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PESPECTIVA NEGRA SOBRE O GOLPE Dialogos possíveis, provocações necessárias: saídas democráticas para o Brasil (...)mover-se em direção às margens, encontra aí uma posição privilegiada para ver o que geralmente não é visto pelos que nunca se aventuraram para além dos limites conceituais aceitos pela maioria” Luiza Bairros I Introdução O Coletivo Nacional de Juventude Negra - Enegrecer se dirige à sociedade brasileira com sentimento de indignação e revolta. Entendemos que o processo de impedimento da Presidenta Dilma capitaneado por setores conservadores, que historicamente dirigiram e governaram o Brasil desde o período colonial, almeja desmontar as instituições e políticas publicas que reduziram desigualdades sociais na última década, deixando desamparados os 99% da população brasileira que é na grande maioria preta e trabalhadora. Identificamos um processo crescente e agressivo dos movimentos de direita ultra-conservadores por todo mundo, marcados por figuras como Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil e em paralelo, um processo de supressão de governos de centro esquerda em toda a América Latina através de intervençoes do imperialismo apartir dos financiamentos e prestações de serviços para setores políticos opositores. Tudo decorrente de um sistema político excludente, viciado em praticas de mercado, que vem provocando conflitos e crises político-econômicas, violando reiteradamente o princípio de autonomia que deveria reger a relação entre Estados soberanos. O Brasil, nos governos Lula e Dilma, assim como outros países da América do Sul, como Chile, Venezuela, Bolívia, Uruguai, Paraguai e Argentina, elegeu projetos políticos que buscaram reduzir a capacidade de intervenção do capitalismo global, capitaneado pelos Estados Unidos. Mesmo que estes governos populares, com exceção da Venezuela, Bolívia e Equador, não tenham apresentado medidas radicais que rompessem com o modelo neoliberal de desenvolvimento, suas administrações ameaçaram o núcleo internacional da hegemonia neoliberal. Consolidou-se novas rotas de circulação de riquezas e relações políticas, no qual o Mercosul e os Brics são os principais exemplos. No Brasil, processos de formação de uma consciência de classe a partir das reivindicações das/os trabalhadoras/es também foram acompanhados por uma dinâmica de ampliação da consciência racial, de gênero e sexualidade. Por consequência, os questionamentos sobre a manutenção de privilégios e violações de direitos decorrentes do racismo, machismo e LGBTfobia intensificaram-se. Identificamos que uma limitada, porém significativa mudança ocorreu, organizadora de uma emergência de sujeitos, movimentos e expressões de luta.

PESPECTIVA NEGRA SOBRE O GOLPE Dialogos possíveis ... · racismo) em redes de afeto e esperança atualizadas, temos o dever histórico de apontar miopias e respostas para saída

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PESPECTIVA NEGRA SOBRE O GOLPE

Dialogos possíveis, provocações necessárias: saídas democráticas para o Brasil

“(...)mover-se em direção às margens, encontra aí uma posição privilegiada para ver o que geralmente não é visto pelos que nunca se

aventuraram para além dos limites conceituais aceitos pela maioria” Luiza Bairros

I – Introdução

O Coletivo Nacional de Juventude Negra - Enegrecer se dirige à sociedade brasileira com sentimento de indignação e revolta. Entendemos que o processo de impedimento da Presidenta Dilma capitaneado por setores conservadores, que historicamente dirigiram e governaram o Brasil desde o período colonial, almeja desmontar as instituições e políticas publicas que reduziram desigualdades sociais na última década, deixando desamparados os 99% da população brasileira que é na grande maioria preta e trabalhadora.

Identificamos um processo crescente e agressivo dos movimentos de direita ultra-conservadores por todo mundo, marcados por figuras como Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil e em paralelo, um processo de supressão de governos de centro esquerda em toda a América Latina através de intervençoes do imperialismo apartir dos financiamentos e prestações de serviços para setores políticos opositores. Tudo decorrente de um sistema político excludente, viciado em praticas de mercado, que vem provocando conflitos e crises político-econômicas, violando reiteradamente o princípio de autonomia que deveria reger a relação entre Estados soberanos.

O Brasil, nos governos Lula e Dilma, assim como outros países da América do Sul, como Chile, Venezuela, Bolívia, Uruguai, Paraguai e Argentina, elegeu projetos políticos que buscaram reduzir a capacidade de intervenção do capitalismo global, capitaneado pelos Estados Unidos. Mesmo que estes governos populares, com exceção da Venezuela, Bolívia e Equador, não tenham apresentado medidas radicais que rompessem com o modelo neoliberal de desenvolvimento, suas administrações ameaçaram o núcleo internacional da hegemonia neoliberal. Consolidou-se novas rotas de circulação de riquezas e relações políticas, no qual o Mercosul e os Brics são os principais exemplos.

No Brasil, processos de formação de uma consciência de classe a partir das reivindicações das/os trabalhadoras/es também foram acompanhados por uma dinâmica de ampliação da consciência racial, de gênero e sexualidade. Por consequência, os questionamentos sobre a manutenção de privilégios e violações de direitos decorrentes do racismo, machismo e LGBTfobia intensificaram-se. Identificamos que uma limitada, porém significativa mudança ocorreu, organizadora de uma emergência de sujeitos, movimentos e expressões de luta.

A conquista de um patamar mínimo de cidadania, autonomia e resgates de valores dos povos marginalizados foi (é) o estopim para desencadear uma contra-ofensiva das classes dominantes. Como sujeitos forjados em tal mudança, numa geração tensionada por desafios seculares (luta de classes e racismo) em redes de afeto e esperança atualizadas, temos o dever histórico de apontar miopias e respostas para saída desta crise, que se estende sobre nossos corpos bem antes do impeachment.

As saídas para a crise apontadas pelo Governo Dilma não sinalizavam para um caminho pela esquerda. A reforma administrativa cortou verbas e unificou em apenas um ministério secretarias estrategicas: promoção da igualdade racial, mulheres, direitos humanos e juventude (SEPPIR, SPM, SDH e SNJ). O ajuste Fiscal cobrou a fatura da crise econômica para a classe trabalhadora, gerando grande insatisfação popular e afetando diretamente a população negra.

Defendemos que os ricos paguem pela crise! Para que isso seja possível, é necessário organizar a resistência através de ações cuja finalidade seja apontar saídas que necessariamente perpassem pela esquerda, a única via capaz de obter respostas frente aos constates ataques direcionados aos direitos da classe trabalhadora (que é majoritariamente negra).

II - Golpe no Brasil

O golpe institucional que esta em curso é articulado a uma estratégia de reimplementação do modelo neoliberal em escala continental. Os traidores do povo desejam recolocar o Brasil na condição de nação periférica, colônia das grandes potências estrangeiras, cassar a nossa soberania, reduzir as nossas liberdades, padronizar os costumes, retirar direitos e criminalizar a luta social.

Embora os governos Lula e Dilma não tenham feito as reformas estruturais: tributária, agrária, urbana, comunicação, política, segurança e judicial, e ter perdido parte da disputa de valores, os governos democráticos populares alteraram significativamente a lógica de gestão do Estado em particular a partir das políticas sociais adotadas. No entanto, a implementação destas políticas permaneceram enraizada na dinâmica clientelista com o capital financeiro, sobretudo nas grandes ações, a exemplo do “minha casa, minha vida”, que promoveu o enriquecimento de grandes construtoras e não enfrentou questões como a especulação imobiliária e a garantia do Direito a Cidade, ou do não enfrentamento ao Agronegócio a partir das políticas de desenvolvimento agrícola.

A aliança com a burguesia industrial, bancos e uma classe política de centro direita com valores conservadores, na tentativa de equacionar interesses de classes, fracassou. Os donos do capital, como já esperado, não cumpriram sua parte no acordo e deram um golpe pelas costas por dentro do presidencialismo de coalizão. Os setores populares foram os únicos que se mantiveram fiéis ao projeto democrático e hoje organizam a resistência contra ao Golpe.

O que observamos no Brasil é resultado do fracasso do pacto conservador - tática adotada pelos governos federais do campo democratico e popular para

obter maioria no Congresso e garantir a “governabilidade”. Os movimentos sociais já vinham apontando: não há como conciliar interesses inconciliáveis. A atuação do PMDB no Congresso sob a liderança do Cunha e a traição do Michel Temer comprovaram a nossa tese.

A grande mídia hegemônica, sobretudo a Rede Globo e a Veja, cumpriram um papel fundamental no golpe. Organizaram uma cadeia narrativa de tensão social, exacerbando a repercussão da crise econômica e plantando o terror nos lares brasileiros, assim como em 64. Enquanto não houver a regulamentação dos meios de comunicação, pequenos grupos e famílias continuarão (de)formando a opinião pública quanto aos acontecimentos políticos. Nos marcos em que as comunicações funcionam no Brasil, “a revolução jamais seria televisionada”.

O momento pós-Golpe é gravíssimo para as/os trabalhadoras/es (em sua maioria negras/os), movimentos populares e os setores progressistas que, cotidianamente, lutam por um Brasil melhor. É imperativo que possamos fazer um balanço profundo dos motivos que levaram aos equívocos e ao esgotamento da estratégia de poder dos setores populares que, desde 2002, imprimiu consecutivas derrotas eleitorais para as elites políticas do nosso país.

III- Um golpe branco protagonizado pelos brancos

A imputação de crime de responsabilidade fiscal no uso de créditos suplementares pela Presidenta Dilma é a materialização de um acordo entre a bancada de centro e direita no legislativo, as elites econômicas que representam e o poder judiciário. O governo ilegítimo de Michel Temer e seus aliados representa a conjunção das classes dominantes brasileiras e a associação com o imperialismo, através de um grande espetáculo jurídico-midiático em busca de apelo popular. Os golpistas programaram uma sequência macabra de episódios para sacramentar uma derrota ao povo brasileiro: 1 - a concretização do impeachment de Dilma, 2- a prisão de Lula, 3 - o fim do PT e 4 - a criminalização generalizada dos movimentos sociais. Eles atacam os símbolos, mas de fato querem com isso acabar com o que estes símbolos representam: a classe trabalhadora.

O golpe fere abruptamente o direito inalienável de escolher nossos representantes, banalizando o mecanismo condenável de eleições indiretas via parlamento. A agenda econômica apresentada por este arremedo de governo não resolverá a crise econômica que hoje assola todo o mundo: ao contrário, suas opções aprofundam a crise e desmontam as estruturas institucionais responsáveis pela efetivação de direitos constitucionais da classe trabalhadora, sobre tudo do povo negro, mulheres, juventude e população LGBT. A volta do neoliberalismo traz consigo o retorno do desemprego estrutural, radicalização da exclusão social e política; o retardamento do já lento processo de consolidação dos marcos civis democráticos; corte nos gastos com os benefícios sociais; privatizações; desregulação do mercado, com muito mais precarização do trabalho com a modificação das leis trabalhistas e

previdenciárias: proposta das 80 horas semanais não é piada quando se trata do governo Temer. O modelo econômico que prevê “Estado mínimo para o trabalhador e máximo para o patrão” é sinônimo de desigualdade social. Este processo resultará em uma atuação cada vez mais coercitiva do Estado e do seu principal órgão repressor: a Polícia, estrutura criada no periodo colonial para proteger patrimônio e caçar negras/os insurgentes. O golpe chega em um momento onde falávamos com muita densidade dos limites do atual sistema político e de segurança, do quanto necessitávamos aprofundar a democracia para que ela chegasse ao povo negro. O aumento do Estado policial está diretamente ligado ao projeto de genocídio do povo negro. Aprofundamos nossa analise sobre o aniquilamento sistemático do povo negro no Brasil em nosso último documento intitulado “Nossa vitoria não será por acidente”. De lá pra cá nada mudou. Em números atualizados, a juventude negra representa a lamentável estatística de 34 mil[1] mortos por armas de fogo ao ano. Entre 2005 e 2012 houve um crescimento de 74% de encarcerados no Brasil, 58,4% e 60,8%[2] de negros nos respectivos anos, e 56%[3] do total jovens. Se pegarmos a faixa da juventude de 18 a 29 anos, estima-se que existam mais jovens negros presos do que em liberdade no país. Um hiper encarceramento que atinge em cheio nossa capacidade de viver a democracia e alimenta os cofres das multinacionais de construção civil e do trabalho terceirizado.

O recorte de gênero no sistema carcerário também é assustador. Entre 2000 e 2014 o crescimento do encarceramento feminino cresceu 567%[4]. Traçando um paralelo, as mulheres não são nem 10% no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas ou Câmaras Municipais, muito menos no atual governo golpista, contudo são privadas de liberdade todos os dias pela política de encarceramento no Brasil.

Tanto as mortes como o encarceramento tem relação direta com a política de segurança e de drogas que se mantém reacionária, mantendo a criminalização de usuários e territórios populares, num ciclo vicioso que gera “perfis suspeitos”, ocupação de comunidades por bases militares, aplicação de autos de resistência. Tudo isso sob o discurso da manutenção da paz, travestido em um forte esquema de lavagem de dinheiro para financiamento de campanhas eleitorais, de “higienização étnica” para a realização dos megaeventos. A atuação repressora da polícia não se limita à cultura autoritária e conservadora das forças de segurança, mas cumpre um papel imprescindível na manutenção do sistema capitalista, em defesa dos interesses do Estado privatizado pelas elites.

É necessário lutar não apenas em defesa da democracia, mas sobretudo pelo seu aprofundamento, e isto passa por mexer em privilégios. A democracia que existe hoje no país, apesar dos avanços conquistados na Constituição de 1988 e de diversas leis que a sucederam, possui uma série de limites e opera com base nos interesses da classe dominante. Queremos uma democracia que não

seja permeada pelos interesses privados que financiam campanhas eleitorais; por um judiciário que aparelha a política e por uma mídia mergulhada nos anseios da burguesia. Não toleramos uma democracia que conviva com os autos de resistência que matam vidas negras e sonhos, cotidianamente. Afinal, a “guerra às drogas” mata pretas(os) todos os dias, e nós sabemos muito bem quem são os verdadeiros “mortos da democracia”. IV – O papel dos negros e negras na luta contra o Golpe

O racismo é estruturante no brasil e transversal à todas as esferas da sociedade, inclusive em organizações políticas, sejam de direita ou de esquerda. Sempre foi uma tarefa difícil fazer o debate racial no interior das organizações políticas, mais ainda fazer a disputa de hegemonia a partir dos marcos antirracistas. Nos anos 90, o Movimento Negro Unificado apresentou um plano de ação que começava dizendo: “estamos por nossa própria conta”. Trinta anos depois, fazemos coro com essa máxima. O sentido da auto-organização negra não consiste, para nós do Enegrecer, no isolamento de nossa luta diante das demais. Enquanto brasileiras e brasileiros, orientadas\os pelo principio da autonomia para construção de sujeitos políticos, experiências ancestrais e cosmovisão negra da superação da luta entre classes. Bebemos e trocamos com as experiências de povos irmãos, subjugados como nós a exemplo dos povos originários das Américas, Africa e Asia. A experiência da auto-organização nos permite perceber os limites da construção nas organizações mistas de esquerda, o que contribuiu para nossa luta por representatividade no interior dos partidos e no conjunto dos movimentos sociais. Nossa busca por representatividade não é vazia ou superficial, ela carrega um projeto coletivo, uma nova cultura política. Acreditamos que em especial no caso brasileiro, qualquer projeto político que o povo negro não esteja no centro, terá sérias limitações na construção de um novo país, visto que o racismo tem um papel estruturante no Capitalismo aqui instalado, isto é, a exploração de corpos negros, desde a escravidão até os dias atuais. Nos últimos períodos, com a efetivação/conquista de direitos e o inicio de uma política de reparação racial adotada pelos governos Lula e Dilma, observamos o surgimento de uma geração de brasileiras/os cujas possibilidades de se colocarem no processo de disputa de hegemonia, dispõe de condições inéditas na história do Brasil. O ingresso de negros e negras nas universidades brasileiras é a principal dimensão destas novas condições de luta, pois não apenas reposiciona estes sujeitos para o mercado de trabalho, mas sobretudo abre um horizonte de possível protagonismo na produção do conhecimento, disputa de sociedade e, consequentemente do poder. Nunca na história do Brasil se viu tantos negros ocupando posições de destaque, sejam as mais relativas, como no caso de telenovelas e programas da grande mídia que se apropriam de nossa imagem; seja nas reais esferas de poder, como no governo federal, governos estaduais (ainda que em número

desproporcional em relação aos brancos); seja nos espaços de disputa da visão de mundo nas organizações e entidades do movimento social. O aumento de dirigentes negros e negras no interior do movimento estudantil é resultado do processo do enegrecimento das universidades. Nossa presença nestes espaços não tem se dado de forma pacífica. Há tensões, conflitos, disputas. Nos últimos períodos acumulamos capital político, empoderamento e ações afirmativas no interior das organizações de esquerda, o que acreditamos, contribuiu muito para o aperfeiçoamento dos instrumentos de luta do povo brasileiro: partidos, sindicatos, etc. Entidades mais enegrecidas, na nossa opinião, têm maior chance de enrraízamento na base das classe sociais e, portanto, de disputa de rumos contra as classes dominantes. Afirmar nossas especificidades nos debates mais gerais passou a ser um fenômeno transversal a várias organizações no Brasil e, pouco a pouco, negros e negras de organizações mistas, passaram a adotar a auto-organização enquanto método de luta contra o racismo. O enegrecer preza pelo diálogos com negros e não negros de diferentes organizações de juventude, isso contribui para o crescimento de nosso programa político.

Estamos convictas/os que para derrotar o golpe, será necessário um nível maior de unidade política e na ação dos diferentes setores da esquerda brasileira. Precisamos constituir um bloco histórico democrático, popular e enraizado na sociedade brasileira, capaz de articular um projeto político alternativo à ofensiva do capitalismo que se reinicia com o governo interino de Temer. No entanto, a condução deste bloco, na nossa avaliação, está em disputa. Não toparemos pasteurizar a complexidade de nossas reivindicações sob o discurso de unidade para derrotar o golpe. Nenhuma unidade que silencie sujeitos, mantenha privilégios e invisibilize narrativas marginais terá capacidade de se sustentar, tampouco derrubar o neoliberalismo. Na luta contra a ditadura, milhares de negros e negras organizaram fileiras contra os militares, morreram em conflitos, fizeram parte da resistência. Onde estão os negros e negras nas cartilhas da democracia contemporânea ou nos painéis das comissões da verdade? Não seremos mais uma vez invisibilizados e invisibilizadas. Queremos estar no centro da luta contra o Golpe e não às margens, pois esta luta diz respeito à nossa sobrevivência. Somos quem mais sofre com a ostensiva ação do estado burguês.

Segundo Ubiratan Castro de Melo, “Cada negro letrado no Brasil tem a obrigação de sistematizar as suas próprias lembranças. A experiência de cada um é um trecho da realidade vivida”. É importante que nós, negras(os), cotidianamente sistematizemos nossas experiências. Não vamos aceitar que nossas vivências, reflexões e histórias sejam invisibilizadas pelo Racismo, como infelizmente ocorreu na Ditadura Militar e em diversos episódios na história oficialmente narrada pelos brancos.

Nenhuma perspectiva que fale sobre nossa história sem a nossa presença terá condições de manter vivo os sonhos por um país e um mundo mais justo e solidário, livre do neoliberalismo e das chagas do racismo.

V - Decodificar as novas linguagens, compreender os novos sujeitos: os desafios de mobilização da classe trabalhadora no Brasil contemporâneo

O acirramento da luta de classes no Brasil pode ser um elemento indutor dos mais radicais processos de resistência do povo trabalhador, que, diante de um cenário de aridez e de total desmantelo das suas condições de sobrevivência, pode ocupar as ruas de todo o Brasil reoxigenando nossas frentes. Com a crise das representações, a conquista de alguns direitos fundamentais e o alto nível de alienação promovido pelos meios de comunicação, é cada dia mais desafiador mobilizar massivamente a base da classe trabalhadora para a luta coletiva. Precisamos refletir sobre o fato de que as populações beneficiárias de políticas sociais dos governo democráticos e populares não protagonizaram o processo de resistência contra o Golpe. Em paralelo a este “esfriamento” das grandes mobilizações de massa para além da base política dos partidos e movimentos, vemos a ascensão crescente de expressões de luta, com novas características, novas linguagens e novas formas de organização. A internet é um grande coringa neste cenário e hoje concentra uma parte importante não apenas na disputa de ideias, mas na materialização de sujeitos coletivos, sejam progressistas ou conservadores. Está em curso um processo de reconhecimento, tateamento e início de diálogo entre organizações tradicionais, estruturadas em outros marcos de luta política, e organizações que surgem após o fenômeno das redes sociais. Entre um tipo e outro, existem ainda organizações que sempre existiram na “clandestinidade”, mas que ganham novas proporções também com o advento das tecnologias da comunicação, a exemplo de movimentos de periferias urbanas, de comunidades tradicionais, etc. Este processo de reconhecimento também não é pacífico e ainda está em vias de superar uma fase de muito preconceito e resistência de ambos os lados. Junho de 2013 foi o grande marco deste movimento. De um lado, organizações pós-internet apostando no esgotamento da política tradicional; do outro, os partidos apostando na experiência histórica de seus métodos para desqualificar as novas coletividades, sugerindo que elas teriam uma rápida obsolescência programada e pouca capacidade de intervenção nas disputas reais. Três anos se passaram e nenhuma das apostas se confirmou: embora três anos seja muito pouco, a verdade é que os partidos continuam desempenhando um papel central na organização das lutas populares, inclusive com filiações de jovens - dada as proporções da crise de representação e legitimidade nas instituições de toda ordem e, em paralelo, muitas das expressões que emergiram na cena pública em 2013 continuam crescendo, se ramificando e dando origem a novos formatos de organização social. Consideramos uma dimensão positiva na luta contra a ofensiva conservadora, o fato destas organizações estarem dispostas a dialogar em busca de uma estratégia coletiva de enfrentamento do

capitalismo e construção de um horizonte de saídas pela esquerda para o Brasil. O Enegrecer é uma organização que busca sintetizar estas experiências na construção de uma metodologia de luta que mobilize a juventude negra em sua diversidade e o povo, ao passo que contribui para a elaboração e implementação de uma nova cultura política em nosso meio. Como a metodologia das organizações tradicionais já são bastante conhecidas e consolidadas, tentaremos nos debruçar aqui sobre dois fenômenos destas “novas formas de organização” que, direta ou indiretamente, tem a ver com nossa tarefa de decodificação: midialivrismo e lutas das identidades. Entendemos como midialivrismo toda e qualquer expressão ou ação política, circulação de informação e ideias que se manifestem através da liberdade possível da novas ferramentas da comunicação. Aqui, um debate complexo a se fazer, visto que boa parte destas ferramentas estão hospedadas em softwares proprietários que configuram o contemporâneo conglomerado internacional de comunicação que buscamos superar. No entanto, redes sociais de alcance massivo como o Facebook, o Whatsapp e o Instagram, têm sido “rackeados” por muitos jovens negros e negras do mundo inteiro, no sentido da construção de suas próprias narrativas através destes veículos. Este processo de construção de narrativas, às vezes exercitado em artigos mais elaborados, outras vezes nos famosos “textões” que são elaborações mais empíricas, relatos de sobrevivência e resistência baseados nas experiências vividas, e até mesmo nos “carões” , pode ser interpretado como uma nova forma de construção da memória do povo negro através da oralidade, agora mediatizada. Sim, podemos falar de oralidade ou uma “ciber-oralidade”, embora muitas destas narrativas venham através da escrita (virtual), pois a forma como esta escrita se dá é como se fosse uma reprodução da fala em linguagem digital. Um arcabouço de termos, a construção de um novo vocabulário e novas semânticas que misturam o futurismo com a ancestralidade: afrofuturismo. Acreditamos que essa estratégia pode ser uma importante atualização das luta pelo direito humano à comunicação, por propor alternativas às narrativas engessadas. A comunicação auto referenciada[5] é uma janela de possibilidades para ultrapassar o monopólio das comunicações

Muitas páginas do Facebook têm cumprido um papel importante de fortalecer outros referenciais de discussão para este conjunto de narrativas que circulam na WEB; forjam novas rotas de discurso, criam uma variedade de nichos discursivos que se conectam, mas que também têm especificidades. Podemos utilizar alguns exemplos: “Nem Tenta Argumentar”, “Ah Branco, dá um tempo”, “Preta e Acadêmica”, entre tantas outras. Estas páginas publicam um conjunto de conteúdos referentes ao povo negro, notícias sobre figuras que alcançaram posição de destaque, textos sobre antirracismo e reparação racial, memes de humor sobre o racismo, postagens de pessoas negras que tiveram muita repercussão na rede, entre outros. Na maioria das vezes, estas plataformas não funcionam a partir de uma linha editorial linear como nos moldes dos meios de comunicação tradicionais, mas possuem uma linha narrativa mais fluida,

sem posição político-partidária definida, mas com uma flagrante identidade libertária. Os blogs também têm destaque neste contexto de disputa de imaginário do ponto de vista de negros e negras. O “Blogueiras Negras”, o “Afreaka”, o “Afropunk”, o “Geledés”, são exemplos em um grande universo de páginas utilizadas sobretudo por jovens negros e negras, para construção de opinião sobre política, cultura, sociedade de modo geral. Estes veículos organizam contra-informação aos discursos construídos pela mídia hegemônica, que sempre insistiu em nos retratar enquanto objetos, reforçando estereótipos que nos marginalizam e nos criminalizam. Muitos destes blogs, como é o caso do Blogueiras Negras, tem uma política de circulação de artigos e notícias produzidos por mulheres negras de todo o Brasil, com algumas articulistas permanentes, que compõe a equipe do blog e outras tantas que mandam seus artigos aleatoriamente, de acordo com os temas centrais do blog: feminismo e empoderamento racial. Alguns elementos precisam ser aprofundados nesta nova composição de sujeitos na esfera pública onde ocorre a disputa de hegemonia no Brasil. Ao mesmo tempo em que as redes sociais criam novas coletividades, repaginam problemáticas do sistema capitalista sobre as quais devemos nos debruçar. Marshall McLuhan pode nos ajudar a entender esse paradoxo, a partir do conceito de “avatar”, que caracteriza uma espécie de simulação tecnológica da consciência. Os perfis nas redes sociais seriam, para McLuhan, avatares, pois são projeções virtuais que pessoas reais fazem de si mesmas, ou seja: a mediatização destes sujeitos. Existem outras leituras e abordagens que podem nos ajudar em uma análise mais profunda sobre a construção de identidades nas redes, que não teremos tempo de trazer neste documento, mas a idéia de avatar nos serve para pensar as armadilhas que estes equipamentos da cultura contemporânea trazem para as lutas revolucionárias.

Talvez o mais importante seja a hipervalorização das personalidades, ou seja, das identidades individuais. Uma exarcerbada mitificação de celebridades das redes sociais pode ser um empecilho na nossa estratégia de construir uma outra sociedade possível, a partir de uma nova cultura política pautado por projetos coletivos em detrimento aos individuais.

É preciso conseguir separar bem o joio do trigo para não dissociar a luta por representatividade de uma luta pela destruição dos poderes centralizados. Ao passo que uma geração de jovens negros e negras têm a oportunidade de recuperar uma autoestima que dê mais condições para a construção de cidadania, dignidade e autonomia, é necessário que as organizações sociais estejam fortalecidas para catalisar estas subjetividades individuais em lutas coletivas que tragam vitórias para a vida concreta do povo brasileiro. A quantidade de likes no “textão” ou no “selfie” não pode ser mais importante que pensar políticas públicas contra o genocidio ou estratégias políticas para alterar a correlação de forças na sociedade. Um artigo de blog com mais de mil compartilhamentos não pode eximir ativistas de organizar uma roda de conversa com três ou mais mulheres para falar sobre violência doméstica em seu território. A polarização e a hierarquização entre ruas e redes, entre

militância virtual e militância de corpo presente é uma leitura equivocada. Ambas estratégias precisam estar articuladas para enfrentar a conjuntura que estamos vivendo, posturas dogmáticas e sectárias de ambos os lados não são interessantes neste momento histórico. VI - “Já que é pra tombar: tombamos!”

O fenômeno do “AfroTombamento” ou “Afrontamento” também é um elemento latente na conjuntura que precisamos analisar com centralidade. Como plano de fundo, é importante resgatarmos a história do AfroPunk: na Califórnia dos anos 90, um documentarista chamado James Spooner começa a observar um cenário de xenofobia e machismo muito forte nos movimentos da cultura Punk, mesmo estes movimentos se colocando como revolucionários e contra-hegemônicos. Posteriormente, a partir de um diálogo com grupos punks no Brooklin, em Nova York, Spooner produziu o premiado documentário “Afro-Punk”, que ganhou grande repercussão após seu lançamento no Festival de Cinema de Toronto. O movimento “AfroPunk” para além da música, traz uma marca estética forte: cabelos crespos com cortes radicais, roupas ousadas e uma narrativa provocante. Nos Estados Unidos, desde 2005, acontece anualmente o Festival AfroPunk, que reúne artistas de todos os estilos musicais que referencial o movimento que já não se resume mais ao punk e tampouco à música, mas virou um processo maior cultura e comportamental. A moda também foi bastante influenciada pelo movimento, tendo impacto forte sobre a coleção de várias estilistas negras e não negras. O movimento que hoje identificamos como “AfroTombamento” bebe muito da concepção estética do AfroPunk (cabelos coloridos, roupas que misturam um conceito futurista à marcas étnicas mais ancestrais de África) mas tem outras influencias, como a cultura hip hop. O termo “Tombamento” se populariza com a música “Tombei” de Carol Conka, que é uma cantora negra de Rap, mas que tem uma roupagem que dialoga com a cultura pop, trazendo novos elementos ao rap nacional. É interessante pensarmos quão potente é a ressignificação do termo “Tombar”, durante muito tempo usado para banalizar as milhares de mortes de negros e negras no Brasil: trata-se de jovens dizendo que “já que é pra tombar, tombamos”, mas não nas valas de esgoto das marginais urbanas e nem no conflito entre a polícia e o crime organizado, tombamos ao entrar na universidade, ao assumirmos nosso cabelo, ao ocuparmos os espaços da política, ao sobrevivermos, ao afrontarmos o racismo com coragem e irreverêcia, fazendo de nossos próprios corpos instrumento de luta. A geração “Tombamento” portanto consiste em um conjunto de jovens que em todo o Brasil têm se organizado em grupos para cultivar a cultura negra, afrobrasileira, afro-americana, e construir caminhos simbólicos e concretos para a superação do racismo no seu dia-a-dia.

A estética é um elemento fundamental neste processo de afirmação da identidade racial. Segundo Nilma Lino Gomes: “o cabelo crespo e o corpo negro podem ser considerados expressões e suportes simbólicos da identidade negra no Brasil. Juntos, eles possibilitam a construção social, cultural, política e ideológica de uma expressão criada no seio da comunidade negra: a beleza negra”. Na Bahia, o Ilê Aiyê foi e continua sendo uma experiência bem

sucedida na afirmação da estética enquanto ferramenta política de luta racial, e deve ser observada e respeitada pelo seu legado de resistência no empoderamento de pretas e pretos.

No contexto atual, muitas festas surgiram junto ao fenômeno “AfroTombamento”, a exemplo da Batekoo, uma festa que surgiu em Salvador e hoje acontece também em São Paulo e no Rio de Janeiro. Pensada e executada por jovens negros de periferia, a festa resgata para a contemporaneidade ritmos africanos pouco explorados pela indústria musical brasileira, mesclando com o músicas brasileiras genuinamente negras e periféricas como o funk carioca e o pagode baiano, além das “divas do pop” que também têm muita influencia sobre essa geração, a exemplo de Rihanna e Beyoncé. Há duas contradições relevantes no consumo destes gêneros culturais sobre os quais devemos nos debruçar. O primeiro é sobre a hipersexualização dos corpos, sobretudo das mulheres, nos ritmos apropriados pela indústria fonográfica, o segundo é sobre sua relação com o modo de produção cultural capitalista.

A questão da hiperssexualização da mulher negra é latente em várias expressões culturais na sociedade brasileira. Ela passa pela mercantilização e objetificação dos corpos das mulheres e também das pessoas negras em geral. A narrativa de que negritude é a “cor do pecado”, “mulatas são quentes”, “homens negros são melhor de cama”, estão presentes nas piadas do almoço de domingo na tradicional família brasileira, nas novelas, nos filmes e até mesmo nos espaços da política. A sexualidade não é algo naturalmente pervertido, tampouco pejorativo, mas o seu uso para o exercício de relações de poder é o que questionamos e combatemos.

A sexualização de ritmos populares forjados em comunidades periféricas como o funk carioca e o pagode baiano é obra da indústria cultural machista e racista, não está dissociada de um plano de fundo mais geral da cultura brasileira. Mas porque será que é mais importante reduzir estes ritmos ao sexismo presente em suas letras, esvaziando todo o sentido de resistência na produção genuína desta musicalidade periférica do que problematizar que “este corpo moreno, cheiroso e gostoso” de João Gilberto também violenta nossa subjetividade?

A forma como a indústria cultural e a cultura patriarcal se apropriou da musicalidade de gueto no Brasil criou uma verdadeira confusão e pode provocar determinada miopia antropológica para analisarmos esta relação. Porque a sensualidade do tango não é tão questionável quanto a sensualidade no “kuduro”? Danças sensuais não necessariamente precisam fortalecer a cultura do estupro: um baile funk protagonizado por mulheres, livre de letras sexistas e homens assediadores pode ser um espaço de fruição estética para determinado grupo social, e não precisa ser menos sensual por isso. Do mesmo modo que a cena da festa Batekoo pode causar um choque em olhos que costumam fazer tais associações sem refletir sobre elas: um baile onde a sensualidade não é passe gratuito para acesso ao corpo alheio, onde o público é composto em sua grande maioria por jovens negros e negras, muitos LGBTs,

que dançam livremente sua cultura, sua ancestralidade e suas projeções de uma sociedade mais libertária no futuro.

Uma festa é uma experiência, não esgota nenhuma estratégia de luta, tampouco está livre de ações pontuais da cultura dominante, mas acreditamos que, de conjunto, a Batekoo contraria mais a ordem capitalista do que um show gratuito de bossa nova numa praça pública de um grande centro urbano, onde a população negra e pobre não acessa pelo simples constrangimento de não se sentir parte daquele público. O segundo ponto também é complexo de se pensar. O Enegrecer é um movimento anticapitalista: questionamos a lógica cruel da indústria cultural que produz a espetacularização da música, da moda, do cinema, invisibilizando uma gama de produções periféricas, centralizando a distribuição e circulação de produtos culturais na rota das grandes gravadoras, produtoras que retroalimentam o sistema financeiro internacional. Entretanto, reconhecemos que alguns símbolos como Beyoncé são importantes para a afirmação da cultura negra, a partir de uma perspectiva de massas. Embora a cantora não possa ser caracterizada como uma militante política de esquerda ou sequer integrante do movimento negro, ela tem um lugar de fala na desconstrução do racismo no imaginário de jovens em todo o mundo e isto deve ser relevante para ativistas do antirracismo. Reconhecer o potencial mobilizador de símbolos da cultura de massas não inviabiliza uma reflexão sobre a indústria cultural e o quanto ela se apropria, esvazia e comercializa os signos da classe trabalhadora, do povo negro. É possível fortalecer “Maju” ou combater a ridicularização de “Glória Maria” sem perdermos a autoridade para falar que a Globo é monopolizadora de informação, concentradora de renda, que este modelo de jornalismo não nos representa. O racismo é cruel e persiste em esvaziar nossos símbolos. A esquerda branca consome um conjunto de produtos culturais que muitas vezes vêm em uma roupagem aparentemente mais independente ou alternativa, mas que são forjados em uma lógica tão perversa quanto o pop norte-americano. Na “economia das trocas simbólicas”, como diria Bourdieu, estes critérios são construídos de maneira enviesada e a partir de relações de poder, por isso não é estranho que militantes brancos escutem Madonna, mas militantes negros não podem ouvir “Beyoncé”, para não serem julgados menos “de esquerda”.

É importante estarmos atentas e atentos a estas narrativas e não deixarmos de dialogar com setores da juventude negra que muitas vezes dão o primeiro passo do empoderamento a partir do contato com conteúdos da cultura de massas, e que nem por isso devem ser chamados de “massa de manobra” ou “pessoas despolitizadas”. Nos empoderar passa também por olharmos com critérios para estes fenômenos, entendermos o porque eles tanto nos interpelam e quais maneiras de hackear o capitalismo a partir da relação inevitável com seus artefactos.

É desafiadora a tarefa de repensar o consumo, desconstruir a lógica capitalista no interior do sistema. É contraditório praticar o anticapitalismo e comprar uma tinta para pintar o cabelo de azul para construir uma performance combativa

aos padrões estéticos racializados pela moda hegemônica, tanto quanto comer um frango produzido em abatedouro pela ciclo perverso de exploração da natureza pela indústria agropecuária, ou consumir um ingresso de um filme independente em uma sala de arte nas cidades do eixo Rio-São Paulo, tanto quanto uma militância urbana que reinvindique uma identidade rural e compre roupas em lojas de marca para montar uma performance da simplicidade, muitas vezes incongruente com seu lugar de fala originário. É um debate complexo e necessário de se fazer. Todo o circuito de consumo capitalista precisa ser problematizado, aprofundado, no sentido de gerarmos alternativas à ele. A economia solidária é a semente deste novo mundo, mas infelizmente ainda é uma prática localizada em experiências isoladas do grosso da população e precisamos identificar quais alternativas esta população tem desenvolvido. O ressurgimento da estética negra como ferramenta de luta (fazendo uma conexão com o movimento black power na década de 70) vêm se desdobrando em muitas iniciativas negras de comercialização de produtos relacionados a esta narrativa. Algumas, inclusive, conseguem construir um processo mais avançado de autonomia em relação à lógica comercial, com redes de consumo e produção que fortalecem rotas alternativas de circulação do capital, com vistas a projetar uma perspectiva de sobrevivência para a comunidade negra. Precisamos construir mais sínteses e conexões entre as experiências da economia solidária e do modo de produção do campo com a economia criativa que tem crescido nas periferias dos grandes centros urbanos, para popularizar e disseminar tecnologias sociais que ressignifiquem para a população negra o mundo do trabalho e consumo.

VII - ”O sistema pode até me transformar em empregada, mas não pode me fazer raciocinar como criada”.

Nascer negra condiciona a uma realidade histórica cruel e silenciosa. Desde a colonização, o país constrói seu tecido social através do sistemático estupro de negras e indígenas, no silenciamento da luta e do luto das mulheres, em prol do imaginário da mestiçagem e do povo cordial, elementos fundamentais na legitimação da exploração dos pobres, trabalhadoras e trabalhadores.

O mito da democracia racial, quis nos fazer crer que o racismo foi superado. Altos índices mortalidade aliados aos mais baixos salários, a recente ascensão de uma pequena parcela de negras às universidades e a superação da extrema pobreza, potencializada pela divisão sexual e racial do trabalho condiciona as mulheres negras à parcela mais explorada da população, base da pirâmide econômica e social, alvo da violência do Estado.

Criminalizada, a pobreza que sistematicamente atinge a vidas destas mulheres passa ser subterfúgio para ações criminosas da política de segurança pública, que com o discurso de proteger a população das drogas, que mata e encarcera seus filhos e irmãos, acentuando também as doenças psicossomáticas. Bem

como a hipersexualizaçao do corpo das mulheres negras, segue sendo instrumento do machismo/racismo para nos coisificar.

Resgatamos a resistência histórica, solidariedade e ancestralidade de Dandara, Maria Zeferina, Lélia Gonzalez, Carolina Maria de Jesus, Luisa Mahin, Antonieta de Barros para fortalecer nossa luta. Vivenciamos dia a dia as experiências de nossas Avós e Mães Pretas segurando as barras do cotidiano insalubre. Vivenciamos a prática da sororidade. Nossos passos vêm de longe, nossas vivencias são diferentes: em um determinado momento, por exemplo, mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto, ao trabalho, enquanto ainda lutávamos para sermos consideradas como gente. Nosso feminismo não é excludente, cuidamos umas das outras, como cuidamos das feridas das chibatas. Construímos a Marcha Mundial das Mulheres em nossos territórios, conectadas com mulheres de diversos países em uma estratégia global antissistêmica, na qual mudar a vida das mulheres significa mudar o mundo e derrotar o capitalismo. As mulheres não negras são nossas aliadas e precisam engrossar as fileiras na luta contra o racismo que massacra nossos corpos e territórios diariamente.

Enegrecer o feminismo significa incorporar as narrativas das mulheres negras, compreender novas epistemologias e compartilhar protagonismo com muita solidaridade. As Mulheres negras, historicamente, se auto-organizam para superar a falta de políticas públicas, formam e chefiam famílias mais cedo, e desenvolvem tecnologias sociais surpreendentes no campo da saúde à economia, carregando nas costas um mundo de responsabilidades.

Quebrar o silêncio; alterar ciclos historicamente estabelecidos; nos tornar referência para negras e não-negras; enfrentar a solidão como um ato político; aceitar nossos fenótipos e nos livrar dos estereótipos; fazer do nosso empoderamento uma busca incessante por autonomia política, econômica e intelectual, são as tarefas colocadas para nós, depois do principal desafio que nos encara todos os dias: sobreviver.

VIII - Organizar o Brasil profundo como forma de resistência.

“Plano B, periferia Hoje quem pratica

Tá ligado que é o que liga Porque vira, vira, vira” - Sabotage

Um novo projeto de sociedade será o resultado da luta de diferentes gerações de homens e mulheres, negros e não negros, assim como a superação das disfuncionalidades hierarquicas que sempre engessaram a capacidade de transcrescimento da luta popular nas relações entre as direções e a inovação de suas bases.

Em uma conjuntura complexa e muito dinâmica como a que estamos vivendo, a saída pra crise e o caminho para derrotarmos o golpe e seus operadores somente se dará com a radicalização da democracia, com maior participação popular, com o exercício cotidiano da nossa cidadania e suas aplicações mais

práticas como a ocupação da cena pública, dos espaços coletivos, da nossa presença nas ruas e nas redes a partir de um enfrentamento direto, ideologicamente consistente e com abertura para a diversidade que nos compõe. Nossa principal tarefa é nos tornarmos um dos muitos elos de encontro entre o melhor da tradição de resistência do movimento negro brasileiro, das diferentes formas de organização da classe trabalhadora em nosso país, com o que se tem de mais atual e contestador na disputa de hegemonia. O Brasil profundo concentra um conjunto de experiências transgressoras que precisam estar articuladas em rede, a partir de uma estratégia viável de enfrentamento às opressões estruturantes da sociedade: raça, gênero, sexualidade, classe. Este Brasil é uma virtuosa diversidade de caras e cores que dão o tom da luta de classes que travamos. Cada beco e viela, vilas e favelas de nosso país precisa se tornar arena política onde referências históricas encontrem-se com sujeitos emergentes para a grande festa da democracia. Contra todo o ódio pregado pelos fascistas e afins, consolidaremos nossos afetos e reafirmaremos o amor como motor de nossas lutas revolucionárias. O debate sobre a nova estratégia passar pelos setores populares e historicamente marginalizados. O momento é de acumulo e será o resultado das ocupações das escolas, dos escrachos, das plataformas em rede, da desobediência civil de ordens diversas, do maracatu atômico ao rap. A partir destas experiências, superaremos nossas contradições e refundaremos um novo campo dirigente organizador das lutas do povo brasileiro.

É uma tarefa revolucionária sintetizar a consciência produzida pelos governos democráticos num mesmo tecido de luta, por uma outra democracia, com uma nova forma de fazer política. Diversidade de opinião e unidade na ação: decodificar as experiências para resistir ao golpe e propor alternativas populares à ofensiva conservadora. O momento nos cobra compromisso militante uma elevada consciência política, em marcos colaborativos, solidários, a partir do protagonismo das mulheres, do povo negro, da juventude, dos povos tradicionais, da população LGBT. A soberania popular democratiza o Estado. Cassar este direito é um crime vil que amplia as desigualdades e preserva os privilégios dos setores de cima. O destravamento da participação direta nas tomadas de decisão dos governos é uma importante forma de combater as regalias de classe, em busca da construção de um país mais justo que possa retomar a sua trajetória positiva na garantia dos direitos do seu povo. Compartilhamos da meta-sintese que visa a convocação do povo brasileiro para decidir os rumos do país como estratégia na busca por conter a crise e derrotar o golpe da direita. Fora Temer

O Povo deve decidir! Nosso inimigo é a Casa Grande e o nosso objetivo é incendiá-la!

Secretariado Politico Nacional – Julho de 2016.

NOTAS

[1] Waiselfisz, Julio. “Mortes Matadas por Armas de Fogo” Mapa da Violência 2015.

[2] Estudos realizados pela pesquisadora Jacqueline Sinhoretto, publicado no Mapa do

Encarceramento “Os Jovens do Brasil”, 2015.

[3] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (infopen), 2015.

[4] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (infopen Mulher), 2015.

[5] Manuel Castells no livro “Redes de indignação e esperança”, em 2013 vai falar da

comunicação autoreferenciada como a produção de narrativas de ativistas individuais

em rede, que em grande escalada geram redes de indignação e possíveis mudanças

sociais.