tem

    mais valentia no corpo do que os pensadores todos reunidos73. Neste mesmo escrito h

    tambm a denncia da valorizao da alma em detrimento do corpo: que se tenha

    inventado uma alma, um esprito, para arruinar o corpo.74 Ao aceitarmos esta

    desvalorizao do corpo, ao tomar como verdadeiras as inventadas noes de alma,

    esprito ou alma imortal estaramos concorrendo para que a degenerao e a doena

    se instalassem no corpo. Ao valorizar o espiritual em detrimento do corporal, teramos

    nos distanciado daquelas questes que, de fato, seriam importantes, a saber,

    alimentao, clima, limpeza etc. Nietzsche apontaria a importncia de valorizar

    novamente as questes corporais, de recobrar a sade75. Ele fala em sepultar os anos,

    contrrio, est sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas. NIETZSCHE. A filosofia na poca trgica dos gregos, 3 (Abril Cultural, p. 33) Cf. nota n 204 deste texto. Na seo que trata do gosto, no presente trabalho, retomaremos este assunto. A possibilidade de deixar de lado continua sendo extremamente importante para o homem seletivo indicado por Nietzsche, conforme vimos no Ecce Homo, Por que sou to sbio, 2, escrito de sua denominada terceira fase. 71

    Certamente, o estudo sobre o discurso nietzscheano acerca do corpo seria, apenas ele, tema para incontveis reflexes. Esgotar a anlise do corpo na filosofia nietzscheana no seria jamais nossa inteno no presente trabalho, apenas pontuamos aqui esta possvel via interpretativa, uma vez que seria o corpo o meio capaz de incorporar as vrias almas: nosso corpo apenas uma estrutura social de muitas almas NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, 19 (Cia. das Letras, p. 25) 72

    NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra, Dos depreciadores do corpo (Alianza Ed., p. 64) 73

    Zarathustra hat mehr Tapferkeit im Leibe als alle Denker zusammengenommen - NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou um destino, 3 (Cia. das Letras, p. 111 Insel Verlag, p. 129) 74

    da man eine Seele, einen Geist erlog, um den Leib zuschanden zu machen NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou um destino, 7 (Cia. das Letras, p. 115 Insel Verlag, p. 133) 75

    A noo de alma, esprito, por fim alma imortal, inventada para desprezar o corpo, torn-lo doente santo -, para tratar com terrvel frivolidade todas as coisas que na vida merecem seriedade, as questes de

  • 32

    como se, ao contrrio daquilo que impe o cristianismo, o que permanecesse fosse o

    corpo e no a alma. O prprio Nietzsche, conforme j dissemos, sepulta seu

    quadragsimo quarto ano e dali, daquele vrtice de foras ele pode olhar para trs e para

    frente e avaliar que o que havia de vida naquele ano estava salvo, era imortal.76 Em

    Nietzsche possivelmente nem teria lugar postular uma diviso esprito/corpo e valorizar

    mais um ou outro, pois o homem seria integralmente corpo e alma somente uma

    palavra para designar algo no corpo.77

    Sem dvida, pretender dar conta das discusses nietzscheanas acerca do corpo

    neste escrito seria impossvel, mas podemos esboar algumas consideraes. No se

    trata de simplesmente rejeitar a problemtica da alma e assumir uma perspectiva

    materialista como fica claro no aforismo nmero doze de Para alm de bem e mal

    (Dos preconceitos dos filsofos): no necessrio, absolutamente, livrar-se com isso

    da alma mesma, renunciando a uma das mais antigas e venerveis hipteses.78 Nesse

    aforismo, Nietzsche rejeita o atomismo materialista (a idia de que tudo aquilo que

    existe matria e a idia de que a menor partcula ou poro de matria o tomo)

    como uma crena na matria e em sua menor e indivisvel partcula e diagnostica a

    presena deste atomismo no cristianismo com o que denomina de atomismo da alma

    (a crena na alma como algo indestrutvel, eterno, indivisvel). Ele esboa uma nova

    formulao para a hiptese da alma no mais pensada como tomo. Poderamos tom-la

    alimentao, habitao, dieta espiritual, assistncia a doentes, limpeza, clima! Em lugar da sade a salvao da alma. (Der Begriff Seele, Geist, zuletzt gar noch unsterbliche Seele, erfunden, um den Leib zu verachten, um ihn krank heilig zu machen, um Allen Dingen, die Ernst im Leben verdienem, den Fragen Von Nahrung, Wohnung, geistiger Dit, Krankenbehandlung, Reinlichkeit, Wetter, einen schauerlichen Leichtsinn entgegenzubringen! Statt der Gesundheit das Heil der Seele) NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou um destino, 8 (Cia. das Letras, p. 116-117 Insel Verlag, p. 134-135) 76

    NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou to sbio, 1 (Alianza Ed., p. 23 Abril Cultural, p. 368) 77

    NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra, Dos depreciadores do corpo (Alianza Ed., p. 64) 78

    NIETZSCHE. Alm do bem e do mal, p. 19 (Cia. das Letras)

  • 33

    como alma mortal e no como o princpio imortal apregoado pela filosofia crist.

    Alma como pluralidade do sujeito, no como princpio unitrio cristo, mas como

    organizao da multiplicidade presente no sujeito e, mesmo assim, uma unidade de

    organizao constantemente mutvel devido s permanentes modificaes das foras

    que organiza. Alma como estrutura social dos impulsos e afetos, como ordenadora

    destas diferentes foras impulsivas e afetivas em constante efetivao no corpo. Com

    isso, Nietzsche dissolveria a pretensa distino alma/corpo, pois a alma seria parte do

    prprio corpo, algo complexo que atuaria na grande razo sendo capaz de reunir seus

    tecidos, rgos, impulsos, tudo aquilo que estaria em permanente oposio num nico

    conjunto, apesar de suas constantes mudanas. Dessa unidade organizacional

    hierarquizada e mutvel, partiria a seleo, a escolha.79

    Assim, o princpio (Prinzip) de que nos fala Nietzsche poderia ser um vrtice de

    efetivao de foras, uma unidade seletiva a partir da qual (talvez o corpo?) partiriam

    as escolhas, mas tal vrtice estaria longe de ser uma essncia. Ele trasnformar-se-ia

    dinamicamente, conforme mudassem as foras em questo.

    79 importante observar ainda neste aforismo (doze de Para alm de bem e mal. Dos preconceitos dos

    filsofos) que Nietzsche no pretenderia com sua nova interpretao de alma oferecer uma hiptese verdadeira sobre esta. Ele estaria substituindo a inveno crist da alma como unidade substancial por outra inveno, por outra hiptese da alma como pluralidade do sujeito. Um psiclogo que aceitasse esta postulao nietzscheana sairia do comodismo dos velhos psiclogos e saberia que tambm ele est condenado inveno. E, para este novo psiclogo, talvez no existisse mais diferena entre inventar e descobrir (ver nota 33 deste texto).

  • 34

    Primeiro Interldio

    Realidade Lingstica (Ana Paula Ricci - 2004)

    Sentenas geram nosso mundo real.

    S possvel viver o que nossa linguagem pode traduzir, aludir, definir... Realidade construda com palavras,

    Como se no houvesse vida Antes do primeiro fonema.

    Letras que engendram morte e vida, guerra e paz, alegria e tristeza, amor e dio... O ser humano prisioneiro do prprio discurso,

    Das prprias dicotomias maniquestas que elaborou, Ao longo dos sculos, engenhosamente, lentamente, pacientemente, na mente...

    Instrumento ambguo que salva e destri: Linguagem, s linguagem, nada mais...

    Mas cremos numa realidade gramatical com a f simples das crianas, E tomamos nosso mundo de palavras como onipotente, onipresente...

    Raa que julga o discurso capaz De abarcar qualquer situao,

    De explicitar quaisquer sentimentos, sensaes, emoes...

    Supe resolver seus pseudo-problemas precisando conceitos e definies.

    Homem: refm do som da sua voz, dos seus escritos, das suas verdades, da sua cincia... So tantas as prises lingsticas que se auto-imps!

    H que silenciar, h que se libertar

    Legitimando o no-cientfico, Aceitando o inefvel,

    Reconhecendo o indizvel inerente a vida, ao mundo, a tudo, a todos, a ns...

  • 35

    REALIDADE E PROBLEMTICA DAS FORAS80

    A concepo nietzscheana de vida apresentaria uma estreita relao com aquilo

    que Nietzsche entendia por realidade, marcando um efetivo antagonismo com a

    diviso platnica do mundo em real e aparente. J num fragmento de 1870/71 ele afirma

    que minha filosofia platonismo s avessas: quanto mais distante do verdadeiramente

    existente, tanto mais pura, bela e boa ela .81 Tal perspectiva platnica de realidade

    poderia ser sobrepujada destituindo a razo do papel de protagonista na determinao

    daquilo que a filosofia anterior a Nietzsche tomara como realidade. Por isso, este

    pensador explicitaria veementemente a importncia da atuao de aspectos distintos da

    razo tais como gosto, instintos, clima, alimentao, como veremos mais adiante. A

    racionalidade seria apenas mais um aspecto dessa realidade, mas no a nica opo,

    no o nico caminho: a racionalidade a todo preo como fora perigosa, solapadora

    da vida!82 Assim, seria a vida e no a racionalidade a sede da determinao da

    realidade no pensamento de Nietzsche. Da o grande valor de afirm-la, de atuar

    favorecendo-na ao contrrio da atividade exercida, por exemplo, pela moral crist,

    80 No presente trabalho, estaremos considerando a equivalncia de fora e impulso, de acordo com a indicao

    nietzscheana: Um quantum de fora equivale a um mesmo quantum de impulso, vontade, atividade melhor, nada mais seno este mesmo impulso, este mesmo querer e atuar, e apenas sob a seduo da linguagem. NIETZSCHE. Genealogia da Moral, Primeira dissertao, 13 (Cia. das Letras, p. 36). Porm, estamos cientes que h intrpretes que diferenciam tais instncias. Segundo Benchimol, haveria uma distino entre fora (Kraft), que no teria qualquer qualidade, seria dinmica possuindo apenas intensidade, quantidade fsica; impulso (Trieb), seriam mltiplos e j possuiriam direo determinada; e instinto (Instinkt), que estaria mais prximo escolha, j pressupondo uma unidade e atuando como fora de preservao desta unidade, selecionando os elementos que a mesma absorve, visando sua auto-conservao. Contudo, no nosso objetivo esgotar a discusso de tais distines no presente escrito, apesar de reconhecermos a importncia desta observao. Por ora, consideraremos como equivalentes fora e impulso. 81

    Apud BENCHIMOL, M. Apolo e Dionsio. Arte, filosofia e crtica da cultura no primeiro Nietzsche, p. 29 82

    NIETZSCHE. Ecce Homo, O Nascimento da tragdia, 1 (Cia das Letras, p. 62)

  • 36

    segundo a perspectiva nietzscheana. No Ecce Homo ele afirma: a pregao da

    castidade um incitamento pblico antinatureza. Todo desprezo pela vida sexual, toda

    impurificao da mesma atravs do conceito de impuro o prprio crime contra a

    vida.83 Pelo mesmo motivo, depreciaria aqueles que sofrem de empobrecimento de

    vida.84

    A moral crist, por dar assentimento concepo platnica da diviso de

    mundos, tomaria a afirmao da vida como algo condenvel, repudiando, em ltima

    instncia, a prpria realidade: para poder dizer No a tudo o que constitui o

    movimento ascendente da vida, a tudo o que na Terra vingou, o poder, a beleza, a auto-

    afirmao, o instinto do ressentiment, aqui tornado gnio, teve de inventar um outro

    mundo, a partir do qual a afirmao da vida apareceu como o mau, como o condenvel

    em si.85

    Em seus primeiros textos, Nietzsche j dir que a vida um poder obscuro,

    impulsionador, inesgotvel que deseja a si mesmo.86 E como esse poder assinalaria a

    realidade, tudo aquilo que existe, ainda que no se tenha conscincia disso, serviria

    vida: sua ocupao com a histria no se encontra a servio do conhecimento puro,

    mas sim da vida.87 Tal postura se manteria at sua maturidade permitindo a Nietzsche

    reconhecer at mesmo o asceta como um servidor do vida: este sacerdote asctico, este

    aparente inimigo da vida, este negador ele exatamente est entre as grandes potncias

    83 NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que escrevo to bons livros, 5 (Cia das Letras, p. 59)

    84 Cf. NIETZSCHE. Gaia Cincia, 370 (Abril Cultural, p. 220)

    85 NIETZSCHE. O Anticristo, 24 (Cia das Letras, p. 29-30)

    86 NIETZSCHE. Segunda Considerao Intempestiva, 3 (Relume Dumar, p. 30)

    87 NIETZSCHE. Segunda Considerao Intempestiva, 1 (Relume Dumar, p. 15)

  • 37

    conservadoras e afirmadoras da vida.88 Se todo vivente serve vida, ainda que

    racionalmente no se d conta disso, ficaria explcita a impossibilidade de ser a razo a

    determinadora da realidade. Mas, alm disso, seria absolutamente impossvel

    condicionar a realidade a quaisquer explicaes racionais, a quaisquer noes

    racionais de justia, verdade, bondade, posto que seria a vida a marca da realidade e

    no a razo. Tomemos, como exemplo disso, os esticos que supostamente pretendiam

    viver conforme a natureza. Contudo, segundo o diagnstico nietzscheano, tencionavam

    submeter a realidade moral estica: seu orgulho quer prescrever e incorporar

    natureza, at natureza, a sua moral, o seu ideal, vocs exigem que ela seja natureza

    conforme a Stoa, e gostariam que toda existncia existisse apenas segundo sua prpria

    imagem.89 Porm, a vida no se deixa subjugar pela razo humana e desde muito cedo,

    Nietzsche assinalaria que viver e ser injusto so uma coisa s.90 Essa perspectivas se

    acentuaria em escritos posteriores: viver no avaliar, preferir, ser injusto, ser

    limitado, querer ser diferente?91. Alm de no se submeter racionalidade, a vida seria

    mesmo impossvel sem aquilo que a razo humana denomina de parcialidade: no

    existiria nenhuma vida, seno com base em avaliaes e aparncias perspectivas.92

    Explorao, injustia seriam inerentes ao vivente: a vida mesma essencialmente

    apropriao, ofensa, sujeio do que estranho e mais fraco, opresso, dureza,

    imposio de formas prprias, incorporao e, no mnimo e mais comedido,

    88 NIETZSCHE. Genealogia da Moral, III, 3 (Cia. das Letras, p. 110)

    89 NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos filsofos, 9 (Cia. das Letras, p. 15)

    90 NIETZSCHE. Segunda Considerao Intempestiva, 3 (Relume Dumar, p. 30)

    91 NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos filsofos, 9 (Cia. das Letras, p. 15)

    92 NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, O esprito livre, 34 (Cia. das Letras, p. 41)

  • 38

    explorao.93 Finalmente, em seu denominado terceiro perodo, Nietzsche identificaria

    vida a vontade de poder: vida precisamente vontade de poder.94

    Cabe explicitar, ainda, que no se trataria de tomar a vida como realidade

    ltima, como o ncleo essencial de toda realidade. Do contrrio, transformaramos

    esta concepo nietzscheana em mais uma interpretao metafsica: no encontramos

    em Nietzsche exaltao incondicional da vida. A vida no a totalidade, ela no o

    objeto da afirmao mais alta. Certamente a vontade de potncia pensada sobre o

    modelo da vida, como faculdade de se conservar e de se acrescer, de exercer o

    perspectivismo de suas foras. Mas a vida no seno um caso particular da Vontade

    de Potncia.95

    Justamente por conta de uma tal interpretao de vida como determinadora da

    realidade e, por conseguinte, o real alijar-se da regncia de um fundamento

    absolutamente racional, Nietzsche atacaria to duramente a noo de culpa que a moral

    crist tenta incutir na conscincia humana, formando aquilo que o pensador

    denominaria de m conscincia. Do egosmo, por exemplo, to combatido pelos

    ideais da moral crist, Nietzsche dir: o egosmo da essncia de uma alma nobre.96

    Se o princpio da realidade, a vida, segundo uma avaliao eminentemente racional

    for considerada injusta, dominadora, exploradora, como exigir do vivente que ele se

    sinta culpado por tais condies? Seria o mesmo que exigir que o vivente se sentisse em

    flagrante delito por simplesmente viver. Nesse sentido, seria lcito afirmar que a vida

    93 NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, O que nobre?, 259 (Cia. das Letras, p. 171)

    94 NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, O que nobre?, 259 (Cia. das Letras, p. 171)

    95 HAAR, Michael. Vida e totalidade natural In: Cadernos Nietzsche 5. So Paulo: GEN, 1998. p. 16

    96 NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, O que nobre?, 265 (Cia. das Letras, p. 181)

  • 39

    apenas se manifesta, ela acontece dinamicamente como tal e no caberia a vivente

    algum avaliar a prpria vida e, por ela ser como , sentir arrependimento, remorso,

    culpa: o castigo teria o valor de despertar no culpado o sentimento de culpa, nele se v

    o verdadeiro instrumentum dessa relao psquica chamada m conscincia,

    remorso. Mas assim se atenta contra a realidade e contra a psicologia.97 Da, o

    grande mrito concedido por Nietzsche aos trgicos gregos anteriores ao socratismo que

    afirmavam a vida apesar de todas as caractersticas injustas que sua racionalidade

    pudesse detectar - at porque tudo decisivo acontece apesar de tudo.98 Assim, no

    caberia de modo algum questionarmos se o destino de dipo foi justo ou no, se o heri

    merecia as mazelas que enfrentou ou no, pois considerar as misrias de toda espcie

    como objeo, como algo que preciso abolir, a niaiserie par excellence, em sentido

    geral uma verdadeira desgraa em suas conseqncias, uma fatalidade de estupidez -,

    quase to estpida quanto seria a vontade de abolir o mau tempo por compaixo aos

    pobres.99 Mesmo supondo que houvesse alguma forma de avaliao daquilo que

    justo com relao vida, esta valorao seria regida por critrios e princpios outros,

    distintos daqueles que a racionalidade pretenderia impor: uma ao imposta pelo

    instinto da vida tem no prazer a prova de que uma ao justa.100 Vislumbrando estas

    perspectivas, poderamos sugerir acerca do caso de Hobbes, por exemplo, que sua

    interpretao do homem como o lobo do prprio homem seria absolutamente pertinente.

    Sua objeo vida comearia no momento em que considerou isso um problema a ser

    sanado com o pacto social.

    97 NIETZSCHE. Genealogia da Moral, II, 14 (Cia. das Letras, p. 70)

    98 NIETZSCHE. Ecce Homo. Assim falou Zaratustra, 1 ( Cia. das Letras, p. 83)

    99 NIETZSCHE. Ecce Homo. Por que sou um destino, 4 ( Cia. das Letras, p. 112)

    100 NIETZSCHE. O Anticristo, 11 (Cia das Letras, p. 17)

  • 40

    A partir destas concepes Nietzsche diagnosticaria que a nobreza estaria

    exatamente naquele que fosse capaz de dar assentimento realidade tal como ela se

    apresenta, sem querer modificar os acontecimentos, sem sonhar platonicamente com um

    mundo supostamente ideal onde todas as injustias seriam suprimidas: minha frmula

    para a grandeza do homem amor fatti: nada querer diferente, seja para trs, seja para

    frente, seja em toda a eternidade.101

    Haveria, ainda, para Nietzsche, um outro aspecto da realidade a ser

    considerado, a saber, o dinamismo, a mutabilidade, a incessante mudana inerente a

    esta. Livre da pretenso de estabilidade e fixidez inerente racionalidade, a realidade

    passa a apresentar como marca caracterstica o devir, o torna-se.

    Quanto ao atomismo materialista, est entre as coisas mais bem refutadas que existem. [...] Graas, antes de tudo, ao polons Boscovich, que foi at agora, juntamente com o polons Coprnico, o maior e mais vitorioso adversrio da evidncia. Pois enquanto Coprnico nos persuadiu a crer, contrariamente a todos os

    sentidos, que a terra no est parada, Boscovich nos ensinou a abjurar a crena na ltima parte da terra que permanecia firme, a crena na substncia, na matria,

    nesse resduo e partcula da terra, o tomo: o maior triunfo sobre os sentidos que at

    ento se obteve na terra. Mas preciso ir ainda mais longe e declarar guerra, uma

    implacvel guerra de baionetas, tambm necessidade atomista, que, assim como a

    mais decantada necessidade de metafsica, continua vivendo uma perigosa

    sobrevida.102

    Assim, se evidenciaria em Nietzsche a extino da pretenso de uma realidade

    nica, fixa, imutvel vinculada s acepes metafsicas que ele tanto denunciou,

    101 NIETZSCHE. Ecce Homo. Por que sou to esperto, 10 ( Cia. das Letras, p. 51)

    102 NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos filsofos, 12 (Cia. das Letras, p. 19)

  • 41

    rejeitando por fim a noo mesma de Ser: a afirmao do fluir e do destruir, o

    decisivo numa filosofia dionisaca, o dizer Sim oposio e guerra, o vir a ser, com a

    radical rejeio at mesmo da noo de Ser.103 Numa concepo heraclitianamente

    inspirada104, o real no seria seno vir-a-ser, um modificar-se constante, de modo que

    toda a suposio de rigidez racional seria abandonada: se [o mundo] fosse em geral

    apto a um preservar, tornar-se rgido, apto a um ser, se em todo o seu vir-a-ser tivesse

    apenas por um nico instante essa aptido ao ser, mais uma vez, h muito teria

    terminado todo o vir a ser, e portanto tambm todo pensar, todo esprito.105 Tal

    raciocnio, contudo, poderia levar equivocada suspeita de uma identificao entre caos

    e realidade. Se tudo se modifica eternamente, se a nica coisa constante a mudana,

    poderamos postular uma realidade confusa e desordenada. Contudo, no se trata

    disso: separar sem incompatibilizar; nada misturar, nada conciliar; uma imensa

    multiplicidade, que no entanto o contrrio do caos.106 Esse processo ininterrupto de

    modificaes no se fundiria com uma situao catica, pois as foras a supostas

    estariam sempre em relao umas com as outras. Essa situao, concebida como um

    jogo e no um sistema, seria capaz de manter esse dinamismo da realidade sem que

    esta entrasse em colapso: como fora por toda parte, como jogo de foras e ondas de

    fora, ao mesmo tempo um e mltiplo, aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali

    103 NIETZSCHE. Ecce Homo. O Nascimento da tragdia, 3 ( Cia. das Letras, p. 64)

    104 No Ecce Homo, Nietzsche reconhecer explicitamente essa proximidade com Herclito. Dir ele:

    Herclito, em cuja vizinhana sinto-me mais clido e bem-disposto do que em qualquer outro lugar [...] nisto devo reconhecer, em toda circunstncia, o que me mais aparentado entre o que at agora foi pensado. - NIETZSCHE. Ecce Homo. O Nascimento da tragdia, 3 ( Cia. das Letras, p. 64)

    105 NIETZSCHE. Fragmentos Pstumos [36 (15) de jun. jul. 1885]. Apud. MARTON, S. O eterno retorno

    do mesmo. Tese cosmolgica ou imperativo categrico? In: tica, p. 214 106

    NIETZSCHE. Ecce Homo, Por que sou to esperto, 9 (Cia. das Letras, p. 49)

  • 42

    minguando, um mar de foras tempestuando e ondulando em si prprias, eternamente

    mudando, eternamente recorrentes, com descomunais anos de retorno.107

    Talvez por conta de uma tal interpretao, teramos a nfase nietzscheana na

    questo do tornar-se, ao invs de postular uma evoluo, como fizeram muitos

    pensadores dentre eles o prprio Darwin que Nietzsche atacaria duramente,

    especialmente em seus escritos dos ditos segundo e terceiro perodos. Uma realidade

    em constante transformao, num dinamismo ininterrupto, onde foras ora sobrepujam

    ora so sobrepujadas, no deixa lugar para alguma finalidade teleolgica. No haveria

    como supor neste cenrio que uma fora melhor que outra e, em determinado

    momento, elas atingiriam um equilbrio tal que a luta de foras terminasse finalmente

    com a vitria das foras melhores. Por no se poder supor uma finalidade, um

    direcionamento fatal da realidade, tambm no se poderia imaginar uma meta. Esse

    raciocnio que abarcaria o mundo, obviamente tambm seria vlido para os indivduos,

    posto que esses esto a inclusos. No poderamos traar um objetivo, um alvo certo

    para nossas vidas porque estaramos constantemente nos tornando aquilo que somos,

    estaramos em constante transformao. Ou at poderamos atuar com a iluso de que

    nossa vida segue a meta por ns planejada, mas, nesse caso, talvez nos assemelharamos

    aos homens histricos de que j nos fala Nietzsche em sua Segunda Considerao

    Intempestiva: trabalham imaginado que o fazem em prol do conhecimento puro,

    quando, ao contrrio disso, pensam e agem a-historicamente, apesar de toda a sua

    107 NIETZSCHE. Fragmentos Pstumos [36 (15) de jun. jul. 1885]. Apud. MARTON, S. O eterno retorno

    do mesmo. Tese cosmolgica ou imperativo categrico? In: tica, p. 214

  • 43

    histria, a servio da vida.108 Por isso, em seu Ecce Homo Nietzsche se conta sua vida a

    si mesmo enfatizando como algum se torna o que , ou seja, o processo, o vir-a-ser que

    o levou at aquele ano de 1888, quando pode enterrar seu quadragsimo quarto ano,

    lanar um olhar adiante e para trs e se deparar com muitas coisas boas.109

    Voltando interpretao nietzscheana de realidade, mltipla e

    perspectivstica, como pluralidade de foras atuando umas sobre as outras, pensamos,

    nos levaria necessidade de analisar essa problemtica na tentativa de dar conta de

    como tal concepo pluralstica e dinmica da realidade se relacionaria com o

    escolher de um vivente.

    Segundo a interpretao deleuzeana da problemtica das foras presente na

    filosofia de Nietzsche, todos seramos perpassados por multiplicidades de foras,

    impulsos (Trieb) ativas (sadias, criativas) e foras reativas (doentes, depreciativas da

    108 Cf. NIETZSCHE. Segunda Considerao Intempestiva, 1 ((Relume Dumar, p. 15)

    109 Gostaramos inclusive de abrir para debate o termo abruto do tornar-se nietzscheano com seu colapso em

    1889. Sabemos que Nietzsche continuou escrevendo aps sua internao na clnica psiquitrica em Iena. Tais escritos, conforme tivemos ocasio de observar, ainda guardam muito da genialidade e das perspectivas presentes em seu pensamento dito vlido pela comunidade filosfica vigente. No seria essa rejeio deste perodo nietzscheano apenas preconceito? Apenas mais um triunfo dos valores estabelecidos unicamente pela razo? A loucura talvez seria uma das patologias mais polmicas e controversas de toda a humanidade, bastaria uma leitura da Histria da loucura de Michel Foucault para nos questionarmos acerca disso. Particularmente, tenho um contato emprico cotidiano com estas polmicas e controvrsias que envolvem o indivduo considerado pela sociedade e pela medicina como insano, por trabalhar num hospital psiquitrico e estaria inclinada a opinar que, se de fato ela existe, a linha que separa o normal e o saudvel do patolgico e louco extremamente tnue, fugidia e at mesmo mutvel, dependendo dos avanos tecnolgicos admitidos pela medicina. Porm, ciente de que minha opinio pessoal no teria neste trabalho qualquer valor acadmico, recorro s palavras de Johan Gok, responsvel pela introduo da publicao dos fragmentos de Nietzsche datados de 1889 a 1900 sob o ttulo de Mort parce que bte: nous restituons les textes de ce que nous avons antitul Mort parce que bte dans le desrdre ou ils t retrouvs. Cest um corpus mit, lacunaire, fait de trous (de mmoire), mais ou le sens jaillit dentre leurs failles mmes, riche dinterprtations possibles, car ces phrases arraches la mmoire dfaillante et lpuisement restent imprgnes du logos nietzschen. Ces textes retracent dabord les circonstances souvent triviales de la vie de forclusion qui tait celle du philosophe la clinique dIna puis dans la Maison familiale de Naumburg. Mais on y trouve une riche moisson de penses aux rsonances souvent oraculaires; dans leur fragmentation, leur inaboutissement, elles prolonget et, souvent, affinent le perspectivisme visionaire nietzschen. - GOK, J. Introduction In: Mort parce que bte, p. 5

  • 44

    vida), foras plurais. Tais impulsos estariam agindo dinamicamente em todos ns,

    permeando nosso modo de pensar, de ser, de agir.

    Mesmo sem problematizar a referida interpretao, poderamos dizer que, no

    Ecce Homo, o prprio pensador reconheceria em sua natureza a presena de ambas

    configuraes de foras, de ambos impulsos admitindo sua pertena a esta ambivalente

    condio: sem considerar que sou um dcadent sou tambm o seu oposto.110

    Porm, seria bastante improvvel oferecer uma definio de impulso no

    pensamento nietzscheano. Procuraremos aqui apenas indicar algum sentido para esta

    expresso (Trieb). Estas foras que nos perpassam constantemente, segundo a

    perspectiva nietzscheana, so de ordem do mltiplo, da pluralidade das foras em

    oposio111, no sendo possvel agrup-las, sintetiz-las numa unidade esttica, fixa,

    ou seja, numa essncia estvel-material. As foras no se deixam recolher no interior

    de nenhuma unidade a ser obtida como sntese totalizadora num movimento dialtico de

    conciliao.112

    Nietzsche nos apresentaria seu universo de foras como quanta dinmicos em

    uma relao de tenso com todos os outros quanta dinmicos: cuja essncia (Wesen)

    consiste em sua relao (Verhltni) com todos os outros quanta, no seu produzir efeito (Wirken) sobre estes.113

    110 Abgerechnet nmlich, da ich ein dcadent bin, bin ich auch dessen Gegensatz - NIETZSCHE, F. Ecce

    Homo, Por que sou to sbio, 2 (Abril Cultural, 370 - Cia. das Letras,p. 25 Insel Verlag, p. 43) 111

    GIACIA JR, O. O Conceito de Pulso em Nietzsche. In: As Pulses, p. 81. 112

    GIACIA JR, O. O Conceito de Pulso em Nietzsche. In: As Pulses, p. 81. 113

    NIETZSCHE, F. Smtliche Brief. Kritische Studienausgabe (KGB), hrsg. G. Colli und Montinari, DVT. De Gruyter, Mnchen, 1986. Vol. 6, p. 183 cit. in GIACIA JR. , O. O Conceito de Pulso em Nietzsche. In: As Pulses, p. 81.

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    Nesse sentido, se fosse lcito falar de essncia de uma fora, tal essncia

    consistiria no prprio efetivar-se desta mesma fora, no produzir um efeito sobre as

    outras quantidades de fora com as quais est, de modo necessrio, em relao -

    especificamente, numa relao de poder - buscando sempre dominar e subjugar as

    outras foras vinculadas dinamicamente a ela. Exigir da fora que no se expresse

    como fora, que no seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar,

    uma sede de inimigos, resistncias e triunfos, to absurdo quanto exigir da fraqueza

    que se expresse como fora.114

    Dessa forma, no seria plausvel separar a fora do seu efetivar-se, uma vez que

    sua natureza consiste no efetuar-se, no vir a ser de seus efeitos sobre todos os outros

    quanta de fora.115 Nesse sentido, no haveria como pensar uma fora

    independentemente de sua efetivao. Ela s efetvel, a fora s existe quando produz

    seu efeito. Dela somente teramos conhecimento pela produo de seu resultado: seu

    existir seria sua expresso.

    Considerada a fora na perspectiva nietzscheana, ela somente existiria no plural,

    existiria enquanto se relaciona com outras foras. Logo, no seria possvel postular a

    fora em si. A fora no seria considerada como algo, como alguma coisa, mas como

    um agir sobre. A fora seria simplesmente um efetivar-se.

    Nietzsche definiria at mesmo o pensamento como uma relao de impulsos:

    pensar apenas a relao destes impulsos.116 O prprio viver seria, em ltima

    instncia, a expresso destes impulsos. O vivente, em qualquer nvel, quer, antes de

    114 NIETZSCHE. Genealogia da Moral, Primeira dissertao, 13 (Cia. das Letras, p. 36)

    115 GIACIA JR., O. O Conceito de Pulso em Nietzsche. In: As Pulses, p. 82.

    116 NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, O esprito Livre, 36 (Cia. das Letras, p. 42)

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    qualquer outra coisa dar vazo sua fora a prpria vida vontade de poder117,

    conforme j citamos. Quer dar livre curso s suas pulses. Nesse sentido, pulses

    estariam intimamente ligadas a instintos, que tambm seriam condies para que possa

    haver escolha, como veremos mais adiante. Nietzsche afirma que essa luta de impulsos

    inerente vida sempre uma luta das foras buscando a soberania de umas sobre as

    outras: onde se luta, se luta pelo poder.118 A partir disso, o que existiria, portanto,

    seria a luta pela dominao, a luta de um impulso por dominar outro o tempo todo em

    todos os nveis de existncia, do menor ao maior vivente e, obviamente o homem

    includo nessa guerra por poder: a igualdade puro delrio: a diferena reina mesmo

    nos mais pequenos seres (vulos, espermatozides etc.). Onde h vida, os agrupamentos

    lutam por espao e nutrio.119 Esta perspectiva nietzscheana sugeriria duas oposies.

    A primeira em relao teoria de Darwin: no se luta pela sobrevivncia, mas por mais

    poder. Talvez, seja possvel dar a prpria vida por mais poder e, assim, a sobrevivncia

    estaria num plano inferior ao da conquista de mais potncia. A segunda oposio seria

    pretensa igualdade humana apregoada pela moral crist. possvel que seja apenas

    mais uma questo de linguagem. Esta luta dinmica impediria a existncia de seres

    iguais. No se poderia nem mesmo postular a existncia de fatos120 iguais. J em O

    andarilho e sua sombra, conforme mencionamos anteriormente, Nietzsche dizia:

    louvamos e censuramos somente sob essa falsa pressuposio de que h fatos iguais,

    117 NIETZSCHE. Para alm de bem e mal, Dos preconceitos dos filsofos, 13 (Cia. das letras, p. 20

    Alianza Ed., p. 36) 118

    NIETZSCHE. Crepsculo dos dolos, Incurses de um intempestivo, 14 (Alianza Ed., p. 101) 119

    NIETZSCHE. Fragmento Pstumo IX 11 [132] da primavera/outono de 1881 cit. in FREZZATTI JR. W. A. Nietzsche contra Darwin, p. 78 120

    Talvez fosse possvel apenas operar com interpretaes: fatos o que no h, e sim apenas interpretaes. NIETZSCHE. Fragmentos finais, p. 164, fragmento [7 (60)]

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    [de que h] grupos de fatos pretensamente iguais (aes boas, ms, compassivas,

    invejosas, e assim por diante).121 Este mesmo posicionamento nietzscheano parece se

    manter por todos os seus escritos e aparecer tambm em textos bastante posteriores

    (1885/86): no existe fenmenos morais, apenas uma interpretao moral dos

    fenmenos.122

    Deixando interpretaes e fatos, a prpria filosofia seria a manifestao desse

    irrefrevel mpeto de domnio onipresente em tudo o que vive. Em ltima instncia, o

    motor da fil