17. Versão Final de Temos o dever de morrer.pdf

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    Wendell Evangelista Soares Lopes

    TEMOS O DEVER DE MORRER?

    Wendell Evangelista Soares Lopes*

    O texto se volta para questes ticas relativas morte ou ao prolongamento da vida. Ao tentar-mos oferecer uma resposta para o problema do prolongamento da vida ou do que se pode bemchamar de a nova busca cientfica pela imortalidade terrena, refletiremos sobre a atual querelaentre mortalistas e imortalistas. Nosso ponto de partida a aceitao de uma virtual imortali-dade como algo realmente possvel. O problema de um prolongamento meramente otimizador,isto , de uma expectativa de vida de 150 anos para todos, levanta, a nosso ver, problemas porvezes distintos. Nesse sentido, pretendemos mostrar que, apesar do fardo da mortalidade, acondio mortal do ser humano possui um sentido moral claro, que exige de cada um o verda-deiro dever de morrer em paradoxal relao com os j conhecidos direito vida e direito demorrer.PALAVRAS-CHAVE: tica. Vida. Morte. Direito.

    INTRODUO

    Temos o dever de morrer? eis o ttulode nosso ensaio. Ele contm, em si mesmo, umaambiguidade e uma provocao, pois se pode logoperguntar: realmente necessrio falar de um de-ver a respeito daquilo que o mais fatal e no re-medivel, isto , a morte? Ora, antes se podia di-zer com o coro de Antgona: sagaz e sem medo, [ohomem] enfrenta o futuro. S no consegue en-contrar salvao contra o Hades, embora saiba cu-rar males sem remdio. Mas tudo isso mudou.Sobre esse simples ponto j se pode perceber todoo valor da novidade tecnolgica atual em relao antiga tchne, pois at esse ltimo dos males semremdio, o Hades, a moderna tecnologia, buscaabater. No mnimo, temos de dizer que o rem-dio ou pelo menos, sua frmula j tem sidobuscado. Para que se perceba a gravidade do pro-

    blema em que entramos com a alvorada do novomilnio, mantenhamos diante dos olhos essa me-tfora do remdio. Todo remdio s o pode serpara uma doena, que, por sua vez, precisa serdiagnosticada. E sob essa perspectiva que a mor-te passa a ser enxergada com os atuais avanostcnico-cientficos. Duas rotas para o diagnsticose mostram sensveis nesse particular: do lado dabiologia, a morte passou a ser compreendida comomera disfuno de uma carcaa com defeito de f-brica, o corpo, cujo envelhecimento no maisvisto como um destino natural irreparvel; poroutro lado, com os avanos da ciberntica, o corpono visto sequer como necessrio, podendo sertranquilamente eliminado. Como resposta a essediagnstico, o leque de possibilidades (fantasiosase reais) dos remdios ou engenhos tcnicos dereparao e abolio da doente e ultrapassada car-caa revestidora, isto o combate contra o nossocorpo mortal, enorme e engloba a criogenia, aressurreio via clonagem, os transplantes de r-gos (incluindo o crebro), as promessas dananotecnologia, o uso de hormnios do crescimen-to humano, a pesquisa com interruptores genti-

    * Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal deMinas Gerais. Bolsista [email protected]

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    cos que controlam o envelhecimento, a perspectivados ciborgues e bioputers, os processos de minduploading, e at o teletransporte. importante sali-entar tambm, nesse contexto, a existncia de um jaquecido mercado de produtos antienvelhecimento(cf. McConnel; Turner, 2005).

    So esses possveis meios de combater a do-ena que, de um modo ou de outro, direcionam eaguam as expectativas dos desesperados aindamortais quanto aos prognsticos da doena comotal. Certamente, no h consenso quanto a isso.Mas, para o que nos importa aqui, sugestiva adistino feita por Daniel Callahan (2002-2003,p.14): ele distingue os prognsticos em normaliza-o (mdia de 85 anos para todos), otimizao(expectativa de 120 anos para todos) e maximizao(150 anos para cima, indefinidamente), o que bempoderamos chamar de uma perspectiva de virtu-al imortalidade. Naturalmente, fato que h ain-da os cticos em relao a qualquer uma dessasperspectivas. No obstante, h tambm muitas ra-zes para se levar a srio os prospectos. Dentreelas, no se pode esquecer o que o trabalho dosbiodemgrafos j nos relata: a expectativa de vidadas pessoas aumenta consideravelmente a cada dia,e isso de maneira espontnea, sem que qualqueresforo direto para tal meta seja levado a cabo. Oque dizer, ento, dos resultados que podero seralcanados com as pesquisas diretamentedirecionadas para esse fim? Mais ainda: face aosfeitos cada vez mais estrondosos da tecnologia,nenhuma possibilidade deve ser descartada deantemo, e preciso realmente escutar com aten-o quando um tecnoprofeta como Aubrey deGrey (2009, p. 85) especula, por exemplo, que aprimeira pessoa a viver at 1000 anos j poderiaestar com 60 anos. Para alm das especulaes,no podemos fechar os olhos para questes decunho judicial e legal que j emergem sobre a na-tureza jurdica do cadver, como no caso dacriogenia.1 Ademais, h de se considerar que esse

    tipo de biotecnologia imortalista a que escancara,de forma mais radical, a questo do melhoramentoe a alterao da imagem de homem que possumos,e, nesse sentido, levanta irrecusavelmente questesticas que merecem um tratamento mais detido.

    Ao tentarmos oferecer uma resposta para oproblema do prolongamento da vida ou do que sepode bem chamar de a nova busca cientfica pelaimortalidade terrena, nos colocaremos entre o quehoje j a querela entre mortalistas e imortalistas.Nosso ponto de partida a aceitao de uma virtu-al imortalidade como algo realmente possvel. Oproblema de um prolongamento meramenteotimizador, isto , de uma expectativa de vida de150 para todos, levanta, a nosso ver, problemaspor vezes distintos. Nesse sentido, a tese que de-fenderemos visa a demonstrar que, apesar do far-do da mortalidade, a condio mortal do ser hu-mano possui um sentido moral claro, que exige decada um o verdadeiro dever de morrer em para-doxal relao com os j conhecidos direito vida edireito de morrer.

    Como primeiro ponto de nossa discusso,devemos confessar que a mortalidade verdadei-ramente um fardo a se carregar. Em nada nos ale-gra o fato de que, no futuro, nossa existncia seextinguir, e que, como amantes da vida, no po-deremos mais desfrutar de tudo que em nossa vidatemos apreo e amamos fazer. A mim, pessoalmen-te, nunca me satisfez, portanto, a famosa investida

    1 No Brasil, por exemplo, o problema da imortalidade terrenaalcanou uma ressonncia que ultrapassa a simples esfe-ra da discusso hipottica sobre o valor da imortalidadecomo tal. No ano passado (ano de 2012), a justia brasi-leira conheceu um intrigante caso que coloca em questo

    a natureza jurdica do cadver: sua conservao por meioda criogenia. O processo judicial tem se desenrolado deforma indita na esteira da briga familiar entre filhas,em especfico em torno da vontade de uma das partes a filha caula Ligia Monteiro, que j gastou mais de 100mil reais para a conservao do corpo em funo da esperada deciso judicial em conservar o corpo do pai, LuizFelippe Dias de Andrade, em uma empresa americana decriogenia, e a vontade da outra parte as outras duasfilhas mais velhas em velar e sepultar o corpo do paimorto. A questo jurdica simples: a quem est reserva-do o direito sobre o cadver do pai, uma vez que este, emvida, nada deixou por escrito a respeito de seu destinops-quase-morte (j que a criogenia lhe promete um re-torno vida no futuro)? Mais: qual a legitimidade jurdicaque garante a prpria ao de uma empresa que prometeuma possvel ressurreio dos mortos? Ainda queporventura venha a estar habilitada para tal algo queainda no o est, mas que pode estar no futuro, o que alivra da charlatanice pura e simples , permitindo-lhe le-galmente atuar nesse sentido. Essa situao particularlevanta para agora a discusso do problema da prprialegitimidade da atuao de uma tal empresa, ou, pelomenos, das regulaes cabveis para a sua atuao.

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    de Epicuro, ao tentar mostrar que o temor da mor-te irracional. Para dizer o mnimo, esse compo-nente qumico do tetrapharmacon pressupe jum-depois-da-morte: pois como poderia um cris-to do perodo medieval e mesmo alguns dostempos de hoje dizer que no h o que se temerquanto ao inferno um lugar onde se alastra oranger de dentes? Isso seria loucura! Para que nonos recaia a acusao de uma crena no infernocristo, levantaremos outro exemplo ps-morte quecertamente no to agradvel como o que pressu-pe Epicuro: refiro-nos quele que retorna eterna-mente e que, como Nietzsche no deixou de anun-ciar a todos e a ningum, exige de cada um, a cadasegundo, decidir pelo melhor sob pena de um far-do eterno. Ademais, podemos dizer que, nos pro-gressos constantes que a medicina vem realizandopara estender a vida em detrimento da morte, apenas expresso de um temor irracional? No cre-mos. Antes, eles nos parecem ser expresso deum desejo humano, demasiado humano. Do pon-to de vista filosfico propriamente, tudo fica aindamais evidente quando, desde uma perspectiva exis-tencial, Heidegger nos convidou a pensar o Daseincomo ser-para-morte. Por causa da precisoheideggeriana, descobrimos que o temor da mortedeve ser traduzido por angstia de morte. E dizerque angstia de morte algo irracional o mesmoque dizer que o homem no pode ser homem. Deforma ainda mais radical, Jonas concebe o fardo damortalidade como uma condio inerente a todoser vivo e, portanto, ao homem como vivente. Amortalidade um fardo porque a possibilida-de da morte que est sempre a espreitar toda avida (Jonas, 2009, p.274). audcia da vida secontrape o risco original da liberdade vital, a apa-rncia da morte, diante da qual o preo que a vidapaga a constante e agonizante angstia de morte,que s aumenta com a ascenso da liberdade nalonga escala gradativa do catlogo do ser. Pode-sedizer que, para Jonas, a angstia angstia que secarrega como fardo constante na luta contra a mor-te. E, nesse sentido, h de se entender que a morte, de fato, um fardo, e isso no pode ser diferentepara um ente mortal.

    Mas a par do fardo da mortalidade, e ape-sar dele isto , sem se negar seu carter de fardo, preciso perguntar, por outro lado, se prolongarindefinidamente a vida no sentido de uma virtualimortalidade , de fato, melhor do que uma vidamortal? A resposta a essa pergunta pode ser pensa-da a partir de dois planos: desde a perspectiva dobem comum da humanidade, assim como desdeaquela do bem individual. Fiquemos primeiro como plano do bem comum da humanidade. Aqui,geralmente, trs formas de crticas so levantadascontra aquilo que se pode chamar mesmo de cru-zada mdica contra a morte (Kass, 2004, p.261).

    Antes de tudo, levanta-se a questo da se-gurana quanto s consequncias do uso detecnologias de imortalizao. Baseado na biologiaevolucionista, Glannon (2002) defende que existeuma boa explicao evolutiva para a senescncia ea mortalidade. Para o autor, a seleo natural per-mite mutaes que causam doenas em uma idademais avanada, mas reduz a um mnimo o apareci-mento dessas mutaes num perodo inicial devida, o que oferece uma vantagem reprodutiva paraos organismos humanos, j que, assim, eles po-dem transmitir seus genes sem maiores problemaspara sua descendncia. O prolongamento da vidapoderia alterar, entretanto, o curso da seleo natu-ral, pois a modificao gentica de telmeros e areconstituio das stem cells podem favorecer ummaior nmero de mutaes deletrias no incio davida, resultando em um dano para as futuras gera-es, ao torn-las mais expostas a doenas e morta-lidade prematura. Desse modo, pensa Glannon, sese aceitam os princpios da biologia evolucionista,ento a possibilidade que estou levantando deve-ria nos fazer interromper de forma temporria an-tes de desenvolver e implementar tecnologias deprolongamento da vida em larga escala. (2002,p.341). , certamente, uma atitude ingnua lanarsobre Glannon a crtica de que a biologia no ofe-rece orientao alguma para a moral. Pois, aqui, odado biolgico no aparece como oferecendo umdever, mas, antes, uma orientao sobre o que nsdevemos julgar como melhor ou pior para as futu-ras geraes. Glannon diz explicitamente: razes

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    biolgicas poderiam influenciar as razes moraisno que concerne como deveramos respeitar osinteresses das pessoas no futuro em no seremprejudicadas (2002, p. 344). bastante claro queo que Glannon defende uma aplicao do princ-pio de precauo (PP). E, nesse sentido, o argu-mento se v rodeado pela controvrsia instauradapelo que os no partidrios do PP chamam de oparadoxo da precauo (Harris; Holm, 2002,p.356): o cuidado [caution] que deveria nos fazerinterromper de forma temporria acaba causandoo dano que no deveramos permitir ocorrer. Oparadoxo, portanto, seria que a precauo contra odano causa dano pouco importando se esse dano pensado positiva ou negativamente.2 No se podedeixar de salientar que os no partidrios de PPreclamam a o fato de que os proponentes de PPsuperestimam os riscos e rebaixam o valor dosbenefcios. Parece, entretanto, uma enorme injus-tia com a considerao da precauo como prin-cpio moral quando considerado como um princ-pio de tudo ou nada, como o caso dos autoresreferidos. Acredito que uma distino mais mode-rada dos vrios tipos de PP, como a que se encon-tra em Clarke (2009), altamente recomendvel.A o PP no aparece como um no a toda possi-bilidade de desenvolvimento tcnico, mas exigeapenas maior cuidado nos passos tomados em re-lao a esse desenvolvimento e esse me pareceser justamente o ponto de Glannon, quando falade uma interrupo temporria. Mais ainda: comobem observou Hugh Lacey, uma verso moderadade PP pode, inclusive, jogar no contra a cincia,mas caminhar na direo de enfrentar a crescentesubordinao da pesquisa cientfica aos interessesdas corporaes e, assim, constituir uma fora para

    repensar e reafirmar os aclamados valores nos quaisdescansa a autoridade da cincia: objetividade,neutralidade e autonomia (Lacey, 2006, p.388).Essas poucas consideraes salientam a importn-cia, de fato, da segurana para pensar a aplicaodas novas tecnologias, mas esto longe de afastar acontrovrsia em torno da precauo que se reclamaem relao a elas principalmente quando o bene-fcio em questo a vida eterna. Nesse sentido, areivindicao de segurana tem um resultado duvi-doso para os nossos propsitos, e acreditamos que aquesto pode ser resolvida de maneira mais seguralevando-se em considerao outros aspectos que, detodo modo, nos parecem mais fundamentais.

    Como segundo motivo, fala-se das poss-veis ms consequncias sociais. Levantam-se, porexemplo, questes relacionadas poltica interna-cional e interna. Pensa-se que as mulheres repre-sentaro um grupo de maior participao eleitoralem funo de sua maior expectativa de vida. Ain-da que as consequncias no sejam claras, sabe-seque isso implicaria, provavelmente, uma menoradeso a algum tipo de interveno militar. Maisainda: a prpria disponibilidade de pessoal mili-tar encolher (cf. Fukuyama, 2003, p.74-75). O queaparentemente parece ser um problema para o re-ferido autor se apresenta como a soluo para aque-les que desejam ou, devemos dizer, sonham com a paz perptua, um sinnimo, portanto, deboa consequncia. Numa direo bastante pareci-da Binstock (2004) mostrou que as tecnologias deprolongamento da vida podem gerar o aparecimentode uma nova coorte, os mais velhos prolonga-dos, e isso afetaria a poltica, porque aumentariaa j maior participao de voto da populao maisvelha. Mas: a) medidas de controle podem serintroduzidas para conter uma maioridade devoto, e b) uma populao envelhecida no signi-fica homogeneidade em termos de deciso eleito-ral. Teme-se tambm que as tecnologias de prolon-gamento da vida gerem maiores gastos comseguridade social. Fukuyama (2003, p.73), porexemplo, salienta que, no Japo, o que hoje j apre-senta uma relao de quatro trabalhadores para umaposentado se tornar, em breve, uma proporo

    2 Para Manson (2002, p.272), a precauo tambm impli-ca, por si mesma, possveis danos. A observao do au-tor tem o mesmo sentido da objeo que se pode fazer aposta de Pascal, tendo-se em vista a possibilidade deexistncia de muitos deuses ou, pelo menos, de umdeus diferente do de Pascal e considerando-se tambmo sofrimento da ascese. J para Sunstein (2005, p.29), aprecauo poderia muito bem privar a sociedade de be-nefcios significativos e, portanto, produzir, srios da-nos. Em relao ao argumento de Manson, a objeo deSunstein acentua o impedimento a um benefcio, aoque o dano aparece no como algo que sofremos ouperdemos, mas como algo que deixamos de ganhar (ex.:um novo remdio).

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    de dois trabalhadores para um aposentado. Resul-tado intrigante dessa possvel m consequnciasocial resulta do contra-argumento que sempre lhe dirigido, a saber: uma vez que o sonho umavida prolongada sem os reveses e as mazelas davelhice, a aposentadoria poderia ser adiada. Mas,nesse sentido, permanece um paradoxo: um dosresultados do fim do envelhecimento que issogeraria a extenso da aposentadoria ou do trabalhoindefinidamente e h de se ter srias dvidas quan-to desejabilidade de ambas as coisas (Temkin,2011, p.362). De qualquer forma, toda a discus-so, neste ponto, pode se expor controvrsiaconcernente a uma revalorizao de novos papeissociais para as pessoas idosas: sugere-se, por exem-plo, que

    [...] coletivamente, a extenso do tempo de vidaoferece para a sociedade na qual ela ocorre ovalor de uma aumentada experincia, know-how,labor, relacionamentos afetuosos, e assim por di-ante isto , tudo que as pessoas (mais) velhas esaudveis podem contribuir (Overall, 2011,p.391).

    bem verdade que a descrio de Overallsobre os idosos saudveis certamente goza de umadose exageradamente otimista para no dizer re-trica , uma vez que ela destaca apenas caracte-rsticas positivas e no ameaadoras. No obstante,parece (ou mais) provvel que os mais velhos, aoestarem de posse do poder que conquistaram du-rante sua j longa vida, busquem conservaracirradamente tal poder (cf. Mordacci, 2011, p.416;Fukuyama, 2003, p.75-77), e, nesse sentido, mui-to antes de relaes afetuosas, devemos esperarum verdadeiro aumento da competitividadeintergeracional que, desde o incio, pende na ba-lana a favor dos j apoderados, isto , dos maisvelhos. Muitas outras preocupaes assolam oimaginrio relacionado s ms consequncias so-ciais. Explicitamos aquelas que, de algum modo,sempre aparecem nas discusses sobre o tema.Acreditamos mesmo que o problema resultante dasimplicaes da aplicao das tcnicas deimortalizao para a sociedade humana um dosprincipais pontos de crtica, mas, em todas elas, a

    questo sempre recai, por fim, sobre a situao idealem que os riscos no se apresentam, isto , em queas complicaes foram resolvidas a um mnimoaceitvel. Aqui, a discusso, alm de estar sujeitaa projees apenas possveis, mas no necessri-as, ainda est exposta contra-argumentao dosproponentes da imortalidade, que podem per-feitamente lanar mo da ideia de planejamento,bem como se valer de outros tipos de atenuaesdos possveis problemas. Enfim, tanto no que tocaao problema da segurana quanto no que se refereao problema das ms consequncias sociais, umaresposta mais segura e firme parece escapar com aevocao de condies ideais de temperatura epresso. A ignorncia aparece apenas como umfreio para a ao, que pode ser retomada sob a tu-tela de novas e mais confiveis condies deexequibilidade.

    E o que dizer da justia? Por acaso encon-traramos aqui uma melhor alternativa? As acusa-es relacionadas justia distributiva aparecemno topo da lista, j que se imagina que o prolonga-mento da vida seria algo caro, ao acesso de unspoucos. , de fato, inegvel que, devido ao altocusto das tecnologias de imortalizao, algumaspopulaes seriam favorecidas, criando o queHarris (2007, p.62), por exemplo, chama de po-pulaes paralelas, isto , populaes de pessoasmortais e imortais vivendo paralelamente. E, comobem percebeu Barazetti (2011, p.343), no se trataapenas de um aumento da diferena da distribui-o das oportunidades de acesso nova tecnologia,mas tambm da distribuio dos recursosambientais entre as populaes e pases, j que,com a queda da taxa de mortalidade, maior ser apopulao e maior o consumo dos recursosambientais. Desse modo, alguns pensam que, emfuno da injustia ou melhor, do aumento dajustia em decorrncia das tecnologias de pro-longamento da vida, deve-se negar as tecnologiasde prolongamento a todos. A censura da novatecnologia por uma questo de justia rebatida,primeiro, com a atenuao do carter indesejvel eat mesmo injusto [unfair] de tal cenrio pela va-lorizao dos benefcios que as tecnologias de pro-

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    longamento da vida tambm trazem. Assim, Harris,por exemplo, defende o seguinte:

    [...] se a imortalidade e o aumento da expectativade vida um bem, eticamente duvidoso negarbens palpveis para algumas pessoas porque nopodemos os oferecer para todos. E essa injustia[unfairness] no simplesmente contingente,uma funo deplorvel, mas em princpioextinguvel, por falta de recursos. Sempre voexistir circunstncias nas quais no podemosprevenir danos ou fazer bem a todos, mas nin-gum certamente pensa que isso nos d uma ra-zo para recusar a prevenir o dano a algum emparticular (Harris, 2007, p.62).

    Ademais, os defensores das tecnologias deimortalizao afirmam que essas diferenas de aces-so acontecem com toda nova tecnologia, mas que,com o tempo, elas se disseminam por toda parte,uma vez que tendem a se tornar mais baratas. Umagrande estranheza a respeito da reclamao da jus-tia a esse respeito o fato de que a diferena nadistribuio dos anos de vida foi uma realidadeconstante da existncia humana, mas nunca recla-mada. Com as tecnologias de prolongamento davida, assistimos ao primeiro fato, na histria, emque se questiona a justia ou injustia de uns vi-verem mais do que outros.

    Somado a esta estranheza, outro aspecto doproblema gera perplexidade: a justia aparece comoum motivo tanto para a censura e conteno dastcnicas de prolongamento da vida como para ouso dessas mesmas tcnicas. Pois, se, por um lado,elas podem ser fontes de injustia, por outro, elasseriam o prprio veculo da justia. Essa ltimaposio defendem, principalmente, Buchanan etal. (2000) e Overall (2009) para ficar com os ar-gumentos mais influentes.3 Para Christine Overall,em especial, a aplicao das tecnologias de pro-longamento do tempo de vida deve levar em con-siderao a categoria de identidade social para sepensar o acesso, o significado e o valor de tais

    tcnicas, e as implicaes disso para a poltica. Aoinvs de uma justia meritocrtica, devemospensar em termos de uma justia compensat-ria, pois, segundo ela,

    [...] podemos ter algumas obrigaes de compen-sar a loteria social que torna certas filiaes aum grupo [group memberships] uma deficincia[liability] [...] [Ao contrrio], poderamos bemter mais obrigao de oferecer um enhancementdo tempo de vida para membros de alguns gru-pos do que para membros de outros (Overall,2009, p.337).

    Mas, se bem se percebe, aqui a discussoperde todo o sentido, pois, como destaca Mordacci,

    [...] o ponto em questo aqui no se deveramosestender o nmero de vidas longas (que podeser considerado um dever de justia), mas se de-veramos estender o tempo de vida humano, oque um problema diferente: mais vidas longasno implica vidas mais longas (Mordacci, 2011,p.415, grifo nosso).

    Posto isso, gostaramos de voltar a um pon-to j salientado e que poder nos conduzir a umaltima possibilidade da discusso sobre a justia.Refiro-me ao argumento que considera que deve-mos negar o acesso s tecnologia de prolongamen-to de vida a todos (mas vale tambm para qualquerideia de justia compensatria). O argumentotem, em si mesmo, uma lgica estranha. Se, defato, uma injustia que alguns tenham acesso imortalidade terrena e outros no, porque, defato, pensam que a imortalidade como tal no ofe-rece problemas de outro tipo que no aqueleconcernente justia isto , ao igual acesso auma vida prolongada indefinidamente. Mas, se assim, uma opo que parece muito mais aceitvelseria afirmar, como o faz Bostrom (2004, p.503), que... uma das formas de contrabalanar a desigualda-de trazida pelas tecnologias de enhancement seriasubsidi-las ou fornec-las de forma gratuita para osdescendentes de pais pobres. Mas podemos espe-rar um melhor resultado com essa opo de se subsi-diar as tecnologias de imortalizao para todos?

    Para responder ao problema, utilizaremosum experimento mental na verdade, a simples

    3 Abaixo, discutiremos brevemente apenas o caso deOverall (2009), porque, ao contrrio do que acontececom a discusso que se encontra em Buchanan et al.(2010), que se concentram numa defesa de aplicaesmais relacionadas ao combate de incapacidades(disabilities) do que propriamente ao enhancement dotempo de vida, ela ataca diretamente o problema dastecnologias de prolongamento da vida.

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    suposio de uma situao ideal para analisar oque tal situao nos oferece como indicao para apergunta pelo bem comum da humanidade. Emuma situao ideal de temperatura e presso, o quediramos, do ponto de vista moral, se, em termosde segurana, consequncias sociais e justia, aimortalidade terrena no apresentasse problemas.Isto : se, por um lado, todos os riscos inaceit-veis (decorrentes da aplicao tcnica) para as fu-turas geraes fossem sanados, e se, por outro,com um planejamento eficiente da estruturaosocial, as mazelas fossem atenuadas de modo ra-zovel ao nvel do que j presenciamos, e, por fim,se a todos fosse dado acesso ao benefcio eternoda vida? Atendendo a tais requisitos, no seria elareprovvel moralmente? Num tal cenrio, poder-amos dizer que o prolongamento indefinido da vida moralmente aceitvel? Ora, fcil de ver que, nocaso das tecnologias de imortalizao, mesmo numasituao ideal como essa, estaramos diante tam-bm do caso de maior irresponsabilidade moral,pois, uma vez que todos tivessem acesso a umaimortalidade terrena, a natalidade se tornariainconcebvel. Como bem salientou Jonas,

    [...] uma vez que se percebe que a mortalidadeno seno o outro lado do perene florescer danatalidade [...] na escala demogrfica, o preo deuma idade estendida precisa ser uma diminuioproporcional da reposio (Jonas, 1984a, p.49).

    Com o termo natalidade, Jonas segue bemde perto aqui sua amiga Hannah Arendt,4 que nopor acaso, em seu Dirio Filosfico (no aforismo61, de Outubro 1969), afirma: ... o desejo de imor-talidade terrena blasfmia, no porque queira eli-minar a morte, mas porque nega o nascimento(2006, p.722). Assim, para alm do problema dajustia, que, nesse caso, se torna mesmo imoral, ocerne do problema, aqui, se refere ao valor in-trnseco da natalidade.5

    Mas o que exatamente h de blasfmia naextino da natalidade? Para se entender correta-mente o sentido da posio de Jonas, precisoentender o verdadeiro significado da natalidade.Logo de sada, h que se entender que ela ... umatributo da condio humana to essencial quantoa mortalidade (Jonas, 2009, p.277). Mas o queespecificamente ela atrela a tal condio? Em umaentrevista concedida a ngelo Bolaffi, para o jor-nal italiano LUnit, Jonas nos diz:

    o especificamente humano, diferentemente daclula que se autorreproduz por diviso ao infi-nito, a diferenciao dos sexos, a reproduo e,por conseguinte, a morte. O sentido da morte aautorrenovao da vida e, portanto, a ulteriorautodiferenciao, o desenvolvimento (Jonas,1991b, p.17).

    Com esses trs termos autorrenovao,autodiferenciao e desenvolvimento , Jonas resu-me o que a natalidade representa como resposta es-sencial mortalidade. Mas o que cada um deles re-presenta especificamente? Enquanto autorrenovaoda humanidade, a natalidade precisa ser pensadacomo emergncia de um novo comeo:

    [...] a juventude nossa esperana, ela a pro-messa eterna para que a vida mantenha sua es-pontaneidade. Com seu incio sempre renovado,com todas as suas loucuras e hesitaes, o jo-vem que sempre renova e assim mantm vivo osignificado do espanto, da relevncia, daincondicionalidade, do compromisso supremo,que (sejamos francos) adormece em ns medi-da que ficamos mais velhos e cansados. (Jonas,1980, p.182)6.

    Essa afirmao no dever ser lida como seJonas estivesse defendendo a juventude como umsimples mecanismo de defesa contra o tdio da

    4 Jonas, inclusive, escreveu um ensaio sobre Arendt, ondeele presta elogio ao conceito de natalidade elaborado porsua amiga em The Human Condition (cf. Jonas, 1977,esp. p.30-31). Sobre o conceito de natalidade em Jonas,ver tambm os trabalhos de Jean Greisch (1994, esp.p.82-89) e de Nathalie Frogneux (2004).

    5 Um importante aspecto da questo foi explicitado porVittorio Hsle, quando destaca que a teoria da justia,

    tal como a concebe John Rawls, tem grandes dificulda-des de justificar o princpio da justia inter-geracional;ele precisa pelo menos em uma de suas linhas de raci-ocnio assumir um desejo factual pela descendncia,que no em si mesmo fundamentado (Hsle, 2004,p.225n15). importante salientar a observao de umcomentador japons do pensamento de Jonas: em fun-o da conscincia intergeracional que marca a culturajaponesa, mais persuasivo no Japo insistir na ticaintergeracional baseada no conceito de responsabilidadedo que na teoria rawlsiana do contrato social(Shinagawa, 2012, p.26).

    6 Na mesma direo do argumento anterior, mas levemen-te distinto, como salienta Temkin (2011, p.364), essamesma ideia aparece no consolo proclamado no YisgorService do Dia Judaico da Expiao: [...] se alguns men-sageiros fossem enviados at ns com a oferta de que a

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    velhice. A questo aqui no o tdio propriamen-te, pois, se bem se percebe, Jonas se refere ao pla-no do coletivo e no do individual. Antes a ju-ventude considerada em seu prprio valor e isso atal ponto, que, em uma outra entrevista, Jonas pensasobre o significado da juventude:

    O que , ento, o jovem? O que , ento, a crian-a? Os olhos abertos [Augenffnen] em um mun-do ao qual esses entes ainda no viram e do qualprecisam se apropriar, descobrir, e no qual elesmesmos precisam encontrar sua prpria respos-ta. Esta a fonte de eterna renovao no homem...A sorte que sempre novamente nascem entespara os quais tudo novo. Estes veem o mundopela primeira vez. Isto abre novos horizontes.(Jonas, 1991a, p.143-144, grifos nossos).

    Aqui, jovem se torna mesmo uma nova ca-tegoria filosfica e aponta para a condio de possibi-lidade de renovao do mundo humano. A metforados olhos abertos no despropositada, mas visa alembrar a perspectiva antropolgica defendida j emThe Phenomenon of Life (1966), onde a viso res-ponde pela prpria fasca do pensamento humano(cf. Jonas, 2001, p.135-156). O nascer o recomeode uma nova abertura para a verdade do ser comotal. Trata-se de uma abertura em que a prpria expe-rincia da verdade est em jogo novamente.

    Junto com a emergncia do novo, a natali-dade como auto-diferenciao da humanidade re-presenta a oferta de suprimento da alteridadecomo tal (Jonas, 1984a, p.49; 1984b, p.19). Por-tanto, ela atende lgica da alteridade em detri-mento da lgica do mesmo. Mais precisamente, oque se tem de entender que

    outra recompensa da natalidade tambm a deque cada um dos recm-chegados diferente enico. A funo da reproduo sexual tal quenenhum de seus resultados , em termos de cons-tituio gentica, a rplica de um antecessor enenhuma rplica sequer ser reproduzidaconsequentemente (Jonas, [1991] 2009, p.277).

    Como bem viu Jean Greisch, [...] a natali-dade exprime, assim, o fundamento ontolgico daunicidade de cada indivduo humano. (1994,p.84). Nesse sentido, a busca pela imortalidadeterrena apareceria como uma busca pelo mais co-nhecido e no pelo diferente. Essa mesma crticaJonas j utilizara contra a clonagem, em seu argu-mento existencial, e aqui ele apenas a repete doponto de vista da natalidade: o que est em jogo a ideia de uma ipseidade sem prejuzo; agora, nono sentido individual apenas, mas na esfera daprpria humanidade.

    A autorrenovao e a autodiferenciao pr-prias da natalidade apontam, consequentemente,tambm, para o desenvolvimento da humanidade.Eis o que Jonas diz ser o verdadeiro escopo de suareflexo:

    [...] a ligao da mortalidade com a criatividadena histria humana. Quem quiser, portanto, secomprazer com a colheita cultural das vrias po-cas em cada uma de suas facetas e no deseja pas-sar sem elas, e mais claramente aquele que louvae advoga o progresso, deveria ver na mortalidadeuma bno e no uma maldio (2009, p.278).

    Destaque deve ser dado aqui colheitacultural das vrias pocas, e o que ele tem emmente so as mudanas polticas, sociais e mesmointelectuais que o aparecimento de novos enteshumanos pode acarretar algo que ocorreria demodo muito mais lento sob pena mesmo deenrijecimento, caso esses novos seres no viessemao mundo. Fukuyama percebeu bem o valor dessacolheita no que concerne ao aspecto intelectual:

    [...] a sobrevivncia de um paradigma bsico(por exemplo, keynesianismo ou friedmanismo),que molda a maneira como a maioria dos inte-lectuais e cientistas pensa sobre as coisas nummomento particular, depende no apenas dosdados empricos, como gostaramos de acredi-tar, mas da sobrevivncia fsica das pessoas que

    morte devesse ser abolida, mas com a nica condioinseparvel de que nascimentos tambm deveriam dei-xar de acontecer; se as geraes existentes tivessem achance de viver para sempre, mas com o claro entendi-mento de que nunca mais existiria uma criana, ou umjovem, ou um primeiro amor, nem novas pessoas comnovas esperanas, novas ideias, novas realizaes, [...]poderia a resposta estar em dvida? Roberto Mordaccipercebeu bem, nessa mesma direo, que, para alm dasquestes de ms consequncias sociais, as tcnicas deprolongamento da vida tm como resultado o fato deque ao mesmo tempo, a variedade de ideias, energianova, e atividades criativas sero reduzidas (2011,p.414). Intrigantemente, o autor no desenvolve esseimportante fato por concentrar sua ateno no proble-ma da justia.

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    criaram esse paradigma. Enquanto elas se man-tiverem no topo de hierarquias graduadas pelaidade, como conselhos de avaliao de pares,comits para o preenchimento de cargos e con-selhos curadores de fundaes, o paradigma b-sico permanecer, em geral, praticamente ina-balvel (Fukuyama, 2003, p.78).7

    No sem motivo a natalidade era, paraArendt, o milagre que salva o mundo8 e torna-se,por isso mesmo, uma tarefa da responsabilidadepara Jonas. No obstante, esse sentido do argu-mento de Jonas o valor da natalidade comoautorrenovao da humanidade e passo para umulterior autodiferenciao e desenvolvimento dacivilizao , de alguma maneira, no parece terescapado a Harris, que, ao que lhe toca, parecetentar encontrar uma soluo para o problema.Ainda que reconhea que novas pessoas, novasideias, e a possibilidade de um desenvolvimentohumano continuado so razes poderosas a seconsiderar, ele sugere, entretanto, num tomdeliberadamente repulsivo [unpalatable], algocomo uma limpeza geracional [gerationalcleansing] (cf. Harris, 2004, p.532; 2007, p.69).Isto diz ele envolveria decidir coletivamentequanto tempo, para as pessoas, razovel viverem cada gerao e tentar assegurar que o maior

    nmero possvel viva saudavelmente tal extenso[de tempo] (Harris, 2004, p.532; 2007, p.69). Odesespero sofstico do argumento de Harris queno pode ser considerado seno retrico pa-tente: o homem que, nove pginas antes, em seutexto, aclamava a imortalidade como o santograal do melhoramento, parece agora se confor-mar com apenas um perodo justo [fair innings]de vida. Para fazer uso do estilo um tanto sarcsti-co do prprio Harris, preciso mesmo imaginar amesa de tal acordo de limpeza geracional, e, prin-cipalmente, o momento em que o mdico dar anotcia ao seu pobre paciente mortal: Veja bem dir o mdico , aqui est o seu elixir da juventu-de, mas, em acordo firmado pelos homens de bemde nosso povo, mesmo que o senhor no venha asofrer um acidente e mesmo que esteja em plenasade (graas s proezas alcanadas por nossamedicina arrojada), ao cargo de 200 anos ters quedar cabo a tua vida para que se cumpra a limpezageracional do nosso povo.

    Basta imaginar tal cena para perceber o ab-surdo da sugesto. Tambm Christine Overall (2005,p.85) explicitou grande ceticismo quanto ao argumentode Harris frente a tal limpeza geracional, pois, se-gundo ela, isso compartilharia com a limpeza tnicao assassinato deliberado de centenas, talvez milha-res, de pessoas, cuja nica culpa foi a de que elesforam considerados um fardo e foram preteridos nasociedade.

    Apenas com o argumento apresentado ataqui, Jonas j teria aberto um campo enorme paraa resposta do bem comum da mortalidade comocontrapartida essencial da natalidade. Mas pre-cisamos ainda nos voltar para o segundo plano dadiscusso, aquele da mortalidade como bem in-dividual para o Eu (self). Pois notem: a defesa dovalor da natalidade s se aplica considerao deuma imortalidade terrena estendida a toda a hu-manidade isto , numa situao em que o rem-dio estivesse disponvel a todos. Isso no precisaser assim. Poder-se-ia imaginar que apenas a al-

    7 Regras de aposentadoria compulsria aparecem justa-mente para evitar a discriminao. Mas essas atitudeseram regras impessoais e discriminatrias e foramabolidas em muitos lugares dos EUA. No obstante, pormais que a crtica ao preconceito ao idoso tenha entradona lista da correo poltica junto com o racismo, se-xismo, etc., Fukuyama afirma, entretanto, que h [...]vrias razes que fazem da sucesso das geraes umaboa coisa. A principal que ela um grande estimulantedo progresso e da mudana. (p.77). Para Fukuyama,mesmo os paradigmas cientficos tendem a se manterem funo da influncia de um determinado grupo queocupa a posio de prestgio, o que, no caso de um maiorprolongamento de vida, alargaria sua influncia intelec-tual e do paradigma vigente.

    8 Em seu Dirio, Arendt narra como lhe veio cabea aideia do que viria ser o conceito de natalidade: inespera-damente, num concerto em Berlin, onde assistira a umainterpretao do Messias de Haendel. Como o conceitode natalidade poderia ter uma origem to desconcertantecomo essa? No aforismo 12, de maio de 1952, ela nosrevela: O aleluia [no Messias de Haendel] s pode serentendido desde o texto: nos nasceu um menino. Averdade profunda desta parte da lenda de Cristo se ex-pressa em: todo comeo salvao; por meio do comeo,por meio desta salvao, Deus criou o homem dentro domundo. Cada novo nascimento como uma garantia dasalvao no mundo, como uma promessa de redenopara aqueles que j no so o comeo. (Arendt, 2006,p.200). Mais tarde, na conferncia Trabalho, Obra, Ao,diz ela: [...] sem a ao, sem a capacidade de comearalgo novo e, deste modo, articular o novo comeo que

    entra no mundo com o nascimento de cada ser huma-no, a vida do homem, que se estende desde o nascimen-to at a morte, seria condenada sem salvao. (Arendt,1995, p.107; cf. Arendt, 1998, p.177).

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    guns poucos afortunados seria permitido conce-der o benefcio eterno. Assim, preciso perguntarse tais afortunados teriam, de fato, uma boa fortu-na. Ora, j muitas consideraes foram tambmdiscutidas e tm sido discutidas para negar a imor-talidade, inclusive, como bem individual, e acre-dito que, dentre as vrias razes levantadas, pelomenos uma no nos parece deixar muita margemquanto resposta. Vejamos.

    De sada, o problema, como bem mostrouJonas, pode ser associado primeiro questo dese uma vida curta, mas plena, prefervel a umalonga vida na inatividade. (Jonas, 1984c, p.81).Nesse caso, ainda que a maldio do no-poder-morrer exemplificada nos imortais de JonathanSwift seja mais sagaz e instrutiva do que o supos-to privilgio de um no-ter-que-morrer tal comoo louvava, por exemplo, Bernard Shaw ela so-fre, entretanto, da falha de que a tais imortais [...] negada a morte, mas no lhes so poupadas asenfermidades da velhice e as indignidades da se-nilidade. (Jonas, 2009, p.279). Mas, ao se exclu-rem os males da senilidade, ento, uma vida brevecontinua ainda sendo prefervel a uma longa vida?Tomando como exemplo a personagem ElinaMakropulos, Bernard Williams, j em 1973, sedecide pelo fato de que o problema seria agora otdio de uma vida imortal. Aqui, Jonas est dolado de Williams, pois se lembra desse novo casoda maldio do no-poder-morrer, onde noentram em jogo os males da senilidade: Ahasver,o judeu imortal, que nada desejava mais ardente-mente do que poder morrer. (Jonas, 2009, p.142).No obstante, creio que, alm das difceis ques-tes que se levantam, como o prprio Williamsanteviu, a respeito da constncia do carter, preciso dizer que o argumento do tedium vitae esfacelado de um s golpe com o belssimo contoViver!, de Machado de Assis. Nele, o maior escri-tor de nossa lngua explora justamente o drama dafigura lendria de Ahasver, que fora condenada aviver errante at a Parousia. O quadro maravilho-samente pintado o do homem talvez o nico que conhece o verdadeiro tdio. E, apesar disso,quando o sagaz Prometeu lhe promete a terra pro-

    metida, o que vemos acontecer? A recusa daqueleque, momentos atrs, amaldioava veementemen-te sua prpria vida miservel e tediosa? No. Ve-mos, antes, os olhos flamejantes daquele que dizEu quero! A concluso de Machado de Assispode, ento, ser resumida com essa simples zom-baria de duas guias que de longe avistavamAhasver:

    [Uma das guias diz:] Ai, ai, ai deste ltimo ho-mem, est morrendo [uma referncia Parousia]e ainda sonha com a vida [o cu pintado por aqueleque o promete: Prometeu]. [E a outra completa:]Nem ele [o judeu imortal] a odiou tanto, senoporque a amava muito (Assis, 1997, p.569).

    O que Machado nos ensina a que a vidahumana comporta essa bela ambiguidade segundoa qual ela, contra todos os horrores, parece sem-pre dizer no ao no-ser. Pelo mesmo motivo, tam-bm no nos parece alcanar um resultado muitomelhor o argumento de Richard Norman (1996)sobre a morte como um limite orientador para asnossas projees de vida argumento que no seno uma nova verso do memento mori, ao qualtambm Jonas j prestara elogio9 e que foi maisbem estilizado posteriormente com as virtudesda mortalidade destacadas por Leon Kass (2004).

    Se, ento, o tedium vitae e a sabedoria domemento mori no bastam para contestar a meta daimortalidade terrena ativa, isso no significa, entre-tanto, que estamos diante de um impasse entre o quesupostamente seria o bem individual da imortalida-de terrena e o bem da mortalidade para humanida-de. Com um experimento mental brilhante, Jonasofereceu em The Burden and Blessing of Mortality(1991) uma direo para responder ao problema:10

    [...] somos seres finitos diz ele e mesmo quenossas funes vitais continuem intactas, exis-

    9 [...] o papel do memento mori deveria ser consideradopara a vida individual, e para o que sua atenuao inde-finidamente pode provocar a tal vida. Talvez um limiteinegocivel para nossa expectativa de vida seja necess-rio para cada um de ns como um incentivo para contar-mos nossos dias e faz-los contar (Jonas, 1984a, p.50).

    10 Parece-me que o prprio desenvolvimento de um novoargumento contra o valor da imortalidade terrena para oindivduo demonstra que o prprio Jonas no estava detodo satisfeito com as sabedorias do memento mori e dotedium vitae.

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    tem limites para o que nossos crebros podemarmazenar e continuar acumulando. a partemental de nosso ser que, mais cedo ou mais tar-de, exigir descanso, [pois] mesmo que os magosda biotecnologia inventem truques para mantera mquina do corpo funcionando indefinidamen-te [...] [eles] tambm teriam que limpar a menteperiodicamente de seus antigos contedos (comoum computador) para que possam dar lugar aosnovos... A grande verdade de nossa finitude ade que, seja l como for, s poderamos continuara viver ilimitadamente ao preo ou da perda dopassado, e com ele nossa real identidade, ou ape-nas vivendo no passado e, portanto, sem um ver-dadeiro presente. No poderamos seriamentedesejar nem uma coisa nem outra [...] (Jonas,[1991] 2009, p.279-80).

    Contra esse argumento, entretanto, Harrisafirma o seguinte:

    [...] fcil perceber diz ele que a identidadepessoal no algo necessrio para um desejo co-erente de sobrevivncia indefinida. Suponha queMatusalm tem trs identidades, A, B, e C, ori-ginando-se verticalmente at o futuro e que C denada se lembra da vida de A. Mas suponha queisso tambm verdadeiro: A quis ser B, que selembrar de ser A; B se tornar C, que se lembra-r de ser B. (Harris, 2007, p.65).

    Contra Harris, entretanto, preciso dizer:primeiro, no to fcil ver que a identidade pes-soal no seja algo necessrio para se desejar conti-nuar a viver indefinidamente. Se quero continuara viver, o quero sendo eu mesmo e no outra coi-sa. Mas, ento, o que dizer do que afirma Harris?Para mostrar os problemas envolvidos nessa posi-o, preciso considerar dois pontos: (1) ela sebaseia em uma falsa compreenso do que a iden-tidade pessoal, e, por isso mesmo, (2) d a falsaimpresso de que a identidade pessoal no ne-cessria para o desejo de se continuar a viver gerando, inclusive, problemas nefastos do pontode vista moral. Para tanto, consideraremos critica-mente a concepo sobre a identidade pessoal ela-borada por Derek Parfit (1987), que no apenas aque est por trs do argumento de Harris, mas temtambm a maior influncia nas discusses sobre oproblema mo.

    Parfit parte de uma crtica do que consideraser a verso padro da identidade pessoal, a sa-ber: o critrio do espao-tempo. Parfit levanta trs

    problemas: (1) um objeto pode ser dividido emum momento e depois remontado e continuar aser o mesmo; (2) pode ter suas peas substitudase continuar a ser o mesmo; e (3) a indeterminaode nossos conceitos deixa indeterminada tambma certeza quanto aos objetos de que so conceitos.Isso leva necessidade de adoo de critrios prag-mticos. A questo de se a coisa a mesma vazia.A verso-padro se aplica mais a objetos fsicos.No caso da identidade pessoal, o aspecto psico-lgico (memria, emoes, etc.) que importa, demodo que a identidade pode permanecer, mesmoque se ocupe outro corpo, ou mesmo, como em cer-tas concepes religiosas, independentemente daexistncia corporal. Assim, ao invs de continuida-de fsica, o critrio a continuidade psicolgica,que, no caso de Parfit, pensada em termos de co-nexo psicolgica. Aqui aparece o que defendia ex-plicitamente Harris seguindo Parfit: se B (quase) selembra e (quase) quer o que A experimentou e que-ria, ento B e A esto ligados psicologicamente.11

    A conectividade psicolgica pode ser pen-sada de uma perspectiva tanto no reducionista(dualista ou no) como reducionista. A primeiraconcebe a pessoa (como sujeito psicolgico quepersiste) como ente irredutvel. E a outra pensaque a pessoa pode ser reduzida existncia docrebro e do corpo. Para o fisicalista, o psicolgicodepende da causa normal, que o suporte materi-al, portanto, de sua continuidade. Mas Parfit acre-dita que isso no necessrio, antes a organiza-o da matria e no a matria mesma aquilo quedetermina a continuidade ou conectividade psico-lgica. Um exemplo pode nos ajudar: numa cirur-gia em que parte do crebro extrada, mas umacpia dessa parte (sem o problema que o outroapresentava) colocada no lugar, sendo capaz demanter a memria, ento o processo mnmico se-ria to bom quanto o original, e a continuidadepsicolgica no dependeria do mesmo suportematerial, tal como acontece no metabolismo. Nes-se sentido, em vez do continuador mais prxi-

    11 Parfit destaca o quase porque no se pode tratar, defato, de memria e de inteno, j que tais conceitosimplicam, em si, a identidade.

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    mo de Nozick (1981), o que determina a futuraidentidade pessoal a continuidade psicolgica(formal, e no material) do indivduo passado.

    Agora, uma vez que se entende tudo isso,no difcil perceber por que uma simples cone-xo psicolgica serve de bom grado, por exemplo,a Parfit e tambm a Harris e seus propsitos,podendo, inclusive, substitu-lo no futuro. Masnotem: de substituio se trata de fato, e no decontinuidade. Para que se entenda que a no te-mos verdadeira identidade, mas sua falncia, ofe-recemos um exemplo: imaginem que uma certapessoa possui determinados projetos, memrias,etc. Essa pessoa tem tambm um grande admira-dor, que conhece esses projetos, conhece a vidadessa pessoa nos seus mais intricados momentos(suas memrias), etc. Se a primeira pessoa so-fresse um grave acidente, perdendo boa parte damemria bem como seus projetos, mas seu admira-dor levasse a cabo, por conta prpria, tais projetos,o que poderamos dizer? O admirador, enquantoleva adiante o que aquele a quem admira no pode,adquire a identidade daquele que j no a pode maislevar adiante? Ou apenas o corpo que resta pri-meira pessoa garante-lhe, perante seu admirador eimitador, o lugar de honra de ser si mesmo? Tam-bm Christine Korsgaard percebeu o cerne do pro-blema, pois, na concepo de Parfit, diz ela:

    a continuidade e no a unicidade que real-mente importa. Pois se o aspecto essencial deuma pessoa formal e copivel, ento em princ-pio parece que poderamos fazer duas cpiasigualmente boas de uma pessoa. Ambas seriamformalmente contnuas com a pessoa original;cada uma delas teria as memrias, o carter, asambies e os amores da pessoa; cada uma delasacreditaria, ou pelo menos sentiria, que ele apessoa original. Nesse caso , a questo sobre qualdeles a mesma pessoa que a original umaquesto vazia. Nesse caso, e pode no importar,ou pode depender de circunstncias, o que deve-ramos dizer a respeito disso. E assim a identida-de pessoal no importante. (Korsgaard, 1989,p.107)12

    Mesmo que aquilo que Parfit consideracomo continuador, na conexo psicolgica, preci-se de uma conexo direta (e sobre o que ele querdizer com direta no sabemos ao certo), no completamente satisfatrio. Como bem observaKorsgaard, no bvio que

    ter os traos de memria de outra pessoa copia-dos em nosso crebro seja um modo mais diretode conhecer algo do que ser informado. Sem d-vida ele teria um sentimento [feel] mais diretodela, pois seria sentido como uma memria, masisso no faria diferena alguma para o que im-porta (Korsgaard, 1989, p.107n14).

    De qualquer forma, a ideia de uma conti-nuidade via conexo psicolgica certamente umareinveno mais sagaz do que a antiga ideia dahereditariedade como imortalidade, afinal ela car-rega meus propsitos adiante de forma que filhoalgum o poderia. No obstante, trata-se de umaimortalidade irreal e mais escrava tambm, pois omeu continuador vem ao mundo apenas em fun-o de uma espcie de misso completar minhasintenes, meus projetos, meu lugar e papeis comopai, esposo etc. Assim, a soluo de Parfit a qualHarris segue explicitamente13 levanta a perguntapelo valor e dignidade daquele que continua comparte da minha vida psicolgica, que, j de sada,se encontra numa situao de prejuzo quanto sua ipseidade em relao aos demais entes, comono caso da clonagem. Ademais, estaramos de novodiante de uma situao que implicaria a negao emuito provavelmente a abolio da natalidade eisso j tnhamos considerado como inaceitvel.

    Para terminar, gostaramos apenas de dei-xar destacado tanto o resultado a que chegamoscomo alguns problemas que deixaremos apenasindicados como questionamentos para posterioresreflexes. O resultado pode ser facilmente resumi-do com esse pequeno verso:

    A vida eis o que quero!A vida eis o que no posso!Outrora, a naturezaAgora, moral ofensa.

    12 Tambm Roberto Marchesini, transhumanista convic-to, admite o resultado a que chegamos: [...] no se podenegar uma correspondente queda [caduta] total ou par-cial da identidade. Ressuscitar de modo tecnolgico sig-nifica principalmente perder a prpria identidade [profilo]ou, melhor, comprometer a possibilidade de ter uma iden-tidade (2005, p.500).

    13 Cf. Harris ( 2007, p.215n7).

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    O que ele expressa um paradoxo: de umlado, a vontade imensa do viver alimentada pelatcnica! De outro, a impossibilidade colocada pelodever moral de morrer! Dever esse alicerado nonum suposto bem em si da mortalidade, mas nobem que a natalidade. Ao ser promessa de umnovo comeo da humanidade, ela e apenas ela podeconceder mais sentido nossa mortalidade pelomenos mais sentido do que uma vida indefinidaque se esvaece na perda da identidade, algo quetem to pouco sentido quanto morrer! e, nessesentido, exigir de ns a aceitao de nossa finitude.

    Quanto s questes que ficam, direi primei-ro: uma vez que a perspectiva de imortalidade seexpe a todas essas contradies discutidas eno so poucas , resta ainda saber se mesmo abusca positiva de um considervel aumento daextenso da vida desejvel. A questo aqui seria:quanto tempo o bastante? Ademais, ao se afir-mar o bem da mortalidade, afirma-se a morte comonica meta final da vida humana? Ou h aindalugar para se pensar a ideia de imortalidade numavida mortal?

    Recebido para publicao em 20 de outubro de 2012

    Aceito em 04 de novembro de 2012

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    DO WE HAVE THE DUTY TO DIE?

    Wendell Evangelista Soares Lopes

    The text centers on ethical questionspertaining to death or to the prolongation of life.By attempting to offer an answer to the problem oflife prolongation, or to what might be called thenew scientific quest for terrain immortality, we shallreflect on todays quarrel between mortalists andimmortalists. Our starting point is the acceptanceof a virtual immortality as something really possible.The problem of a merely optimizing extension, i.e.,of a life expectancy of 150 years for all, rises, in ourview, questions which are sometimes distinct. Inthis sense, we wish to show that, in spite of theburden of mortality, mans mortal condition has aclear moral sense, that requires of every one agenuine duty to die paradoxically relating to thealready known rights to life and to die.

    KEY-WORDS: Ethics. Life. Death. Right.

    AVONS-NOUS LE DEVOIR DE MOURIR?

    Wendell Evangelista Soares Lopes

    Ltude se penche sur des questionsthiques relatives la mort et la prolongation dela vie. En essayant dapporter une rponse auproblme de la prolongation de la vie ou de ce quenous pourrions appeler une nouvelle recherchescientifique de limmortalit terrestre, nous enviendrons une rflexion sur la querelle actuelleentre mortalistes et immortalistes. Notre point dedpart est lacceptation dune immortalit virtuelleconsidre comme quelque chose de vraimentpossible. Le problme dune extension peineoptimisatrice, cest--dire dune esprance de viede 150 ans pour tout le monde soulve, notreavis, des problmes distincts. Dans ce sens, nousavons lintention de dmontrer que malgr le poidsde la mortalit, la condition mortelle de ltrehumain a un sens moral clair qui exige de la partde chacun un vritable devoir de mourir dansune relation paradoxale avec les droits dj connusde vivre et de mourir.

    MOTS-CLS: thique. Vie. Mort. Droit.

    Wendell Evangelista Soares Lopes - Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais.Bolsista CAPES. Membro do Grupo de Pesquisa do CNPq Pensamento contemporneo: as biotecnologias e ofuturo da humanidade. Concentra suas pesquisas na rea de Filosofia, com nfase em Metafsica, tica eFilosofia da Cincia e Filosofia da Tcnica.