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 18/10/2014 O ensino pode ignorar sua própria história? Medium https://medium.com/@leituras/o-ensino-pode-ignorar-sua-propria-historia-d5d7157f1a97 1/7 O ensino pode ignorar sua própria história? Não. Então por que a História da Educação só recebeu um espacinho de nada no currículo de Habilitação, e no de Licenciatura nem isso? Quando o legislador educacional não sabe o que fazer com uma disciplina, recorre ao expediente de misturá-la com outra. Assim, a ditadura Médici uniu pelos laços do santo matrimônio a Moral e o Civismo, sem se dar conta de que os cônjuges tinham certas incompatibilidades mútuas, na medida em que o Civismo consiste em obedecer às leis e costumes locais, e a Moral tem o dever de questioná-los em nome de princípios universais: Sócrates foi um herói da moralidade justamente quando se opôs ao civismo grego. O mesmo aconteceu com a História da Educação: o currículo oficial de

1990-O Ensino Pode Ignorar Sua Própria História_ — Medium

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Artigo de Olavo de Carvalho

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  • 18/10/2014 O ensino pode ignorar sua prpria histria? Medium

    https://medium.com/@leituras/o-ensino-pode-ignorar-sua-propria-historia-d5d7157f1a97 1/7

    O ensino pode ignorarsua prpria histria?Olavo de Carvalho

    No. Ento por que a Histria da Educao s recebeu um espacinho denada no currculo de Habilitao, e no de Licenciatura nem isso?

    Quando o legislador educacional no sabe o que fazer com uma disciplina,recorre ao expediente de mistur-la com outra. Assim, a ditadura Mdiciuniu pelos laos do santo matrimnio a Moral e o Civismo, sem se darconta de que os cnjuges tinham certas incompatibilidades mtuas, namedida em que o Civismo consiste em obedecer s leis e costumes locais, ea Moral tem o dever de question-los em nome de princpios universais:Scrates foi um heri da moralidade justamente quando se ops aocivismo grego.

    O mesmo aconteceu com a Histria da Educao: o currculo oficial de

    Sandro Botticelli, A Young Man Being Introduced to the Seven Liberal Arts, aka Lorenzo Tornabuoni Presentedby Grammar to Prudentia and the other Liberal Arts (c. 14831486)

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    Habilitao para o Magistrio casou-se com a Filosofia. Pelo critrio,espontneo e inevitvel, do dize-me com quem andas e te direi quem s,o subtendido que ficava no ar diante desse enlace era que existia afinidadeentre os nudentes. Pode-se, claro, argumentar como o filsofo italianoBenedetto Croce (18661952), que Histria Filosofia e Filosofia Histria. Mas h filsofos que dizem exatamente o contrrio: que aabordagem histrica no somente intil em Filosofia, como prejudicial. Eh, obviamente, historiadores que proclamam ser a Histria uma cinciapositiva autnoma, que no deve obedincia Filosofia. Enfim: ocasamento no tinha razo suficiente; no meio da celebrao, j seelevavam os protestos.

    O pior no era isso. Problemas conjugais todo mundo pode ter, masquando se trata de um casal brasileiro, surge logo a dificuldade de moradia:Filosofia & Histria da Educao, to logo unidas pela fora das leis, foramespremidas juntas no 3. ano do currculo, em quatro horas semanais, nopodendo espalhar-se nem para o antecedente, nem para o subseqente.Nesse exguo Lebensraum (espao vital) letivo deveria o professor iniciaros seus pupilos, futuros educadores, nas questes fundamentais da Lgica,da Gnosiologia e demais disciplinas filosficas, bem como instru-losquanto s idias e prticas educacionais dos chineses, dos gregos, dosmaias e aztecas, da Idade Mdia Europia, do Renascimento, doIluminismo e assim por diante, e finalmente inform-los das sucessivaslegislaes e reformas da educao nacional desde o desembarque doprimeiro mestre-escola jesuta at as recentes discusses sobre ensinoprofissionalizante, democratizao da escola, etc., etc.

    Impossvel, constata Nelson Piletti, professor assistente doutor daFaculdade de Educao da USP, exibindo, consternado, a inabarcvel listade itens do programa.

    Diante dessa evidncia, uma recente proposta de reforma do currculorecomendou o divrcio litigioso: Filosofia Filosofia, Histria Histria.Mas, quando chegou a hora da partilha dos bens, seguiu-se risca oprincpio da sabedoria salomnica: das quatro horas semanais, cadacnjuge ficou com duas. Divorciadas e empobrecidas, cada qual se retiroupara o seu canto, confirmando a sabedoria popular: Ruim com ela, piorsem ela.

    Mas, antes ou depois do divrcio, o problema mais grave no era nem apenas a exigidade do espao: o nmero de vizinhos que o disputam.

    O currculo de Habilitao tem um nmero excessivo de disciplinas, afirmaPiletti, e por isto falta tempo para as disciplinas essenciais, como Histria da

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    Educao.

    O currculo, diz ele, insiste demais em disciplinas especializadas edetalhistas, como Tcnicas de Avaliao, Estatsticas, Tratamento deDeficincias da Linguagem, que poderiam ser dadas em cursos posteriorese especializados. No todo, so 32 disciplinas:

    Quando se pulveriza o conhecimento a esse ponto, ningum aprende nada. Almdisto, no h professores para todas essas matrias, e j vi escolas onde um nicoprofessor lecionava dez delas.

    Se o excesso de moradores o grande drama do curso de Habilitao, oscurrculos de Licenciatura, por seu lado, resolveram o problema segundouma interpretao mais radical do princpio salomnico. Em vez de cortarao meio a carga horria de Filosofia e Histria da Educao, cortaram logotudo de vez: no tem nem Filosofia, nem Histria da Educao.

    CURRCULO ADEQUADOEnfim, o nico lugar onde se pode estudar as duas disciplinas,separadamente e cada qual com uma carga horria razovel, no curso dePedagogia. Na USP, por exemplo, h 240 horas de Histria da Educao(correspondentes a oito cursos semestrais de 30 horas cada, sendo cincopara Histria Geral da Educao e trs para Histria da Educao noBrasil), e h igualmente um nmero decente de horas para a Filosofia daEducao (150 horas).

    No entanto, por mais que lutem, os professores ainda no conseguiramnem inserir essas disciplinas no curso de Licenciatura, nem instaurar no deHabilitao os princpios do divrcio amigvel com partilha justa.

    Um currculo adequado para a formao de professores deveria, segundoPiletti, escorar-se firmemente nas disciplinas essenciais: Filosofia daEducao, Histria da Educao, Sociologia, Psicologia e Didtica. O restoviria em cursos especializados.

    A Histria da Educao teria um lugar de destaque, principalmente porduas razes, diz ele: A primeira que, se no acompanha a evoluo histricade um conhecimento, o futuro educador simplesmente no entende o estado atualdesse conhecimento. A segunda que, ao longo da Histria da Educao, todas asquestes que foram sendo levantadas e discutidas ainda so as que se discutemhoje em dia. O debate educacional ainda o mesmo dos gregos.

    Mais enftico ainda Ruy Afonso da Costa Nunes, professor aposentado

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    de Filosofia e Histria da Educao da USP e autor de uma extensa edocumentada Histria da Educao ( j saram quatro volumes e o trabalhoprossegue em elaborao, sempre com base nos textos originais dosgrandes educadores):

    Endosso a opinio de mile Durkheim, o fundador da Sociologia, para quem o estudo daHistria da Educao o melhor e principal meio de formao dos futuros educadores.

    Porque na Histria no aparecem apenas as idias gerais e as instituies que presidiam oensino nas vrias pocas, mas tambm as aes reais dos educadores, na prtica e no dia-a-

    dia.

    Para Ruy Nunes, todas as outras disciplinas enfocam a Educao por ngulosespecializados. At mesmo a Filosofia, por mais universal que seja, tem de sedeter ao nvel das questes tericas, como por exemplo a das finalidades daEducao. Somente a Histria abarca a Educao como um todo terico-prtico,enfocando os vnculos entre as idias e as aes.

    Somente atravs da Histria, diz Nunes, pode o futuro educador adquiriruma viso real do seu status e do lugar do ensino na vida social. Piletti eNunes poderiam citar dezenas de filsofos em apoio de seus argumentos.Jos Ortega y Gasset (18831955), por exemplo, insistia em que nada secompreende de uma cincia tomando-a como um produto acabado einstitucional, como uma coleo de verdades prontas. Dizemos queencontramos uma verdade quando achamos um pensamento que satisfaz umanecessidade ntima previamente sentida por ns, escrevia ele: Se no nossentimos necessitados deste pensamento, ele no ser para ns uma verdade. Aprecisa busca se acalma no preciso achado: este funo daquela. Emresultado, se o futuro educador no recapitula em si mesmo a gnese e aformao dos problemascientficos, filosficos, etc. , capta apenas oque se fala, mas no o de qu. Essa recapitulao, para Ortega, se chamaHistria: a revivescncia no s das aes, como dos motivossociais epessoais. Sem ela, toda disciplina fica no ar como um conjunto depreceitos que caram do cu ou brotaram das rvores. Conhecer umacincia desta maneira, dizia Ortega, adorar um fetiche.

    E, se Piletti diz que a Histria no um museu de idias mortas, mas oinstrumento para a compreenso do presente, Benedetto Croce ia mais longe:O homem, dizia ele, um microcosmo, no no sentido naturalstico, mas nosentido histrico: um compndio da histria universal. Cada indivduo temdentro de si, graas ao legado cultural da prpria sociedade em que se

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    encontra, todo o conjunto de possibilidades e alternativas que semanifestaram nos outros homens e nos outros momentos da Histria: namedida em que conhece a estes, ele se conhece a si mesmo, e vice-versa. AHistria, para Croce, mais que um instrumento: conhecimento de si, tomada de posse do prprio poder de ao.

    Isto quer dizer que o educador, ao estudar as idias pedaggicas dopassado e a sua prtica no quadro onde surgiram, conhece a um tempo asalternativas do presente, o quadro das possibilidades j tentadas e extintase as reservas ainda frescas que sobreviveram passagem do tempo. Semesse conhecimento, corre o risco de reinventar a roda, ou, pior, deconceb-la quadrada: Aqueles que esquecem ou desconhecem o passado,escreve Thomas Ransom Giles no prefcio da sua Histria da Educao,vem-se obrigados a reviver, talvez, os momentos mais nefastos desse processo.

    IDIAS E PRTICARuy Nunes observa que alguns historiadores chegam a distinguir entreHistria da Pedagogia(como histria das concepes e ideais educacionais)e Histria da Educao propriamente dita, isto , Histria da prtica e docotidiano do ensino. So estudos distintos e complementares: no bastaconhecer as idias, preciso ver o seu poder e eficcia no quadro de umarealidade social dada. s a que a Histria mostra o seu benefcioformativo sobre as mentes dos futuros educadores, que so homens daprtica.

    Um exemplo casualmente dado por Nunes tambm vem em socorro doargumento de Piletti, de que as questes de ontem ainda so as de hoje.Quando pesquisava para escrever seu livro, Gnese, significado e ensino daFilosofia no sculo 12 (Grijalbo, 1974), ele verificou que, no sculo 12,quando o ensino superior tomou pela primeira vez uma fisionomiaprxima da atual, as Artes Liberais (Trivium: Gramtica, Lgica e Retrica;e Quadrivium: Aritmtica, Msica, Geometria e Astrologia), que at entoeram uma espcie de curso secundrio, foram a matriz da nova instituio,tornando-se uma das Faculdades, com papel anlogo ao do atual CursoBsico das faculdades de Cincias Humanas. As Artes Liberais, diz Nunes,foram a me das atuais faculdades. A pergunta inevitvel: sempre que sediscutee na verdade se discute muitoa identidade prpria dosecundrio, como resolver esta questo sem notar que o secundrio foihistoricamente anterior ao universitrio, e na verdade lhe deu origem? Aabordagem histrica , no caso, imprescindvel compreenso dopresente.

    A Histria, ningum nega, memria, documento e recordao. Mas,

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    desde que Henri Brgson (18591941) enunciou a sua famosa teoria damemria (hoje confirmada pelos fisiologistas), ningum mais pode ignorarque recordar no ir ao passado, abandonando o presente, mas, bem aocontrrio, tornar presente o passado, atualizando, na imaginao,impactos, valores, situaes e opes, que ento se tornam, para ns, umaspecto vivo e atuante do presente.

    A presena do passado no s uma realidade psicolgica, mas socialemeducao como em tudo o mais: O passado do processo educativo, dizRansom Giles, est presente no atual momento sob forma de pressupostos, deprticas e atitudes e, invariavelmente, de preconceitos. Sedimentados pelotempo, esses hbitos e valores so os nossos: s conhecendo sua origem eraiz que podemos conquistar a liberdade de extirp-los, segundo umaopo consciente e voluntria.

    E a nos damos conta de que as nossas alternativas no so muitodiferentes daquelas com que se defrontavam os antigos: Ainda vigoradizRansom Gileso conflito que caracterizava a civilizao ateniense: o processoeducativo , primordialmente, conservao do passado, ou implicaessencialmente um processo de criatividade? Seja para libertar-nos dassombras e mitos de um passado opressivo, seja para resgatarmos dessepassado valores imperecveis e portanto sempre atuais, no h nem havernunca outro meio seno a Histria.

    Mais:

    Thomas Ransom Giles, Histria da Educao (E.P.U., 1987).

    Ruy Afonso da Costa Nunes, Histria da Educao na Antigidade Crist;Histria da Educao na Idade Mdia; Histria da Educao no Renascimento;Histria da Educao no Sculo XVII (todos pela E.P.U. 197880).

    Mrio Allghiero Manacorda, Histria da Educao da Antigidade aos NossosDias (Cortez, 1989).

    Claudino Piletti e Nelson Piletti, Filosofia e Histria da Educao (tica,

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    1988).

    Paul Monroe, Histria da Educao (Nacional, 6. ed., 1966).

    Henri-Irene Marrou, Histria da Educao na Antigidade (E.P.U., 1975).

    Nelson Piletti, Histria da Educao no Brasil (tica, 1990).

    Wagner Jaeger, Paidia. A Formao do Homem Grego (Martins Fontes,1974).

    CARVALHO, Olavo de. O ensino pode ignorar sua prpria histria? RevistaSala de Aula, So Paulo, ano 3, 20 de abril de 1990.

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