23
2 Como decidem os juízes? 2.1 Entendendo o Realismo Jurídico Norteamericano. Quando se fala na atividade desempenhada pelos juízes, a chamada “tomada de decisão judicial”, é possível encontrar na literatura duas formas básicas de abordagem: uma descritiva e outra normativa/prescritiva. A primeira tenta observar e descrever como decidem, de fato, os juízes. A ideia é pesquisar os elementos e variáveis que compõem o processo de tomada de decisão judicial para, em seguida, descrevê-los. Esse tipo de pesquisa gira em torno de questões como: o que causa uma decisão judicial? Um processo automático, intuitivo, que gera uma resposta imediata ou um processo esforçado, deliberativo, que gera uma resposta ponderada? Quais são os fatores que entram no processo causal da tomada de decisão? Será que os juízes têm consciência desses fatores? Que papel os materiais jurídicos desempenham na tomada de decisão judicial? A segunda abordagem é a normativa, que atraiu e continua atraindo mais atenção no meio acadêmico brasileiro. Partindo do pressuposto de que todo juiz, de maneira consciente ou inconsciente, adota uma postura interpretativa, a discussão normativa visa a convencê-lo de que tal ou qual postura interpretativa é mais adequada. A discussão normativa pode oferecer aos juízes razões para serem mais ou menos sensíveis às particularidades do caso concreto 5 . Também há teorias que sugerem critérios substantivos de tomada de decisão (DWORKIN, 2006: 14) e há teorias que sugerem critérios procedimentais, cultuando a razão prática no contexto da argumentação jurídica (ALEXY, 2005: 45; ATIENZA, 2006). O essencial a destacar é que as teorias normativas têm a finalidade de oferecer razões para que os juízes ajam num ou noutro sentido. 5 Pense na tradicional e rica discussão entre os dois modelos extremos de tomada de decisão: o modelo baseado em regras (às vezes pejorativamente chamado de formalista) e o modelo conversacional ou particularista (STRUCHINER, 2005b: 160-173; e STRUCHINER, 2009).

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2

Como decidem os juízes?

2.1

Entendendo o Realismo Jurídico Norteamericano.

Quando se fala na atividade desempenhada pelos juízes, a chamada

“tomada de decisão judicial”, é possível encontrar na literatura duas formas

básicas de abordagem: uma descritiva e outra normativa/prescritiva. A primeira

tenta observar e descrever como decidem, de fato, os juízes. A ideia é pesquisar os

elementos e variáveis que compõem o processo de tomada de decisão judicial

para, em seguida, descrevê-los. Esse tipo de pesquisa gira em torno de questões

como: o que causa uma decisão judicial? Um processo automático, intuitivo, que

gera uma resposta imediata ou um processo esforçado, deliberativo, que gera uma

resposta ponderada? Quais são os fatores que entram no processo causal da

tomada de decisão? Será que os juízes têm consciência desses fatores? Que papel

os materiais jurídicos desempenham na tomada de decisão judicial?

A segunda abordagem é a normativa, que atraiu e continua atraindo mais

atenção no meio acadêmico brasileiro. Partindo do pressuposto de que todo juiz,

de maneira consciente ou inconsciente, adota uma postura interpretativa, a

discussão normativa visa a convencê-lo de que tal ou qual postura interpretativa é

mais adequada. A discussão normativa pode oferecer aos juízes razões para serem

mais ou menos sensíveis às particularidades do caso concreto5. Também há teorias

que sugerem critérios substantivos de tomada de decisão (DWORKIN, 2006: 14)

e há teorias que sugerem critérios procedimentais, cultuando a razão prática no

contexto da argumentação jurídica (ALEXY, 2005: 45; ATIENZA, 2006). O

essencial a destacar é que as teorias normativas têm a finalidade de oferecer

razões para que os juízes ajam num ou noutro sentido.

5 Pense na tradicional e rica discussão entre os dois modelos extremos de tomada de decisão: o modelo baseado em regras (às vezes pejorativamente chamado de formalista) e o modelo conversacional ou particularista (STRUCHINER, 2005b: 160-173; e STRUCHINER, 2009).

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Os acadêmicos e juristas práticos que a partir da década de 1930 se

engajaram com a observação e descrição da atividade dos juízes costumam ser

enquadrados no movimento conhecido como Realismo Jurídico. Embora se afirme

que o embrião do realismo jurídico norteamericano remonta ao século XIX com

célebre frase proferida pelo juiz Oliver Wendell Holmes Jr. nas Lowell Lectures

[“The life of the law has not been logic: it has been experience” (SCHAUER,

2009a: 125; e HOLMES Jr., 1881/2009: 3)], o movimento somente se estabeleceu

no século XX e se contrapunha àquilo que eles consideravam ser uma “teoria

formalista do direito”, formalismo jurídico ou jurisprudência mecânica,

expressões que sintetizariam uma ideia acerca da natureza do direito e outra

acerca da atividade desempenhada pelos juízes.

Pela teoria formalista, o direito seria um sistema de regras completo,

fechado e organizado de maneira lógica (STRUCHINER, 2005a: 408-409). Em

cada caso apresentado ao Poder Judiciário o juiz apenas precisaria descobrir uma

regra preexistente por meio da lógica dedutiva. A atividade desempenhada pelos

juízes seria descrita como um silogismo prático no qual os juízes, a partir dos

fatos do caso concreto, identificariam no ordenamento jurídico uma regra

composta por um pressuposto fático e uma consequência jurídica. Essa

consequência jurídica seria acionada quando o pressuposto fático descrito na regra

(a premissa maior) encontrasse correspondência nos fatos do caso (a premissa

menor). As regras jurídicas representariam o principal elemento para a tomada de

decisão judicial.

Essa caracterização do formalismo jurídico pelos partidários do realismo

jurídico, notadamente no que diz respeito à atividade dos juízes, é objeto de

disputa. Em recente pesquisa, Brian Tamanaha acusa Jerome Frank de ter omitido

passagens importantes de textos de autores “formalistas”, além de ter produzido

distorções grosseiras dos autores que atacou (TAMANAHA, 2010: 14-17). Por

exemplo, Tamanaha esclarece que Frank, ao citar extensa passagem do jurista

inglês Sir Henry Maine, ardilosamente editou e omitiu palavras do autor para

afirmar que a maioria dos juristas em 1931 ainda acreditava no modelo descrito no

parágrafo anterior (aquilo que Frank considerava o mito, a ficção).

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As observações de Brian Tamanaha sem dúvida têm importância para uma

adequada historiografia do direito. No entanto, elas não devem desviar a atenção

do que se pretende examinar neste capítulo e também não influenciam o curso que

pretendo seguir. Ao indicarem o alvo do ataque, ainda que por meio de uma

caricatura, os juristas ligados ao movimento realista delinearam o cenário da

discussão com a qual se engajaram: o problema da (in)determinação do direito, o

papel das regras jurídicas na tomada de decisão, o caráter declaratório ou

constitutivo da decisão judicial e o papel da justificação no processo de tomada de

decisão (LEITER, 2008; STRUCHINER, 2011; SCHAUER, 2012). Ainda que a

caricatura do formalismo jurídico não fosse representativa da mentalidade da

década de 1930, esses juristas ligados ao movimento realista formularam

argumentos que poderiam ser desenvolvidos de maneira independente de uma

adequada representação da corrente tida como oposta.

Contra o que se posicionaram os realistas? Se no universo do formalismo

jurídico o direito é totalmente determinado e expresso em regras claras, a

atividade judicial consiste na mera declaração e aplicação de um direito

preexistente, e a justificação funciona como uma incursão nos reais motivos que

levaram o juiz a decidir, no universo do realismo jurídico o direito é (amplamente)

indeterminado, a atividade judicial é (predominantemente) criativa, as regras

jurídicas (quase) não têm aptidão para guiar a atividade judicial e (raramente)

entram no processo causal de tomada de decisão; ao contrário, a decisão

(normalmente) é tomada com base fatores estranhos ao direito, e a justificação

apresentada nos votos e sentenças acabam funcionando como racionalizações post

hoc. Portanto, a pauta temática dos partidários do realismo jurídico girava em

torno de problemas que podem ser resumidos nas seguintes proposições:

1. O direito é indeterminado;

2. As regras jurídicas não guiam a tomada de decisão judicial;

3. Se o direito é indeterminado e as regras jurídicas não guiam a

tomada de decisão, então o juiz decide com base em algo diverso

do direito;

4. Logo, a atividade judicial é criativa/constitutiva do direito; e

5. A justificação consiste em uma racionalização post hoc.

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No parágrafo anterior, deixei propositadamente os advérbios entre

parêntesis porque parece haver controvérsia entre os próprios realistas acerca da

intensidade de certas propriedades dos elementos a que se referem. Como reporta

Frederick Schauer, estudiosos como Karl N. Llewellyn, Underhill Moore, Joseph

Hutcheson, Max Radin, Felix Cohen, Herman Oliphant, Hessel Yntema, estavam

de acordo com a ideia de que as decisões judiciais seriam previsíveis e que a

chave para a previsão do resultado de um caso concreto estaria na realização de

sistemática pesquisa empírica para descobrir que fatores entrariam no processo

causal de tomada de decisão (SCHAUER, 2009a: 134). Para esses realistas, o juiz

até poderia se basear em regras (regularidades), mas essas regras dificilmente

seriam encontradas na legislação e nos precedentes. Excetuada a posição mais

extremada de Jerome Frank adiante analisada, os realistas não acreditavam numa

absoluta indeterminação do direito ou na total imprevisibilidade da atividade

judicial. A posição de Llewellyn é particularmente interessante porque reconheceu

que algumas das regras jurídicas existentes são capazes de orientar condutas,

prevenindo a formação de litígios perante os tribunais (LLEWELLYN, 2011: 47;

SCHAUER, 2009a: 137-138).

Influenciados pelo naturalismo filosófico6, os realistas afirmavam que, ao

decidirem os casos concretos, os juízes respondem primariamente ao estímulo dos

fatos apresentados, não importando se esses fatos têm ou não têm importância

jurídica (LEITER, 2005: 53). Os realistas tentaram construir leis descritivas do

comportamento judicial baseadas na observação do que as cortes fazem nos casos

concretos (LEITER, 2008: 269-270). O que determinava como os juízes

respondiam aos fatos era o assunto em torno do qual os realistas dissentiam entre

si. Na visão de Brian Leiter, duas linhas de pensamento se formaram: a

idiossincrática e a sociológica. Nenhuma delas chegou ao ponto de sustentar a

caricatura de que as decisões judiciais são determinadas pelo que os juízes comem

no café-da-manhã (LEITER, 2008: 271). A linha idiossincrática será apresentada

adiante na visão de Jerome Frank porque sua tentativa de iluminar importantes

6 Leiter sustenta que o movimento realista pode ser entendido como uma espécie de teoria do direito naturalizada, isto é, que evita a análise conceitual de poltrona ou gabinete em favor de uma investigação a posteriori em parceria com as ciências empíricas (LEITER, 2005: 56).

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questões da decisão judicial a partir da psicanálise se relaciona diretamente com o

objeto da pesquisa.

A linha sociológica não ignorava o fato de os juízes serem pessoas com

personalidades distintas, mas insistia na importância dos determinantes sociais no

processo de tomada de decisão (LEITER, 2008: 272). O juiz até poderia decidir

com base em alguma regra, mas essa não seria uma regra jurídica encontrada na

leis e precedentes. De acordo com Brian Leiter, os melhores exemplos construídos

pelos realistas da linha sociológica tratavam de direito comercial/empresarial. Em

termos gerais, o que determina a decisão judicial é a situação-tipo, ou seja, o

padrão geral de comportamento exemplificado pelos fatos particulares da

transação comercial (LEITER, 2008: 273-274). A visão sociológica não será

discutida porque tem pouca relação com a esta pesquisa.

Aquilo que Brian Leiter chama de linha idiossincrática foi sustentada por

Jerome Frank, cuja visão tem o mérito de ter antecipado uma série de ideias que

viriam a ser exaustivamente exploradas pela psicologia contemporânea. Frank

sustenta que a tomada de decisão judicial não difere da atividade desempenhada

por um advogado: primeiro o advogado pensa em uma solução para o problema

do cliente; em seguida busca na legislação e nos precedentes o material jurídico

que dê suporte a essa solução (1930/2009: 109). Nas palavras de Frank: “Judicial

judgments, like other judgments, doubtless, in most cases, are worked out

backward from conclusions tentatively formulated” (1930/2009: idem).

Contrariando a opinião prevalente entre os realistas de que o principal

problema da tomada de decisão judicial seria gerado pela indeterminação do

direito, Frank sustentava que o problema maior residia no estabelecimento dos

fatos do caso concreto. Frank era mais do que um “rule skeptic”. Frank era

também um “fact skeptic”: era verdade que o direito estava repleto de materiais

jurídicos que não teriam a aptidão de guiar a tomada de decisão judicial7, mas o

principal problema enfrentado pelos tribunais, especialmente os juízes de 1a

7 “The truth of the matter is that the popular notion of the possibilities of legal exactness is based upon a misconception. The law always has been, and will ever continue to be, largely vague

and variable” (FRANK, 1930/2009: 6, grifei e sublinhei).

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instância, encarregados de conduzir a instrução probatória, era determinar os fatos

relevantes do caso concreto (FRANK, 1930/2009: XXIII-XXVI). Os juízes

angariam provas a partir de depoimentos de testemunhas, que, sendo seres

humanos falíveis, frenquentemente cometeriam erros ao reportarem o que viram e

ouviram. Além disso, os juízes, também por serem seres humanos falíveis,

formariam preconceitos a favor ou contra certas testemunhas, ou uma das partes

ou advogados. Nas palavras de Frank:

“The chief obstacle to prophesying a trial-court decision is, then, the inability, thanks to these inscrutable factors, to foresee what a particular trial judge or jury will believe to be the facts” (FRANK, 1930/2009: XXV).

Adiante, Frank reafirma seu ponto de maneira mais enfática:

“The ‘facts’, it must never be overlooked, are not objective. They are what

the judge thinks they are. And what he thinks they are depends on what he hears and sees as the witnesses testify – which may no be, and often is not, what another judge would hear and see” (FRANK, 1930/2009: XXX-XXXI, grifei e sublinhei).

Mais interessante é a visão de Frank sobre o que causa essa decisão e em

que consiste a atividade de justificação das decisões judiciais. Acompanhando a

opinião de Joseph Hutcheson, Jerome Frank acredita que o juiz decide a partir de

um palpite, uma intuição acerca do que constitui o resultado correto para um dado

caso concreto. As decisões, sentenças e acórdãos formalmente produzidos pelos

juízes não passariam de racionalizações post hoc de uma decisão tomada muitas

vezes de maneira automática, intuitiva (1930/2009: 31-34, 111/112 e 140-141).

Por isso Frank afirmava que a chave para compreender a tomada de decisão

judicial seria investigar como os juízes tinham seus palpites acerca do certo e do

justo nos casos concretos:

“We may accept this as an approximately correct description of how all judges do their thinking [Frank se refere à posição de Joseph Hutcheson acima descrita]. But see the consequences. If the law consists of the decisions of the judges and if those decisions are based on the judge’s hunches, then the way in which the judge gets his hunches is the key to the judicial process. Whatever produces the judge’s hunches makes the law” (FRANK, 1930/2009: 112).

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Para Frank, os materiais jurídicos tradicionais (legislação e precedentes)

constituiriam apenas uma das classes de estímulos que causam o palpite

(1930/2009: 113). “Mas há muitos outros, ocultos ou não revelados,

frequentemente não considerados nas discussões acerca do caráter ou natureza

do direito” (FRANK, 1930/2009: idem, tradução livre). Frank considera que esses

fatores ocultos seriam numerosos e complicados, frequentemente dependendo dos

traços individuais dos juízes: para conhecer aquilo que produz os palpites dos

juízes é necessário conhecer sua personalidade (FRANK, 1930/2009: 114-120).

Sua personalidade comumente guiará a criação judicial do direito, de modo que o

direito variará conforme a personalidade do juiz que examinar o caso (FRANK,

1930/2009: 119-120). Nas palavras de Frank:

“If the personality of the judge is the pivotal factor in law administration, then law may vary with the personality of the judge who happens to pass upon any given case” (FRANK, 1930/2009: 119-120).

Por trás das teses de Frank estava uma crença no suposto poder explicativo

que as ideias psicanalíticas teriam sobre a fixação das pessoas na certeza,

previsibilidade e estabilidade do direito. Argumentando que o direito somente

pode oferecer um nível bastante limitado de segurança, certeza e previsibilidade, e

que grande parte dessa incerteza do direito teria imenso valor social8 , Frank

sustenta que a incansável busca por maior previsibilidade e estabilidade no direito

não se justificaria por razões de ordem prática (FRANK, 1930/2009: 3-13). Para

Frank, uma explicação parcial 9 construir-se-ia mediante um paralelo com a

interminável necessidade infantil de uma figura paternal que assegure paz,

conforto e proteção contra os perigos desconhecidos (FRANK, 1930/2009: 14-

23): o direito substituiria a figura paternal que as pessoas ainda não teriam

conseguido renunciar (FRANK, 1930/2009: 22). Essa explicação parcial também

estaria por trás de outro mito predominante na época: o mito de que a atividade

8 “The constant development of unprecedented problems requires a legal system capable of fluidity

and pliancy. Our society would be strait-jacketed were not the courts, with the able assistance of

the lawyers, constantly overhauling the law and adapting it to the realities of ever-changing

social, industrial and political conditions” (FRANK, 1930/2009: 6-7) 9 Frank reconhece que sua pretensão explicativa é incompleta: “For it is not pretended that we

have isolated the sole cause of a reaction which, like most human reactions, is of course the

product of a constellation of several forces” (FRANK, 1930/2009: 22).

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dos juízes não teria qualquer papel criativo do direito (FRANK, 1930/2009: 35-

45).

Apesar das claras diferenças havidas entre os autores ligados à linha

sociológica e à linha idiossincrática, não há dúvida de que certas ideias são

comuns entre elas. Essas ideias compartilhadas pelos realistas foram capturadas e

sintetizadas por Frederick Schauer (SCHAUER, 2009a: 138-140), para quem o

núcleo da teoria da decisão judicial sustentada pode ser descrita em uma hipótese

de duas partes. A primeira consiste na proposição de que a maioria dos juízes tem

uma inclinação para chegar a um determinado resultado antes de consultar os

materiais jurídicos 10 . A segunda parte consiste na proposição de que o juiz

raramente terá dificuldade de encontrar a roupagem jurídica para a decisão tomada

no vasto e complexo universo de materiais jurídicos existentes: o direito seria

suficientemente indeterminado para permitir essas manipulações

argumentativas11.

Conforme se viu acima, a posição de Frank se encaixa perfeitamente na

hipótese de duas partes. De um lado, Frank insistiu na tese de que na tomada de

decisão judicial o resultado precedia a própria consulta aos materiais jurídicos.

Frank afirmava que o juiz decidiria a partir de um palpite, uma intuição acerca do

que constitui o resultado correto para um dado caso concreto. De outro lado, além

de sustentar que o direito era amplamente indeterminado, Frank afirmou que um

dos usos mais comuns das regras e dos princípios era permitir que o juiz

apresentasse uma justificação formal (racionalização) das conclusões a que

chegou por meio do palpite (FRANK, 1930/2009: 140-141).

Estabelecida a base do pensamento realista, é possível avançar para

identificar os problemas teóricos e metodológicos cuja existência justifica a

caminho a ser trilhado nesta pesquisa.

10 Para quem ainda se mostrar cético quanto à importância da empreitada descritiva dos realistas, basta lembrar que o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, afirma: “Idealizo para o caso concreto a solução mais justa e posteriormente vou ao arcabouço

normativo, vou à dogmática buscar o apoio” (MELLO, 2010). 11 Aqui também parece que há adesão do Ministro do STF. Na exata sequência da citação feita acima, complementa: “E como a interpretação é acima de tudo um ato de vontade, na maioria das

vezes, encontro o indispensável apoio” (MELLO, 2010).

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2.2

O que falhou? Os problemas teóricos e metodológicos.

O realismo jurídico é tido como o precursor de uma série de movimentos

acadêmicos derivados. Law and economics, Critical Legal Studies e pragmatismo

jurídico são comumente citados como movimentos que levam adiante, em alguma

medida, a postura realista (SCHAUER, 2009a: 144-147; e STRUCHINER, 2011:

124). Não obstante, o próprio realismo jurídico em si não persiste na sua versão

mais radical. Do ponto de vista teórico, o realismo jurídico sofreu uma espécie de

domesticação com os diálogos teóricos que estabeleceu com positivistas jurídicos

da tradição hartiana. O assunto será explorado no próximo item 2.2.1.

Do ponto de vista metodológico, se de um lado os realistas sugeriam a

intensa investigação empírica da atividade dos juízes para descobrir o que estava

por trás das “paper rules”, de outro lado o compromisso firmado pela maioria dos

realistas com a ciência e com o método científico não foi além da retórica e da

metáfora (LEITER, 2006: 51). No que concerne a Jerome Frank merece destaque

o fato de que as bases teóricas da psicanálise freudiana que o influenciou foram

derrubadas por Karl Popper. Além disso, as principais proposições teóricas feitas

por Freud não foram confirmadas pela massiva produção da psicologia do século

XX, o que culminou na sua marginalização pelas faculdades de psicologia nos

Estados Unidos da América e na desestabilização das ideias de Frank. O assunto

será explorado no item 2.2.2.

2.2.1

Problema teórico: A crítica de Herbert L. A. Hart no capítulo VII de ‘O

conceito de direito’. O Realismo Jurídico domesticado.

O advento de O conceito de direito de Herbert L. A. Hart (HART,

1961/2009) e a releitura dos autores realistas deflagraram o que Frederick Schauer

chamou de “domesticação” do movimento (SCHAUER, 2012: 11-17). Hart

formulou a crítica mais contundente à teoria descritiva da decisão judicial realista

no Capítulo VII de seu O conceito de direito em 1961. Embora hoje isso seja

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trivial, foi Hart quem primeiro estabeleceu a interação entre filosofia analítica da

linguagem e direito. Inspirando-se explicitamente na noção de textura aberta da

linguagem desenvolvida por Friedrich Waismann a partir de Ludwig Wittgenstein

(HART, 1961/2009: 166 e 381; STRUCHINER, 2002), Hart descreve o direito

apresentando uma visão que supera os típicos problemas do formalismo jurídico

radical e do realismo jurídico ceticista.

Desenvolvendo uma linha de argumentação que não precisa de ser

revisitada nesta pesquisa (HART, 1961/2009: 161-199; e STRUCHINER, 2002),

Hart reconhece que há um limite na possibilidade de a linguagem transmitir

padrões gerais de conduta. Até certo ponto, a linguagem permitiria transmitir

padrões “que reaparecem constantemente em contextos semelhantes, aos quais as

fórmulas gerais são nitidamente aplicáveis” (HART, 1961/2009: 164). Tais

padrões, veiculados em regras, funcionariam de maneira automática na

experiência do direito, dado que cidadãos e autoridades oficiais os internalizariam

e os observariam sem grandes problemas.

Pense nas seguintes situações: automóveis circulam no lado direito da rua

e ninguém discute o assunto nos tribunais. A aposentadoria compulsória por idade

do servidor público é efetivada aos 70 anos de idade independentemente de sua

vontade ou do agente público que o chefia (art. 40, § 1o, inciso II, da Constituição

de 1988). Diariamente contratos regulados pelo Código Civil (Lei nº 10.406/2002)

e pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) têm seus termos

espontaneamente observados pelas partes. Salários são pagos aos trabalhadores,

lucros são distribuídos entre sócios e acionistas, acordos coletivos são entabulados

e cumpridos. Tributos são pagos espontaneamente na data e forma estabelecidas

pela administração tributária. É claro que podem surgir controvérsias que

envolvam a aplicação dessas regras, mas há grandes chances de essas

controvérsias se circunscreverem à determinação dos fatos relevantes para sua

aplicação.

Por outro lado, Hart reconhece que “em todos os campos da existência, há

um limite, inerente à natureza da linguagem, para a orientação que a linguagem

geral pode oferecer” (HART, 1961/2009: 164). Em certas situações, a linguagem

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legal pode ser vaga e deixar margem para muitas controvérsias nas fronteiras dos

termos classificatórios gerais. Todavia, nem mesmo o texto legal mais preciso

escapa da “possibilidade permanente da existência de uma região de significado

onde não conseguimos determinar com segurança se a palavra se aplica ou não”

(STRUCHINER, 2002: 6). Não se trata mais de vagueza da linguagem atual, mas

de uma situação de vagueza potencial. O fenômeno da textura aberta da

linguagem diz respeito ao problema da incompletude essencial das descrições

empíricas (STRUCHINER, 2002: 14-16)12. Nessas situações, uma regra jurídica

que transmitia um padrão de conduta bastante claro num dado contexto pode se

tornar imprecisa, incapaz de indicar ao cidadão ou à autoridade oficial uma

conduta a ser adotada. Quando os materiais jurídicos se esgotam, o juiz exerceria

discricionariedade (HART, 1961/2009: 169-176). A incapacidade do realista de

lidar com o direito a partir dessas considerações acerca dos limites da linguagem

levou Hart a chamar o cético de um absolutista frustrado. Veja-se a passagem que

se tornou famosa de O conceito de direito:

“O indivíduo cético a respeito das normas é às vezes um absolutista frustrado: descobriu que as normas não são tudo o que seriam no paraíso de um formalista, ou num mundo onde os homens se assemelhassem a deuses e pudessem prever todas as combinações possíveis de fatos, de modo que a textura aberta não fosse uma característica necessária das normas. A concepção do cético a respeito da existência de uma norma pode ser assim um ideal inatingível; e, ao descobrir que este não é alcançado por aquilo que chamamos de normas, ele expressa sua decepção negando que haja, ou que possa haver, quaisquer normas” (HART, 1961/2009: 180).

Pense, por exemplo, no caso das discussões atuais em torno da

possibilidade de se estender ao livro eletrônico a imunidade tributária para os

livros prevista no art. 150, inciso VI, alínea ‘d’, Constituição do Brasil. Quando a

Constituição de 1988 foi promulgada, sequer se cogitava da existência de “livros”

em formato eletrônico como se conhece hoje em dia (ÁVILA, 2001). Outro

exemplo interessante é reportado por Noel Struchiner (2005b: 109) a partir do

trabalho de Alchourrón e Bulygin: o código comercial alemão regulava contratos

celebrados de duas formas diferentes, dependendo se eram realizados por partes

12 Acerca do fenômeno da textura aberta da linguagem, Waismann faz uma afirmação bastante elucidativa: “Toda descrição estende-se para um horizonte de possibilidades abertas: não importa

a distância que eu percorra, eu sempre carregarei esse horizonte comigo” (WAISMANN, 1978: 122, apud STRUCHINER, 2002: 18).

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presentes ou ausentes. Com a invenção do telefone, surgiu a questão: o contrato

celebrado por telefone é entre partes presentes ou ausentes? A resposta que se dá a

essa pergunta não é mais importante que a compreensão de que o problema se

origina de uma característica indelével da linguagem:

“A dificuldade de se aplicar a regra no caso concreto, ou de se encontrar uma solução para ele, é consequência de uma incerteza intrínseca, já́ que não se deve a uma carência de informação, mas depende, na verdade, das regras de formação do sentido dos termos ‘ausente’ e ‘presente’. As regras de formação do sentido são imprecisas em função do fenômeno da textura aberta da linguagem. As duvidas não são provenientes de defeitos no sistema, mas são concernentes à classificação dos casos particulares dentro dos casos genéricos previstos pelo código” (STRUCHINER, 2005b: idem).

A crítica de Hart foi desenvolvida e associada ao chamado “efeito

seletivo”, cujo argumento se desenvolve da seguinte maneira (SCHAUER, 2009a:

137-138). Há um amplo domínio da experiência do direito que simplesmente não

é judicializado porque foi internalizado e espontaneamente observado pelos

cidadãos e autoridades oficiais. São casos em que uma das partes envolvidas

acredita que vencerá e a outra acredita que perderá. Em tais condições, aquele que

acredita em sua derrota buscará um acordo ou de outra maneira tentará evitar o

litígio judicial para não incorrer em custos desnecessários. Nesse contexto, os

casos que efetivamente chegam aos tribunais seriam representativos de uma

pequena parcela de casos difíceis nos quais cada uma das partes acredita que o

litígio vale a pena porque supostamente amparadas pelo direito. Tratar-se-ia de

uma representação desproporcional da rica e vasta experiência do direito fora dos

tribunais13.

13 Reconheço que é possível questionar esses argumentos no contexto brasileiro. Difunde-se no País a ideia de uma excessiva litigiosidade incentivada pela ampliação do acesso à justiça e pela isenção de taxa judiciária baseada em critérios de capacidade contributiva, estando os tribunais abarrotados de processos. Nessa perspectiva, qualquer causa seria uma causa passível de ser levada ao Poder Judiciário. Pouco posso dizer sobre o assunto nesta pesquisa. Litigar não é barato no Brasil. Certamente a gratuidade de justiça pode ajudar a ampliar o acesso à justiça também em casos considerados fáceis, que jamais deveriam chegar aos tribunais. Outra questão que surge é quanto aos níveis de litigiosidade do País: como eram esses níveis antes e depois de 1988? Será que antes da redemocratização o País não teria vivido uma cenário de litigiosidade abaixo dos níveis considerados normais dados os índices demográficos? Será que os níveis de hoje em dia não estão de acordo com o esperado numa democracia de País de capitalismo emergente, se comparados com aqueles números que levaram os realistas e os positivistas a se engajaram nos debates acima expostos? Enfim, são questões complexas e determinar o grau de representatividade desses casos no direito brasileiro é uma questão empírica. Mas o problema não parece diminuir a importância do argumento teórico desenvolvido por Hart.

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De acordo com Frederick Schauer (2012: 11-17), qualquer tentativa de

redesenhar o realismo jurídico em termos conciliatórios com o positivismo

hartiano pode ser chamada de “realismo domesticado”. Nesse tipo de leitura

Frederick Schauer enquadra Karl N. Llewellyn e Max Radin. É difícil sustentar

que Jerome Frank possa ser “domesticado” com esse tipo de releitura, tendo em

vista que sua posição era bastante radical no que concerne ao problema da

indeterminação do direito. De todo modo, essa questão não tem importância direta

para a pesquisa porque a hipótese de duas partes já fornece o ponto de partida

adequado para estabelecer a relação entre teoria descritiva da decisão judicial,

ciências cognitivas e psicologia moral.

A ideia deste tópico foi enunciar algumas razões que levaram os teóricos

do direito a darem cada vez menos importância ao estudo do realismo jurídico.

Viu-se que o advento do positivismo hartiano associado à releitura domesticadora

dos realistas levou a uma espécie de conciliação teórica entre realistas e

positivistas: o problema da indeterminação do direito ficaria restrita aos casos

difíceis, que, por sua vez, não teriam representatividade suficiente para dar conta

de toda a experiência jurídica. Nos casos fáceis, a linguagem ordinária dos

materiais jurídicos orientaria na maioria das vezes a conduta a ser adotada pelo

cidadão e pelas autoridades oficiais. Nos casos difíceis, o juiz não teria alternativa

que não fosse o exercício de discricionariedade – atividade que poderia ser

investigada a partir de diferentes pontos de vista: a psicologia, a sociologia, a

ciência política 14 . Não haveria desacordo substancial entre um positivista

conceitual15 e os realistas quanto a essa questão.

Dito isso, está preparado o terreno para discutir outra questão que também

foi colocada em xeque no movimento realista e, mais especificamente, na teoria

sustentada por Jerome Frank.

14 A ideia de casos difíceis será desenvolvida no item 2.4. 15 O chamado positivismo conceitual ou metodológico é representado por uma singela proposição de pretensão descritiva (e não normativa) do direito: “para que um determinado sistema normativo

receba o nome de direito, ou que uma determinada norma seja qualificada como jurídica, não é

necessário que passe pelo escrutínio de critérios ou testes morais. Para identificar uma norma

como jurídica e portanto como existente e válida deve-se investigar as suas fontes e não o seu

mérito” (STRUCHINER, 2005a: 409-410; NINO, 2010: 42-50).

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32

2.2.2

Problema metodológico: Método científico e psicanálise.

É interessante refletir sobre a forma como Jerome Frank empregou os

conceitos da psicanálise disponíveis à época na análise do direito. Frank

reconheceu que a psicanálise se encontrava em estágio rudimentar de

desenvolvimento, mas empregou seus conceitos numa espécie de análise típica

das disciplinas das ciências humanas (humanities). Aceitando sem

questionamentos as ideias psicanalíticas, Frank não avançou ao campo da

investigação empírica da atividade judicial. Para Frederick Schauer, Frank estava

infundido com as consequências de seu recente tratamento psicanalítico quando

elaborou Law and the modern mind (SCHAUER, 2009a: 130). O preço que Frank

pagou por esse tipo de abordagem foi o descrédito de sua linha de investigação.

Apesar de ter sido uma das personalidades mais influentes do século XX,

atualmente Sigmund Freud quase não atrai interesse nos departamentos de

psicologia dos Estados Unidos da América (KIHLSTROM, 2012). A derrocada da

teoria freudiana como uma teoria válida nos departamentos de psicologia

nortemaricanos pode ser analisada a partir de dois problema fundamentais: um

problema identificado pela filosofia científica de Karl Popper e um problema

substantivo que diz respeito às proposições teóricas mais conhecidas. A seguir

essas questões serão enfrentadas isoladamente.

A teoria de Freud já estava em xeque com as objeções popperianas

formuladas nas primeiras décadas do século XX. Em 1953, Popper apresentou

uma conferência na Peterhouse College da Universidade de Cambridge, que

posteriormente veio a ser publicada em seu livro Conjectures and refutations

(POPPER, 1963/1998: 1-10), na qual esclareceu que desde 1919 não estava

satisfeito com as pretensões de status científico da teoria marxista da história, da

teoria psicanalítica de Freud e da teoria psicológica de Alfred Adler. Popper não

estava particularmente interessado em desvendar se essas teorias eram verdadeiras

ou aceitáveis, se eram insignificantes ou até nonsenses. Seu interesse estava no

problema da demarcação, isto é, se elas poderiam ostentar o status de teoria

científica ou se seriam pseudociências. Apesar disso, Popper sabia que tanto a

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ciência podia errar quanto a pseudociência poderia tropeçar na verdade. Não era o

problema da verdade nem o problema da exatidão ou mensurabilidade dessas três

teorias que mexia com Popper. O problema era justamente o fantástico poder

explanatório dessas teorias:

“These theories appeared to be able to explain practically everything that happened within these fields to which they referred. The study of any of them seemed to have the effect of an intellectual conversion or revelation, opening your eyes to a new truth hidden from those not yet initiated. Once your eyes were thus opened you saw confirming instances everywhere: the world was full of verifications of the theory. Whatever happened always confirmed it. Thus its truth appeared manifest; and unbelievers were clearly people who did not want to see the manifest truth; who refused to see it, either because it was against their class interest, or because of their repressions which were still ‘un-analysed’ and crying aloud for treatment” (POPPER, 1963/1998: 5).

Enquanto um marxista não conseguia abrir um jornal sem encontrar

evidências confirmatórias de sua interpretação da história em cada página, os

analistas freudianos enfatizavam que sua teoria vinha sendo constantemente

“verificada” por suas observações clínicas (POPPER, 1963/1998: 5). O problema

era que qualquer comportamento humano concebível poderia ser interpretado de

maneira convincente a partir da teoria de Alfred Adler sobre o complexo de

inferioridade ou a partir da teoria freudiana sobre o complexo de Édipo (POPPER,

1963/1998: 6). Aquilo que os defensores dessas teorias supunham ser seu ponto

mais forte na realidade constituía seu ponto fraco. Nenhuma previsão formulada

por essas teorias envolvia um elemento de risco: os comportamentos humanos

mais divergentes poderiam ser tranquilamente enquadrados como mais uma

verificação de ambas as teorias (POPPER, 1963/1998: 7).

Essas considerações levaram Popper a formular seu famoso critério de

demarcação entre ciência e pseudociência: uma teoria é considerada científica se

for falseável, refutável ou testável. Meditando sobre essas questões no inverno de

1919/1920, Popper chegou às seguintes conclusões: confirmações só devem

contar se apuradas diante de uma previsão arriscada (risky prediction); a

irrefutabilidade de uma teoria não é sua virtude, mas justamente seu defeito; todo

teste genuíno de uma teoria é uma tentativa de falseá-la ou refutá-la; evidência

confirmatória somente deve ser considerada se for o resultado de um teste genuíno

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da teoria, isto é, se puder ser apresentada como uma séria, porém malsucedida

tentativa de falsear a teoria (POPPER, 1963/1998: 7).

É interessante observar que o critério de demarcação serviu a Popper

apenas para definir que Freud e Adler formularam proposições que não

alcançavam o status científico, mas o próprio autor acreditava que ambos tinham

algo de relevante a dizer. O xeque-mate aplicado por Popper tinha um sentido

bastante limitado, já que ele acreditava que alguma ou algumas das ideias de

Freud poderiam estar certas:

“This does not mean that Freud and Adler were not seeing certain things correctly: I personally do not doubt that much of what they say is of considerable importance, and may well play its part one day in a psychological science which is testable. But it does not mean that those ‘clinical observations’ which analysts naïvely believe confirm their theory cannot do this any more than the daily confirmations which astrologers find in their practice. And as for Freud’s epic of the Ego, the Super-ego, and the Id, no substantially stronger claim to scientific status can be made for it than for Homer’s collected stories from Olympus. These theories describe some facts, but in the manner of myths. They contain most interesting psychological suggestions, but not in a testable form” (POPPER, 1963/1998: 8).

Resta saber se a investigação científica conduzida pela psicologia do

século XX confirmou a esperança que Popper depositou em Freud. Como é

conhecido hoje em dia, essa esperança não se justificou: além de não passar no

teste da demarcação, a maioria das ideias específicas de Freud, tais como aquelas

ligadas aos estágios de desenvolvimento (oral, anal, fálico, latência e geral), ao

complexo de Édipo, não foram confirmadas pela psicologia do século XX.

Todavia, nem tudo estava perdido, pois, como sugeriu Popper, tanto a ciência

podia errar quanto a pseudociência poderia tropeçar na verdade: a existência do

inconsciente como parte de uma teoria da mente humana talvez tenha sido a

principal contribuição de Freud que veio a ser confirmada por pesquisas empíricas

(BLOOM, 2007).

É claro que os atuais herdeiros da tradição freudiana engajar-se-ão ao

máximo na defesa de sua validade científica e sua importância atual. Eles dirão

que a psicanálise se consolidou como uma séria tradição intelectual independente,

e que seu estudo é crucial para entender o problema da subjetividade humana

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(FONAGY e TARGET, 2005: VII). No entanto, é sintomático que as discussões

mais acaloradas nas “guerras freudianas” (disputas em torno da importância ou

irrelevância do estudo da psicanálise) sejam conduzidas entre seus partidários e

críticos literários, historiadores, filósofos, feministas, acadêmicos e até ex-

psicanalistas (JACOBSEN, 2009: 10).

Como afirmado acima, nos Departamentos de Psicologia das universidades

norteamericanas, Freud foi largamente deixado de lado. Parte disso se explica pelo

xeque-mate popperiano e outra parte se explica pela abordagem

predominantemente experimental que foi adotada pela academia norteamericana.

A psicologia é compreendida como disciplina voltada à produção de

conhecimento científico, havendo um compromisso com a formulação de

proposições empiricamente testáveis (risky predictions, na sugestão de Popper).

As questões são investigadas em diferentes níveis de análise16 partindo-se da

hipótese materialista acerca do comportamento humano17. As principais formas de

pesquisa são os experimentos, os estudos de correlação e os estudos descritivos

(GRAY, 2011: 31-34), que podem ser conduzidos em campo ou em laboratório

(GRAY, 2011: 35) mediante relato dos participantes ou pela observação do

pesquisador (GRAY, 2011: 35-37)18.

Nesse cenário, compreende-se a razão pela qual haja pouco espaço para as

ideias de Freud. Como esclarece Paul Bloom (2007), a maioria das proposições

teóricas de Freud é excessivamente abrangente, não sendo possível submetê-las a

testes de falseamento. Se Bloom encara o legado de Freud com moderação,

reconhecendo-lhe o importante papel de conceber a existência do inconsciente na

estrutura da mente humana, John F. Kihlstrom, da Universidade de Berkley, não

16 Peter Gray relata os níveis de explicação (GRAY, 2011: 10-11). São eles o neural (cérebro como causa), genético (genes como causa), evolucionário (seleção natural como causa), aprendizado (experiências passadas do indivíduo com o ambiente como causa), cognitivo (o conhecimento ou as crenças do indivíduo como causa), social (a influência de outras pessoas como causa), cultural (a cultura na qual uma pessoa se desenvolve como causa), e desenvolvimental (causas relacionadas à idade). 17 Todo comportamento humano pode, em teoria, ser entendido como o produto dos processos físicos ocorridos no corpo humano, especialmente no cérebro (GRAY, 2011: 4). 18 Muito do que pesquisei para esta dissertação é o resultado de experimentos conduzidos no domínio da psicologia e seus subcampos.

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foi tão moderado. Veja-se a crítica que direcionou a Freud e seu legado no artigo

intitulado “Is Freud Still Alive? No, Not Really”:

“Freud's cultural influence is based, at least implicitly, on the premise that his theory is scientifically valid. But from a scientific point of view, classical Freudian psychoanalysis is dead as both a theory of the mind and a mode of therapy (Crews, 1998; Macmillan, 1996). No empirical evidence supports any specific proposition of psychoanalytic theory, such as the idea that development proceeds through oral, anal, phallic, and genital stages, or that little boys lust after their mothers and hate and fear their fathers. No empirical evidence indicates that psychoanalysis is more effective, or more efficient, than other forms of psychotherapy, such as systematic desensitization or assertiveness training. No empirical evidence indicates the mechanisms by which psychoanalysis achieves its effects, such as they are, are those specifically predicated on the theory, such as transference and catharsis” (KIHLSTROM, 2012).

No Brasil, o estado de coisas não parece ser tão diferente do que ocorre

nos círculos acadêmicos das humanities dos EUA, especialmente nos círculos

acadêmicos brasileiros ligados aos movimentos críticos. Freud é considerado

fundamental, juntamente com Marx. Esse mesmo tipo de pensamento que liga

Freud e Marx mantém uma enorme desconfiança da ciência e do método

científico. Não tenho condições de debater profundamente essa questão e esse não

é objeto desta pesquisa, mas duas coisas devem ser ditas. Primeiro, o apego aos

autores aproxima esses círculos acadêmicos de uma forma de sectarismo baseado

na autoridade, algo incompatível com o espírito científico esperado na academia,

que exige das pessoas a serenidade para, eventualmente, abrir mão de certas

crenças em prol das evidências. Segundo, ainda que todas as proposições de Freud

estivessem corretas, não está claro por que isso serve de razão para ignorar um

gigantesco conjunto de pesquisas científicas conduzidas nos últimos 40, 50 anos

para a investigação de problemas bastante específicos sobre a mente e o

comportamento humano particularmente significativos para esta dissertação.

Como afirmei na introdução, esta não é uma pesquisa centrada em um autor, mas

sim em um problema específico: a tomada de decisão judicial no contexto dos

casos difíceis moralmente carregados.

No que concerne a Frank, sua proposta de associar o direito à psicanálise

do desenvolvimento acabou por transferir à sua teoria o mesmo problema

discutido acima. Frank sustenta a ideia de que o direito seria mais uma forma de

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resgatar a figura paternal que assegure paz, conforto e proteção contra os perigos

desconhecidos. Mas o que isso diz além da ideia que o direito normalmente é uma

criação humana que se identifica a partir de certos fatos sociais relevantes, dentre

os quais, o reconhecimento e prática de certas normas por um grupo de pessoas

relevantes (uma proposição descritiva do direito tipicamente positivista)? O tipo

de análise conduzida por Frank parece ocultar algum insight brilhante, mas

percebe-se que por trás da nova linguagem não se extrai nada de significativo que

permita compreender melhor o fenômeno do direito, nem mesmo a tomada de

decisão judicial.

Como um todo, o movimento realista também pecou pela falta de

compromisso mais sério com o método científico. Já apontei que Brian Leiter

chegou a afirmar que o compromisso da maioria dos realistas com a ciência e com

o método científico não foi além da retórica e da metáfora (LEITER, 2006: 51).

De acordo com Frederick Schauer, alguns realistas chegaram a acreditar que a

cuidadosa percepção de juristas experientes seria suficiente para identificar os

verdadeiros determinantes nas decisões judiciais (SCHAUER, 2009a: 141), o que

é algo inteiramente avesso ao método científico. Veja-se a passagem bastante

elucidativa:

“...the empirical claims of the Realists are essentially agnostic as to method. Some of the Realists urged research that employed what were at the time the cutting-edge methods of the social scientists, and would thus likely have been sympathetic to what are now the more sophisticated methodologies. But others

believed that the careful perceptions of experienced lawyers would be

sufficient to identify the ‘real’ determinants of judicial outcomes and the real divisions or categories of the law” (SCHAUER, 2009a: 141, grifei).

2.3

O que ficou? A hipótese realista.

Essas objeções parecem colocar em questão todo o projeto de investigação

a ser conduzido nos próximos capítulos, mas essa conclusão não se justifica. O

legado mais importante do realismo jurídico está em sugerir que o processo de

tomada de decisão judicial seja examinado externamente, como uma prática social

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relevante que pode ser objeto de investigação empírica (SCHAUER, 2009a: 142).

Como pontuou Frederick Schauer:

“In looking at the law externally, the Realists believed that we could discover how law actually worked and that we could treat the relationship between legal doctrine and legal outcomes as a relationship that could and should be subject to rigorous empirical testing” (SCHAUER, 2009a: 134).

Do ponto de vista teórico, a hipótese de duas partes é o ponto de partida

para a investigação empírica e pode ser recapitulada na sua versão domesticada: a

primeira parte consiste na proposição de que no contexto dos casos difíceis a

maioria dos juízes tem uma inclinação para chegar a um determinado resultado

antes de consultar os materiais jurídicos; a segunda parte consiste na proposição

de que o juiz raramente terá dificuldade de encontrar a roupagem jurídica para a

decisão tomada no vasto e complexo universo de materiais jurídicos existentes.

Essa hipótese de duas partes será resgatada no capítulo 4.

2.4

Casos difíceis.

Antes de encerrar, é necessário dedicar alguma atenção ao problema da

definição de casos difíceis. Já forneci algumas informações importantes no item

2.2.1, dentre elas a distinção teórica que separa casos fáceis de casos difíceis a

partir do problema da linguagem do direito. Esclareci que o movimento realista

mantém certo ceticismo em relação à determinação do direito, valendo lembrar

que na visão extremada de Frank ele sempre foi e continuará sendo vago e

variável (FRANK, 1930/2009: 6). Em seguida revisitei a crítica feita por Hart a

partir dos limites da transmissão de padrões de conduta por meio da linguagem.

Com essas duas discussões bem delineadas foi possível estabelecer uma distinção

preliminar entre a ideia de casos fáceis e casos difíceis. Agora é necessário

elaborá-la um pouco mais.

Uma forma intuitiva de elaborar a distinção é realizar uma contraposição

entre a noção de casos fáceis e a noção de casos difíceis. Nos casos fáceis, o juiz

encontra no universo de materiais jurídicos uma regra jurídica clara que entra no

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processo causal de tomada de decisão. Esse processo de tomada de decisão, como

visto acima, é representado por um silogismo prático no qual os juízes, a partir

dos fatos do caso concreto, identificariam no ordenamento jurídico uma regra

composta por um pressuposto fático e uma consequência jurídica. Essa

consequência jurídica seria acionada quando o pressuposto fático descrito na regra

(a premissa maior) encontrasse correspondência nos fatos do caso (a premissa

menor).

Algumas dessas características não estariam presentes nos casos difíceis

(STRUCHINER, 2011: 131-132). Pense nas situações em que a regra não for

clara (o problema da vagueza atual e potencial), em que não houver regra

(anomia), ou em que houver mais de uma regra aplicável ao caso (ensejando o

conflito entre cânones interpretativos). Nenhum desses possíveis cenários se

enquadra na ideia de caso fácil porque não existe uma regra clara e pertinente ao

caso concreto à disposição do juiz. Nesses casos, o juiz não pode solucionar o

problema sem se valer de elementos estranhos ao direito.

A questão do conflito entre cânones de interpretação é particularmente

interessante no contexto brasileiro, tendo em vista a existência de um extenso

corpo legislativo produzido em âmbito nacional, regional e local. Isso aumenta as

chances de ocorrência de conflitos normativos e, consequentemente, as chances de

que os juízes tenham que se valer de cânones interpretativos para solucioná-los. O

problema é que a existência de um cânone interpretativo que oriente a solução

num certo sentido não exclui a possibilidade de existir outro cânone interpretativo

em sentido diametralmente oposto. A ideia de que esse tipo de conflito enseja um

caso difícil é conclusão extraída da análise desenvolvida por Karl N. Llewellyn,

para quem a disponibilidade de cânones interpretativos dando suporte a quaisquer

resultados jurídicos, inclusive opostos, seria uma prova de que a verdadeira

decisão judicial seria encontrada “fora do direito”. Frederick Schauer examinou as

ideias de Llewellyn e sintetizou:

“The beauty and charm of Llewellyn’s article is captured not just by these examples but by the way in which for almost every canon of statutory construction he located and listed, there was another that appeared to point in just the opposite direction. Llewellyn called this the ‘thrust’ and ‘parry’ of dueling

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canons, and he employed this language of fencing to demonstrate that the availability of traditional legal support for mutually exclusive legal outcomes was a ubiquitous feature of law. And thus he concluded that the presence of legal authority on both sides of most contested legal questions meant that the actual decision – the tiebreaker, if you will – was to be found in something other than the law as traditionally understood.” (SCHAUER, 2009a: 136).

Há outra espécie importante de caso difícil que vai além da questão da

clareza das regras, dizendo respeito à postura que o juiz tem em relação a elas. A

força normativa de uma regra é externa a seu texto e para que ela represente mais

do que uma mera sugestão é necessário que o juiz leve seu texto a sério

(STRUCHINER, 2005b: 158). Ocorre que às vezes as regras jurídicas são claras,

mas os juízes não concordam com o resultado que ela produz num dado caso

concreto diante daquilo que imaginam ser os propósitos que as justificam. Nesses

casos, o juiz transforma um caso fácil em um caso difícil sustentando que a regra

aplicável é subinclusiva ou sobreinclusiva, ou seja, a regra não inclui um caso que

deveria incluir, ou inclui um caso que não deveria incluir, gerando um resultado

que o juiz considera indesejável diante dos propósitos subjacentes a essa regra.

De acordo com definição encontrada na literatura brasileira, especialmente

entre os autores que se alinham ao movimento pós-positivista, os casos difíceis

são aqueles para os quais “não há uma formulação simples e objetiva a ser

colhida no ordenamento, sendo necessária a atuação subjetiva do intérprete e a

realização de escolhas, com eventual emprego da discricionariedade”

(BARROSO, 2005: 22, nota de rodapé nº 34). Para esses autores, a ponderação de

interesses ou de princípios, mencionada na introdução, seria a “técnica jurídica de

solução de conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em

tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais” (BARCELLOS,

2005: 23).

Não quero me arriscar na formulação de um conceito ou definição de caso

difíceis, pois essa tarefa demandaria uma série de explicações em torno de

conceitos e expressões qualificadoras. Por exemplo, tomando-se a definição acima

transcrita como paradigma, o rigor da análise filosófica demandaria que o uso de

expressões como “ordenamento” (o que levaria, por necessidade, a uma discussão

em torno do conceito de direito), “escolha”, “eventual”, “discricionariedade”,

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fosse qualificado. Para os fins desta pesquisa, a compreensão da ideia de casos

difíceis em contraposição com a ideia de casos fáceis oferece o necessário para

tornar inteligíveis as passagens e discussões que girem em torno daquela ideia.

Até aqui foi analisada a forma de ocorrência dos casos difíceis. No

entanto, é importante que se lembre que esta pesquisa está preocupada com uma

espécie particular de caso difícil: o caso difícil moralmente carregado. Certamente

há controvérsia na identificação de quais são os limites do domínio da moralidade,

mas é possível apresentar alguns exemplos de casos difíceis moralmente

carregados bastante conhecidos da literatura do direito: é a eutanásia uma prática

admitida no direito brasileiro? E quanto à ortotanásia? É possível que o direito

criminalize o aborto em qualquer circunstância? E quanto aos fetos anencéfalos?

O que justifica e quais são os limites da política de ação afirmativa? Até que ponto

o estado pode criar e exigir tributos com a finalidade de transferir renda e reduzir

as desigualdades sociais? Quais são os limites da liberdade de expressão diante

dos direitos da personalidade? É possível conduzir uma passeata em prol da

legalização das drogas? E a publicação de um livro veiculando mensagem

discriminatória? Pode um pai ser condenado por não ter desenvolvido relação

afetiva com o filho?

Todas essas perguntas têm como pano de fundo uma série de questões que

gravitam em torno do domínio da moralidade. O próximo capítulo tem a

finalidade de apresentar as principais contribuições da psicologia moral

contemporânea na tentativa de explicar como as pessoas tomam decisões

moralmente carregadas. Isso permitirá que no capítulo 4 elas sejam relacionadas

de maneira significativa à pesquisa em torno da atividade de tomada de decisão

judicial nos casos difíceis.

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