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1P-S 1-CAP 3 - O Comentário de Texto

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Metodologia filosófica

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Capítulo IIIO comentário de texto

Modo de uso

- Impregnar-se deste capítulo;- reportar-se aos exercícios práticos para experimentar a dife­

rença entre explicação e comentário;-vo lta r a este capítulo toda vez que trabalhar num comentário.

I. Os princípios do comentário

Como seu nome o indica, o objetivo do comentário é mui­to diferente do da explicação.

Desta vez, não se trata mais apenas de expor o que um autor realmente disse num texto preciso, mas de estalecer um diálogo com ele, a fim de dar ao texto considerado sua função no interior da obra da qual é extraído e de apreciar seu papel no pensamento filosófico do autor.

É normal que tal dispositivo resulte numa discussão mais ampla, na qual a reflexão pessoal do comentador e o pensa­mento de outros autores têm um papel a desempenhar, às vezes muito importante.

No horizonte do comentário, que é também o da filoso­fia, pura e simplesmente, mesmo se isso for apenas uma as-

j piração impossível ou uma simples idéia reguladora, trata- se de interrogar-se sobre o que o autor em questão disse de verdadeiro.

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50 OS TEXTOS FILOSÓFICOS

Nessas condições, o comentário afigura-se como um exer­cício muito mais vasto e ambicioso que a explicação. Entre­tanto, ele também possui seus limites, pois inscreve-se priorita­riamente no contexto da história da filosofia. Por isso apresen­ta-se geralmente como um exercício bem balizado, circunscrito no interior de um programa fixado de antemão, a título de con­firmação de um trabalho conduzido ao longo de todo um ano de preparo.

Diferentemente da explicação, que pode ser realizada com brilho sobre um autor que se conhece pouco ou até nem se conhece, o comentário supõe conhecimentos precisos, len­tamente adquiridos e bem assimilados. Supõe igualmente um trabalho assíduo sobre os textos dos comentadores.

Isso não impede a existência de um tipo de comentário considerado como exercício filosófico geral - caso, na França, da terceira prova escrita do baccalauréat*.

Nessa hipótese, é a cultura pessoal do estudante que é so­licitada, independentemente da inscrição precisa de um autor num programa de estudos.

Vê-se assim que o comentário oscila entre dois pólos:

- o exercício de história da filosofia, que confina com a eru­dição;

- o exercício especulativo a partir de um texto-suporte. Nesse último caso, o comentário deverá integrar o essencial dos elementos desenvolvidos a propósito da dissertação filosófi­ca, a diferença maior sendo que se parte de um texto em vez de recorrer livremente a autores.

Assim, é essencial não confundir explicação e comentá­rio, que cumprem funções bem distintas e dão lugar a exercí­cios muito diferentes.

Por exemplo, a explicação de texto, na França, é uma pro­va do CAPES (sem programa determinado previamente), o co­mentário, uma prova do concurso de admissão ao magistério (com base em programa).

O estudante deve portanto ajustar seus esforços ao tipo de exercício que lhe é pedido, quer se trate de deveres, de controle

* Exame final do 2a grau, que dá acesso à universidade. (N. do T.)

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O COMENTARIO DE TEXTO 51

contínuo, de exames ou de concurso. A regra do jogo é sempre claramente anunciada: pede-se para “explicar” ou para “co­mentar”, ou então para “explicar e comentar”, quer o contexto seja o de um programa de história da filosofia ou de uma refle­xão temática, quer não haja programa nenhum.

Resumindo

- A explicação está a serviço de um texto, o comentário inter­roga seu autor;

- a explicação parte do texto e se restringe ao texto, o comen­tário parte ao texto e não se restringe a ele;

- a explicação pode ignorar a história da filosofia, o comentá­rio faz dela sua condição;

- o comentário oscila entre dois pólos: a erudição e a especu­lação.

II. A realização do comentário

O papel considerável que desempenham a história da filo­sofia e os programas no comentário de texto limita estreita­mente a amplitude e a importância das considerações pura­mente metodológicas sobre esse tema.

Com efeito, fica claro que o substrato do comentário de­pende da aprendizagem filosófica propriamente dita, o que nos remete aos cursos seguidos pelo estudante e ao trabalho pessoal que ele realiza. Não há, propriamente falando, metodologia dos conteúdos filosóficos. No que concerne aos cursos, é uma ques­tão de pedagogia; no que concerne ao trabalho pessoal, uma questão de organização. Trata-se portanto, essencialmente, de aplicar sua cultura filosófica.

O comentário irá assim aferir o nível filosófico de um estu­dante singular, que terá seguido determinado curso, efetuado determinadas leituras e digerido mais ou menos bem o conjun­to. Isso implica muitos fatores particulares para que se possa propor uma metodologia sistemática e universal.

Em compensação, é possível dar um certo número de indica­ções práticas diretamente derivadas do princípio do comentário.

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a - A explicação preliminar

Não há segredo: não se pode comentar um texto antes de saber do que ele trata.

Como vimos anteriormente, os conhecimentos filosóficos não são apenas inúteis, mas geralmente prejudiciais quando se trata de efetuar a primeira leitura, “ingênua”, de um texto. Para você se colocar na boa postura diante de um comentário, é pru­dente, portanto, afastar momentaneamente esses conhecimen­tos, o tempo suficiente para identificar a matéria, a tese, os obje­tos de discussão, os momentos, as articuíações e as noções. Sem isso, correrá seriamente o risco de comentar uma frase, uma idéia, uma impressão, uma reminiscência - em suma, não fará o que é pedido, e toda a cultura de que dispõe será empre­gada inadequadamente.

b - A preparação do comentário

Como o objetivo do comentário é diferente do da explica­ção, é preciso que esse trabalho preliminar possibilite as modi­ficações e os prolongamentos que se impõem. Nessa etapa, apresentam-se dois obstáculos. Com efeito:

— é preciso manter a ordem das operações para não recair nos perigos da leitura orientada, portanto, falseada;

- mas é preciso igualmente evitar justapor duas exposições su­cessivas, uma constituída pela explicação, outra pelo comen­tário.

Na prática, procure trabalhar em várias folhas ao mesmo tempo - ou várias colunas - , a fim de inscrever primeiro o que se refere à explicação propriamente dita, depois encadear horizontalmente as considerações que pertencem ao comen­tário.

Por exemplo, numa primeira coluna disponha os elemen­tos de explicação (tema, tese, noções, etc.) e coloque ao lado, numa segunda coluna, as referências à obra, à doutrina e à his­tória das idéias.

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O COMENTÁRIO DE TEXTO 53

Se o contexto do exercício o exigir, disponha numa tercei­ra coluna os elementos de uma reflexão mais pessoal, a fim de preparar a discussão.

Esse trabalho deve ser prosseguido minuciosamente até o final do texto, respeitando sempre essa ordem, a fim de que expectativas, lembranças ou preconceitos intempestivos não venham turvar o olhar sobre o texto, o que é a fonte principal da fuga do tema, do comentário lacunar ou deformado, e outros defeitos bem conhecidos.

c - Construir um plano único

Reconheçamos, a dificuldade não é pequena. No entan­to, é preciso evitar esse tipo de plano tão freqüentemente pra­ticado pelos candidatos ao baccalauréat, que consiste em di­vidir seu escrito em duas grandes partes: 1) explicação; 2) co­mentário.

Tal plano engendra fatalmente um resumo de explicação, seguido de um comentário sem estrutura própria, condenado a repetir o que já foi dito na primeira parte, para impedir que o leitor se perca.

Evidentemente, semelhante tática sempre pode ser utiliza­da nos casos desesperados, quando é preciso a todo custo entregar um trabalho num dia de exame. Mas não há nada de bom a esperar disso - a não ser uma relativa limitação dos estragos. Em suma, é um “mal menor”, que jamais equivale a um plano único.

Para obter esse plano, é preciso:

1. Preparar o esquema em colunas, conforme indicado acima. Isso significa, como em dissertação, prever um conjunto de casas vazias que se procurará preencher metodicamente re­correndo aos materiais recolhidos na fase preparatória.

2. Fazer corresponder a cada elemento de explicação do texto elementos de comentário histórico (a obra, a doutrina, as noções capitais, as referências ao autor ou a outros filósofos) e elementos mais pessoais (reflexão, discussão).

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3. Procurar temas ou motivos, enunciados na forma de pro­blemas ou de questões, que possam servir de títulos comuns às diversas partes da explicação e aos comentários correspondentes.

Para descobri-los, é preciso naturalmente elevarse acima da explicação linear, embora permanecendo fiel a ela, e per- guntar-se cada vez o que está em questão. Por exemplo: o mé­todo em filosofia (Descartes), a definição do bem (Platão, Aris­tóteles), etc.

Todos esses elementos reunidos permitirão preparar urna discussão.

4. Seguir a ordem do texto, que não há a menor razão para abandonar, a fim de realizar a mesma operação parte por parte.

5. Ajustar o plano de conjunto por um trabalho de vaivém. Abrevie determinado ponto, se não dispuser de elementos sufi­cientes; desenvolva um outro, no caso contrário. O essencial é obter um esquema único, construído da melhor maneira possí­vel, que irá estruturar ao mesmo tempo a parte de explicação e a parte de comentário propriamente dito.

É apenas com essa condição que o comentário de texto “funcionará” de maneira satisfatória.

Observação - O equilíbrio das partes será normalmente diferente daquele que se teria obtido para uma simples explica­ção. Aqui, é a necessidade de comentar que se impõe.

Além do mais, e por força das coisas, cada um irá privile­giar inevitavelmente os pontos que sua cultura pessoal torna mais fáceis de tratar. Mesmo assim, deve-se ter presente que é normalmente o texto que deve servir de guia para decidir o que é essencial e o que não é. Nisso reside toda a dificuldade do comentário, que sanciona sem piedade, de maneira muito discriminante, o nível de cultura ao qual se chegou.

d - A introdução e a conclusão

Esboçadas tantas vezes quantas for necessário após a ela­boração do plano detalhado, a introdução e a conclusão devem

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se ajustar às necessidades do comentário tal como foi cons­truído.

- É importante não deduzir disso que elas devam ser mais longas: conserve a mesma sobriedade e o mesmo rigor que na explicação. Apenas a inflexão deve mudar. Em vez de centrar tudo no texto, procure elevar-se ao nível dos problemas que ele coloca, seja no estrito contexto da obra do autor (comentário de história da filosofia), seja no âmbito do debate filosófico geral.

- O mesmo vale para o anúncio do plano, que é preciso apresentar na forma de questões principais que correspondam ao mesmo tempo ao texto de partida e aos objetos de discussão históricos e filosóficos.

- Enfim, o balanço final e a conclusão do debate serão orientados conforme as situações. No âmbito da história da fi­losofia, a conclusão poderá ser relativamente técnica. No qua­dro da filosofia geral, ela tenderá mais para a reflexão especu­lativa.

Resumindo

- Todo comentário de texto supõe a explicação do texto;- para evitar a dupla dissertação, habituar-se a trabalhar hori­

zontalmente, em várias folhas ou várias colunas;- elaborar um plano único ordenado por temas ou questões;- seguir a ordem do texto.