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245 Cap. 19 INTRODU˙ˆO O câncer nªo representa uma doença œnica, mas um grupo heterogŒneo de doenças que tem na sua origem o mesmo processo desordenado de divisªo celular. HÆ vinte anos atrÆs era im- possível imaginar como tipos tªo diferentes de câncer poderiam apresentar mecanismos pato- gŒnicos comuns. Foram os avanços alcançados na pesquisa do câncer nos œltimos anos que provaram que, alØm do comportamento biológico, todos os tu- mores tŒm em sua origem alteraçıes do DNA. Dessa forma, a revoluçªo na pesquisa do câncer pode ser resumida na constataçªo de que o cân- cer Ø fundamentalmente genØtico. As cØlulas de um organismo saudÆvel vivem em um complexo, interdependente e regulado processo proliferativo, tanto que cada tecido mantØm tamanho e arquitetura apropriados às necessidades do organismo. As cØlulas cancero- sas violam esse esquema, fugindo dos controles proliferativos e criando seus próprios controles. Todo esse mecanismo complexo Ø coordenado por genes. Portanto, o mecanismo de tumorigŒ- nese Ø resultado de uma sØrie de alteraçıes dos genes que atuam direta ou indiretamente no con- trole do ciclo celular. Uma pequena parte dessas mutaçıes Ø her- dada atravØs da linhagem germinativa, estando, portanto, presente em todas as cØlulas do indiví- duo e, assim, predispondo ao aparecimento do câncer. A grande maioria das mutaçıes que con- GenØtica do Câncer tribui para o desenvolvimento do câncer, no en- tanto, acontece em cØlulas somÆticas estando pre- sente somente nas cØlulas neoplÆsicas do paciente. Existem duas classes de genes que atuam na patogŒnese do câncer. A primeira inclui os ge- nes que controlam diretamente a proliferaçªo celular, sªo eles os oncogenes e os genes supres- sores de tumor. A segunda classe Ø formada por genes que nªo controlam diretamente o ciclo ce- lular, mas controlam as taxas de mutaçıes, os genes de reparo do DNA. GENES DO C´NCER Oncogenes Os oncogenes sªo formas modificadas de genes celulares normais denominados proto- oncogenes. Os proto-oncogenes tŒm papel es- sencial no controle positivo da proliferaçªo e diferenciaçªo celular. As proteínas codificadas por esses genes exercem sua funçªo em diversos processos intracelulares, atuando como proteí- na quinases, fatores de crescimento, receptores de fatores de crescimento ou transdutores de si- nal, estando seus produtos distribuídos em to- dos os compartimentos subcelulares. Qualquer alteraçªo na estrutura ou na expressªo desses genes altera sua funçªo normal, exercendo as- sim importante papel no complexo processo de oncogŒnese. Os proto-oncogenes tŒm atuaçªo dominan- te ao nível celular. Portanto, a alteraçªo de um Sílvia Regina Caminada de Toledo

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    Cap. 19

    INTRODUO

    O cncer no representa uma doena nica,mas um grupo heterogneo de doenas que temna sua origem o mesmo processo desordenadode diviso celular. H vinte anos atrs era im-possvel imaginar como tipos to diferentes decncer poderiam apresentar mecanismos pato-gnicos comuns.

    Foram os avanos alcanados na pesquisado cncer nos ltimos anos que provaram que,alm do comportamento biolgico, todos os tu-mores tm em sua origem alteraes do DNA.Dessa forma, a revoluo na pesquisa do cncerpode ser resumida na constatao de que o cn-cer fundamentalmente gentico.

    As clulas de um organismo saudvel vivemem um complexo, interdependente e reguladoprocesso proliferativo, tanto que cada tecidomantm tamanho e arquitetura apropriados snecessidades do organismo. As clulas cancero-sas violam esse esquema, fugindo dos controlesproliferativos e criando seus prprios controles.Todo esse mecanismo complexo coordenadopor genes. Portanto, o mecanismo de tumorig-nese resultado de uma srie de alteraes dosgenes que atuam direta ou indiretamente no con-trole do ciclo celular.

    Uma pequena parte dessas mutaes her-dada atravs da linhagem germinativa, estando,portanto, presente em todas as clulas do indiv-duo e, assim, predispondo ao aparecimento docncer. A grande maioria das mutaes que con-

    Gentica do Cncer

    tribui para o desenvolvimento do cncer, no en-tanto, acontece em clulas somticas estando pre-sente somente nas clulas neoplsicas do paciente.

    Existem duas classes de genes que atuam napatognese do cncer. A primeira inclui os ge-nes que controlam diretamente a proliferaocelular, so eles os oncogenes e os genes supres-sores de tumor. A segunda classe formada porgenes que no controlam diretamente o ciclo ce-lular, mas controlam as taxas de mutaes, osgenes de reparo do DNA.

    GENES DO CNCER

    Oncogenes

    Os oncogenes so formas modificadas degenes celulares normais denominados proto-oncogenes. Os proto-oncogenes tm papel es-sencial no controle positivo da proliferao ediferenciao celular. As protenas codificadaspor esses genes exercem sua funo em diversosprocessos intracelulares, atuando como prote-na quinases, fatores de crescimento, receptoresde fatores de crescimento ou transdutores de si-nal, estando seus produtos distribudos em to-dos os compartimentos subcelulares. Qualqueralterao na estrutura ou na expresso dessesgenes altera sua funo normal, exercendo as-sim importante papel no complexo processo deoncognese.

    Os proto-oncogenes tm atuao dominan-te ao nvel celular. Portanto, a alterao de um

    Slvia Regina Caminada de Toledo

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    nico alelo j suficiente para que esse gene sejaconsiderado ativado em oncogene e contribuapara o fentipo maligno. Existem diversos meca-nismos de ativao dos proto-oncogenes e apalavra ativao aqui, deve ser interpretada comoa alterao de funo desses genes favorecendoou levando ao desenvolvimento do cncer.

    Mecanismos de Ativaode Proto-oncogenes

    O entendimento dos diversos mecanismosde ativao requer a caracterizao e o reconhe-cimento da funo dos proto-oncogenes, per-mitindo, assim, uma comparao entre suafuno normal e as alteraes que influenciam opotencial de transformao.

    Alteraes cromossmicas so uma formaimportante de ativao de proto-oncogenes. Ainvestigao das regies dos pontos de quebranos rearranjos cromossmicos no-randmicospresentes nos tumores humanos tem permitidoisolar e mapear diversos oncogenes.

    A primeira alterao citogentica diretamenterelacionada a um tipo especfico de neoplasia,foi a deteco de um pequeno cromossomodenominado Philadelphia (Ph1), presente emclulas de pacientes portadores de leucemiamielide crnica (LMC). O cromossomo Ph resultado de uma translocao envolvendo osbraos longos dos cromossomos 9 e 22 ,t(9;22)(q34;q11). O resultado da alterao na

    estrutura desses cromossomos a formao deum gene quimrico e por conseqncia de umaprotena de fuso. Os genes envolvidos nesserearranjo so o proto-oncogene ABL, localiza-do em 9q34 e o gene BCR localizado em 22q11.A protena quimrica tem uma atividade catal-tica aumentada quando comparada atividadeda protena normal (Fig. 19.1).

    No linfoma de Burkitt, tambm uma trans-locao cromossmica a responsvel pela ativa-o do proto-oncogene MYC. No entanto, nessecaso no ocorre uma fuso gnica, mas sim aexpresso contnua desse gene nas clulas ondea translocao est presente, resultado da justa-posio do proto-oncogene MYC com o loco dogene da cadeia pesada das imunoglobulinas (IG).O gene MYC se localiza originalmente em 8q24;quando ocorre o rearranjo esse gene translo-cado para 14q32 onde se localiza o gene da ca-deia pesada das imunoglobulinas (Fig. 19.2) . Aoncoprotena MYC transforma os linfcitos B,pois o aumento de sua expresso altera o papelde fator de transcrio exercido por essa pro-tena quando forma heterodmeros com outrasprotenas, aumentando assim a transcrio dosgenes por eles controlados.

    Um outro proto-oncogene ativado por trans-locao cromossmica o gene BCL2. Em lin-foma folicular de clulas B esse gene tem suaexpresso aumentada, assim como o gene MYC,resultado da justaposio com a cadeia pesadada imunoglobulina [t(14;18)(q32;q21)]. Um as-

    Fig. 19.1 a) Esquema da t(9;22)(q34;q21) presente em leucemia mielide crnica (LMC), indicando a localizao dosgenes envolvidos no rearranjo; b) Esquema do rearranjo gnico, do RNA e da protena hbrida (Foto gentilmente cedidapor Cristiane A. Dalla Torre, Disciplina de Gentica, Departamento de Morfologia, Unifesp-EPM).

    B) 5 3BCR ABL

    mRNAProtena

    8.5kb210kDa

    A)

    ABL9

    der (9)

    BCR

    22 der (22)

    Ph1 BCR

    ABL

    5

    3

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    Cap. 19

    pecto interessante a ressaltar que a expressoaumentada do gene BCL2 no funciona comoestimulador da proliferao celular, mas sim pro-longa a sobrevivncia das clulas progenitoras,inibindo a apoptose (morte celular programa-da) imortalizando, assim, as clulas alteradas.

    A mutao gnica tambm um mecanis-mo de ativao de proto-oncogenes. Um dosclssicos exemplos a ativao dos genes dafamlia RAS. Esses genes so ativados por mu-taes de ponto, alterao de uma nica basena seqncia de DNA do gene, que alteram oproduto final e sua funo, agora diretamenterelacionada transformao da clula onde esseevento ocorre.

    Um mecanismo muito particular de ativaode proto-oncogene ainda no totalmente conhe-cido, a amplificao gnica. Aqui os genes notem sua estrutura alterada, mas sim o seu nme-ro de cpias por genoma. A amplificao gnica visvel citologicamente, podendo ocorrer na for-ma extracromossmica, como pequenos marca-dores sem centrmero, denominados minsculosduplos (DMINs) ou, integrados a um cromosso-mo como regies homogeneamente coradas(HSRs) (Fig. 19.3). A amplificao gnica umevento restrito s clulas do cncer e confere umavantagem de crescimento para as clulas ondeocorre. Genes que aparecem freqentemente am-plificados em determinados tipos de cncer in-cluem proto-oncogenes da famlia MYC (MYC,

    MYCN e MYCL), famlia RAS (HRAS, KRAS eNRAS), receptores de fatores de crescimento(ERBB1 e 2, FGFR1 e 2) e outros genes como(CCND1, MDM2, CDK4, CCNE, AKT2 e MYB).

    Em tumores onde a amplificao gnica foidetectada tem sido observada uma forte asso-ciao com estgios avanados da doena e umpior prognstico. Um dos modelos de estudoda amplificao gnica tem sido o neuroblasto-ma, onde a amplificao de MYCN associada rpida progresso da doena, independenteda idade do paciente ou da classificao anato-mopatolgica e clnica do tumor.

    A amplificao dos genes ERBB2 e MYCocorre em aproximadamente 15% a 30% dostumores de ovrio sendo relacionada com est-gios avanados da doena. Essa observao for-talece a proposta de que a amplificao gnica um evento mais tardio, nos mltiplos passos queenvolvem a patognese do cncer.

    GENES SUPRESSORES DE TUMOR

    So genes que nas clulas normais codificamprotenas cuja funo a regulao negativa docrescimento ou do processo de diferenciaocelular. Quando esses genes perdem sua fun-o, passam a contribuir diretamente no fenti-po alterado das clulas malignas. Apesar de essesgenes serem chamados de supressores de tumor,

    Fig. 19.2 A) Esquema da t(8;14)(q24;q11) presente em linfoma de Burkitt, indicando a localizao dos genes envolvi-dos no rearranjo; B) Esquema do rearranjo gnico e do RNA hbrido.

    B)5

    5

    3

    31 2 3

    MYC

    IGH

    2 3MYC IGH

    321321

    221

    2122

    123123

    123

    321

    12

    1

    231

    2

    3

    4

    p

    q

    8

    MYC

    A)

    der (8)

    321

    211

    231

    1

    23

    23

    4

    12

    123

    2

    3

    IGH

    der(14)

    14

    1

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    essa no a forma mais precisa para descreversuas funes, no entanto a nomenclatura dosgenes envolvidos no cncer se baseia mais nasalteraes patognicas do que em sua funonormal. Ao contrrio dos oncogenes, a identifi-cao dos genes supressores de tumor no fei-ta atravs de estudos de modelos experimentaisde carcinognese viral e qumica, mas sim, atra-vs de anlise de tipos especficos de tumoreshumanos. Entre as abordagens de xito na loca-lizao cromossmica de genes supressores detumor est a investigao citogentica de linf-citos de sangue perifrico de pacientes com cn-cer. Esse tipo de estudo tem por objetivoidentificar alteraes cromossmicas como de-lees e translocaes que levariam inativaode um ou dos dois alelos de um gene supressorde tumor. Foram esses estudos que orientarama identificao de alguns genes supressores detumor como o gene RB1 (13q14) em retinoblas-toma, WT1 (11p13) em tumor de Wilms, geneAPC (5q21) em polipose adenomatosa familiale NF1 (17q11.2) em neurofibromatose tipo 1.Os genes supressores de tumor tm comporta-mento recessivo ao nvel celular, portanto ne-cessrio que os dois alelos estejam alterados paraque esse gene perca sua funo.

    Famlias que apresentam predisposio acertos tipos de cncer, muitas vezes so com-postas por indivduos portadores de alteraesem um dos alelos de um gene supressor de tu-mor especfico. Essa alterao acontece na li-nhagem germinativa, podendo ser transmitidapara as geraes subseqentes. Como esses ge-nes tm comportamento recessivo, a ausnciade uma cpia (heterozigose) silenciosa e o pro-cesso de tumorignese s vai se estabelecer quan-do ocorrer alterao do outro alelo (homozigoseou perda da heterozigose). Uma vez que a pro-babilidade de alterao de um nico alelo con-sideravelmente maior do que a alterao de doisalelos de um gene, a chance de um indivduo,portador desse tipo de predisposio desenvol-ver um tumor maior do que a chance de umindivduo da populao geral. No entanto, so-mente 10% dos cnceres apresentam um padrofamilial e desses, poucos apresentam um com-portamento mendeliano.

    Em 1971, Ohno props um modelo geralpara a gnese do cncer tendo como base os

    Fig. 19.3 Amplificao gnica a.localizao do genenormal, b. elementos extracromossmicos, c. minsculosduplos, d. integrao linear dos minsculos duplos forman-do uma regio homogeneamente corada. Clulas de neu-roblastoma apresentando amplificao de MYCNdemonstrada por FISH c.Ncleo interfsico com mais de 50cpias do gene MYCN na forma de minsculos duplos; d.Ncleo metafsico apresentando as duas formas de ampli-ficao, minsculos duplos (DMs) e regio homogeneamentecorada (HSR) (Fotografias gentilmente cedidas por MaisaYoshimoto, Disc. de Gentica/Departamento de Morfolo-gia, Unifesp/EPM).

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    Cap. 19

    aspectos recessivos da gentica e, no mesmo ano,Knudson props um modelo embasado na an-lise de dados epidemiolgicos das formas fami-liais e espordicas de retinoblastoma, um tumorocular maligno e raro da infncia. Esse tumorocorre tanto na forma espordica quanto fami-lial onde a predisposio para desenvolver o tu-mor herdada de forma mendeliana com padrode herana autossmico dominante com altograu de penetrncia. Knudson props que noscasos com componente hereditrio, a predispo-sio para desenvolver o tumor deveria ter sidoherdada como uma mutao recessiva na linha-gem germinativa, mas o sinal para desenvolvi-mento do tumor s seria dado a partir de umasegunda mutao que deveria ocorrer em umaclula somtica. Assim a clula onde o segundoevento aconteceu ficaria em homozigose para amutao. Nos casos espordicos, no entanto, opasso inicial para o desenvolvimento do tumordependeria da ocorrncia de duas mutaes so-mticas consecutivas, inativando os dois alelosde um determinado gene. O modelo propostopor Knudson para o retinoblastoma conheci-do como hiptese de dois eventos e esse omecanismo aceito para perda de funo dos ge-nes de supresso tumoral. O gene RB1 foi o pri-meiro gene desse grupo a ser completamentecaracterizado e reconhecido como sendo o genecuja perda de funo tem relao direta com agnese do retinoblastoma (Fig. 19.4).

    A natureza recessiva dos genes supressoresde tumor incontestvel, no entanto, existem ex-cees importantes. Quando um gene supressorde tumor, em heterozigose, est comprovadamen-te envolvido em um processo de carcinognese,a mutao denominada dominante negativa.Um dos mecanismos para explicar esse eventopoderia ser a capacidade de inativao do pro-duto normal pelo produto do alelo alterado. Aprotena normal poderia estar sendo produzidaem nveis muito inferiores aos necessrios paraexercer uma regulao negativa ou ento o pro-duto mutante adquire propriedades oncogni-cas, atuando como oncogene.

    Um dos genes mais freqentemente altera-dos em cnceres humanos o gene TP53, eacredita-se que esse gene est alterado em apro-ximadamente 70% de todos os cnceres. Em1990, Malkin et al. e Srivastava et al. demons-traram que indivduos portadores de sndromede Li-Fraumeni carregavam uma mutao do

    gene TP53 na linhagem germinativa. A sndro-me de Li-Fraumeni uma forma rara de predis-posio ao cncer onde os indivduos soafetados por formas variadas de tumores que sse manifestam quando a mutao no gene TP53 reduzida a homozigose.

    Atualmente o gene TP53 reconhecido comoo gene que governa a transio de G1 para S dociclo celular. Sempre que danos do DNA foremdetectados, o gene TP53 tem o papel de supri-mir a progresso do ciclo celular e a replicaodo DNA. Dessa forma, monitora o acmulo dedanos do DNA, estendendo o perodo de transi-o para permitir que o dano seja reparadoantes de sua fixao no genoma durante a repli-cao, ou elegendo a clula para uma morte ce-lular programada (apoptose) se o dano forirreparvel. Assim, esse gene no previne a ocor-rncia de um tipo de tumor em particular, comono caso de outros supressores de tumor, massim atua como supressor da tumorignese.

    GENES DE REPARO DO DNAMUTATOR GENES

    Em 1980, Loeb props que somente um fe-ntipo hipermutvel poderia justificar o nmerode mutaes observadas no cncer e, naquelemomento no existia nenhum mecanismo conhe-cido que pudesse ser o responsvel pelo fenti-po hipermutvel.

    A instabilidade cromossmica presente nasclulas tumorais se traduz pela presena de ca-ritipos complexos, com perda, ganho e rear-ranjos cromossmicos e somente alguns destespodem ser relacionados gnese cncer. Os ge-nes relacionados instabilidade genmica soainda pouco conhecidos, no entanto algumasdoenas tm fornecido informaes importan-tes sobre os genes responsveis pela instabilida-de do DNA.

    A ataxia-telangectasia uma doena re-cessiva caracterizada por ataxia cerebelar pro-gressiva, dilatao das veias da conjuntiva eglobo ocular, imunodeficincia, atraso de de-senvolvimento e predisposio consideravel-mente aumentada para o cncer. Os indivduoshomozigotos para a doena, freqentementemorrem de cncer antes dos 25 anos e os hete-rozigotos tm risco aumentado de desenvolver

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    VOL. 1 BASES MOLECULARES DA BIOLOGIA, DA GENTICA E DA FARMACOLOGIA

    Cap. 19

    cncer quando comparado com a populao ge-ral. O gene ATM, que se localiza em 11q22-23, o gene mutado nesses indivduos. O fentipodos indivduos com ataxia telangectasia sugeremo envolvimento desse gene em processos funda-mentais do controle da integridade gentica.

    No cncer de clon hereditrio sem pli-pos, a doena herdada de forma autossmi-ca dominante com alto grau de penetrncia.Os genes que ocasionam predisposio a essacondio foram mapeados em 2p15-p16(MSH2), 3p21.3 (MLH1), 7p22 (PMS2) e2q31 (PMS1). Mutaes desses genes, quecodificam protenas que mantm um sistemade correo de erros, levam a um aumentogeral da taxa de mutaes. Os indivduos comcncer de clon sem plipos so constitucio-nalmente heterozigotos para qualquer dessesgenes e a perda de heterozigose ocorre nasclulas tumorais.

    Os genes tm sido denominados Muta-tor genes com base na sua contribuio pa-tognica quando mutado. Sua funo nas

    clulas normais garantir a integridade da in-formao gentica mantendo a eficincia dareplicao e reparo do DNA. Esses genes tmum comportamento recessivo na clula, comoos genes supressores de tumor, requerendoassim duas alteraes, em ambos os alelos paraque o gene perca sua funo.

    IMPRINTING GENMICO E CNCER

    O imprintig genmico uma modificaoepigentica de um alelo parental especfico deum gene ou do cromossomo onde esse gene selocaliza, no envolvendo no entanto alteraesna seqncia de DNA . Evidncias recentes tmindicado que o imprintig genmico uma formaepigentica de regulao gnica, que resulta emexpresso gnica uniparental, podendo funcio-nar como fator de predisposio ao cncer. Esseimprinting diferencial ocorre no gameta ou nozigoto resultando em uma expresso diferencialdos dois alelos de um gene nas clulas somti-cas do recm-nascido.

    Fig. 19.4 Mecanismos possveis de perda de heterozigose em retinoblastomas.

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    GENTICA DO CNCER

    Cap. 19

    Alteraes do imprintig genmico foramidentificadas em certos tipos de cncer, po-dendo ocorrer tanto em cnceres de adultoquanto de crianas. Essas alteraes levam auma expresso inadequada dos genes que re-gulam a diviso celular, representando, noentanto, alteraes potencialmente reversveis.Um dos aspectos mais interessantes do imprin-ting genmico que ele atua sobre diferentesprocessos celulares, incluindo sinalizao inter-celular, processamento do RNA e controle dociclo celular.

    Uma das primeiras sugestes sobre a impor-tncia do imprinting genmico em cncer foi amola hidatiforme. A mola hidatiforme um tu-mor maligno do tecido extra-embrionrio, re-sultado de um embrio formado por doisconjuntos haplides paternos sem material ge-nmico materno. Pode ser o resultado de dis-permia e perda do complemento materno ou deduplicao do genoma paterno e perda do equi-valente materno.

    O gene MYC foi a primeira demonstraode um gene especfico com imprinting genmi-co em cncer. Os pesquisadores observaram queo gene MYC (8q24) quando translocado para olocus da cadeia pesada da imunoglobulina em14q32, era expresso em alguns tecidos somente

    quando a alterao tivesse acontecido na linha-gem germinativa paterna, quando herdado porvia materna o gene no transcrevia.

    TELMEROS, TELOMERASE E CNCER

    A enzima telomerase uma ribonucleopro-tena que adiciona repeties TTAGGG garan-tindo a manuteno de uma estrutura localizadana extremidade dos cromossomos, denominadatelmero. Os telmeros tm papel fundamentalno controle do nmero de divises que uma c-lula deve ter at sua morte.

    Em 1972, Watson demonstrou que as DNApolimerases no podiam copiar linearmente todoo cromossomo de uma extremidade a outra. Dessemodo, o processo de replicao deixa de copiaruma pequena regio na extremidade 3dos cro-mossomos e assim, essas extremidades diminuemprogressivamente a cada ciclo de duplicao. Nalinhagem germinativa a enzima tem sua atividadegarantida pela necessidade de manuteno do ta-manho dos telmeros na formao dos gametas.Nas clulas somticas normais os telmeros so-frem encurtamento a cada diviso celular, ocor-rendo, no entanto, atividade residual da enzimaem alguns tipos celulares. O telmero pode serchamado de relgio molecular, pois determina

    Fig. 19.5 Relao entre tamanho do telmero, atividade da telomerase e imortalidade celular.

    Tamanho dotelmero

    Reduo progressiva dotamanho do telmero

    Retomada da atividadeda telomerase

    Estabilizao dotamanho do telmero

    TAM

    ANH

    O

    IMORTALIZAO

    DIVISES CELULARES

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    VOL. 1 BASES MOLECULARES DA BIOLOGIA, DA GENTICA E DA FARMACOLOGIA

    Cap. 19

    o nmero de vezes que uma clula pode se dividire quando a senescncia celular deve acontecer.

    Nas clulas cancerosas a taxa de prolifera-o celular aumentada e, portanto os telme-ros tendem a sofrer encurtamento. Para garantira proliferao celular contnua, essas clulas rea-tivam a atividade da telomerase, equilibrando otamanho do telmero (Fig. 19.5). Independentedas distintas etiologias dos diversos tipos de cn-cer, achados recentes evidenciaram o importan-te papel da ativao da enzima telomerase emclulas tumorais malignas.

    O gene TP53 e o gene RB1 so molculaschaves na induo da senescncia celular. Alte-raes nesses genes devem ser suficientes paraaumentar o tempo de vida das clulas favore-cendo o desenvolvimento de tumores mortais.Entretanto, a retomada da expresso da telome-rase, fato que ocorre na maioria dos tumores,provavelmente o evento crtico para a susten-tao do crescimento da maioria dos tumoresindependente da presena de mutao no geneTP53.

    At o momento no se sabe o motivo peloqual ocorre a retomada da atividade da telome-rase nos tumores. A chave de todas as questesrelacionadas telomerase reside na determina-o dos tipos de tumores onde ocorre uma cor-relao clnica direta entre a atividade datelomerase, o diagnstico e prognstico tumo-ral, permitindo assim que sejam utilizadas tera-pias inibidoras da telomerase como mais umrecurso no combate ao cncer.

    CONCLUSES

    As clulas precisam acumular de quatro asete mutaes para se tornarem tumorignicas ecada mutao necessita da expanso do clonemutante por pelo menos um milho de clulasantes que ocorra a prxima mutao. Algumasdessas mutaes so recessivas e nesse caso pre-cisam de duas expanses clonais para que o genetenha sua funo eliminada. Isso provavelmenterequer de 80 a 200 duplicaes de uma clulanormal para gerar um tumor maligno.

    Fig. 19.6 Mltiplos passos na fomao de um tumor malgno M=mutao em genes supressores de tumor ou proto-oncogenes. Clulas normais; Clulas com uma mutao; Clulas com duas mutaes; Clulas com trs mutaes; Clu-las com quatro mutaes; Clulas com cinco mutaes; Clulas com cinco mutaes e reativao da telomerase.

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    GENTICA DO CNCER

    Cap. 19

    A retomada da expresso da telomerase, queocorre na maioria dos tumores, provavelmenteum evento crtico na manuteno do crescimen-to de muitos cnceres. Alm disso, o cncer podeno somente ser resultado de somatria de mu-taes, gnicas ou cromossmicas, mas tambmresultar de alteraes epigenticas que tm porproduto a expresso inapropriada de genes queatuam no processo de patognese.

    A concluso a que podemos chegar que aformao de um tumor um processo de ml-tiplas etapas que podem ser evidenciadas pelasalteraes genticas presentes nas clulas neo-plsicas (Fig. 19.6).

    NESSE CAPTULO ABORDAMOS:

    quais as classes de genes que atuam na pa-tognese do cncer e quais os mecanismosque alteram esses genes

    como esses genes alterados em sua estrutu-ra e/ou funo atuam no processo de tumo-rignese

    como uma modificao epigentica como oimprinting genmico pode atuar no cn-cer

    o papel da enzima telomerase e dos telme-ros em clulas tumorais malignas

    como todos os eventos que acontecem nasclulas tumorais se combinam na patogne-se do cncer

    BIBLIOGRAFIA

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