2. Confidencias de Um Sentimentalista

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  • 2011

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    autorizao de Manoel Arglo Nunes. Contatos com o autor atravs do e-mail

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    CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA

    CONFIDNCIAS

    MANOEL ARGLO NUNES

    24/04/2000

    Sonhar uma das poucas coisas, pelas quais ainda no se paga imposto em

    nosso Brasil. Esse livro uma histria de amor entre criaturas humanas

    imperfeitas e em busca da realizao dos desejos de felicidade , amor

    daqueles considerados quase impossveis, digo quase porque, segundo

    Jesus nos evangelhos bblicos, A DEUS TUDO POSSVEL((Mateus

    19:26) e TUDO POSSVEL QUELE QUE CR.(Marcos 9:23).

    Aqueles que buscam o amor verdadeiro com persistncia, no tempo certo,

    no no nosso, mas no tempo estabelecido por Deus, encontraro este amor

    e nele se realizaro. De leitura agradvel, romance envolvente e cheio de

    emoes. LEITURA RECOMENDADA PARA MAIORES DE 14

    (QUATORZE) ANOS.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    1

    NOTA DO AUTOR:

    Os locais, os personagens e as aes descritos neste livro no

    correspondem especificamente a realidades e quaisquer eventuais

    semelhanas no passaro de meras coincidncias. Os nomes usados nesta

    obra so fictcios.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    2

    I

    Estamos em uma pequena cidade do interior baiano. Por questes ticas,

    seu nome verdadeiro encontra-se camuflado. Digamos que se chama

    Abaitira, mesmo porque, como disse um de nossos irmos, O nome no

    importa; o que vale a essncia das coisas.

    Como todo cidado da boa terra, os habitantes deste ncleo populacional

    no deixam escapar a oportunidade de curtir uma boa dana, pela

    inexistncia de um cinema ou de um parque de diverses; novos e velhos

    sem ocupao definida passam a maior parte das horas nos bares de

    esquinas ou nos bancos dos jardins da praa central. Os botecos tambm

    servem de pontos de lazer para os amantes da boa caipirinha, que das

    prateleiras expe-se aos fregueses de quase todos os dias.

    Aposentados e funcionrios pblicos ajudam a manuteno de um

    comrcio regular, enfraquecido pela escassez de riquezas agrcolas e

    indstrias.

    Se dissssemos que seu povo est distante do mundo civilizado,

    mentiramos, pois a televiso mostra os dramas e casos mais notveis do

    planeta, via satlite ou atravs de antenas repetidoras.

    As grandes concentraes de massas populares localizam-se nos templos

    religiosos, nos festejos da padroeira e nos comcios polticos, onde os mais

    carentes prometem votos em troca de favores ou de solues milagrosas

    para suas crises pessoais.

    Desfilam at trios eltricos, carregando os mais entusiasmados, mostrando,

    assim, que, se falta comida nas dispensas, no falta roupa, nem energia

    fsica, nem vontade de rebolar, principalmente nos mais jovens.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    A exemplo do que reza a expresso latina panem et circus, com uma

    cesta bsica doada pelo Governo Federal e com o som das emissoras de

    rdio, a gente do lugar vai vivendo conformada, espera de tempos

    melhores que dificilmente chegam.

    O domnio poltico geralmente dos que se diplomaram na cincia de

    Esculpio, j que a poluio e a falta de bons alimentos para todos fazem

    proliferar as doenas. Todos precisam dos mdicos, sobretudo dos que so

    filhos da terra.

    Anjos e demnios dividem o comando da rea, na influncia espiritual,

    com pastores e seus correligionrios distribuindo folhetos bblicos pelas

    casas, mulheres catlicas dando comida, roupa e consolo aos doentes em

    suas moradas e macumbeiros fazendo suas devoes, ora com a

    explorao da f simplria do povo, ora com a prtica de rituais macabros

    at o dia em que o Criador ilumine melhor suas mentes, visto que tambm

    so filhos de Deus.

    Pelo sim ou pelo no, a vida alheia prato cheio e apetitoso para aos

    desocupados, mesmo que eles tambm tenham telhados de vidro em suas

    moradias. Mas h aqueles que levam a sua jornada na terra a srio,

    buscando cumprir seus compromissos, deixando a Deus e a cada um a

    responsabilidade pela quitao dos dbitos de todos os atos praticados.

    A cidade circundada por morros de altitude mdia; corta-a quase ao meio

    um rio alimentado pelas boas guas das chuvas que Deus e So Pedro

    mandam das cidades mais de cima. Nas pocas de seca, transforma-se,

    apenas um caminho que d passagem "calda" dos esgotos.

    Por ter o rtulo de lugar tranquilo, serve muito bem para o

    desenvolvimento da infncia e de parte do mundo adolescente, porm a

    falta de um bom mercado de trabalho exporta a maioria dos jovens para as

    grandes concentraes urbanas do Estado.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    Ao contrrio de algumas cidades pequenas, tem um cemitrio bastante

    povoado; que os antigos moradores que deixaram a regio pedem para ser

    sepultados no municpio, tido por calmo e hospitaleiro.

    Dizem que todos que aqui vivem e vo embora acabam voltando, seja para

    rever amigos, seja a fim de passarem a velhice respirando seu clima

    campestre.

    Um varo passa os minutos, desde a aurora, a cismar sobre os

    acontecimentos de sua vida; alguns, cmicos; outros, dramticos; outros,

    apenas singulares. ``s vezes imagina que original em tal sistema de

    vida, sem verificar que talvez no passe de um indivduo que entre muitos

    outros parece vagar desnorteado num turbilho de iluses e desencantos.

    Culpa dele prprio? Ou culpa das coisas do nosso sculo agitado e

    inovador, o qual pega de surpresa os menos preparados para navegarem no

    balanar das ondas das mars do destino?

    Um varo que, ao trabalhar, sente-se cansado; e, ao se achar em repouso,

    ou come livros, ou explora a maior parte dos neurnios de seu crebro, com

    interrogaes procura dos porqus das ocorrncias cotidianas.

    Um sol de clima tropical viaja pelo firmamento, acompanhado pelo cortejo

    de nuvens ralas que flutuam no cu azul; a temperatura calorosa faz os

    transeuntes expelirem o sal engolido nos almoos e jantares, bem como o

    colesterol, para fora da pele de seus corpos.

    Urubus passam voando baixo, como se fora uma esquadrilha de avies de

    caa em operao de reconhecimento estratgico; andorinhas e pardais

    tambm fazem sua festinha particular, para mostrarem que, se na terra

    desfilam pessoas, aas aves so as donas do pedao nas partes mais baixas

    do cu.

    Ventos espordicos levantam poeiras nos terreiros e nas ruas a cho ou de

    paralelos cobertos de lama seca, incomodando as vistas dos que, saturados

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    pelo clima quase trrido, deixam suas residncias para fazerem seus

    passeios.

    Cachorros e gatos disputam com os humanos os caminhos que do acesso

    s ruas, isto quando no esto dominados pelo sono.

    Como em todo aglomerado urbano, existem os que riem e os que choram;

    mas h tambm aqueles que no fazem uma coisa nem outra.

    Dentre as cidades da regio, apesar de sua pouca populao, destaca-se

    como uma das campes no consumo de bebidas, especialmente das

    cervejas.

    H ainda aqueles que, independentemente do credo religioso professado,

    buscam na bblia ou em outros livros de cunho moralista o alento

    necessrio para no sucumbirem aos redemoinhos e tufes da vida.

    Assim, apesar de relativamente pequeno, se comparado aos de outros

    centros urbanos, seu povo composto de uma salada de mentes de todos os

    tipos, cada qual com suas prprias caractersticas, salvo os grupos que

    matam o tempo sem vontade prpria, moda Maria vai com as outras.

    De uma madrugada a outra dos dias quentes de primavera e vero,

    sempre este o ritmo das pessoas, da gente sonhadora e sofredora que tudo

    suporta quando no lhe pisam nos calos; gente cordeira, amantes do

    descanso, das festas e das reunies ntimas.

    Demoradamente, o sol se aproximara do horizonte. Aquele varo pensativo

    fora casa, tomara seus banhos de gua e de perfume, enfiara um lanche

    goela a dentro e voltara a sair, agora para um lugar praticamente fora da

    cidade. Narciso era seu nome, o que em determinados momentos,

    contrastava com seu jeito simples de ser.

    Como os segundos parecem perptuos para os que esto sobrecarregados

    de ansiedade, no aguardo de algo que os desperte do torpor que os

    escraviza!

    Enquanto uns trocam passos apressados para chegarem a seus lares, outros

    so obrigados a inventarem passatempos para vencerem o tdio e o desfilar

    moroso das horas.

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    A noite descia lentamente, prximo s redondezas, beira de um crrego

    de guas, nas quais se banhavam pequenas pedras. lvara fitava as poucas

    estrelas que enfeitavam o firmamento. Buscava descanso e paz, pois o dia

    lhe fora hostil. Naquela hora estava a sentir-se mais filha dos cus que da

    terra; seu esprito alimentava-se das gotas do amor celeste que arrebata para

    fora da realidade perceptvel no dia a dia.

    Ali perto andavam homens e mulheres de todas as idades, ao embalo da

    brisa que soprava de algumas rvores para compensar a temperatura

    ardente da tarde.

    Pensou com seus botes: Esses transeuntes carregam suas dores e

    mgoas; por mais que aparentem disfarar, suas roupas de sonhos tm o

    avesso colorido de tristezas. Pensou to alto que, talvez por telepatia,

    Narciso se aproximou e sussurrou-lhe ao ouvido:

    - Posso extravasar meus sentimentos e fazer-te algumas confidncias?

    A atmosfera de cu ainda azul floreado de estrelas e perfumada pelo cheiro

    silvestre de gramas e arvoredos convidava a uma boa prosa. lvara

    respondeu:

    - Pode; serei uma caixa de segredos de sete chaves e estarei atenta a tudo

    que me disseres.

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    II

    - Causa-me estranheza ver-te sem uma companhia feminina. Logo tu, que

    s to vaidoso e queres mostrar ao mundo quanto s amvel! continuou

    lvara.

    - Nunca estou s. Por maior que seja a minha solido, meus amores do

    passado e do presente, sejam eles da realidade tangvel ou platnicos,

    fazem-me sempre companhia, ora recordando-me mgoas, ora trazendo

    tona do mar de meus pensamentos doces iluses e esperanas. E minha

    mente vive-os de uma forma to intensa que sou, ao mesmo tempo, autor e

    personagem de cada um deles. Minhas sensaes so to fortes que sinto-

    as por mim mesmo e saboreio tambm os eflvios das vibraes emotivas

    daquelas que de vrias maneiras participam da minha vida, seja atravs de

    um simples olhar, ou at num colquio ntimo de aconchego.

    E Narciso prosseguiu:

    - Estou sentindo muitas saudades de Ize, nestes ltimos dias. Eu tentava

    fugir de uma grande desiluso amorosa, quando a conheci. Era uma morena

    baixa e magra, melhor dizendo, possuidora de corpo elegante; sua tez tinha

    a cor do chocolate, todavia os produtos cosmticos modernos, a tingiam da

    cor do caf com leite, realando seus cabelos pretos que flutuavam sobre os

    ombros. Encontrei-a pela primeira vez em uma capela; era uma noite de

    domingo; nossos olhos se cruzaram; os meus, procura de uma nova

    quimera, algo em que me apegar para o futuro; os dela, em busca,

    provavelmente, do que viria a ser seu primeiro idlio amoroso. Os dias

    correram, a fim de trazerem a oportunidade de uma nova etapa para nosso

    devaneio; na tarde do sbado seguinte, quando curtia um passeio de moto,

    percebi que, de uma barraca de doces e bebidas, estava sendo observado

    muitas vezes por dois faris luminosos e tmidos que se estampavam em

    seu rosto; a recproca tambm passou a ser verdadeira. Sua irm, em

    determinado momento, chegou a censur-la. No domingo seguinte, p tempo

    passou a ser a testemunha maior de nossos anseios;

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    casualmente, nos assentamos em um banco bem prximo; ela trajava um

    vestido sensual de seda, quase voltil; fazia um calor intenso, emanado, em

    parte pela energia dos corpos dos fiis e em parte, do prprio ar.

    Notei que suas pernas finas estremeciam ao roarem nas minhas; seus

    cabelos desapercebidamente se deixavam balanar ao encontro de meus

    braos, e meus dedos, suavemente, mas com avidez, acariciavam seu

    pescoo, quando lamos juntos as leituras dominicais. Talvez temendo

    perder o controle da situao, retirou-se mais tarde, deixando-me s, com

    minha imaginao frtil a meditar sobre aquele encontro. Antes, porm,

    chegaram a meus ouvidos elogios a mim que lhe foram feitos por sua

    mana.

    A essa altura da narrativa, lvara interpelou:

    - Interessante como tu me relatas mincias desta tua aventura, depois e

    tanto tempo.

    - Mas so exatamente esses detalhes que constituem agora a doura de

    minhas recordaes, contudo, deixa-me prosseguir respondeu Narciso.

    Por ser uma catequista de religio, a partir daquela data, tornei-me assduo

    frequentador das missas de fins de semana. Se, de um lado, eu buscava

    suas faces com ansiedade, Ize tambm olhava-me tensa. Na celebrao da

    ceia da pscoa, em que eu, qui indignamente, era um apstolo de

    Cristo, aquela cantora de voz rouca entoava os hinos litrgicos fazendo

    bambolear sua cintura em meus ombros num contato provocante notado

    por pessoas da multido ali presente. Apesar da distncia dos anos que me

    era desfavorvel, comecei a enxerg-la como minha alma complementar.

    Entretanto aquela mistura de volpia e timidez tornava difcil ou quase

    impossvel uma aproximao maior entre ns, pois, ao sair da casa de

    orao, mantinha-se arredia.

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    III

    Como a amiga aceitou passivamente a condio de espectadora, Narciso

    enfatizou:

    - Tentei resistir quele romance que parecia mais um puro sentimento

    de afinidade e atrao espiritual, apesar de ser pintado por nuances de

    desejos. Foi intil. Inconsciente, a princpio, e de propsito, no correr do

    tempo, via-me com o olhar perdido no caminho que aquela aluna de

    magistrio percorria nas idas e vindas da escola. Sentia-me um dos homens

    mais felizes do mundo quando me olhava. E como me olhava, nessas

    andanas! Afastei-me por duas semanas, porm, a nsia de rev-la foi mais

    forte. Em nosso encontro seguinte, mirei-a de alto a baixo e ela parecia

    medir calculadamente as minhas intenes e os meus desejos. Mas, agora,

    seu semblante demonstrava inquietude e preocupao; era como se de

    repente houvesse se transformado em mulher. Nossos olhos passaram a

    comungar da mesma luz e disputar o mesmo espao, a ponto de ocuparmos

    a maior parte do tempo com olhares recprocos cheios de lascvia,

    mesclados de certa reserva, provavelmente tentando disfarar o sentimento,

    o que era praticamente impossvel, principalmente por ela, que tecia

    comentrios espirituosos com suas amigas, encarando-me s furtadelas,

    mesmo porque dito muito antigo que os olhos so o espelho da alma.

    Em certa feita, ela entreabriu os seus lbios carnudos, mostrando sua lngua

    em forma de uma rosa em boto. Meu Deus! Quanta excitao senti

    naquele gesto de uma carne nova e febril. Mais curioso era o sentimento

    de doce inveja amorosa que se instalava em sua alma quando no era o

    objeto de minhas atenes. o que se refletia em seus olhos de Sapiranga.

    Num dia como muitos, em que nossos rostos se contemplavam enlevados,

    percebi algumas lgrimas descendo em sua face. Estes fatos se repetiram

    muitas vezes e ela comentou com suas amigas ntimas que sofria bastante.

    Naquelas oportunidades era levada por colegas sacristia do templo do

    Senhor. A vida, no obstante, nos traz medos e dvidas, para nos mostrar

    que nossos ps tm que se fincarem no cho, embora as vistas possam ir s

    nuvens.

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    Ento passei a esboar algumas dedicatrias em forma de poemas em

    prosa, as quais ela jamais conheceu e que agora vou revelar-te.

    O confidente entregou a sua interlocutora algumas folhas de papel escritas

    de prprio punho. Esta lhe pediu que ele mesmo as lesse. Ento Narciso

    bradou, com certo recato, em voz melosa, os poemas.

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    IV

    POEMA 1:

    Minha flor querida de dezessete ptalas! Rosa perfumada de meus dias e

    noites cheias de ansiedade!

    Flor morena, flor pequena, d-me o doce nctar da tua lngua.

    Rainha de Sab de meu templo! At quando ter-te-ei apenas como amarga

    iluso de uma paixo secreta?

    At quando tu sers o amor impossvel de minha vida?

    Todos os dias devoro com meus olhos as tuas pupilas de mulher fatal, na

    esperana de assim poder inspirar-te ao corao uma resposta aos meus

    apelos recnditos quase desesperados de carinho.

    Alegro-me quando te vejo e que tu me olhas.

    Se finges no ver-me... Ah! Bem calculas a minha sensao de vencido.

    Se noto em teu semblante algum sinal de reprovao contra alguma volpia

    escapatria de algum de meus sentimentos, meu arrependimento e a triste

    sensao de vazio se estampam em meu rosto, alternados por um olhar

    portador de splica de perdo.

    Por mais que tente esquecer-te, por mais que lute para manter-me distante,

    mais a saudade e a vontade de te ver me incendeiam.

    Nas preces que minha alma faz volitar para o Infinito Poder e Amor, dois

    sentimentos fortes, quais asas poderosas, voam pelo espao estelar na

    solido de meu leito. O medo de sofrermos por nos amarmos e o medo de

    nos amarmos para sofrermos.

    Cada pensamento teu, cada comentrio que fazes em segredo s tuas

    amigas, parece ser fotografado em minha mente, como uma centelha de

    luz, ora a embelezar meus sonhos, ora a semear em meus receios a dvida.

    Estranho como o destino nos prega peas macabras ou engraadas.

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    s vezes tenho a impresso que a mo de Deus est a nos unir, fazendo de

    tua alma um eco da minha.

    Em outras oportunidades julgo teu gesto para comigo como uma vaidade

    pueril.

    Quanto aos meus arroubos, a custo contidos, s portas de minha

    conscincia, outras vezes os julgo como vlvula de escape do abismo de

    isolamento em que fui encarcerado. que, por mais acompanhado que eu

    esteja, no fundo, sem tua presena, sinto-me sempre s.

    Tenho tentado ocupar o teu lugar em meu corao com outro alento, mas, a

    cada dia, isto vai se tornando irrealizvel; nenhuma mulher me encanta

    quando comparada a ti, pois s enxergo a tua beleza.

    Em muitos momentos tenho perguntado ao Ser Supremo qual a razo de te

    amar tanto sem ter a certeza de quanto me queres.

    Curioso que, durante a elevao da hstia viva de cristo, no altar em

    que costumo pedir a Deus para alimentar o nosso amor com o seu, vrias

    vezes tenho te flagrado a observar meus olhos quando os abro aps a prece;

    como se tambm estivesses a pedir ao Pai a mesma coisa e a verificar

    minha reao posterior.

    Sabe, querida, fao de minha confiana em Deus o meu maior talism para

    unir-me a ti ou para de ti me libertar, se for de sua divina vontade.

    simples; se o Todo Poderoso no quiser nossa unio, ser intil

    remarmos contra as mars de cada dia, pois cedo ou tarde o destino te

    levar para longe de mim, deixando-nos para consolo apenas as lembranas

    de nossos encontros tmidos, de nossos doces olhares, que sem dizerem

    nada, dizem tudo.

    Por mais distante que estivermos, por mais separadas que estejam nossas

    vidas, recordaremos muitas vezes esses delrios, tristes cinzas de um sonho

    que jamais pode ser realizado.

    Ns as rezaremos na mesma cartilha, com pesar por descobrirmos ainda

    uma vez que talvez o destino tenha tirado a melhor parte, a maior fatia, da

    felicidade. Todavia, relembraremos tambm, achando graa e saboreando,

    extasiados, os grandes momentos mudos de ternura, a paixo que

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    irradiamos atravs das auras de nossos semblantes, nossos sorrisos mal

    disfarados e nossas frases cheias de perspiccia, com gosto picante.

    Se somos duas almas gmeas, duas partes que completam um todo, se

    nosso amor regado pelos seres anglicos para viar e crescer no canteiro

    do Arquiteto Universal, por mais obstculos que se ponham nossa frente,

    por mais difcil que parea, nossos destinos iro se fundir a cada passo. E

    nossas almas ainda gemero em desvairamento, aos contatos ardentes de

    nossos corpos.

    Por tudo isso que entrego a Deus os meus e os teus sentimentos; s Ele

    quem poder dar-nos o colrio que aliviar a dor dos nossos olhos.

    Ele nos aproximar um do outro, com sua onipotente energia csmica,

    atuando em nossas mentes e nas circunstncias que nos cercam.

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    POEMA 2:

    Nosso amor como um roseiral cheio de rosas e espinhos,

    mgoas e dores que nos fazem mal,

    reminiscncias de nossos poucos carinhos.

    Carinhos mentais,

    charminhos sutis;

    tudo isso e muito mais,

    fazendo um par feliz.

    Nosso amor alimenta-se

    das migalhas de esperana no porvir,

    tambm da imagem de nossas expresses fugazes,

    quando, em silncio,dizemos tudo.

    Tenho o pressentimento

    que em outros planos do Cosmos

    j nos amamos; em xtase, deliramos.

    O nosso amor foi completo e bonito.

    Em frenesi nossos corpos entrelaamos.

    Hoje, separados nesta existncia,

    bebemos o elixir dos deuses e deusas que refulge de nossos olhos;

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    e na nossa solido...

    Mentalizamos que seremos felizes

    que o Criador aqui nos ps para sermos um.

    Nossos sonhos, ..., por enquanto, s quimeras,

    devaneios que morrem e renascem com as primaveras.

    Quisera eu ser bem livre

    Como a guia que alto voa

    para roubar os teus beijos

    e saciar os desejos

    que minha mente povoam.

    Liberdade ainda que tardia,

    j dizia o inconfidente;

    por isso rogo a Deus que, um dia,

    magnnimo, me conceda esse presente:

    Que em nossas vidas

    aquea as chamas de nossos coraes como o seu;

    e, assim, ser tua minha alma;

    e teu corao ser meu.

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    POEMA III

    Comeo a me perguntar se vale a pena tanta tenacidade para construir um

    castelo de sonhos de realidade duvidosa, podendo o edifcio ruir por terra,

    diante de qualquer vendaval mais forte.

    Nosso pequeno mundo de iluses j no s nosso. Outras pessoas j

    conhecem sua existncia.

    Infelizmente j somos capazes deferir um ao outro com atitudes

    desconcertantes.

    Se j soframos por uma nsia e solido a custo represadas, a esta cruz

    somam-se tambm pequenos gestos de indiferena e desprezo mal

    disfarados.

    Dilaceras minha paz de esprito com atos destruidores; tratas-me, s vezes,

    como se eu fora o ser mais nfimo do planeta em que estamos estagiando.

    Prontamente te dou minha resposta.

    Vinganas mesquinhas...? Provas de defesa ntima? Reao vaidade ou

    orgulho ferido?

    Por que nos olharmos sobre os ombros?

    J comeamos a armazenar mgoas e interrogaes no cantinho onde s

    cultivvamos o amor.

    Como toda ferida di quando machucada, s incertezas de nossos

    sentimentos vo sendo adicionadas novas indagaes sem resposta.

    provvel que a partir de agora nossos planos para o futuro sejam

    reestudados.

    Nossas reaes podero passar a ser com reservas.

    S h amor onde existe compensao.

    Infelizmente j no estamos mais convictos desta.

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    POEMA IV

    Por que um homem de trinta e quatro primaveras teve seu corao

    despedaado por uma orqudea negra de dezessete anos?

    Dois mundos diferentes podem, acaso chegar a um acasalamento?

    At quando dois seres solitrios vivero espera de uma iluso distante?

    claro que um corao vazio sempre porta aberta para fantasias

    sentimentais, que podem se transformar em arrebatamentos ou angstias.

    Como senti-me venturoso, naqueles momentos em que vieste ficar junto a

    mim!

    Como me emocionei naquele instante em que, no brilho de teu olhar e na

    tua seduo em forma de sorriso, senti o clmax de teus sentimentos

    desabrochar em teu ser!

    Desejo impossvel o meu?

    Premonio de uma realidade projetada do mundo das causas, por

    antecipao?

    Desejo incontrolado de explodir em desvarios de dois seres que mal

    conseguem disfarar sua sede de amor?

    s vezes, tenho a intuio de que algum anjo do alm (sem asas), querendo

    fazer-se carne entre os seres humanos, inspira a mim e a ti,

    simultaneamente, pensamentos de ternura e afeto, e pede nossa colaborao

    e unio para, atravs do solo frtil das delcias do amor, fazer-nos germinar

    o fruto da vida, de dentro de nossos ventres ofegantes.

    Tivera eu certeza de que partilhamos os mesmos sentimentos, e nossos

    corpos se enroscariam com a mesma intensidade com que nossos coraes

    palpitam dentro de nossos peitos e nossos olhares se cruzam.

    Tentei esquecer-te. Busquei o nctar de outras flores. Tu fugiste de mim,

    qual ovelha desgarrada; buscaste aconchego em outros apriscos.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    Entretanto, quando menos acreditamos, estamos novamente envoltos na

    mesma aurola de bem-querer.

    Paixo gostosa..., que, todavia, nos faz padecer, que fatalmente vai tecendo,

    a cada dia, as vestimentas com que apresentaremos o drama de nossas vidas

    a Deus.

    Paixo pesadelo. Pesadelo gostoso de se recordar.

    Por caminhos opostos, parecemos caminhar, passo a passo, para o alvorecer

    de um lao fatal e irresistvel.

    De tua parte, os ns que nos prendem podem at desapertar suas pontas...

    Est prxima minha viagem ao infinito. L, amar-te-ei sem complexos, sem

    medo e sem culpa. Porque o esprito sempre jovem e sabe que o

    verdadeiro amor perptuo, suportando as tempestades do tempo e at

    mesmo os grilhes da morte. Na cidade celestial onde irei morar, os

    espritos no correm o risco de se distanciarem por causa da diferena de

    idade, desde que os sentimentos sejam afins.

    De meu novo lar, velarei por ti; serei teu anjo tutelar e, de l, continuarei a

    pousar em ti o meu olhar de meiguice.

    Nas tuas horas difceis, se pensares em mim, embalar-te-ei numa aurola de

    paz e ficarei aguardando o teu regresso para prosseguirmos o nosso

    espetculo da vida, agora sem o vu espesso do medo e das incgnitas que

    ora nos privam um do outro.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    POEMA V:

    Agora foges de meu olhar. Procuras confundir-me com ardis por tolas

    vinganas ou pelo prazer infantil de me levar ao calvrio.

    Jogaste pedras em quem te oferecia flores.

    Ser que o desdm j no era suficiente?

    Assim, minha dor seria menor.

    Senti tambm contigo o sabor amargo do pesar.

    Um dia, talvez, tu ainda olhes nos meus olhos; mas o teu olhar ser triste. E

    meu olhar ao cruzar com o teu, j no resplandecer com a luz daquele que

    leva coraes ao delrio; as minhas pupilas cansadas, com meus olhos j

    fundos, deixaro transparecer apenas o negro misterioso do desencanto.

    Mas sou forte. Assim como a semente cada ao cho renasce vicejante e

    bonita, mesmo prostrado por terra, transformarei a poeira que me cobre e

    renascerei do tmulo de minha desiluso.

    No vou culpar-te. Os deuses me pegaram uma pea. Parecamos almas

    gmeas. Quis, contudo, o destino que entrssemos no caminho em tempos

    diferentes.

    Ainda relembrarei com saudade e melancolia as doces fantasias de minha

    mente solitria; recordarei os sonhos felizes de amor que criei para ns

    dois. S me resta um consolo:

    Paixo secreta, verdade. Mas fui o primeiro a navegar nos mares de teu

    corao de menina.

    Quando a nostalgia estiver estampada em meu rosto, respeita a minha

    chaga, no por mim mesmo, mas em nome daquilo tudo que sentimos

    juntos outrora.

    E, por favor, ajuda-me a esquecer minha louca utopia de querer-te em meus

    braos.

    Procurarei, doravante, ser sbrio. Vers que tambm sei matar meus

    sentimentos.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    Segue tua estrada e deixa-me buscar outro rumo, sem rancores e sem

    esperanas.

    As trevas da noite so dissipadas pela aurora de um novo dia.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    POEMA VI:

    Prometi nunca maios pensarem ti. No obstante, estamos sofrendo, um ser

    por causa do outro. Nossa dor j parece interminvel. que nosso amor

    parece mais forte que o prprio limiar do tmulo.

    , estrela brilhante e perfumada, por que queres partir do cu de minha

    vida?

    Afastas-te to lentamente,vacilando,como se quisesses retornar.

    , pomba graciosa, por que deixas as campinas verdes das terras de meu

    corao to cheio de sonhos, os quais tu ajudaste a construir?

    No te dei meus melhores sorrisos?

    No sofri quando a decepo se revelava em teu rosto?

    No alimentei os teus olhos com os meus olhos?

    No fui eu, por acaso, que chorei pela ausncia de teu esplendor nas minhas

    noites negras?

    Quando , por cime, me ferias, minha existncia parecia perder todo

    sentido.

    No te vs deslizando pelas ondas da dvida e dos temores.

    Se partires, outro astro buscarei em outras plagas.

    A rvore j ramificada mais slida e mais frutfera que o broto ainda

    tenro.

    Tu s a rvore cheia de frutos saborosos para saciar minha fome.

    , querida, alimenta as minhas aspiraes com as tuas.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    POEMA VII:

    Agora jogas o descaso em cima de um passado. Pretendes matar com teu

    orgulho todos os belos momentos em que alimentamos nossa esperana.

    Queres, a todo custo, atirar no museu do esquecimento nossas fantasias de

    amor.

    Mas como isso ser possvel?

    Um amor demora para morrer.

    Ningum se olhava nos olhos como ns nos olhvamos. Havia dias em que,

    segundo minhas contas, no perodo de uma hora de relgio, ns nos

    encarvamos at cento e dez vezes.

    A lembrana de meus olhos mergulhando nos teus doces e saltitantes

    olhos de adolescente, no poder perecer assim to fcil em tua mente, nem

    em teu esprito.

    Querida, pedi tanto a Deus para que este momento no chegasse. Talvez

    fosse melhor deixar meu corpo fsico e flutuar no ter, onde talvez eu

    pudesse continuar acalentando meus projetos ou ser esclarecido sobre nossa

    alucinante paixo.

    Evidentemente, para tio, ser mais fcil esquecer-me. E eu? Meus

    sentimentos no contam?

    Dirs que no podes viver s de quimera. Compreendo-te.

    a lei da vida. Lei de construo e destruio, de amor e desamor; alegrias

    e tristezas cruzam-se sempre na mesma trilha. Flores e pedras so lanadas

    em nossos rostos.

    Quem Deus, o Nosso Pai, conhecedor da nossa comdia melhor do que

    ns mesmos, faa-nos fortes e nos d seu alento maior para que essa

    separao seja feita, se inevitvel, de forma a no ficarmos com nossos

    coraes feridos.

    No guardemos rancores nem dores recprocas.

    Ambos somos carentes de amor.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    Podemos at ser complemento um do outro.

    Para que machucar tanto?

    Ainda nos resta uma esperana:

    Podemos reatar nosso amor no Espao ou em outra vida terrena; porque

    somos espritos eternos. Quem sabe, nessa provao de um amor

    impossvel, estamos adquirindo crdito para um porvir feliz neste ou em

    outro mundo de Deus?!

    Nestes dois anos foste a grande razo e baluarte de meu viver.

    Quando me vias com estes teus olhos de menina moa...

    Piedade, Ize, respeita pelo menos a minha amargura. Tu foste a provao

    maior para o meu esprito na excitante arena do amor.

    Muito obrigado pelos teus olhares, pelos teus sorrisos, pelo teu jeito de

    falar comigo durante estes dois anos.

    Se Deus realmente nos separar, que Ele nos ajude a suportar aprova, pois

    tudo que acontece nessa terra fria obedece a sua vontade, conforme

    tambm nossas fraquezas.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    POEMA VII:

    Teu olhar doce e meigo de mulher menina era o claro dos meus olhos,

    ainda nas dimenses do tempo e talvez da eternidade.

    Teus lbios eram a estrela maior no cu triste de crepsculo de minha

    solido.

    Quantas vezes suspirei pela tua presena a meu lado, qual anjo consolador?

    Problemas, decepes, todos esses fantasmas, em minha mente, perdiam

    sua cor ttrica e transformavam-se em pequenos ramalhetes quando me

    fitavas, quando me sorrias, quando sorrateiramente me aplicavas teus ditos

    espirituosos que diziam uma coisa, querendo dizer outra. Em determinado

    momento em que eu te saudava, no me respondias com tua voz sensual,

    mas teu olhar divinamente feminino fazia transfigurar-se minha

    alma,falava-me de tudo.

    Quantas vezes achei-me s portas do umbral do desespero, devido tua

    ausncia forada pelas circunstncias ou por alguma luta que se travava nos

    prticos do palcio de teu ntimo!

    O mago de meu ser introduzia-se em uma guerra cruel; e s em Deus eu

    buscava foras para beber o amaro remdio que me era oferecido (um amor

    real, mas praticamente impossvel, atado pelos laos estranhos fabricados

    pela realidade do tempo).

    Nosso idlio uma loucura. Quem sabe, alguma lgrima que o Onipotente

    derramou de seu rosto glorioso para lavar a cicatriz de uma ferida que o

    mal fizera em algum ser anglico. Muitas vezes vi a alegria e o enlevo

    colorindo teu semblante, cujos fluidos,nessas horas, fundiam as auras de

    nossos rostos num nico foco de luz e de perfume do paraso.

    Ser mesmo que somos um daqueles pares de almas gmeas que perdidas

    na imensido do tempo e do espao, buscam o seu complemento?

    Perguntas como estas, sentimentos os mais secretos, s vezes

    inconfessveis, lembranas de cenas pitorescas de nosso escasso

    relacionamento, as emoes que vivemos juntos ou separados, continuam

    sem respostas.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    25

    Foi-nos negado at mesmo o direito de irradiarmos o aroma de nossos

    desejos mais escondidos.

    Somos forados, a partir de agora, a morrermos um para o outro. E

    sofreremos quando estivermos acompanhados por outrem, pois a solido

    seria bem melhor.

    Continuamos sedentos implorando a gua do amor para matar nossa sede.

    Aparentaremos estar felizes. Ao mundo isso parecer real. Entretanto, ns

    dois conhecemos a verdade.

    No. No culpemos ningum. Isso faz parte do batismo de fogo de nossa

    purificao.

    Eu j entreguei ao Criador as frgeis criaturas que somos. J coloquei

    tambm nas suas mos os nossos sentimentos.

    Quem sabe, em algum lugar, em alguma outra dimenso, ou at mesmo no

    mundo dos sonhos, Deus ressuscitar nossos desejos soterrados no fundo

    de nossas mentes eternas; e, juntos, porventura felizes, nos ser dada a

    beber a taa do nosso amor que parece ser o prolongamento do amor do

    prprio Deus, libertado das grotescas emanaes humanas.

    Se ainda quiseres habitar a cidade dos meus sonhos, das minhas fantasias,

    as portas do meu corao vo continuar abertas para ti. Tambm me

    franqueio para que a minha imagem em tua mente, a extenso de meu

    esprito, possa velar por ti, qual anjo guardio nas tuas horas de desencanto.

    No te digo adeus, porque no Universo de Nosso Pai comeo e fim se

    alternam a toda hora.

    A roda da eternidade d muitas voltas e pode ser que numa dessas voltas

    nos reencontremos.

    Ento terei a coragem de te dar Este e os outros poemas que te dediquei,

    para leres.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    V

    A noite j ia alta. lvara lhe comentou:

    - Poxa! Como tu a amavas! Onde ela vive agora?

    - Vive no seu mundo, na cidade grande. Vive tambm em minha memria.

    uma das maiores partes de minha vida.

    - Por que no casaste com ela?

    - Eu era pai de cinco filhos adorados. foi a resposta taciturna.

    Ambos se levantaram e seguiram o caminho de suas casas.

    lvara no se surpreendeu com tudo que ouvira, sabendo que os olhos de

    peixe morto de Narciso, ressaindo-se de dentro da pele trigueira de seu

    rosto, refletiam uma luz irresistvel.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    VI

    O sol acabara de despontar no horizonte, por trs da serra. Na plancie

    corria o nibus, indo ao encontro de novas paisagens e depois seguindo seu

    curso. Narciso, cabisbaixo, lia uma revista, ajudado por seus culos

    escuros.

    Julgando a viagem montona, lvara interrompeu-lhe a concentrao para

    travar o dilogo, com o objetivo de passar o tempo.

    - Tens pensado em Ize?

    Sabe, veio-me cabea neste momento a figura de Leila.

    Quem era?

    Trata-se de uma branca de cabelos loiros, de corpo relativamente

    avantajado, um pouco prejudicado por excesso de gorduras. Seus lbios

    eram grossos, no aquela salincia provocada artificialmente pela vaidade

    intencional, e sim, uma espessura espontnea, de que a natureza lhe dotara;

    tinha um colorido de carmim, combinado com o olhar de fmea ansiosa.

    - Como a conheceste? - Perguntou-lhe lvara.

    - Frequentvamos a mesma academia de ginstica. Desde o primeiro dia,

    Leila demonstrou um carinho especial por mim, talvez por causa do

    perfume que exalava do meu corpo, misturado ao suor, e certamente

    tambm por achar-me um homem de olhar muito sedutor, segundo me

    confessara em certa ocasio.

    - Chegaste a am-la, Narciso?

    - Como no amar aquela mulher? Como resistir a seus apelos e

    provocaes? Nosso relacionamento foi mais intenso. Por vrias vezes me

    excitava quando, ao passar por mim, premeditadamente, cheirava-me o

    pescoo. Era um namoro mais gostoso do que fora aquele com Ize. Aqui

    no eram apenas as olhadelas cheias de cumplicidade; havia um contato

    fsico mais real. Era tambm um amor no declarado. Na prtica,

    entretanto, ela fazia questo de mostrar a nossos companheiros e

    companheiras que me adorava. Numa noite, ao sairmos da sala de

    esportes, depois de fazer um formato de sculo amoda Xuxa, ela fez

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    estalar um beijo em meus lbios, plantando no canto direito de minha boca

    a marca do batom que usava.

    - Tu s muito romntico; s tambm muito convencido. disse-lhe lvara.

    Naquele instante, Narciso enxergou um brilho diferente nos olhos dela. Era

    a primeira oportunidade em que a fitava demoradamente, na tentativa de ler

    o ntimo de seu corao. Teria ele percebido uma pontinha de cime na sua

    amiga? Nesse nterim, o rosto da jovem teve os msculos da face

    contrados e enrubescidos. lvara estava perturbada. O momento era

    confuso para os dois. S a parada do carro no terminal rodovirio quebrou

    o gelo.

    Caminhavam agora lado a lado como dois irmos pequenos.

    Subitamente, ela quebrou o silncio.

    Gostavas mais de Ize ou de Leila?

    - Foram paqueras diferentes. Ize comia-me com o olhar. Leila me abraava

    com seus abraos ardentes e eu percebia nesse ato uma grande expresso de

    felicidade em sua fisionomia.

    - Onde est Leila?

    - Dedica seu tempo filha.

    - Filha tua tambm?

    - No.

    - J tentaste esquec-la?

    - Ainda no consegui esta faanha.

    Chegaram juntos casa de lvara, a qual entrou porta a dentro,

    cantarolando depois de uma rpida despedida.

    Narciso vislumbrou em seu ntimo estranho remorso. Estava sendo

    enfadonho com sua fiel depositria de suas confisses? Por que ela nada

    lhe contava de sua vida? Em pouco mais de um ms o destino os colocara

    no mesmo cenrio e ela prestimosamente escutava seus murmrios, sem

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    perder a pacincia. Prometeu, ento, a si prprio no mais relatar-lhe

    aventuras de seu passado. J em seu leito, em pleno sono restaurador, viu

    Leila enroscar em seu feixe de carnes como uma jibia agitada a

    murmurar-lhe palavras picantes injetadas de carcias. Mas ela dormia em

    sua prpria casa, ao lado de sua filha, talvez num colquio com os anjos.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    VII

    Sete meses transcorreram to depressa que agora o revillon demonstrava a

    expectativa da populao daquela cidade. A igreja matriz estava toda

    iluminada, irradiando as bnos que ali so oferecidas a todos pelas

    intenes dos crentes. No jardim da pracinha, em formato de trapzio,

    centrado por um coreto, jovens e crianas ensinam e aprendem a arte da

    seduo. Chega, enfim, o badalar dos sinos, anunciando a meia noite.

    Pastis, doces e salgadinhos saciam a fome de uns; sorvetes matam a sede

    das maiores vtimas do calor. Um pouco ao longe, as guas do ribeiro

    parecem bater em retirada, temendo o ribombar inevitvel dos fogos.

    Narciso acabara de assistir a missa de ano novo, descera a escadaria da

    santa casa de Deus e agora caminhava a esmo. Comeava, naquele ensejo,

    aquilo que j parecia um ritual de rotina em sua vida. Andava a ss, com

    suas prprias lembranas, ttricas ou paradisacas, amargas ou doces, que

    se casavam bem com seu mundo interior. Seus passos pareciam

    milimetricamente estipulados com antecedncia. A seu ponto de vista, ser

    solitrio era a nota mais marcante de sua sina.

    Arribou repentinamente cabea, anelando notar uma criatura que lhe

    dissesse uma palavra de carinho, que lhe endereasse ao menos um sorriso.

    E algum que ia sua frente cerca de cinquenta metros, contrariando talvez

    suas incertezas, virou o rosto e lhe lanou um olhar; das ris daquele rosto

    feminino levantavam-se chamas incandescentes de intenso prazer

    proporcionado sempre por um bom encontro; da a pouco aquele fenmeno

    repetiu-se em uma forma sequenciada. Narciso observava curioso que a

    jovem , em menos de trs minutos, olhou para ele vinte e cinco vezes.

    Apressou o passo. lvara sorriu timidamente, como fazem todas as pessoas

    que querem camuflar seu estado emocional; prosseguiu devagar, quase

    parando. Narciso enlevou-se com a ansiedade natural das pessoas que

    pressentem o momento de uma longa conversa. Tocou levemente a mo

    direita sobre o ombro de lvara; como consequencia lgica, veio o clssico

    beijinho no rosto e um abrao inicialmente indeciso, depois intenso como

    as lavas do Vesvio. De mos dadas, continuaram circulando o jardim, a

    princpio sem dizer muita coisa; depois, tagarelando o que lhes vinha

    memria. J no eram dois seres passeando sozinhos. AA energia

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    transmitida pelas mos de Narciso deixava cada vez mais ofegante lvara

    que lhe informou:

    - Dei umas andadas ontem com Abigail!

    - Eu preferia no traz-la lembrana nesta noite. Tua companhia est to

    agradvel...!

    - Eu que estou com expectativa. Por que no queres falar sobre a loura

    esbelta? Ela to bonita, bem adequada a teu bom gosto de eterno

    admirador do sexo frgil...!

    -E verdade que senti atrao e at apego secretamente por ela. Mas Abigail

    vivia em duas dimenses: Enquanto seu corao estampava no olhar uma

    ternura selvagem de gata em pleno cio, quando dela ame aproximava,

    enxergava uma deusa branca de lbios de cor quase escarlate. Sim, era isso

    mesmo: tinha minha frente uma esttua colossal de Vnus que assumia a

    forma carnal de mulher, talvez buscando uma resposta para seu ego.

    - Incrvel! Tu s um especulador de emoes, hein!

    - Obviamente, quem pode impor barreiras s sensaes mais recnditas do

    desejo? Todo homem e toda mulher, por menos que assim se revele,

    sempre um vendaval de fantasias fechado a sete chaves. No mundo real

    a maior parte das pessoas so moralistas, frgeis e tmidas. Contudo, seus

    espritos so audaciosos e rompem as barreiras do recato e dos tabus,

    mergulhando em seu mundo ntimo de fantasias que Deus e seus

    travesseiros conhecem. Ali desejos adquirem formas concretas; os

    separados se unem e o gelo da prpria solido faz germinar o calor do

    xtase.

    -Copiaste meu slogan de nosso primeiro encontro com muita preciso. Que

    pareces ter uma certa imaginao potica, no descarto; o que no conhecia

    era esta tua tendncia para filosofar.

    - Tolices, talvez, lvara.

    - Fala-me mais sobre Abigail.

    - Por que no falarmos um pouco de ns?

    - J estamos falando de ti.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    - Queria descobrir um pouco de tua vida; teus projetos de amor; tuas

    iluses. Eu acho mesmo que somos amigos.

    - Ela me disse que certa noite passou todo o tempo sem dormir, pensando

    em ti.

    - Eu j imaginava. Provavelmente foi quando apareceu porta de sua cassa,

    trajando um baby doll bem transparente e me encarou na estrada por mais

    de seis minutos. Tambm perdi o sono.

    - Ficou s nisso?

    - Por longos dias, imaginei e sonhei que nos tranvamos como a erva

    parasita enlaa-se planta que lhe d sustento Que me desculpes a

    repetio, empiricamente fazamos amor. Nas horas de sono, nossos corpos

    astrais encontravam-se, apaixonados, em delrios, famintos e insaciveis.

    Acordados, porm, ramos tmidos e orgulhosos; apesar disso, fazamos

    questo de passarmos vrias vezes ao dia perto um do outro. Era um

    sentimento sublime.

    Era demais, ou quase isso, para lvara. Aquele pinta de gal

    semiartificial sempre procurando levar vantagens. Instintivamente e de

    forma incontrolvel, a sua companheira agora lhe daria o troco.

    - Eu tambm j tive um grande amor secreto, daqueles que tiram o flego e

    que nos arrebatam para aas nuvens.

    - Fala-me um pouco sobre o felizardo.

    - Um dia te contarei; mas ele foi embora de meu corao. Mesmo assim, se

    voltar, meu peito bater a mil.

    Estavam to prximos... os hlitos exalados pelos dois fundiam-se

    praticamente em um s. Para disfararem um embarao que o esprito

    especulador de Narciso poderia provocar a partir daquela hora, lvara

    contou com a chegada inesperada de antigos companheiros de escola.

    Sentindo-se como um peixe fora dgua, o confidente despediu-se e foi

    recarregar suas baterias com um bom sono. J com novo dia, deitada em

    seu leito, lvara viu-se com insnia e se deixou absorver pelo mundo das

    fantasias de que lhe falou Narciso. Fez de suas mos o corpo de algum e

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    percorreu-as pelo seu prprio corpo durante vrios minutos. Chorou, suou e

    sorriu.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    VIII

    Sexta-feira da paixo. A igreja matriz estava repleta de catlicos que

    vieram buscar o perdo dos pecados ou entregar a Deus seus problemas, na

    esperana de serem aliviados de suas dores.

    Eram quinze horas; o sacerdote imitou o Cristo, caindo por terra,

    prximo ao altar; no sentia as dores que afligiram seu Divino Mestre,

    apesar de ser p centro das atenes que a multido ali reunida lhe devotava.

    O calor era quase insuportvel, mesmo prximo s janelas.

    Sentaram-se colados Narciso e lvara, como todos os presentes, j que o

    nmero de bancos do templo era pequeno para os frequentadores da casa de

    orao. Estavam introspectivos. No silncio que imperava no recinto, suas

    mentes divagavam, ora no passado de flores e espinhos, ora no porvir cheio

    de interrogaes. lvara deixou escapar da boca nas primeiras palavras do

    que seria uma longa inquisio:

    - Narciso, j reparaste como Elinalva mantm o olhar fixo em teu rosto?

    Como se acordasse de um sono profundo, seu amigo rebateu

    imediatamente:

    - Por mais inacreditvel que parea, sempre assim. Onde me v, seus

    luminares do rosto tornam-se olhos de esttua apontados para meu

    semblante.

    Narciso encarou a esttua de carne que estava sua frente. Do outro lado,

    aquele vulto feminino proferia para as suas companheiras palavras que s

    so perceptveis por duas almas que mesmo secretamente se idolatravam

    em tempos mais longnquos ou se adoravam no presente. Perplexa, lvara

    balbuciou, entre alguns suspiros:

    - Tu gostas de Elinalva?

    - Foi personagem de momentos em que sonhei com a barca do amor

    navegando em guas tranquilas.

    - Falas de forma enigmtica. Eu gosto de ouvir as declaraes sobre teu

    passado.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    35

    - Por que?

    A ctis de lvara, que era um misto de morena e branca, tipo cor cigana,

    assumiu o rubor das brasas. Ela resmungou:

    - como se assistisse um filme, do qual eu mesma fosse atriz secundria,

    numa suposta realidade virtual.

    Aliando curiosidade de lvara e sua nsia de manter um bom dilogo,

    tendo continuamente Elinalva como observadora, tal qual vigilante que

    perscruta o horizonte na esperana de ver a aurora, desabafou:

    - Numa tarde, beira da quadra de esportes, trajando um short folgado de

    malha branca, ela manobrava um bambol azul, rebolando a cintura

    frentica. Eu estava ali, parado, anotando pensamentos de um pequeno

    livro. De sbito, ouvi um ai que mais se traduzia por um gemido, vindo

    de sua direo. Ergui o rosto e fui atingido por verdes olhos reluzentes.

    Sorri para a danarina que correspondeu ao meu gesto.

    lvara interrompeu:

    - O padre est a ver que nos distramos. Mas continua.

    _ noite, estava s, em minha casa, pois meus pais e irmos viajaram.

    Acabei de sair do banho. Estava na varanda. Ainda com seu bambol,

    entrou, sentou-se no sof e pediu-me o cigarro que saboreava. Quando tirei-

    o da boca, a lmpada eltrica do local apagou-se. De forma brusca, e em

    frao de segundos, o bambol circundou nossos corpos j grudados.

    Quatro lbios totalmente amassados se embebiam de saliva e quatro narinas

    faziam respirao artificial para manter viva uma paixo que explodira

    sem uma nica palavra. Quanto tempo...? s Deus sabe, parecia uma

    eternidade. O cigarro fora apenas um pretexto. Um boa noite e um cigarro

    que lhe presenteei ocuparam os ltimos segundos daquele encontro, o qual

    se repetiu muitas vezes, silenciosa e sorrateiramente, acompanhados de um

    sorriso malicioso de ambas as partes.

    - Era como um filme do cinema mudo revelou a perspiccia de lvara.

    - Sim. Como era gostoso!. Nossos peitos a tremerem e nossas lnguas a

    travarem uma batalha, onde no havia vencedor nem vencido, diziam tudo.

    A nica frase que me disse foi: No deixarei que arrumes uma outra

    namorada. Eu sou suficiente para teu fogo. Certa vez, percebeu que outro

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    36

    corao feminino balanava dentro do meu. Passados dez dias, sua me

    entregou-me um cravo branco murcho que ela me deixara de brinde,

    embrulhado num bilhete que informava sua ida para a capital baiana.

    - Ufa! bradou lvara.

    Ningum sabia o motivo, porm seu corao batera descompassado.

    Elinalva desviou o rosto. O ritual da crucifixo do Redentor terminara e

    todos se dirigiam s portas da igreja.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    37

    IX

    Naquele sbado de pscoa espessas nuvens fizeram uma cortina para que o

    povo no visse as estrelas do cu. Mesmo assim, os freqentadores

    tradicionais do culto da missa ali deram o ar de sua graa. Aps a

    eucaristia, Elinalva e Narciso, que assistiam juntos os ritos pascais,

    repetiram, simultaneamente, como um eco, a voz do celebrante, combinada

    com o abrao de confraternizao e paz: Jesus te ama e eu tambm.

    Verdade sincera? Ou atitude mecnica?

    lvara cochichou algumas frases com uma amiga, assentada em um banco

    prximo.

    Chovia torrencialmente. Claridade? Agora, s a dos relmpagos. Os fiis

    aglomeravam-se embaixo de uma cobertura externa do templo, a fim de

    apreciar o espetculo dos ramos das rvores do jardim se curvando em sinal

    de reverncia mtua. Elinalva, tendo frente Narciso, nos momentos em

    que a multido se espremia, deslizava seus seios amparados por uma

    blusa verde nas costas do seu ex-namorado silencioso. Deixou cair, talvez

    por descuido, sua bblia. Quando o seu ex-amor abaixou-se para apanh-

    la, as carnes sobrepostas aos joelhos da proprietria pressionaram os

    cotovelos do contador de aventuras amorosas. Esses movimentos se

    repetiram mais tarde quando uma fanfarra musical anunciava o fim do

    temporal e o incio da alvorada que prometia um cu azul enfeitado apenas

    pelo sol.

    lvara puxou Narciso levemente pelo brao e, conduzindo-o a uma

    alameda, chamou-lhe a ateno.

    - O que o amor para ti?

    - a doura ou a ferocidade de um olhar ansioso; um sorrir, um leve

    toque em um corpo. A paixo secreta consome a alma, qual sara ardente

    purgatorial; se correspondida, porm, aquece esta alma contra frio de sua

    prpria solido. O desejo de se bom faz brotar o amor compaixo, essncia

    divina que se alimenta numa reciprocidade contnua em todos os seres,

    especialmente nos amadurecidos e nos lapidados pelos sofrimentos.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    38

    O verdadeiro amor, em seus mais diversos prismas, cresce at mesmo na

    dor e na derrota, pois em sua base e em seu vrtice invencvel. S por este

    sentimento sublime a Criao se interpenetra e abduzida para a luz de

    Deus.

    Enfim, a maior razo de nossa existncia, seja ele inserido em divagaes

    ednicas ou em pesadelos dantescos. Porque Deus Amor e ns somos da

    sua prpria estirpe. E completou o aprendiz de filosofia:

    - lvara, fala-me sobre tua grande paixo do passado.

    - Meu amigo, talvez te conte tudo em outra oportunidade. Se ele voltar,

    espero contar com tua presena em meu casamento.

    lvara avistou o cu cor de anil; ventos sopravam seu corpo meio gelado;

    agarrou-se, ento, a Narciso, qual uma criana que est sendo ninada e

    acariciada, ali adormeceu e no percebera que algum a levou de carro at

    o ptio de sua residncia, lugar no qual a despertou com um beijo nervoso,

    altura de seus superclios. Entrou rapidamente para ser velada pelos

    mensageiros de Orfeu.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    39

    X

    Conforme acertado h trs dias, na ante-vspera de um novo natal, s cinco

    horas da manh, o contador de segredos e sua amigas perambulavam pela

    estrada que d acesso da pequena cidade a um povoado no muito distante.

    No havia poeira porque uma borra de asfalta cobria o caminho. J

    andavam mais de duzentos metros, quando lvara inquiriu:

    - Poderias falar-me mais do que pensas sobre o amor?

    - Se no podes ter o carinho de algum exclusivo para ti, procura

    compensar com a multiplicao de tuas boas vibraes e irradia-as para

    todos os que estiverem tua volta. Se no puderes viver o amor carnal, faze

    acender-se em tua aura e em todos os teus atos o sublime amor espiritual,

    espalhando-o em todas as direes, sem distino de tipo fsico, raa, credo

    religioso ou outra forma de diviso entre as pessoas. Repete em ti o

    trabalho do sol que, como disse Jesus, brilha para os bons e para os maus.

    Mata o dio com o mximo de amor possvel, pois ele teu fardo na

    viagem eterna que empreendes h muitos sculos. E, olhando para

    algumas pedras, beira da estrada, Narciso prosseguiu:

    - Aqui est uma imagem real de nossa existncia. Reparaste com mais

    entusiasmo as pedras ou as flores?

    - Os arbustos floridos.

    - No nosso viajar infinito, uns nos atiram flores; outros nos jogam pedras.

    Guarda as flores que te deram na trilha e divide sua beleza e seu perfume

    com aqueles que assistem teu desfile; e deixa as pedras para trs, a fim de

    no se tornarem um peso em tua conscincia.

    lvara levou a mo direita parte inferior da blusa rosa com que se trajava,

    e, do aconchego entre aquela pea de vesturio e seu corpo, tirou um

    caderno meio machucado. Corou o rosto; com ar de arrependida e medrosa,

    falou:

    - Como nos consideramos amigos ntimos, ontem tomei a liberdade de

    pegar este caderno que estava junto com alguns livros de tua biblioteca. Ao

    chegar em casa, percebi tratar-se de um caderno de recordaes. Minha

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    curiosidade foi tamanha que no resisti ao desejo de conhec-lo com

    detalhes.

    - Violaste segredos meus, sem minha autorizao?

    lvara calou-se. Reinou o silncio de quem pede uma resposta e de quem

    tem receio de d-la. Narciso compreendeu que no podia repreender sua

    companheira. No lhe contava ele mesmo suas aventuras e peripcias?

    Enlaou a mo da moa, envolvendo-a com seus dedos fortes para lhe

    transmitir segurana. lvara entendeu e criou coragem:

    - Ento me perdoas?

    - Sim. Em nenhum momento de minha vida senti-me ofendido por ti. Leste

    at que pgina?

    -At a pgina que comea a falar de Eliza.

    - Descansemos agora um pouco.

    E para deixar a acompanhante bem vontade, ao tempo que lhe

    proporcionaria a chance de continuar conhecendo o dirio, sentando-se

    com ela sobre um tronco de rvore cado beira da estrada, o cavalheiro

    dirigiu-lhe um apelo to seguro como se fora uma ordem:

    - L tudo que escrevi sobre Eliza.

    lvara no esperou segunda splica.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    41

    XI

    Eis o escrito naquelas pginas:

    Eliza tinha quatorze anos, pele branca, meiguice no rosto e muita timidez.

    Era cobiada pelos rapazes donos da crista da onda da cidade e das

    regies circunvizinhas porque, alm de sua beleza fsica, herdaria no futuro

    uma razovel fortuna que tiraria do sufoco financeiro qualquer cidado.

    Eu lhe dedicava um amor espiritual, pois saberia que no venceria uma

    competio na corrida para lev-la ao altar com vu e grinalda. Meus

    dezessete anos e minhas boas notas escolares fizeram com que sua me me

    contratasse para dar-lhe uma banca nas matrias de Portugus e

    Matemtica. Tive que desdobrar-me, pois logo apareceu outra estudante

    para o cursinho, fazendo-me dividir as atenes para ambas.

    Um retrato em preto e branco e da jovem ricaa, posto sobre uma estante,

    era objeto de minha ateno permanente junto com a voz e o olhar tmido

    da moa. Eliza percebeu e a foto desapareceu da sala aps duas semanas.

    Eu no sonhava com um amor fsico de minha aluna, mas, numa tarde,

    quando, em companhia da colega, dirigiu-se copa para trazer-me um

    lanche, e mostrou-se a meus olhos uma frase escrita em francs adaptado,

    em seu caderno, com sua caligrafia, que afirmava: Narciso est un pain. O

    dito sublinhado conceituava, na poca, os homens como pes.

    Mudei de pgina rapidamente para no ser indiscreto.

    Tomei a vitamina de abacate feita a capricho; meu bigode ficara molhado

    com o suco da popa. Fiquei um tanto encabulado com a situao.

    Gentilmente, mina aluna predileta apressou-se em trazer-me uma toalha.

    E ela mesma passou-a nas zonas prximas minha boca. Foi o suficiente

    para que minha paixo platnica desabrochasse total do pleno vigor juvenil,

    ao contato daquela pele suave. A partir da, ela fazia parte de minhas noites

    mais que meu travesseiro e meu cobertor, mais at que meu prprio pijama

    de dormir. Acordava com a imagem de seu corpo como se fosse um

    fantasma glorioso esparzindo paz e esperana sobre minha alma. No dia

    seguinte, lembrando uma cena de novela, comentou baixinho com a colega,

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    42

    um pouco afastado de minha presena: Com aquele bigode...! Com

    aquele sotaque...!

    Associei a frase ao incidente do dia anterior. Decidi portar sempre um

    leno no bolso de minha cala para que o vexame no se repetisse.

    Em minha despedida, embora com os nervos flor da pele, apertava-lhe as

    mos, recurso com o qual minha amada parecia excitar-se, a julgar pelo

    cintilar de seus olhos e o cantarolar de msicas romnticas da poca, nesses

    momentos.

    Quando ela pegou resfriado de repente, ofereci-lhe meu leno e ela dele fez

    uso constante.

    No ltimo dia da banca, trocamos um beijo tmido e mido.

    Quando foi aprovada para a srie seguinte, mostrou-me as provas, pediu-

    me uma dedicatria; escrevi em seu caderno:

    Eliza, fico feliz pelo nimo, pela esperana e pela energia divina que

    chegaram tua mente, vencendo o medo e permitindo que Deus te ajudasse

    a alcanar esta nota. Orei a nosso Pai do Cu para te ajudar na prova. Das

    prximas vezes, entretanto, prepara-te melhor, pois o imprevisto nos deixa

    de espritos indefesos. Devemos ter muito cuidado na vida. A vida um

    mar onde h peixes mansos e tubares ferozes; um roseiral onde existem

    flores, cujo perfume inebria nossa alma, levando-a ao xtase; mas lembra-

    te que neste mesmo roseiral h os espinhos que podem ferir nossas mos e

    fazer brotar de ns a dor e as lgrimas, mesmo que sejam lgrimas

    solitrias. O perfume da rosa passa, mas as cicatrizes das furadas dos

    espinhos, s vezes, podem ficar por muito tempo.

    Na noite em que concluiu o seu estudo de primeiro grau, com sua

    expresso feliz, dirigia-me olhares de gratido; inspirado, fiz-lhe,ento,

    este poema:

    Ao menos por esta noite,

    Deixa-me povoar teus sonhos;

    Deixa que eu beba da fonte dos teus desejos;

    Eu quero matar minha sede

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    Bebendo a saliva que banha tua lngua cor de carmim.

    Tu te excitas, vendo em meus olhos aquele que leva ao delrio.

    Tu te aproximas com este olhar de fmea doce.

    Oh! Ao menos por esta noite,

    Alimentemos nossos suspiros de apaixonados.

    O mundo l fora dorme,

    As desiluses de cada dia tambm descansam.

    Querida, o cu dos deuses.

    Porm, nas camas, os amantes se cansam.

    Suga meus suspiros...

    Lava meu suor com o teu...

    Dois corpos tranados,

    A tremer... e agora a gemer vencidos,

    Embalados pela dor de uma fantasia.

    Sonhar no custa sacrifcio.

    A mente livre para voar os prados do amor.

    Goza as delcias e quimeras de um desejo

    Que nasce, morre e ressuscita com um simples beijo.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    Ah! Se o corao falasse

    De tudo aquilo que os olhos sentem...

    Tu me comes com teus olhos

    Como-te com meus desejos a custo contidos.

    Deusa da noite a espalhar perfume, encanto e magia!

    No suporto mais apenas olhar teu rosto de menina,

    Pois teu corpo cheio de curvas,

    A cada dia mais e mais me alucina.

    loucura amar quem secretamente nos deseja?

    pecado apreciar o belo que resplandece em nosso caminho?

    Nesta minha noite de solido, aflito te chamo.

    Vem aquecer-me, pois loucamente te amo.

    Transformou-se em minha amiga; nas festas e procisses religiosas

    andvamos prosando alegremente, de braos dados; o futuro se revelava

    sorridente para ns.

    Ela era rica e eu pobre. Perdi a parada. Um rico de uma cidade vizinha

    casou-se com ela; foram habitar numa luxuosa manso no Rio de Janeiro.

    Faz trinta anos que no tenho mais notcias de Eliza.

    Narciso e lvara voltaram do passeio matinal. Nada mais conversaram no

    retorno. Aquele levou seu caderno de lembranas para guard-lo. Esta,

    enquanto se banhava, no caf em seu leito, meditava quanto amara e

    sofrera seu confidente. Quantos sonhos e quantas frustraes viavam no

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    corao de um homem que facilmente se apaixonava e facilmente superava

    seus tormentos, pelo menos na aparncia.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    46

    XII

    Era sete de setembro. Sob um calor j causticante, s nove horas da matina,

    alunos, professores, autoridades e a populaa iniciaram o desfile do dia da

    Ptria, ao rufar de cornetas e tambores. Uns cumpriam conscientemente o

    ritual demonstrativo de exaltao ao Brasil. Outros caminhavam com o

    pensamento deslocado, busca de sensaes novas ou envolvidos por seus

    problemas e mistrios pessoais.

    Quando o cortejo passava sobre a extensa ponte do rio central da cidade, a

    jovem Marlcia comentou com Narciso:

    -Como era belo e cheio de gua o nosso rio! Por que se definhou tanto?

    Aps pequena pausa, Narciso no perdeu tempo.

    - A humanidade colhe o fruto das suas obras. A ganncia de poucos pelo

    lucro, que egoisticamente s pensam em seu bem-estar,seja a que preo for,

    espalhou a poluio no ar, no solo e nas guas; matou nascentes e

    mananciais. Como respostas, vieram as doenas modernas; o buraco na

    camada de oznio de nossa atmosfera permite que os raios solares,

    incidindo diretamente sobre os plos do globo, provoquem o degelo das

    calotas polares do planeta, alterando a temperatura dos mares, cujas guas

    evaporadas levam as frentes frias aos continentes, de uma forma especial,

    no hemisfrio sul. Animais se extinguem. Vegetais vem seus ciclos

    alterados pela atuao de agrotxicos. O oxignio torna-se irrespirvel.

    Revoltada, a natureza comea a reagir. Num apelo dramtico, alerta as

    conscincias sobre os efeitos inevitveis de seus atos desmedidos.

    Inundaes trazem memria de todos o dilvio bblico, como a mostrar-

    lhes que precisam lavar-se de suas maldades; magoada e ferida, como

    mulher prestes a dar luz, a terra se contorce em dores de parto. De seu

    ventre, faz subir, como num brado aos cus, o magma escaldante dos

    vulces. Da tremura de suas dores, sacode-se em terremotos, maremotos e

    furaces, quais mensageiros apocalpticos. Como dissera o profeta Isaas,

    nosso mundo cambaleia igual a um bbado prestes a cair no abismo. Nosso

    rio chorou por tudo isso e suas lgrimas secaram; nestes tempos ele

    apenas o espectro do que fora.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    Cativada pela explanao de tonalidade potica, Marlcia abordou outro

    tema:

    - Que pensas sobre religio?

    - A palavra religio vem do latim religare, termo este que significa religar o

    ser humano com Deus. Mas, na realidade, ao longo dos tempos, os

    indivduos, liderados por mestres e filsofos, interpretando cada qual os

    preceitos e revelaes que eram transmitidos deforma velada e simblica,

    segundo suas prprias maneiras de entend-los, criaram escolas de crenas

    pr-estabelecidas, muitas delas com dogmas. O verdadeiro objetivo da

    religio, num sentido universalizado, orientar e incentivar os fiis a

    seguirem os dez mandamentos da lei de Deus, transmitidos a Moiss no

    Monte Sinai e confirmados de uma forma potica pelos profetas judeus,

    pelos msticos orientais e por Jesus no Sermo das Bem-aventuranas da

    Montanha, os quais se resumem a dois preceitos simples, porm de mxima

    e vital importncia: Amar a Deus sobre todas as coisas e amar a teu

    prximo como a ti mesmo. Infelizmente os homens, inclusive alguns

    lderes religiosos, atravs da histria, principalmente na idade mdia, no

    seguiram esses dois ensinamentos. Atravs da chamada Santa Inquisio, a

    Igreja cumpriu ao p da letra a declarao de Jesus de que chegaria tempo

    em que matar-se-ia pessoas, julgando prestar um servio a Deus. S que o

    Divino Rabi da Galilia advertiu: Eles faro isso porque no conhecem

    nem ao Pai nem a mim.

    Ainda nos nossos dias atuais, em plena Europa civilizada, que tem o

    privilgio de ser chamada primeiro mundo, vemos crentes evanglicos e

    catlicos, seguidores dos dois principais ramos do cristianismo, em guerra

    e assassinatos em massa, por meio de atos terroristas e atentados, na Irlanda

    do Norte. Para o apstolo Tiago, a religio pura e sem mcula socorrer,

    de forma generalizada, os necessitados e manter-se livre da corrupo

    deste sculo (festas mundanas ou profanas, todos os vcios, sensualidade,

    escrnios, contendas, os crimes gerados pela violncia, a explorao do

    fraco pelos fortes e poderosos da terra e outros defeitos prprios do ser

    humano, ainda em estgio baixo de espiritualizao).

    Todas as religies, em nosso modesto modo de ver, so teis, j que

    desempenham grandes funes de carter filantrpico e educador, sob a

    forma de vrios aspectos sociais, para a formao e regenerao do ser

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    48

    humano. Mesmo porque Jesus Cristo no deixou especificado em lugar,

    livro ou poca alguma o nome de uma determinada crena como caminho

    nico para se ir ao Pai. O Divino Mestre apenas indicou que Ele o

    Caminho, a Verdade e a Vida e que ningum vai ao Pai a no ser por meio

    dEle. Disse mais ainda, certa vez, a seus discpulos: Sempre que houver

    dois ou mais reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles. O apstolo

    Paulo, iluminado por Cristo, enfatizou: Deus o Senhor de todos, rico

    para com todos aqueles que o invocam e todo aquele que invocar o nome

    do Senhor ser salvo. Embora no livro do profeta Isaas exista a

    advertncia de Deus, dizendo: Buscai o Senhor enquanto o podeis achar,

    no livro do profeta Jeremias o mesmo Deus nos d a certeza de que todos o

    procuraro e o acharo: Buscar-me-eis e me achareis, quando me

    buscardes de todo vosso corao. Nas cartas de Paulo aos colossenses e

    aos efsios, o apstolo nos ensina que o propsito de Deus reconciliar em

    Cristo ou seja, trazer de volta para si, fazer deixar de ser rebeldes, tornando

    dceis) todas as criaturas, tanto as da terra como as do cu. E, como afirma

    o Salmo 115 versculo 3,O nosso Deus est no cu e faz tudo que deseja,

    sentena esta tambm confirmada por So Paulo na missiva aos efsios,

    quando diz que Deus faz tudo conforme o seu beneplcito. Na carta aos

    corntios, ele volta a confirmar que no fim, quando tudo estiver sujeito a

    Cristo, Deus reinar completamente sobre todas as coisas. A fora amorosa

    de Deus mantm vivos os nossos espritos por toda eternidade, para, no

    futuro, sermos manifestaes de sua glria, pois somos sua imagem e

    semelhana.

    A essa altura, a procisso cvica chegara a seu final. Todos retiraram-se,

    extenuados, para suas casas. Narciso sentiu saudades de lvara que no via

    h dias; e rabiscou para sua camarada este poema:

    Qual duas gaivotas em pleno mar,

    Voamos alto

    No firmamento de nossas idias.

    Tu mais eu igual a ns

    Na saga de momentos inesquecveis,

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    Nos prados de nossas iluses.

    Lgrima e sorriso,

    Inferno e paraso,

    Encanto e desencanto,

    Recolhidos a um canto...

    Eu, pssaro errante

    A contemplar teu infinito,

    Num lamento, num grito.

    Tu, gaivota hesitante

    A escutar meus murmrios

    No girar das horas,

    Entre o dito e o no dito.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

    50

    XIII

    O tempo corre to rpido como um barco sacolejado pelas ondas do mar,

    que passam despercebidas as aes dos indivduos e seus reflexos sobre o

    meio em que vivem.

    De forma sutil e silenciosa, entretanto, como o abrir-se das flores para

    abraarem o sereno do cu, Saturno trabalha modificando as formas do

    pensar e do agir dos filhos e filhas de Eva neste vale regado pelo pranto.

    Der p, junto a um monumento da praa maior da cidade, Narciso escuta

    atentamente o vozerio do povaru crente, que entoa hinos, lembrando a

    volta do Cristo e convidando-o entre o balanar dos corpos e o flutuar de

    braos abertos.

    O pastor lembra a necessidade imperiosa de que seus ouvintes imitem o

    divino Rabi da Galilia e faam nascer da terra ainda rida de suas almas

    um corao de luz para ofuscar o antigo de pedra.

    Que fazia Narciso, catlico assumido, no meio daquela multido? Que

    fora o arrastava para aquela concentrao pupular de outra f, no largo

    onde sentira tantas emoes sentimentais no passado?

    Estava ali porque os sonhos amorosos, os devaneios e as mazelas do

    quotidiano pediam trgua, pois deixavam transparecer que no podiam

    mais atormentar-lhe o esprito.

    Uma discpula do reino, evanglica atuante, com toda fora de sua

    juventude, animava os cristos que ensaiavam glrias a Deus, num

    Hosana que leva os mais exaltados ao frenesi da energia do Esprito Santo.

    Aquele membro atuante da igreja tinha um feixe de carnes de mulher

    acobertado por um vestido branco, como os aflitos sados da grande

    tribulao do Apocalipse, e deixava vislumbrar para todos dois olhos de

    anjo. Tinha tez moreno-escura e nariz afilado, encimando lbios finos,

    enfim, ali estava uma legtima cabo verde,cheia de vida, a servio do

    Senhor e de seus projetos de menina moa. Cumpria seu dever para com o

    Criador, mas Narciso constatava, por seu ntimo perspicaz, que por trs

    daquela nuvem de felicidade celeste da adolescente morava um corao a

    transbordar de amor e desejos disfarados pela potncia de suas oraes e

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    seus salmos. Jardnia era, assim, o brao direito do lder espiritual daquela

    comunidade, ali reunida para orar ao Grande Rei do Universo e prestar-lhe

    o louvor devido. Ela era o farol que iluminava o portal para outros jovens

    na caminhada para as manses da Nova Jerusalm prometida. Seus lbios

    movimentavam-se febrilmente, tanto quanto seus olhos e deixavam

    transfigurar-se sua boca bem matrimoniada com seu rosto.

    As festas mundanas j no atraam aquele senhor de meia idade, de barbas

    brancas, estudioso mais das emoes alheias que das suas prprias.

    Procurava nas servas evanglicas do Senhor algo que lhe plantasse uma paz

    duradoura no solo ressequido de sua existncia.

    No mago das coisas, Narciso buscava no apenas o Divino Salvador, que

    sabia estar em toda parte para aqueles que querem v-lo, mas tambm um

    raio de comiserao e amor daquela cabo verde com faces de princesa

    que cumpria sua misso maior de ajudar seu Mestre.

    Os olhos de Narciso se petrificaram ao verificar que lvara se postava a

    poucos metros de Jardnia.

    Um leve sussurro e um olhar cmplice das jovens chamou a ateno do

    sonhador sentimentalista.

    As duas se retiraram, como todos, no final do culto. No se encontraram

    com o novo frequentador daquele grupo dos servos de Jesus. Caminharam

    juntas. Descobriu-se depois, que lvara tornara-se amiga do peito de

    Jardnia, que viera de Belo Horizonte. Moravam na mesma rua.

    Ao contrrio de Narciso, lvara no fora congregao com desiluses ou

    em busca de mudanas. Ali se dirigiu por insistncia da companheira.

    Em seu leito, Narciso sondava seus rins matutando entre seus dedos. lvara

    assumia em seu destino cada vez mais a funo de anjo da guarda, anjo de

    luz e de compaixo. Parecia estar sempre a vigiar os passos daquele

    pobre solitrio.

    No meio da semana, lvara contou-lhe que Jardnia muito sofrera na

    infncia com apendicite e com a desarmonia entre seus pais. Jesus era seu

    consolador; era tudo, ou quase tudo, em sua vida ainda cheia de juventude.

    Os suspiros que poderiam ser de uma paixo soterrada nas enxurradas dos

    primeiros anos de sua puberdade, agora, eram ressuscitados para o

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    Bendito Nazareno e se elevavam ao seu trono como bolhas de sabo das

    crianas, contaminados com as vibraes de olhares lascivos dela mesma e

    da maior parte de todo o grupo. Ningum podia conden-la, pois ningum

    parecia se encontrar em melhor condio. Era, qui, a ovelha guia do

    rebanho mais jovem de sua casa de culto.Depois de longos contatos com

    lvara, Jardnia passou a ter uma predileo especial por Narciso, a quem

    considerava uma pequena rocha que poderia no futuro tornar-se diamante

    lapidado para ornamento do altardo Senhor. Eventualmente, por ironia ou

    desgnios de Deus, poderia tornar-se um baluarte para ela, quando a

    juventude fosse embora, trazendo-lhe o peso dos anos.

    No templo, nas ruas ou no prdio escolar, um N masculino floreava seus

    pensamentos de aprendiz de arcanjo e de matriz de mulher. Era o que

    lvara deixava transparecer a Narciso, que, por sua vez, fazia vaguear seus

    pensamentos, como a borboleta que sobrevoa os ares busca do nctar de

    novas flores.

    lvara tornou-se missionria junto com Jardnia no canteiro de Jesus.

    Agora evanglicas fervorosas, seguiram juntas para acidade grande, onde o

    Senhor lhes dera grande obra a fazer.

    Narciso soube da partida de ambas quando regressou de um passeio de

    frias.

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    XIV

    A casa de Narciso estava repleta. Pessoas amigas da famlia, cabisbaixas,

    dividiam-se entre abraos de condolncias e preces silenciosas. Na ante-

    sala jazia inerte a me de seus filhos. A parada cardaca fora fatal. Vieram

    todos cinco do Rio de Janeiro; efusivamente reunidos em um quarto,

    desabavam choro, vendo prestes a partir aquela que lhes guiara os

    primeiros passos, contara histrias e entoara canes de ninar. Aqueles

    cinco homens mais se assemelhavam naquela hora a pequenos pssaros

    recm-nascidos, com medo do mundo que lhes circula o ninho.

    O vivo, que j tomara as providncias para conduzir aquele corpo de olhos

    opacos sua ltima morada fsica, multiplicava-se para atender os

    visitantes e para tentar doar aos filhos a tranquilidade e o consolo que no

    possua nem para si mesmo.

    Foram muitas primaveras de convivncia alegre ou triste. Um matrimnio

    da sociedade, como a maioria deles. Erros e acertos de duas criaturas que

    enfrentaram a mar da evoluo dos tempos. Criaram seus varonis

    mancebos custa de muito esforo e renncias. Revoltar-se? Nunca.

    Cada vida um jogo de xadrez. E a morte o xeque mate.

    Estela cumprira sua tarefa. O Divino Cordeiro a receberia de braos abertos

    como o pastor que recebe de volta uma de suas ovelhas.

    Narciso no chorava como seus filhos, noras e netos. Acreditava na

    eternidade da vida e que seus ciclos eram irreversveis.

    Em lugar do desespero dos presentes, fazia splicas mentais ao Criador em

    favor daquela que partia. Perdoava e pedia perdo. s dezesseis horas

    daquele dia de sol plido e cinzento, no meio de lamentos e dores, o cortejo

    passava para a cidade do descanso. E o esprito de Estela ia ao encontro

    de Deus. Imbuda de extrema caridade crist, a falecida repartira com os

    mais necessitados o po multiplicado pelo Pai Celestial.

    A famlia ficava, todavia, com razoveis finanas que permitiriam uma

    velhice tranquila para o esposo; seus filhos estabilizaram-se na vida. pois

    todos sempre guerrearam contra a inrcia e a fome, num esforo hercleo.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    Eles mantiveram-se junto a seu genitor no trajeto que sempre o final para

    cada um na terra quando chega ao seu dia.

    Quando a derradeira p de cimento lacrou a nova amorada de Estela, uma

    chuva de pranto derramou-se sobree as proximidades de seu tmulo.

    Dos olhos de Narciso desceram duas lgrimas a banhar-lhe as faces.

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    XV

    Com dbito de duas noites de sono, os cinco irmos e seu pai, alimentados

    apenas a calmantes, foram deixados em seu lar e adormeceram.

    No dia seguinte, em presena do advogado da famlia, tratou-se da diviso

    dos bens.

    O vivo decidiu que no acompanharia seus herdeiros para a cidade

    grande.

    Aps a partida dos familiares, ele retirou-se para um stio que adquirira, em

    busca de descanso e paz. J em sua nova residncia, viu que pssaros e

    flores tambm morrem. Morrem? Ou tornam-se apenas invisveis a nossos

    olhos?

    Dedicou-se, ento, a um intenso labor; usava de toda sua energia fsica e

    mental para transformar sua fazendola em uma mina de ouro. Amava a

    natureza. Adorava o assoviar do vento nas folhagens. O cantar dos pssaros

    ninava sua alma.

    O Grande Arquiteto do Universo dava-lhe generosamente colheitas fartas

    de seu pomar e de sua horta. Sabia que a idade limitava cada vez mais seu

    campo de ao; paradoxalmente, os frutos se multiplicavam, pois auxiliares

    de confiana buscavam lucros junto com o agricultor. Estabelecera-se no

    stio um clima de colaborao total. Todos ganhavam pelo que produziam.

    Narciso sentia, maravilhado, o milagre da vida: as sementes sepultadas

    na terra brotavam em direo s nuvens com o colorido de suas folhas e

    frutos. Sim, a natureza era-lhe prdiga.

    Ao redor de sua casa de campo, as flores se abriam para receber o calor

    vivificante do sol, o colrio das chuvas e os beijos das borboletas e

    insetos.

    O co de guarda era seu mais fiel amigo. A seu lado, ele contemplava o

    jardim e tinha certeza que, como disse um dos nossos maiores poetas, ao

    menos as flores eram dele e no o abandonariam. Enfim, com o tempo e

    bom gosto, construra um pequeno den prximo sua vivenda.

  • CONFIDNCIAS DE UM SENTIMENTALISTA - AUTOR: MANOEL ARGLO NUNES

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    Por sua proximidade ao meio urbano, com todo seu conforto, sua ida

    cidade s era necessria a negcios e para receber os proventos que

    prudentemente plantou durante a vida inteira.

    A domstica da casa cuidava das refeies e dos demais afazeres.

    Tambm ali havia um riacho de gua doce borbulhando entre as pedras.

    mesa de cabeceira de seu quarto, um porta-retratos exibia seu rosto e o

    de lvara, que um fotgrafo saliente lhe ofertara. ``A noite, ele deitava os

    olhos naquelas faces que, com o olhar sereno sempre lhe sorriam.

    Narciso lembrava, nostlgico, a amiga, seus passeios e seus segredos.

    Tinha tudo; melhor dizendo, no tinha nada; faltava-lhe o amor.

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    XVI

    Contra seus cinquenta e um janeiros, surpreendentemente, Narciso

    mantinha-se com aspecto de quarenta e quatro, graas calma da zona rural

    e ao melhor uso de suas foras.

    Sentou-se beira do crrego de gua e ps-se a descascar uma laranja;

    neste ato, dizia em voz quase alta:

    Se minha alma gmea ainda entrar em minha vida, a casca dessa fruta no

    se quebrar.

    Beleza! A tira da casca saiu completa. Chupou uma banda da fruta ctrica.

    Uma quarentona balzaquiana abraou-o por trs, cheirando seu pescoo.

    - lvara?! (S podia ser ela, dizia-lhe o perfume.)

    - Narciso! ( A voz tambm confirmava.)

    Virando-se repentinamente, o homem insinuou:

    - Aceita esta banda de laranja? Ou queres uma fruta completa?

    - Quero esta banda. A outra sou eu. disse-lhe lvara, em tom de

    brincadeira.

    Seguiu-se um longo abrao que parecia eterno, onde os toques e o calor

    humano levaram ao paraso perdido dois seres solitrios.

    Em casa, falaram sobre aqueles dez aos que os separaram. Narciso contou-

    lhe sua viuvez e sua vida em contato com a natureza; acreditava ainda no

    amor de Deus e no amor dos seres humanos. No lhe falou de nenhuma

    outra aventura, pois no houve.

    lvara tocou no passado do amigo:

    - Encontrei tuas antigas quimeras.

    - Foi mesmo? Que sabes sobre suas vidas?