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  i ALCIDES JOSÉ SCAGLIA O FUTEBOL E OS JOGOS/BRINCADEIRAS DE BOLA COM OS PÉS: TODOS SEMELHANTES, TODOS DIFERENTES UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA - 2003 -

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ALCIDES JOS SCAGLIA

O FUTEBOL E OS JOGOS/BRINCADEIRAS DE BOLA COM OS PS: TODOS SEMELHANTES, TODOS DIFERENTES

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAO FSICA

- 2003 -

ii

ALCIDES JOS SCAGLIA

O FUTEBOL E OS JOGOS/BRINCADEIRAS DE BOLA COM OS PS: TODOS SEMELHANTES, TODOS DIFERENTES

Tese

de

doutorado de

apresentada Fsica

da

Faculdade

Educao

Universidade Estadual de Campinas, sob a orientao do Prof. Dr. Joo Batista Freire

Campinas, 2003

iii

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA FEF UNICAMP

Sca33f

Scaglia, Alcides Jos O futebol e os jogos/brincadeiras de bola com os ps: todos semelhantes, todos diferentes / Alcides Jos Scaglia. Campinas: [s.n], 2003. Orientador: Joo Batista Freire Tese (Doutorado) Faculdade de Educao Fsica, Universidade Estadual de Campinas. 1. Jogos. 2. Futebol. 3. Teoria dos jogos. 4. Esportes. 5. Jogos de bola. I. Freire, Joo Batista. II. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educao Fsica. III. Ttulo.

iv

Este exemplar corresponde redao final da tese de doutorado defendida por ALCIDES JOS SCAGLIA e aprovada pela comisso julgadora em 04 de dezembro de 2003.

Data ___ / ___ / ______

Prof. Dr. Joo Batista Freire

v

COMISSO JULGADORA

Prof. Dr. Joo Batista Freire

Profa. Dra. Irene C. Andrade Rangel

Prof. Dr. Rui Krebs

Profa. Dra. Silvana Venncio

Prof. Dr. Roberto Rodrigues Paes

vi

Se sou diferente de ti, longe de te lesar, eu te aumento. Antoine de Saint-Exupry

vii

Dedico, com todo meu amor, esse trabalho a minha esposa Fabrina e a minha filha Annelise.

viii AGRADECIMENTOS

minha esposa Fabrina por ser a companheira de todos os momentos. E que h 12 anos me ensina a viver e reviver o amor, alicerando as bases da nova famlia que constitumos para a chegada de nossa filha. Aos meus pais e irmo por tudo que representam para mim. Pai, Me e Fernando, sou o que sou graas aos ensinamentos de vocs trs. Ao Prof. Joo Freire por ser meu mestre e amigo. Por acreditar em mim. Sou e serei eternamente grato. Aos professores Wagner W. Moreira, Silvana Venncio, Helosa Reis e Paulo Csar Montagner que colaboraram na qualificao deste estudo. Antecipadamente aos membros da banca por prontamente atenderam ao convite. Ao professor Adriano Jos de Souza, companheiro e irmo, nos estudos e na vida. Ao amigo/irmo Hlvio Tamoio, por seus posicionamentos crticos, polticos e filosficos, que tanto me fazem crescer como professor e ser humano. Em especial ao grande amigo/irmo Prof. Ms. Wellington de Oliveira, amigo de tantas cachimbadas, que sempre me socorre com sua gigantesca sapincia, seu apurado conhecimento crtico/cientfico e seu contagiante esprito combativo. A todos os professores do curso de Educao Fsica do IASP Hortolndia-SP, e das Faculdades Integradas Mdulo, em especial ao Prof. Ms. Marcelo Almeida por sua pontual e crtica ajuda na primeira parte deste trabalho. Ao amigo Prof. Dr. Renato Sadi por acreditar em meus estudos e em minha capacidade. Aos Profs. Brulio de Arajo Jr. e Paulo Ferreira de Arajo pela oportunidade de emprego, apoio e incentivo. s crianas que ainda brincam com a bola nos ps nas ruas e praas. Sem elas no poderia concluir este estudo. A todos os meus 390 alunos regulares e todos os outros de cursos e palestras, que neste ano me instigaram a saber mais e me ouviram, ajudando-me a coadunar as idias e fechar este estudo. Enfim, para no ser trado pela memria, agradeo a todos os que direta ou indiretamente contriburam para a finalizao de mais uma etapa da minha vida.

ix SUMRIO

Resumo Abstract Introduo: O menino e a bola 01 01

Captulo I Os jogos/brincadeiras de bola com os ps e o futebol: o incio de uma profcua histria sistmica/complexa 1.1. Os jogos/brincadeiras e os jogos/esportes: caractersticas peculiares 1.2. Os jogos/brincadeiras de bola com os ps e o futebol: breve histrico 1.3. O futebol no Brasil: somente em 1894? 1.4. O futebol pr-Milleriano do Brasil 1.5. As crianas e suas brincadeiras de futebol 09 13 20 28 33 36

Captulo II A Teoria do Jogo 2.1. A palavra jogo 2.2. O jogo e sua caracterizao 2.3. Jogo: um sistema complexo 2.4. O Mundo do Jogo, o Ser do Jogo e o Senhor do Jogo: o ambiente do jogo 46 46 49 53 60

Captulo III O futebol e os jogos/brincadeiras de bola com os ps: partes integrantes e independentes de uma mesma famlia 3.1. A Famlia dos Jogos de bola com os ps 3.2. O jogo/brincadeira Rebatida e o futebol: um exemplo de complexidade 3.3. 69 69 73

A Famlia dos jogos de bola com os ps e suas qualidades organizacionais e 78

emergentes

x 3.4. A dinmica do processo sistmico organizacional da famlia dos jogos de bola com os ps 3.5. As Regras e as Condies externas estruturas particulares auto-afirmativas 3.6. O(s) jogador(es) e seus esquemas motrizes estruturas integrativas 3.7. O padro organizacional da Famlia dos jogos de bola com os ps 83 87 96 102

Captulo IV A Famlia dos jogos de bola com os ps: semelhanas e diferenas 4.1. Sobre as trajetrias metodolgicas e os procedimentos da pesquisa 4.2. As descries e suas respectivas anlises inferenciais 4.2.1. Unidade complexa 1 jogo: Um toque 4.2.1.1. Anlise inferencial da Unidade complexa 1 4.2.2. Unidade complexa 2 jogo: Chute na trave 4.2.2.1. Anlise inferencial da unidade complexa 2 4.2.3. Unidade Complexa 3 jogo: Pelada 4.2.3.1. Anlise inferencial da unidade complexa 3 4.2.4. Unidade complexa 4 jogo: Driblinho 4.2.4.1. Anlise inferencial da unidade complexa 4 4.2.5. Unidade complexa 5 jogo: Cada um por si 4.2.5.1. Anlise inferencial da unidade complexa 5 4.2.6. Unidade Complexa 6 jogo: Embaixadinhas 4.2.6.1. Anlise inferencial da unidade complexa 6 4.2.7. Unidade complexa 7 jogo: Gol a gol 4.2.7.1. Anlise inferencial da unidade complexa 7 4.2.8 Unidades Complexas 8 e 9 jogo: Chute a gol (A) e (B) 4.2.8.1. Anlise inferencial das unidades complexas 8 e 9 4.3. Consideraes sobre as anlises inferenciais 105 105 109 109 110 113 113 115 116 120 120 122 122 124 124 125 126 128 129 131

CONSIDERAES FINAIS

136

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

140

xi GLOSSRIO 151

ANEXOS Observao 1 Observao 2 Observao 3 Observao 4

157 157 159 161 163

xii SUMRIO DE QUADROS E TABELAS

Esquema sinttico sobre o processo sistmico/interacional que possibilitou o surgimento do jogo/esporte futebol e, conseqentemente, de outros jogos/brincadeiras de bola com os ps, todos constituintes da Famlia dos jogos de bola com os ps 27

Quadro Esquemtico: tetragrama das estruturas padres de uma unidade complexa (jogo) e suas inter-relaes 81

Quadro sintico da dinmica do processo de auto-organizao da Famlia dos Jogos de bola com os ps com suas setas de interao 84

Esquema representativo de todo o processo organizacional sistmico da Famlia dos jogos de bola com os ps 133

xiii

RESUMO

Com este estudo, busco apresentar e justificar a idia de que o futebol e os jogos/brincadeiras de bola com os ps pertencem ao mesmo universo, perfazendo um grande ecossistema, ao qual chamo de a Famlia dos jogos de bola com os ps. Para justificar a coexistncia do futebol e dos jogos/brincadeiras de bola com os ps num mesmo ecossistema, inicio meu estudo procurando entender como se deu o processo de transio dos jogos/brincadeiras de bola com os ps para o jogo/esporte Futebol, compreendendo que este sofreu e continua a sofrer constantes ressignificaes ao longo dos tempos. Sendo assim, depois de um breve passeio histrico, procuro alicerar minhas anlises, valendo-me de estudos relativos teoria do jogo. Todavia, o jogo um fenmeno estudado por distintas reas do conhecimento, e as leituras dessas inmeras interpretaes e anlises, levaram-me a entender o jogo como um ambientado sistema complexo. A partir dessa perspectiva encontro nas unidades complexas (jogos), caractersticas sistmicas integrativas e autoafirmativas. Ou seja, venho evidenciar as semelhanas e as diferenas entre o jogo/esporte Futebol e os demais jogos/brincadeiras de bola com os ps. Para tanto, sa a campo com a inteno de coletar informaes junto s brincadeiras com a bola nos ps realizadas por crianas em campos e praas, em momentos de descontrao e sem a coao de adultos, ou mesmo a obrigao de se estar l brincando. Com esses dados pude me aprofundar ainda mais no interior da Famlia dos jogos de bola com os ps, no intuito de procurar compreender o dinmico processo organizacional desencadeado no interior de qualquer unidade complexa (jogo), evidenciando suas estruturas sistmicas e o engendrar de suas interaes. Neste estudo as estruturas sistmicas compreendem as condies externas, as regras, os jogadores e seus esquemas motrizes, e em meio s interaes proveniente da tentativa de trazer ordem ao sistema, desordenado pelo jogo, cria-se emergncias (condutas motoras), que por sua vez, influencia o desencadear de modificaes em todos os demais jogos da Famlia, gerando um padro organizacional especfico dos jogos de bola com os ps. Essa imerso ao interior das unidades complexas me possibilitou divisar que as semelhanas e as diferenas, no apenas aparentes, existentes entre os jogos/brincadeiras de bola com os ps e o jogo/esporte Futebol, corroboram caractersticas de complementaridade, de coexistncia. Por intermdio do padro organizacional desses jogos, pude compreender a relevante produo de diversidade de respostas para as sempre diferentes exigncias dos jogos e a possibilidade de transferncia dessas emergncias produzidas s outras unidades complexas que compartilham situaes e exigncias semelhantes.

Palavras chaves:1. jogos; 2. futebol; 3. teoria dos jogos; 4. esportes; 5. jogos de bola

xiv ABSTRACT In this study, I intend to present and justify the idea that soccer and the ball games played with the feet belong to the same universe belonging to large ecosystem which I call, the family of the games played with the ball on the feet. To justify the coexistence of the soccer and the games played with the ball on the feet in one ecosystem, I begun my study searching to understand how did the transition process from the games with the ball on the feet to the game of soccer happened, understanding that this process suffered and continues to suffer constant ressignificacoes during the past and the present time. Thus, after a brief historical review, I look for base my analyses, with studies relative to games theory. Game is a phenomenon studied for distinct areas of the knowledge, and the readings of these innumerable interpretations and analyses has helped me to understand the game as a complex environment system. In this perspective I find in the complex units (games), integrative systemic and auto-affirmative characteristics. Therefore I search to evidence the similarities and the differences between the soccer game and the other games played with the ball on the feet. For this reason, I collect information of games played with the ball on the feet played by the children in open fields and playgrounds in moments of freedom and without the coercion of adults or with the obligation of the children for being there to play. With these data I could go deepen in the interior of the family of the games played with the ball on the feet with the intention to try to understand the dynamic unchained organizational process in the interior of any complex unit (game), this way evidencing its systemic structures and the production of its interactions. In this study the systemic structures are the external conditions, the rules, players and its motor esquemas, and among the interactions proceeding from the attempts to bring order to the system, disordered because of the game, it is created emergencies (motor behaviors), that in turn, influences unchaining of modifications in all the games of the family of the games played with the ball on the feet, producing a specific organizational standard of the games played with ball on the feet. This immersion to the interior of the complex units made possible to delimit that the similarities and the differences, not only apparent but the ones that really exists between the games of ball played with the feet and the soccer game, corroborates characteristics of coexistence and complementaridade. With the intermediation of the organizational standard of these games, I could understand that the excellent diversity production of answers for different requirements of the games and the possibility of transference of these emergencies produced to the other complex units that share similar situations and requirements. Keys Words: 1. Games; 2. Soccer; 3. Game theory; 4. sports; 5. ball games

1

Introduo:Que culpa temos ns dessa planta da infncia, de sua seduo, de seu vio e constncia? Jorge de Lima

O menino e a bola

Era uma vez um menino que, sentado raiz de um frondoso jequitib rosa, assistia atento e curioso o passeio da bola pelo belo gramado, que se estendia ao horizonte sem fim. A altiva bola, por sua vez, vestida com seu sensual vestido redondo, deslizava faceira pelo campo, lanando-lhe olhares insinuantes. Hipnotizado pelos olhares da bola, o menino se levantou e foi se aproximando, aproximando... at que parou a sua frente. A lasciva bola, tendo os ps do menino aos seus, subiu-lhes e, seduziu-o, incitou-o a i-la s alturas. Ora subia altura da coxa, ora do peito. Mas houve um momento em que ela, mostrando seu poder e imponncia, fez com que ele a chutasse mais alto. Ento, o menino em reverncia, curvou-se, e ela em sua nuca se aconchegou. E assim, bem prxima ao seu indefeso ouvido, lanou-lhe o feitio, que instantaneamente reverberou por todo o corpo, como um encantamento simples, sussurro de um mantra: FUTEBOOOOL... Dessa forma, o encantado menino, desperto do transe hipntico inicial, ps-se a controlar a bola, deixando transparecer em seu rosto uma satisfao nunca antes sentida, iniciando assim o jogo fadado a perdurar para todo o sempre. O jogo do eterno desafio entre o menino e a bola, entre o dominado e o dominante, funes essas que durante o jogo enfeitiadamente se alternam. A bola ora se deixa dominar ora domina, impondo ao menino constantes desafios. O menino se esfora, superando-se, criando a cada vez que domina a bola um novo gesto, mais complexo e belo. E exatamente atravs desse embate que se fortalece o feitio, impedindo que o encantamento se quebre e a lenda perdure.

2 Em meio neotenia1 de meus dias, fui enfeitiado pela bola. E o menino que sou ainda persiste em ficar pequeno, relutando em crescer como se vivesse no mundo fantstico criado por James Barrie (1995), a Terra do Nunca, ou ento, na terra encantada que se perfaz o Mundo do Jogo. E, fico feliz, confiante e seguro, ao saber que no sou o nico da espcie. Existem outros homens/meninos, dotados de apurado bom senso que, mesmo no pice da maturidade, voltam seus olhos infncia, e, em meio s lembranas e saudades de seu tempo de criana, atribuem-na o valor devido. A maturidade do homem significa ter adquirido novamente a seriedade que a gente tinha como criana quando brincvamos, diz o filsofo Friedrich Nietzsche2, e complementa Bachelard (1996, p. 110), ... a lembrana da infncia afirma bem claramente a utilidade do intil. O homem/menino, Gaston Bachelard (1996), por exemplo, em seu livro/brinquedo A Potica do Devaneio, defende as teses que:

... visam todas a fazer reconhecer a permanncia, na alma humana, de um ncleo de infncia, uma infncia imvel mais sempre viva, fora da histria, oculta para os outros, disfarada em histria quando a contamos, mas que s tem um ser real nos instantes de iluminao ou seja, nos instantes de sua existncia potica. (p. 94) Bachelard (1996), diz ainda que um potencial de infncia habita em ns, permitindo, sempre que se queira, que todo o tempo de criana seja re-imaginado, possibilitando desse modo o reviver dos libertrios devaneios. Os mesmos devaneios que no se configuravam como simples fuga da realidade, mas, devaneios que nos lanam ao alar vos de superaes e de conquista do mundo. Esses inquietos devaneios pem a criana a se mover rumo descoberta do mundo real, e isso ela faz jogando, partindo de seu mundo fantstico, sonhado, idealizado, criado e ampliado medida que cresce a sua capacidade de desejar.1

O homem o nico animal a nascer absolutamente imaturo, e sua maturao se d por intermdio de sua juventude exageradamente longa, a esse fenmeno, segundo os estudo de que se valeu Freire (2000), denomina-se neotenia. Logo, juventude o tempo para aprender. o tempo em que as formaes incompletas, vo se completando na relao com o meio ambiente humano, isto , sua cultura.(Freire, 2000, p. 5). E assim so os meus dias! 2 Esta frase de Nietzsche foi encontrada no livro de Adriana Friedmann (1996, p. 24) e tambm no livro do Rubem Alves (2002, p. 119), no qual foi possvel encontrar referncias que apontam que esta frase est contida no livro Alm do bem e do mal de Nietzsche, na pgina 75 da edio da Cia das Letras.

3 Fernando Pessoa (1985, p. 57-60), na expresso de seu heternimo Alberto Caeiro, num meio-dia de fim de primavera, sonhou (desejou) que Jesus na forma de menino voltasse Terra, Tornando outra vez menino. E hoje ele vive em sua aldeia, uma criana bonita de riso e natural (...) A mim ensinou-me tudo (...) A criana eterna acompanha-me sempre. J outro de seus heternimos, o engenheiro lvaro de Campos (Pessoa, 2002, p. 467), disse: Depus a mscara e vi-me ao espelho... / Era a criana de h quantos anos... / No tinha mudado nada... / essa a vantagem de saber tirar a mscara. / -se sempre a criana, / o passado que fica, / A criana. At Kierkegaard (apud BACHELARD, 1996, p. 127) compreendeu que se o homem quisesse ser metafisicamente grande, s conseguiria seu intento se a criana fosse seu mestre. Franz Hellens (apud BACHELARD, 1996, p. 130), contundente ao confirmar e fazer coro s proposies acima:

A infncia no uma coisa que morre em ns e seca de uma vez cumprido o seu ciclo. No uma lembrana. o mais vivo dos tesouros, e continua a nos enriquecer sem que saibamos... Ai de quem no pode se lembrar de sua infncia, reabsorv-la em si mesmo, como um corpo no seu prprio corpo, um sangue novo no sangue velho: est morto desde que ela o deixou. Ouso dizer que a pedra filosofal que garante a eternidade aos poetas, no se perfaz em seu produto, a poesia, mas sim no elixir que desencadeia o processo, sendo este seus devaneios de infncia, pois record-los transform-los em lenda. Toda infncia , no fundo da memria, legendria (Bachelard, 1996, p. 130). Assim, nutrida pela lenda, a fora vegetal da infncia subsiste em ns por toda vida. (Bachelard, 1996, p. 130). Mrio Quintana confirma isso em sua poesia: O que tu fazes hoje o mesmo poema / que fizeste em menino,/ o mesmo que, / Depois que tu te fores / Algum ler baixinho e comovidamente, / A viv-lo de novo... (Quintana, 1986, p. 95) E Carlos Drummond de Andrade complementa:Ser a poesia um estado de infncia / relacionado com a necessidade do / jogo, a urgncia do conhecimento / livresco, a despreocupao com os / mandamentos prticos do viver...

4 Em todo sonhador permanece viva essa criana (Bachelard, 1996). Uma criana que o devaneio magnifica e estabiliza, para quando o mundo real se mostrar cruel e intransigente, ela oferea a sua mo e num atino estou jogando: Volto no tempo menino fieira e pio, sonhos embalam no vento a pipa e o balo(...) Vem o menino que eu fui e me estende a sua mo (Toquinho, 19833) Esse menino, criana, moleque impede que o mundo real me consuma, ajudando-me a dribl-lo, com gestos de rara beleza, ajeitando a bola para que, de bicicleta, eu marque mais um gol. Logo:

H um menino, h um moleque / Morando sempre no meu corao / Toda vez que o adulto balana / Ele vem para me dar a mo. / H um passado no meu presente / Um sol bem quente l no meu quintal / Toda vez que a bruxa me assombra / O menino me d a mo. / E me fala de coisas bonitas / Que eu acredito, que no deixaro de existir (Milton Nascimento) Destarte, como poetizou Willian Blake (apud Machado, 1998), preciso recuperar a felicidade ameaada pela corrupo do homem, pois No penseis que o destino seja outra coisa seno a plenitude da infncia (Rainier M. Rilke, apud SAVATER, 2001), Faa o que faa, a vida fico (...) o que agora se prova outrora foi imaginado (W. Blake, apud Machado, 1998). Se meu destino minha infncia, eis o motivo consciente e inconsciente deste estudo e dos meus dois trabalhos anteriores, que completam a minha trilogia de estudos sobre o futebol. Estudar os jogos de bola com os ps e o futebol, neste trabalho, apresenta uma lgica particular, pois em minha monografia de final de curso sistematizei uma proposta para o ensino do futebol, a partir de um trabalho experimental que vinha sendo desenvolvido junto FEF-UNICAMP, em sua escolinha de futebol, coordenada e idealizada pelo Prof. Joo Batista Freire, e que tinha por pressuposto fundamental ensinar futebol a partir de um resgate da cultura infantil.4

Trecho da msica Esse menino, gravado em 1983, tendo o LP o ttulo Aquarela, e foi distribudo pela Polygram. Esse trabalho monogrfico, com o ttulo Escola de Futebol: uma prtica pedaggica (Scaglia, 1999b), acabou sendo publicado pela editora Papirus, em coletnea organizada pela Prof. Vilma Nista Piccolo, e parte dele na revista Motriz (vol 2, n. 1, p. 36-42) em 1996.4

3

5 De posse dessa sistematizao, meu prximo passo, no mestrado (SCAGLIA, 1999), foi investigar as vrias propostas que se comprometeram com o ensino do futebol. Logo, foram constatadas e criticadas as vrias propostas pedaggicas pautadas ainda em concepes empiristas, que do azo ao tecnicismo. Alm dessa contribuio terica a partir da reviso crtica da bibliografia relativa pedagogia do futebol, o enfoque principal da dissertao recaiu sobre a constatao de que os ex-jogadores de futebol, atualmente professores em escolinhas, aprenderam a jogar de um jeito (a partir de jogos/brincadeiras, e em meio liberdade de agir como criana), porm ensinam de outra forma, assumindo como referencial os treinos tcnicos aprendidos e repetidos, exaustivamente, ao longo de suas respectivas carreiras profissionais. Nos anos que se seguiram, investiguei ainda inovadoras correntes pedaggicas existentes aqui e no mundo, que se propem ensinar esportes de maneira diferenciada, a partir da lgica de seus jogos, e no de suas tcnicas (BAYER, 1994; GARGANTA, 2002 e 1998; GARGANTA & PINTO, 1998; GARGANTA & GRHAIGNE, 1999; TAVARES 2002 e 1998; BOTA & COLIBABA-EVULET, 2001; GRAA & OLIVEIRA 1998; GRAA 1998; MESQUITA, 1998; KIDMAN, 2002; OSLIN 1996; SIEDENTOP, 1994; WERNER & BUNKER & THORPER, 1996; GRIFFIN, MITCHEL & OSLIN, 1997; LAUNDER, 2001; BUTLER, 1997; BENTO, GARCIA & GRAA, 1999; FREIRE, 2002b; FREIRE, 2000b; FREIRE 1998; FREIRE & SCAGLIA, 2003; SCAGLIA, 1999 e 1999B; SCAGLIA & SOUZA, 2002; SCAGLIA, SOUZA, RIZOLA & OLIVEIRA 2002; SOUZA, 1999 e 1997; PAES, 2001 e 2002; MONTAGNER, 1999; GRECO, 2000; DAOLIO, 2002; BALBINO, 2001; SANTANA, 1996). Agora em minha tese de doutorado, como que para alicerar e completar meus estudos e trabalhos anteriores, procuro adentrar no universo fantstico do jogo, ousando compreender o feitio da bola e as possveis conseqncias de seu encantamento - sem com isso, incorrer no erro de infantilizar meu discurso. Ao invadir o mundo do Jogo, tenho novamente que lanar mo de minha condio de homem/menino. O homem/menino encantado pelo sussurro da bola ao ouvido, para, parafraseando Hermann Hesse (1968), ao menos uma vez na vida, estudar e estruturar como especialista, o jogo, no livro de Hesse o de Avelrio, em minha tese, em particular, na forma de suas manifestaes mais significativas para mim, o futebol e os demais

6 jogos/brincadeiras de bola com os ps. O futebol a paixo que nasce no bero, se desenvolve na infncia, aumenta na adolescncia, amadurece-se no jovem e no o abandona mais, at o fim da vida. (PORTO & MXIMO, 1968, p. 399) Neste estudo pretendo apresentar e justificar a idia de que o futebol e os jogos/brincadeiras de bola com os ps pertencem ao mesmo universo, perfazendo um grande ecossistema, ao qual chamo de a Famlia dos jogos de bola com os ps. A idia de uma grande famlia de jogos com a bola nos ps me permite enveredar por um complexo estudo sistmico, em que, como conseqncia, justificaria o fato de que aprender Futebol pressupe aprender os jogos/brincadeiras de bola com os ps (pequenos jogos), ao mesmo tempo em que jogar essas brincadeiras, concomitantemente, se estaria jogando futebol. Essa perspectiva de anlise traz consigo de imediato um paradoxo, pois apesar desses pequenos jogos/brincadeiras poderem ser chamados de clulas do futebol (na concepo hologramtica de que cada clula contm a informao do todo), eles mantm certa independncia do futebol, no dependem necessariamente dele para existir, pois bastam-se por si; adquiriram autonomia. Para justificar a coexistncia do futebol e dos jogos/brincadeiras de bola com os ps num mesmo ecossistema, inicio meu estudo procurando entender como se deu o processo de transio do jogo/brincadeira futebol para o jogo/esporte futebol, compreendendo que esse sofreu constantes ressignificaes ao longo dos tempos (e vem sofrendo at hoje), porm em determinado momento histrico ao alcanar o status de esporte (sem deixar de ser uma manifestao de jogo), passa a ser produto (contedo) - devido tamanha evidncia adquirida na sociedade - para novas re-significaes culturais, gerando novos jogos/brincadeiras de bola com os ps. Sendo assim, depois de um breve passeio histrico, busco alicerar minhas anlises, valendo-me de estudos relativos teoria do jogo. Todavia, o jogo um fenmeno estudado por distintas reas do conhecimento, e as leituras dessas inmeras interpretaes e anlises, levaram-me a entender o jogo como um ambientado sistema complexo. A partir da perspectiva de entender o jogo como um sistema complexo, permito-me mergulhar a fundo na investigao sobre a Famlia dos jogos de bola com os ps, almejando encontrar nas unidades complexas (jogos) que a compem, caractersticas integrativas e

7 auto-afirmativas. Ou seja, busco evidenciar as semelhanas e as diferenas entre o jogo/esporte Futebol e os demais jogos/brincadeiras de bola com os ps, justificando a existncia da Famlia dos jogos de bola com os ps e, conseqentemente, a possibilidade de se entrev-la como um sistema. Aprofundando-me ainda mais no interior da Famlia dos jogos de bola com os ps, senti necessidade de procurar compreender o dinmico processo organizacional desencadeado no interior de qualquer unidade complexa (jogo). Para compreender o complexo processo organizacional sistmico dos jogos (unidades complexas) pertencentes Famlia, foi preciso investigar o interior de um sistema (jogo), evidenciando as interaes engendradas pelas estruturas sistmicas das unidades complexas. As estruturas sistmicas compreendem as condies externas, as regras, os jogadores e seus esquemas motrizes, e em meio s interaes provenientes da tentativa de trazer ordem ao sistema, desordenado pelo jogo, cria-se emergncias (condutas motoras), que por sua vez, influenciam o desencadear de modificaes em todos os demais jogos da Famlia, engendrando um padro organizacional especfico dos jogos de bola com os ps. Para isso, sa a campo com o intuito de coletar informaes junto s brincadeiras com a bola nos ps realizadas por crianas em campos e praas, em momentos de descontrao e sem a coao de adultos, ou mesmo a obrigao de se estar l brincando. Essa imerso ao interior das unidades complexas me possibilitou divisar que as semelhanas e as diferenas, no apenas aparentes, existentes entre os jogos/brincadeiras de bola com os ps e o futebol, corroboram caractersticas de complementaridade, de coexistncia. Por intermdio do padro organizacional desses jogos, pude compreender a relevante produo de diversidade de respostas para as sempre diferentes exigncias dos jogos e o transferir dessas emergncias produzidas s outras unidades complexas que compartilham situaes semelhantes. Assim, todo o estudo aqui construdo, respeitando a complexidade sistmica, reuniu todos os jogos de bola com os ps numa mesma Famlia, porm, simultaneamente, diferenciou-os, possibilitando, dessa forma, entender com mais propriedade a dinmica sistmica dos jogos de bola com os ps e contribuindo para o enriquecimento dos

8 conhecimentos produzidos na Educao Fsica os quais passam a ser bsicos e imprescindveis para a formao de qualquer pedagogo do movimento. Entretanto, para iniciar preciso voltar fbula do menino e a bola; o mesmo menino que depois passeou pela histria de Ronald Claver (1998, p.5), ... que pegou a Lua cheia e convocou a turma para a pelada.; e a mesma bola, que igualmente se enveredou pelas histrias do tambm enfeitiado Jorge Amado (2000) - ganhando a alcunha de FuraRedes ao se apaixonar pelo goleiro Cerca-Frango. Assim, na companhia do menino e da bola e enfeitiados com o mantra que ecoa da fbula, convido-os leitura deste estudo.

9 Captulo I

Os jogos/brincadeiras de bola com os ps e o futebol: o incio de uma profcua histria sistmica/complexa... o princpio nunca foi a ponta precisa de uma linha, o princpio um processo lentssimo, demorado, que exige tempo e pacincia para se perceber em que direo quer ir, que tenteia o caminho como um cego, o princpio s o princpio... Jos Saramago

O futebol uma construo histrica. No foi criado de repente, por alguma entidade que reuniu pessoas e combinou estrutura e regras. Ele dinmico e continua sendo construdo nos jogos/brincadeiras5. Ou melhor, o futebol, hoje emancipado como esporte, no foi inventado ao acaso, da vontade de alguns jovens ingleses chutarem uma bola de couro inflada com ar, mas surgiu por influncia e evoluo de inmeros jogos/brincadeiras de bola com os ps construdos em meio cultura ldica. E depois de consolidado como produo cultural continua a influenciar o surgimento de outros novos jogos/brincadeiras de bola com os ps, constituindo assim o ecossistema dos jogos de bola com os ps. Ao mesmo tempo em que o futebol se originou de um processo de ressignificao cultural de jogos populares com bola como se ver a seguir -, ele, depois que ascendeu categoria de esporte, passou a ser constantemente re-significado em outros jogos. Posso ento, inferir que o futebol rene em seu entorno duas caractersticas fundamentais, uma que o coloca na condio de produto cultural, j a outra traz evidncias de processo. Isso porque, enquanto produto se originou de ressignificaes de jogos/brincadeiras populares, todavia, atravs das caractersticas de processo permitiu que jogos/brincadeiras jogos/brincadeiras. Quando me aproprio do termo ressignificar, quero apresentar a idia de que o tradicional produto cultural paulatinamente modificado por intermdio de novos5

continuassem

a

ser

modificados,

dando

origem

a

novos

Didaticamente este trabalho assume o termo jogo/brincadeira para denominar os vrios jogos com bola ou no e os diferenciarem dos esportes, pois na lngua portuguesa o vocbulo jogo assume inmeros atributos significativos, como ser discutido no incio do segundo captulo. Todavia vale destacar e antecipar que como jogo podemos definir um ecossistema, no qual esto inseridos as brincadeiras, os esportes, a dana, a ginstica, as lutas... Ou seja, o binmio jogo/brincadeira, refere-se ao jogo como uma categoria maior, entidade que representa o esprito (estado) ldico, com suas caractersticas especficas, j a brincadeira ou o esporte equivale a duas de suas manifestaes (FREIRE & SCAGLIA, 2003).

10 significados acrescentados por aqueles que se apropriam do antigo, ou seja, ressignificar ao criativa de atribuir novos significados ao tradicional.

A tradio, enquanto conjunto de conhecimentos acumulados, catalogados, arquivados, expostos nas bibliotecas ou na lousa, no passa de relquia embalsamada, sem o menor significado. No entanto, adquire vida, faz sentido, quando se eleva condio de palavra significativa, tanto daquele que a anuncia quanto daquele que se pe escuta (...) Abre-se, para ela [a autora faz referncia s crianas], a partir da, um universo de possibilidades. Participa, ento, da tradio de uma cultura letrada qual poder acrescentar a sua prpria palavra. A criao no , portanto, o indito, o absolutamente original, mas o resultado da oportunidade de imprimir, no j institudo, um outro sentido. A criao , assim, re-criao de sentidos, inseparvel dos contedos que a tradio nos deixa como herana. Ao re-anunci-los, fazendo nossas suas palavras, reintroduzimos, criativamente, outros novos significados ao j existente. (ROSA, 1998, p. 23 e 24) As brincadeiras tradicionais infantis, em especial, as de pega-pega podem nos servir como bons exemplos ilustrativos para explicar esse dinmico processo de ressignificao dos jogos/brincadeiras. No se sabe, nem nunca se saber quem inventou os jogos/brincadeiras de pegapega, porm pode-se, partindo de estudos especulativos de certos autores como Kishimoto (1993), Rosa (1998) e Brougre (1998b), inferir que essa brincadeira remonta aos tempos da pr-histria. Isto passvel de confirmao quando, ao se estudar os jogos tradicionais infantis, nota-se que esses representam simbolicamente a sociedade em que esto inseridos.

Considerado como parte da cultura popular, o jogo tradicional guarda a produo espiritual de um povo em certo perodo histrico. Essa cultura no oficial, desenvolvida sobretudo pela oralidade, no fica cristalizada. Est sempre em transformao, incorporando criaes annimas das geraes que vo se sucedendo. (KISHIMOTO, 1993, p. 15) Logo, o pega-pega pode, especulativamente, representar um jogo de caa e caador as crianas representando em suas brincadeiras o ato de caar, tanto dos humanos quanto entre os animais. As crianas desejando, como sempre, imitar o mundo, transformaram essa atividade de caar em jogo/brincadeira. Simbolicamente, revivem-na correndo umas atrs

11 das outras, imitando seus pais. Essa brincadeira, medida que o tempo passa, vai incorporando criaes de outras geraes, que utilizam as brincadeiras para tentar entender o mundo sua volta, ou brincar com ele, almejando um dia viv-lo. Segundo Elkonin (1998), atualmente, todos devem reconhecer que o contedo do jogo infantil est relacionado com a vida, o trabalho e a atividade dos membros adultos de uma sociedade. A brincadeira de pega incorporou variaes medida que a sociedade sua volta se modificava, e em cada variao novas particularidades surgiam. Foi dessa forma que surgiu o pique-bandeira, representao fiel de um batalha, onde se tem que invadir o campo de batalha adversrio - penetrar em seu reino -, para capturar a bandeira que simboliza o reino. Outra variao a brincadeira de Polcia e Ladro, que representou uma dada poca, que no mais a mesma. Essa brincadeira representava uma poca em que as polcias corriam atrs dos ladres. Hoje, fato que muitas vezes a polcia corre do ladro, quando ela no o prprio. Atualmente, uma ressignificao dessa brincadeira, seria incorporar em seus contedos, caractersticas prprias da nossa sociedade atual, como policiais corruptos, seqestros, rebelies nas cadeias, trfico de drogas etc... Como aconteceu com essa mesma brincadeira antes da sua re-significao para o Polcia e Ladro.6 No perodo do engenho, no estavam evidenciados ainda os papis sociais especficos atribudos aos policiais e ladres, porm as caractersticas dessas personagens sempre existiram, porm recebiam outros nomes. Nessa poca, policial era o capito do mato, e o ladro, obviamente, os escravos fujes. As crianas incorporaram esses contedos em suas brincadeiras, principalmente, nas de pega. Assim, na poca do engenho, a brincadeira antecessora do Polcia e Ladro chamava-se Capito do mato amarra negro, ou ento, Nego fujo (KISHIMOTO, 1998). E6

Como forma de tentar testar na prtica algumas teorias sobre jogos tradicionais que estava lendo, em uma de minhas aulas de Educao Fsica para adolescentes que estavam cursando a stima srie, criei uma estratgia metodolgica onde todo um ambiente de jogo foi possibilitado para que os alunos ressignificassem jogos tradicionais infantis. E, em relao ao jogo de Polcia e Ladro, o que aconteceu foi exatamente isso, ou seja, brincadeira foram incorporados contedos da sociedade atual, como drogas, traficantes, policiais corruptos, fugas da cadeia, rebelies... Creio que se meus alunos tivessem a possibilidade (enquanto tempo) de brincar com os menores, tenho certeza que ensinariam esse novo Polcia e Ladro para os menores, como antigamente acontecia com os jogos de rua, e assim a brincadeira estaria re-significada, atualizada. Porm como isto no foi possvel, provavelmente essa brincadeira (Polcia e Ladro) esteja fadada a cair no esquecimento, pois no mais significativa s crianas.

12 ainda, antes do Polcia e Ladro (conhecido atualmente), as crianas brincaram de cowboy e ndio, mocinho e bandido, para ento se representar os policiais. Importante destacar o alto teor de representao simblica explcita no interior das brincadeiras, no apenas o nome que muda, mas sim uma outra cultura foi representada ao se ressignificar a brincadeira. (SCAGLIA & DURAN, 2000) Segundo Brougre (1997), as brincadeiras acabam por evoluir ao ritmo das representaes culturais que elas veiculam, e completa Aris (1981, p. 119), ... talvez a verdade seja que, para manter a ateno das crianas o brinquedo deve despertar alguma aproximao com o universo dos adultos. Aris (1981), em seus estudos conta que crianas na poca medieval, quando proibidas de assistir aos torneios de Justas entre os nobres cavaleiros, ... comeavam a imitar os torneios proibidos (...) as crianas cavalgavam barris em vez de cavalos. (1981, p. 117) Os brinquedos, ao passo que so indissociveis dos jogos/brincadeiras, seguiram o mesmo processo de evoluo7. Novamente, utilizo as palavras de Elkonin (1998), que diz algo parecido acerca da origem histrica dos jogos protagonizados, em seu breve histrico sobre os brinquedos, dizendo, que segundo seus estudos:

perfeitamente natural que o brinquedo tampouco possa ser outra coisa seno uma reproduo simplificada, sintetizada e de alguma maneira esquematizada dos objetos da vida e da atividade da sociedade, adaptados s peculiaridades das crianas de uma ou outra idade.(ELKONIN, 1998, p. 42) Enfim, se tanto os jogos/brincadeiras quanto os brinquedos incorporam contedos da sociedade em que esto mergulhados, pode-se afirmar que os jogos/brincadeiras com bola seguiram os mesmos caminhos? A resposta para essa pergunta seria, inevitavelmente, um sim, acrescido de uma ressalva, pois alguns jogos se emancipam no sculo XIX, criando um dos maiores fenmenos ldico/culturais produzido pelo homem, o esporte moderno.7

Apesar dos adultos, principalmente nos dias de hoje, atravs da indstria do brinquedo, quererem influenciar na idealizao dos brinquedos infantis, que no so mais das crianas e sim para crianas, como adverte Barthes (1999), Benjamim (1984) e Oliveira (1989), na perspectiva crtica de que a sociedade de hoje prefere formar crianas utentes em detrimento de crianas criadoras.

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As origens dos desportos colectivos, por mais obscuras que sejam, pesquisam-se nas tradies mais antigas e longnquas das sociedades primitivas ou civilizadas. Numerosos jogos de bola faziam parte do patrimnio cultural de cada civilizao e constituem a fonte dos nossos desportos coletivos, onde as primeiras codificaes se situam no incio do sculo XIX. (...) Os rabes jogavam koura, as tribos da Amrica do Norte praticavam o skinny e os Abexins dedicavam-se ao jogo de malha, antepassado do crosse da Idade Mdia e do hquei moderno (...) Quanto sociedade pr-colombiana dos Incas (sculo VII a.c.) propunha um jogo, o Pok ta pok, onde as semelhanas com o basquetebol se mostram flagrantes (...) Alguns jogos populares conhecidos, o faust-ball (pai do voleibol) e a Hazena checa (uma das origens do andebol), deixaram todos os traos da sua passagem na histria das diferentes sociedades, para serem reencontrados, na seqncia de modificaes e de retoques parciais, sob novas formas que apresentam os nossos principais desportos colectivos: o futebol, o rguebi, com as suas derivaes, o jogo de 13 e de 7, o basquetebol e o seu primo germnico o Korfball holands, o voleibol, o handebol, o hquei e o plo aqutico, que utiliza o meio lquido.(BAYER, 1994, p. 31 - 32) Manoel Tubino (1999), em seu livro O que esporte, diz que o esporte no pode ser entendido desvinculado do jogo entendido enquanto sinnimo de brincadeira. As prprias definies de esporte passam pelo jogo, o que demonstra de forma inequvoca que o jogo que faz o vnculo entre a cultura e o esporte. (Tubino, 1999, p. 12). O esporte um jogo/brincadeira regulamentado a partir de regras rgidas; um jogo/brincadeira que se emancipou, mas que no deixou de ser um jogo, porm, a complexidade de sua organizao acabou por diferenci-lo das brincadeiras, as quais estariam mais atreladas ao xtase das conquistas (auto-superaes) oportunizadas no jogo em si, do que performance ou os ganhos alm do jogo em si - obtida nos esportes pela vitria sobre o oponente, e suas conseqncias posteriores (prmios financeiros ou no). 1.1. Os Jogos/brincadeiras e os Jogos/Esportes: caractersticas peculiaresO jogo virou espetculo. Eduardo Galeano

Como Freire, acredito que tanto os esportes quanto as brincadeiras podem ser consideradas manifestaes de um fenmeno maior denominado jogo.

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O jogo uma categoria maior, uma metfora da vida, uma simulao ldica da realidade, que se manifesta, que se concretiza quando as pessoas fazem esporte, quando lutam, quando fazem ginstica, ou quando as crianas brincam. (FREIRE & SCAGLIA, 2003, p. 33) Porm, cada manifestao, alm de apresentar determinadas caractersticas que a qualifica como jogo, vale-se de tantas outras que garantem sua particularidade e especificidade. Todo esporte um dia foi brincadeira, pois como a brincadeira o esporte um produto cultural, produzido por algum ou por uma pequena comunidade de acordo com um contexto social especfico, que acabou por atrair um grande nmero de interessados em jog-lo. Se muitos querem jogar, s possvel se se padronizar e universalizar suas regras. O esporte, por exemplo, um jogo em seu contexto mais social, porque universal e rigorosamente regrado para permitir a convivncia de muitos povos. (FREIRE & SCAGLIA, 2003, p. 146) Essa universalizao e padronizao das regras para abranger um contingente maior de interessados em pratic-lo, pode ser vista como a principal caracterstica do esporte, colaborando com sua emancipao, ou seja, desvinculando-o das brincadeiras, das quais se originaram. Nesse momento, os jogos/brincadeiras passam de processo entendido enquanto meio para ressignificaes -, para produto. E como produto, desencadeia um novo processo, em que passa a servir como contedo para futuras ressignificaes. Ao longo da histria da humanidade muitos esportes foram assim estabelecidos, como por exemplo, o jogo de Pla que era muito tradicional, principalmente na Idade Mdia, at ir incorporando invenes e contedos das geraes ulteriores, dando azo ao surgimento do esporte Tnis de campo. O qual, por sua vez, originou outros jogos/brincadeiras - frescobol, o padle, o tamboru... -, e, at mesmo, outros esportes - o squash, o tnis de mesa, o badminthon... desse modo que o jogo/esporte passa a ser: ... um fenmeno profundamente humano, de visvel relevncia social na histria da humanidade e intimamente ligado ao processo cultural de cada poca. (TUBINO, 1999, p. 13)

15 notria a ascenso do esporte em nossa sociedade atual e tambm evidente sua diferenciao dos jogos/brincadeiras, porm seria incorrer em grave equvoco, negligenciar o fato de que, apesar do esporte ter suas regras rgidas, se um fenmeno cultural, no o cristalizvel, desse modo, ele continua a sofrer influncias dessa sociedade que o gerou, e na qual est inserido. Por exemplo, o esporte tem sofrido constantes mudanas a partir dos novos contextos scio-econmicos globalizados algumas superficiais outras profundas, que acabam at por descaracteriz-los (mas no deixando de ser esporte), como no caso do futebol de salo que pelas modificaes e fuses acabou se transformando em outro esporte, o futsal. J o voleibol passou por processo semelhante, todavia no originou outro esporte, mas para atender s necessidades da TV mudou a forma de contar os pontos. Isso gerou sistmicas mudanas tticas e estruturais no jogo como um todo. Mas, tambm, ao mesmo tempo sua macia divulgao tem potencializado suas caractersticas de processo, servindo de contedo para o surgimento de inmeros novos jogos/brincadeiras, pretensos candidatos esportivizao. Seguindo esta linha de raciocnio Magnani (2001), ao tentar distinguir jogo/brincadeira e esporte, diz que o jogo/brincadeira seria caracterstico das sociedades tradicionais, pr-capitalistas, enquanto que o esporte ... teria surgido ou ao menos se disseminado apenas quando do advento da burguesia como classe hegemnica no modo de produo capitalista. (MAGNANI, 2001, p. 19) Assim, segundo Magnani (2001), o jogo/brincadeira estaria mais voltado ao ldico (liberdade para se expressar), j o esporte assumiria caractersticas de acentuada competitividade, o que no quer dizer que no jogo/brincadeira no se tenha competio, e nem que o esporte no possa tambm ser ldico.8 Porm, para dar mais objetividade a este tpico, reuni algumas caractersticas peculiares que podem caracterizar melhor, principalmente as diferenas no tocante s respectivas organizaes internas dos jogos/brincadeiras e dos jogos/esportes, pois, quanto s semelhanas s o fato de terem origem comum as justificam.

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Talvez o termo esporte tenha sido cunhado, exatamente, com o intuito de atribuir um certo grau de seriedade e organizao tpica da sociedade capitalista em relao aos antigos jogos/brincadeiras de que se derivaram.

16 As caractersticas peculiares que abaixo relaciono, esto longe de objetivar propor uma ruptura definitiva e pontual entre brincadeira e esporte, mesmo porque ela no existe, mas apenas apresentam evidncias essenciais que justifiquem suas respectivas identidades. Sendo assim, uma das caractersticas peculiares das brincadeiras e esportes so suas regras, e para melhor entendimento de minha linha de raciocnio, quero utilizar o jogo/brincadeira de Btis9 como exemplo ilustrativo. Para se organizar um campeonato mundial de Btis, ser preciso, inicialmente, unificar suas regras a partir da escolha de algumas entre as milhares existentes, para que dessa forma um jogador do Brasil possa jogar com um Japons, sem precisar um saber falar ou entender a lngua do outro, basta para o jogo acontecer que entendam a lngua do jogo/esporte, a partir de seu livro universal de regras. A brincadeira de Btis uma manifestao de jogo muito interessante, pois a conveno feita pelos meninos mais velhos aliada tradio que perpassa as geraes dos menores, faz com o jogo tenha regras diferentes em cada rua. As regras bsicas so mantidas no descaracterizando o jogo, todavia, existe uma infinidade de particularidades nas regras que acaba por impedir um jogador que no as conhea, consiga jogar. Essa flexibilizao das regras faz com que um nmero reduzido de pessoas se rena em torno do jogo, apenas indivduos de uma mesma regio. Todavia, isto no quer dizer que poucos joguem Btis, pelo contrrio, existe um nmero expressivo de grupos de jogadores de Btis, porm cada qual com regras que se adaptam melhor sua rua, bairro, cidade, regio... Outras brincadeiras desenvolvem processos anlogos, como a Amarelinha. Aparentemente ela apresenta regras rgidas, porm um olhar cabal para tal atividade ldica, constatar que cada grupo estabelece as regras especficas que valem no seu jogo de Amarelinha. Ou seja, o padro essencial do jogo mantido, no caso pular alternadamente com um p depois com dois, contudo as variaes so inmeras, como, por exemplo, pisar ou no no cu ou no inferno; validar ou no o pulo se se pisar nas linhas divisrias; jogar a9

O jogo de Btis conhecido em algumas regies com o nome de Taco. um jogo/brincadeira muito realizado nas ruas, em que dois jogadores defendem seu alvo (a casinha) com um taco (pedaos de pau), enquanto outros dois com uma bola pequena tentam acertar a casinha para ganhar o taco. Os jogadores com o taco ao protegerem a casinha devem rebater a bolinha para longe e correr cruzar o taco no meio do campo, marcando assim pontos. Essas so as regras bsicas, pois em cada rua elas so acrescidas por inmeras outras, o que aumenta em muito a complexidade do mesmo.

17 pedra do cu ou do lugar onde se parou antes de errar; cantar uma ladainha caso a pedra pare no meio das casas meia, meia, meia lua, lua inteira, dentro ou fora, fora ou dentro... Alm dessas regras, existem outras que determinam a seqncia do jogo e a forma do desenho do jogo no cho. Chega-se ao ponto de pular as casas tendo de levar a pedra equilibrada nos ps e depois na cabea. Essa mesma constatao fez Piaget (1994), quando iniciou suas pesquisas sobre o juzo moral, e para isso utilizou o jogo das bolinhas de gude. Ele detectou uma infinidade de variantes do jogo, necessitando escolher apenas um o jogo do quadrado e ainda apenas esse jogo que acontece em determinada regio. ... um mesmo jogo, como o do quadrado, comporta variaes bastante importantes segundo o local e o tempo. Como pudemos verificar, as regras do quadrado no so as mesmas nos quatro municpios de Neuchtel, situados a dois ou trs quilmetros uns dos outros. No so as mesmas em Genebra e em Neuchtel. Diferem, sob certos aspectos, de um bairro a outro, numa mesma cidade, de uma escola para outra (...) h variaes de uma gerao para outra. (PIAGET, 1994, p. 25) Mesmo com regras dspares, pode-se dizer que os objetivos dos jogos/brincadeiras tendem mais ao prazer, devido a sua gratuidade e, conseqentemente, a liberdade de se expressar, colocar no jogo o seu entendimento e os seus desejos, atribuindo mais valor a isso do que performance entendida como uma recompensa gerada pelo sucesso no jogo. Isto no quer dizer que nos jogos/brincadeiras no existe performance nem competio, e que no se joga seriamente uma brincadeira para ganhar, porm essas esto vinculadas mais s auto-superaes do que s recompensas extras possibilitadas pelo jogo. No jogo, h um espao para a liberdade, e a criatividade encontra-se presente. So permitidas s pessoas a discusso e modificao de regras, sem a presena de uma autoridade para decidir por elas e da qual dependeriam para a aplicao de regulamentos, aos quais teriam que obedecer sem contestao, sob a ameaa de expulso. (BRUHNS, 1996, p. 35) muito comum ao observar no desenvolvimento dos jogos/brincadeiras, seus jogadores preferirem cooperar a vencer o jogo com facilidade. Na brincadeira, devido aos atributos que as incluem na famlia do Jogo, sua complexidade diz que algo a mais est em jogo do que simplesmente a vitria, ao mesmo tempo em que o jogo se encerra em si. Esse

18 algo a mais pode se resumir na superao individual, no prazer gerado pela possibilidade do se expressar e de jogar o jogo em si, muitas vezes mais importante do que, propriamente, a vitria sobre o adversrio. Lembro-me da minha infncia, quando jogvamos Pelada (Futebol adaptado, ou rachinha), se um time comeava o jogo fazendo dois ou trs gols logo de incio, o jogo parava e os times eram escolhidos novamente, ou ento, para no se perder mais tempo, um dos jogadores j gritava: - Eu, fulano e beltrano, contra rapa. A desigualdade numrica - proibida pelas regras do jogo/esporte -, trazia o desafio ao nosso jogo/brincadeira. No jogo s se tem prazer se existe o risco, se se estabelece um ambiente ao mesmo tempo desafiador, desequilibrador, imprevisvel e ldico. A dificuldade colocada livremente em meu jogo/brincadeira de bola com os ps na verdade eu e meu amigos estvamos ressignificando o futebol -, evidenciava mais a vontade da turma jogar (prazer do jogo, da tentativa de superao, aliada ao teste de nossas habilidades sem o peso da coao), do que a necessidade de vencer o jogo. Janus Korczak (1981), em sua fantstica aventura de voltar a ser criana, sentiu e descreveu a mesma sensao: Agora vou andando sozinho, devagar, e procuro andar de modo a pisar sempre no meio de uma pedra do calamento. Assim como no jogo da amarelinha, onde a gente no pode pisar no risco de giz. A coisa em si seria fcil, mas preciso esquivar-se das pessoas que passam. E nem sempre se consegue mudar de repente o tamanho do passo sem pisar na linha. Tenho o direito de errar dez vezes. Se errar mais, perdi. Vou contando os erros dois, trs, quatro. Ainda tenho direito a seis, agora cinco. Fico com medo, mas bom sentir medo quando se est brincando. (KORCZAK, 1981, p. 46) No jogo/esporte, tambm se tem o prazer ao jogar um dos atributos que ainda o caracteriza como jogo -, contudo, a busca obsessiva por performance, que pode ser considerada como uma das re-significaes absorvidas pelo esporte advindas das sociedades -, se sobressai na maioria das vezes, mais que o prazer em pratic-lo.1010

O esporte nasce no apogeu da revoluo industrial, a partir de um processo de controle do cio dos operrios, e da tentativa de controle disciplinar dos jovens filhos da aristocracia inglesa. Nesta perspectiva podemos pensar que o esporte traz mais alienao do que sade aos seus praticantes. Porm, o que quero ressaltar o forte elo de ligao entre o esporte e a sociedade capitalista, pois compreendendo essa interdependncia, possvel entrever as mazelas existentes no mundo esportivo atual. O esporte mais do que atrair praticantes em busca de superao, faz que esses esportistas dependam do dinheiro oferecido como recompensa por vitrias. possvel perceber isto at nos esportes radicais, os quais de maneira radical buscaram romper com os modismos esportivos e criam novas manifestaes de jogos, perspectivando a busca pela

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No esporte performance, os jogadores so estimulados a vencer de qualquer maneira e avaliados por porcentagens de pontos, marcas, etc. A acumulao est sempre presente para lembrar que tudo aquisitivo, competitivo, com limitaes e comparaes. (BRUHNS, 1996, p. 35) Isso se deu de maneira mais efetiva no esporte no transcorrer do sculo XX, a ponto de hoje o iderio olmpico ter sucumbido frente avassaladora indstria esportiva, lavagem de dinheiro, corrupo, alm de outras mazelas parasitrias na qual se enquadram as indstrias de materiais esportivos, as de marketing especulativo, as mdias... Atualmente, so cada vez maiores as denncias sobre atletas que burlam as regras de forma imoral no esporte, como, por exemplo, valendo-se de substncias sintticas proibidas para superar seus limites. A mxima da vitria a qualquer preo. lastimvel que muitas formas de esportes venham perdendo, destarte, suas caractersticas de brincadeiras e jogos alegres, e com elas no somente j tenham perdido sua funo de aliviar o stress como tambm se hajam transformado numa fonte a mais para esse mesmo stress. (LORENZ, 1986) Esse fato de roubar no jogo de forma imoral no jogo/brincadeira algo inaceitvel, pois as regras do jogo so na verdade convenes coletivas aceitas por todos os que jogam, no sendo permitido que se burle regras de maneira acintosa, se isto acontece o jogo acaba, perde a graa. Importante destacar tambm que esse roubar no jogo no inclui, por exemplo, o blefe, ou ento, a tentativa de enganar taticamente o adversrio, mesmo porque existem jogos que so desenvolvidos basicamente em cima de atitudes como essa, como por exemplo, o jogo de truco, ou mesmo outros jogos, como o de futebol, quando a bola se encontrava nos ps de Garrincha e esse ludibriava seus adversrios atravs de literais blefes motrizes. As regras que acabamos de expor constituem uma realidade social bem caracterizada, isto , uma realidade independente dos indivduos (noadrenalina, como o caso do surf, do skate, do raffting... Contudo, devido a essas manifestaes de jogos terem alcanado tambm o status de esportes, acabam por determinar regras universais, pois necessrio criar campeonatos para selecionar os melhores. Assim, o surfista que antes se aventurava no mar buscando estabelecer uma disputa de foras com a natureza (a onda), vencendo-a com as manobras mais radicais (difceis quanto mais difcil e perigoso, mais adrenalina), agora precisa treinar manobras oficiais, para no correr o risco de errar e cair da prancha; cair significa ser desclassificado, no receber o prmio que lhe possibilitaria correr o campeonato mundial, logo no mais arrisca da mesma forma que as indstrias na sociedade capitalista no se aventuram em lanar produtos que possam lhe trazer prejuzos. Portanto, reflexes como essa comeam a mostrar que talvez o esporte, no seio da famlia do Jogo, seja como um irmo problemtico, aquele que pode trazer srios problemas e arruinar uma famlia, sem nunca deixar de fazer parte dela.

20 sentido de Durkheim), transmitindo-se de gerao a gerao como um idioma. claro que esses costumes so mais ou menos plsticos. As inovaes individuais somente tm sucesso, tal como as inovaes lingsticas, se atendem a uma necessidade geral e se so sancionadas pela coletividade (desde que consideradas conformes ao esprito do jogo). (PIAGET, 1994, p. 31) Logo, se essas regras so produes coletivas annimas, que assumem caractersticas flexveis, os jogos/brincadeiras acabam se adaptando ao grupo que joga. O que no acontece com os esportes, pois tendo suas regras rgidas faz com que os jogadores tenham que se adaptar s exigncias forma para poderem jogar. Como por exemplo, se quero aprender a jogar o jogo/esporte voleibol devo respeitar suas regras de modo a no correr o risco de cometer infraes como dar dois toques na bola, ou carreg-la. Todavia, com a inteno de trazer mais detalhes a fim de alimentar as discusses sobre jogo/esporte e jogo/brincadeira, suas semelhanas e diferenas, quero apresentar um breve histrico especfico sobre a evoluo dos jogos/brincadeiras de bola com os ps perpassando o surgimento do esporte futebol, visto que esses constituem o alvo desse estudo. Mas para isso quero abrir um novo tpico.

1.2. Os jogos/brincadeiras de bola com os ps e o futebol: breve histricoPara os de sensibilidade, e que tm a coragem de se irmanar com o homem da rua, o futebol no o gesto gratuito que muitos imaginam mas um territrio potico, imenso manancial do poder de criao humana no retorno pureza da infncia. um cometimento estritamente esttico com os supremos ingredientes da arte: ritmo, harmonia inventiva, movimento, incurso no tempo e no espao, equilbrio e plasticidade. Wladimir de Carvalho

So inmeros os autores que j escreveram sobre a origem do futebol (; PORTO & MXIMO, 1968; MORRIS, 1981; CASTRO, 1998; SCAGLIA, 1999; UNZELTE, 2002, AQUINO, 2002; GALEANO, 2002; entre inmeros outros). Todos eles apontam a existncias de jogos/brincadeiras que exigiam o controle de uma bola com os ps. Em minha dissertao de mestrado (SCAGLIA, 1999), no captulo destinado histria do futebol, encontrei relatos, de que no jogo de Kemari, praticado pelos japoneses por volta de 4.500 ac, utilizava-se de uma bola feita com fibras de bambu, em que: nobres da corte imperial, em volta de uma cerejeira em flor, aproveitavam momentos de cio e chutavam uma bola de fibras de bambu. (PORTO & MXIMO, 1968, p.10-11).

21 Nesse jogo, realizado at os dias de hoje atualmente como forma de ritual -, o objetivo era manter essa bola de bambu no alto, apenas controlando-a com os ps. Os jogadores dispunham-se em crculos e a bola era passada de p em p, sem deix-la cair no cho. Na China11, uma derivao deste jogo levou o nome de Tsu Chu. Ele era um jogo de bola parecido com o seu antecessor japons, porm era praticado em trs modalidades: uma, muito semelhante ao Kemari, exigia malabarismos com a bola nos ps, outra era uma disputa entre duas equipes que deveriam passar a bola por cima de um fio de seda suspenso por duas estacas fincadas no cho, cabia aos times no deixarem a bola cair no cho, e, finalmente a terceira modalidade opunha duas equipes empenhadas em arremessar a bola em algo parecido com gols colocados em cada canto do campo.(AQUINO, 2002, 11-12) Do oriente para o bero da civilizao ocidental, a bola j era feita com bexiga de boi inflada ou recheada com areia. No jogo Epyskiros, por exemplo, o qual os Espartanos utilizavam para treinamentos militares, as equipes de 15 jogadores tinham de levar a bola at o campo adversrio e para isso podia usar os ps e as mos (SCAGLIA, 1999). Essa bola do jogo Epyskiros12 era feita com bexiga de boi, recheada de areia e ar, e todos os jogos que a utilizavam eram agrupados sob o nome genrico de spahiromachia. (PORTO & MXIMO, 1968). Esse jogo era praticado nas casernas durante os treinamentos militares. Com a consolidao do imprio romano, aliado a forte influncia da cultura helnica, os romanos inovaram na confeco das bolas, que agora continuavam sendo feitas com bexigas de boi infladas, porm, estas eram revestidas por uma capa de couro, fato que garantia uma maior durabilidade. Essa bola era chamada de follis, e era utilizada, principalmente, para se jogar Harpastum13 (SCAGLIA, 1999). Dizem que o imperador Jlio Csar era bastante bom com as duas pernas e que Nero no acertava uma: em todo o caso, no h dvida de que os11 importante ressaltar que as informaes relativas s datas desses jogos da Antiguidade so muito imprecisas. Os livros que pesquisei os quais utilizo neste tpico - trazem dados conflitantes, como o fato do Tsu chu chins ter surgido antes do Kemari japons. Alm da impreciso com a data, Aquino (2002, p. 11) diz que o Tsu chu chama Tsutchu, e que significa golpe na bola com os ps. Porm a impreciso sobre as datas, ou o fato de que precedeu quem, menor frente idia que estou querendo construir. 12 O Epyskiros inclua-se entre outros jogos com bola que utilizavam as mos e os ps, como o aporaxis, a fnida e o epiceno. (Aquino, 2002) 13 A follis tambm era utilizada em outros jogos, com o Trigon e a Pila Pagnica. (Aquino, 2002)

22 romanos jogavam algo bastante parecido com o futebol enquanto Jesus e seus Apstolos morriam crucificados. (Galeano, 2002, p. 25) Harpastum era disputado num campo retangular com duas linhas de meta e uma divisria, sua organizao previa jogadores de defesa, meio campistas e atacantes, e esses deveriam avanar com a bola rumo meta adversria trocando passes com os ps. Esse jogo tinha funes claras de treinamento militar, logo seu carter funcionalista previa, alm de cuidar do fsico dos soldados, proporcionar aos comandantes uma maior viso dos comandados no campo de batalha, mesmo porque o jogo buscava representar uma batalha. A follis deveria ser arremessada atravs da meta adversria para se marcar o ponto, podendo para isso utilizar os ps e as mos. Outro fato interessante que no Harpastum, devido a sua utilizao como treinamento militar, estabeleceu-se uma organizao parecida com o futebol atual, em que os jogadores, devido as suas caractersticas, desempenhavam funes especficas, como, por exemplo, os mais lentos ficavam guardando a meta na zona de defesa - locus stantuim , outros eram atacantes e jogavam no pilae praetorvolantis et superictae, e ainda existiam os jogadores que ficavam na zona divisria entre o ataque a defesa, porm atuavam para os dois times. (PORTO & MXIMO, 1968) Em meio a contnuos processos de ressignificaes pelos quais esses jogos/brincadeiras de bola eram submetidos, principalmente em decorrncia de constantes influncias culturais advindas das guerras e suas conseqentes dominaes, surgem na era medieval dois importantes jogos/brincadeiras: os jogos das multides e o Soule, os quais, segundo os historiadores do futebol, so considerados antecessores diretos na rvore genealgica que coaduna o surgimento do jogo/esporte Futebol. Os jogos das multides, ainda hoje festejados em algumas localidades tradicionais na Europa, tinham por objetivo comemorar a expulso dos dinamarqueses no perodo de dominao anglo-saxo, usando uma bola de couro inflada, que simbolizava a cabea de um soldado dinamarqus, sendo o objetivo do jogo levar a bola, chutando-a, de um lado a outro da cidade. O Soule, praticado na Normandia, por influncia direta do Harpastun, ensinado aos gauleses, quando da campanha de Jlio Csar, perfaz-se oportuno no momento para tecer algumas ressalvas, como por exemplo, a falta de material fidedigno que comprove todas

23 essas informaes. Elas chegam aos dias de hoje por meio de histrias contadas por outras geraes. Somente no podem ser consideradas lendas, pois alguns historiadores, mesmo sem ter por objetivo especfico estudar o jogo de futebol, quando discorrem sobre determinados perodos da histria, acabam por levantar e comprovar algumas informaes. Como exemplo, posso citar os estudos de Phillipe Aris (1981), que ao escrever a sua pequena contribuio histria dos jogos e das brincadeiras, em seu livro Histria social da criana e da famlia, vem confirmar e possibilitar a continuidade de minha reflexo, dizendo que j no fim do sculo XVII o jogo de bola era considerado suspeito aos olhos dos especialistas em etiquetas e boas maneiras14, logo, pela sua rudeza, eram desaconselhveis aos nobres e praticado em sua grande maioria pelo camponeses. A bola nesses jogos de massa era chamada de chole, e era cheia de farelo. (ARIS, 1981, p. 123) Os jogos/brincadeiras com bola, com suas caractersticas envolventes, fascinantes e violentas, comearam a preocupar os nobres conservadores, pois muitos jovens estavam deixando de lado o interesse pela prtica da esgrima, da equitao e do arco e flecha, por exemplo, muito mais til a uma nao envolvida em constantes guerras, para se deleitarem com os prazeres proporcionados pelos vis jogos de massa (ELIAS & DUNNING, 1992). Os jogos se tornaram to populares a ponto de o rei ingls15, ter de editar leis proibindo a sua prtica. Mas, essa lei foi apenas para ingls ver, pois a bola continuou a rolar nas cercanias, encantando crianas, jovens e adultos, sem, todavia, ganhar um merecido destaque, principalmente na Inglaterra, como veremos a seguir com o passar dos anos (CASTRO, 1998). No sculo XVI, surge o Calcio fiorentino, um jogo que utilizava a mesma bola de couro inflada, porm era um jogo mais regrado apesar de muito violento. No obstante, foi utilizado exatamente para resolver uma velha rixa entre duas famlias tradicionais da cidade

14 William Shakespeare, em sua Comdia dos erros pergunta: Tomais-me por uma bola de futebol? Vs me chutais para l, e ele me chuta para c. Se devo durar neste servio, deveis forrar-me de couro. Em Rei Lear, a marginalizao social desse esporte fica evidente na fala insultuosa de um personagem: Tu, desprezvel jogador de futebol. (Aquino, 2002, p. 15) 15 H falta de informao precisa sobre qual rei veio a proibir os jogos com bola como salientei em minha dissertao (Scaglia, 1999), mas no recente livro do historiador Aquino (2002) encontrei dados mais organizados, que dizem ter sido o rei Eduardo I que proibiu a realizao dos jogos/brincadeiras em 1297, e que devido ao fato dessa lei no ter sido muito respeitada, houve a necessidade do rei Eduardo II novamente baixar um dito real proibindo os jogos em 1314. J Norbert Elias e Eric Dunning (1992), afirmam que foi o Rei Eduardo II o primeiro a editar leis reais proibindo esses jogos populares. Esses autores ainda trazem informaes detalhadas de todos os sucessores reais que mantinham a proibio, com a principal alegao a de que estes jogos desviavam os jovens da prtica do arco e flecha, para no falar sobre a violncia e seu carter estritamente popular.

24 de Florena, quando em 1529, esta estava sitiada pelas foras militares do prncipe Orange (SCAGLIA, 1999). Embora no final do sculo XVI as regras do Calcio foram escritas e a violncia de certa forma contida, o jogo ainda se destacava pela permisso em suas regras do contato corporal mais pungente. Entretanto, quero ressaltar que todos esses jogos/brincadeiras de bola com os ps descritos at o presente momento no se configuram em evoluo ou aprimoramentos de seus antecessores, mas sim so resultantes consolidadas de re-significaes culturais. Assim sendo, a histria dos jogos ressignificados nunca pode ser linear num sentido evolutivo -, pois cada sociedade (jogadores) atribua aos jogos/brincadeiras sentidos particulares, prprios do contexto de cada cultura, engendrando ento transformao (ressignificao), no evoluo. Neste sentido, posso compreender o advento da esportivizao de vrios jogos/brincadeiras ocorrida, principalmente, no decorrer do sculo XIX, como um processo de mudana, porm impregnado por um decisivo fator poltico/social/econmico, o qual gerou profundas transformaes na sociedade europia, sendo propcio para o surgimento dos esportes modernos e consolidando o Futebol como principal representante (ELIAS & DUNNING, 1992; REIS, 2000; HUIZINGA, 1999). ... na Europa, mais particularmente na Inglaterra, muitos jogos passaram por um processo de metamorfose que culminou com o aparecimento do esporte moderno e que demarcava uma nova postura das elites; (LUCENA, 2001, p. 42) Na Inglaterra, com o apogeu da Revoluo Industrial, estabelece-se um marco um ponto crtico - para os esportes modernos, e, simultaneamente, para histria do futebol e dos jogos/brincadeiras de bola com os ps. Como os jogos se popularizaram em toda Inglaterra, os pedagogos ingleses comearam a perceber neles outras caractersticas, utilizando-os assim, no interior da escola. Mesmo porque, comeavam a surgir, na escola e na sociedade, problemas com os filhos da nova aristocracia inglesa, logo era preciso ocup-los, diminuindo o tempo livre, perspectivando disciplin-los a partir da necessidade de seguir as regras incontestveis dos jogos (BETTI, 1991).

25 exatamente por esse motivo que os ingleses levaram esses jogos para o interior das escolas, porm a justificativa acaba sendo mais interessante, como diz Betti (1991, p. 45): As tradicionais Escolas Pblicas (...), as Universidades e a classe mdia emergente da Revoluo Industrial tiveram participao fundamental nesse processo. Os estudantes das Public Schools promoviam seus prprios jogos futebol, caa e tiro desafiando s vezes a proibio das autoridades educacionais que os consideravam perigosos e violentos.(...) A Inglaterra foi tambm pioneira em aceitar e utilizar o esporte como meio de educao. O exemplo da Escola de Rugby, onde seu diretor Thomas Arnold (1795-1842) suprimiu a ilegalidade de alguns jogos esportivos (...) A capacidade de governar outros e controlar a si prprio, a atitude de combinar liberdade com ordem (Comisso Real das Escolas Pblicas, citado por Mclntosh, 1973, p. 119) era o modelo aceito da Educao Fsica nas Escolas Pblicas Se os filhos da elite inglesa aprendiam jogos na escola e cada escola tinha regras particulares e jogos prprios, significativas apenas ao pequeno grupo de estudantes, logo posso deduzir que quando esses chegavam s universidades reunindo-se com alunos de vrias outras escolas e localidades -, para que pudessem continuar a jogar seus jogos era preciso combinar novamente as regras. Frutos dessa necessidade que entrevejo mais uma condio favorvel ao surgimento dos esportes, e mais precisamente o futebol, pois desse processo que se advm o incio da universalizao das regras, um dos fatores essenciais para a consolidao dos esportes. Em 1846, os primeiros folhetos foram impressos com as dez primeiras regras do futebol. Todavia, foi na famosa reunio do dia 26 de outubro, na Taberna dos Maons Livres, na Great Queen Street, em Londres no ano de 1863, que se deu a emancipao definitiva do futebol, com a consolidao e aceitao por conveno - de suas regras pela maioria dos jogadores. Apenas os representantes da Universidade de Rugbi no concordaram - para o bem do esporte Rugbi que se emanciparia anos depois. Assim, o futebol nasceu decorrente de um conjunto de acontecimentos interacionais, em meio sobreposio, confuso, superposio e dependncia de sistemas. O encadeamento desses sistemas gerou o futebol, pois ele surgiu graas existncia de todos os outros jogos/brincadeiras antecessores re-significados por outras culturas, aliada favorvel condio poltico/econmica/social, como a estabelecida pela sociedade inglesa. Especialmente, quando essa sociedade procurou se utilizar desses jogos - principalmente do

26 futebol - como forma de educar (controlar, disciplinar pela obedincia incondicional s regras) as novas aristocratas geraes. A transformao de polimorfos jogos populares ingleses em futebol ou soccer assume o carcter de um desenvolvimento bastante vincado no sentido de maior regulamentao e uniformidade. Esta culminou na codificao do jogo, a um nvel nacional, mais ou menos em 1863... (ELIAS & DUNNING, 1992, p. 189)

O resultado, contudo, alm de propiciar o surgimento do jogo/esporte Futebol, no impediu o contnuo processo sistmico interacional de ressignificao dos jogos. Como possvel observar no esquema sinttico por mim construdo:

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Jogos/brincadeiras

Sociedade inglesa

Jogadores

Escola

FUTEBOLAmbiente (condies externas + jogadores) Sociedade

Rebatida... Pelada...

Futsal...

Esquema sinttico sobre o processo sistmico/interacional que possibilitou o surgimento do jogo/esporte futebol e, conseqentemente, de outros jogos/brincadeiras de bola com os ps, todos constituintes da Famlia dos jogos de bola com os ps.

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Por meio das oportunas palavras de Luiz Henrique de Toledo (2000), posso sintetizar minhas idias e todo esse processo de ressignificao pelo qual passou os jogos de bola com os ps, o qual culminou com o advento da esportivizao e ressignificao de inmeros outros jogos.

As regras fazem parte de um processo crescente de disciplina e adestramento corporal, social e moral atravs do qual se passou de um aglomerado de indivduos espalhados correndo atrs de objetos nem sempre esfricos (...) para uma configurao mais estvel e ordenada, passvel de repetio e continuidade na sua fruio esttica, dentro ou fora do campo. Esse fenmeno regulador das atividades ldicas ocorrido nas sociedades europias fundiu-se com os mecanismos mais abrangentes de processos similares, polticos, econmicos e sociais, de longa durao, que alteraram significativamente as sensibilidades no domnio da sociedade (...) Nesse sentido, esses jogos coletivos com bolas, cada vez mais caracterizados como esportivos, preconizaram na sua dinmica e fruio, um determinado ethos competitivo que se ambicionava generalizar, o que de fato ocorreu, em consonncia com as outras dimenses da sociedade burguesa igualmente regida pelos princpios da equidade competitiva individualista. (TOLEDO, 2000, p. 20-21) Desse modo, como foi possvel observar no transcorrer do texto, esportes e brincadeiras so jogos, que apresentam um denominador comum, pois guardam traos caractersticos de extrema semelhana. Contudo posso diferenci-los, principalmente pelo fato de inferir que todo esporte um dia foi brincadeira, porm, em determinado momento histrico, entrev-se um processo com o qual se acabou por marcar, validar e pontuar suas diferenas, como, por exemplo, o que aconteceu com o futebol e as brincadeiras de bola com os ps ao longo da histria. Entretanto, como se deu o processo de generalizao do esporte ao redor do mundo, mais especificamente no Brasil, e em particular com relao ao futebol?

1.3. O futebol no Brasil - somente em 1894?:Este esporte estrangeiro se fazia brasileiro, na medida em que deixava de ser o privilgio de uns poucos jovens acomodados, que o jogavam copiando, e era fecundado pela energia criadora do povo que o descobria. Eduardo Galeano

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No Brasil, Charles Miller considerado o patrono do futebol. Ele, filho da aristocracia paulista, de origem inglesa, foi estudar na Inglaterra, no Banister Court School e jogou pelo Southampton Football Club do condado de Hampshire, e ao retornar para o Brasil em 1894, trouxe junto o futebol (uma bola de couro e um manual de regras) na bagagem e no corao (TOLEDO, 2000; CALDAS, 1990; PEREIRA, 2000).

O futebol foi transplantado para o Brasil por Charles W. Miller, um brasileiro de origem inglesa. Aos dez anos foi enviado terra de seus pais para freqentar a escola. Quando voltou a So Paulo, em 1894, trouxe em sua mala uma bola de futebol. Para difundir o futebol entre os ingleses, que viviam em So Paulo e jogavam cricket, Miller entregou-se a uma fervorosa atividade de missionrio. O primeiro crculo que cultivou o jogo numa forma organizada foi formado por scios de um clube ingls o So Paulo Athletic Club, que havia sido fundado para a prtica do cricket e ao qual Miller se associou. O clube reunia altos funcionrios ingleses da Companhia de Gs, do Banco de Londres e da So Paulo Railway. (Rosenfeld, apud CALDAS, 1990, p. 23) A histria da chegada do futebol no Brasil apresenta outros personagens marcantes, como Oscar Cox. Pereira (2000), entre outros (SCAGLIA, 1999; AQUINO, 2002), credita a Cox a responsabilidade pela disseminao do esporte breto na elite carioca - na poca nossa capital federal. Oscar Cox viveu uma histria muita parecida com a de Miller, tanto na Inglaterra - onde fora estudar -, quanto quando do seu retorno ao Brasil em 1897 no Rio de Janeiro comeou a ensinar o novo esporte aos cariocas. Entretanto, no quero seguir o mesmo caminho j trilhado por inmeros estudiosos do futebol (CALDAS, 1990; WITTER, 1990 e 1996; LEAL, 2000; TOLEDO, 2000 E 2002; PEREIRA, 2000; PRONI, 2000;16

MURRAY,

2000;

AQUINO,

2002;

GIULIANOTTI, 2002; BRUHNS, 2000) , mesmo porque eles j o fizeram com regular propriedade, ao abordarem a gneses do futebol e sua histria no Brasil atravs dos ps de Miller, Cox, entre outros.

Todos os autores citados iniciam seus estudos a partir desse marco histrico, e desenvolvem a histria da chegada e difuso do futebol no Brasil, porm cada qual segue distintos caminhos discursivos, partindo, muitas vezes, de bases epistemolgicas dispares.

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30 Almejo seguir por trilhas desafiadoras e incertas, ainda pouco exploradas. Investigar os rastros deixados por alguns autores que ousaram especular sobre a chegada do futebol ao Brasil antes de seu marco consensual, 1894. Pode-se dizer que existem trs verses que indagam, a partir de evidncias concretas em consonncia com uma lgica contextual, a chegada do futebol ao Brasil antes de Charles Miller. Ou seja, antes de 1894 um certo jogo de futebol j era praticado em solo nacional, principalmente, devido intensa insero da cultura inglesa na sociedade (elite) brasileira. Como adverte Soares (2001, p. 49): Se se leva em considerao a penetrao inglesa no Brasil, em investimentos e recursos humanos, nada mais fcil de supor que os ingleses trouxeram o futebol e as bolas vendidas pelos comerciantes. A primeira verso diz que marinheiros ingleses, j desde 1864, durante os perodos de folga, jogavam futebol nas praias e capinzais existentes no vasto litoral brasileiro (AQUINO, 2002).

Novas referncias indicam a praia da Glria, na cidade do Rio de Janeiro, como local de jogos durante o ano de 1874. Quatro anos depois, tripulantes do navio ingls Crimia teriam disputado uma partida em um terreno baldio, no bairro de Laranjeiras, na ento capital federal. (AQUINO, 2002, p. 24) Witter (1996), tambm comunga com a verso dos marinheiros terem jogado futebol antes de Miller, dizendo:

No entanto, h informaes de que, antes disso, j se praticava o jogo de bola no Brasil. As partidas de futebol teriam sido jogadas nos litorais de Pernambuco e de Santos, em So Paulo. Os times adversrios teriam sido organizados por marinheiros ingleses e por brasileiros residentes nesses locais. Essas informaes so difceis de serem comprovadas, porm devem ter muito de verdade. (WITTER, 1996, p. 10-11) A segunda verso apresenta a idia de que jogos de futebol eram organizados por operrios ingleses, vindos ao Brasil para compor a lacuna de mo de obra especializada nas empresas inglesas, tanto na cidade de So Paulo quanto na capital federal, o Rio de Janeiro. Esses operrios eram, em sua grande maioria, trabalhadores da empresa de estrada de ferro So Paulo Railway e Leopoldina Railway no Rio de Janeiro -, e nos jogos realizados, os

31 colegas brasileiros de trabalho eram convidados para completar as equipes, ou mesmo jogar contra. Nas oportunas palavras de Witter (1990, p. 48): ... verdade que futebol e ferrovias tm muito a ver entre si.

Segundo outras fontes, coube a um certo mister Hugh a primazia de introduzir o futebol no Brasil, mais precisamente em 1882 na cidade de Jundia, palco de disputas futebolsticas entre brasileiros e ingleses que trabalhavam na So Paulo Railway (AQUINO, 2002, p. 25) Nicolau Sevcenko (1994), confirma e refora essa verso, alm de ramific-la dando azo a uma possvel quarta verso -, dizendo que o futebol no Brasil teria seguido dois caminhos: Um foi o dos trabalhadores das estradas de ferro, que deram origem aos times de vrzea, o outro foi atravs dos clubes ingleses que introduziram o esporte dentre os grupos de elite. (SEVCENKO, 1994, p. 36) J, a terceira verso afirma que o futebol foi introduzido no Brasil pelos religiosos ps dos professores/padres jesutas nas escolas catlicas (MELO, 2000; NETO, 2002). Os colgios jesutas, por serem detentores das mais avanadas linhas pedaggicas da poca, procuravam introduzir em seus programas a prtica de atividades esportivas, coadunando suas idias com as de outros pedagogos europeus. Na Itlia, os colgios jesutas desde o incio de 1880, j ofereciam o futebol aos seus alunos, entre outras prticas esportivas (MELO, 2000). Na Frana, o padre Du Lac, professor do Colgio de Vannes, era um dos grandes defensores da introduo do futebol ingls nas escolas (NETO, 2002). No Brasil se tem como precursores o Colgio So Luiz, fundado em 1861 na cidade de Itu-SP e o Colgio Anchieta em Nova Friburgo RJ. Nesses colgios, os professores jesutas, aps excurso pelos principais colgios catlicos europeus, acabaram por incorporar o discurso sobre os benefcios advindos da prtica de exerccios, principalmente, os esportivos, dentre os quais o futebol ganhava relativo destaque. Essas inovadoras idias, emergentes nas searas educacionais europias, vinham ao encontro das proposies de Rui Barbosa, quando em 1882, esse escreveu sobre prementes necessidades do Brasil efetuar reformas em sua educao, sendo uma delas a incluso de atividades fsicas nos currculos escolares (NETO, 2002).

32 No Colgio So Luiz, o futebol era praticado desde 1880. Quando as bolas vindas da Europa furavam, eram substitudas por bexigas de boi. Na verdade, existem indcios de que o futebol foi introduzido mesmo antes, nesse Colgio, quando um dos sacerdotes comeou a jogar com os alunos durante o recreio. (...) No Colgio Anchieta, por exemplo, os exerccios fsicos, entre eles o futebol, foram introduzidos logo depois de sua fundao, em 1886. (MELO, 2000, p. 19) Outro colgio brasileiro onde o futebol era incentivado e praticado antes do marco Charles Miller foi o renomado Colgio D. Pedro II, na poca chamado de Ginsio Nacional - em decorrncia da proclamao da repblica -, esse registrava em seu regulamento datado de 1892 a seguinte anotao:

O diretor e o vice-diretor do Ginsio procuraro desenvolver em seus alunos o gosto pelos exerccios de tiro ao alvo, de besta, tiro e flechas, exerccios ginsticos livres, saltos, jogo de volante etc. (...) So permitidos como jogos escolares: a barra, a amarela, o futebol, a peteca, o jogo de bola, o cricket, o lawn-tennis, o croch, corridas, saltos e outros, que ao juzo do diretor, concorram para desenvolver a fora e a destreza dos alunos, sem pr em risco a sua sade. (MELO, 2000, p. 19, grifo meu) Enfim, mesmo aps apresentar essas pertinentes evidncias sobre o futebol sendo praticado antes de Miller, a grande maioria dos estudiosos sobre futebol acabam por no defend-las. Pelo contrrio, optam por validar o marco Miller e a data 1894, por entenderem que no era exatamente o football association o jogo praticado anteriormente. Aquino (2002), questiona a possibilidade de assumir essas verses como oficiais, dizendo que as informaes so insuficientes e termina por perguntar: Alm do mais, as regras, ainda em processo de elaborao, estariam presentes nesses jogos? (AQUINO 2002, p. 25) Witter (1990 e 1996), oportunamente chama esse futebol pr-Milleriano de jogos de bola, sendo ento esses jogos diferentes do futebol no aspecto de que no respeitavam as regras oficiais do futebol. Neste momento chego ao ponto mais interessante e profcuo desse tpico, o qual no o de investigar ou validar quem primeiro trouxe o futebol para o Brasil, mas sim compreender como se deu seu processo de aprendizagem significativa do jogo.

33 Deparo-me, ento, com a necessidade de me aprofundar nos estudos relativos a esses jogos de bola, ou seja, a questo do futebol pr-milleriano, seus desdobramentos e, simultaneamente, suas conseqncias.17

1.4. O futebol pr-Milleriano do BrasilO ingls apenas joga futebol, ao passo que o brasileiro vive cada lance e sofre cada bola na carne e na alma. Nelson Rodrigues

Em 1887, no Colgio So Luiz (Itu-SP), alunos e padres jogavam juntos certo jogo/brincadeira de bola com os ps denominado bate bolo, consistindo num jogo em que a bola deveria ser chutada contra parede. Esse era um dos jogos que faziam parte da estratgia gradual dos padres para se introduzir os esportes na escola, como salienta Neto (2002). Na seqncia desse processo, em duas paredes que se opunham no ptio da escola foram feitas demarcaes na forma de dois retngulos, e uma turma de alunos foi dividida em duas equipes:

(...) camisas verdes de um lado e camisas vermelhas do outro. O jogo passou a ter um objetivo concreto, isto , levar a bola at a parede do time adversrio e lavrar um tento fazendo-a bater no espao delimitado pelas marcas (NETO, 2002, p. 21-22) Como conseqncia, o futebol no colgio deixou de ser apenas jogo/brincadeira de chutar bolas contra paredes e passa a ser praticado com mais dinamismo, aproximando-se cada vez mais do modo como praticado atualmente, principalmente com a ascenso ao cargo de reitor do padre Lus Yabar, um entusiasta do trabalho de Thomas Arnold, o grande responsvel pela introduo dos esportes ao ar livre na Inglaterra (NETO, 2002). Relato esses fatos histricos para mostrar o futebol sendo ressignificado, mesmo antes de sua chegada oficial. Nos tpicos anteriores deste estudo, levantei dados que evidenciavam a ressignificao dos jogos/brincadeiras de bola com ps at o17 Essas adaptaes de jogos de bola com os ps que sempre ocorrem com o futebol quando ele praticado sem a exigncia de se seguir s regras oficiais, pois, s h um local onde essas regras so de fato respeitadas: um campo oficial de futebol, quando o jogo tem algum carter oficial, mesmo amistosos, profissional ou amador, com juiz para manter o

34 estabelecimento de regras mais rgidas, dando azo ao surgimento do futebol, a partir de uma conveno entre seus praticantes - football association -, ou seja, o jogo/brincadeira futebol se transformou no esporte futebol. Todavia, neste momento, principalmente, em consonncia com as trs verses de jogos de futebol pr-milleriano, fica evidente a necessidade de adaptaes no regulamento do football association. As condies externas, as regras e, conseqentemente, as formas de se jogar foram alteradas, mesmo porqu, na poca, ainda no existiam bolas, nem campos especficos, muito menos o livro de regras da association, contudo existia o desejo, a vontade de jogar futebol dos marinheiros, dos funcionrios ingleses das estradas de ferro e dos padres jesutas (e seus alunos), levando-os a modificar o jogo para satisfazer seus desejos. Como o tango, o futebol nasceu dos subrbios. Era um esporte que no exigia dinheiro e que podia ser jogado sem nada alm da pura vontade. Nos baldios, nos becos e nas praias, os rapazes nativos e os jovens imigrantes improvisavam partidas com bolas feitas de meias velhas, recheadas de trapos ou de papel, e um par de pedras para simular o arco. (GALEANO, 2002, p. 33) Sendo assim, o trabalho de Charles Miller acabou facilitado, pois seu futebol trazido com o diploma ingls no se configurava em algo genuinamente novo. O que se deu de fato foi o futebol incorporando os jogos/brincadeiras de bola com os ps, que j aconteciam nos colgios jesutas, nos momentos de lazer dos funcionrios ingleses e marinheiros.18 Vale lembrar que o primeiro jogo de futebol ps Miller aconteceu entre os amigos de Miller e os funcionrios das empresas inglesas (CALDAS, 1990). Esse pequeno detalhe de complexidade tamanha faz toda diferena. Se realmente existe um jeito todo particular do brasileiro jogar futebol, diferentemente dos outros pases do mundo, um dos grandes responsveis foi esse desprezado detalhe.19cumprimento de regras. Ou seja, na esmagadora maioria das vezes, no se poderia chamar o futebol de futebol, todavia, esse simples detalhe, muitas vezes desprezado, se configura no complexo objeto de investigao deste trabalho. 18 importante destacar que no ignoro o fato de que o esporte teve sua ascenso e disseminao facilitada devido sua congruncia com a ideologia do liberalismo do sculo XIX, como discute Betti (1997), contudo o trabalho caminha por outro vis, o qual procura dar nfase questo emancipatria dos jogos/brincadeiras, ou melhor, ao processo interno de auto-organizao sistmica que aconteceu no desenrolar desse processo. 19 Portanto, no concordo plenamente com uma das tese defendida por Mario Filho (2003) em seu clssico livro O negro no futebol brasileiro, em que o autor defende a idia de que o estilo de jogar do brasileiro advm apenas da cultura do negro. Diferentemente, acredito que surgiu dos jogos de futebol adaptados, das peladas que o autor at cita mais n