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1860. Nota do Autor. — Não é muito fácil esta espécie de leitura, o sentido das letras é diferente, conforme os desejos do que as pretende decifrar e daí mil deceções e amargos desenganos. Eu não sei se li bem ou mal; mas é certo que depois disso, o livro parece fechado... não descubro carateres novos. Ouve, lânguida virgem das cidades, A paixão que me inspiraste. Curvada, como a flor em vaso de ouro, Tu, bela, me encantaste. Eu vi-te assim pendida; a estrela de alva Ao surgir do oriente Não nos envia mais saudosos raios Do seu leito fulgente. A viração da tarde, mais amena No bosque, não murmura; A alva açucena, que o vergel enfeita, Não tem a cor mais pura. Surges, e magoada Pareces ver as vagas desta vida Na margem debruçada. Vejo-te então ainda, e pensativa, Os lábios entreabertos, Murmurando em sentida linguagem Pensamentos incertos.

1860

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poema

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Page 1: 1860

1860.

Nota do Autor. — Não é muito fácil esta espécie de leitura, o sentido das

letras é diferente, conforme os desejos do que as pretende decifrar e daí mil

deceções e amargos desenganos. Eu não sei se li bem ou mal; mas é certo que

depois disso, o livro parece fechado... não descubro carateres novos. 

Ouve, lânguida virgem das cidades,

A paixão que me inspiraste.

Curvada, como a flor em vaso de ouro,

Tu, bela, me encantaste.

Eu vi-te assim pendida; a estrela de alva

Ao surgir do oriente

Não nos envia mais saudosos raios

Do seu leito fulgente.

A viração da tarde, mais amena

No bosque, não murmura;

A alva açucena, que o vergel enfeita,

Não tem a cor mais pura. 

Surges, e magoada

Pareces ver as vagas desta vida

Na margem debruçada.

Vejo-te então ainda, e pensativa,

Os lábios entreabertos,

Murmurando em sentida linguagem

Pensamentos incertos.

Vejo-te ainda, as lágrimas ferventes

Dos olhos rebentando,

E, ao correrem nas faces, indiscretas,

Segredos revelando.

Que segredo é o teu, lânguida virgem, 

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Ideal dos meus amores?

Que imaginas nos sonhos dessas noites

Tão cheias de fulgores?

Que mistério procuras no ocidente

Ao desmaiar do dia?

Ou que visão esperas, quando a aurora

Com rosas se anuncia?

Que oculto sentimento reprimido

Te faz ansiar o seio?

Que íntima dor, que pensamento acerbo?

Que indefinido enleio?

Olha, se o coração te pede amores,

Virgem, não chores, canta,

Para ti é que são as flores da vida

E a luz que nos encanta.

Tu, sim, podes amar; nas sacras aras

Dessa chama inquieta,

Ateia o sacro fogo com que inflamas

O coração do poeta.

Tu sim, podes amar; mas eu... se ao ver-te

Interrogo o futuro,

Uma voz me murmura: «Adora, mártir,

Adora, e morre obscuro».

Enfim! enfim! encontrei-te.

Luz há tanto suspirada!

Raiaste, aurora fadada

De um longo dia de amor!

Resplandece,

Sol brilhante

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Da primavera da vida!

Surge, surge, estrela querida,

Que tão grato é teu fulgor!

Se soubesses como ansioso

Aguardava este momento,

Que há tanto no pensamento

Me aprazia em conceber!